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ESAN Aula de 25 de maio GÊNERO: a história de um conceito (Adriana Piscitelli) Atribuição de espaços sociais diferenciados para homens e mulheres; Situação de discriminação feminina; Atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes a homens e mulheres, utilizados para delimitar seus espaços de atuação; Considerado como inato, algo supostamente “natural”, decorrente de distinções corporais entre homens e mulheres, em especial daqueles associadas às suas diferentes capacidades reprodutivas: conceber filhos contribui para que a principal atividade atribuída às mulheres seja a maternidade, e que o espaço doméstico e familiar seja visto como seu ambiente natural, seu principal local de atuação; A distribuição desigual de poder passa a ser vista como resultado de diferenças tidas como naturais, “naturalizando-se” as desigualdades;

Gênero, uma introdução

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ESAN Aula de 25 de maio

GÊNERO: a história de um conceito (Adriana Piscitelli)

Atribuição de espaços sociais diferenciados para homens e mulheres; Situação de discriminação feminina; Atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes a homens e mulheres, utilizados

para delimitar seus espaços de atuação; Considerado como inato, algo supostamente “natural”, decorrente de distinções corporais entre

homens e mulheres, em especial daqueles associadas às suas diferentes capacidades reprodutivas: conceber filhos contribui para que a principal atividade atribuída às mulheres seja a maternidade, e que o espaço doméstico e familiar seja visto como seu ambiente natural, seu principal local de atuação;

A distribuição desigual de poder passa a ser vista como resultado de diferenças tidas como naturais, “naturalizando-se” as desigualdades;

Os anúncios publicitários muitas vezes reforçam os ideais de gênero, como a imagem da mulher como mãe e dona de casa e sua associação às tarefas domésticas

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Gênero → conceito elaborado por pensadoras feministas (1970’) para desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as desigualdades sejam percebidas como resultado dessas diferenças.

Sexo → remete a essas distinções inatas, biológicas / Gênero > sexo: para referir-se ao caráter cultural das distinções

Quando nascemos, somos classificados pelo nosso corpo, de acordo com os órgãos genitais, como meninas ou meninos. No entanto, as maneiras de ser homem ou mulher não derivam dos genitais, mas de aprendizados culturais que variam segundo o momento histórico, o lugar e a classe social.

A “identidade de gênero” está no plano da cultura, dos hábitos e dos aprendizados, não deriva dos genitais, que “pertencem” à natureza, à biologia.

→ esfera SOCIAL – objeto da Sociologia, não da biologia – e o caráter cultural, flexível e variável da distinção:

Em algumas sociedades indígenas, por exemplo, a atividade de tear é vista como feminina; noutras, como masculina: não há nada naturalmente feminino ou masculino!

“Primeira onda” do movimento feminista (final do século XIX e início do XX): as principais reivindicações giravam acerca dos “direitos iguais à cidadania” → sufrágio universal; acesso à educação; posse e bens; etc.

Os distintos papéis atribuídos aos homens e mulheres dependem de diversos fatores, como a idade, o sexo = são culturalmente construídos.

A antropóloga Margaret Mead influenciou decisivamente as feministas das décadas de 1920 e 30, ao documentar as diversas maneiras em que “outras” culturas lidam com a diferença sexual, mostrando que noções como feminilidade e masculinidade não são fixas, variando de uma cultura a outra.

Quadro p. 129 – Sexo e temperamento em três sociedades primitivas

Estereótipos universalizados = mulheres como dóceis, meigas e afetivas em decorrência da maternidade; homens, dominadores e agressivos → Mead mostrou que são, ao contrário, traços aprendidos desde que uma criança nasce, impondo cores, como rosa para a menina, e azul para o menino, estabelecendo brinquedos e brincadeiras distintas, etc. → construção cultural da diferença sexual por meio da socialização. De diversas maneiras, na família, na escola, nos locais de sociabilidade as pessoas aprendem essas normas e elas são incorporadas, geralmente num processo inconsciente, imperceptivelmente, tornando-se, assim, “naturais”, evidentes.

Simone de Beauvoir e O segundo sexo (1049): precursora da segunda onda do feminismo

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Para a filósofa, para reduzir as desigualdades era necessário mais que mudanças legais, como a garantia de voto. Para retirar as mulheres dessa posição subordinada era necessário combater os aspectos sociais que a fundamentava:

→ a educação sexista, que preparava as meninas para agradar aos homens, para o casamento e para a maternidade;

→ o caráter opressivo do casamento para as mulheres – uma obrigação para se obter proteção e lugar na sociedade;

→ o caráter impositivo da maternidade;

→ a vigência de um duplo padrão de moralidade sexual, isto é, de normas diferentes para homens (permissivo) e mulheres;

→ a falta de trabalho e de profissões dignas e bem remuneradas que dessem oportunidades às mulheres de ter independência econômica.

“Não se nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto” Simone de Beauvoir

A mulher e o patriarcado

A partir dos anos de 1960 – segunda onda do feminismo – o questionamento do suposto caráter natural da subordinação feminina passa a ser contestado, pelas mulheres, reconhecidas como um novo ator político coletivo. De acordo com as feministas,

a opressão incluía tudo o que as mulheres “experienciassem” como opressivo. Ao definir o político de tal maneira que acomodasse essa concepção de opressão, toda atividade que perpetuasse a dominação masculina passou a ser considerada como política. Nesse sentido, a política passava a envolver qualquer relação de poder, independentemente de estar ou não relacionada com a esfera pública (p. 134).

→ “O pessoal é político” : suas vidas cotidianas, no lar, nas relações amorosas e no âmbito familiar

→ Político é essencialmente definido como o que envolve relações de poder.

As pensadoras feministas passaram a revisar as produções disciplinares, perguntando-se como seriam diferentes se a história, a antropologia, a ciência

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política e, tivessem considerado relevante levar em conta o “ponto de vista feminino” (p. 135).

Com o tempo, porém, o conceito de patriarcado foi igualmente sendo questionado, sobretudo por pressupor de maneira única e universal, formas de poder que se alteram conforme o espaço e o tempo –; não se deve esquecer, entretanto, que o conceito de patriarcado tinha como objetivo demonstrar que a subordinação feminina não era natural e, portanto, passível de ser combatido.

É a partir de então que se elabora o conceito de gênero, situando a problemática das mulheres relativamente à totalidade da cultura e da sociedade; enfatizando, inclusive, o caráter político das relações entre os sexos, observando que os sistemas de significado que produzem noções de diferença entre homens e mulheres oprimem não somente elas, mas igualmente as pessoas que não se inseriam nos arranjos heteronormativos.

Nesse ínterim, o próprio sistema sexo/gênero é questionado, visualizando-se como político (relações de poder), isto é, pensar em termos de gênero articulando a sexualidade como dimensão política. A seguinte citação da feminista Judith Bulter é ilustrativa,

[...] o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo que ‘a natureza sexuada’ ou ainda ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura [...] colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas (BUTLER, 2003, p. 25).

Referências bibliográficas:

BUTLER. J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

MAIO, Marcos Chor. O projeto UNESCO: ciências sociais e o “credo racial brasileiro”. REVISTA USP, São Paulo, n. 46, p. 115-128, junho/agosto 2000. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/46/09-marcoschor.pdf>.

PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito In: ALMEIDA, H. B. de; SZWAKO, J. E. (Orgs.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009, p. 116-148.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Racismo à brasileira” In: ALMEIDA, H. B. de; SZWAKO, J. E. (Orgs.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009, p. 70-115.

TAUIL, Rafael. Florestan Fernandes: questão racial e democracia. Revista Florestan, n. 1, São Carlos, p. 12-22, 2014. Disponível em: <http://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/article/view/10/pdf_14>.

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ESAN aula de 15 de junho

A sexualidade como questão fenômeno social

Considerada como impulso/força natural, a sexualidade parece ser objeto da biologia, enquanto que nossas emoções e sentimentos, da psicologia. De qualquer forma, é algo que diz respeito, exclusivamente, ao âmbito da vida privada, e, portanto, não ser passível de discussão e debate → concepção dicotômica (moderna) entre público e privado

Representações sociais= conjunto de ideias e valores sociais; elas orientam e influenciam o modo como as pessoas pensam e vivem → relação verdade – subjetividade na cultura ocidental

Mesmo que a sexualidade humana seja representada predominantemente como uma “força” natural, trata-se de uma “força” que passa, necessariamente, pelo filtro das normas e valores morais. [...] Não inventamos sozinhos nossas fantasias sexuais, nem nossa repressão sexual. Ambas resultam de um complicado processo de socialização por meio do qual conhecemos e vivenciamos nossos corpos, sentimentos e emoções, bem como compreendemos de que maneira, quando, onde e com quem podemos agir em termos sexuais (p. 153).

Assim, as representações sociais, “Não apenas dizem o que é possível pensar no campo da sexualidade, mas também o que seria “justo” e “moral” fazer (p. 154) → impacto do controle social exercido sobre as manifestações da sexualidade (normalização)

Porém, as representações não são homogêneas; ao contrário, por vezes são muito discordantes entre si, e competem no esforço de afirmar e decidir o que é “natural”, “justo” e “normal” na sexualidade. Assim, tanto as representações quanto as práticas relacionadas à sexualidade são criações culturais, produzidas historicamente e em contextos sociais determinados → uma questão central na sociedade ocidental capitalista cristã, e no coração de instituições sociais1 como o namoro, casamento, família e procriação, determinando os papéis e obrigações aos indivíduos, ao quais devem ser cumpridos dentro de um limite variado de tolerância social.

Nesse sentido, diversas instituições acabam por regular a própria sexualidade; e ambas – instituições e sexualidade – como produtos sociais culturais – sofrem transformações ao longo do tempo/espaço.

A família mudou muito nos últimos anos, bem como as possibilidades do relacionamento amoroso: “as relações entre sexualidade, casamento e reprodução são diversas e incontáveis” (p. 156):

Normas e valores mudam, mas as restrições que pesam sobre a sexualidade das mulheres não são as mesmas que recaem sobre a sexualidade dos homens. Uma convenção ainda forte na sociedade brasileira é a de que o homem tem “mais necessidade” de sexo e, portanto, deve estar sempre “de prontidão”; ao passo que à mulher cabe a responsabilidade de se resguardar, se prevenir e se encarregar das consequências de uma eventual gravidez. Há mais tolerância social para com as

1 Tudo aquilo que toma a forma cristalizada de um arranjo de regras e costumes destinados ao funcionamento e à reprodução das sociedades.

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“traições” e relações extraconjugais dos homens do que para com as das mulheres. Até poucos anos atrás, no Brasil e em vários outros países, a mulher adúltera era punida com severidade, muitas mulheres ainda são coagidas por seus namorados e maridos a manter relações sexuais, sob ameaça ou violência física. Muitas mulheres são perseguidas, agredidas e até mesmo assassinadas por ex-companheiros inconformados com o fim de um relacionamento amoroso. A sexualidade também “diz” coisas a respeito de como são as pessoas e de como são as relações sociais que elas estabelecem, para além das relações mantidas na vida privada. A linguagem da sexualidade é poderosa para expressar classificações e hierarquias sociais. Essa linguagem forma boa parte das ofensas, insultos e xingamentos tão comuns em nosso cotidiano, que põem em dúvida a firmeza dos homens e a honestidade das mulheres (p. 156).

“Ser homem” e “ser mulher” é uma convenção social, daí a condenação à homossexualidade, e os crimes de homofobia: xingamentos e insultos; condenação e perseguição por motivos morais ou religiosos; agressões físicas, assassinatos e suicídios.

A questão da sexualidade está no foco de lutas políticas e iniciativas legais e governamentais:

Ver, por exemplo:

Projeto de Lei 6583/13, o Estatuto da família, no intuito de regulamentar a constituição da família brasileira;

A luta pela descriminalização do aborto; A Lei Maria da Penha (11340/06); O programa do Ministério da Saúde Brasil sem homofobia2; União civil homoafetiva; Nome social, entre outras.

Movimentos sociais → politização de questões relacionadas à vida privada: direito ao livre uso do corpo e à livre expressão da sexualidade

→ Denúncia pública e combate coletivo às formas de violência e discriminação que atingem especialmente mulheres e homossexuais.

Impacto internacional: duas conferenciais internacionais – sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo (1994)3 e sobre a Mulher, em Pequim (1995)4 – para consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos como parte integrante dos direitos humanos

Saúde reprodutiva = “um estado geral de bem-estar físico, mental e social em todos os aspectos relacionados ao sistema reprodutivo e às suas funções e processos” – direito da mulher controlar e decidir livremente sobre questões relacionadas à saúde sexual e reprodutiva (maternidade).

2 Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/brasil_sem_homofobia.pdf>3 Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento - Plataforma de Cairo - disponível em: <http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf>4 Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher - Pequim - disponível em: <http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_beijing.pdf>

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Saúde sexual e reprodutiva: a gravidez na adolescência, um drama social

Controle social = quem pode e quem não pode ter uma vida sexual ativa ou ser pai/mãe

Mas não podemos dizer que as coisas sempre foram vistas desse jeito. Até algumas gerações atrás, não havia nada de especialmente espantoso no fato de jovens engravidarem logo no início de sua vida reprodutiva. Para a moral sexual da época sem dúvida era desejável (mesmo obrigatório) que essas jovens fossem casadas; e a gravidez que acontecia antes do tempo costumava ser, então, um meio para apressar o casamento. Hoje em dia, porém, espera-se que a adolescência seja um período prolongado de dedicação à formação escolar e profissional com vistas à conquista de uma vida autônoma, estável e madura (p. 161).

Construções sociais, morais que, no entanto, nos parecem naturais e evidentes!

Dizem respeito à experiência de vida das mulheres urbanas das gerações atuais = leque de oportunidades maior que suas mães e avós tiveram no passado → ideais contemporâneos de formação prolongada e busca de autonomia, assim, a gravidez na adolescência transforma-se em um problema social e de saúde pública → especificidade do objeto das ciências sociais

Saúde sexual e reprodutiva: aborto e controle de natalidade

Propostas de descriminalização do aborto: intensa resistência, geralmente associadas aos valores morais e religiosos acerca do significado da vida. Diferenças de classe

Mulheres da classe média/alta podem realizar o aborto em condições adequadas – embora ilegal – de saúde.

De acordo com a OMS, o aborto inseguro está entre as principais causas da morte de mulheres em idade reprodutiva.

Durante a ditadura (1960/1070), políticas de esterilização foram praticadas pelo governo militar e entidades não-governamentais junto a populações pobres.

Ler p. 163: disputas discursivas + controle da criminalidade

Saúde sexual e reprodutiva: a pandemia da Aids nos anos de 1980

A explosão da Aids na década de 80 ressuscitou a velha e conhecida relação entre sexualidade e doença, com ênfase na homossexualidade masculina: “peste gay”

Grupo de risco

Esse acontecimento contribuiu para mudar dramaticamente a discussão pública sobre a sexualidade:

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Junto com o triste legado de intolerância, de violência e das mortes, a pandemia da Aids escancarou também a presença socialmente disseminada de práticas homossexuais masculinas para além da população homossexual visível (p. 165).

Políticas públicas de enfrentamento da Aids: Brasil, um dos primeiros países a implementar políticas com a participação de ONG’s e movimentos políticos de homossexuais e soropositivos. Assim, enfrentamos o problema como problema de saúde pública, e não do ponto de vista moral, de modo a respeitar a liberdade individual e as singularidades culturais, assegurando, ao mesmo tempo, o atendimento público à saúde como direito.

Natureza X cultura

Ao mostrar as diversas situações que nos permitem reconhecer a importância da sexualidade como questão social e política, demonstramos igualmente os limites em pensá-la como fato natural, pois encobrem essas mesmas dimensões:

Apelar à natureza é um meio poderoso para afirmar a verdade e a solidez de qualquer coisa, fato ou argumento para além de qualquer discussão, de forma supostamente definitiva. O uso desse argumento, porém, encobre os sentidos múltiplos e ambíguos que a palavra “natureza” pode assumir. De fato, teorias e doutrinas sociais, políticas, filosóficas e religiosas muito diferentes foram formuladas a partir desse mesmo fundamento ...

Ler p. 167

Posições em disputa pela hegemonia política (Estado) para governar a conduta dos indivíduos, para normalizá-la.

Para enfrentar esse debate, é preciso conhecer melhor a dinâmica social que dá forma às condutas sexuais e traça os limites e possibilidades que se abrem [e se fecham] para nós, como sujeitos sexuais (p. 168)

Scientia sexuallis, o século XIX e a era vitoriana

A sexualidade como impulso natural irresistível, determinante da personalidade e da identidade nos foi legada pelos cientistas (médicos, em sua maioria) do século XIX, quando da instituição da especialidade da sexologia como discurso científico sobre a sexualidade humana. V/F

Não é, porém, coincidência que a scientia sexuallis tenha se cristalizado na época vitoriana → Max Weber a o fundamento moral (juízos de valor) do discurso positivista do século XIX

Sexo: ameaça à vida e à moralA única prática legítima é a relação sexual entre homem e mulher, abençoada pelo casamento na idade adulta, com vistas à formação da família, ao engrandecimento da nação e à reprodução da espécie.

A abordagem “científica” da sexualidade decorre da teoria da evolução de Charles Darwin, especialmente do papel que esta atribui “seleção sexual” (luta para obter parceiros sexuais) como teste definitivo para a evolução bem-sucedida de uma espécie.

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Assim, apoiados em casos clínicos, os médicos reuniram o maior número possível de vivências individuais da sexualidade, fornecidos pelos seus pacientes, com o objetivo de identificar os processos por trás do desejo e da atividade sexual humana. Para eles, todo indivíduo era permeado por impulsos que formariam a natureza profunda do seu ser.

Técnicas de extração da verdade: a verbalização dos pacientes, baseada na confissão cristã, tornada obrigatória no Concílio de Trento (1545-1563) e instituição do arquivo.

As atividades e os comportamentos considerados anômalos, perversões físicas ou morais formaram uma lista de classificação de tipos que remetiam a desvios, patologias, doenças sexuais: necrófilos, sádicos, masoquistas, bestialistas, coprófilos, exibicionistas, fetichistas, homossexuais, lésbicas, travestis, hermafroditas, etc.

O projeto da scientia sexuallis era desvendar a verdadeira (V/F) natureza da sexualidade humana, mas a preocupação em classificar as patologias sexuais conduziu para o desenvolvimento de novas formas de controle da sexualidade (técnicas de normalização, cf. Foucault), orientadas por preocupações políticas e morais que ameaçassem à saúde da família e da nação → formação dos Estados nacionais e de políticas de intervenção no social mediante as instituições que hoje conhecemos, como escola, hospital, prisão, fábrica/indústria, manicômio, etc.

As técnicas disciplinares se aplicavam aos casos desviantes da norma, isto é, para uma sexualidade considerada saudável: sexo adulto entre homem e mulher, devidamente casados, em relação monogâmica.

Para a mulher, o ideal era a castidade, e posteriormente, a maternidade.

No Brasil, no final do século XIX e início do XX, as ideias dos primeiros sexólogos foram acolhidas com entusiasmo por um grupo de médicos em suas pesquisas sobre as origens biológicas dos “desvios sexuais”, bem como para o tratamento médico e psiquiátricos dos “desviantes” = práticas de normalização (Foucault).

O sexo e a hereditariedade: associação entre inferioridade racial, degeneração, loucura e crime (emergência da criminologia) – problema político-estatal

Freud e o inconscienteSexualidade = energia vital

Freud, o criador da psicanálise, afirmou que entre o desejo do corpo e a restrição da moral haveria uma mediação necessária das atividades mentais (recalques), muitos deles responsáveis pela formação dos traumas psíquicos, em razão dos desejos primários reprimidos.

Psicanálise: mescla de teorias e técnicas terapêuticas voltadas à compreensão da mente e do comportamento humano. Inconsciente: essas imagens e ideias associadas aos desejos reprimidos se expressariam nos sonhos, nos lapsos, ou mesmo em perturbações físicas e mentais.

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Emergência da sexualidade infantil como objeto da psicologia, e foco de cuidado dos pais e médicos, da família, da medicina e da pedagogia.

A visão de Freud sobre a sexualidade infantil perturba algumas imagens convencionais da infância como tempo de pureza e inocência (p. 173).

Para Freud, haveria uma “perversidade polimorfa” e uma “bissexualidade originária” na humanidade, sobre a qual agiriam as convenções sociais, no sentido de determinar o permitido e o proibido, fonte dos sofrimentos psíquicos e mentais dos indivíduos: a “normalidade” desejável era quase sempre marcada por sofrimentos e conflitos psíquicos”.

Assim, quanto à homossexualidade, Freud foi taxativo:

A homossexualidade, seguramente, não é uma vantagem, mas não é nada de que tenhamos de ter vergonha. Não é vício nem degradação e não pode ser classificada como uma doença (p. 173).

Importância decisiva de Freud/psicanálise → inter-relações entre corpo, mente e meio social: a socialização e as orientações culturais exercem papel fundamental no desenvolvimento da sexualidade humana

Sexualidade, casamento e família, segundo a antropologia evolucionista

A antropologia do século XIX seguia o modelo vitoriano, interessados em estabelecer as origens do desenvolvimento social, intelectual e material da humanidade: a cultura, ou civilização, a partir da etapa primitiva ou selvagem, a passagem da natureza para a cultura.

Assim, os objetos dos primeiros antropólogos era a família, o casamento e as estruturas de parentesco. Assim, haveria uma evolução onde casos de casamentos poligâmicos, encontrados em sociedade primitivas, evoluiriam até a família burguesa, nuclear e monogâmica, o ponto culminante dessa evolução, assegurando a paternidade dos filhos, a propriedade privada e a herança (segundo Morgan).

Sexualidade, cultura e comportamento: Malinowski

Culturas: diversidade de formações e desenvolvimentos sociais As diversas culturas (diversidade cultural) fez com se passasse a buscar a explicação dessa diversidade não mais na história da humanidade (evolucionismo linear – agora considerado especulativo), nem em uma suposta natureza humana, mas nas próprias diferenças sociais (transcendência – imanência) Assim, cada cultura passa a ser considerada em sua singularidade, uma totalidade formada pela articulação de diversas dimensões = organização social e política, ideias e códigos morais, práticas e crenças mágicas e religiosas, linguagens e expressões artísticas, tecnologia e cultura material.

Em A vida sexual dos selvagens, Malinowski afirma que naquela cultura, a sexualidade era estimulada desde cedo, onde rapazes e moças tinham muitos amantes, e vivida com mais franqueza e desinibição de comportamento relativamente à cultura europeia.

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Para Malinowski, a sexualidade era plástica, maleável, suscetível de influência cultural: o impulso inato da sexualidade era transformado, por diversas mediações, em hábitos, costumes e valores socialmente aprendidos e transmitidos pela tradição, norteando, assim, a conduta sexual.

Biopolítica e extensão do poder psiquiátrico: a família (interface entre o indivíduo e o social) e a intervenção médico-política centrada na sexualidade

Tradição oriental, o Kama-Sutra: outra relação com a sexualidade, ver figura p. 170