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GESTÃO DEMOCRÁTICA ESCOLAR: UMA PRODUÇÃO HISTÓRICA
Erica Machado – Mestre em Educação
Este texto tem como objetivo abordar a evolução histórica do tema gestão
democrática da escola. Para que este estudo não se torne reducionista, serão acrescentadas
mais duas esferas de análise: democratização e qualidade escolar. A idéia que aqui se
defende é a de que a categoria gestão democrática deve ser compreendida como decorrente
do desenvolvimento dessas esferas e, portanto, produto da dinâmica engendrada no
decorrer do século XX. Isto porque o aflorar dessa dimensão no final desse século, só foi
possível devido ao fato de as condições históricas apresentarem-se propícias ao seu
desenvolvimento. O debate acerca da qualidade e da democratização desenvolvido ao longo
dos anos acolheu e, até mesmo, estimulou esta discussão, fornecendo os argumentos que
justificariam a urgência de se explorar a gestão democrática. Por conseguinte, considera-se
que o exame a respeito dessa questão tem que ser subsidiado pelo estudo dos debates
educacionais que a precederam e que, portanto, de alguma forma, a produziram.
Diante dessas considerações, percebe-se que a preocupação em entender a evolução
histórica das dimensões democratização, qualidade e gestão democrática escolar, leva o
estudioso do assunto a reportar-se à década de 1920, onde se desenvolveram os
movimentos “entusiasmo pela educação” e “otimismo pedagógico" (NAGLE, 1976, p. 99-
101).
1. Os fundamentos da democratização e da qualidade educacional
A constituição da sociedade brasileira foi marcada, conforme esclarece Mendonça
(2000, p. 52), com base nos estudos de Faoro, por um Estado fortemente influenciado por
ordenamentos patrimonialistas e autoritários, o que não favoreceu a edificação de campos
democráticos. De acordo com a tese desse autor, a presença da forma de organização social
baseada no patrimônio e na autoridade santificada pela tradição, colaborou intensamente
para a formação das bases do autoritarismo no Brasil (ibid, p. 51).
Na estrutura patrimonial do estado, o poder político da autoridade é organizado segundo os mesmos princípios do poder doméstico, objetivando a administração patrimonial a satisfação das necessidades pessoais, de ordem privada, da família do chefe da casa. Ao tratar a administração como coisa particular, o senhor seleciona os servidores na base da confiança pessoal, sem delimitação clara de funções. Os servidores atuam por dever de direito e obediência. Sob o patrimonialismo, os direitos e obrigações são alocados de acordo com o prestígio e o privilégio de grupos estamentais.
Essas características, presentes durante a Colônia, persistiram na passagem para o
Império que, a rigor, não significou alteração nas estruturas de poder que até então
prevaleciam. Isso porque as forças hegemônicas que impulsionaram a independência
nacional não eram opostas à ordem patrimonial estruturada no período colonial (AZEVEDO,
2001, p. 18) 1. Essas forças correspondiam ao poder dos grandes proprietários de terras e de
outros estratos privilegiados na estrutura da colônia, que tinham a intenção de conquistar a
emancipação, a fim de realizar politicamente sua condição econômica e social de grupos
dominantes. Objetivava-se desvincular as atividades produtivas da tutela da metrópole, sem
modificar a estrutura sócio-econômica brasileira, caracterizada pelo grande latifúndio e
pelo trabalho escravo.
O desinteresse pela edificação da educação manteve-se com a independência. O
analfabetismo no Brasil, até o século XIX, não era motivo de preocupação, de tal forma que
se convivia com um grande contingente de iletrados sem qualquer indignação.
Ao final do período imperial, contudo, começaram a surgir algumas manifestações
contra a “chaga” do analfabetismo presente entre os pobres, os trabalhadores manuais, os
“órfãos da sorte”, os desvalidos (BARROSO, 1999, p. 82). A tentativa de se atingir o
“progresso” fazia do analfabetismo, cujos índices correspondiam, no início do século, a
80% da população, um entrave à construção de um país moderno. A expansão da educação
começa a ser reivindicada.
A passagem do Império para a Primeira República, por sua vez, também não logrou
romper com a estrutura patrimonialista e autoritária do regime anterior, agora representada
pela conhecida política do “café-com-leite” e pelo “voto de cabresto”.
De acordo com a tese desenvolvida por Nagle (1976, p. 282-283), a proclamação da
República não logrou alterar a estrutura social e econômica. Essa engessada estrutura iria
contribuir para que as idéias de expansão da educação fossem dirimidas.
1 Muitos dos traços dessa estrutura se fazem presentes atualmente no país, embora agora com uma nova conotação que a modernidade lhes conferiu, dentre eles poder-se-ia citar, o mandonismo, o clientelismo políticos, as práticas populistas e a conservação dos laços pessoais de dependência (AZEVEDO, 1997, p. 112).
2
Pode-se observar a permanência de uma estrutura agrária representada,
nomeadamente, pela produção do café e comercialização para o mercado externo; a
persistência do sistema coronelista2, que enfraquecia a formação de grupos políticos com
ideologias distintas; e a continuação de uma estrutura de classes sociais pouco variada.
A sociedade brasileira entra no século XX guardando as características que lhe imprimira a economia agroexportadora, embora com algumas nuanças. Havia conservado e incorporado a essa dinâmica os padrões autoritários de dominação peculiares ao patrimonialismo, implantados ainda durante o período colonial. O Estado oligárquico consolidou-se sob a égide republicana, mantendo-se prisioneiro dos interesses agraristas dominantes (AZEVEDO, 2001, p. 23-24).
Diante disso, a questão dos direitos políticos possuía um timbre próprio que o poder
oligárquico lhe imprimira. Esse timbre encontrava-se expresso sob a forma de práticas do
“voto de cabresto”, do coronelismo, dos “currais eleitorais”, entre outras práticas
fraudulentas.
Ao atrelar a possibilidade de voto à condição de alfabetizado, a Primeira República
acabava por tornar a presença popular, no jogo político, diretamente dependente da difusão
da instrução elementar. Como a esmagadora maioria da população era analfabeta, os
direitos políticos eram restritos a uma pequena parcela da sociedade.
Essas são considerações gerais, selecionadas para fornecer um retrato, embora com
traços concisos, da sociedade brasileira durante a Primeira República. Compreendê-la se
faz necessário para que se possa situar a educação nesse panorama. No tocante a essa
questão, é interessante recorrer à análise tecida por Paiva (1985, p. 18), feita com base nos
estudos de Manheim e Stewart, concernente à relação educação e sociedade. Conforme
elucida a autora,
(...) as características dos diversos períodos da história da educação de um país acompanham seu movimento histórico, suas transformações econômicas e sociais, suas lutas pelo poder político. Assim, apesar do sistema educacional influenciar a sociedade a que serve, reflete suas condições sociais, econômicas e políticas (ibid).
Seguindo essa perspectiva e reportando-se ao momento histórico ora abordado,
infere-se que o alijamento dos sujeitos do campo dos direitos políticos e sociais irá se dar
2 Proveniente da distribuição de postos honoríficos da Guarda Nacional, o sistema coronelista não é interrompido com o início do regime republicano; ao contrário, é paulatinamente fortalecido por meio do desenvolvimento das formulações oligárquicas e atinge o seu ápice com a denominada “política dos governadores”. A introdução do regime republicano não gerou alterações nas bases materiais do sistema político coronelista; não destruiu os clãs rurais e o grande latifúndio (NAGLE, 1976).
3
também no âmbito do direito educacional. Pode-se dizer que se estruturavam, nesse
período, as bases da dualidade presente em nosso sistema educacional.
Não havia, naquele período, a necessidade de mão-de-obra qualificada por parte dos
setores econômicos. As lavouras cafeeiras, principal forma de acumulação, utilizavam-se
de "trabalhadores imigrantes estrangeiros, e na maior parte dos demais setores da economia
empregava-se o braço escravo” (AZEVEDO, 2001, p. 21). Tais características levam
Azevedo a concluir que, “tanto no Império como na Primeira República, guardando-se as
devidas nuanças, a educação para o voto era um detalhe sem significação”.
Contudo, embora o conservadorismo tenha persistido como elemento característico
durante o Império, o ideário liberal3 articulou-se a ele, numa mistura de provincianismo e
modernização. “Suas formulações, filtradas e adaptadas pelos interesses prevalecentes,
forneceram a justificação para o projeto da sociedade livre” (ibid, p. 18).
Nos primeiros anos da Primeira República, contudo, a alternância de poder entre a
aristocracia rural de Minas Gerais e de São Paulo e a instituição do “voto de cabresto”
fizeram com que o princípio do liberalismo ficasse mais no plano das idéias que se
pretendiam modernas do que propriamente se consubstanciasse em uma intenção real de
sua implantação na gestão política (PATTO, p. 55).
A educação escolar era coerente com o contexto daquela época, constituindo-se
privilégio de alguns poucos: “menos de 3% da população freqüentava a escola, em todos os
níveis, e 90% da população adulta era analfabeta” (ibid, p. 55).
A Constituição da Primeira República omitiu-se sobre a questão da gratuidade da
instrução pública primária. A influência do princípio liberal (segundo o qual a
individualidade é uma conquista progressiva do indivíduo) e o federalismo acabaram
contribuindo para abafar a discussão referente ao aspecto da obrigatoriedade do ensino.
Esse documento obrigava a laicidade do ensino público e dava ao governo federal,
mas não privativamente, a “faculdade de criar instituições de ensino superior e secundário
3 Esse amálgama de concepções conferiu ao Brasil uma forma própria de consubstanciação do ideário liberal, diferente daquela empregada nos países em que essa doutrina se originou. “É nítido, no entanto, o contraste entre a utilização que aqui se fez do ideário liberal e o seu emprego nos países em que teve berço. Nesses, o liberalismo constituiu-se na base doutrinária para a promulgação dos direitos civis, contribuindo assim, para viabilizar o predomínio das relações de assalariamento, fundamentais para a afirmação da ordem social burguesa. Aqui, as relações de trabalho escravo sequer foram postas em xeque: muito pelo contrário, os princípios liberais, num ato criativo, foram utilizados para legitimar a própria escravidão” (AZEVEDO, 2001, p. 18).
4
nos Estados” e “animar no país desenvolvimento das letras, artes e ciências (...) sem
privilégios que tolham a ação dos governos locais” (apud NAGLE, 1990, p. 265). Tais
preceitos pareciam indicar, de forma patente, o critério da competência concorrente da
União e dos Estados em matéria educacional, embora essa não tenha sido a interpretação
que vigorou durante todo o período da Primeira República (ibid, p. 266). Predominou, por
força da tradição, a doutrina descentralizadora estabelecida desde o Ato Adicional de 1834
(período imperial), cuja idéia é a atribuição da discriminação de competências entre União
e estados4. Nagle (ibid) aponta essa questão como uma das razões que contribuíram para o
“chamado dualismo escolar brasileiro, traduzido, muitas vezes, na contraposição entre as
escolas de elite - secundária e superior - e as escolas do povo - primária e técnico-
profissional” (grifos no original) 5.
Se, no campo político, as relações entre Estados e União fluíam muito bem, através
da política dos governadores, no âmbito da educação não houve acordo entre ambos, cada
um ficou responsável por determinados graus ou ramos escolares, sem maiores
intervenções na área alheia. De tudo isso resultava uma amputação tanto para a
administração central, como para a regional (NAGLE, 1976, p. 268).
As iniciativas da Primeira República nessa área foram modestas. Criaram-se as universidades, mas a estrutura dual do sistema de ensino permaneceu. O princípio federalista, descentralizador, manteve o ensino primário público como de responsabilidade dos estados, mas não se registram ações estaduais significativas visando à escolarização em massa. A despeito da eloqüência da retórica republicana em favor da universalização do ensino fundamental, as oportunidades educacionais não foram ampliadas (AZEVEDO, 2001, p. 24-25).
Assim, um dos sistemas era destinado à formação da elite, comprometido
principalmente com a formação de bacharéis e letrados, “habilitados para exercerem os
cargos públicos na burocracia e outras atividades liberais” (ibid, 2001, p. 20). O outro
sistema dedicava-se à “educação do povo”, orientado para aprendizagem dos ofícios
manuais, no caso dos homens, e para treinamento nas prendas do lar, no caso das mulheres.
Tal ensino seria paulatinamente transformado em preparação para o exercício do magistério
primário (ibid).
4 Conforme lembra Paiva (1985, p. 92), a descentralização possibilitava que a aplicação de verbas em educação fosse distinta nos diversos estados e, até mesmo, fosse diferente no mesmo estado de ano para ano.5 Kuenzer (1998, p. 366) concluiu que a “formação de trabalhadores e cidadãos no Brasil constituiu-se historicamente a partir da categoria dualidade estrutural, uma vez que havia uma nítida demarcação da trajetória educacional dos que iriam desempenhar as funções intelectuais ou instrumentais”.
5
O descaso para com a educação era uma forma de manter esse quadro de injustiças,
em que o povo encontrava-se cada vez mais miserável.
Com exceção da Constituição de 1891, algumas alterações de importância
secundária ocorreram de 1889 a 1920, do ponto de vista da ordem legal; contudo, mesmo
sob esse aspecto, o Estado brasileiro permanecia com molduras dos tradicionais
imperativos. Nesse sentido, como analisa Nagle (1976, p. 99-101), nos primeiros quinze
anos desse século, não houve vigorosas discussões nem planos inovadores. Somente a partir
de 1915 iniciaram-se, realmente, os debates e pressões para um amplo desenvolvimento do
sistema escolar. Nesse período, a realidade é assim caracterizada: envolvimento do país em
um clima de efervescência ideológica e de inquietação social; maior grau de perturbação,
provocado pelas campanhas presidenciais; alastramento das invasões armadas; lutas
reivindicatórias do operariado; pressões da burguesia industrial; medidas de restrição
adotadas na Revisão Constitucional de 1926; desencadeamento do movimento
revolucionário vitoriosos de outubro de 1930. Requeria-se o voto consciente e legítimo,
como orientação para construção de uma sociedade democrática, indicando uma intenção
de “republicanizar a República”. Essa pretensão se manifestou de diversas formas, dentre as
quais se poderiam apontar o tenentismo, os movimentos nacionalistas, o modernismo e o
entusiasmo pela educação (PATTO, 1985, p. 56).
É a partir desse momento que o ideário liberal começa a encontrar terrenos férteis
para sua implantação, passando a representar a ideologia do trabalho livre e a igualdade
perante a lei.
Políticos e empresários dissidentes do jogo político em vigor valiam-se da bandeira da escola para todos tendo em vista não só aumentar a população votante e enfraquecer a manipulação do voto e a corrupção eleitoral mas também enveredar por uma política que catalisasse a vontade popular enquanto estratégia de tomada de poder; os integrantes das classes subalternas que viviam nos centros industriais, por sua vez, reivindicavam o direito à educação escolar. Na convergência destes interesses, os educadores progressistas levavam sua luta pela escola para o povo imbuído das melhores intenções, acreditando na possibilidade de democratização, através da escola, de uma sociedade que avançava pelos caminhos da produção industrial capitalista dependente (PATTO, 1985, p. 57, grifos meus)
O entendimento das proposições colocadas por Patto torna-se essencial para o
estudo que se empreende neste texto, isto porque, a partir das asserções contidas em sua
explanação, pode-se depreender que predominava no imaginário dos grupos sociais daquela
6
época uma interpretação ingênua e mecânica da relação escola e sociedade, em que a
democratização da sociedade (estruturalmente desigual) estava condicionada à
democratização escolar. Essa significava, basicamente, a expansão quantitativa dos
estabelecimentos de ensino.
Nessa época, os setores médios da sociedade e o operariado urbano, revestidos das
idéias nacionalistas, lutaram pelo estabelecimento de uma nova ordem, vendo na
escolarização das massas uma possibilidade de derrubar os sustentáculos autoritários que
legitimavam as elites oligárquicas no poder. Esses grupos defenderam a escolarização das
massas e a universalização do ensino primário, exigindo do governo ações tanto no sentido
de prover fundos quanto no de desenvolver uma política nacional de educação (AZEVEDO,
2001, p. 25).
Na linha dos movimentos nacionalistas, situavam-se também os militares,
partidários da industrialização, cujo projeto permanecia pautado em valores autoritários
presentes no ideário da cultura brasileira. Conforme elucida Azevedo (ibid, p. 27), na visão
desse grupo, “instruir o povo significava torná-lo a fonte de votos que deviam legitimar
novos grupos no poder; dirigir a nação, porém, era tarefa para as elites”.
As idéias referentes à importância da educação do povo como elemento capaz de
contribuir para o progresso, difundidas entre os intelectuais brasileiros desde o final do
século XIX, ganharam traçados mais definidos nos anos vinte do século passado,
consubstanciando-se no fenômeno denominado por Nagle (1976, p. 101) "entusiasmo pela
educação". Esse é um movimento caracterizado por uma multiplicidade de realizações,
manifestado pelos republicanos desiludidos com a república existente, que procuravam
combater a estrangeirização do Brasil, vencer o analfabetismo e difundir a instrução
popular. Todavia, não obstante a movimentação em torno da necessidade de expansão da
escolarização dos pobres, somente com o Estado Novo o poder público iria dedicar seus
esforços a esse campo. “Em 1930, ano do ocaso da Primeira República, o crescimento da
rede pública de ensino era inexpressivo em comparação com as estatísticas referentes ao
Império e o país possuía cerca de 75% de analfabetos” (PATTO, 1985, p. 56).
No tocante a esse fenômeno, é essencial que se considere um aspecto trabalhado por
Paiva (1985, p. 27) em sua refinada análise sobre a educação popular6: a luta em prol da
6 Obra: Educação Popular e Educação de Adultos (1985).
7
ampliação das oportunidades de educação e sua teorização foram empreendidas por
políticos e sujeitos interessados pelos problemas educacionais, pois, nessa época, não
existiam profissionais da educação. Compreender esse ponto é de suma importância, pois
ele fornece pistas para entender o porquê da adoção de uma abordagem política (externa)
dos problemas educacionais empreendida pelos entusiastas.
O “entusiasmo” tinha como preocupação central a dimensão quantitativa da
educação - difusão do ensino. Como lembra Paiva, seu crescimento coincide com o
desenvolvimento da industrialização, o que indica sua ligação com o problema da
construção das bases eleitorais, através do aumento do número de votantes. Estava presente
aí a idéia de que a educação era o motor para construção de uma sociedade democrática.
Acreditava-se que o “soerguimento da nacionalidade” só se tornaria possível através da
disseminação da educação popular. Conforme nos esclarece Nagle (1990, p. 263), “havia
uma percepção romântica dos problemas da sociedade brasileira e de suas soluções, o que
resulta numa superestimação do problema educacional”. Em face disso, o apanágio desse
fenômeno era a "supervalorização da educação como fator capaz de resolver todos os
problemas da Nação" (PAIVA, 1985, p. 27).
Um outro movimento importante foi o “otimismo pedagógico”. Enquanto no
“entusiasmo” existia a crença de que, pela multiplicação das instituições escolares,
alcançar-se-ia a democratização, no “otimismo” existia a crença de que era preciso investir
na qualidade da educação. Sob a inspiração do “otimismo”7, se desenvolveu, no terreno
pedagógico, o escolanovismo, que dominará o cenário educacional, a partir da década de
1930.
Em termos de realizações concretas, o otimismo pedagógico desencadeou um ciclo
de reformas da educação nos anos vinte. Diante da ausência de uma política nacional de
educação, vários intelectuais buscaram estabelecer normas para o ensino de cada Estado ou
capital. Dentre eles, podem-se apontar: Anísio Teixeira (Bahia, 1925), Fernando de
Azevedo (Distrito Federal, 1928), Lourenço Filho (São Paulo, 1930; Ceará, 1923),
Francisco Campos (Minas Gerais, 1927), Sampaio Dória (São Paulo, 1920), Carneiro Leão
(Pernambuco, 1930). É essencial destacar que não se tratava de diletantes, mas de
profissionais da educação, cuja existência é uma característica fundamental do “otimismo”.
7 O escolanovismo apropriar-se-á das idéias do “otimismo” e sofrerá forte influência de idéias de educadores estrangeiros, como as do filósofo norte americano John Dewey.
8
Esses profissionais se dedicaram aos problemas referentes à administração do ensino, à
preparação dos professores, à reformulação e ao aprimoramento de currículos e métodos.
Tal como acentua Paiva (1985, p. 30), havia uma preocupação com os problemas referentes
aos aspectos técnicos do ensino.
Segundo essa estudiosa, o apego ao aspecto estritamente pedagógico levou a uma
tecnificação do campo em estudo, contribuindo para que o pensamento educacional se
apresentasse fraturado em relação à reflexão sobre o político e social.
De acordo com a tese defendida por Nagle (1976, p. 101-102), a ingenuidade dos
entusiastas foi substituída pela tecnificação do plano pedagógico, gerando um
empobrecimento no terreno das discussões políticas da educação. Na mesma linha de
argumentação, Paiva (1985, p. 107) indica que, ao dissociar o educativo do social e
histórico, encobria-se o potencial da educação como um dos veículos de transformação
social.
Ambos os movimentos procuraram responder às novas expectativas decorrentes das
mudanças sociais que ocorreram a partir do segundo decênio do século passado. Em
decorrência deles, reformas educacionais passaram a ser implementadas na década de 308.
A partir dessa década, apesar das constantes preocupações qualitativas dos
profissionais da educação, torna-se intensa “a reivindicação de medidas em favor da
democratização do ensino e da responsabilidade da União pela educação em todos os níveis
através de uma política nacional” (PAIVA, 1985, p. 117).
Na IV Conferência Nacional de Educação (1931), cujo tema era “As Grandes
Diretrizes da Educação Popular”, os técnicos denunciaram a ausência de uma política
nacional de educação. Dessa reunião resultou a idéia de um manifesto que expressasse os
anseios dos educadores e estipulasse o sentido da política educacional brasileira, que
acabou consubstanciando-se no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932).
A rigor, a ênfase na necessidade de uma escola pública, universal e gratuita
constituiu, durante muito tempo, a preocupação central tanto das políticas quanto de muitas
pesquisas educacionais no Brasil. A exigência de acesso ao sistema escolar apresentou-se
como a principal bandeira de luta para a consolidação da democracia. Pode-se dizer que a
articulação entre democracia e educação ganhou impulso com o movimento dos Pioneiros,
8 Dentre elas, podem-se citar: a criação do Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde Pública (1930), a criação do Conselho Nacional de Educação (1931) e a Reforma Francisco Campos (1931-1932).
9
sobretudo nesse período. Anísio Teixeira (1967, p. 78), educador representante desse
movimento, na obra intitulada “Educação não é privilégio”, expressou a necessidade de
uma educação comprometida com a integração e a justiça social. Somente uma escola
pública universal e gratuita poderia ser usada como instrumento para igualar as condições
entre os homens. Para ele, democracia era literalmente educação.
Conforme esclarece Silva (1992, p. 77), subjacente a essa idéia de expansão do
ensino estava o pressuposto de que “a educação escolar generalizada contribuiria para a
construção de uma sociedade democrática tanto pelo poder modernizante (...), quanto pela
sua capacidade de aplainar e nivelar as diferenças sociais recebidas”.
A despeito de constituir-se como um documento nascido de reflexões dos chamados
escolanovistas, não se pode negar que ele incorpora a perspectiva externa de compreensão
dos problemas educacionais.
Formulado pelos profissionais da área, que entendiam ser a educação um campo de
decisões técnicas, o Manifesto propunha um plano unitário de ensino, uma solução global
para a educação, em que as reformas educacionais estivessem atreladas às reformas
econômicas. O excerto abaixo é representativo da supremacia atribuída à educação na
ordem dos problemas nacionais:
Na hierarchia dos problemas nacionaes, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de carácter econômico lhe pódem disputar a primazia nos planos de reconstrucção nacional. Pois, se a evolução orgânica do systema cultural de um paiz depende de suas condições economicas, é impossível desenvolver as fôrças economicas ou de producção, sem o preparo intensivo das fôrças culturaes e o desenvolvimento das aptidões á invenção e á iniciativa que são os factores fundamentaes do accrescimo de riqueza de uma sociedade (Manifesto dos Pioneiros apud GHIRALDELLI JR, 1994, p. 54).
O documento refutava a concepção de ensino presente na escola tradicional, com
tendências exclusivamente passivas, intectualistas e verbalistas. Estava presente a
concepção de que o único critério legítimo de diferenciação do nível de escolarização entre
os indivíduos deveria ser o das diferenças individuais. Tentava-se romper com a idéia de
elites formadas artificialmente por diferenciação econômica, contudo, enveredava-se por
uma avaliação das aptidões individuais e por uma política meritocrática presente entre os
cientistas e filósofos liberais que tratavam das questões educacionais (PATTO, p. 101).
É preciso advertir, contudo, que a despeito do documento advogar como critério
único de seleção as capacidades individuais, esse pensamento era contraditório com a idéia
10
presente no manifesto de se associar uma determinada classe social, a trabalhadora, a uma
modalidade específica de ensino, o profissionalizante (ibid, p. 103).
Ademais, tecia uma veemente crítica à situação educacional deixada pela Primeira
República: fragmentação, desarticulação, inexistência de um plano nacional e falta de bases
científicas. Vê-se, pois, que embora os pioneiros localizassem os problemas educacionais
no interior da escola, eles acenavam para uma perspectiva externa de compreensão de tais
problemas. É justamente essa capacidade de conjugar a abordagem interna à perspectiva
externa, que conduzirá os otimistas ao que Paiva denomina de “realismo em educação”:
Na medida em que “os profissionais” integram mais e mais em sua luta os objetivos de uma política nacional de educação que permita a expansão quantitativa do sistema, eles incorporam melhor a perspectiva externa do sistema, embora pretendam fazê-lo apenas em nome de ideais educativos e não em nome de objetivos políticos. Entretanto, na medida em que se desenvolve e se radicaliza a luta política, os próprios educadores se vêem forçados a encarar mais de frente a educação em suas relações com a sociedade e a vida política do que faziam antes e a necessidade de definição política se coloca como a pedra de toque que conduz os otimistas ao realismo” (PAIVA, 1985, p. 126, grifos no original).
Segundo Paiva (ibid, p. 26), tanto o “entusiasmo” quanto o “otimismo” se nutriram
de uma concepção unilateral da educação, seja enfatizando uma perspectiva externa, seja
enfatizando uma perspectiva interna, respectivamente. A tentativa de coadunar os discursos
que aí se apresentavam truncados será realizada por um terceiro movimento, denominado
por Paiva (ibid, p. 31) de "realismo em educação"9. Para a autora, esse movimento
caracterizava-se pela abordagem “das questões educativas sem perder de vista a
importância da qualidade do ensino, mas levando também em consideração o papel
desempenhado pelo sistema educacional e por outros movimentos educativos na sociedade
como um todo”.
Essa mesma autora acredita que a incorporação de valores educativos tradicionais
(igualdade de oportunidades, universalidade e obrigatoriedade do ensino elementar), a
percepção da necessidade de ampliar o número de votantes, a conscientização política de
contingentes populacionais tradicionalmente marginalizados, a vinculação entre
investimentos em programas educativos e benefícios sociais e econômicos, teriam
favorecido a atenção atribuída à qualidade educacional e ao movimento de educação de
9 Nagle (1976), apesar de não ter explicitado essa terceira categoria, acredita que, em determinado momento, há uma interpenetração dos fenômenos “otimismo” e “entusiasmo”.
11
caráter extensivo simultaneamente. Ela classifica os realistas em quatro grupos:
profissionais liberais da educação, que embora tenham se preocupado com a dimensão
qualitativa do ensino não a absolutizaram, incorporando à problemática a perspectiva
externa; defensores de posições educativas ligadas à esquerda marxista; grupo formado
pelo intercâmbio ideológico entre cristãos e marxistas, na década de 50, em conseqüência
da evolução do pensamento social na Igreja católica; “tecnocratas” surgidos no campo da
economia, na década de 60, que buscaram adequar a oferta da educação à demanda de mão-
de-obra qualificada (ibid, p. 31-35).
Do exposto, pode-se constatar que “otimismo” e “entusiasmo” irão mesclar-se nas
teorias educacionais durante o século XX. As tendências pedagógicas sofrerão a influência
desses fenômenos.
Na tendência escolanovista, a idéia básica era o reconhecimento das diferenças
individuais, o que exigia um tratamento diferencial dos indivíduos. Conforme esse ideário,
a educação era entendida como "um instrumento de correção da marginalidade na medida
em que cumprir sua função e de ajustar, de adaptar indivíduos à sociedade incutindo neles o
sentido de aceitação dos demais e pelos demais” (SAVIANI, 1995, p. 20). Dentro dessa
concepção, o aluno passa a ser o centro do trabalho pedagógico e as atividades escolares
devem pautar-se “em situações de experiência onde são ativadas as potencialidades,
capacidades, necessidades e interesses naturais da criança” (LIBÂNEO, 1994, p. 62).
Apesar de não lograr transformar significativamente o cenário da organização da
educação nacional, devido, entre outros aspectos, ao seu elevado custo, o pensamento
escolanovista penetrou no imaginário dos educadores repercutindo no ensino oferecido
pelas escolas oficiais organizadas tradicionalmente (SAVIANI, 1995, p. 21-22). Saviani
(ibid) adverte que essa interferência acabou produzindo efeitos negativos nesses
estabelecimentos de ensino, como o descompromisso com a transmissão dos
conhecimentos, essencial ao público que freqüenta as escolas oficiais, visto que, muitas
vezes, constitui a sua única fonte de acesso ao conhecimento historicamente elaborado10.
Para o autor o escolanovismo “dava força à idéia segundo a qual é melhor uma boa escola
para poucos do que uma escola deficiente para muitos”. Por conseguinte, pode-se inferir 10 É preciso destacar aqui que, embora a Escola Nova tenha sido gerada no seio do ideário liberal – e portanto tenha sido defensora da ordem burguesa -, não se pode negar que essa teoria rompia com o modelo de escola tradicional, pugnando a autonomia do educando, colocando-se, assim, em contraposição à própria ordem autoritária burguesa (PARO, 1996, p. 223).
12
que a categoria qualidade escolar possui em suas origens a marca da exclusão, que se
agravou com o chamado tecnicismo educacional, teoria que ganhou ênfase no Brasil a
partir da década de 1970.
É na década de 50 que o viés técnico do “otimismo” começa a ser exacerbado no
âmbito dos problemas educacionais, atingindo seu auge com a Lei nº 5692, de 1971. Diante
do desgaste da Escola Nova, que não teria logrado dinamizar um processo de qualidade na
educação pública, o tecnicismo ganha espaço no campo das discussões. As escolas
públicas, que até esse momento, funcionavam sob os moldes tradicionais e com traços
enviesados da pedagogia escolanovista, iriam ser submetidas a um enquadramento técnico.
Dentro dessa perspectiva tecnicista os meios deveriam condicionar todo o processo de
aprendizagem.
Sob o postulado da neutralidade científica, o tecnicismo irá sobressair-se no
panorama educacional. Com o objetivo de imprimir racionalidade, eficiência e
produtividade, entendidas como critérios de qualidade educacional, foi proposto o
fracionamento do trabalho e a introdução de técnicas no processo de ensino. A crença de
que a educação é um mecanismo de equalização social permanece, porém agora se
identifica com o chamado enfoque sistêmico, segundo o qual a educação é concebida como
um subsistema cujo funcionamento eficiente é condição sine qua non para equilíbrio do
sistema social a que pertence (ibid, p. 25).
Essas tendências iriam influenciar, sobremaneira, a construção do campo de estudos
da administração ao longo da história da educação brasileira.
2. A gestão democrática escolar: uma produção histórica
Poder-se-ia dizer que o debate acerca da administração escolar tem sido foco de
preocupação sistemática desde a década de 1960, ganhando maior ímpeto nos anos 90, sob
a forma da defesa de uma gestão democrática.
Ao percorrer atentamente a trajetória da investigação referente à gestão escolar, se
percebe que se deve ao estudioso Querino Ribeiro (1968) a primeira tentativa de
formulação de uma teoria referente a esse campo do conhecimento no Brasil. Trata-se de
13
um impulso no sentido de tecnificação da área de administração educacional, que vinha
influenciando a formação dos pedagogos, fundamentalmente a partir dos anos 20. Naquela
época, se buscavam subsídios para a construção epistemológica da administração escolar
nos princípios da administração de empresa, ou seja, na racionalização e na divisão do
trabalho. A escola era vista como uma “grande empresa”, possuindo a mesma
complexidade das organizações modernas. Buscava-se, além da cientificidade educacional
– alvo perseguido pelos profissionais da educação – adequar a instituição escolar às
demandas do que o autor chamava de “mercado social”. Embora reconhecesse que a escola
possuía características que lhe são próprias, o autor defendia a reprodução, no campo da
educação, dos princípios consagrados pela teoria de administração de empresa,
especialmente dos princípios da chamada Administração Clássica, que teve início com os
trabalhos de Taylor e Fayol.
Nessa mesma perspectiva, encontra-se o pensamento de Lourenço Filho11 (apud
Alonso, 1978, p. 35-36), que colocava a escola em igual patamar que a oficina e a fábrica,
entendendo, assim como Querino Ribeiro, que embora a escola possuísse suas
especificidades enquanto instituição educacional, existiam preceitos da administração de
empresa que eram passíveis de serem aplicados a qualquer tipo de organização, inclusive a
ela.
Na verdade, a pedagogia tecnicista, ao ensaiar transpor para a escola a forma de funcionamento do sistema fabril, perdeu de vista a especificidade da educação, ignorando que a articulação entre escola e processo produtivo se dá de modo indireto e através de complexas mediações (SAVIANI, 1995, 26).
Ambas as interpretações, ao contrário da ingenuidade presente nos diletantes do
início do século, advogam o imperativo da técnica e se perfilam com a pedagogia tecnicista,
comprometida com a ordem vigente.
Contemporâneo do professor Querino Ribeiro, o educador liberal Anísio Teixeira
divulgou, nos anos 60, estudos que, pode-se dizer, inauguraram a crítica à adaptação da
lógica empresarial à escola. Divergindo da concepção de Lourenço Filho, Anísio havia se
desiludido com o neutralismo, empenhando-se agora, na defesa dos ideais democráticos
11 Lourenço Filho, ao manter a crença no “neutralismo tecnicista” comprometia-se, de certa forma, com a ditadura getulista (PAIVA, 1985, p. 106).
14
(PAIVA, 1985, p. 106). Esse teórico se mostrava radicalmente contra essa adaptação,
entendendo que os objetivos da empresa e da organização escolar eram, a rigor, opostos.
Em educação o alvo supremo é o educando a que tudo mais está subordinado; na empresa o alvo supremo é o produto material, a que tudo mais está subordinado. Nesta, a humanização do trabalho é a correção do processo de trabalho, na educação o processo é absolutamente humano e a correção um certo esforço relativo pela aceitação de condições organizatórias e coletivas inevitáveis. São assim, as duas administrações, polarmente opostas (RIBEIRO, 1968, p. 15).
Essas idéias se apresentaram destoantes no debate educacional daquela época e só
encontraram eco nas obras divulgadas na década de 1980 relativas ao tema.
Os anos 70 seguem o caminho em busca da eficiência escolar através da
racionalização, do tecnicismo, da cientificidade e da profissionalização, para atender o
mercado de trabalho e diminuir a demanda pelo ensino superior. O texto da Lei nº 5692/71
é a expressão dessa tendência, que anseia imprimir ao sistema de ensino maior
produtividade através da economia de recursos.
Foi nessa década que Myrtes Alonso (1978) publicou uma obra onde discutia o
papel do diretor na administração escolar, apresentando sua contribuição para a revisão dos
estudos concernentes a essa temática. A autora, diante da constatação da importância que a
administração vinha assumindo no campo educacional, alertava para a necessidade de
aplicar uma única teoria de administração a todas as organizações (incluindo a escola),
visto que as características da função administrativa seriam as mesmas em quaisquer tipos
de empreendimentos (ibid, p. 15). Tendo como base a teoria das organizações, considerava
que a principal finalidade da administração escolar era a manutenção do equilíbrio interno e
externo, possuindo a escola uma estreita relação com o meio ambiente. Nesse sentido,
adotava a perspectiva dos sistemas abertos.
A organização escolar, tanto quanto as demais organizações existentes, terá sua existência assegurada somente na medida em que for capaz de responder aos novos “inputs” do meio exterior, devolvendo “outputs” que representam elementos de ativação e alimentação do sistema maior (ibid, p. 179).
A partir desse pensamento, torna-se clara a marca da pedagogia tecnicista na
implementação da reforma de ensino no país, que, “invocando os princípios da
racionalização, eficiência e produtividade e, concomitantemente embasada na ótica do
15
enfoque sistêmico (...), buscou provar sua superioridade científica sobre as teorias
pedagógicas concorrentes” (GHIRALDELLI JR, 1991, p. 197).
A despeito desse teor conservador, não se pode negar que, já naquela época, estava
presente na obra de Alonso (1978, p. 3) a percepção de que vinham sendo atribuídas
responsabilidades cada vez maiores ao diretor escolar. Tendo em vista esse fenômeno,
assinalava o papel desse sujeito como “tomador de decisões”, “criador de novas atitudes”,
“mediador na solução de problemas e dificuldades dos vários elementos da escola”,
advertindo que o mesmo não poderia constituir-se como um mero aplicador de lei ou
provedor de recursos materiais para a escola (ibid, p. 155). Tais competências defendidas
pela estudiosa convergem, de certa forma, para o perfil de diretor requerido hoje pela nossa
sociedade, como será visto em outro momento deste trabalho.
É necessário advertir que a relevância atribuída à administração escolar por Alonso
extrapolava, na verdade, os próprios limites desse instrumento, que era visto como
responsável pelas disfunções do sistema educativo.
A problemática central da escola brasileira, possivelmente da escola em geral, parece situar-se em uma falha de natureza administrativa, qual seja, a sua incapacidade de ajustar-se às exigências da vida contemporânea, ajustamento esse que requer, necessariamente ação organizada e planejada, realizada por pessoas qualificadas, a fim de que sejam atendidas as crescentes demandas quantitativas e qualitativas da sociedade atual (ibid, p. 11).
Considerar que a problemática central da escola brasileira seja de natureza
administrativa e que se expressa na sua incapacidade de se ajustar às exigências da
sociedade é assumir uma concepção ingênua e ideológica. Ingênua porque desconsidera que
a própria forma como a sociedade capitalista é organizada supõe a desigualdade entre as
classes. A administração, nesse contexto, estaria sendo apropriada pela classe dominante
como um de seus instrumentos para a perpetuação de sua hegemonia. Ideológica, porque ao
atribuir à gestão escolar essa responsabilidade, desvia a atenção da problemática da
desigualdade social, que reside na forma injusta que sedimenta as estruturas da sociedade
capitalista, para a problemática da organização interna às escolas, como se tudo não
passasse de uma questão meramente administrativa (PARO, 1986, p. 125).
Passando para a década de 80, quando se dá o início do processo de
redemocratização da sociedade, pode-se encontrar a produção de duas obras acadêmicas
fundamentais para esse campo de discussão, cujos autores são Félix (1984) e Paro (1986).
16
Ao adotarem uma posição crítica diante da realidade, em que se levam em
consideração a forma injusta como a sociedade está posta e as contradições entre as classes
sociais, esses estudiosos refutam a perspectiva sistêmica, criticando, portanto, a necessidade
de ajustamento da escola à (injusta) realidade externa, como propusera Alonso (1978). A
adoção dessa posição por Felix e Paro autorizam-me a reconhecê-los como representantes
da pedagogia histórico-crítica, cujo apanágio é a preocupação em analisar a questão
educacional a partir do desenvolvimento histórico objetivo (D. SAVIANI, 1995, p. 69-88).
Os defensores dessa postura entendem a relação escola-sociedade dialeticamente, em que
uma esfera sofre influência da outra. Dentro dessa concepção, a pedagogia tem como
escopo a formação da “consciência crítica face às realidades sociais”, de forma a capacitar
os educandos a assumirem “no conjunto das lutas sociais a sua condição de agentes ativos
da sociedade e de si próprios” (LIBÂNEO, 1994, p. 70-71).
Retornando à obra de Felix (1984), nota-se que a crítica dessa autora irá incidir
sobre o fato da Administração Escolar não ter um corpo teórico próprio, mas utilizar, na sua
construção, as diferentes teorias da administração de empresa, já que essa é concebida
como teoria geral, científica, técnica e neutra, que pode ser aplicada a qualquer
organização. Segundo a autora, não se têm levado em conta as vicissitudes de cada
organização, principalmente da escola, com características tão singulares e diferentes de
uma empresa.
Nesse sentido, a concepção defendida por Querino Ribeiro e Myrtes Alonso, seria,
conforme indica a autora, reducionista, na medida em que tais autores recomendam que, na
função administrativa, se utilizem os parâmetros de eficiência e de produtividade para
orientar o aperfeiçoamento da estrutura burocrática da escola, considerando apenas como
critério de ação a racionalidade técnica (FELIX, ibid, p. 93). Dentro dessa abordagem
conservadora, a forma de organização na sociedade capitalista seria legitimada pelas
“teorias de administração, que buscam comprovar cientificamente que esse é o modo mais
correto e adequado de organizar e administrar” (ibid, p. 77, grifo no original).
Assim, a principal função da administração escolar é, tornando o sistema escolar cada vez mais uma estrutura burocrática, permitir ao estado um controle maior sobre a educação, para adequá-la ao projeto de desenvolvimento do país, descaracterizando-a como atividade humana específica e submetendo-a a uma avaliação cujo critério é a produtividade, no sentido que lhe atribui a sociedade capitalista (ibid, p. 176).
17
Felix critica veementemente a abordagem sistêmica que, conforme aponta, supõe a
adaptação das instituições à sociedade capitalista, de tal forma que, ao atingirem o padrão
de organização estabelecido, deveriam contribuir para a manutenção do equilíbrio externo
(ibid, p. 89).
Dentro da mesma linha de pensamento, Paro (1986, p. 81) argumenta que a
administração capitalista possui função eminentemente conservadora, visto que media a
exploração do trabalho pelo capital, colocando-se a serviço da classe interessada na
manutenção do status quo. Isto posto, propõe uma forma de organização que esteja
comprometida com a classe trabalhadora e que leve em consideração a especificidade do
ato educativo.
Entendendo a administração como “utilização racional de recursos para a realização
de fins determinados” (ibid, p. 18), vislumbra as condições e as possibilidades de que a
mesma esteja voltada para a superação da ordem vigente, e, portanto, para a transformação
social. A contribuição da escola e, é claro, de sua administração, para essa circunstância, se
dará mediante a promoção, junto às massas trabalhadoras, da apropriação do saber
historicamente acumulado e do desenvolvimento da consciência crítica da realidade em que
se encontram (ibid, p. 113).
Assim como Felix, Paro refuta a aplicação da administração empresarial na escola,
acreditando que tal circunstância confere aos condicionantes específicos da excludente
estrutura capitalista, bem como aos seus métodos e técnicas administrativas particulares,
categoria de universalidade (ibid, p. 125).
Paro, da mesma forma que Anísio Teixeira, não só considera que os objetivos da
escola e da empresa são diferentes, mas antagônicos.
É curioso notar que Querino Ribeiro, Lourenço Filho, Alonso, entre outros,
reconhecem as diferenças existentes entre a escola e a empresa. Todavia esse
reconhecimento não os faz rejeitar os princípios utilizados por esta última organização, mas
apenas atentarem para a necessidade de adequação dos métodos empresariais às
peculiaridades da escola. De acordo com Paro (1989, p.127), “isto ocorre porque se
considera a administração como um elemento estritamente técnico, desvinculado dos
condicionantes sociais e econômicos que a determinam” (grifo meu).
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Desde meados dos anos 1980, um dos enfoques freqüentes nos debates educacionais
tem sido a administração escolar. Um elemento que contribuiu para o destaque conferido a
essa temática foram os movimentos de grupos de educadores (incluindo os sindicatos), que
começaram a lutar por uma nova gestão. Ademais, na esteira da democratização do país, a
legislação educacional da década de 80 e 90 postulou o princípio da gestão democrática. Na
Constituição de 1988, esse princípio aparece sacramentado em seu art. 206, inciso VI. É
interessante notar que a Carta Magna não fala em uma escola democrática, mas numa
gestão democrática, o que, de certa forma, denota a importância concedida a esse
instrumento no âmbito educacional. O princípio da gestão democrática é ratificado pela Lei
nº 9394/96, no art. 3º, inciso VIII, e no art. 14.
A hipótese que se tem na chamada década de “Educação Para Todos12” refere-se ao
entendimento de que a gestão escolar é um elemento essencial na busca da qualidade.
Requer-se que a administração fechada e hierárquica seja substituída por uma gestão
horizontal, com a utilização progressiva de redes interativas de organização e
administração, que facilitem a ação cooperativa e a comunicação interna e externa
(SANDER, 1996, p. 28).
Pode-se dizer que a discussão em torno da urgência do desenvolvimento de
mecanismos democráticos na organização escolar realizada por tantos estudiosos
progressistas deu origem à construção de um arcabouço teórico próprio acerca da gestão
democrática.
Todavia, a despeito da defesa enfática de uma gestão democrática, a década de 90
irá assistir a uma invasão dos princípios empresariais na escola. Tais princípios assumem
agora uma nova roupagem, aparentemente mais “humana”. Trata-se do chamado modelo
toyotista, que utiliza como slogan a Gestão da Qualidade Total (GQT). Para muitos
educadores e/ou políticos, esse modelo deve ser transposto à escola com o objetivo de
imprimir a essa instituição ares de modernização e eficiência13. Sua implementação na
organização escolar é feita em nome de uma suposta “neutralidade”, que, ancorada na
12 A Conferência de Educação Para Todos, realizada em 1990, em Jomtien, Tailândia, deu origem, no Brasil, ao Plano Decenal de Educação Para Todos (1993) e inspirou a elaboração de outros documentos.13 Exemplo dessa postura pode ser encontrado na gestão 1993-1996 da Secretaria de Educação de Cuiabá, que teve como objetivo criar uma nova “cultura escolar e organizacional”, baseada nos princípios do modelo da Qualidade Total; e na gestão 1991-1994 da Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, que introduziu na sua proposta de reforma da rede estadual de ensino um Programa de Qualidade Total. A respeito da análise dessa última proposta, ver: D. Cunha (1995).
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lógica produtiva, escamoteia seu forte componente ideológico, ao atribuir à administração
escolar a única responsabilidade pelos problemas educacionais14.
Depreende-se, pois, que a relevância que vem ganhando a questão da administração
educacional tanto pode possuir uma conotação progressista (democrática), quanto pode
assumir uma conotação conservadora (empresarial).
3. Considerações finais
O estudo da história da educação brasileira revela que o tema da democratização,
associado ao da universalização do ensino, salvo em alguns momentos de enfraquecimento,
vem traduzindo-se em uma preocupação constante nos debates educacionais. A discussão
sobre a qualidade, por sua vez, apesar de estar presente, de alguma forma, desde o
“otimismo”, manifestou-se de forma mais explícita em movimentos específicos (Escola
Nova e Tecnicismo), até atingir seu ápice nos anos 1990.
Nessa década, dentro de uma ótica progressista, a qualidade será mais um elemento
pelo qual se deve lutar, portanto como uma extensão de direitos, em que se defende uma
escola pública, gratuita e democrática. Porém, sob a inspiração de uma pedagogia de caráter
neotecnicista, decorrente das idéias neoliberais que iriam desaguar com maior ímpeto,
nesse ínterim, a problematização acerca da qualidade, assumida pelo discurso de cunho
neoliberal, irá embotar a preocupação com a democratização da educação e da sociedade.
O problema da qualidade será aí compreendido dentro da lógica produtiva empresarial.
Segundo esse prisma, não há falta de vagas e nem de recursos, mas uma ineficiência da
administração escolar pública.
Ambas as posições, porém, irão reconhecer a importância da gestão educacional, e
mais especificamente, da gestão escolar, como uma das formas de concretizar essa
qualidade. Os setores progressistas, entendendo a qualidade dentro de uma concepção mais
ampla, lutarão por formas mais justas de organização escolar. Os setores conservadores,
contudo, irão proclamar por novas formas de gestão com o objetivo de promover a
eficiência no campo educacional. 14 De acordo com o modelo de Gestão da Qualidade Total, “se o aluno não está aprendendo, certamente o problema está na escola, em seus processos, organização e funcionamento. (...) O sucesso do aluno depende da escola e o sucesso da escola depende das propostas e dos projetos que ela identifica como necessários para operacionalizar uma proposta pedagógica” (KRAWCZYK, 1999, p. 123).
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Assim, se no movimento escolanovista a qualidade esteve relacionada aos meios de
aprendizagem, e no tecnicismo às técnicas implementadas no processo de ensino, na década
de 1990, essa dimensão estará associada, entre outros aspectos, à gestão escolar, ou melhor,
à gestão democrática escolar. Há que se alertar que a importância conferida à
administração não pode ser considerada como um fenômeno circunstancial ou uma simples
corrente acadêmica. Na verdade, a atenção concedida a ela, atualmente, deve ser
compreendida como uma questão dotada de historicidade, pois, como se viu, tem sido
objeto de investigação sistemática desde a década de 1960.
A idéia que procurei defender nesse artigo é que a ênfase na gestão democrática da
unidade escolar é influenciada pela dinâmica dos movimentos que a antecederam -
analisados aqui sob as categorias democratização e qualidade escolar. Contudo, é preciso
elucidar que a importância que irá adquirir a temática gestão democrática no meio
acadêmico e no campo das políticas públicas educacionais fará com que esta problemática
seja mais do que um desdobramento das categorias acima referidas e se consubstancie em
um outro movimento de suma importância nos debates educacionais. Esse movimento está
relacionado com uma dinâmica de focalização da escola, que se apresenta nitidamente, no
Brasil, a partir da década de 1980. A valorização da organização escolar implicará o
reconhecimento das unidades de ensino como locais dotados de uma margem de autonomia
pedagógica e administrativa. Sob a orientação dessa valorização, a gestão escolar passará a
ser objeto de atenção dos sujeitos envolvidos, direta ou indiretamente, com a educação.
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