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Dialogando com a metodologia da História Oral: entre contextos e textos
GLEISON OLIVO1
Resumo
Tendo como respaldo teórico principal as contribuições de Errante (2000) e
Almeida e Grazziotin (2012), o presente trabalho propõe compartilhar e dialogar as
suas experiências com a metodologia da História Oral. Relato que junto a um texto
produzido, sempre há um contexto a ser observado e levado em conta na pesquisa, o
que faz considerar a História Oral, não somente como uma metodologia, mas um
evento, cercado de implicações antropológicas, éticas, políticas e epistemológicas.
Palavras-chaves: história oral, metodologia, diálogos, experiências.
Introdução
Este artigo é proveniente das minhas experiências com a metodologia da
História Oral2enquanto um jovem pesquisador na área da história da educação, na
pesquisa realizada para a conclusão do mestrado do programa de pós-graduação em
educação. Nesse sentido, os resultados desse artigo não têm o fim primeiro de
descrever o que é a História Oral3, antes disso, visa visam dialogar e compartilhar as
experiências de imersão na metodologia da HO.
Nesse sentido, considerando a dimensão ampla que contempla a HO, a
presente reflexão não busca exaurir as análises possíveis dessa metodologia. O
objetivo é compartilhar experiências com alguns sujeitos da pesquisa e tecer algumas
análises dos contextos e dos textos que emergiram na pesquisa de dissertação de
mestrado em educação.
Minha história com a metodologia da HO iniciou nos primeiros diálogos com
minha orientadora do mestrado que, frente aos objetivos daquilo que tinha interesse
em pesquisar, apresentou-me a HO como uma das alternativas para a construção de
empiria. Nesse sentido, a natureza da minha dissertação foi investigar os “Sentidos e
Saberes das Escolas Rurais do Vale dos Vinhedos – Bento Gonçalves / RS – (1928 –
1958).
O foco investigativo da pesquisa foi averiguar quais foram os saberes
escolares constituídos e como as práticas estavam fundamentadas nas escolas rurais
do Vale dos Vinhedos. Além disso, investiguei quais foram as representações de
1UCS – Universidade de Caxias do Sul. Mestre em Educação.
2 Neste artigo, sempre que me referir ao conceito de História Oral, usarei a forma abreviada HO.
3 Para aprofundar os estudos sobre o que é HO, sugiro o contato com as obras de:Alberti (2005),
Ferreira, Amado (2006),Prins (1992), Errante (2000).
sentidos que antigos alunos e professores atribuíram ao ensino rural, na época em
que decorre a pesquisa.
O ensino rural do Vale dos Vinhedos emergiu num contexto da imigração
italiana, em 1875, e foi sendo consolidado ao longo da história com uma dinâmica
cultural e social peculiar. As primeiras iniciativas ocorreram a partir da organização
dos colonos que, ao sentir a necessidade de instruir seus filhos, encontraram
alternativas e formas autônomas para suprir a escassez da oferta de um ensino
público. Muitos eram orientados pelos próprios pais e outros ou confiados àqueles
que eram considerados os mais capazes e instruídos na comunidade, sendo eleitos ou
convidados para conduzir e levar a instrução necessária aos seus filhos. O improviso
dos espaços para a escolarização parece ter sido a prática mais comum, uma vez que
as próprias residências ou capelas tornavam-se espaços para o acolhimento dos
alunos. Ressalta Luchese que:
As iniciativas para o desenvolvimento da instituição escolar precisam ser
compreendidas dentro do contexto histórico e cultural em que se
processou a ocupação da citada Região: a educação dos indivíduos era
concebida como responsabilidade e ação dos princípios familiares,
religiosos e escolares. A família era tomada como referência para os
ensinamentos considerados mais necessários para a vida. (LUCHESE,
2007, p. 118)
No entanto, investigar os saberes e os sentidos das escolas rurais deste
espaço, entre 1928 a 1958, supõe antes disso, entender essas relações, essas vivências
e referências sociais e culturais que tangenciaram o modo de vida da sua população.
Por isso, aqui se justifica a adequação e a escolha da metodologia da HO, como
principal metodologia nesta pesquisa, associada com a análise documental.
Desse modo, associado às fontes documentais históricas, o uso da história
oral tornou-se um elo fundamental entre o passado e o presente para a reconstrução
daquilo que foi vivido “e guarda o mérito de trazer à tona nuances do passado, que
podem estar esquecidas e que, por vezes, encontram-se inatingíveis em outras formas
de documentação, além de dar visibilidade aos sujeitos na construção da história”
(ALMEIDA, 2007, p. 63). Assim, o uso da memória dos antigos sujeitos escolares,
tornou-se nessa pesquisa, uma das principais trilhas percorridas nos referenciais
metodológicos.
As entrevistas que compuseram a empiria da minha pesquisa foram realizadas
com antigos professores e alunos que exerceram a condição de sujeitos escolares no
período temporal em que transcorre a pesquisa. Foram selecionados três professoras,
e nove alunos. As professoras também foram entrevistadas na condição de ex-alunas,
pois todas foram alunas do Vale dos Vinhedos e, mais tarde, “foram feitas”
professoras da própria comunidade em que viviam. Em relação aos antigos alunos, a
maioria daqueles que foram entrevistados se mantiveram no meio rural e tornaram-se
agricultores. Um deles tornou-se padre e outro, agricultor e escritor. São sujeitos que
variam de oitenta e três anos a cento e nove anos. Além disso, a escolha final dos
entrevistados precisou respeitar o critério de que eles deveriam abranger o máximo
possível das comunidades que integram o Distrito do Vale dos Vinhedos.
Espera pelo inesperado
Quando se propõe a fazer uma pesquisa a partir do trabalho da HO, exige
antes de tudo, “conhecimento de quem se propõe a fazê-lo “ (GRAZZIOTIN;
ALMEIDA, 2012, p. 36). No entanto, embora possamos ter o máximo de
informações sobre do que se trata HO e como ela metodologicamente está
constituída quando iniciamos uma pesquisa ou estreamos o uso dessa metodologia
(assim como foi meu caso), jamais conseguiremos saber previamente as suas
interfaces e os resultados da sua aplicabilidade. Tudo é inesperado! Os referenciais
teóricos que somos convidados a conhecer ajudam-nos a teorizar sobre, entendendo
sua metodologia, esclarecendo o que é, como surgiu, quais os seus objetivos, seus
limites e possibilidades. No entanto, os resultados para aquilo que se espera coletar,
tudo é imprevisível e desconhecido.
Frente a isso, diria que enquanto pesquisador, quando imergimos nessa
metodologia, estamos constantemente numa postura ou condição de “espera pelo
inesperado”. A história a ser investigada não é propriedade minha. Ela não me
pertence. Devo estar a todo tempo despretensiosamente imune de conclusões e
achismos. Ou seja, estamos verdadeiramente entregues pelas memórias do outro e
“no contexto em que se investiga” (GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012, p. 37).
Na relação com o entrevistado, no entanto, não se trata de um jogo de poder
em que seja passível estabelecer uma hierarquização, uma graduação de quem é o
sujeito mais ou menos importante, se é o pesquisador/entrevistador ou o entrevistado.
De acordo com Grazziotin e Almeida (2012) o entrevistado
detém um saber fundamental para quem o escuta, pois, na situação da
pesquisa de campo, possui os conhecimentos que se busca; o que ele diz
se transforma em documento de pesquisa. [...] No entanto, quem indaga
também tem um poder, pois representa um outro tipo de saber, uma
determinada instituição; seu trabalho visa uma problematização de teor
científico” (GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012, p. 38).
Um dos primeiros equívocos enquanto jovem pesquisador foi acreditar que
previamente eu poderia escrever aquilo que eu tinha intenção. Por um momento,
acreditei que minhas primeiras impressões sobre o ensino rural no Vale dos
Vinhedos já fossem suficientes ou possíveis para estabelecer um roteiro daquilo que
pretendia tecer na dissertação e serem as “respostas” ao meu problema de pesquisa.
Grande equívoco! Na prática, é a partir do contato com as fontes, da coleta e da
categorização dos dados, que uma pesquisa passa a tomar um norte, a ter consistência
e cientificidade.
Na história oral, os dados coletados são as narrativas dos sujeitos que, depois
de transcritos, se transformam em documentos. A partir daí, os caminhos da
investigação vão ganhando corpo. Assim como na elaboração de um vinho, em que o
enólogo segue rigorosamente o passo a passo da sua elaboração, obedecendo ao
tempo e as condições da matéria prima, também é a produção de uma pesquisa a
partir da história oral. A produção da minha escrita, dos meus resultados deve
obedecer minha matéria prima (narrativas transcritas). É a partir da materialidade que
está em nossas mãos que o produto deve ser gerado. Ocorre que podemos ter a
tentação de querer produzir outro produto (sumário), de acordo com aquilo que
precipitadamente “esperávamos”, quando na verdade, os resultados das transcrições e
na categoria de análise, fazem surgir surgem em nossas mãos uma materialidade
muitas vezes oposta, totalmente inesperada diante daquilo que esperávamos
encontrar inicialmente.
Desse modo, embora os teóricos da HO defendam a necessidade de que toda
entrevista seja feita a partir de roteiros previamente definidos, isso não significa que
os resultados das respostas dos nossos questionamentos sejam aquilo que
esperávamos. Diria que, tão importante quanto à elaboração prévia de um roteiro
para as entrevistas, é a clareza do objetivo e do problema da pesquisa. Digo isso
porque o ato de entrevistar não deve ser compreendido como um evento para
responder questionários. Roteiro de entrevista e questionário de entrevista são,
portanto, movimentos e propostas diferentes. Por isso, tem que se ter claro que a
elaboração de um roteiro prévio para fazer entrevistas é um caminho que visa
estreitar os resultados da coleta de documentos com aquilo que está implícito no
objetivo e no problema da pesquisa, previamente estabelecido. A propósito,
independentemente se nos apropriamos de documentos orais ou de outros
documentos escritos, a condição do pesquisador deve ser sempre aquela de
estabelecer um processo de criação de documentos. Eles nunca estão prontos.
Consequentemente, é evidente que nos resultados
há marcas da subjetividade. São escolhas, produzidas a partir de
questionamentos, marcados pela presença e uso de documentos,
ordenados e tecidos pela trama textual produzida pelo historiador. É
preciso saber fazer perguntas, questionar e dialogar com os documentos,
pois somente com perguntas é que podemos avançar na produção do
conhecimento histórico. (LUCHESE, 2014, p. 138)
Nesse sentido, durante minha imersão na metodologia da HO, elaborei uma
lista com inúmeras perguntas que estavam ligadas diretamente com o problema e
objetivo da minha pesquisa. Hoje, com uma maturidade maior, percebo que meu
roteiro foi extenso e não precisava contar com mais de 50 questões. Acreditava no
entanto que, se não todas, a maioria das questões seriam respondidas durante as
entrevistas. Mais um engano! Realmente, tive a confirmação de que essas questões
previamente definidas serviram como um facilitador, como um apoio e um norte para
o diálogo, não como uma regra de execução rígida e determinista. Uma boa
entrevista nunca poderá ser um processo rígido, mas um evento permeado por trocas
e relações de “cumplicidade, escuta sensível e respeito à fala do outro”
(GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012, p. 36). Thompson (1992) acrescenta ainda que:
Há algumas qualidades essenciais que o entrevistador bem-sucedido deve
possuir: interesse e respeito pelos outros como pessoas e flexibilidade
nas reações em relação e eles; capacidade de demonstrar compreensão e
simpatia pela opinião deles; e, acima de tudo, disposição para ficar
calado e escutar. (THOMPSON, 1992, p. 254).
Ainda sobre a circunstância do roteiro para a entrevista, Alberti (2005) nos
recorda que:
A função do roteiro é auxiliar o entrevistador, no momento da entrevista,
a localizar, no tempo, e a situar, com relação ao tema investigado, os
assuntos tratados pelo entrevistado. Por essa razão, é bom organizar os
dados de forma tópica, para facilitar sua visualização no momento da
gravação (ALBERTI, 2005, p.177).
Voltando ao propósito desse subtítulo, assim como já ressaltei inicialmente,
quando adentramos ao processo da coleta de entrevistas, nossa condição enquanto
pesquisador comprometido com a história real, verdadeira, deve ser aquela da
“espera pelo inesperado”. Não podemos supor ou induzir respostas que gostaríamos
ouvir. O máximo que podemos fazer é levantar perguntas para atender aos objetivos
daquilo que estamos pesquisando. As respostas sempre devem ser inesperadas. Se
soubéssemos as respostas aos nossos questionamentos, a pesquisa não teria sentido,
nem mesmo, teríamos um problema na pesquisa, pois as questões já estavam
esclarecidas. Diria que entregues pelas memórias dos outros nunca conseguiremos ter
conhecimentos prévios. O papel do pesquisador torna-se assim, um elo entre a
história passada que queremos conhecer com a intimidade da memória daqueles que
verbalizam nossos questionamentos.
Os breves apontamentos que mencionei sobre algumas impressões que
constatei e continuo contestando acerca daquilo que devemos esperar e nos
posicionar frente a uma entrevista ou aos seus resultados, nos ajudam a compreender
uma série de fatores e implicações metodológicas que contemplam a HO. Estas
circunstâncias apresentadas não são somente sinônimos de achados e descobertas que
auxiliam na produção do conhecimento. Junto a isso, aprendemos que nessa
metodologia, também as frustrações identificadas são histórias que precisam ser
consideradas e não excluídas. As contradições também fazem parte da história e
devem ser legitimadas no nosso modo de entendê-las. Nossas expectativas frustradas
e nossas idealizações precisam ser redimensionadas constantemente, com um olhar
natural e, ao mesmo tempo, crítico, sem exclusões ou seletividades de fatos e versões
que somente nos interessam.
Outro aspecto a considerar na HO é que, tão importante quanto a condução de
uma entrevista e suas análises é a eleição dos sujeitos a entrevistar. No caso da minha
pesquisa de dissertação, ressalto que o quadro apresentado dos sujeitos selecionados
como fonte para as pesquisas não se restringiram somente àqueles que foram
expostos acima. Selecionar quem você irá entrevistar e as entrevistas que serão
aproveitadas faz parte de um movimento de escolhas para aquelas que melhor
contribuem e apresentam munição de material de acordo as perguntas e o objetivo da
investigação.
Como já mencionado, o corpus empírico da minha pesquisa foi formada por
antigos professores e alunos que exerceram a condição de sujeitos escolares no
período temporal que transcorre a pesquisa. Esse movimento de escolhas talvez tenha
sido percorrido ou acontecido antes mesmo da decisão de fazer o mestrado. Quando
vim morar no Vale dos Vinhedos, há dez anos, deparai-me com as primeiras histórias
da população local, principalmente com as pessoas mais idosas, que me inspiraram e
despertaram minha curiosidade sobre o seu passado, o seu cotidiano, suas vivências e
relações no meio rural.
Tendo em vista minha relação prévia com algumas pessoas do local em que
residia, tornei-as “pessoas chaves” para iniciar e criar minha teia de sujeitos a serem
consultados para a entrevista. Essa motivação inicial tornou-se, assim, o primeiro
critério de escolha das pessoas para que possivelmente viessem a ser entrevistadas.
Por ter mais contato e proximidade por questões de vizinhança, as primeiras buscas e
consultas orais ocorreram com Dona Lourdes Marcatto, moradora da comunidade do
Vinosul, popularmente conhecido como Busa4.
Entretanto, meu primeiro contato com esta senhora não foi para tratar das
questões centrais da pesquisa. Antes disso, queria encontrar caminhos de
investigação. Por isso, inicialmente minhas perguntas foram outras, tais como: Além
da senhora, você sabe se ainda existem outras professoras que trabalharam no Vale
dos Vinhedos nesse período? Quem são e onde moram seus ex-alunos? Há alguém
que a senhora possa indicar que conheça a história do processo educacional do Vale
dos Vinhedos? Lembra-se de alguém que possa contribuir com essas questões
históricas do Vale dos Vinhedos?
De encontros iniciais como esse, surgiu a indicação de outros nomes que, em
contato, tive a mesma postura enquanto pesquisador-investigador, ou seja, mapear
os possíveis entrevistados. Desta forma, tanto os resultados das narrativas, quanto
àqueles que a produzem, são frutos de construções e relações “inesperadas”.
Esse processo levou então a pesquisa à metodologia conhecida como
snowball. No Brasil, essa metodologia ficou amplamente difundida como “bola de
neve”, a qual consiste na indicação de novos sujeitos a partir dos sujeitos
entrevistados, ou seja, os possíveis entrevistados suscitam outros nomes durante o
próprio processo de entrevistas. Segundo Souza:
Como propõe o método da “bola de neve”, a escolha do número de
pessoas bem diferenciadas, mas dentro de uma base comum, garante a
possibilidade de analisar, de forma ampla, os diferentes aspectos a serem
estudados. Isso se faz colhendo informações, ou mesmo, através do
fenômeno “bola de neve” fato de que uns surgem outros, adquirindo, por
vezes, uma representação estruturada em forma de rizomas. (SOUZA,
2015, p. 38)
4 A denominação “Busa” no dialeto italiano significa “buraco”.
Dentro desse percurso, construíram-se dois trilhos distintos de consulta da
história oral. Uma relacionada ao grupo social de professoras e outra, relacionada ao
grupo social de ex-alunos, também vinculados ao período em questão.
Desse movimento, mapiei dezoito sujeitos. No entanto, somente quatorze
desses contatos foram selecionado para as entrevistas e apenas nove delas foram
aproveitadas.
Dialogando sobre os contextos na relação entre historiador e narrador
Sinalizadas considerações sobre o portar-se do pesquisador com a produção
de narrativas e os seus resultados, pretendo agora dialogar e compartilhar os
contextos em que coletei e produzi as fontes orais para minha pesquisa.
O primeiro aspecto que concluí acerca da HO é que, quando nos pomos a
coletar narrativas, estamos ao mesmo tempo coletando identidades. “Sabemos que
todas as narrativas, sejam orais ou escritas, pessoais ou coletivas, oficiais ou não-
oficiais, são narrativas de identidades (ANDERSON, 1991).
Desse modo, nessa jornada na HO tenho aprendido que, além das memórias
coletadas serem marcadas por processos identitários, a história e o modo em que
cada sujeito evoca suas memórias também deve passar pelo crivo de entender e
respeitar as identidades em que cada um apresenta. Cada sujeito tem o seu modo de
vida, suas tradições e costumes, por isso, penso que o cuidado com essas questões
são caras para a HO.
Essas percepções sobre os contextos de identidades em que se dá a HO eu não
compreendia plenamente. Fui compreendendo sobre todas as implicações implícitas
nessa metodologia, à medida que fazia cada contato com os sujeitos da entrevista.
Por isso, Errante (2000) afirma que a prática de identidade na história oral, não é
somente descrições de eventos, mas eventos em si mesmos. Ou seja, os processos
identitários não podem ser reduzidos e vistos somente a partir do produto final das
entrevistas.
Antes de compartilhar os contextos em que minhas experiências na HO se
deram durante a pesquisa, considero pertinente apresentar um pequeno esboço do
contexto do cenário em que transcorre a pesquisa, sobre a identidade do espaço em
que residem os personagens da pesquisa, a fim de que meu leitor esteja provido com
uma maior compreensão de quem e do que minha pesquisa tratou. Entendo que o
processo identitário do espaço da minha pesquisa está implicado numa dimensão
étnica. A partir das análises e estudos da pesquisa, ficou claro que o viés histórico
dolócus da pesquisa (Vale dos Vinhedos) e seu município, transcorrem de forma
predominante pelos aspectos étnicos italianos.
A história de Bento Gonçalves começa com o processo emigratório italiano,
ocorrido a partir de 1875, por conta dos diversos desafios econômicos, políticos e
sociais que a Itália vivia no final do século XIX. O “Vale dos Vinhedos” faz parte de
uma área rural do município e teve sua exploração no período referenciado acima,
protagonizados da mesma forma pelos imigrantes italianos. Desse modo, quando me
refiro ao termo Vale dos Vinhedos, ressalto que estou tratando de um conjunto de
comunidades rurais históricas, de aproximadamente 140 anos, povoadas
predominantemente por imigrantes italianos. Recebe, portanto esse nome, por se
tratar de um local em que predomina a força econômica do cultivo da uva, da sua
transformação em vinhos, sucos e espumantes, bem como pela exploração
econômica dessas atividades por meio do turismo.
Há de se ressaltar que, embora o tempo que separa desde o surgimento das
comunidades até o tempo presente seja muito longo, as identidades e a cultura étnica
italiana da população ainda são preservadas e muito presentes na memória dos
descendentes daqueles que ocuparam esse espaço.
Nesse cenário em que a ordem social dos imigrantes nas primeiras
comunidades do Vale dos Vinhedos foi sendo constituída, a religião e a educação
tornaram-se os aspectos centrais das comunidades rurais. Sob este ponto de vista,
pode-se afirmar que Família – Igreja – Escola tornaram-se, desde tão cedo, o tripé
essencial da vida social dos imigrantes. Enfim, falar da história desse espaço é o
mesmo que falar de identidades, de representações de vidas, de histórias de vidas, de
famílias, das comunidades e de pessoas anônimas que deixaram seu legado na
história.
No entanto, a maior parte dos resultados dessa pesquisa foram possíveis por
intermédio da HO. Nela, tive o privilégio de encontrar sujeitos com idades bem
longevas, que puderam e ofereciam condições de serem sujeitos que testemunharam
os fatos os quais me dispus a investigar.
Dentre todos os sujeitos entrevistados, apresento o contexto em que surgiram
ou foram produzidas as narrativas de Lídia Zaffari Parmegiani, uma senhora
descendente direta de italianos de 109 anos de idade.
Quando considerava que o quadro de sujeitos orais para a pesquisa estava
formado, eis que surge meio que inesperadamente a figura de Lídia Zaffari
Parmegiani. Esse contato surgiu durante uma substituição de aula que dava à minha
orientadora da dissertação. Analisando e assessorando as graduandas de pedagogia,
que tinham como trabalho coletar informações de pessoas acima de setenta anos que
viveram o ensino em nossa região, pude ouvir de uma graduanda a expressão: “na
verdade, meu desejo era entrevistar uma senhora bem idosa, que tem mais de 100
anos e mora perto da casa de meus parentes, lá na colônia, no Vale dos Vinhedos”.
Essa colocação me encheu os olhos! Então, perguntei que ela falasse mais sobre essa
senhora. Na ocasião, disse que não sabia muita coisa e nem a conhecia, somente
sabia que seu nome era Lídia e morava num local bem retirado, próximo a
comunidade tal.
Ouvindo isso, considerei que essa senhora, conhecida pelo acaso, poderia se
tornar uma potencial fonte para minha pesquisa, pois a princípio, aparentemente
contemplava todos os aspectos que exigiam minha pesquisa. Pertencia ao meio rural,
ao lócus e ao recorte temporal daquilo que propunha a dissertação.
Feito isso, numa certa manhã, ainda desprovido de informações mais
concisas, lancei-me ao encontro de Lídia. Fui em direção ao local que se aproximava
das informações que tinha previamente e quando me aproximava da área rural em
que ela residia, parei à beira de uma estrada na qual alguns colonos se encontravam
na lida com os parreirais e pedi se eles conheciam uma senhora de nome Lídia, com
mais de 100 anos. Então, logo disseram que sim e que deveria seguir a frente e que
ainda havia um bom percurso para se chagar na comunidade em que ela morava.
Após mais algumas paradas e desencontros, cheguei à casa de Lídia.
Importante ressaltar que, nesse primeiro encontro, não fui com a intenção de
fazer a entrevista. Acreditava que, antes disso, deveria entender o contexto em que se
encontrava a possível fonte oral. A HO apresenta algumas fronteiras na produção
documental. Quando tratamos de memórias de sujeitos com idade mais avançada, por
exemplo, como é o meu caso, devemos fazer uma análise prévia se a pessoa a qual
estamos mantendo contato goza de uma saúde mental boa, com capacidade para
descrever os fatos com consciência lógica e responsabilidade com a verdade.
Com isso, ao chegar à casa de Lídia, fui recebido pela sua filha de nome
Umbelina, uma professora aposentada que exerceu o magistério na cidade de Bento
Gonçalves e, após a sua aposentadoria, retornou ao interior para cuidar da sua mãe.
Toda gentil, convidou-me para entrar em sua casa onde pude me apresentar e falar
das razões da minha pesquisa.
Esse momento da apresentação pessoal e dos objetivos da pesquisa, considero
sempre um período de certa tensão, pois você precisa ser muito cuidadoso na
maneira como se aproxima e aborda as pessoas, como também, expõe seus
interesses que, por vezes, podem despertar desconfiança de quem é você realmente e
dos reais interesses da sua pesquisa. Isso ainda é muito mais sensível quando os
sujeitos das entrevistas são pessoas de idade mais avançada e não estão tão
habituadas a receberem pessoas “de fora”. Por isso, considero que esse instante pode
ser decisivo para a pesquisa. A forma como nos apresentamos e a relação que
criamos nos primeiros momentos podem agradar ou desagradar, ou melhor, podem
promover uma relação de confiança ou desconfiança da pessoa que buscamos fazer
entrevista.
Diria que neste meu primeiro contato com Dona Lídia, faltou-me algumas
sensibilidades básicas. Deveria me dar conta que o horário que estabeleço para minha
rotina, poderia ser muito diferente de uma senhora de 109 anos de idade e que
nossos tempos seriam diferentes. Menciono isso porque minha visita à residência de
Lídia foi num sábado de manhã, ainda no período de inverno, às 9h da manhã,
quando esta ainda se encontrava dormindo. Contudo, depois de alguns bons minutos
de conversa, Umbelina, sua filha, decide que irá acordar a mãe para tomar o seu café
e me conhecer. Confesso que essa situação gerou em mim, inicialmente, um certo
desconforto, pois me transpareceu que estava sendo um pouco invasivo com a rotina
dela, gerando transtornos e não era este o meu interesse. Perguntava-me a todo
momento: Por que vim tão cedo? Ainda mais com frio? Supostamente, penso que
isso também possa ter gerado algum desconforto a sua filha e, por isso, poderia não
promover esse encontro, achando não ser adequado que ela falasse comigo ou que
voltasse “qualquer outra hora”. Porém, tive a sorte de estar em contato com uma
pessoa de espírito tolerante, gentil e generoso em compreender meus interesses e
talvez, minhas falhas.
Foi então, a partir desse contexto inicial, que Lídia acordou e se dirigiu até a
cozinha. De longe, pelos fundos do corredor avistava uma senhora que vinha ao meu
encontro na cozinha, com seus cabelos um pouco molhados, com os sinais visíveis
das marcas do pente e com um cheirinho suave de perfume. Ainda de longe, percebi
que ela cruzou seu olhar curioso até onde estava para poder me enxergar. Apoiada
numa bengala veio então à minha direção com certa firmeza e com ritmo muito mais
rápido do que meu imaginário tinha construído sobre ela. Fui logo percebendo que
seu semblante era de uma pessoa altiva, disposta e de sorriso fácil.
Frente ao contexto de uma cena como essa, daqueles que se apropriam da HO
para as suas pesquisas, ver uma senhora de 109 anos, portanto, um encontro raro,
diria que isso provoca involuntariamente uma certa vibração interior no possível
entrevistador. Afinal, não é tão comum estarmos em contato com pessoas tão
longevas que podem testemunhar fatos históricos tão longínquos, gozando de boas
condições de interação com o pesquisador.
A primeira expressão que saiu de Lídia foi um saudoso buongiorno (bom
dia), com sorriso fácil. Ali, somente nessa expressão utilizada para me cumprimentar,
pude identificar que muito provavelmente se tratava de um sujeito com marcas
identitárias étnico-italianas ainda bem preservadas, embora sabemos os processos
identitários dos sujeitos não se restringem somente a língua os quais eles se
comunicam. Associado a isso, antes mesmo de Lídia vir até a cozinha para poder se
apresentar, observando a sua casa já era possível tecer inúmeras considerações sobre
os processos identitários que faziam parte da história daquela família. Na cozinha, a
cadeira da matriarca próxima ao fogão a lenha, as toalhas e cortinas bordadas pela
filha, os diversos quadros fotográficos antigos dos inúmeros personagens que
estavam expostos na cozinha e se espalhavam pelo corredor e sala adentro, os
inúmeros objetos religiosos na parede e nos armários, quadros, imagens, orações
expostas davam a entender um conjunto de materialidades que representava a
identidade daquela família que me acolhia.
Antes de perguntar sobre a vida de Lídia, considerei compartilhar quem eu
era, o que fazia, onde trabalhava, minhas histórias de vida, de que “gente eu era”
(expressão que a população local tem ao se referir à família que você pertence).
Essas questões, desde que vim residir em Bento Gonçalves, percebi que são
culturalmente impostas de forma “protocolar” quando os sujeitos se põem a
conversar um com o outro e conhecer suas identidades.
Tendo um sucinto conhecimento no dialeto vêneto italiano, fui utilizando
desse recurso linguístico para poder me comunicar e me aproximar dela, usando
algumas expressões e palavras a fim de que despertasse nela alguma simpatia pela
minha pessoa e assim, poder ao longo da conversa dar o seu aceite para ser uma das
minhas entrevistadas.
Nesse primeiro encontro, busquei ter uma relação com o narrador de muita
proximidade, sem deixar evidente uma postura de observador, de pesquisador, como
aquele que está atento a todos os detalhes, invadindo sua privacidade e coletando
todos os dados possíveis. Não queria que ela ficasse inibida ou tivesse qualquer
receio com minha pessoa. Meu único interesse era portar-me como um bom
companheiro para conversar. Nesse breve momento de conversa falamos coisas
sérias, mas acima de tudo, brincamos e rimos com algumas coisas que ela relatou
sobre a sua vida, todavia, sem um rigor científico nas nossas conversações. Não
apresentei gravadores, nem mesmo disse que iria gravá-la num outro momento.
Deixei isso para os “finalmentes”.
Desse primeiro encontro de aproximadamente uma hora, algumas conclusões
foram possíveis estabelecer: Percebi que minha comunicação em português com a
Lídia não era tão eficiente quanto em italiano. Dei-me conta que, quando buscava
falar em italiano ela respondia com mais facilidade e também, sentia-se mais a
vontade para responder. Em perguntas em dialeto italiano, ela tinha maior fluidez nas
repostas e no seu raciocínio. Ao contrário, quando me comunicava em português,
percebi que o tempo entre a pergunta feita por mim e o início da sua fala era marcada
por uma pausa, um silenciamento. Inicialmente fiquei confuso se isso seria um
problema de baixa audição, se estava falando de forma muito complexa ou se ela
estava cansada. Então, depois de um tempo, fui me dando conta que junto a mim,
enquanto “entrevistador”, estava sendo apoiado pela própria filha que intervinha na
nossa conversa e traduzia as minhas perguntas para o italiano quando eram feitas em
português. Indaguei a filha, perguntando se a mãe estava entendendo e ela me expôs
duas circunstâncias as quais precisei, a partir de então, ter mais atenção. Primeiro,
disse que a mãe tinha realmente um certo grau de baixa audição em um ouvido e por
segundo, compartilhou que às vezes a mãe fica sem jeito quando não consegue
responder ou se expressar em português com pessoas “estranhas”, tendo uma certa
vergonha de dizer que não entendeu algumas coisas. Segundo Umbelina, sua mãe só
fala no dialeto italiano com a família e com a vizinhança. Foi então que entendi as
razões das suas pausas e os seus silenciamentos com algumas perguntas que eram
feitas na língua portuguesa. Como se portar, com esse contexto na metodologia da
história oral? Quais as implicâncias práticas dessas questões nos resultados das
narrativas?
Esse movimento de aproximação e socialização com o sujeito que descrevi
acima, vai ao encontro daquilo que Errante (2000) descreve como a necessidade de
criar uma “ponte interpessoal” entre o pesquisador e o narrador. Caso optasse em
realizar a entrevista de forma mais imediata, apressada, naquele mesmo dia,sem
essas “pontes”, acredito que isso acarretaria algumas implicâncias e obstáculos no
processo metodológico das narrativas e impediria alguns resultados. Errante aponta
que
Essa ponte interpessoal torna o fluxo possível. Dependendo das
circunstâncias do trabalho, contudo, pode não haver oportunidade para
construir uma relação entre narrador e historiador antes da entrevista. O
evento da história oral em si mesmo deve fomentar esse senso de
confiança, de respeito e validação à medida que a rememoração, o ato de
contar, a audição e a investigação se desenvolvem. Tanto o narrador
quanto o historiador devem construir essa ponte. (ERRANTE, 2000, p.
153).
Ao chegar nessas conclusões prévias, pedi se Lídia tinha interesse de
participar da minha pesquisa sobre o ensino rural no Vale dos Vinhedos. No entanto,
por ser uma pessoa com idade bem avançada e estar aos cuidados diretos de uma
outra familiar, considerei ser adequado, nesse caso, ter o aceite de ambas, a fim de
não ter futuramente surpresas inesperadas. Decidi então que voltaria num outro dia,
agora com dia e hora marcada. Ao me despedir, após perceber que Lídia tinha uma
relação muito estreita com a religião católica, perguntei à filha se a mãe estava
conseguindo se deslocar até a igreja da comunidade para receber a comunhão. Disse
que nem sempre, pois como o Padre passava só uma vez por mês na comunidade, às
vezes, quando ele vinha não se encontrava com condições de ir. Disse então que caso
ela permitisse, poderia resolver isso no próximo encontro, trazendo junto comigo um
ministro da eucaristia. Percebi que tanto a filha quanto a senhora Lídia aceitaram
esse encontro para receber a eucaristia de forma imediata, sentindo-se privilegiadas
por essa oportunidade.
Quando apresentei essas possibilidades, além de ser um gesto de afeto pessoal
a elas, cientificamente tinha compreensão de que essas minhas ações eram táticas
que, de acordo com Certeau (1998) é uma
[...] ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. A
tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o
terreno que lhe é imposto [...] tática é movimento. [...] ela opera golpe
por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende.
Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade. (CERTEAU, 1998, p.
100).
Além disso, como já mencionei sucintamente acima, esses movimentos e
artifícios na metodologia da HO entre narrador e o entrevistado são tratados por
Errante como “pontes interpessoais” pois ela cria um "vínculo emocional que liga as
pessoas... Tal ponte envolve confiança e viabiliza experiências de vulnerabilidade e
abertura. A ponte torna-se um veículo para facilitar compreensão mútua, crescimento
e mudança". (ERRANTE, 2000, p. 153).
A partir desse viés metodológico, as primeiras horas do segundo encontro
com Lídia foram dedicadas a essas “táticas” e “pontes interpessoais”. Sabendo das
suas devoções pessoais e espírito religioso, assim como havia previamente informado
no primeiro encontro, convidei-a a fazer um momento de espiritualidade comigo e
com o Ministro da Eucaristia que havia levado junto. Primeiramente, presenteei-a
com suvenires religiosos, terço, medalhas de santos da sua devoção e estampas
religiosas. Ao receber o terço, disse que por ser grande, iria pô-lo no pescoço a fim
de ficar bem protegida por Nossa Senhora. Logo em seguida, começamos uma breve
celebração, em que a família pode receber a eucaristia, assim como é possível ver na
figura abaixo:
Figura 1 – Movimentos de aproximação com Lídia Zaffari Parmegianni, em sua casa, antes da entrevista.
Fonte: Acervo do autor (2016)
Fazendo referência ao trabalho de Portelli (1981) Grazziotin e Almeida
(2012) recordam que o ato da entrevista,
é uma invasão à privacidade do outro, afinal, interfere-se no cotidiano
das pessoas e toma-se seu tempo. O autor defende a importância de o
pesquisador, durante a entrevista, mostrar-se aberto, [...] evitar atitudes
impessoais e distantes e manter uma abordagem cortês como uma espécie
de protocolo para o trabalho de campo. [...] assim, fica clara a natureza
interpessoal da entrevista. (GRAZZIOTIN, ALMEIDA, 2012, p. 39)
Claro que estes contextos preliminares, tramatizados intencionalmente antes
da entrevista para reforçar as “pontes” entre mim e o narrador, a princípio podem ser
considerados um movimento dissociado da entrevista, da coleta de documentos
(memórias) para a pesquisa, porém esse movimento não pode ser excludente e
dissociado da HO. Conforme atestam Grazziotin e Almeida (2012) devo considerar
que a HO deve ir “além das formas de utilização do gravador, métodos de elaboração
e transcrição de entrevista ou conservação de acervos (GRAZZIOTIN, ALMEIDA,
2012, p. 36). Lang (1996) reforça essa mesma compreensão sobre a HO ao afirmar
que, o trabalho de história oral não se esgota na realização, gravação, transcrição e no
arquivamento da entrevista (LANG, 1996b, p. 3).
Dessa forma, defendo que mais do que uma metodologia, a HO é um evento
que contempla inúmeros caminhos a serem percorridos entre pesquisador e
entrevistador que, na tentativa de conceituá-la, recorre também ao posicionamento de
Ferreira e Amado (2006) ao frisar que “[...] é possível reduzir a três as principais
posturas a respeito do status da história oral. A primeira defende ser a história oral
uma técnica; a segunda, uma disciplina; e a terceira, uma metodologia” (FERREIRA;
AMADO, 2006, p. xii). Ou ainda, como descreve o pesquisador francês, Trebitsch
(1994), diante das incertezas epistemológicas da história oral, descreve-a com a
seguinte definição: ”mais do que uma ferramenta, e menos que uma disciplina”
(TREBITSCH, 1994, p. 19).
Frente a esses contextos de aproximações executados com a entrevistada e
considerando-os como parte integrante da HO, iniciei a entrevista com Lídia. Por
uma questão de transparência, informei-a que conversaríamos a partir de então coisas
mais específicas sobre a sua vida e que estaria gravando a sua voz. No entanto,
considero que a forma que deveria utilizar e operar esse instrumento, deveria ser de
forma discreta, visto que meus entrevistados eram todos de idade bem avançada e o
uso de recursos tecnológicos por eles, praticamente inexistia, podendo inibi-los e
considerarem-se reféns do aparelho, caso fizesse o movimento de aproximação
quando estivessem fazendo o uso da palavra. Considerei, portanto, que a falta de
inabilidade e intimidade com aparelhos tecnológicos ao grupo dos meus
entrevistados poderia trazer estranheza com a espontaneidade no diálogo. Decidi que
o aparelho seria usado de forma discreta, sem ser o primeiro plano à frente daqueles
que narravam suas histórias e daquele que indagava, podendo perfeitamente estar
num lugar qualquer, ao lado, com tanto que cumprisse o papel de gerar a gravação
dos dados a serem coletados. Afinal, considerava que na HO, tão importante quanto
o gravador, é a figura do indagador e do narrador, e que se deve “preservar a
natureza interpessoal da entrevista, pois pesquisador e narrador estabelecem uma
relação dialógica em que ambos podem perguntar e responder” (GRAZZIOTIN,
ALMEIDA, 2012, p. 39). Por isso, penso também que a condição do pesquisador
estar de posse do aparelho gravador em mãos, poderá dependendo dos sujeitos,
transparecer uma relação de poder sobre o entrevistado, deixando-o inibido e numa
relação somente de passividade no diálogo.
Entretanto, a garimpagem de memórias da entrevista deve sempre partir de
um roteiro pré-definido a partir dos objetivos da sua pesquisa. Na “conversa” com
Lídia, iniciei a garimpagem suscitando memórias de forma mais ampla, sobre a sua
vida, seu contexto familiar, memórias sobre sua infância e aos poucos fui afunilando
para questões centrais, o ensino rural, provocando e estimulando lembranças sobre
sua relação com o contexto escolar.
No entanto, é muito comum na HO que, durante a entrevista, os seus sujeitos
tomem direção oposta àquilo que você perguntou. É importante não interromper a
sua fala, nem mesmo desconsiderá-los. Você precisa entender primeiramente o
porquê o narrador talvez esteja se portando desse modo. É possível que ele talvez não
tenha entendido a sua pergunta ou, propositivamente interponha outros assuntos
distintos daquilo você havia questionado como forma de fuga, porque há alguns
assuntos ou fatos que o narrador prefere silenciar ou guardar no esquecimento. Devo
então, ter a sensibilidade em compreender de que alguns assuntos podem ser
interessantes ao pesquisador, mas não ao narrador. O mais importante é deixar
algumas coisas guardadas em sigilo, intocadas pela memória, pois não são marcas
importantes para a sua vida. Na dúvida, por algumas vezes, tomei a decisão de
refazer alguns questionamentos em que não havia tido a resposta coerente com a
pergunta, num outro momento, a fim de não transparecer que estava sendo incisivo
com alguns aspectos ou querendo induzir ou forçar respostas.
Com a Lídia Parmegiani, concluí que em algumas vezes as perguntas ela não
havia realmente compreendido aquilo que havia sido pedido, circunstância muito
natural e compreensiva para uma senhora de 109 anos de idade. Outras, no entanto,
percebi que ela realmente não fazia questão de rememorar, pois trazia pausas e
silenciamentos, seguido por uma narrativa posterior de queixas e sofrimentos sobre
alguns aspectos da sua vida escolar. É muito perceptível durante as entrevistas a
relação de intimidade que o narrador estabelece consigo mesmo e sua memória. As
pausas, as reflexões silenciosas, as lágrimas, os suspiros seguidos da verbalização
daquilo que está sendo rememorado, devem ser respeitados e conduzidos com a
devida “importância de estar atento aos mínimos detalhes durante as entrevistas e de
não abrir mão de registros escritos que enriquecem as análises”(GRAZZIOTIN,
ALMEIDA, 2012, p. 39). Percebi que essas circunstâncias ocorridas na entrevista
com Lídia eram permeadas de narrativas que não faziam questão de ser recordadas,
pois eram recorrentes expressões como:
Nem é bom falar sobre isso! A gente queria ir para a escola aprender e
ela colocava a gente de castigo. A gente ia para a escola com dores
porque não se tinha calçado e roupa para vestir, espinho nos pés, pisava
no gelo no inverno, fazia foguinho na estrada para esquentar os pés e
ainda tinha que decorar tudo o que ela ensinava[...] Às vezes se sentia
faceira, quando acertava, quando que parecia que se sabia. Mas se
parecia que não sabia e não decorava, meu Deus, quanta tristeza e
castigos daquela mulher.(PARMEGIANI, 2016).
Frente a isso, tenho compreendido que o exercício de fazer memória para
cada sujeito é diferente. O ato de memorizar pode representar para alguns uma tarefa
fácil, e para outros, uma atividade de sacrifício. Para Lídia, mesmo no auge dos seus
cento e nove anos, as dificuldades encontradas para memorização estavam associadas
às questões de vulnerabilidade social em que viveu na sua época e ao sistema rígido
de aprendizagem adotado pela sua professora, legitimado pelos seus pais e por toda
a comunidade rural.
Portanto, durante a entrevista, embora se tenha um roteiro pré-estabelecido, o
fluxo das narrativas acontece, muitas vezes, de forma imprevista, tomando direção e
caminhos diferentes daquele que havíamos traçado pois, “em cada entrevista, o
primeiro encontro é quase um momento de catarse, e [...] muitas vezes, podem não
coincidir os objetivos do entrevistado com o entrevistador. [...] quem decide o que
falar e o que calar é o entrevistado. ” (GRAZZIOTIN, ALMEIDA, 2012, p. 38).
Errante (2000) ratifica essa realidade ao dizer que “os narradores não somente
escolhem o que vão rememorar e contara você; eles também participam negociando
o contexto da rememoração” (ERRANTE, 00, p. 150).
Dialogando com o texto
Depois de realizada a entrevista, dá-se início então ao processo de transcrição,
análise e uso das narrativas que passam a ser tratadas como documentos.
Como mencionei, a entrevista com Lídia teve a necessidade ser ajustada à
língua em que ela era habituada a falar. Portanto, ela foi iniciada em português e
concluída no dialeto italiano. Isso exigiu de mim, um movimento de mais atenção e
trabalho no processo de transcrição das suas narrativas. As implicâncias frente ao
contexto da entrevista, também revelam um rosto sobre o texto que emerge.
Ocorre que algumas perguntas foram feitas por mim tanto no português,
quanto no dialeto. Outras necessitaram durante a entrevista da interferência da
tradução da filha ou do ministro da eucaristia na tradução daquilo que estava falando,
de modo que ela pudesse entender melhor. Contudo, durante a transcrição, essas
questões mereceram um grande cuidado. Encontrei dificuldades em traduzir ou até
mesmo de compreender algumas palavras usadas pela minha narradora. Prezando
pelo rigor científico da transcrição, evitando os “achismos” diante das dúvidas,
precisei revisar muitos áudios recorrendo ao auxílio do ministro da eucaristia que
havia me acompanhado no dia da entrevista, pois além dele ter testemunhado e
participado da entrevista, tinha domínio completo da língua em questão.
Outro exercício de aprendizado e amadurecimento aconteceu à medida que eu
podia me ouvir durante as transcrições, enquanto interlocutor da entrevista. Nela, era
possível ver minhas potencialidades como também minhas fraquezas e erros a serem
superados enquanto pesquisador. Confesso que fazer o exercício de ouvir a si
mesmo, não é algo tão prazeroso. Causa estranheza! Quando fiz a entrevista com
Lídia, já havia realizado e feito a transcrição de algumas outras. Talvez, nessa altura
,já tivesse alcançado uma grau de maturidade um pouco superior em relação às
demais. Uma das principais críticas que fazia sobre minha postura de entrevistador é
que por vezes, ouvia mais a minha voz do que do entrevistado, me delongava demais
em contextualizações. Fazia muitas interferências sobre o narrador, auxiliando-o
quando este pausava a sua fala para encontrara “palavra certa” ao formular as suas
ideias. Por vezes, também percebia que o narrador não havia concluído todo o seu
raciocínio e as brechas do diálogo eram aproveitadas por mim para interpelar outras
questões. Isso me causava indignação! Contudo, aos poucos, fui aprendendo aquilo
que Errante considerava ser tão caro na metodologia de conduzir uma entrevista na
HO, em que
Eu queria que minha voz fosse minimamente ouvida durante o evento da
história oral, e minha abordagem era fazer as mínimas perguntas
possíveis que solicitassem a informação que eu estava procurando. Eu
estava interessada em como os narradores organizavam suas
experiências e, por isso, eu lhes permitia4 falar tanto quanto quisessem
sobre algo que eles queriam lembrar, mesmo quando isso não parecia
particularmente relevante para o meu estudo.(ERRANTE, 00, p. 149)
Após ter feito a transcrição das narrativas e a família ter assinado o termo de
consentimento, iniciei a categoria de análise em que, a partir daquilo que emergiu
como aspectos fortes da narrativa, foram devidamente categorizados.
Os resultados desse texto que emergiu na HO e foram cotejados com outras
empirias, dialogando com o objeto de estudo da pesquisa, precisou ser passível de
análise e de crítica, caso contrário, não seria perceptível a postura investigativa do
narrador. Segundo Burke, “[...] os historiadores culturais têm de praticar a crítica das
fontes, questionando como um determinado texto ou imagem veio a existir, e se, por
exemplo, seu propósito era convencer o público a realizar alguma ação” (BURKE,
2008, p. 33).
Enfim, compreendo que minha imersão às fontes, aos textos narrados e
coletados, puderam revelar ao longo do percurso investigativo, respostas tanto
singulares como plurais, inéditas ou não, óbvias ou inesperadas, pois “práticas
sociais podem valer como discursos, silêncios falam, ausências revelam presenças,
coisas portam mensagens, imagens de segundo plano revelam funções, canções e
músicas revelam sentimentos” (PESAVENTO, 2012, p. 71). Enfim, o processo de
análise do corpus documental da pesquisa, sobre o ensino rural do Vale dos
Vinhedos, requereu de mim enquanto pesquisador uma postura tanto de aproximação
como de distanciamento, a fim de que não houvesse interpretações descabidas ou
conclusões equivocadas, garantindo um esforço atento e cuidadoso no rigor científico
da narrativa na História Oral. Desse movimento, a construção e o diálogo com os
textos produzidos e apresentados na pesquisa, sempre estiveram atentos com aquilo
que Le Goff (1996) tanto nos alertava, enquanto historiadores, sobre o modo como
devemos nos apropriar e interpretar os documentos, alertando-nos que “nenhum
documento é inocente. Deve ser analisado. Todo documento é um monumento que
deve ser des-estruturado, des-montado” (Le Goff, 1996, p. 110).Desse modo, finalizo
apontando que os textos aos quais produzimos ou que temos contato na produção da
nossa pesquisa, devem ser considerados que:
o trabalho do historiador não é o de juntar documentos e escrever a
partir deles a História. Todos os documentos que nos chegam do passado
são plenos de relações, de jogos de sentido e significação, construídos e
preservados no tempo para as gerações futuras. Memórias fragmentadas
de um tempo que não conseguiremos jamais tomá-lo em sua totalidade.
(LUCHESE, 2014, p. 149).
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RELATO ORAL:
PARMEGIANI, Lidia Zaffari. Entrevista. Bento Gonçalves, 2016. Entrevista
concedida a Gleison Olivo.