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Tese de doutorado
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ANA MARIA SAID
IWIIIIIIIII 1150069514 ,f~r;., FE .,., .. r
T/UNICAMP Sa21e
A ESTRATGIA E O CONCEITO DE DEMOCRACIA EM GRAMSCI E O PCB
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO
2006
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO
TESE DE DOUTORADO
A estratgia e o conceito de democracia em GRAMSCI e o PCB
Autora: Ana Maria Said Orientadora: Profa. Ora. Patrizia Piozzi
Este exemplar corresponde redao final da Tese defendida por Ana Maria Said e aprovada pela Comisso Julgadora. Data: 06/04/2006
Orientadora
COMISSO JULGADORA ' v; ~~.
~ " i 1
2006
.
'
by Ana Maria Said, 2006.
I EXncc;;,--'OMBO BCI':.Si'J 'ROc.lli. ~ci2~ :
AGRADECIMENTOS
Profa. Dra. Patrizia Piozzi, minha orientadora e amiga, pela leitura atenta, pelo rigor.
por tudo que aprendi com a mestra, o que me permitiu, finalmente, terminar essa tese.
Ao Prof. Dr. Geraldo Di Giovanni, que me viabilizou retomar o doutorado, me
incentivando e possibilitando novas perspectivas.
Ao Pro f. Dr. Joo Carlos Quartim de Moraes, que me seguiu por um periodo.
Ao Prof. Dr. Giuseppe Vacca, meu orientador no Instituto Gramsci, e a todos os
funcionrios desse Instituto, que me facilitaram a pesquisa em Roma
Ao Prof. Dr. Derrneval Saviani e ao Prof. Dr. Pedro Goergen, pelas sugestes na
~ qualificao, fundamentais para que eu finalizasse o trabalho. Tambm pelas aulas na ps-i),
t. graduao, que me ensinaram o caminho acadmico e a preocupao com o rigor
metodolgico.
Agradeo ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Uberlndia e
Capes (inclusive pela bolsa sanduche na Itlia), que me possibilitaram o aprofundamento na
pesquisa e o doutorado.
Ao Prof. Dr. Marcos Del Roio e ao Prof. Dr. Paulo R. R. Cunha pela leitura, sugestes,
informaes preciosas que me aJudaram muito na anlise e elaborao do texto.
Ao Prof. Dr. Marcos Senda, Prof. Dr. Alexandre Guimares Tadeu de Soares e Prof.
Dr. Simeo Donizeti Sass. que me deram suporte material e emocional para o trabalho.
Ao Prof. Dr. Bento Itamar Borges pelas correes.
Sandra Mara Bertolucci e ao Ciro Amaro Fernandes Nascimento, que me
"suportaram"' em todos os sentidos do termo. Sem a ajuda do Ciro. eu no teria conseguido.
A todos os meus amigos queridos que me incentivaram. ajudaram, estimularam,
criticaram, ajudaram com o texto, com o computador, minha maiOr dificuldade.
Principalmente Adriana. Ana Lcia, Beth, Betina, Bianca, Clea, Elise, ao
Gutemberg, Ilce, ao Paulo, Socorro, ao Vilar, ao Victor, entre outros, que tiveram um
envolvimento mais direto com o trabalho e com a minha vida.
Aos amigos italianos que cuidaram de mim e me fizeram sentir-me em casa, auxiliando
em todas as dificuldades: Alessandra, Marcos e Paulo.
Ao Prof. Dr. Althen Teixeira Filho, pelo apoio incondicional e pela amizade.
Ao Dr. Eduardo Costa, pela competncia profissional e pela humanidade.
Tambm agradeo ao Prof. Dr. Arquimedes D. Ciloni, pela amizade, pelo apolO e
incentivo.
Non c' nella storia, nella vita sociale, niente di fisso, di irrigidito, di definitivo. E non ci sar mai. Nuove verit accrescono il patrimonio della sapienza, nuovi bisogni, sempre superiore, vengono suscitati dalle condizioni nuove di vita. nuove curiosit intellettuali e morali pungono lo spirito ... (Gramsci, La Citt Futura, 1982, p.671-672)
vn
RESUMO
Pretendemos nesse trabalho resgatar a atualidade e o marxismo de Antonio Gramsci.
a coerncia de anlise, mesmo nos fragmentos dos seus ''Cadernos", a constncia dos temas
retomados em um contexto lllitrio profundo. Pode faltar em seus textos a fmma sistemtica.
mas no o fio condutor das anlises empreendidas. Suas anlises sobre o processo histrico
no perdem nunca a perspectiva da efetiva conquista da liberdade. contra qualquer
mistificao do socialismo, criticado por ele como economismo, detenninisrno cego e
mecnico, retomando concepo crtica de Antonio Labriola sobre o positivismo marxista.
Sua preocupao com a vida real de um povo, seu humanismo tem a perspectiva da classe
operria, seu mtodo o de Marx na Contribuio para a crtica da economia poltica: ''o
concreto concreto por ser a sntese de mltiplas determinaes, logo, unidade da
diversidade'', isto , a 'anlise concreta" de "situaes concretas", o apropriar-se do contedo
concreto, transformando-o em pensamento.
Uma parcela da chamada esquerda brasileira influenciada por esta interpretao de
Gramsci utilizando-se de suas categorias para interpretar a realidade brasileira, conceitos esses
que sofreram interpretaes diversas, desviando-se muitas vezes da formulao gramsciana.
Carlos Nelson Coutinho o principal divulgador e tradutor das obras gramscianas em
nosso pas. Havia tambm um grupo de renovadores no PCB, os chamados gramscistas, no
incio da dcada de 1980, que traduzem Gramsci e se utilizam de seus conceitos para analisar
a realidade brasileira e propor uma "nova" estratgia para o Partido.
O marxismo brasileiro rompia com o stalinismo no campo filosfico e na sociologia
da cultura, mas no no campo poltico. Por outro lado, com o incio da dcada de 1980, o
gramscismo no Brasil tem como interpretao a orientao do PC italiano, defendendo a
democracia como estratgia e analisando~a como um valor universal, conforme orientao de
Enrico Berlinguer, chefe do partido italiano.
Estudaremos o debate que ocorre em 1980 no mterior do PCB, discutindo estratgia e
democracia. o que faremos para avaliar uma questo de prxis ainda fundamental para a
esquerda brasileira. o conceito de democracia e revoluo gramsciano. que tambm a
questo central para a esquerda contempornea. Principalmente, pretendemos entender o
debate que toma corpo no final da dcada de 1970 e que se desenvolve com as Teses para um
debate nacional de comunistas pela legalidade do Partido Comunista Brasileiro, em 1980, no
Jornal Voz da Unidade no qual se desenvolve a discusso sobre a "nova" concepo de
revoluo para o PCB.
Para essa anlise, fundamental retornar ao marxismo de Gramsci e sua obra, e
retomar conceitos bsicos de sua estratgia para a revoluo omunista.
ABSTRACT
We intend in this work to rescue the current time and the Marxism of Antonio
Gramsci, the coherence o f analysis, even in the fragments o f his "Notebooks", the constancy
of subjects re-taken in a deep unitary context. His texts can have a lack o f systematic form, but
no lack of the conducting wire of the analyses undertaken. Ris analyses about the historie
process do never loose the perspective of the effective conquest of liberty, against any
mystification of the socialism, criticized by him as economism, blind and mechanical
determinism, retuming him to the criticai conception of Antonio Labriola about the Marxist
positivism. His concem is the reallife o f the people. His humanism has the perspective o f the
labor class. Ris method is Marx's as in the Contribution to a critic of the political economy:
"the concrete is concrete by being the synthesis of multiple determinations, then, unity of
diversity", i.e., the "concrete analysis" of "concrete situations", the appropriation of the
concrete content, transforming it into thought.
A parcel of the called Brazilian left is influenced by this interpretation of Gramsci
and makes use of his concepts to interpret the Brazilian reality. Concepts that suffered
different interpretations, being many times deviated from the Gramscian formulation.
Carlos Nelson Coutinho is the main diffuser and translator o f the Gramscian work in
our country. There was also a group of renovators in the PCB, the called gramscists, in the
beginning of the eighties, who translates Gramsci and makes use o f his concepts to analyze the
Brazilian reality and propose a "new'- strategy to the party.
The Brazilian Marxism broke with the Stalinism in the philosophic field and in the
sociology o f culture, but not in the poli ti cal field. By the other si de, in the beginning of the
eighties, the Gramscism in Brazil has as interpretation the orientation of the Italian PC,
defending the democracy as strategy and analyzing it as an universal value, according to the
orientation o f Enrico Berlinguer, chief o f the Italian party.
\V e will study the debate that occurs in 1980 in the interior of PCB, \Vill discuss
strategy and democracy and what we will do to evaluate this question of praxis still
fundamental to the Brazilian left, the concept o f Gramscian democracy and revolution, which
is also a central question to the contemporary left. Mainly, we mtend to understand the debate
that takes body in the final decade ofthe seventies and which is developed with the Teses para
um debate nacional de comunistas pela legalidade do Partido Comunista Brasileiro (Theses
for a national debate of communists for the legality of the Brazilian Communist Party), in
1980, on tbe newspaper Voz da Unidade with the "new" conception o f revolution for the PCB.
For this analysis, fundamental isto retum to the Marxism of Gramsci and to his work,
and to return to the basic concepts o f his strategy to the communist revolution.
Ao meu amigo Moacir Bortolozzo (in memorian) pelo incentivo intelectual e pelo afeto da vida inteira. A Antonio A. Santucci (in memorian), que no pde ver a concluso do que acompanhou por longo tempo, porque eu levei tempo demais e porque ele partiu cedo demais. r;ninha me, que no viu a concluso como dizia que no veria, mas a quem eu dedico este trabalho, a ela e a meu pai, porque sem eles eu no teria feito o que fiz e no seria o que sou. Aos meus alunos, que foram sempre a escolha da minha vida. Para o Eurico, que meu elo com o futuro.
XIII
SUMRIO
INTRODUO .. . ....... . .. ... .... ..... .. 1 1 A TRAJETRIA DO PENSAMENTO DE GRAMSCI: ITLIA- BRASIL . .. 9
1.1 GRAMSCI E A NOVA ESTRATGIA PARA O OCIDENTE. . ..... 9 1.2 A TRAJETRIA DO PENSAMENTO DE GRAMSCI NA ITLIA.. 15 1.3 A PUBLICAO DAS CARTAS DO CRCERE 23 1.4 A PUBLICAO DOS CADERNOS E A ESTRATGIA TOGLIA TTIANA. . 26 1.5 U:MA NOVA LEITURA DE GRAMSCI . 29
I 6 A PUBLICAO E UTILIZAO DA OBRA GRAMSCIANA NA AMRICA LATINA.. 31 1.7 A PUBLICAO DA OBRA DE GRAMSCI ESPECIFICAMENTE NO BRASIL.. 44
2 USOS DAS CATEGORIAS POLTICAS DE GRAMSCI. . .......... .49 2.1 USO DAS CATEGORJAS GRAMSCIANAS NO BRASIL E O PCB .. .. 49
2.2 ELEMENTOS TERICOS DO PENSAMENTO DE GRAMSCI .. . 54 2.3 HEGEMONIA E DEMOCRACIA ..
2.4 A NOVA ESTRATGIA .. 2.5 O CONCEITO GRAMSCIANO DE HEGEMONIA .....
3 A ESTRATGIA PARA O OCIDENTE ..... 3.1 SOBRE O CONCEITO GRAMSCIANO DE GUERRA DE POSIO .. 3.2 A REFORMA INTELECTUAL E MORAL..
3.3 GRUPO SOCIAL E PARTIDO EM.GRAMSCI ..
3.4 O PARTIDO ...
4 GRAMSCI E O PCB. 4.1 O PCB EA RENOVAO .. 4.2 O DEBATE DE VOZ DA UN1DADE EM 1980, 1981 E INCIO DE 1982. 4.3 A POLTICA DO PCB A PARTIR DE 1980 ...
5 A DEMOCRACIA COMO VALOR UNIVERSAL . 5.1 A DEMOCRACIA COMO VALOR UNIVERSAL- O DEBATE NO PCB ..
5.2 A DEMOCRACIA COMO VALOR UNIVERSAL: O livro de Carlos Nelson Coutinho ..
5.3 GRAMSCI E NS: Segundo capitulo .. 5.4 GRAMSCI, CULTURA E DEMOCRACIA NO BRASIL: Terceiro captulo .
5.5 SOBRE A PROPOSTA DE "RENOVAO" NO PCB .. 6 CONSIDERAES FINAIS .. 7 REFERNCIA BIBLIOGRFICA ..
61
. 68 . .. 69
73 .. 73
81
87 . ..... 92
99 . ..... 99
. .. 104
109
... 129 . ... 129
. 131
.. 137
. ....... 140
. ... 144
149 .. 157
INTRODUO
Pretendemos nesse trabalho resgatar a atualidade e o marxismo de Antonio Gramsci,
a coerncia de anlise, mesmo nos fragmentos dos seus "Cadernos", a constncia dos temas
retomados em um contexto unitrio profundo. Pode faltar em seus textos a forma sistemtica.
mas no o fio condutor das anlises empreendidas. Suas anlises sobre o processo histrico
no perdem nunca a perspectiva da efetiva conquista da liberdade, contra qualquer
mistificao do socialismo.- criticado por ele como economismo, determinismo cego e
mecnico, retomando concepo crtica de Antonio Labriola sobre o positivismo marxista.
Sua preocupao com a vida real de um povo, seu humanismo tem a perspectiva da classe
operria, seu mtodo o de Marx na Contribuio para a crtica da economia politica: "o
concreto concreto por ser a sntese de mltiplas determinaes, logo, unidade da
diversidade'', isto , a ''anlise concreta" de "situaes concretas'', o apropriar-se do contedo
concreto, transformando-o em pensamento.
Antonio Gramsci morre em 1937, e examrnar o seu diagnstico do capitalismo
avanado e sua estratgia, recuperando um momento crucial de influncia do seu partido, o
Partido Comunista Italiano (PCI), sobre parte da esquerda brasileira e do Partido Comunista
Brasileiro na dcada de 1980, permite participar de um debate importante sobre o pensamento
marxista no Brasil, com reflexos na atualidade. As categorias por ele formuladas no incio do
sculo XX ajudam a compreender os problemas e contradies atuantes no incio desse sculo
XXI, no qual vivemos mudanas estruturais na maneira de produzir e na "formao" do
indivduo na sociedade de massas.
Gramsci compartilha com Marx a noo de que o desenvolvimento do capitalismo
levaria mexoravelmente ao aprofundamento da contradio entre foras produtivas e relaes
de produo. Tambm apreende em Marx que caberia ao movimento socialista a luta para a
superao do sistema capitalista, abolindo o trabalho alienado, associado propriedade
privada dos mews de produo, e abrindo espao ao livre desenvolvimento das
individualidades.
Para Marx, a incumbncia histrica do capital foi cumprida pelo desenvolvimento das
foras produtivas do trabalho. Segundo ele, em sua aspirao incessante pela forma universal
da riqueza, o capital impulsiona o trabalho para alm dos limites de sua submisso natureza.
Com o capitalismo, o trabalho pode deixar de se apresentar como trabalho, e se colocar como
desenvolvimento pleno da atividade mesma, produzida historicamente, e substituindo a labuta
determinada pela necessidade exterior., mas no o que se d com o desenvolvimento
capitalista no incio do sculo XX.
Gramsci percebe que o desenvolvimento histrico das foras produtivas no
capitalismo nas primeiras dcadas do sculo XX significou um grande impacto sobre a ao
poltica da classe operria, desarticulando os seus movimentos e tirando-lhes a capacidade
revolucionria. Em Americanismo e fordismo mostra que a racionalizao e modernizao do
processo produtivo se dava como "revoluo passiva", o que era para ele a vitria do capital,
aprofundando a contradio entre desenvolvimento das fora produtivas e relaes sociais de
produo. Marx j previa que pudesse acontecer um acirramento da dominao burguesa com
o aperfeioamento da maquinaria na grande inds.tria, se no se subvertesse a ordem do
sistema capitalista. com o comunismo (Marx, 1980, Cap. XIII, item 4). Essa mudana no se
3 dava significando liberdade para o homem, mas como transformao do homem em
"apndice" da mquina.
Gramsci, como diretor de um jornal socialista primeiramente e, depois, como chefe
de um partido comunista, tenta pensar em uma revoluo que promova a superao do
trabalho alienado no capitalismo avanado, como definia o capitalismo nas primeiras dcadas
do sculo passado, refletindo sobre os motivos das derrotas sofridas pelo movimento operrio
nas tentativas de sublevao empreendidas por ele na Europa ocidental. Com a linha de
montagem, isto , com o fordismo, o sonho de deixar o trabalho para a mquina esvanece. A
mecanizao no ocorre deixando o operrio livre para vigiar a ao transmitida pela mquina
matrias primas, acabando com o trabalho alienado, e somente proteg-las de problemas
tcnicos. A "aplicao tecnolgica da cincia" que deveria dominar o conjunto do processo de
produo, que seria social, no se concretiza.
A luta para abolir o trabalho alienado e abrir a possibilidade para a livre
individualidade, caberia ao movimento socialista, superando o regime do capitaL, mas com o
americanismo, a linha de montagem toma-se apenas um desenvolvimento ulterior da fase da
grande indstria, e essa no se toma a superao do trabalho, mas urna escravizao do
homem pela mquina, como previa Marx. Os movimentos socialistas no levam a cabo as
transfonnaes necessrias, e as tentativas da revoluo operria no mundo ocidental, no se
concretizam.
o que leva Gramsci a pensar nos Cadernos, uma nova estratgia para que o desenvolvimento das foras produtivas no continue em contradio com as relaes sociais
de produo.
A automao de base microeletrnica que caracteriza o mundo da produo atuaL
seria o que \1arx preconizava como "aplicao tecnolgica da cincia', mas como ele previa
isso, no significa necessariamente que a produo finalmente tenha um contedo sociaL
deixando de ser o esforo do homem como simples fora de trabalho naturaL tomando-se
atividade do sujeito que regula todas as foras da natureza no seio do processo de produo. o
que se daria somente com o socialismo.
Gramsci, ao pensar o fordismo, mostra que esse processo se d como recomposio
do capital em que as possibilidades materiais de transformao do mundo capitalista em
socialista so utilizadas com reformas de cima para baixo, mantendo a dominao, redundando
em retrocesso para o homem, com um esvaziamento ainda maior da atividade propriamente
humana. nesse sentido que a estratgia poltica a forma de levar a cabo a resoluo da
contradio inerente ao capitalismo, pensa Gramsci, transformando as relaes sociais de
produo a partir da possibilidade material do fim do trabalho "natural". Sua estratgia, a
guerra de posro. teria tambm, alm da luta pela conquista da sociedade poltica, uma
reforma intelectual e moral que prepararia e desenvolveria esse novo mundo humano da
individualidade livre. Essa refonna se refere s formas ideolgicas fundamentais para a
compreenso da crise orgnica do sistema e, tambm, s mudanas no campo material que
levaria transformaes estrunrrais e superestnrturais, at a sua concretizao. em
comurusmo.
Isso permite pensar, com Grarnsci, as derrotas dos movimentos operriOs de seu
tempo e serve de bssola para compreender o abandono. por parte dos partidos dessa classe,
da perspectiva da revoluo como fim da contradio entre foras produtivas e relaes de
produo. como fim do trabalho alienado, como fim do regime capitalista. Esse o norte do
5 marxista Antonio Gramsci, sua atualidade, no sentido de que seu pensamento prope uma
estratgia que no perca de vista a direo na luta contra o capitalismo. Mesmo no mundo da
automao plena, que tem a capacidade de eliminar inteiramente o trabalho humano, mas sem
desenvolver plenamente o mundo humano, no podemos perder de vista a anlise do mundo
real dos homens e a luta para que ele seja o reino da liberdade. Ou colocar a possibilidade de
sua destruio, da barbrie, se no conseguirmos o fim do sistema capitalista.
essa perspectiva que serve de base nossa inteno de analisar um partido
comunista, o PCB, em um momento de debate sobre estratgia. O propsito de nosso estudo
consiste em analisar como o iderio de Gramsci influenciou a postura poltica de parte da
esquerda contempornea brasileira na dcada de 1980. Dispusemo-nos a enfrentar essa tarefa
ancorando-nos em Palmito Togliatti, Valentino Gerratana, Giuseppe Vacca, Nicola Badaloni,
Luciano Gruppi, Guido Liguori, Dario Ragazzini, Antonio A. Santucci, entre outros, que, na
Itlia, resgataram e interpretaram a obra gramsciana com o intuito, alm de divulg-la, de
utiliz-la politicamente como cnone para compreenderem com mais lucidez a realidade
italiana e tambm a internacional.
Devemos ressaltar ainda que durante um ano permanecemos em Roma, onde nos foi
possvel pesquisar o material terico e histrico disponvel no Instituto Gramsci, alm do
debate em torno de sua obra e das vrias interpretaes que sofreu ao ser utilizada.
Acompanhamos, tambm, o debate do jornal Voz da Unidade, no arquivo Edgard Leuenroth,
na Universidade Estadual de Campinas~ SP.
No Brasil, foram referncias para o nosso trabalho intelectuais como Dermeval
Saviani, Edmundo Fernandes Dias, Lincoln Secco, Marcos Del Roio, Ruy Braga, Paolo
Nosella. entre outros, que recuperam o referencial conceitual da obra gramsciana contra o
abandono da perspectiva revolucionria que sofreu.
Grarnsci comeou a ser estudado no Brasil na dcada de 1960, durante o perodo da
ditadura militar, acentuadamente marcado por forte represso poltica e intelectual. Assim
sendo, interpretar o debate que tomou corpo com a utilizao de seu referencial terico por
uma parcela significativa e atuante da esquerda brasileira, pode ser uma das vias para
compreender o conceito de democracia que perpassava a discusso poltica internacional sobre
os rumos da luta contra o capitalismo nesse perodo tumultuado de nossa histria.
No por acaso, nesse perodo, surgiram inmeras publicaes sobre o tema
Democracia em Gramsci, na esquerda contempornea, a partir da publicao da edio crtica
dos Cadernos, por Valentino Gerratana, em 1975, com anlises que reafirmavam os conceitos
fundamentais de Gramsci no contexto de seu pensamento.
Notamos, na dcada de 1980, um renovado interesse pelo pensador italiano, no
apenas na Amrica Latina (e Brasil, que nos interessa de perto), mas tambm no Japo, no
Leste europeu, na Europa (Itlia sobretudo), ao mesmo tempo em que proliferaram anlises
do debate do Partido Comunista Italiano pensando novas estratgias para os partidos
comunistas a partir da obra do filsofo. Pesquisar a apropriao de Gramsci no debate dos
partidos comunistas sobre democracia, tem por objetivo recuperar o debate em torno do
projeto estratgico para a esquerda, assim como a distino entre democracia burguesa e
operna.
Ao recuperarmos conceitos gramscianos fundamentais, pretendemos ressaltar uma
questo central para a esquerda contempornea, que o conceito de Revoluo e sua relao
com a democracia. A leitura dos Cadernos do crcere, em sua edio crtica, favorece a
7 compreenso do n central do pensamento gramsCiano, fundamental para a anlise do
desenvolvimento do marxismo e principalmente de sua refundao depois da derrota da
revoluo socialista no Ocidente, possibilitando apontar para uma questo fulcral a ser
considerada contemporaneamente, ou seja. a operacionalidade do conceito marxista de
revoluo com sua viso da subjetividade scio-poltica. Em suas anlises, no passaram
desapercebidas as contradies do capitalismo avanado e a necessidade de uma nova
estratgia revolucionria para superar as "revolues passivas" que mantm a classe burguesa
como classe hegemnica no mundo contemporneo. Para isso, necessrio seria romper com o
reformismo e com o imperialismo, refundando a prxis revolucionria. O Partido da classe
trabalhadora, e uma estratgia que possibilite avanos no entendimento das novas conjunturas
do capitalismo avanado e de sua complexidade, so fundamentais. Sem organizao e direo
na luta hegemnica, inclusive cultural, no se chega revoluo e s conquistas na "guerra de
posies" para o enfrentamento das "revolues passivas", que so a continuidade do mundo
burgus. As reformas intelectual e moral so centrais para a transformao cultural que
organizar e manter a nova cultura e o novo mundo criado pela revoluo.
Ao desenvolver nosso estudo focando essas questes, subdividimo-lo em cmco
captulos, a saber:
No primeiro captulo, apresentaremos a pesquisa realizada sobre a recepo de
Gramsci no Brasil, recuperando para isso a trajetria da obra gramsciana na Itlia e na
Amrica Latina. Analisaremos, tambm, como Togliatti "salvou" os Cadernos e a obra para o
mundo e corno props uma via para o socialismo baseada na sua interpretao, preparando e
organizando as edies publicadas por temas. Estudaremos a importncia da trajetria
gramsciana na Itlia para compreendermos sua r~ecepo e influncia na esquerda e no
pensamento de esquerda latino-americano e brasileiro.
Nos captulos dois e trs, resgataremos os conceitos fundamentais gramscianos e a
sua estratgia poltica. para compreender seus usos no Brasil, ou seJa, como o grupo de
esquerda que era chamado "gramsciano" ou "gramscista" realizou a leitura das teorias do
pensador italiano, esvaziando-as de sua fora revolucionria e de seus pressupostos bsicos,
criando-se o Gramsci mais adaptado a uma poltica que se pretende implantar,
"instrumentalizando-o.,.
No captulo quatro firmamo-nos no debate efetivado pelo Partido Comunista
Brasileiro (PCB), no final da dcada de 1970 e in:!cio de 1980 do sculo passado, sobre a
renovao estratgica. Ser utilizado para isso o debate do Jornal Voz da Unidade nos anos
1980-82, promovido pelo mesmo grupo chamado gramsciano, atuante no PCB, e fundador
desse jornal.
Ressaltamos, porm, que o nosso objetivo precpuo interpretar e compreender o
conceito de Revoluo em Gramsci, sobretudo para entender como sua estratgia foi
reinterpretada sob o ponto de vista liberal e como ess.e grupo da esquerda brasileira apropriou-
se da obra de Gramsci de forma poltica, como tentativa de implementar mudanas que do
continuidade postura liberal.
No ltimo captulo procuraremos detalhar o estudo crtico do livro de Carlos Nelson
Coutinho, A democracia como valor universal, resultante de uma tendncia do PCB que cedia
influncia eurocomunista, que, a nosso ver, contribui para repensar os rumos da esquerda na
contemporaneidade.
1 A TRAJETRIA DO PENSAMENTO DE GRAMSCI: ITLIA- BRASIL
''Quer ser universal, fala da sua
aldeia". Tolsto
1.1 GRAMSCI E A NOVA ESTRATGIA PARA O OCIDENTE
Gramsci, no crcere, escreve nas primeiras dcadas do sculo XX, acompanhando as
derrotas do movimento operrio na Europa, com a vitria bolchevista na Unio Sovitica
como contraponto para essa compreenso. A modernizao do processo produtivo,
empreendido pelo fordismo nos EUA. E pelo fascismo na Europa, analisada por ele como
uma "revoluo passiva", isto , a maneira que a classe burguesa encontra para manter-se no
poder, embora tendo que fazer concesses classe trabalhadora. Percebe que uma nova
cultura se desenvolve a partir dessas mudanas, sendo a base para a manuteno do poder da
classe dominante. Mudanas que se efetivam a partir da "criao" de novos hbitos, costumes
e valores para a grande massa de trabalhadores e que conseguem mov-las para adaptar-se a
um novo "modo de viver". Esse controle ideolgico torna-se muito mais efetivo com a
coero exercida pelo fascismo, que consegue movimentar grandes massas passivas em torno
de uma concepo de mundo cimentada ideologicamente, imposta de "cima para baixo", com
um grande poder de convencimento. As anlises empreendidas na priso o impulsionam a
buscar soluo para as derrotas da classe trabalhadora, desenvolvendo uma nova estratgia
para o fundo sistema capitalista e a vitria do operariado.
Sendo assim, o interesse de sua obra pensar em mna revoluo econmica e sociaL
assim como cultural e moral. Para isso, desenvolve uma estratgia que procura constantemente
o consenso das massas, a partir de uma nova concepo de Estado, o que lhe permite pensar
em um processo de revoluo nacional possvel no movimento de libertao operria
internacional.
Com os Conselhos de Fbrica de Turim1, Grarnsci acredita, em um pnmerro
momento, que poderia ter ocorrido a revoluo socialista na Itlia. Os Conselhos senam o
ncleo da sociedade nova e do novo poder operrio. Escreve no Ordine Nuovo:
Existe na Itlia, como institu.Lo da classe oeprria, algo que possa ser comparado ao soviete? Que partilhe da natureza dos sovietes'l Algo que nos autorize a afirmar que o soviete uma forma universal, e no uma instituio
russa e apenas russa? O sov1ete a forma atravs da qual, em toda parte onde
existam proletrios em luta para conquistar a autonomia industrial, a classe operria manifesta essa vontade de se emancipar. O soviete a forma de
autogoverno das massas operrias. Existe um germe, um projeto, um tmido esboo de governo dos sov1etes na Itlia? Em Tunm'~ (Gramsc1. Ordmc Nuovo, 1987)
Responde afirmativamente, que esse rgo o conselho de fbrica, criado em 1904,
enquanto rgo de classe. rgo de auxlio gesto da empresa, e que sero o germe
fundamental do Estado proletrio, quando passa a ter a hegemonia dos prprios trabalhadores,
conforme analisa Gramsci. Seria um elemento fundamental ao aprendizado da democracia
operria, mesmo com o auxlio do grupo do L 'Ordine Nuovo, j que os conselhos eram eleitos
1 Os Conselhos de Fbrica acontecem em Turim, 1920, tendo lnspirao nos sovJetes, miciando na grande greve das "agulhas'" de maro/abril de 1920, com sua plena realizao nas grandes ocupaes de fbnca de agosto/setembro do mesmo ano. O grupo de l'Ordine Nuovo, que tinha Gramsci como seu diretor, estar frente da luta quando os operrios tomam as fbricas de automvel desta cidade, tomando-se seu rgo de liderana. Ficam por nove meses resistindo s tentativas de retomada pelos proprietrios. Representaro para Gran1sci, nas reflexes do crcere, a possibilidade de representarl.'Ill o ncleo da sociedade no v
I! por todos os operrios, em cada seo, em cada fbrica e, a participao deles se d enquanto
produtores. Isso prepararia a classe operria para assumir a direo na produo, para
instrument-los para substituir a burguesia na direo dos negcios. Mostraria assim a
inutilidade das classes dominantes no processo produtivo. 2
Gramsci desenvolveu lentamente a teoria dos conselhos (setembro 1919-1920)
atravs de artigos publicados no l 'Ordine Nuovo, discutindo-os com os operrios, aceitando
crticas, sugestes e observaes que sistematizava e lanava novamente em forma de artigos,
proposies de organizao e luta. Para ele, as massas populares sob a direo do proletariado
que deveriam assumir como conselho a direo administrativa do Estado, ficando a direo
poltico-ideolgica reservada ao partido, articulada a eles.3
Entretanto, aps o fracasso do movimento operrio na Europa Ocidental nas dcadas
de 1920 e 1930, por um lado, e com a rearticulao do capitalismo mediante a racionalizao
da indstria (o americanismot, por outro, Gramsci passa a rever o conceito de revoluo do
sculo XX, luz desses novos acontecimentos, empenhando-se em considerar a situao dos
pases de capitalismo avanado. Para ele, tais pases precisavam de estratgia completamente
diferente daquela utilizada na Rssia, em 1917, porque, atento s ltimas anlises realizadas
por Lnin, pouco antes de sua morte, Gramsci deduziu que essas apontavam para a
necessidade de desenvolver urna estratgia diferenciada para o Ocidente.
2 Cf. Gramsci, L 'Ordine Nuovo, 1987. 3 Cf. Osvaldo Coggiola, Bolchevismo, Gramsci, conselhos in O outro Gramsci, Edmundo Fernandes D1as et al., So Paulo: Xam, 1996. 4 Seria, para ele, a racionalizao da indstria, o que ele chamar de americanismo, que se deu como fordismo nos EUA e como fascismo na Itlia e que, para ele, seria uma Revoluo passiva, isto , de cima para bmxo, concedendo conquistas classe trabalhadora, mas mantendo a hegemonia da classe dominante.
Continua a existir, segundo ele, necessidade de se considerar um momento de ciso.
de rompimento com o mundo capitalista e, sobretudo, a exigncia de um perodo de coero
contra as foras "reacionrias'' da sociedade burguesa, que possibilitaria o desenvolvimento e
a consolidao de urna verdadeira democracia, a socialista, que se contrape liberal.
Outro problema central a ser afrontado pelo partido chefiado por Gramsci sena o
fascismo5 , nas dcadas em que ele desenvolvia sua estratgia. Esse movimento propagava-se
no continente europeu, criando uma situao muito diversa daquela vivida pelo movimento
bolchevique na URSS. Gramsci continua a mover-se sempre, entretanto, de acordo com as
idias da Terceira Internacional, da qual participa, mesmo quando insiste no enfoque da
realidade nacional, contra a orientao do Comintem, principalmente, em 1929 e 1930. Sua
preocupao central aprofundar-se na anlise da realidade italiana, reconhecendo-a muito
diversa daquela da Rssia de 1917, ainda pouco industrializada e com uma sociedade civil
pouco consolidada. A Itlia desenvolvera, no periodo fascista, uma nova sociedade civil
complexa regida por um capitalismo mais desenvolvido, embora guardasse ainda focos de
urna realidade "oriental"6 , que indicava um Estado muito mais coercitivo e uma sociedade
5 Para maior compreenso do pcriodo, consultar, dentre outros, Eva P. Amendola, La nascita dei fascismo -Roma, -Ed. Runiti, 2006; Franzinelli Di Mirnmo, Delato ri, sp.-e e conjidenti anonimi: l 'arma se greta dei regime fascisla- Roma, Mondadori, 2002; Renzo De Felice. Mussoline il duce, gli amli dei consenso (I929-1936j-Roma, Einaucb., 2006 . Em sntese, podemos dizer do fascismo Italiano que ele se inicia em 1922 e termina em 1943, liderado por Benito Mussolini. So suas causas fundamentais o desencanto produzido pelos resultados da guerra. a inconsistncia das relaes capitahstas e a necessidade de consolidar-las por meios ditatoriais, a ameaa ou o fracasso da revoluo proletria, a existncia da ral, o descontentamento e a desiluso da pequena burguesia. Suas caractersticas so: o propsito decidido de consolidar o predomimo do grande capital; o abandono e o menosprezo das instituies democrticas e sua substituio por mtodos puramente ditatoriais, a represso contra o proletariado, destruio das orgruJ.izaes operrias, medidas de extrema vwlncia contra os militru1tes operrios chegando sua destruio fsica, inclusiv~:. supresso das conquistas da classe trabalhadora, estabelecimento de um regime de escravido nas fbricas. etc.; a utilizao, como base do movimento, da pequena burguesia urbana e rural dos elementos da ral, cspealmente os ex oficiais que haviam regressado da frente de batalha, e por ltimo, uma poltica exterior de expans~10 imperialista. 6 Cf. Gramsci, Caderno 13, pgs. 1566-1567 A diferenciao entre Ocidente e Oriente no geogrfica, mas morfolgica, no sentido de que nas sociedades onentais o capitalismo ainda pouco desenvolvido, a sociedade civil praticamente inexiste e, nas ocidentais, o capitalismo .~vanado e as relaes capitalistas desenvolvidas levam a uma complexidade da sociedade civil.
13 civil ainda pouco estruturada e frgil em relao sociedade americana, a qual Grarnsci
aborda no texto Americanismo e fordismo. que analisaremos mais adiante. A partir de tal
compreenso, o filsofo estendeu sua pesquisa ao mundo ocidental que objetivava no s
questionar, mas tambm transformar. Era, porm, o momento da consolidao do fascismo na
Itlia e da chegada de Hitler ao poder, na Alemanha. Havia para esses movimentos, o objetivo
claro de destruir o Partido Comunista, poca o maior do Ocidente. Os acontecimentos
europeus desenhavam o espectro de uma guerra planetria ainda pior que a de 1914-18.
Grarnsci, pensando sobre a possibilidade da revoluo no mundo ocidental, analisa o
que chamou de americanismo, como comprometedor da revoluo socialista no ocidente, e
que, segundo sua concepo, seria uma nova hegemonia burguesa, impondo-se ao mundo
ocidental como uma nova fase histrica, uma revoluo passiva7. A reflexo gramsciana
considera que no haveria a possibilidade de uma revoluo socialista no Ocidente, sem
considerar a questo do controle da direo moral e intelectual na sociedade civil, sem chegar
ao autogovemo e auto gesto do processo produtivo, usando de poder coercitivo contra as
classes antagnicas, como momento intermedirio e passageiro que levaria a um novo bloco
histrico, a wna nova hegemonia das classes trabalhadoras, a um regime profundamente
democrtico. fundado no mundo do trabalho e da cultura socialista, organizado no espao
pblico, atravs dos conselhos de fbrica. assim que sugere a ampliao do conceito de
Estado - sociedade poltica mais sociedade civil -, pensando em uma estratgia para enfrentar
7 Cf Gramsci, principalmente, todo Caderno 15, especialmente pg.l767, e Americanismo efordismo, em que Gramsci se utiliza da leitura da experincia do americanismo luz desse conceito. Revoluo pass1va o que Gramsci define como a no revoluo, isto , em um perodo de crise orgnica, quando seria possvel a revoluo proletria, a classe burguesa reorganiza-se, revoluciona a maneira de produzir, concede conquistas classe operria, direciona wna mudana cultural, que Gramsci chama de reforma intelectual e moral. mas mantm a sua hegemonia, com o consenso das massas como no fordismo, ou com a coero, como no fascismo.
a nova situao que se impe ao movimento operrio, para chegar ao governo e gesto do
processo produtivo.
Para o partido da classe operria desenvolver um programa poltico para a revoluo
socialista no Ocidente da dcada de 1930, era preciso reverter, transformar a situao poltica
desfavorvel para o operariado, lembrando inclusive que sua frente havia o maior empecilho
revoluo em seu pais, o fascismo italiano, contra o qual era preciso lutar. Nesse sentido.
quando Gramsci teoriza o capitalismo avanado e a estratgia da guerra de posies8 para
resolver suas contradies e chegar ao socialismo, e:le pensa em "destruir o velho sistema que
forma o novo em seu seio" (Marx, Prefcio de Para a critica da Economia Poltica, de 1958.
1978) com suas transformaes latentes, e passa a iJO.sistir na necessidade da organizao das
massas para realizar a revoluo. A crise orgnica, que no apenas uma crise do sistema
econmico, atinge tambm o Estado e as superestrunrras e deve levar a um momento de
confronto entre a classe operria e a classe dommmte, quando estiverem desenvolvidas as
condies histricas e o acirramento das contradiies do mundo burgus, a possibilidade
material e superesturural para a tomada do poder pelo operariado. Seria necessria a conquista
da direo hegemnica pela classe operria a fim de conquistar e manter o poder em suas
mos para, consequentemente, aboli-lo.
Assim, o desenvolvimento histrico j criara o organismo que deveria ter o papel do
moderno Prncipe de Maquiavel para as massas, o Pm1ido Poltico, que Gramsci definiu como
''a primeira clula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar
universais e totais'' (Gramsci, 1980, p.6). Nos Cadernos, Gramsci avana na proposio de
s a estratgia que Gramsci elabora para tomar o Estado, que ele definir como sociedade poltica mais sociedade CiviL no capitah.smo avanado, sendo necessrio o domnio mais a direo da sociedade civil.
15 uma nova estratgia, em que a classe operna se colocaria como partido de massa,
revolucionrio, para a conquista da direo e da dominao da sociedade, para implantar o
comunismo, no perdendo de vista a experincia dos conselhos, to bem explicitada no
f 'Ordine Nuovo, nem as derrotas das tentativas de tomada de poder pelo proletariado.
1.2 A TRAJETRIA DO PENSAMENTO DE GRAMSCI NA ITLIA
A trajetria do pensamento de Gramsci na Europa, particularmente na Itlia, nas
primeiras dcadas depois de sua morte, uma linha tortuosa que corre ao sabor de sua relao
com o PCI (Partido Comunista Italiano). No ps-fascismo italiano, com a Nova Repblica,
poca em que o estudo do marxismo retomado com grande interesse filosfico, o eixo
principal dessa retomada, inclusive poltica, a publicao dos Cadernos do crcere, de
Antonio Gramsci. Com a Nova Repblica, inicia-se na Itlia uma fase de hegemonia do PCI,
em todas as reas poltico-culturais, juntamente com a democracia crist9. A influncia do PCI
no alcana o mbito governamental, e a obra gramsciana passa a ser a inspirao para as
atuaes do partido.
Conhecer Gramsci, mesmo para os comunistas, no foi uma tarefa fcil. Por exemplo,
durante a Resistncia na Segunda Guerra, no havia informao sobre sua obra. Apenas um
grupo da velha gerao havia lido A Questo meridional, o ltimo texto escrito por ele antes
do crcere, em 1926, e publicado inacabado em 1930, pelo jornal L 'Stato Operai o.
9 A Democracia crist era um Partido catlico de centro, de bases populares, que conseguiu deter a hegemonia na Itlia a partir da Nova Repblica, at 1993, quando desaparece depois da operao para desmascarar corrupo de seus dirigentes e representantes c envolvimento com a mfia.
Com a publicao de Lettere da! carcere (Cartas do crcere) e Gli intellettuali e
l 'organizzazione de !la cultura (Os intelectuais e a organizao da cultura), a partir de 1948, a
obra grarnsciana ganha certa notoriedade. Sua atividade de pubbcista e dirigente do partido, de
1916 a 1926, passa a ser vista como objeto de estudo somente nas dcadas de 1950 e 1960;
apenas em 1971, foi publicado o ltimo volume de seus escritos, La costmzione del parti to
comunista (A Constrno do Partido Comunista). Embora seja evidente que a obra de
Grarnsci sofra de certo ostracismo na Itlia, entre 1950 e 1960, apresentada como filosfica e
de crtica literria, ela conquistar LUUa posio de grande destaque na vida poltica italiana
dos anos 1970, principalmente com a retomada do estudo de seus textos pelo PCI, depois ele
recuperada como pensamento poltico-estratgico.
Deve-se observar que, em 1938, Togliatti, que foi companheiro de Gramsci no
peridico Ordine Nuovo e tambm fundador do PCI, recebeu os manuscritos do crcere da
cunhada do prisioneiro, Tatiana Schucht, e utilizou o contedo dos Cadernos do crcere para
orientar sua atuao como chefe do PCI. Os textos de Gramsci ainda no estavam publicados,
mas Togliatti tenta solucionar os principais problemas polticos da esquerda italiana do ps-
guerra, utilizando-os como orientao para o partido. O momento posterior morte de
Gramsci e ao fim do fascismo fundamental para Togliatti e para o movimento operrio
italiano. Basta lembrar, para tanto, que a funo d(~ dirigente do PCI requeria de Togliatti,
naquelas circunstncias difceis de retomada ps-fascista e derrota do movimento operrio na
Europa Ocidental do ps-guerraw, o embasamento terico de um chefe poltico, com
experincia nacional e internacional, como a de Gramsci, que teorizou a possibilidade da
!o Trata-se aqm de experincias revolucionrias como na Alemanha, em 1919, na Itlia em 1921. Espanha, 1936. HW1gria, 1956, entre outras.
17 revoluo socialista na priso fascista, tendo como parmetros os caminhos trilhados pelo
socialismo na URSS.
Nos anos 1940, Togliatti, que fora anteriormente muito ligado URSS, distancia-se
da orientao stalinista, embora sem abandon-la por completo. Sua participao na Guerra
Civil Espanhola (1936-1939), na qual estava engajado quando recebeu os manuscritos de
Gramsci, permitiu-lhe, na rdua batalha para implantar o socialismo na Espanha, perceber a
derrota do movimento operrio italiano, compreendendo as fraquezas do movimento operrio
"ocidental", e acompanhar cuidadosamente a discusso de Gramsci sobre o fascismo e sobre
as causas dessa derrota. A guerra Civil Espanhola
internamente, foi uma guerra em que a mobilizao da direita se mostrou
muito mais efetiva que a da esquerda. Terminou em derrota total ( ... ). A Internacional Comunista mobilizara todos os seus fonnidveis talentos em
favor da Repblica espanhola(. .. ). Palmiro Togliatri, lder comunista italiano, era o dirigente de fato do inexperiente Partido Comunista Espanhol e foi um
dos ltimos a escapar do pas em 1939. Tambm este fracassou, e sabia que
estava fracassando, como a URSS, que destacou algumas de suas mais
importantes cabeas militares para servirem na Espanha ( ... ) (Hobsbawm, 1995b, 162).
Togliatti volta Moscou em 1939, depois da derrota na Espanha. a experincia
dessa derrota que, analisada, influenciaria Togliatti em seu retorno Itlia, por volta de 1946,
194 7, frente do PCI, com a tarefa de organizar a classe operria italiana. Pensar com
Gramsci, naquele momento, requeria analisar a possibilidade da revoluo proletria. Convm
lembrar que Gramsci tem como preocupao central em seus escritos do crcere uma
estratgia revolucionria para o Ocidente. Assim, a edio da obra gramsciana parte da
estratgia poltico-cultural de Togliatti. Entre 1947 e 1958, ele publica os livros de Gramsci
para um pblico italiano, tentando uma estratgia poltica precisa: levantar a questo da
necessidade de chegar ao socialismo.
Aps ter voltado para a Itlia, aps sua longa estada em Moscou e sua participao na
guerra civil espanhola, Togliatti encontra um ambiente ideolgico influenciado principalmente
por Benedetto Croce11 intelectual e editor com trnsito livre no regime fascista, a exercer
enorme influncia na Itlia daquele momento.
Togliatti, mesmo em Moscou e na Espanha, acompanhava os rumos da poltica
italiana e tinha conscincia do que acontecia em seu pas. No perodo ps-fascista, aps 1945,
quando a Itlia tentava a reorganizao poltica, de interpretava a situao e buscava a
soluo, diversamente dos companheiros comunistas italianos em luta contra o rei italiano e
contra o governo de Badoglio 12 frente do governo da Itlia naquela poca. Deixava sempre
claro aos companheiros da URSS que acreditava na necessidade de que o PCI estivesse junto
com o governo de coalizo, contra o fascismo e contra a Alemanha. Togliatti pensava ainda
que Badoglio podia fazer um governo nacional prov!lsrio, com todos os partidos. incluindo o
11 Existem muitas biografias do filsofO neo-idealista Benedetto Croce (l866-\952) . Consultar, entre outros, Giovanni Castellano, Benedetro Croce. ilfilosofo, il critico, lo swnco, 2 Ed .. Bari, Laterza & Figli. 2006. Estudou direito em Roma e. de volta a Npoles. depois de estudos histncos e filolgicos, dedicou-se por completo filosofia. Desiludido com os lderes nacionalistas, logo comeou a de:;envolver suas prprias convices polticas, de conteUdo democrtico e liberal. Em 1903 fundou a revista La Critica, na qual publicaria a maioria de seus escritos e resenharia os trabalhos dos intelectuais europeus mais import
19 PCI; somente assim a guerra seria liquidada juntamente com o fascismo e retomar-se-ia o
caminho da liberdade democrtica, sua preocupao maior. 13 Tal posio antecipava o que
posteriormente se chamou svolta di Salerno (redirecionamento de Salerno), em fmais da
dcada de 1940, que seria uma mudana de estratgia do PCI para fazer parte da fora
democrtica do governo ps-fascista.
Togliatti, nos anos 1940, instala-se em Salerno e prepara uma nova conduta para o
PCL Defende a repblica democrtica e parlamentar, recusando, como propunham muitos
lderes do movimento operrio italiano, a possibilidade de uma guerra insurrecional para
instaurar a ordem socialista, argumentando que tal fato poderia repetir o mesmo destino da
Grcia ou Espanha, em finais da dcada de 1930 e incio de 1940, que haviam tentado a
revoluo. Abriram camnho, entretanto, para uma longa e sangrenta guerra civil, terminada
em derrota. Por essa razo, Togliatti analisava que o contexto internacional no permitia
pensar em uma Itlia socialista naquele momento.
Nesse contexto, observava que a lio de Grarnsci na priso era a tentativa de uma
unio de foras democrticas contra o fascismo e para tanto que propunha uma constituinte
que restaurasse a normalidade democrtica na Itlia ps-fascista e a preparasse para uma
revoluo intelectual e moral, ancorada na proposta de uma poltica de massas contra a postura
da maioria dos companheiros de priso. Trombeni, companheiro de Gramsci no PCI e na
priso fascista, explica a posio gramsciana, dizendo que:
ele no podia suportar os 'faciloni' (simplistas) ( ... ) o fascismo no estava certamente a ponto de cair e, nestas condies, Gramsci rebatia aqueles que
13 Cartas inditas de Togliatt a Dimtrov. que se encontram nos arquivos da Fundao Instituto Gramsci: a prime1ra, de 27/07/1943, a segunda, de 30/07/1943. a terceira de 14/l 011943
tinham a Itlia como um imenso barril de plvora ao qual bastava aproximar
um fsforo para faz-lo explodir (Trombetti, 1992).
Gramsci considerava que o fato do PCI no ser, quela poca, um partido de massas.
impossibilitaria a revoluo tal como a concebia.
Togliatti escolhe esse momento de retomo Itlia para a primeira edio dos
Cadernos. A edio temtica, primeira publicao da obra gramsctana organizada por temas,
neutraliza em parte a oposio do pensamento de Gramsci aos cnones do dogmatismo
marxista-leninista, permitindo excluses de trechos que, em ordem cronolgica, no seriam
possveis. Tal estratgia poltico-editorial possibilitava, enfim, que Gramsci fosse conheCido e
discutido, pois driblava a censura comunista que no permitiria que a obra, que se contrapunha
em muitos pontos poltica stalinista, fosse divulgada e conhecida (Vacca, 1991 ).
A partir de 1946, Togliatti precisava se equilibrar entre a censura poltico-cultural da
U.R.S.S., o zdanovismo 14, e a publicao da obra de: Gramsci, em um momento complexo de
reao ao macmtismo 15 , nos EUA. que, alm de ter sido um ataque feroz contra os comunistas
1 ~ O encarregado dessa nova poltica cultural sovitica Andrey Zdanov que.. em 1946, prommcia um discurso sobre a situao internacional e a nova tarefa do panido bolchevique contra o macartismo, depois editado e tomado guia de orientao para os partidos comwlistas. 15 A Guerra Fria tem incio logo aps a Segunda Guerra Mundi;!!, pois os Estados Urdos e a Uro Sovitica vo disputar a hegemonia poltica, econmica e militar no mundo. A definio para a expresso guerra fria de um conflito que acontoxeu apenas no campo ideolgico, no ocorrendo um embate militar declarado e direto entre Estado~. Unidos e URSS. At mesmo porque, estes dois. pases estavam annados com centenas de msseis nucleares. Um conflito annado direto significaria o fundos dms pases e, provavelmente, da vida no planeta Terra. Porm ambos acabaram alimentando conflitos em outros pases como, por exemplo, na Coria e no Vietn. Os EUA lideraram uma forte poltica de combate ao comunismo em seu territrio e no mundo. Usando o cinema, a televiso, os jornais, as propagandas e at mesmo as histrias em quadrinhos, dwlgou uma campanha valorizando o "american way of life" Vrios cidados americanos foram presos ou marginalizados por defenderem idias prximas ao socialismo. O Macartismo, comandado pelo senador republicano Joseph McCarthy, perseguiu muitas pessoas nos EUA. Essa ideologia tambm chegava aos pases aliados dos EUA, como uma fonna de identificar o socialismo com tudo que havia de ruun no planeta. Na URSS no foi diferente, j que o Partido Comunista e seus mtegrantcs perseguiam, prendiam e at matavam todos aqueles que no seguiam as regras estabelecidas pelo govemo. Sair destes pases, por exemplo, era praticamente impossvel. Um sistema de investigao e espionagem foi muito usado de ambos os lados. Enquanto a espionagem norte-amencana cabia aos integrantes da CIA, os funcionrios da KGB faziam ns servios secretos soviticos.
21 em todo o mundo, marcou o incio da guerra fria entre os dois blocos imperialistas- U.R.S.S.
e EUA. O chamado movimento zdanovista ou zdanovismo, nasce na U.R.S.S., em oposio
aos americanos. O zdanovismo era, naquele momento, o responsvel pela ideologia do sistema
comunista na URSS. O objetivo de tal poltica cultural era reprimir a margem de relativa
liberdade que se criou durante a guerra, impondo o realismo socialista, censura cultural que
tenta neutralizar a presso americana sobre os pases aliados, na "guerra'' anti comunista.
nesse sentido que Togliatti tenta, antes de mais nada, canonizar a figura de
Gramsci, como uma forma de proteger o partido das tempestades que explodiam no Comintern
e, principalmente, para difundir a sua obra e as grandes questes apresentadas por ele. De
qualquer modo, no podia se desvencilhar facilmente dos vnculos impostos pelo Cominform
(e sua poltica cultural) ao PCI (Vittoria, 1991). E nada parece indicar que pretendia romper
com a URSS; pelo contrrio, o dirigente selecionou da obra gramsciana elementos de sua
estratgia, esperando equilibrar as relaes com a poltica sovitica. Esse fato, porm, teve
importncia fundamental no modo como e, sobretudo, no momento em que foram publicados
os Cademo/6, isto , dividida em temas que tentavam esconder sua reflexo poltica, e em um
momento preciso em que era necessrio faz-lo conhecido, para implementar urna nova
estratgia poltica para o PCL
As provas de que o processo de publicao foi preparado com muito cuidado e
desvelo so inmeras. Primeiramente, Togliatti insiste em que os manuscritos sejam
vistoriados pelo arquivo do Comintem; tambm pede que nem mesmo os familiares de
16 "No se tem razo para duvidar que a edio temtica dos Cadernos e a mterprewtio que Togliaui divulgou
primeiramente constituissem uma adaptao da obra de Gramsci compalvel ao stalimsmo dos anos de guerra fria." (Vacca, 1991).
'l' A partir dessa nota, todas as tradues so minhas, a no ser que estejam explicitadas.
Gramsci tenham acesso a eles. Assim ele considera:
Os cadernos de Gramsci, que eu estudei quase todos acuradamente, contm
materiais que podem ser utilizados somente depois de uma cuidadosa
elaborao. Sem tal tratamento, o material no pode ser utilizado e, antes,
algumas partes, se fossem utilizadas na forma como se encontram
atualmente, poderiam no ser teis ao partido (Togliatti, appud Vacca, 1992b ).
Giuseppe Fiori, poltico da esquerda italiana e diretor de vrios importantes jornais da
Itlia, critica a posio de Togliatti em livro que analisa a relao Gramsci, Togliatti e Stalin,
afirmando que poltica a principal razo para a demora da publicao das obras gramscianas.
Explicita que:
para no enfurecer a inquisiiio staliniana, Togliatti freia, no amsca, o
desempenho do partido absoluto, ningum se ocupa de Gramsci ( ... ). Dez anos se passaro antes que os Cadernos comecem a ver a luz (Fiori, 1991 ).
Essa uma das possveis interpretaes. No se pode esquecer, porm, a importncia
do esforo de Togliatti na guel7a dei partigiani17 (trata-se da Resistncia e dos problemas do
ps-guerra) que, naqueles anos anteriores publicao dos Cadernos, ocupa grande parte de
seu tempo, juntamente com o problema concreto de censura com o Commform, nem um
pouco desprezvel nesta anlise. Em contrapartida, no se pode deixar de destacar a
importncia que teve a publicao das obras de um pensador como Gramsci que poderiam ter-
se perdido depois de sua priso e morte, esquecidas em algum quarto de farnilares ou amigos.
Junte-se a isso, a lucdez de Togliatti, consciente da importncia da divulgao da obra de
17 A Resistncia italiana, a chamada "guerra dei partigiani" nllcia-se em 1943. com o fim do fascismo. o amisticio. os focos de revolta no sul da Itlia, os primeiros grupos ''partigiani" e o inverno sobre a montanha. Em 1944. conunua com o confronto com os alemes e os fascistas da RSI. Fw1dam a primeira republica "partigiana", libertando mwtas cidades do Centro da Itlia e destruindo os nazistas. Em 1945. libertam o Norte, com a rendio dos alemes e a mone de Mussolini.
23 Gramsci para o mundo contemporneo. Porm, teria sido melhor para o movimento operrio
se essa obra tivesse sido publicada em ordem cronolgica, sem as trs dcadas de atraso,
porque somente em 1976 surge a edio crtica de Gerratana, que certamente interferiria na
atuao do PCI, orientado pela "interpretao" togliattiana da obra de Gramsci.
Togliatti tinha conscincia da importncia da obra gramsciana para pensar sobre a
possibilidade da revoluo socialista no Ocidente. Preocupava-se com o destino das classes
intelectuais e da classe operria na sociedade italiana, sabendo ser fundamental uma estratgia
editorial que fomentasse a curiosidade e a aceitao dos leitores, conforme interessava ao PCI,
por isso pensa em public-la de uma forma que atingisse o pblico desejado, mas tambm,
tomasse Gramsci e sua obra conhecidos.
1.3 A PUBLICAO DAS CARTAS DO CRCERE
A primeira obra de Gramsci a ser publicada sob a orientao de Togliatti foram Le
lettere da! carcere (Cartas do Crcere), em 194 7, uma seleo de cartas escritas no crcere,
de 1926 a 1937. O regime fascista havia terminado trs anos antes e, assim, fazia-se
necessria, para Togliatti, uma apresentao de Gramsci como mrtir e mito para, somente
depois, mostr-lo como pensador poltico. A preocupao era revelar, atravs das cartas, o
homem Gramsci. Como idelogo, no havia chance de se tomar conhecido naquele momento,
por causa da censura do Cominform: Gramsci propunha estratgia diferente da elaborada pelo
regime stalinista, criticava o governo bolchevique, discutindo as suas razes e, tambm, o
momento do ps-fascismo italiano, delicado para a participao do PCI no governo de
coalizo. Deve-se ter em conta que no criticava Stalin diretamente pois, na priso, tentava
no entrar em confronto direto com o stalinismo, embora compreendesse a direo que tomava
a CRSS. Logo, seu pensamento era autnomo, em se tratando da direo stalinista. A censura
era, portanto, o motivo maior de apresentar a obra de Gramsci, em um primeiro momento
como literatura. para torn-lo conhecido, para que, posteriormente, as suas idias fossem
assimiladas paulatinamente pelo pblico.
Em 1948, Lettere da! carcere vence o principal prmiO literrio da poca, o
Viareggio. Apresentado como literato, evitava-se o problema que poderia provocar sua obra
poltica, inclusive com a URRS, quando a figura. de Stalin era ainda referncia para a
esquerda; Togliatti sabia que Gramsci poderia ser apresentado como intelectual e no como
lder poltico, posto reservado a Stalin.
A primeira edio no continha todas as cartas. Ainda em 1965, das 428 publicadas,
119 ainda eram inditas. Algumas, argumentam alguns autores, encontravam-se com
familiares que no queriam v-las publicadas. Carla, irmo de Gramsci, conservou parte de
suas cartas at o fun de 1963, afirmando que "abordavam temas de carter familiar e
intimo ". 18 Preocupao constante para Togliatti, na realidade elas revelavam o lado penoso e
afetivo da vida de Gramsci. Mostravam seu verdadeiro estado na priso, seu contato com
"persone non grate" (pessoas no gratas) direo do Partido Comunista da URSS e do PC!
e, por isso, no foram publicadas na primeira edio.
As crticas que se abateram mais tarde sobre a edio de 194 7 atingem facilmente a
interveno da poltica cultural autoritria do stalinismo, que fez omitir posies de Gramsci
18 Carta de Carlo Gramsci. inno de Antonio Gramsci de 27 de junho de 1958 direo da Revisla Srorica de! Socialismo.
25 contidas nas referncias a Bordiga, Trotsky, Rosa Luxemburgo e "oposio de esquerda",
alm das referncias aos conflitos amadurecidos no crcere entre Gramsci e os outros detentos
comnnistas (Liguori, 1991, p. 674).
De um lado, Nello Ayello, em pesquisa sobre a relao entre os intelectuais e o PCI,
baseado em documentos do Arquivo Grarnsci e outros, faz uma anlise sobre a apresentao e
publicao da obra gramsciana, afirmando que essa publicao antecipa um projeto real para o
Partido, e que no era a simples organizao de seus escritos.
Quando, no incio de 1947, Lettere dal carcere apareceram em edio Einaudi, pode-se dizer que j estava pronto, se no um esquema, ao menos um embrio interpretativo que depois pesou significativamente nos anos
sucessivos, sobre a valorizao de toda a obra gramsciana: o lder poltico
sarda era 'apresentado' como grande intelectual e literato refinadssimo em
filial, mas vigorosa polmica com Croce e em desdenhosa oposio em
relao tradio jesutica, filistia e veiculadas por tantas obras literrias de nosso pas( ... ) (Ayello, 1979).
Por outro lado, Salvatore Secchi afirma haver na primeira edio de As cartas do
crcere mna seleo das cartas que no continham revelaes da afetuosa familiaridade de
Gramsci com personagens como Amadeo Bordiga, Trotsky e Rosa Luxemburgo, que eram
considerados a "esquerda" do movimento operrio. No foram publicadas, inclusive, as que
revelam a situao psicolgica desesperada da vida na priso, dos perodos de delrio e febres,
necessidades materiais como remdios, roupas, dinheiro, livros, entre outras. Essa edio,
ficava empobrecida pela omisso das cartas que revelavam sua relao com Julia e Tatiana
Schucht, pois, justamente essas, traziam informaes fundamentais para a compreenso de
algmnas de suas principais posies, sobretudo aquelas enviadas a Tatiana (Secchi, 1974, p.
169-216), que continham reflexes sobre sua poca.
Quando ocorreu a publicao das Cartas, a ligao Croce-Gramsci foi muito
utilizada. tanto pelo PCI como pelos liberais. A dupla Croce-Gramsci serviu "via italiana
para o socialismo, que tentava lig-los tradio italiana e a possibilidade fundar um projeto
socialista gerado na Itlia 19 A cultura tradicional tenta assimilar Gramsci com a preocupao
de liquid-lo. Croce, que recebe com entusiasmo a primeira edio dac; Cartas. muda de
posio quando surgem os primeiros tomos dos Cadernos que contm uma severa crtica sua
obra.
O primeiro Caderno (editado como li materialismo storico e la filosofia di Benedetto
Croce - 1948) apresenta-se como a reflexo de um filsofo. Seus escritos polticos ficavam
escondidos, submersos, tendo como base a discusso filosfica.
1.4 A PUBLICA CO DOS CADERNOS E A ESTRATGIA TOGLIA TTIA?-IA
O Partido Comunista Italiano tinha uma grande preocupao com a questo da
hegemonia e. portanto, tentava apresentar a obra de Gramsci, didaticamente, como um corpo
orgnico. Teve o cuidado de dividir sua obra em temas relativos s disciplinas: Il
Materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce (1948), para a Filosofia, I! risorgimento
(1949), para a Histria, Letteratura e vila nazionale (1951), para o pblico de literatura. Como
poltica editorial, essas edies possibilitavam um sucesso de venda de 22 mil cpias na
19 Diferentemente do caminho que tomava o socialismo internacional, Togliatti tenta se orientar atravs da obra gramsciana no sentido de estar atento aos problemas nacionais, buscando para a Itlia wn tipo de socialismo que se desenvolvesse a parur da prpria situao italiana_ Sobre esse assunto, ver os textos de Giuseppe Vacca, Si, Toglialli 'corresse' Gramsct e, tambm, Appumi su Togliaui edirore delle Leuere e dei Quademi, Studi Storic1. 1992.
27 primeira edio. Sucesso fundamental para o Partido que queria fazer Grarnsci conhecido, para
publicar suas idias polticas posteriormente.
Depois da sua publicao que se pode compreender o quanto Togliatti serviu-se dos
Cadernos para o projeto do "partido novo" e da "via italiana", entre 1944 e 1945, e como seu
estudo neles fundamentado, pois, antes disso, somente ele os conhecia. Era ele, naquele
momento, que poderia faz-lo, porque somente ele possua a reflexo necessria sobre os
textos que Gramsci havia escrito na priso. No seu programa para a "via italiana para o
socialismo", a tarefa assegurada publicao dos Cadernos aparece claramente: a reflexo de
Gramsci estava delimitada pelo horizonte da histria da Itlia e, junto com a "questo
men'dional, seu ncleo essencial vinha indicado na preocupao, desde o inicio, com o
'destino' das classes intelectuais na 'sociedade italiana'" (Vacca, 1992b ).
Para Togliatti era fundamental a fi.IDo que Gramsci atribua obra de libertao que
deveria ser cumprida no pas, o que chamava de "obra de ressurreio da Itlia" e tinha
conscincia de que a publicao dos Cadernos era, portanto, parte estratgica fundamental
para levar a cabo a tarefa.
Detalhe importante dessa estratgia poltico-editorial o modo como se organiza a
primeira edio que, como j mencionamos, temtica. A cronolgica ocorrer apenas em
1975. A primeira publicao, por um lado, pretendia uma melhor assimilao de seu contedo,
por outro, seguia indicaes do prprio Gramsci.
observao comum de cada estudioso, como experincia pessoal, que cada nova teoria estudada com 'herico furor', ( ... ) especialmente quando se jovem, faz-nos retomar prpria obra. Assim, a obra estudada apodera-se de toda a personalidade do estudioso e limita a anlise teoria sucessivamente estudada at que se estabelea um equilbrio critico. Deve-se estudar com
profundidade sem porm render-se rapidamente ao fascnio do sistema ou do autor estudado. Esta srie de observaes vale tanto mais quanto mais o pensador em questo for explosivo, de carter polmico e sua obra no se submeter sistematizaes. Principalmente, quando se trata de uma personalidade na qual a atividade terica e prtica esto indissoluvelmente entrelaadas, em um intelecto em contnua criao e em perptuo
movimento, do modo mais cruel e conseqente (Gramsci, 1966b, p. 76-77).
Segundo Gerratana, um estudioso da obra de Gramsci e organizador da edio crtica
dos Cadernos, os seus primeiros editores pretendiam tornar mais acessveis os resultados da
produo intelectual de Gramsci durante o perodo do crcere. Assim, juntaram-se todas as
notas distribudas nos diversos cadernos de uma :forma sistemtica. Isso poderia tambm
significar uma sobreposio ao desenvolvimento do pensamento de Gramsci e
provisoriedade de algumas de suas sistematizaes. Gerratana, porm, assevera que a citada
edio, mesmo com seus limites, instrumentalizou e favoreceu a leitura dos complexos
problemas de interpretao que emergiam do texto de Gramsci (Gerratana, 1976).
A publicao da primeira edio dos Cadernos representa tambm a originalidade do
comunismo italiano. apesar da censura implementada pela URSS, e , na acepo de TogliattL
uma definio irreversvel do projeto dos comunistas. Alis, Togliani apostava na complexa
operao poltico-cultural que empreendia, tentando fazer dos comunistas italianos algo
profundamente diverso dos membros de partidos de tradio terceiro-internacionalista e
stalinista, j que. seguindo a orientao gramsciana, ele no analisava a revoluo comunista
como inexorvel, mas tentava pensar uma nova estratgia para a classe proletria europia
(Liguor, 1991, p. 674-675).
29 1.5 UMA NOVA LEITURA DE GRAMSCI
Nesse primeiro momento (1948-1958), as publicaes dos textos de Gramsci tinham
como alvo a sociedade italiana e uma estratgia para o PCI, j que Togliatti tentava a ''via
italiana para o socialismo"20 , para depois ser publicada e tornada conhecida
internacionalmente. Somente em janeiro de 1958, no VIII Congresso do Partido, realizado em
Roma, Togliatti ir deslocar o centro de leitura dos Cadernos. A leitura girar, ento, em tomo
de obras polticas como Note sul Machiavel/i, sul/a politica e sullo Stato moderno e Passato e
presente (Maquiavel, a polltica e o Estado Moderno e Passado e presente), possibilitando
desvelar uma reflexo internacional da obra gramsciana, que se acrescentava ao perfil
delimitado pelo horizonte nacional a que essa estava presa at aquele momento.
A poltica do PCI, desde 1956, depois do relatrio de Kruschev, para tornar Gramsci
mais conhecido, propunha desvincul-lo da "via italiana para o socialismo" e tambm do
leninismo e do marxismo, para que fosse possvel realar a sua influncia na vida intelectual
italiana. Entretanto, deve-se observar a grande dificuldade de tal empreitada - at mesmo
utpica-, uma vez que Gramsci, em seus escritos antecipa comportamentos e projetos, elabora
anlises do capitalismo avanado, utilizando-se do materialismo histrico, e mantm um
grande dilogo com Lenin quando pensa sobre a estratgia para esse momento do capitalismo,
desenvolvendo conceitos que avanavam ou se diferenciavam de outras linhas de pensamento,
como o de Marx e Lenin, porque, ao analisar a complexidade do capitalismo avanado,
20 Toghatti tenta uma estratgia mais moderada, para chegar ao comunismo, juntando foras com os grupos anti-fascistas para rearticular o PCI, utilizando-se do conceito de guerra de posies gramsciano, tentando tomar, pruneiramente., a obra de Gramsci conhecida, para, posteriormente, levar o pblico leitor a ir assimilando sua teoria poltica e a idia de socialismo. A idia da "via nazionale" para o comunismo, embora tente manter uma certa distncia com o stalinismo, driblando sua censura, no perde de v1sta a idia de revoluo, como ocorrer depois com Berlinguer e a poltica do PCI na dcada de 1970.
desenvolve discusso com vistas questo estratgica e concepo de Estado. Eis sua grande
nqueza: estar atento e viver o seu tempo, pensando-o.
Logo aps a publicao da antologia Duemila pagine di Gramsc1, de Giansiro F errata
e Nicoll Gallo, Toghatti escreve uma carta Einaudi Editores, em 22 de julho de 1964, e~m
que faz uma autocrtica pelo fato de vincular a figura de Gramsci ao PCI, reduzindo, assim., o
alcance das reflexes desse filsofo. Reconhece a utilizao da obra gramsciana e penaliza-s{~:
Talvez dependa do tempo que passou, que lanou sombras e luzes novas
sobre tantos acontecimentos, que fez algumas vezes saltar em primeiro plano
fatos e linhas de ao j habituais e cristalizados, com um juzo definido e, em segundo plano, ressaltar outras coisas ainda no valorizadas para ns.
No sei se por este motivo. Certo que hoje, quando perconi pina por pgina desta antologia, atravessado de tantos motivos diversos que se cruzam
e algumas vezes confundem-s-e, mas no se perdem nunca, a pessoa de
Antonio Gramsci parece colocar-se, ela mesma, em uma luz mais viva, que
ultrapassa a vicissitude histrica de nosso partido. (. .. )Antonio Gramsci a conscincia crtica de um sculo de histria do nosso pas. O seu juzo e a sua ao inserem-se nos fatos da nossa histria por um perodo breve e em
setores bem delimitados. So hoje presentes na pesquisa poltica, nas posies ideais e prticas do nosso partido. Mas os companheiros me
desculpem se digo que no isto, no meu modo de ver, o que conta mais. O
mais importante- aqui est o tema- aquele n, seja de pensamento, seja de ao, no qual todos os problemas do nosso tempo esto presentes e se cruzam
(Togliatti, 1964).
Togliatti, prestes a morrer, nos pnmerros anos da dcada de 1960, testemunha, por
esse fragmento, uma profunda angstia pela ampli1ude e seriedade da crise do movimento
31 comunista, a partir do relatrio de Kruschev 21 que critica Stalin. E, mais uma vez, orienta a
guinada que deve ser empreendida pela esquerda italiana, recolocando a primazia da
interpretao da obra gramsciana, nesta carta Einaudi.
Em 1964, com uma abertura maior para os partidos comunistas, livres do stalinismo,
j eram possveis outras leituras, alm daquela preconizada pela edio temtica de 1948.
Havia a possibilidade de publicar os textos de Gramsci com uma outra organizao. No BrasiL
ao final dos anos 1960, momento fundamental para repensar politicamente a esquerda e seus
caminhos, no o Gramsci poltico que editado, mas sim, o intelectual e o literato. H uma
contradio com o momento italiano, e necessrio explicit-lo.
1.6 A PUBLICAO E UTILIZAO DA OBRA GRAMSCIANA NA AMRICA LATINA
A primeira publicao no Brasil de um texto que se reporta a Gramsci a traduo de
Romain Rolland do artigo, Os que morrem nas prises de Mussolini (1937), que, como j
antecipa o ttulo, um manifesto a favor da libertao dos prisioneiros dos crceres fascistas,
exibindo dados biogrficos e a participao de Gramsci no PCI. A revista Literatura editada
pelo PCB, em 1947, publica um artigo de E. Carrera Guerra intitulado As cartas de Gramsci.
"
1 H 50 anos. na noite entre 24 e 25 de fevereiro comeava no Grande Palcio do Kremlin "o degelo" a portas fechadas, diante de 1.430 representantes do 20 congresso do Partido Comursta da Unio Sovitica (PCUS) proibidos at de tomarem nota, Nikita Kruschev denunciava o "culto personalidade de Stalin" e os horrores de seu regime. O relatrio lido no Congresso denuncia, entre outros horrores que, entre 1935 e 1940, a polcia secreta prendeu 1.920.635 pessoas e fuzilou um tero delas (688.503). (Jornal da Mdia- Especial. H 50 anos acabava o stalinismo na Rssia, de 17/03/2006).
que se refere publicao das Cartas do Crcere na Itlia. somente em 1966, contudo, que
se inicia a publicao da obra gramsciana no Brasil., com Concepo dialtica da histria e,
apenas no final da dcada de 1970, que Gramsci ser discutido, e influenciar as reas
educacionais e polticas. A recepo de sua obra ocorre em um momento de rompimento com
a ortodoxia stalinista.
Para uma anlise um pouco mru.s aprofundada dessa recepo, preciso ter em conta
que a aceitao das idias grarnscianas em outros pases, inclusive na Itlia, foi marcada por
inmeras polmicas e interpretaes as mais diversas. No diferente no Brasil. Aqm, sua
obra comea a ser publicada em um contexto histrico-poltico especificamente significativo,
no fmal da dcada de 1960 e nas dcadas de 1970 e 1980, com a ditadura militar e a luta da
opos1o para que ela chegasse ao fim. O conhecimento da obra de Gramsci em nosso pas, em
um primeiro momento, no se d atravs da comunidade acadmica, mas sim, por alguns
intelectuais comunistas que tentavam, no Partido Comunista Brasileiro (PCB). romper com o
dogmatismo stalinista.
Se, de 1947 a 1948, Togliatti iniciou a publicao da obra grarnsciana na Itlia, com
urna edio temtica, deve-se ressaltar que ele possua uma estratgia e uma poltica cu1tmal
para faz-lo e atingiu o objetivo da sua inteno com grande sucesso editorial e, portanto,
poltico. Utilizar, porm. essa mesma estratgia em poca e circunstncia diversas no Brasil,
no final da dcada de 1960, no nos parece resultado de uma estratgia poltica, mas apenas
editorial. Aqui, no havia a preocupao em rever a ordenao da obra, que no deveria ser
exclusivamente temtica, pois no tnhamos aqui os problemas italianos e porque o Gramsci
poltico era ftmdamental naquele momento de nossa histria, anterior ao AI-5. Era
fundamental entender a importncia poltica de um estrategista como Antonio Grarnsci. Uma
33 poltica cultural bem definida seria importante em um perodo que ainda permitia uma certa
expressividade intelectual, com a publicao dos textos polticos de forma a que auxiliassem a
compreenso crtica deste momento opressivo da histria da sociedade brasileira, depois do
golpe de 64.
Em uma conferncia no Congresso Internacional Gramsci nel mondo em Fonnia,
Itlia, em 1989, Carlos Nelson Coutinho analisa a prpria apresentao da sua traduo com
Leandro Konder do livro Jl materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce (Concepo
dialtica da histria), de 1966, em Nota sobre Antonio Gramsci.
Depois de algumas cenas sobre a vida de Gramsci (seguindo uma verso que reproduz a linha de interpretao 'oficial' do PCI togliattiano), seguia uma parte terica na qual Gramsci aparecia como um eminente filsofo, o qual,
com o seu peculiar conceito de praxis, superava seja o idealismo de Croce seja o 'materialismo vulgar' de Buckarin, tomando-se, assim, aquele que 'melhor definiu o verdadeiro carter da filosofia marxista'. Quanto dimenso terico-poltica de sua obra, mencionada em poucas palavras,
Gramsci era visto e tambm aqui de pleno acordo com a leitura de Togliatti
como um continuador direto do pensamento de Lnin. Alis, considerando a
sua virtual contribuio s anlises da peculiaridade brasileira, os
organizadores da obra referem-se somente questo literria e quela dos
intelectuais, que tambm no Brasil foram determinadas pela falta de
dimenso nacional-popular. No existe nenhuma aluso possibilidade da
obra gramsciana poder ser utilizada para valorizar radicalmente a questo da
democracia e do socialismo no BrasiL (Coutinho, 1978).
Os primeiros tradutores que se utilizaram dos conceitos gramscianos eram ligados ao
Partido Comunista Brasileiro. Entretanto, no tinham uma estratgia poltica ao traduzir
Gramsci, apenas editorial. embora pretendessem combater o "dogmatismo marxista-leninista".
Esses intelectuais apresentavam-no como o "filsofo da prxis", orientador de uma leitura
humanista e historicista do marxismo. O grande interesse dos editores parecia ser com o
problema cultural que, no Brasil daquela poca, podia ser tratado livremente pelo intelectual
comunista, propondo, inclusive. uma renovao filosfica do marxismo brasileiro. As questes
polticas, porm, deveriam ser tratadas pelo Partido, pela sua direo, a quem se atribua a
prerrogativa de dar a ltima palavra. 22 Assim, o marxismo brasileiro rompia com o stalinisrno,
no campo filosfico e na sociologia da cultura, mas no no campo poltico, o que, segundo o
prprio Gramsci, incompatvel com a viso de Gramsci, j que filosofia e poltica formam um
"bloco histrico", ou seja, no se confundem, mas so unidos historicamente em uma relao
dialtica.
Segundo Marco Aurlio Nogueira, com a dimdura
( ... )se entrava, portanto, em uma fase pouco favorvel reflexo critica e .ao debate poltico. No faltava nem mesmo uma situao de confuso e de paralisia na esquerda, derivada certamente da exasperao radical das posies e da exausto dos campos ideolgicos at agora estruturados no pas e parcialmente condicionados pela nova fase de crise do 'marxismo leninismo' e pelo fim do monoplio exercitado (em escala mundial) pelos partidos comunistas sobre o marxismo (Nogueira, 1991).
Entrava-se, no Brasil, no final da dcada de 1970, na era dos ''marxismos", afirma
Nogueira.
Esse era, porm, o momento de apresentar wn Gramsci poltico que pensa a ''guerra
de posies'' e a hegemonia poltica, conceitos que sero estudados adiante, e que eram
fundamentais para uma nova estratgia em um Brasil dominado por uma ditadura militar. No
PCB, principal partido de esquerda no perodo, na rea poltica. a direo era guiada ainda
22 dessa forma que Carlos Nelson Coutinho analisa a questo em sua apresentao no Congresso InternaciOnal de Formia. em 1989_
35 pelo stalinismo. Na academia, havia a tentativa de romper o dogmatismo, com o
estruturalismo de Althusser, com a obra poltica de Sartre e Lukcs, o que no nos cabe
analisar aqui, mas que relevante para compreender a atuao de grande parte da esquerda.
No final da dcada de 1970 e incio dos anos 1980, o gramscismo tem, ainda, como
interpretao, a orientao do PCI, eurocomunista, inclusive no BrasiL A referncia o
"compromisso histrico" de Enrico Berlinguer, como chefe do Partido, e a noo de
democracia corno valor universal, e como modelo, o eurocomunismo.
A partir da dcada de 1960 comea, tambm, a crescer o interesse pela obra de
Gramsci em toda a Amrica Latina. Anterionnente, encontramos apenas alguns comentrios
esparsos na dcada de 1950 e o interesse do argentino Hctor P. Agosti, do Partido Comunista
Argentino, depois do incio da publicao dos Cadernos do Crcere na Argentina, entre 1958 e
1962.
Com relao publicao de Gramsci na Amrica Latina, importante salientar que
no h praticamente nenhum pas neste territrio que no tenha seus textos publicados.
necessrio salientar tambm que a traduo e difuso dos Cadernos do Crcere, em espanhol,
ocorreram em maior nmero do que em qualquer outra lngua. Eles foram publicados
parcialmente, em sua edio temtica, na Argentina, entre 1958 e 1962 e no Brasil, entre 1966
e 1968. Eram as edies mais completas e mais numerosas em outra lngua que no a original
(Aric. 1988, p. 63).
A obra de Gramsci penetrou tanto a cultura poltica latino-americana que muitas de
suas categorias analticas fazem parte do discurso terico de cientistas sociais, historiadores,
crticos e polticos. Integra tambm a linguagem usual da esquerda e at mesmo a dos assim
chamados "democrticos". Os discursos sobre os grandes ou pequenos problemas dos pases
da Amrica Latina incorporam palavras tais come hegemonia, bloco histrico, intelectuais
orgnicos, crise orgnica, guerra de posio e de movimento, revoluo passiva, o conceito de
Estado ampliado =sociedade civil+ sociedade poltica, etc. Utilizar, porm, estas categorias,
muitas vezes, no indica um aprofundamento nas anlises da realidade latino-americana, mas
ao contrrio, pode significar utilizao sem rigor metodolgico e, algumas vezes, fora do
contexto da obra gramsciana.
A primeira tentativa de incorporao do pensamento de Gramsci cultura poltica da
esquerda latino-americana foi a do Partido Comunista Argentino, nos anos 1950, com Hctor
P. Agosti como seu principal impulsionador. Nos anos 1960, essa tentativa j significava uma
renovao poltica e moral do comunismo latino-americano. A apresentao de Gramsci na
Amrica Latina oferecia um exemplo moral e de fora, em continuidade como o PCI o
apresentava anteriormente edio completa de :ma obra, a chamada edio crtica: um
"mrtir do fascismo". Seu pensamento poltico e suas obras no eram, ento, conhecidos e, foi
Togliatti, editando-as na Itlia, o responsvel pelo interesse da esquerda, em outros pases.
Jos Aric, ao refletir sobre o significado das crises dos anos 1960 na Amrica
Latina, com o acirramento das ditaduras militares e com a experincia da Revoluo Cubana,
tenta, na verdade, observar como os movimentos polticos de esquerda conseguem se livrar da
sensao de derrota, buscar novos caminhos de luta e como o contato com a obra gramsciana
foi importante nesse sentido.
O desengano dos anos sessenta, a conscincia de ter sido parte de um movimento carregado de esperanas e de cegueira, levou muitos de n~; a descobrir em Gramsci algo mais que um homem de cultura e um cidado virtuoso. Porque o reconhecimento da derrota e a constncia dos ideais nos obrigavam a pensar em outras formas de ao que fossem capazes de conjugaT poltica e tica, Tealisrno e firmeza moral. modificaes pTesentes e
37 antecipaes futuras; porque no podamos eludir da responsabilidade de
medir-nos com os fatos, porque deixamos de estar soberbamente seguros do
que sustentv~os, devamos reencontrar Gramsci (Ibidem, p. 25).
Esse o testemunho de quem viveu todas as contradies da efervescente dcada de
1960 e a represso das ditaduras na Amrica Latina, na dcada posterior. Foram anos de
ditadura e de tortura que provocaram o interesse pela reflexo gramsciana, e pela difuso de
seu pensamento nessa regio. E no Brasil da dcada de 1970, cresceu o interesse pelo estudo
de sua obra, enquanto vigorava, fortalecido, o Al-5. Do mesmo modo que na Argentina e no
Mxico, surge, no Brasil, inicialmente o interesse pelo "homem" Gramsci, pelo "mrtir", em
analogia a inmeras situaes internas e tristemente semelhantes de tortura e desumanidade.
Em seguida, o filsofo ganha um espao de anlise e influncia, tendo sua obra crescido em
importncia e reconhecimento.
Na Argentina, as Cartas do crcere foram publicadas em 1950; El materialismo
histrico y la filosofia de Benedetto Croce, em 1958; Los intelectuales y la organizacin de la
cultura, em 1960; Literatura y vida nacional, em 1961; Notas sobre Maquiavello, sobre
politica y sobre e! Estado Moderno, em 1962. Somente em meados dos anos 1970, quando
Juan Pablos, do Mxico, editou os 4 primeiros volumes, acima mencionados, houve a
complementao da traduo para o espanhol, da edio Einaudi, publicando-se Passado y
presente, em 1977 e El risorgimento, em 1980.
Nos anos 1950, Agosti volta-se principalmente para o problema da "reforma
intelectual e cultural" de seu pas, a Argentina, e toma a obra de Gramsci e de outros membros
do marxismo italiano como referncia, mesmo com a debilidade intrnseca da inteno de
refundao no iderio comunista em um partido como o PC argentino, incapaz de flexibilizar-
se. O mesmo Agosti, como diretor dos Cadernos de cultura, nos anos 1950, comea a veicular
a cultura marxista italiana no propriamente publicando textos de Gramsci, mas anlises de
outros pensadores que se utilizavam de suas categorias em seus artigos. O enfoque se dava,
principalmente, na rea cultural, sendo a questo da fratura entre os intelectuais e o povo-
nao (a questo do nacional-popular) uma das grandes preocupaes que sobressaam em
seus textos. Em meados dos anos 1960, h uma ruptura da revista Cadernos de cultura com os
intelectuais gramscianos argentinos, que tinham uma outra leitura que no era a da questo do
nacional-popular.
Agosti utiliza-se da traduo que faz da interpretao gramsc1ana do fenmeno
Risorgimento 23 como revoluo passiva, interpretando-a como "evoluo no cumprida" ou
"revoluo interrompida", fazendo, talvez, equivocadamente, um diagnstico da histria
argentina e da sua realidade, sem abordar a anlise do que significaram tais diagnsticos.
Importa-nos, porm, mais as discusses com base na obra gramsciana que se introduzem no
comunismo argentino a partir da dcada de 1950, por obra de Agosti.
Conhecidas as prticas stalinistas, a partll do final da dcada de 1950 e rnc10 de
1960, o Partido Comunista Argentino optou por abrigar-se em posies as mais tradiciona-is,
fundadas em pensadores como Marx e Lnin, refutando qualquer contribuio que no fosse
23 Comeou no sculo XIX o "Risorgimento" italiano, movimento que visava a criao de wna Itlia unida e livre da dominao estrangeira. O processo de unificao se efetuou num perodo de cinqenta anos, conduzido por um lado pelas foras poltk:as e militares do Rei da Sardenha e por