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Guattari, Felix. as três ecologias

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    4 capa:

    AS TRS ECOLOGIAS

    Ao registrar trs ecologias - a do meio ambiente, a das relaes sociais e a da subjetividade humana -, Guattari manifesta sua indignao perante um mundo que se deteriora lentamente. "O que est em questo a maneira de viver daqui em diante sobre o planeta, no contexto da acelerao das mutaes tcnico-cientficas e do considervel crescimento demogrfico. Em virtude do contnuo desenvolvimento do trabalho maqunico, redobrado pela revoluo informtica, as foras produtivas vo tornar disponvel uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial. Mas com que finalidade? A do desemprego, da marginalidade opressiva, da solido, da ociosidade, da angstia, da neurose, ou a da cultura, da criao, da pesquisa, da reinveno do meio ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade?"

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    Orelhas:

    Flix Guattari, pensador multiface, polmico e aventureiro, passeia entre muitos artistas, obras, partidos e movimentos sociais. Inicialmente marcado pelo pensamento lacaniano, cria a "anlise institucional" uma crtica ao laca-nismo. Em seguida radicaliza; aps conhecer Deleuze, com quem engendra nova inventiva: a "esquizoa-nlise" quando pensa num inconsciente cuja trama no seria seno o prprio possvel. Publicou diversas obras dentre as quais destacam-se Psychanalyse et transversalit (Maspero, 1972); La revolution molculaire (Recher-ches, 1977); Les annes d'hiver (Bernard Barrault, 1985) e O inconsciente maqunico (Papirus, 1988).

    Outros ttulos da Papirus Amaznia: Monoplio, expropriao e conflitos Ariovaldo Umbelino de Oliveira Arte e a natureza (A) Michel Ribon Conflitos sociais na fronteira amaznica Ycarim Melgao Barbosa Desenvolvimento urbano e meio ambiente: A experincia de Curitiba Claudino Luiz Menezes Dimenso ambiental na educao (A) Mauro Guimares tica e educao ambiental: A conexo necessria Mauro Grn Meio ambiente (O) Jacques Vernier Meio ambiente: Interdisciplinaridade na prtica Karen Currie e colabs. Poltica ambiental: Uma anlise econmica Luciana Togeiro de Almeida Somos as guas puras Carlos Rodrigues Brando Solicite catlogo Caixa Postal 736 13001 -970 - Campinas-SP [email protected] www.papirus.com.br

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    FELIX GUATTARI

    traduo Maria Cristina F. Bittencourt

    reviso da traduo Suely Rolnik

    AS TRS ECOLOGIAS

    PAPIRUS EDITORA

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    Titulo original em francs: Les trois cologies ditions Galile, 1989

    Traduo: Maria Cristina F. Bittencourt Reviso da traduo: Suely Rolnik

    Capa: Francis Rodrigues Copidesque: Niuza M. Gonalves

    Reviso: Josiane Pio Romera Regina Maria Seco

    Vera Luciana Morandim

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Guattari, Flix As trs ecologias / Flix Guattari; traduo Maria Cristina F. Bittencourt.

    Campinas, SP : Papirus, 1990.

    ISBN 85-308-0106-7

    1. Ecologia 2. Ecologia humana 3. Ecologia - Aspectos sociais I. Ttulo. 90-0118 CDD-304.2

    -547.5 ndices para catlogo sistemtico: 1. Ecologia : Biologia 574.5 2. Ecologia humana 304.2 3. Ecologia social 304.2

    11a edio 2001

    DIREITOS RESERVADOS PARA A LNGUA PORTUGUESA: M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. Papirus Editora Telefones: (19) 3272-4500 e 3272-4534 - Fax: (19) 3272-7578 Caixa Postal 736-CEP 13001-970-Campinas - SP - Brasil. E-mail: [email protected] www.papirus.com.br Proibida a reproduo total ou parcial. Editora afiliada ABDR.

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    a Sacha Goldman

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    Existe uma ecologia das idias danosas, assim como existe uma ecologia das ervas daninhas.

    Gregory Bateson1

    O planeta Terra vive um perodo de intensas transformaes tcnico-cientficas, em contrapartida das quais engendram-se fenmenos de desequilbrios ecolgicos que, se no forem remediados, no limite, ameaam a vida em sua superfcie. Paralelamente a tais perturbaes, os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deteriorao. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mnimo, a vida domstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mdia, a vida conjugai e familiar se encontra freqentemente "ossifica-

    1. Vers 1'cohgie de 1'esprit, tomo II. Paris, Seuil, 1980.

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    da" por uma espcie de padronizao dos comportamentos, as relaes de vizinhana esto geralmente reduzidas a sua mais pobre expresso...

    a relao da subjetividade com sua exterioridade - seja ela social, animal, vegetal, csmica que se encontra assim comprometida numa espcie de movimento geral de imploso e infantilizao regressiva. A alteridade tende a perder toda a aspereza. O turismo, por exemplo, se resume quase sempre a uma viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas redundncias de imagens e de comportamento.

    As formaes polticas e as instncias executivas parecem totalmente

    incapazes de apreender essa problemtica no conjunto de suas implicaes. Apesar de estarem comeando a tomar uma conscincia parcial dos perigos mais evidentes que ameaam o meio ambiente natural de nossas sociedades, elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspectiva tecnocrtica, ao passo que s uma articulao tico-poltica a que chamo ecosofia entre os trs registros ecolgicos (o do meio ambiente, o das relaes sociais e o da subjetividade humana) que poderia esclarecer convenientemente tais questes.

    O que est em questo a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta, no contexto da acelerao das mutaes tcnico-cientficas e do considervel crescimento demogrfico. Em funo do contnuo desenvolvimento do trabalho maqunico redobra-

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    do pela revoluo informtica, as foras produtivas vo tornar disponvel uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial.2 Mas com que finalidade? A do desemprego, da marginalidade opressiva, da solido, da ociosidade, da angstia, da neurose, ou a da cultura, da criao, da pesquisa, da re-inveno do meio ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade? No Terceiro Mundo, como no mundo desenvolvido, so blocos inteiros da subjetividade coletiva que se afundam ou se encarquilham em arcasmos, como o caso, por exemplo, da assustadora exacerbao dos fenmenos de integrismo religioso.

    No haver verdadeira resposta crise ecolgica a no ser em escala planetria e com a condio de que se opere uma autntica revoluo poltica, social e cultural reorientando os objetivos da produo de bens materiais e imateriais. Essa revoluo dever concernir, portanto, no s s relaes de foras visveis em grande escala mas tambm aos domnios moleculares de sensibilidade, de inteligncia e de desejo. Uma finalidade do trabalho social regulada de maneira unvoca por uma economia de lucro e por relaes de poder s pode, no momento, levar a dramticos impasses - o que fica manifesto no absurdo das tutelas econmicas que pesam sobre o Terceiro Mundo e conduzem algumas de suas regies a uma pauperizao absoluta e irreversvel; fica igualmente evidente em pases como a Frana, onde a proliferao de centrais nucleares faz pesar o risco das possveis conseqncias de acidentes

    2. Nas fbricas Fiat, por exemplo, a mo-de-obra assalariada passou de 140 mil para 60 mil operrios numa dcada, enquanto a produtividade aumentava em 75%.

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    do tipo Chernobyl sobre uma grande parte da Europa. Sem falar do carter quase delirante da estocagem de milhares de ogivas nucleares que, menor falha tcnica ou humana, poderiam mecanicamente conduzir a um extermnio coletivo. Atravs de cada um desses exemplos, encontra-se o mesmo questionamento dos modos dominantes de valorizao das atividades humanas, a saber:

    1. o do imprio de um mercado mundial que lamina os sistemas particulares de valor, que coloca num mesmo plano de equivalncia os bens materiais, os bens culturais, as reas naturais etc:

    2. o que coloca o conjunto das relaes sociais e das relaes internacionais sob a direo das mquinas policiais e militares.

    Os Estados, entre essas duas pinas, vem seu tradicional papel de mediao reduzir-se cada vez mais e se colocam, na maioria das vezes, a servio conjugado das instncias do mercado mundial e dos complexos militar-industriais.

    Essa situao ainda mais paradoxal quando vemos que esto chegando ao fim os tempos em que o mundo encontrava-se sob a gide do antagonismo Leste-Oeste, projeo amplamente imaginria da oposio classe operria/burguesia no seio dos pases capitalistas. Ser que isso quer dizer que as novas problemticas multipolares das trs ecologias viro pura e simplesmente substituir as antigas lutas de classe e seus mitos de referncia? Certamen-

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    te tal substituio no ser to mecnica assim! Entretanto, parece provvel que essas problemticas, que correspondem a uma complexificao extrema dos contextos sociais, econmicos e internacionais, tendero a se deslocar cada vez mais para o primeiro plano.

    Os antagonismos de classe herdados do sculo XIX contriburam inicialmente para forjar campos homogneos bipolarizados de subjetividade. Mais tarde, durante a segunda metade do sculo XX, atravs da sociedade de consumo, do welfare, da mdia..., a subjetividade operria linha dura se desfez. Ainda que as segregaes e as hierarquias jamais tenham sido to intensamente vividas, uma mesma camada imaginria se encontra agora chapada sobre o conjunto das posies subjetivas. Um mesmo sentimento difuso de pertinncia social descontraiu as antigas conscincias de classe. (Deixo aqui de lado a constituio de plos subjetivos violentamente heterogneos como os que surgem no mundo muulmano.) Os pases ditos socialistas, por sua vez, tambm introjetaram os sistemas de valor "unidimensionalizantes" do Ocidente. O antigo igualitarismo de fachada do mundo comunista d lugar, assim, ao serialismo de mdia (mesmo ideal de status, mesmas modas, mesmo rock etc).

    No que concerne ao eixo Norte-Sul, dificilmente pode-se imaginar que a situao melhore de maneira considervel. Certamente concebvel que a progresso das tcnicas agroalimentares acabem por permitir a modificao dos dados tericos do drama da fome no mundo. Mas na prtica, enquanto isso, seria totalmente ilusrio pensar que a ajuda internacional, da maneira como

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    hoje concebida e dispensada, resolva duradouramente qualquer problema que seja! A instaurao a longo prazo de imensas zonas de misria, fome e morte parece daqui em diante fazer parte integrante do monstruoso sistema de "estimulao" do Capitalismo Mundial Integrado. Em todo caso, sobre tal instaurao que repousa a implantao das Novas Potncias Industriais, centros de hiperexplorao tais como: Hong Kong, Taiwan, Coria do Sul etc.

    No seio dos pases desenvolvidos reencontramos esse mesmo princpio de tenso social e de "estimulao" pelo desespero, com a instaurao de regies crnicas de desemprego e da marginalizao de uma parcela cada vez maior de populaes de jovens, de pessoas idosas, de trabalhadores "assalariados", desvalorizados etc.

    Assim, para onde quer que nos voltemos, reencontramos esse mesmo paradoxo lancinante: de um lado, o desenvolvimento contnuo de novos meios tcnico-cientficos potencialmente capazes de resolver as problemticas ecolgicas dominantes e determinar o reequilbrio das atividades socialmente teis sobre a superfcie do planeta e, de outro lado, a incapacidade das foras sociais organizadas e das formaes subjetivas constitudas de se apropriar desses meios para torn-los operativos.

    No entanto, podemos nos perguntar se essa fase paroxstica de laminagem das subjetividades, dos bens e do meio ambiente no est sendo levada a entrar num perodo de declnio. Por toda parte surgem reivindicaes de singularidade; os sinais mais evidentes a esse respeito residem na multiplicao das reivindicaes nacionalitrias, ontem ainda marginais, que ocupam cada vez mais o primeiro plano das cenas polticas. (Ressaltemos, na Crsega e nos pases blticos, a

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    conjuno das reivindicaes ecolgicas com as autonomistas.) No limite, esse acmulo de questes nacionalitrias provavelmente levar a modificaes profundas das relaes Leste-Oeste e, em particular, da configurao da Europa, cujo centro de gravidade poderia derivar decisivamente em direo a um Leste neutro.

    As oposies dualistas tradicionais que guiaram o pensamento social e as cartografias geopolticas chegaram ao fim. Os conflitos permanecem mas

    engajam sistemas multipolares incompatveis com adeses a bandeiras ideolgicas maniquestas. Por exemplo, a oposio entre Terceiro Mundo e mundo desenvolvido explode por todo lado. Vimos isso com essas Novas Potenciais Industriais, cuja produtividade tornou-se incomparvel a dos tradicionais basties industriais do Oeste, mas sendo esse fenmeno acompanhado de uma espcie de terceiro-mundizao interna nos pases desenvolvidos, reforada ainda por cima por uma exacerbao das questes relativas imigrao e ao racismo. No nos enganemos: a grande agitao em torno da unificao econmica da Comunidade Europia em nada refrear essa terceiro-mundizao de zonas considerveis da Europa.

    Um outro antagonismo transversal ao das lutas de classe continua a ser o das relaes homem-mulher. Em escala global, a condio feminina est longe de ter melhorado. A explorao do trabalho feminino, correlativa do trabalho das crianas, nada tem a invejar aos piores perodos do sculo XIX! E no entanto uma revoluo subjetiva ascendente no parou de trabalhar a condio feminina durante essas duas ltimas dcadas. Ainda que a inde-

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    pendncia sexual das mulheres, relacionada com a disponibilidade dos meios de contracepo e aborto, tenha crescido de forma bastante irregular, ainda que o crescimento dos integrismos religiosos no cesse de gerar uma minorao de seu estado, alguns indcios levam a pensar que transformaes de longa durao - no sentido de Fernand Braudel - esto de fato em curso (designao de mulheres para chefia de Estado, reivindicao de paridade homem-mulher nas instncias representativas etc).

    A juventude, embora esmagada nas relaes econmicas dominantes que lhe conferem um lugar cada vez mais precrio, e mentalmente manipulada pela produo de subjetividade coletiva da mdia, nem por isso deixa de desenvolver suas prprias distncias de singularizao com relao subjetividade normalizada. A esse respeito, o carter transnacional da cultura rock absolutamente significativo: ela desempenha o papel de uma espcie de culto inicitico que confere uma pseudo-identidade cultural a massas considerveis de jovens, permitindo-lhes constituir um mnimo de Territrios existenciais.

    E nesse contexto de ruptura, de descentramento, de multiplicao dos antagonismos e de processos de singularizao que surgem as novas problemticas ecolgicas. Entendamo-nos bem: no pretendo de maneira alguma que essas novas problemticas ecolgicas tenham que "encabear" as outras linhas de fraturas moleculares, mas parece-me que elas evocam uma problematiza-o que se torna transversal a essas outras linhas de fratura.

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    Se no se trata mais - como nos perodos anteriores de luta de classe ou de defesa da "ptria do socialismo" - de fazer funcionar uma ideologia de maneira unvoca, concebvel em compensao que a nova referncia ecosfica indique linhas de recomposio das prxis humanas nos mais variados domnios. Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto vida cotidiana quanto reinveno da democracia - no registro do urbanismo, da criao artstica, do esporte etc. - trata-se, a cada vez, de se debruar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produo de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularizao individual e/ou coletiva, ao invs de ir no sentido de uma usinagem pela mdia, sinnimo de desolao e desespero. Perspectiva que no exclui totalmente a definio de objetivos unificadores tais como a luta contra a fome no mundo, o fim do desflorestamento ou da proliferao cega das indstrias nucleares. S que no mais tratar-se-ia de palavras de ordem estereotipadas, reducionistas, expropriadoras de outras problemticas mais singulares resultando na promoo de lderes carismticos.

    Uma mesma perspectiva tico-poltica atravessa as questes do racismo, do falocentrismo, dos desastres legados por um urbanismo que se queria moderno, de uma criao artstica libertada do sistema de mercado, de uma pedagogia capaz de inventar seus mediadores sociais etc. Tal problemtica, no fim das contas, a da produo de existncia humana em novos contextos histricos.

    A ecosofia social consistir, portanto, em desenvolver prticas especficas que tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da famlia, do contexto urbano, do trabalho

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    etc. Certamente seria inconcebvel pretender retornar a frmulas anteriores, correspondentes a perodos nos quais, ao mesmo tem -po, a densidade demogrfica era mais fraca e a densidade das relaes sociais mais forte que hoje. A questo ser literalmente reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-grupo. E no somente pelas intervenes "comunicacionais" mas

    tambm por mutaes existenciais que dizem respeito essncia da subjetividade. Nesse domnio, no nos ateramos s recomendaes gerais mas faramos funcionar prticas efetivas de experimentao tanto nos nveis microssociais quanto em escalas institucionais maiores.

    A ecosofia mental, por sua vez, ser levada a reinventar a relao do sujeito com o corpo, com o fantasma*, com o tempo que passa, com os "mistrios" da vida e da morte. Ela ser levada a procurar antdotos para a uniformizao miditica e telemtica, o conformismo das modas, as manipulaes da opinio pela publicidade, pelas sondagens etc. Sua maneira de operar aproximar-se- mais daquela do artista do que a dos profissionais "psi", sempre assombrados por um ideal caduco de cientificidade.

    Nada nesses domnios est sendo tratado em nome da histria, em nome de determinismos infra-estruturais! A possibilidade de uma imploso brbara no est de jeito nenhum excluda. E se no houver tal retomada ecosfica (seja qual for o nome que se lhe d), se no houver uma rearticulao dos trs registros fundamentais da ecologia, podemos infelizmente pressagiar a escalada de

    * O autor refere-se a "fantasma" inconsciente, no sentido psicanaltico. (N.R.)

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    todos os perigos: os do racismo, do fanatismo religioso, dos cismas nacionalitrios caindo em fechamentos reacionrios, os da expiorao do trabalho das crianas, da opresso das mulheres...

    Tentemos, agora, cercar mais de perto as implicaes de uma perspectiva ecosfica desse tipo sobre a concepo da subjetividade.

    O sujeito no evidente: no basta pensar para ser, como o proclamava Descartes, j que inmeras outras maneiras de existir se instauram fora da conscincia, ao passo que o sujeito advm no momento em que o pensamento se obstina em apreender a si mesmo e se pe a girar como um pio enlouquecido, sem enganchar em nada dos Territrios reais da existncia, os quais por sua vez derivam uns em relao aos outros, como placas tectnicas sob a superfcie dos continentes. Ao invs de sujeito, talvez fosse melhor falar em componentes de subjetivao trabalhando, cada um, mais ou menos por conta prpria. Isso conduziria necessariamente a reexaminar a relao entre o indivduo e a subjetividade e, antes de mais nada, a separar nitidamente esses conceitos. Esses vetores de subjetivao no passam necessariamente pelo indivduo, o qual, na realidade, se encontra em posio de "terminal" com respeito aos processos que implicam grupos humanos, conjuntos socioeconmicos, mquinas informacionais etc. Assim, a interioridade se instaura no cruzamento de mltiplos componentes relativamente autnomos uns em relao aos outros e, se for o caso,

    francamente discordantes.

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    Sei que um argumento desse tipo ainda permanece difcil de ser entendido, sobretudo em contextos onde continua a reinar uma suspeita, e mesmo uma rejeio de princpio, com relao a toda referncia especfica subjetividade. Em nome do primado das infra-estruturas, das estruturas ou dos sistemas, a subjetividade no est bem cotada, e aqueles que dela se ocupam na prtica ou na teoria em geral s a abordam usando luvas, tomando infinitas precaues, cuidando para nunca afast-la demais dos paradigmas pseudocientficos.tomados de emprstimo, de preferncia, s cincias duras: a termodinmica, a topologia, a teoria da informao, a teoria dos sistemas, a lingstica etc. Tudo se passa como se um superego cientista exigisse reificar as entidades psquicas e impusesse que s fossem apreendidas atravs de coordenadas extrnsecas. Em tais condies, no de se espantar que as cincias humanas e as cincias sociais tenham se

    condenado por si mesmas a deixar escapar as dimenses intrinsecamente evolutivas, criativas e autoposicionantes dos processos de subjetivao. O que quer que seja, parece-me urgente desfazer-se de todas as referncias e metforas cientistas para forjar novos paradigmas que sero, de preferncia, de inspirao tico-estticas. Alis, as melhores cartografias da psique ou, se quisermos, as melhores psicanlises no foram elas maneira de Goethe, Proust, Joyce, Artaud e Becket, mais do que de Freud, Jung, Lacan? A parte literria na obra desses ltimos constitui, de resto, o que de melhor subsiste (por exemplo, a Traumdeutung de Freud pode ser considerada um extraordinrio romance moderno!).

    Nosso questionamento acerca da psicanlise, a partir da criao esttica e de implicaes ticas, nem por isso pressupe uma "reabilitao" da anlise fenomenolgica, a qual, em nossa

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    perspectiva, encontra-se prejudicada por um "reducionismo" sistemtico que a leva a encolher seus objetos ao ponto de se tornarem pura transparncia intencional. Quanto a mim, hoje considero que a apreenso de um fato psquico inseparvel do Agenciamento de enunciao que lhe faz tomar corpo, como fato e como processo expressivo. Uma espcie de relao de incerteza se estabelece entre a apreenso do objeto e a apreenso do sujeito, a qual, para articul-los, impe que no se possa prescindir de um desvio pseudonarrativo, por intermdio de mitos de referncia, de rituais de toda natureza, de descries com pretenso cientfica, que tero como finalidade circunscrever uma encenao disposicional, um dar a existir, autorizando em "segundo" lugar uma inteligibilidade discursiva. Aqui a questo no a de uma retomada da distino pascaliana entre "esprito de geometria" e "esprito de fineza".

    Esses dois modos de apreenso - seja pelo conceito, seja pelo afeto e pelo percepto - so, com efeito, absolutamente complementares. Atravs deste desvio pseudonarrativo trata-se apenas de configurar uma repetio suporte de existncia, atravs de ritmos e ritornelos* de uma infinita variedade. O discurso, ou qualquer cadeia discursiva, se faz assim portador de uma no-discursividade

    * Na primeira obra de F. Guattari publicada no Brasil, a coletnea de textos que organizei, intitulada Revoluo Molecular: Pulsaes polticas do desejo (So Paulo: Brasiliense, 1a ed. 1981; 2a ed. 1985, 3a ed. 1987) traduzi "ritournelle" por ladainha. Optei, aqui, por traduzi-lo literalmente (ritornelo) tendo em vista que o autor empresta esse termo msica para utiliz-lo, com sentido anlogo, como um importante operador conceituai de sua concepo da formao da subjetividade. (N.R.)

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    que, tal como um rastro estroboscpico, anula os jogos de oposio distintiva tanto no nvel do contedo quanto no da forma de expresso. Somente nessas condies podem ser gerados e regenerados os Universos de referncia incorporais que pontuam de acontecimentos singulares o desenrolar da historicidade individual e coletiva.

    Assim como em outras pocas o teatro grego, o amor corts ou o

    romance de cavalaria se impuseram como modelos ou, antes, como mdulos de subjetivao, hoje o freudismo continua a obcecar nossas maneiras de sustentar a existncia da sexualidade, da infncia, da neurose... Portanto no se visa, aqui, a "ultrapassar" ou a apagar para sempre da memria o fato freudiano mas a re-orientar seus conceitos e suas prticas para fazer deles outro uso, para desenraiz-los de seus vnculos pr-estruturalistas com uma subjetividade totalmente ancorada no passado individual e coletivo. O que estar daqui em diante na ordem do dia o resgate de campos de virtualidade "futuristas" e "construtivistas". O inconsciente permanece agarrado em fixaes arcaicas apenas enquanto nenhum engajamento o faz projetar-se para o futuro. Essa tenso existencial operar-se- por intermdio de temporalidades humanas e no-humanas. Entendo por estas ltimas o delineamento ou, se quisermos, o desdobramento de devires animais, vegetais, csmicos, assim como de devires maqunicos, correlativos da acelerao das revolues tecnolgicas e informticas ( assim que vemos desenvolver-se a

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    olhos vistos a expanso prodigiosa de uma subjetividade assistida por computador). A isso acrescentemos que convm no esquecer as dimenses institucionais e de classe social que presidem a formao e a "teleguiagem" dos indivduos e grupos humanos.

    Em suma, os engodos fantasmticos e mticos da psicanlise devem ser desempenhados e desmascarados e no cultivados e cuidados como jardins francesa! Infelizmente, os psicanalistas de hoje, mais ainda que os de ontem, se entrincheiram no que se pode chamar de uma "estruturalizao" dos complexos inconscientes. Em sua teorizao, isso conduz a um ressecamento e a um dogmatismo insuportvel e, em sua prtica, a um empobrecimento de suas intervenes, a esteretipos que os tornam impermeveis alteridade singular de seus pacientes.

    Invocando paradigmas ticos, gostaria principalmente de sublinhar a responsabilidade e o necessrio "engajamento" no somente dos operadores "psi", mas de todos aqueles que esto em posio de intervir nas instncias psquicas individuais e coletivas (atravs da educao, sade, cultura, esporte, arte, mdia, moda etc). eticamente insustentvel se abrigar, como to freqentemente fazem tais operadores, atrs de uma neutralidade transferenciai pretensamente fundada sobre um controle do inconsciente e um corpus cientfico. De fato, o conjunto dos campos "psi" se instaura no prolongamento e em interface aos campos estticos.

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    Insistindo nos paradigmas estticos, gostaria de sublinhar que, especialmente no registro das prticas "psi", tudo deveria ser sempre reinventado, retomado do zero, do contrrio os processos se congelam numa mortfera repetio. A condio prvia a todo novo impulso da anlise - por exemplo, a esquizoanlise - consiste em admitir que, em geral, e por pouco que nos apliquemos a trabalh-los, os Agenciamentos subjetivos individuais e coletivos so potencialmente capazes de se desenvolver e proliferar longe de seus equilbrios ordinrios. Suas cartografias analticas transbordam, pois, por essncia, os Territrios existenciais aos quais so ligadas. Com tais cartografias deveria suceder como na pintura ou na literatura, domnios no seio dos quais cada desempenho concreto tem a vocao de evoluir, inovar, inaugurar aberturas prospectivas, sem que seus autores possam se fazer valer de fundamentos tericos assegurados pela autoridade de um grupo, de uma escola, de um conservatrio ou de uma academia... Work in progress! Fim dos catecismos psicanalticos, comportamentalistas ou sistemistas. O povo "psi", para convergir nessa perspectiva com o mundo da arte, se v intimado a se desfazer de seus aventais brancos, a comear por aqueles invisveis que carrega na cabea, em sua linguagem e em suas maneiras de ser (um pintor no tem por ideal repetir indefinidamente a mesma obra - com exceo da personagem de Titorelli, no Processo de Kafka, que pinta sempre e identicamente o mesmo juiz!). Da mesma maneira, cada instituio de atendimento

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    mdico, de assistncia, de educao, cada tratamento individual deveria ter como preocupao permanente fazer evoluir sua prtica tanto quanto suas

    bases tericas. Paradoxalmente, talvez seja do lado das cincias "duras" que convm

    esperar a reviravolta mais espetacular com respeito aos processos de subjetivao. No significativo, por exemplo, que em seu ltimo livro Prigogine e Stengers invoquem a necessidade de introduzir na fsica um "elemento narrativo", indispensvel, segundo eles, para teorizar a evoluo em termos de irreversibilidade? Sendo assim, tenho a convico de que a questo da enunciao subjetiva colocar-se- mais e mais medida que se desenvolverem as mquinas produtoras de signos, de imagens, de sintaxe, de inteligncia artificial... Disso decorrer uma recomposio das prticas sociais e individuais que agrupo segundo trs rubricas complementares - a ecologia social, a ecologia mental e a ecologia ambiental - sob a gide tico-esttica de uma ecosofia.

    As relaes da humanidade com o socius, com a psique e com a "natureza" tendem, com efeito, a se deteriorar cada vez mais, no s em razo de nocividades e poluies objetivas mas tambm pela existncia de fato de um desconhecimento e de uma passividade fatalista dos indivduos e dos poderes com relao a essas questes consideradas em seu conjunto. Catastrficas ou no, as evolues negativas so aceitas tais como so. O

    estruturalismo - e depois o ps-modernismo - acostumou-nos a uma viso de mundo que

    3. Entre le temps et l'ternit. Paris, Fayard, 1988, pp. 41, 61, 67.

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    elimina a pertinncia das intervenes humanas que se encarnam em polticas e micropolticas concretas. Explicar esse perecimento das prxis sociais pela morte das ideologias e pelo retorno aos valores universais me parece pouco satisfatrio. Na realidade, o que convm incriminar, principalmente, a inadaptao das prxis sociais e psicolgicas e tambm a cegueira quanto ao carter falacioso da compartimentao de alguns domnios do real. No justo separar a ao sobre a psique daquela sobre o socius e o ambiente. A recusa a olhar de frente as degradaes desses trs domnios, tal como isto alimentado pela mdia, confina num empreendimento de infantilizao da opinio e de neutralizao destrutiva da democracia. Para se desintoxicar do discurso sedativo que as televises em particular destilam, conviria, daqui para frente, apreender o mundo atravs dos trs vasos comunicantes que constituem nossos trs pontos de vista ecolgicos.

    Chernobyl e a Aids nos revelaram brutalmente os limites dos poderes tcnico-cientficos da humanidade e as "marchas--r" que a "natureza" nos pode reservar. E evidente que uma responsabilidade e uma gesto mais coletiva se impem para orientar as cincias e as tcnicas em direo a finalidades mais humanas. No podemos nos deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos apare -lhos de Estado para controlar as evolues e conjurar os riscos nesses domnios, regidos no essencial pelos princpios da economia de lucro. Certamente seria absurdo querer voltar atrs para tentar reconstituir as antigas maneiras de viver. Jamais o trabalho humano ou o hbitat voltaro a ser o que eram h poucas dcadas, depois

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    das revolues informticas, robticas, depois do desenvolvimento do gnio gentico e depois da mundializao do conjunto dos mercados. A acelerao das velocidades de transporte e de comunicao, a interdependncia dos centros urbanos, estudados por Paul Virilio, constituem igualmente um estado de fato irreversvel que conviria antes de tudo reorientar. De uma certa maneira, temos que admitir que ser preciso lidar com esse estado de fato. Mas esse lidar implica uma recomposio dos objetivos e dos mtodos do conjunto do movimento social nas condies de hoje. Para simbolizar essa problemtica, que me seja suficiente evocar a experincia de Alain Bombard na televiso quando apresentou duas bacias de vidro: uma contendo gua poluda, como a que podemos recolher no porto de Marselha e na qual evolua um polvo bem vivo, como que animado por movimentos de dana; a outra, contendo gua do mar isenta de qualquer poluio. Quando ele mergulhou o polvo na gua "normal", aps alguns segundos, vimos o animal se encarquilhar, se abater e morrer.

    Mais do que nunca a natureza no pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar "transversalmente" as interaes entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referncia sociais e individuais. Tanto quanto algas mutantes e monstruosas invadem as guas de Veneza, as telas de televiso esto saturadas de uma populao de imagens e de enunciados "degenerados". Uma outra espcie de alga, desta vez relativa ecologia social, consiste nessa liberdade de proliferao que consentida a homens

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    como Donald Trump que se apodera de bairros inteiros de Nova York, de Atlantic City etc, para "renov-los", aumentar os aluguis e, ao mesmo

    tempo, rechaar dezenas de milhares de famlias pobres, cuja maior parte condenada a se tornar homeless,* o equivalente dos peixes mortos da ecologia ambiental. Seria preciso tambm falar da desterritorializao selvagem do Terceiro Mundo, que afeta concomitantemente a textura cultural das populaes, o hbitat, as defesas imunolgicas, o clima etc. Outro desastre da ecologia social: o trabalho das crianas, que se tornou mais importante do que o foi no sculo XIX! Como retomar o controle de tal situao que nos faz constantemente resvalar em catstrofes de autodestruio? As organizaes internacionais tm muito pouco controle desses fenmenos que exigem uma mudana fundamental das mentalidades. A solidariedade internacional hoje assumida apenas por associaes humanitrias, ao passo que houve um tempo em que ela concernia em

    primeiro lugar aos sindicatos e aos partidos de esquerda. O discurso marxista, por sua vez, se desvalorizou. (No o texto de Marx, que, esse sim, conserva um grande valor.) Aos protagonistas da liberao social cabe a tarefa de

    * Homeless significa literalmente "sem lar". O termo designa nos Estados Unidos um fenmeno urbano comum s metrples contemporneas: pessoas que moram nas ruas. Tal populao em geral de dois tipos: por um lado, aqueles cuja pobreza os impossibilita de pagar aluguel e, por outro lado, os "loucos". Em Nova York com o movimento de despsiquiatrizao prprio dos anos 70 e 80, aumentou muito o nmero de "loucos" morando nas ruas. O termo homeless, hoje, designa um movimento organizado naquela cidade pela aquisio de moradia, semelhante ao "movimento por moradia" existente em So Paulo. (N.R.)

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    reforjar referncias tericas que iluminem uma via de sada possvel para a histria que atravessamos, a qual mais aterradora do que nunca. No somente as espcies desaparecem, mas tambm as palavras, as frases, os gestos de solidariedade humana. Tudo feito no sentido de esmagar sob uma camada de silncio as lutas de emancipao das mulheres e dos novos proletrios que constituem os desempregados, os "marginalizados", os imigrados.

    Se to importante que, no estabelecimento de seus pontos de referncia cartogrficos, as trs ecologias se desprendam dos paradigmas pseudocientficos, isso no se deve unicamente ao grau de complexidade das entidades consideradas mas, mais fundamentalmente, ao fato de que no estabelecimento de tais pontos de referncia est implicada uma lgica diferente daquela que rege a comunicao ordinria entre locutores e auditores e, simultaneamente, diferente da lgica que rege a inteligibilidade dos conjuntos discursivos e o encaixe indefinido dos campos de significao. Essa lgica das intensidades, que se aplicam aos Agenciamentos existenciais auto-referentes e que engajam duraes irreversveis, no concerne apenas aos sujeitos humanos constitudos em corpos totalizados, mas tambm a todos os objetos parciais, no sentido psicanaltico, os objetos transicionais, no sentido de Winnicott, os objetos institucionais (os "grupos-sujeito"), os rostos, as paisagens etc. Enquanto que a lgica dos conjuntos discursivos se prope limitar muito bem seus objetos, a lgica das intensidades, ou a eco-lgica,* leva em conta apenas o movimento, a intensidade dos processos evolutivos. O processo, que aqui oponho ao sistema ou estrutura, visa a existncia em vias de,

    * O grifo meu. (N.R.)

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    ao mesmo tempo, se constituir, se definir e se desterritorializar. Esses processos de "se pr a ser" dizem respeito apenas a certos subconjuntos expressivos que romperam com seus encaixes totalizantes e se puseram a

    trabalhar por conta prpria e a subjugar seus conjuntos referenciais para se manifestar a ttulo de indcios existenciais, de linha de fuga processual...

    Em cada foco existencial parcial as prxis ecolgicas se esforaro por detectar os vetores potenciais de subjetivao e de singularizao. Em geral trata-se de algo que se coloca atravessado ordem "normal" das coisas - uma repetio contrariante, um dado intensivo que apela outras intensidades a fim de compor outras configuraes existenciais. Tais vetores dissidentes se encontram relativamente destitudos de suas funes de denotao e de significao, para operar enquanto materiais existenciais descorporificados. Mas cada uma dessas provas de suspenso do sentido representa um risco, o de uma desterritorializao por demais brutal que destri o Agenciamento de subjetivao (exemplo: a imploso do movimento social na Itlia, no incio dos anos 80). Ao contrrio, uma desterritorializao suave pode fazer evoluir os Agenciamentos de um modo processual construtivo. a que se encontra o corao de todas prxis ecolgicas: as rupturas a-significantes, os catalisadores existenciais esto ao alcance das mos, mas, na ausncia de um Agenciamento de enunciao que lhes d um suporte expressivo, eles permanecem passivos e correm o risco de perder sua consistncia ( mais por esse lado que convir procurar as razes da angstia, da culpabilidade e, de maneira geral,

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    de todas as reiteraes psicopatolgicas). No caso dos Agenciamentos processuais, a ruptura expressiva a-significante convoca uma repetio

    criativa que forje objetos incorporais, Mquinas abstratas e Universos de valor impondo-se como se tivessem sempre estado a, ainda que totalmente tributrios do acontecimento existencial que lhes d nascimento.

    Por outro lado, tais segmentos catalticos existenciais podem continuar sendo portadores de denotao e de significao. Donde a ambigidade, por exemplo, de um texto potico que a um s tempo pode transmitir uma mensagem, denotar um referente, funcionando essencialmente sobre redundncias de expresso e contedo. Proust analisou perfeitamente o funcionamento desses ritornelos existenciais como lugar cataltico de subjetivao (a "pequena frase" de Vinteuil, o movimento dos sinos de Martinville, o sabor da "madeleine" etc). O que convm sublinhar aqui que o trabalho de demarcao dos ritornelos existenciais no concerne apenas literatura e s artes. Tambm encontramos essa eco-lgica operando na vida cotidiana, nos diversos patamares da vida social e, de forma mais geral, a cada vez que est em questo a constituio de um Territrio existencial. Acrescentemos que tais Territrios podem estar to desterritorializados quanto se possa imaginar (podem se encarnar na Jerusalm celeste, numa problemtica relativa ao bem e mal, num engajamento tico-poltico etc). O nico ponto comum que existe entre esses diversos traos existenciais o de sustentar a produo de existentes singulares ou de ressingularizar conjuntos serializados.

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    Em todos os lugares e em todas as pocas, a arte e a religio foram o refgio de cartografias existenciais fundadas na assuno de certas rupturas de sentido "existencializantes". Mas a poca contempornea, exacerbando a produo de bens materiais e imateriais em detrimento da consistncia de Territrios existenciais individuais e de grupo, engendrou um imenso vazio na subjetividade que tende a se tornar cada vez mais absurda e sem recursos. No s no constatamos nenhuma relao de causa e efeito entre o crescimento dos recursos tcnico-cientficos e o desenvolvimento dos progressos sociais e culturais, como parece evidente que assistimos a uma degradao irreversvel dos operadores tradicionais de regulao social. Ainda que diante de tal fenmeno seja artificial apostar numa volta atrs, numa recomposio das maneiras de ser de nossos antepassados, exatamente o que tentam fazer sua maneira as formaes capitalistas mais

    "modernistas". Vemos por exemplo que certas estruturas hierrquicas tendo perdido uma parte considervel de sua eficincia funcional (em razo, particularmente, dos novos meios de informao e de concertamento por computador) so o objeto de um sobreinvestimento imaginrio, que confina, s vezes, como no Japo, numa devoo religiosa e isto tanto nas camadas dirigentes, quanto nos escales inferiores. Na mesma ordem de idias, assistimos a um reforo das atitudes segregativas com relao aos imigrados, s mulheres, aos jovens e at s pessoas idosas. Tal ressurgimento do que poderamos chamar de um conservantismo subjetivo no unicamente imputvel ao reforo da represso social; diz respeito igualmente a uma espcie de crispao existencial que envolve o conjunto de atores sociais. O capitalismo ps-industrial que, de minha parte, prefiro qualificar como Capitalismo Mundial

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    Integrado (CMI) tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas de produo de bens e de servios para as estruturas produtoras de signos, de sintaxe e de subjetividade, por intermdio, especialmente, do controle que exerce sobre a mdia, a publicidade, as sondagens etc.

    H a uma evoluo que deveria nos levar a refletir sobre o que foram, nesse sentido, as formas anteriores do capitalismo, pois elas tambm no eram isentas dessa propenso a capitalizar poder subjetivo, tanto nas fileiras de suas elites quanto nas de seus proletrios. Entretanto essa propenso ainda no manifestava plenamente sua verdadeira importncia e por isso, na ocasio, ela no foi convenientemente apreciada pelos tericos do movimento operrio.

    Proponho reagrupar em quatro principais regimes semiticos os

    instrumentos sobre os quais repousa o CMI:

    a) as semiticas econmicas (instrumentos monetrios, financeiros, contbeis, de deciso...);

    b) as semiticas jurdicas (ttulo de propriedade, legislao e regulamentaes diversas...);

    c) as semiticas tcnico-cientficas (planos, diagramas, programas, estudos, pesquisas...);

    d) as semiticas de subjetivao, das quais algumas coincidem com as que acabam de ser enumeradas mas conviria acrescentar muitas outras, tais como aquelas relativas arquitetura, ao

    urbanismo, aos equipamentos coletivos etc.

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    Devemos admitir que os modelos que pretendiam fundar uma hierarquia causai entre esses regimes semiticos esto prestes a perder todo o contato com a realidade. Torna-se cada vez mais difcil, por exemplo, sustentar que as semiticas econmicas e aquelas que concorrem para a

    produo de bens materiais ocupam uma posio infra-estrutural com relao s semiticas jurdicas e ideolgicas, como postulava o marxismo. O objeto do CMI , hoje, num s bloco: produtivo-econmico-subjetivo. E, para voltarmos a antigas categorizaes escolsticas, poderamos dizer que ele resulta ao mesmo tempo de causas materiais, formais, finais e eficientes.

    Um dos problemas-chave de anlise que a ecologia social e a ecologia mental deveriam encarar a introjeo do poder repressivo por parte dos oprimidos. A maior dificuldade, aqui, reside no fato de que os sindicatos e os partidos, que lutam em princpio para defender os interesses dos trabalhadores e dos oprimidos, reproduzem em seu seio os mesmos modelos patognicos que, em suas fileiras, entravam toda liberdade de expresso e de inovao. Talvez seja necessrio ainda um bom tempo para que o movimento operrio reconhea que as atividades de circulao, distribuio, comunicao, enquadramento... constituem vetores econmico-ecolgicos que, do ponto de vista da criao da mais-valia, se situam rigorosamente no mesmo plano que o trabalho diretamente incorporado na produo de bens materiais. A esse respeito, um desconhecimento dogmtico foi mantido por numerosos tericos, reforando um obreirismo e um corporatismo que desnaturalizaram e desfavoreceram profundamente os movimentos de emancipao anticapitalistas dessas ltimas dcadas.

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    Esperemos que uma recomposio e um reenquadramento das finalidades das lutas emancipatrias tornem-se, o quanto antes, correlativas ao desenvolvimento dos trs tipos de prxis eco-lgicas aqui evocados. E faamos votos para que no contexto das novas distribuies das cartas da relao entre o capital e a atividade humana, as tomadas de conscincia ecolgicas, feministas, anti-racistas etc. estejam mais prontas a ter em mira, a ttulo de objetivo maior, os modos de produo da subjetividade - isto , de conhecimento, cultura, sensibilidade e sociabilidade - que dizem respeito a sistemas de valor incorporai, os quais a partir da estaro situados na raiz dos novos Agenciamentos produtivos.

    A ecologia social dever trabalhar na reconstruo das relaes humanas em todos os nveis, do socius. Ela jamais dever perder de vista que o poder capitalista se deslocou, se desterritorializou, ao mesmo tempo em extenso - ampliando seu domnio sobre o conjunto da vida social, econmica e cultural do planeta -e em "inteno" - infiltrando-se no seio dos mais inconscientes estratos subjetivos. Assim sendo, no possvel pretender se opor a ele apenas de fora, atravs de prticas sindicais e polticas tradicionais. Tornou-se igualmente imperativo encarar seus efeitos no domnio da ecologia mental, no seio da vida cotidiana individual, domstica, conjugai, de vizinhana, de criao e de tica pessoal. Longe de buscar um consenso cretinizante e infantilizante, a questo ser, no futuro, a de cultivar o dissenso e a produo singular de existncia. A subjetividade capitalstica, tal como engendrada por operadores de qualquer natureza ou tamanho, est

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    manufaturada de modo a premunir a existncia contra toda intruso de acontecimentos suscetveis de atrapalhar e perturbar a opinio. Para esse tipo de subjetividade, toda singularidade deveria ou ser evitada, ou passar pelo crivo de aparelhos e quadros de referncia especializados. Assim, a subjetividade capitalstca se esfora por gerar o mundo da infncia, do amor, da arte, bem como tudo o que da ordem da angstia, da loucura, da dor, da morte, do sentimento de estar perdido no cosmos... a partir dos dados existenciais mais pessoais - deveramos dizer mesmo infra-pessoais -que o CMI constitui seus agregados subjetivos macios, agarrados raa, nao, ao corpo profissional, competio esportiva, virilidade dominadora, star da mdia... Assegurando-se do poder sobre o mximo de ritornelos existenciais para control-los e neutraliz-los, a subjetividade capitalstica se enebria, se anestesia a si mesma, num sentimento coletivo de pseudo-eternidade.

    E no conjunto dessas frentes emaranhadas e heterogneas que, parece-me devero articular-se as novas prticas ecolgicas, cujo objetivo ser o de tornar processualmente ativas singularidades isoladas, recalcadas, girando em torno de si mesmas. (Exemplo: uma classe escolar, onde estivessem sendo aplicados os princpios da escola Freinet, que consistem em singularizar seu funcionamento global - sistema cooperativo, reunies de avaliao, jornal, liberdade para os alunos organizarem seus trabalhos, individualmente ou em grupo etc).

    Nessa mesma perspectiva, dever-se- considerar os sintomas e incidentes fora das normas como ndices de um trabalho poten -

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    cial de subjetivao. Parece-me essencial que se organizem assim novas prticas micropolticas e microssociais, novas solidarieda-des, uma nova suavidade juntamente com novas prticas estticas e novas prticas analticas das formaes do inconsciente. Parece-me que essa a nica via possvel para que as prticas sociais e polticas saiam dessa situao, quero dizer, para que elas trabalhem para a humanidade e no mais para um simples reequilbrio permanente do Universo das semiticas capitalsticas. Poder-se-ia objetar que as lutas em grande escala no esto necessariamente em sincronia com as prxis ecolgicas e as micropolticas do desejo. Mas a est toda a questo: os diversos nveis de prtica no s no tm de ser homogeneizados, ajustados uns aos outros sob uma tutela transcendente, mas, ao contrrio, convm engaj-los em processos de heterognese. Nunca as feministas estaro suficientemente implicadas num devir-mulher, e no h razo alguma para pedir aos imigrados que renunciem aos traos culturais colados em seus seres ou a sua dependncia nacionalitria. Convm deixar que se desenvolvam as culturas particulares inventando-se, ao mesmo tempo, outros contatos de cidadania. Convm fazer com que a singularidade, a exceo, a raridade funcionem junto com uma ordem estatal o menos pesada possvel.

    A eco-lgica no mais impe "resolver" os contrrios, como o

    queriam as dialticas hegelianas e marxistas. Em particular no domnio da ecologia social haver momentos de luta onde todos e todas sero conduzidos a fixar objetivos comuns e a se comportar "como soldadinhos" - quero dizer, como bons militantes; mas

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    haver, ao mesmo tempo, momentos de ressingularizao onde as subjetividades individuais e coletivas "voltaro a ficar na delas" e onde prevalecer a expresso criadora enquanto tal, sem mais nenhuma preocupao com relao s finalidades coletivas. Essa nova lgica ecosfica, volto a sublinhar, se aparenta do artista que pode ser levado a remanejar sua obra a partir da intruso de um detalhe acidental, de um acontecimento-incidente que repentinamente faz bifurcar seu projeto inicial, para faz-lo derivar longe das perspectivas anteriores mais seguras. Um provrbio pretende que a "exceo confirme a regra", mas ela pode muito bem dobr-la ou recri-la.

    Em minha opinio, a ecologia ambiental, tal como existe hoje, no fez seno iniciar e prefigurar a ecologia generalizada que aqui preconizo e que ter por finalidade descentrar radicalmente as lutas sociais e as maneiras de assumir a prpria psique.* Os movimentos ecolgicos atuais tm certamente muitos mritos, mas, penso que na verdade, a questo ecosfica global importante demais para ser deixada a algumas de suas correntes arcaizantes e folclorizantes, que s vezes optam deliberadamente por recusar todo e qualquer engajamento poltico em grande escala. A conotao da ecologia deveria deixar de ser vinculada imagem de uma pequena minoria de amantes da natureza ou de especialistas diplomados. Ela pe em causa o conjunto da subjetividade e das formaes de poder capi-talsticos - os quais no esto de modo algum seguros que continuaro a venc-la, como foi o caso na ltima dcada.

    O grifo meu. (N.R.)

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    No apenas a crise permanente atual, financeira e econmica, pode desembocar em importantes transtornos do status quo social e do imaginrio da mdia que lhe serve de base, como tambm certos temas veiculados pelo neo-liberalismo, relativos por exemplo flexibilidade de trabalho, s desregulagens etc, podem perfeitamente voltar-se contra ele.

    Insisto, essa escolha no mais apenas entre uma fixao cega s

    antigas tutelas estatal-burocrticas, um welfare generalizado ou um abandono desesperado ou cnico ideologia dos yuppies. Tudo leva a crer que os ganhos de produtividade engendrados pelas revolues tecnolgicas atuais se inscrevero numa curva de crescimento logartmico. A questo , a partir da, a de saber se novos operadores ecolgicos e novos Agenciamentos ecosficos de enunciao chegaro ou no a orient-los por vias menos absurdas e sem sada do que as do CMI.

    O princpio comum s trs ecologias consiste, pois, em que os Territrios existenciais com os quais elas nos pem em confronto no se

    do como um em-si, fechado sobre si mesmo, mas como um para-si precrio, finito, finitizado, singular, singularizado, capaz de bifurcar em reiteraes estratificadas e mortferas ou em abertura processual a partir de prxis que permitam torn-lo "habitvel" por um projeto humano. E essa abertura prxica que constitui a essncia desta arte da "eco" subsumindo todas as manei-

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    ras de domesticar4 os Territrios existenciais, sejam eles concernentes s maneiras ntimas de ser, ao corpo, ao meio ambiente ou aos grandes conjuntos contextuais relativos etnia, nao ou mesmo aos direitos gerais da humanidade. Assim sendo, esclareamos que no se trata para ns de erigir regras universais a ttulo de guia de tais prxis, mas, ao contrrio, de liberar as antinomias de princpio entre os trs nveis ecosficos ou, se prefirirmos, entre as trs vises ecolgicas, as trs lentes discriminantes aqui em questo.

    O princpio especfico da ecologia mental reside no fato de que sua abordagem dos Territrios existenciais depende de uma lgica pr-objetal e pr-pessoal evocando o que Freud descreveu como um "processo primrio". Lgica que poderamos dizer do "terceiro incluso", onde o branco e o negro so indistintos, onde o belo coexiste com o feio, o dentro com o fora, o "bom objeto" com o mau... No caso particular da ecologia do fantasma, o que se requer, a cada tentativa de levantamento cartogrfico, a elaborao de um suporte expressivo singular ou, mais exatamente, singularizado. Gregory Bateson deixou bem claro que o que ele chama de "ecologia das idias" no pode ser circunscrito ao domnio da psicologia dos indivduos mas se organiza em sistemas ou em "esprito" (minds) cujas fronteiras no mais coincidem com os indivduos que deles participam.5 Mas onde deixamos de segui-lo quando ele faz da ao e da enunciao simples partes do subsiste

    4 A raiz eco aqui entendida em sua acepo original grega: okos, que significa casa, bem domstico, hbitat, meio natural.

    5Vers 1'cologie de 1'esprit, op. cit., tomo II, pp. 93-94.

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    ma ecolgico chamado contexto. De minha parte, considero que a "tomada de contexto" existencial depende sempre de uma prxis instaurando-se em ruptura com o "pretexto" sistmico. No existe hierarquia de conjunto que aloje e localize num dado nvel os componentes de enunciao. Estes so compostos de elementos heterogneos tomando consistncia e persistncia comum por ocasio de passagens de limiares constitutivos de um mundo em detrimento de um outro. Os operadores dessa cristalizao so fragmentos de cadeias discursivas a-significantes que Schlegel comparava a obras de arte ("Semelhante a uma pequena obra de arte, um fragmento deve ser totalmente destacado do mundo ambiente e fechado sobre si mesmo como um ourio").6

    A questo da ecologia mental pode surgir a todo momento, em todos os lugares, para alm dos conjuntos bem constitudos na ordem individual ou coletiva. Para apreender esses fragmentos catalisadores de bifurcaes existenciais, Freud inventou os rituais da sesso, da associao livre, da interpretao, em funo de mitos de referncia psicanalticos. Hoje certas correntes ps-sistmicas da terapia familiar dedicam-se a forjar outras cenas e outras referncias. Tudo isso timo! Mas, ainda assim, trata-se de bases conceituais incapazes de dar conta das produes de subjetividade "primria", tal como se desenvolvem em escala verdadeiramente industrial, em particular a partir da mdia e dos equipamentos coletivos. O conjunto dos corpus tericos desse tipo apresenta o

    6. Citado por Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, em L'Absolu littraire, 1978, p. 126.

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    inconveniente de ser fechado a uma eventual proliferao criativa. Mito ou teoria, a pretenso cientfica, a pertinncia dos modelos relativos ecologia mental deveria ser julgada em funo de: 1) sua capacidade de circunscrever as cadeias discursivas em ruptura de sentido; 2) sua possibilidade de operar conceitos autorizando uma autoconstrutibilidade terica e prtica. O freudismo responde bem ou mal primeira exigncia mas no segunda; inversamente, o ps-sistemismo teria antes tendncia a responder segunda, ao mesmo tempo em que subestimaria a primeira; j no campo poltico-social, os meios "alternativos" geralmente desconhecem o conjunto das problemticas relativas ecologia mental.

    De nossa parte, preconizamos repensar por outra via as diversas tentativas de modelizao "psi", do mesmo modo que as prticas das seitas religiosas ou os "romances familiares" neurticos e os delrios psicticos. Tratar-se- de dar conta dessas prticas menos em termos de verdade cientfica que em funo de sua eficcia esttico-existencial. Que foi posto em funcionamento aqui? Quais cenas existenciais se encontram, bem ou mal, instaladas? O objetivo crucial a apreenso dos pontos de ruptura a-significantes - em ruptura de denotao, de conotao e de significao - a partir dos quais algumas cadeias semiticas trabalharo a servio de um efeito de auto-referncia existencial. O sintoma repetitivo, a orao, o ritual da "sesso", a palavra de ordem, o emblema, o ritornelo, a cristalizao rostificadora da star... entabulam a produo de uma subjetividade parcial; pode-se dizer que so a base de uma proto-subjetividade. Os freudianos j

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    haviam detectado a existncia de vetores de subjetivao escapando ao domnio do ego: subjetividade parcial, complexual, enlaando-se em torno de objetos em ruptura de sentido tais como o seio materno, as fezes, o sexo... Mas esses objetos, geradores de subjetividade "dissidente", eles os conceberam como permanecendo essencialmente adjacentes s pulses instintuais e num imaginrio corporeizado. Outros objetos institucionais, arquiteturais, econmicos, csmicos, se constituem to legitimamente

    quanto como suporte dessa mesma funo de produo existencial. Repito, o essencial aqui o corte-bifurcao, impossvel de ser

    representado enquanto tal, que no entanto, vai secretar toda uma fantasmtica das origens (cena primitiva freudiana, olhar "armado" do sistemista da terapia familiar, cerimonial de iniciao, de conjurao etc). A pura auto-referncia criativa insustentvel pela apreenso da existncia ordinria. Sua representao pode apenas mascarar a existncia ordinria, travesti-la, desfigur-la, faz-la transitar por mitos e relatos de referncia - aquilo que chamo de uma meta-modelizao. Corolrio: no poderamos ter acesso a tais focos de subjetivao criativa em estado nascente seno pelo desvio de uma economia fantasmtica se desenvolvendo sob forma desviada. Assim, ningum est dispensado de jogar o jogo da ecologia do imaginrio!

    Seja na vida individual ou na vida coletiva, o impacto de uma ecologia mental no pressupe uma importao de conceitos e de prticas a partir de um domnio "psi" especializado. Fazer face lgica da ambivalncia desejante, onde quer que ela se perfile - na

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    cultura, na vida cotidiana, no trabalho, no esporte etc. -, reapreciar a finalidade do trabalho e das atividades humanas em funo de critrios diferentes daqueles do rendimento e do lucro: tais imperativos da ecologia mental convocam uma mobilizao apropriada do conjunto dos indivduos e dos segmentos sociais. Que lugar dar, por exemplo, aos fantasmas de agresso, de assassinato, de violao, de racismo no mundo da infncia e da vida adulta regressiva? Ao invs de acionar incansavelmente procedimentos de censura e de conteno, em nome de grandes princpios morais, melhor conviria promover uma verdadeira ecologia do fantasma, que tivesse como objeto transferncias, translaes, reconverses de suas matrias de expresso7. obviamente legtimo que uma represso se exera com relao s "passagens ao ato"! Mas antes disso, necessrio que se arranjem modos de expresso adequados s fantasmagorias negativistas e destrutivas, de modo que elas possam, como no tratamento da psicose, ab-reagir de maneira a recolar Territrios existenciais que esto deriva. Tal "transversalizao" da violncia implica que no se pressuponha a existncia incontornvel de uma pulso de morte intrapsquica, constantemente espreita, pronta a tudo devastar a sua passagem no momento em que os Territrios do Ego perdem sua consistncia e sua vigilncia. A violncia e a negatividade resultam sempre de Agenciamentos subjetivos complexos: elas no esto intrinsecamente inscritas na essncia da espcie humana, so construdas e susten-

    7. Um exemplo brilhante desse tipo de reconverso humorstica das pulses sdicas se encontra no filme de Roland Topor, intitulado Le Marquis.

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    tadas por mltiplos Agenciamentos de enunciao. Sade e Cline esforaram-se, com maior ou menor felicidade, por tornar quase barrocos seus fantasmas negativos. Por essa razo, eles deveriam ser considerados como autores-chave de uma ecologia mental. Na falta de uma tolerncia e de uma inventividade permanente para "imaginarizar" os diversos avatares da violncia, a sociedade corre o risco de faz-los cristalizar-se no real.

    V-se isso hoje, por exemplo, na explorao comercial intensiva das histrias em quadrinhos escatolgicas destinadas infncia.8 V-se isso, no entanto, de modo muito mais inquietante sob a forma de um caolho ao mesmo tempo repugnante e fascinante que, melhor que ningum, sabe impor o implcito racista e nazi de seu discurso no cenrio da mdia, assim como no seio das relaes de foras polticas. prefervel no tapar os olhos: a potncia desse tipo de personagem vem do fato de que ele consegue se fazer de intrprete de montagens pulsionais que assombram, de fato, o conjunto do socius.

    No sou to ingnuo e utopista para pretender que existiria uma metodologia analtica segura que erradicasse em profundidade todos os fantasmas que conduzem a reificar a mulher, o imigrado, o louco etc, e eliminasse as instituies penitencirias, psiquitricas etc. Mas parece-me

    que uma generalizao das experincias de anlise institucional (no hospital, na escola, no meio urbano...) poderia

    8 Cf. a pesquisa de Libration do dia 17 de maro de 1989, intitulada "SOS Crados". O autor refere-se, provavelmente, a Jean Marie Le Pen, hoje deputado europeu e lder do Front National, partido de extrema direita na Frana. Esse partido obteve 10% dos votos nas eleies parciais de novembro de 1989 (ano da escrita deste texto). (N.R.)

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    modificar profundamente os dados desse problema. Uma imensa reconstruo das engrenagens sociais necessria para fazer face aos destroos do CMI. S que essa reconstruo passa menos por reformas de cpula, leis, decretos, programas burocrticos do que pela promoo de prticas inovadoras, pela disseminao de experincias alternativas, centradas no respeito singularidade e no trabalho permanente de produo de subjetividade, que vai adquirindo autonomia e ao mesmo tempo se articulando ao resto da sociedade. Dar lugar para as brutais desterritorializaes da psique e do socius, em que consistem os fantasmas de violncia, pode conduzir no a uma sublimao miraculosa, mas a reconverses de Agenciamentos que transbordam por todos os lados o corpo, o Ego, o indivduo. O Super-ego punitivo e a culpabilizao mortfe-ra no podem ser atingidos pelos meios ordinrios da educao e do "viver bem". Fora o Islo, as grandes religies tm cada vez menos acesso psique, ao mesmo tempo em que vemos florescer, aqui e ali por todo o mundo, uma espcie de retorno ao totemismo e ao animismo. As comunidades humanas imersas na tormenta tendem a se curvar sobre si mesmas, deixando nas mos dos polticos profissionais o cuidado de reger a organizao social, enquanto os sindicatos so ultrapassados pelas mutaes de uma sociedade que, por toda parte, encontra-se em crise latente ou manifesta9.

    9. Um sintoma desse estado consiste na proliferao de "coordenaes" espontneas por ocasio dos grandes movimentos sociais. Destaquemos o fato de que elas s vezes se utilizam de transmisses telemticas de mensagens, de maneira a desenvolver a expreso da "base" (por exemplo, o Minitel 3615 cdigo ALTER).

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    O princpio particular ecologia social diz respeito promoo de um investimento afetivo e pragmtico em grupos humanos de diversos tamanhos. Esse "Eros de grupo" no se apresenta como uma quantidade abstrata mas corresponde a uma reconverso qualitativamente especfica da subjetividade primria, da alada da ecologia mental. Duas opes se apresentam aqui: seja a triangulao personolgica da subjetividade, segundo o modo Eu-Tu-Ele, pai-me-filho... seja a constituio de grupos-sujeito auto-referentes se abrindo amplamente ao socius e ao cosmos. No primeiro caso, o eu e o outro so construdos a partir de um jogo de identificaes e de imitaes padro que levam a grupos primrios voltados para o pai, o chefe, a star de mdia. E, com efeito, no sentido dessa psicologia de massas maleveis que trabalha a grande mdia. No segundo caso, no lugar de sistemas identificatrios, passam a operar traos de eficincia diagramticos. Escapa-se aqui, ao menos parcialmente, das semiologias da modelizao icnica em proveito de semiticas processuais, as quais tomaria o cuidado de no chamar de simblicas para no recair nos inveterados hbitos estruturalistas. O que caracteriza um trao diagramtico, com relao a um cone, seu grau de desterritorializao, sua capacidade de sair de si mesmo para constituir cadeias discursivas conectadas com o referente. Por exemplo, podemos distinguir a imitao identificatria de um aluno pianista com relao a seu mestre de uma transferncia de estilo, suscetvel de bifurcar numa via singular. De modo geral, distinguiremos os agregados imaginrios de massa dos Agenciamentos coletivos de enunciao

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    implicando tanto traos pr-pessoais quanto sistemas sociais ou com-ponentes maqunicos. (Oporemos aqui os maquinismos vivos "autopoiticos"10 aos mecanismos de repetio vazia.)

    Ainda assim, as oposies entre essas duas modalidades no so to ntidas: uma multido pode estar habitada por grupos desempenhando a funo de lder de opinio, e grupos-sujeito podem recair no estado amorfo e alienante. As sociedades capitalsticas expresso sob a qual agrupo, ao lado das potncias do Oeste e do Japo, os pases ditos do socialismo real e as Novas Potncias Industriais do Terceiro Mundo fabricam hoje em dia, para coloc-las a seu servio, trs tipos de subjetividade: uma subjetividade serial correspondendo s classes salariais, uma outra imensa massa dos "no-garantidos" e, enfim, uma subjetividade elitista correspondendo s camadas dirigentes. A acelerada midiatizao do conjunto das sociedades tende assim a criar um hiato cada vez mais pronunciado entre essas diversas categorias de populao. Do lado das elites, so colocados suficientemente disposio bens materiais, meios de cultura, uma prtica mnima da leitura e da escrita e um sentimento de competncia e de legitimidade decisionais. Do lado das classes sujeitadas, encontramos, bastante freqentemente, um abandono ordem das coisas, uma perda de esperana de dar um sentido vida. Um ponto programtico primordial da ecologia social seria o de fazer transitar essas sociedades capitalsticas da era da mdia em direo a uma era ps-mdia, assim entendida como uma reapropriao da mdia por uma multido de grupos-sujeito, capazes de geri-la numa via de ressingularizao. Tal perspectiva pode hoje parecer

    10. No sentido de Francisco Varella, Autonomie et connaissance. Paris, Seuil, 1989.

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    fora de alcance, mas a situao atual de uma maximizao de alienao pela mdia no depende de nenhuma necessidade intrnseca. Nesse campo, a viso fatalista das coisas me parece corresponder ao desconhecimento de vrios fatores:

    a) as bruscas tomadas de conscincia das massas, que continuam sempre possveis;

    b) o desabamento progressivo do stalinismo e de seus avatares, o que d lugar a outros Agenciamentos de transformao das lutas sociais;

    c) a evoluo tecnolgica da mdia, em particular sua miniaturizao, a diminuio de seu custo, sua possvel utilizao para fins no capitalsticos;

    d) a recomposio dos processos de trabalho sobre os escombros dos sistemas de produo industriais do incio do sculo, o que reclama uma crescente produo de subjetividade "criacionista", tanto no plano individual quanto no plano coletivo. (Atravs da formao permanente, o incremento de mo-de-obra, as transferncias de competncia etc.)

    s primeiras formas de sociedade industrial que coube laminar e serializar a subjetividade das classes trabalhadoras. Hoje, a especializao internacional do trabalho exportou para o Terceiro Mundo os mtodos de trabalho em srie. Na era das revolues

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    informticas, do surgimento das biotecnologias, da criao acelerada, de novos materiais e de uma "maquinizao" cada vez mais fina do tempo11, novas modalidades de subjetivao esto prestes a surgir. Um apelo maior se far inteligncia e iniciativa e, em contrapartida, ter-se- um cuidado maior com a codificao e o controle da vida domstica do casal conjugai e da famlia nuclear. Em resumo, reterritorializando a famlia em grande escala (pela mdia, pelos servios de assistncia, pelos salrios indiretos...), tentar-se- aburguesar ao mximo a subjetividade operria.

    As operaes de reivindicao e de "familiarizao" no tm o mesmo efeito quando se dirigem a um terreno de subjetividade coletiva devastada pela era industrial do sculo XIX e da primeira metade do sculo XX, ou quando se dirigem a terrenos onde foram mantidos certos traos arcaicos herdados da era pr-capitalista. Nesse sentido, o exemplo do Japo e da Itlia parecem significativos, j que so pases que conseguiram enxertar indstrias de ponta numa subjetividade coletiva que guarda vnculos com um passado s vezes muito recuado (remontando ao shinto-budismo no Japo e s pocas patriarcais na Itlia). Nesses dois pases, a reconverso ps-industrial se efetuou por transies relativamente menos brutais que na Frana, onde regies inteiras saram por um longo perodo da vida econmica ativa.

    11. Sobre esses quatro temas, em plena mutao, ver o relatrio de Thierry Gaudin, "Rapport sur l'tat de la technique", CPE, Science et Techniques (nmero especial).

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    Em alguns pases do Terceiro Mundo, assistimos igualmente superposio de uma subjetividade medieval (relao de submisso ao cl, alienao total das mulheres e das crianas etc.) e de uma subjetividade ps-industrial. Podemos, alis, nos perguntar se esse tipo de Novas Potncias Industriais, no momento localizado principalmente ao longo do mar da China, no vai igualmente eclodir s margens do Mediterrneo e da frica Atlntica. Se assim fosse, veramos todas uma srie de regies da Europa submetidas a rudes tenses, pelo fato de um questionamento radical de suas fontes de renda e de seu estatuto de pertinncia s grandes potncias brancas.

    Nesses vrios domnios, as problemticas ecolgicas se entremeiam. Deixada a si mesma, a ecloso dos neo-arcasmos sociais e mentais pode conduzir tanto ao melhor quanto ao pior! Trata-se a de uma questo assustadora: o fascismo dos aiatols, no o esqueamos, s pode se instaurar baseado numa profunda revoluo popular no Ir. As recentes revoltas de jovens, na Arglia, promoveram uma dupla simbiose entre as maneiras de viver no Ocidente e as diversas verses de integrismo. A ecologia social espontnea trabalha na constituio de Territrios existenciais que, bem ou mal, suprem os antigos esquadrinhamentos rituais e religiosos do socius. Parece bvio que, nesse domnio, enquanto prxis coletivas politicamente coerentes no vieram assumi-lo, acabaro sempre vencendo os empreendimentos nacionalistas reacionrios, opressivos para as mulheres, as crianas, os marginais, e hostis a toda inovao. No se trata aqui de propor um modelo de

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    sociedade pronto para usar, mas to-somente de assumir o conjunto de componentes ecosficos cujo objetivo ser, em particular, a instaurao de novos sistemas de valorizao.

    J sublinhei que cada vez menos legtimo que as retribuies financeiras e de prestgio das atividades humanas socialmente reconhecidas sejam reguladas apenas por um mercado fundado no lucro. Outros sistemas de valor deveriam ser levados em conta (a "rentabilidade" social, esttica, os valores de desejo etc). Somente o Estado, at o momento, est em posio de arbitrar em campos de valor no decorrente do lucro capitalista (exemplo: a apreciao do campo do patrimnio). Parece necessrio insistir sobre o fato de que novos substitutos sociais, tais como fundaes reconhecidas como sendo de utilidade social, deveriam poder flexibilizar e ampliar o financiamento do Terceiro Setor nem privado, nem pblico que ser constantemente levado a crescer medida que o trabalho humano der lugar ao trabalho maqunico. Para alm de uma renda mnima garantida para todos reconhecida como direito e no a ttulo de contrato dito de reinsero , a questo se perfila de serem colocados disposio meios de levar avante empreendimentos individuais e coletivos, indo no sentido de uma ecologia da ressingularizao. A procura de um Territrio ou de uma ptria existencial no passa necessariamente pela de uma terra natal ou de uma filiao de origem longnqua. Os movimentos nacionalitrios (de tipo basco, Irlanda), muito freqentemente se dobram sobre si mesmos, por causa de antagonismos exteriores,

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    deixando de lado as outras revolues moleculares relativas liberao da mulher, ecologia ambiental etc. Toda espcie de "nacionalidades" desterritorializadas so concebveis, tais como a msica, a poesia... O que condena o sistema de valorizao capitalstico seu carter de equivalente geral, que aplaina todos os outros modos de valorizao, os quais ficam assim alienados sua hegemonia. A isso conviria seno opor ao menos superpor instrumentos de valorizao fundados nas produes existenciais que no podem ser determinadas em funo unicamente de um tempo de trabalho abstrato, nem de um lucro capitalista esperado. Novas "bolsas" de valores, novas deliberaes coletivas dando chance aos empreendimentos os mais individuais, os mais singulares, os mais dissensuais, so convocados a emergir - se apoiando, particularmente, em meios de concertamento telemticos e informticos. A noo de interesse coletivo deveria ser ampliada a empreendimentos que a curto prazo no trazem "proveito" a ningum, mas a longo prazo so portadores de enriquecimento processual para o conjunto da humanidade. o conjunto do futuro da pesquisa fundamental e da arte que est aqui em causa.

    Essa promoo de valores existenciais e de valores de desejo no se apresentar, sublinho, como uma alternativa global, constituda de uma vez por todas. Ela resultar de um deslocamento generalizado dos atuais sistemas de valor e da apario de novos plos de valorizao. A esse respeito significativo que, nos ltimos perodos, as mais espetaculares mudanas sociais se deram

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    pelo fato desse tipo de deslizamento a longo prazo: seja no plano poltico, por exemplo nas Filipinas ou no Chile, seja no plano nacionalitrio, na URSS, onde mil revolues dos sistemas de valor se infiltram progressivamente. Cabe aos novos componentes ecolgicos polariz-los e afirmar seus respectivos pesos nas relaes de foras polticas e sociais.

    O princpio particular ecologia ambiental o de que tudo possvel tanto as piores catstrofes quanto as evolues flexveis12. Cada vez mais, os equilbrios naturais dependero das intervenes humanas. Um tempo vir em que ser necessrio empreender imensos programas para regular as relaes entre o oxignio, o oznio e o gs carbnico na atmosfera terrestre. Poderamos perfeitamente requalificar a ecologia ambiental de ecologia maqunica j que, tanto do lado do cosmos quanto das prxis humanas, a questo sempre a de mquinas - e eu ousaria at dizer de mquinas de guerra. Desde sempre a "natureza" esteve em guerra contra a vida! Mas a acelerao dos "progressos" tcnico-cientficos conjugada ao enorme crescimento demogrfico faz com que se deva empreender, sem tardar, uma espcie de corrida para dominar a mecanosfera.

    No futuro a questo no ser apenas a da defesa da natureza, mas a de uma ofensiva para reparar o pulmo amaznico, para fazer reflorescer o Saara. A criao de novas espcies vivas, vegetais

    12. Gregory Bareson falava de um "oramento de flexibilidade", comparando o sistema ecolgico a um acrobata numa corda (Vers 1'cologie de 1'esprti, op. cit., p. 256).

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    e animais, est inelutavelmente em nosso horizonte e torna urgente no

    apenas a adoo de uma tica ecosfica adaptada a essa situao, ao mesmo tempo terrificante e fascinante, mas tambm de uma poltica focalizada no destino da humanidade.

    O relato da gnese bblica est sendo substitudo pelos novos relatos da re-criao permanente do mundo. Aqui, nada melhor do que citar Walter Benjamin condenando o reducionismo correlativo do primado da informao: "Quando a informao se substitui antiga relao, quando ela prpria cede lugar sensao, esse duplo processo reflete uma crescente degradao da experincia. Todas essas formas, cada uma sua maneira, se destacam do relato, que uma das mais antigas formas de comunicao. A diferena da informao, o relato no se preocupa em transmitir o puro em si do acontecimento, ele o incorpora na prpria vida daquele que conta, para comunic-lo como sua prpria experincia quele que escuta. Dessa

    maneira o narrador nele deixa seu trao, como a mo do arteso no vaso de argila13.

    Fazer emergir outros mundos diferentes daquele da pura informao abstrata; engendrar Universos de referncia e Territrios existenciais, onde a singularidade e a finitude sejam levadas em conta pela lgica multivalente das ecologias mentais e pelo princpio de Eros de grupo da ecologia social e afrontar o face a face

    13. Walter Benjamin, Essais 2, trad. Maurice de Gandillac. Paris, Denol, Gonthier, 1983, p. 148.

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    vertiginoso com o Cosmos para submet-lo a uma vida possvel tais so as vias embaralhadas da tripla viso ecolgica.

    Uma ecosofia de um tipo novo, ao mesmo tempo prtica e especulativa, tico-poltica e esttica, deve a meu ver substituir as antigas formas de engajamento religioso, poltico, associativo... Ela no ser nem uma disciplina de recolhimento na interioridade, nem uma simples renovao das antigas formas de "militantismo". Tratar-se- antes de movimento de mltiplas faces dando lugar a instncias e dispositivos ao mesmo tempo analticos e produtores de subjetividade. Subjetividade tanto individual quanto coletiva, transbordando por todos os lados as circunscries individuais, "egoisadas", enclausuradas em identificaes, e abrin-do-se em todas as direes: do lado do socius, mas tambm dos Phylum maqunicos, dos Universos de referncia tcnico-cientficos, dos mundos estticos, e ainda do lado de novas apreenses "pr-pessoais" do tempo, do corpo, do, sexo... Subjetividade da ressingularizao capaz de receber cara-a-cara o encontro com a finitude sob a forma do desejo, da dor, da morte... Todo um rumor me diz que nada disso se d por si mesmo! Por todos os lados impem-se espcies de invlucros neurolpticos para evitar precisamente qualquer singularidade intrusiva. E preciso, mais uma vez, invocar a Histria! No mnimo pelo fato de que corremos o risco de no mais haver histria humana se a humanidade no reassumir a si mesma radicalmente. Por todos os meios possveis, trata-se de conjurar o crescimento entrpico da subjetividade dominante. Em vez de

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    ficar perpetuamente ao sabor da eficcia falaciosa de challenges eco-nmicos, trata-se de se reapropriar de Universos de valor no seio dos quais processos de singularizao podero reencontrar consistncia. Novas prticas sociais, novas prticas estticas, novas prticas de si na relao com o outro, com o estrangeiro, como o estranho: todo um programa que parecer bem distante das urgncias do momento! E, no entanto, exatamente na articulao: da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estar em jogo a sada das crises maiores de nossa poca.

    Concluindo, as trs ecologias deveriam ser concebidas como sendo da alada de uma disciplina comum tico-esttica e, ao mesmo tempo, como distintas uma das outras do ponto de vista das prticas que as caracterizam. Seus registros so da alada do que chamei heterognese, isto , processo contnuo de ressingularizao. Os indivduos devem se tornar a um s tempo solidrios e cada vez mais diferentes. (O mesmo se passa com a ressingularizao das escolas, das prefeituras, do urbanismo etc).

    A subjetividade, atravs de chaves transversais, se instaura ao mesmo tempo no mundo do meio ambiente, dos grandes Agenciamen-tos sociais e institucionais e, simetricamente, no seio das paisagens e dos fantasmas que habitam as mais ntimas esferas do indivduo. A reconquista de um grau de autonomia criativa num campo particular invoca outras reconquistas em

    outros campos. Assim, toda uma catlise da retomada de confiana da humanidade em si mesma est para

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    ser forjada passo a passo e, s vezes, a partir dos meios os mais minsculos. Tal como esse ensaio que quereria, por pouco que fosse, tolher a falta de graa e a passividade ambiente14.

    14. Na perspectiva de uma "ecologia global", Jacques Robin, num relatrio intitulado "Peser la fois l'cologie, la socit et l'Europe", aborda com uma rara competncia e numa ia paralela nossa, as relaes entre a ecologia cientfica, a ecologia econmica

    e a emergncia de suas implicaes ticas ("Grupo Ecologia" de "Europa 93", rua Dussoubs, 22, 75002, Paris, ano 1989).