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Teocomunicação Porto Alegre v. 46 n. 1 p. 59-86 jan.-jun. 2016 Laudato si ’ e a dignidade da vida Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR http://dx.doi.org/10.15448/1980-6736.2016.1.23628 GUERRA JUSTA, HERMENÊUTICA POLÍTICA E PLURALISMO RELIGIOSO EM JOHN RAWLS E CLAUDE GEFFRÉ JUST WAR, POLITICAL HERMENEUTICS AND RELIGIOUS PLURALISM IN JOHN RAWLS AND CLAUDE GEFFRÉ Nythamar de Oliveira* Tiago de Fraga Gomes** RESUMO Para John Rawls é primordialmente importante para o Direito dos Povos que a justiça seja assegurada pela estabilidade de sociedades liberais e decentes. Uma intervenção militar com fins humanitários ou autodefesa seria uma resposta legítima aos abusos perpetrados pelos grupos ou Estados “fora da lei”, na medida em que fomentam a guerra e o terrorismo, o que poderia ser caracterizada como uma instância de “guerra justa”. A hermenêutica política emerge no espaço de razão pública onde se propõe a conciliação e o acordo entre as doutrinas religiosas e as concepções abrangentes de bem comum, com seus conflitos e incompatibilidades. O liberalismo político busca acomodar tal pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis através do consenso sobreposto. Claude Geffré propõe uma teologia com orientação hermenêutica como uma nova postura política diante do pluralismo hodierno. O enigma da alteridade plural das concepções religiosas manifesta a riqueza espiritual da vivência humana do divino, porém, levanta importantes questionamentos para a convivência social. Rawls e Geffré convergem quanto ao problema hermenêutico da justificação normativa postulada num contexto pluralista de reconhecimento do outro e de tolerância em face às querelas irreconciliáveis. Palavras-chave: Guerra justa. Teologia política. Pluralismo religioso. John Rawls. Claude Geffré. ** Professor dos PPGs em Filosofia e em Teologia da PUCRS. Doutor em Filosofia. Mestre em Teologia e em Filosofia. Licenciado em Teologia. Possui 6 pós-doutorados no exterior. Pesquisador CNPq. **Doutorando em Teologia pela PUCRS. Mestre em Teologia. Bacharel em Teologia e em Filosofia.

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Teocomunicação Porto Alegre v. 46 n. 1 p. 59-86 jan.-jun. 2016

Laudato si ’ e a dignidade da vida

Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

http://dx.doi.org/10.15448/1980-6736.2016.1.23628

GUERRA JUSTA, HERMENÊUTICA POLÍTICA E PLURALISMO RELIGIOSO EM

JOHN RAWLS E CLAUDE GEFFRÉJust War, Political Hermeneutics and religious

Pluralism in JoHn raWls and claude geffré

Nythamar de Oliveira* Tiago de Fraga Gomes**

RESUMO

Para John Rawls é primordialmente importante para o Direito dos Povos que a justiça seja assegurada pela estabilidade de sociedades liberais e decentes. Uma intervenção militar com fins humanitários ou autodefesa seria uma resposta legítima aos abusos perpetrados pelos grupos ou Estados “fora da lei”, na medida em que fomentam a guerra e o terrorismo, o que poderia ser caracterizada como uma instância de “guerra justa”. A hermenêutica política emerge no espaço de razão pública onde se propõe a conciliação e o acordo entre as doutrinas religiosas e as concepções abrangentes de bem comum, com seus conflitos e incompatibilidades. O liberalismo político busca acomodar tal pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis através do consenso sobreposto. Claude Geffré propõe uma teologia com orientação hermenêutica como uma nova postura política diante do pluralismo hodierno. O enigma da alteridade plural das concepções religiosas manifesta a riqueza espiritual da vivência humana do divino, porém, levanta importantes questionamentos para a convivência social. Rawls e Geffré convergem quanto ao problema hermenêutico da justificação normativa postulada num contexto pluralista de reconhecimento do outro e de tolerância em face às querelas irreconciliáveis.Palavras-chave: Guerra justa. Teologia política. Pluralismo religioso. John Rawls. Claude Geffré.

**ProfessordosPPGsemFilosofiaeemTeologiadaPUCRS.DoutoremFilosofia.MestreemTeologiaeemFilosofia.LicenciadoemTeologia.Possui6pós-doutoradosnoexterior.PesquisadorCNPq.

**DoutorandoemTeologiapelaPUCRS.MestreemTeologia.BacharelemTeologiaeemFilosofia.

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ABSTRACT

For John Rawls, it is primarily important for the Law of Peoples that justice be served through the stability of liberal and decent societies. Military intervention for humanitarian or self-defense purposes was a legitimate response to abuses perpetrated by outlaw groups or States, as they fuel war and terrorism, in which case could be characterized as an instance of “just war”. The political hermeneutics emerges in the public space because of the proposed conciliation and agreement between religious doctrines and comprehensive conceptions of the common good with their conflicts and incompatibilities. Political liberalism seeks to accommodate such a plurality of reasonable comprehensive doctrines through overlapping consensus. Claude Geffré proposes a theology with hermeneutical orientation as a new political stance in the face of today’s pluralism. The enigma of the plural otherness of religious conceptions manifest the spiritual richness of the human experience of the divine, and yet it raises important questions for social cohesion. Rawls and Geffré converge on the hermeneutical problem of normative justification postulated in a pluralistic context of recognition of the other and tolerance in the face of irreconcilable quarrels.Keywords: Just war. Political theology. Religious pluralism. John Rawls. Claude Geffré.

Introdução

Qualquer tentativa de empreender uma reconstrução normativados argumentos político-liberais em defesa da guerra justa deveinevitavelmentelidarcomtrêsníveisdiferenciadosdeargumentação,asaber:(1)oproblemaontológico-semântico,compreendendoquestõesepistêmicasdesignificadoedelinguagem,visandoumadefiniçãodoqueé,afinal,umaguerrajusta,levandoemconsideraçãonãoapenasascondiçõesempíricas,geopolíticasehistóricasconcretasdofenômenodaguerra(portanto,dequesemprehouveeaindaháguerrasnomundo),mas também das mudanças conceituais e de contextos semânticosem torno da ideia de guerra justa; (2) o problema da antropologiafilosófica e da historicidade (compreendendo diferentes versões defilosofiadahistória,teológicas,comoateodiceia,ounão,comoversõesmetafísicas, hegelianas,marxistas e comunitaristas que se opõem ateoriasjusnaturalistas,contratualistaseliberais)emtornodeconceitosfundamentais taiscomoliberdade, igualdade,socialidadeeprogressohumano; (3)oproblemahermenêuticodecomo interpretar, justificar

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e defender a guerra justa, sobretudo numa abordagem pluralista,intercultural e transcultural, pautada pelo reconhecimento doOutro,numviéshermenêuticodediálogoetolerância,comousempretensãoexplícitadevalidadeuniversalista1.

Tentaremos esboçar esses três níveis, sobretudoo problemadacorrelaçãoentreoqueseriaumahermenêuticapluralistadecoexistênciapacíficaemsituaçõesdeameaçabélicaeinstabilidadepolítica,eoquepodesertomadocomoreivindicaçãonormativadeuniversalizabilidade(por exemplo, que as normas inerentes ao problemada guerra justapossam satisfazer uma concepçãominimalista de direitos humanos).SeguindoasindeléveiscontribuiçõesdocosmopolitismodeImmanuelKant, de seus críticos comunitaristas e de pensadores da civilizaçãodemocrático-liberalcontemporânea,escolhemosdoisrepresentantesdateologiapolíticaemsuaconfluênciaentreumafilosofiapolítico-liberaldaguerrajustaeumahermenêuticapolítico-teológicadodiálogointer-religiosoetranscultural:JohnRawlseClaudeGeffré.Guardadasassuasdiferenças,RawlseGeffréconvergemquantoaoproblemahermenêuticoda justificação normativa que se postula num contexto pluralista dereconhecimentodoOutroede tolerânciaemfacedosconflitosentredoutrinasabrangentes(maisespecificamente,religiões)irreconciliáveiseincompatíveisentresi.

SegundoodominicanoClaudeGeffré,umateologiacomorientaçãohermenêutica designa o destino da razão teológica no contexto dopensávelcontemporâneo,poisdizrespeitoaumanovaposturadiantedopluralismo religioso hodierno.Diante da atual polifonia religiosaentoada pelamultiplicidade de religiões domundo, o cristianismo échamadoaexpressarearedefinirasuaidentidadesingular.Adisposiçãoem retomar de modo criativo o sentido da fé em vista das novasexperiênciashistóricas trazumavitalidadeaosenunciadosdafé2.Háumenigmapresentenaalteridadepluraldasconcepçõesreligiosas,cujamanifestaçãoexpressaariquezaespiritualdavivênciahumanadodivino.Diantedessesapelos,Geffréenfatizaqueateologiahermenêuticanãopodeserconcebidasemumaprática,docontrário,cainoâmbitodapuraideologia.“Ateologiahermenêuticanãosereduzaumainterpretaçãopuramente teóricadocristianismo,masconduzauma transformação 1 OLIVEIRA,N.Revisitando a crítica comunitarista ao liberalismo:Sandel,Rawlseteoriacrítica.p.393.

2 GOMES,T.F.Hermenêutica teológica e teologia da revelação em Claude Geffré, p. 49.

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efetivadomundoedahistória”3.Nessesentido,ateologiaprecisanãosó aproduzirconteúdos significativos,masdeveconduzir apráticas significantes.

Paraoepiscopal(anglicano)JohnRawls,emumdistanciamentoagnóstico-metodológico opera-se uma verdadeira mudança deparadigmaquandosaímosdeumprocedimentalismopuroouabstrato(por exemplo, na concepçãode justiça comoequidade em suaobra-prima de 1971, A Theory of Justice)emdireçãoaumahermenêuticaconcretadepluralismorazoável,ondesecolocaoproblemadaguerrajustaentrepovosecivilizações,sobretudoparaasdemocraciasliberaisemsuasrelaçõesdiplomáticascompovosnão-liberais.

1 O liberalismo político de Rawls e a questão da guerra justa

As contribuições deRawls para reabilitar uma teoria liberal daguerrajustanãosão,decerto,tãoconhecidasquantoasuaconcepçãoprocedimental dos princípios de justiça formulados a partir de umaposição original hipotética, mas as intuições rawlsianas aplicadasao cenário internacional se mostraram uma alternativa a modelosconservadoresquerespondemaodesafiodorealismopolítico(oestadohobbesianopermanentedeameaçasderetornoaumestadodeguerra)compropostasderealizaçãodoliberalismopelocapitalismoglobalizadoassumindouma tesedefimdahistória (FrancisFukuyama)oucomorespostadeestratégiamilitaregeopolíticaaochoquedecivilizações(SamuelHuntington).

Desde os escritos de historiadores gregos como Tucídides eHeródoto sobre as Guerras do Peloponeso e as batalhas domundohelênico,sobretudocontraospersas,atéosescritosmaisrecentesdeMichaelWalzer e EricHobsbawm sobre a guerra justa e a era dosextremosnoséculopassado,temosassistidoauminfindávelciclodeconflitosbélicosquefazemdaguerraamaisparadoxalmentehumanadetodasascaracterísticasfundamentaisdoserhumanoemsua“insociável

3 GOMES,T.F.A teologia hermenêutica de Claude Geffré e a sua relevância para a teologia da revelação,p.38.Nessamesmalinha,afirmaErnildoSteinque“ahermenêuticaestánecessariamentereferidaàpráxis.”(STEIN,E.Aproximações sobre hermenêutica,p.86).Todateoriainterpretativadeveserpertinenteaumapráticatransformadora,tendoassim,umarelevânciasocialepolítica.

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sociabilidade”, segundoa lapidar fórmulakantiana4.Assimcomo foiepodeatéhojeserdiversamentedefinidocomoHomo sapiens, homo faber, homo oeconomicus e homo religiosus, o ser humano é, comefeito, o homo bellicusporexcelência,poisnenhumoutroanimalnahistóriaevolutivaconhecidadenossoplanetadependetantodoconflitobelicosoparasobreviver, istoé,paradoxalmente,sóoserhumanosecaracterizacomoumanimalquevinculaasuasobrevivênciaàmatançaracionalizada de membros de sua própria espécie – pelos motivosmais diversos: econômicos, políticos, sociais, religiosos, morais ouatéfilosóficos.Esta definição seria, de resto, a de uma investigaçãointerdisciplinarsobreaguerraemhistória,ciênciassociaisefilosofia5. ParafraseandoAlexanderSolzhenitsyn,podemosconstatarquenadahádemaishumanoeinumanonahumanidadedoqueoperpétuoconflitoecessaçãodehostilidadesnosintermináveisprocessosdeguerraepazenquantocessaçãodehostilidades6.

Aimportânciadareflexãofilosóficaemtornodotemadaguerrajustaconsisteprecisamenteemresgatarumadimensãoética,normativa,parajustificarporquedevemosdefenderapazecondenaraguerra,eporque, apesar de tal postura, terminamos por defender um uso legítimo da forçaedaviolênciapeloEstadoe,emcertascondições,deumaguerrajustanamedidaemquesirvaparapromoverapaz7. Assim, podemos reexaminar emque sentido a proposta ético-normativa de inspiraçãocontratualista,maisprecisamente,kantiana,quandocombinadacomumahermenêuticapluralista,aindasemostracomoumadasmaisdefensáveisparajustificarcomoevitaraguerraepromoverapazentreospovos,sobretudonamedidaemqueviabilizaumareformulaçãohermenêuticadainclusãodoOutropeloreconhecimentoediálogointercultural.

Otemadaguerrajusta(justum bellum)foiabordadopordiversospensadoresmedievaiseclássicoscomoS.TomásdeAquinoeHugoGrotius,mas já o encontramos emvárias passagensdaBíblia, daí asua importânciaprogramáticaparauma teologiapolítica.Trata-sedeformularumaargumentaçãomoralcomointuitodejustificaraguerra, 4 WALZER, M. Just and unjust wars: a moral argument with historical illustrations;HOBSBAWM,E.A era dos extremos: obreveséculoXX:1914-1991;HUNTINGTON,S.O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial.

5 STRACHAN,H.European armies and the conduct of war; STRACHAN,H.The first world war: toArms;STRACHAN,H.Financing the war.

6 SOLZHENITSYN,A.Uma palavra de verdade.7 NARDIN,T.(Org.).The ethics of war and peace.

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sobretudonumasituaçãodedefesadopovodeDeusoudentrodoplanodivinoparaahumanidade,ondeoshorroresesofrimentosdeumadadasituaçãobélicasejustificamàluzdeumbemmaioroudapazaseremconquistadosnumfuturoimediato.Aguerraseria,nestecaso,concebidacomouma espécie de “mal necessário”ou inevitável, numcontextohistórico-semântico particular,mas na verdade seria justificada numcontextomaisamplopelaprópriasoberaniadoSenhordaHistória(Adon Olam),queétambémoSenhordosExércitos(Adon HaTzevaoth)–comoargumentamosarautosdateodiceia(dogrego,diké tou theou,“juízodivino”)desdeAgostinhoeLeibniz(quecunhouotermoemsuaobrade1710, Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de l'homme et l'origine du mal), em resposta ao problemadomal numuniversocriado, sustentado e governadopor umDeus benévolo, onisciente eonipotente.Assim,asregrasquegovernamajustiçadaguerra(jus ad bellum)devemserdiferenciadasdaquelasquegovernamumacondutajustaecorretanaguerra(jus in bello),comoasencontramoshojenaConvençãodeGenebra.

Quando retomou este tema em sua tentativa de estender uma teoriadajustiçaàsrelaçõesinternacionaisemseulivroO Direito dos Povos(The Law of Peoples,1999),RawlspostulouumaSociedadedosPovoscomointuitoprecisodejulgarosobjetivoselimitesdaguerrajusta, regulamentar a conduta recíproca e assegurar a coexistênciapacíficadospovos(emcontraposiçãoanações,deformaaviabilizarasreivindicaçõespolítico-normativasdepalestinos,bascosecurdos,porexemplo,quenãosãoreconhecidosaindacomonaçõessoberanas).Oartigoseminal“TheLawofPeoples”haviasidopublicadoem1993,noperiódicoCritical Inquiry,seisanosantesdeserexpandidoeacrescidodeoutroensaio,“Aideiaderazãopúblicarevisitada”(quehaviasidopublicadonaUniversity of Chicago Law Review,em1997).Oobjetivocentraldotratadoémostrar“comooconteúdodeumDireitodosPovospodeserdesenvolvidoapartirdeumaideialiberaldajustiçasemelhante,emboramaisgeraldoqueaideiadajustiçacomoequidade”8.Trata-se,portanto,deumaalternativaviávelparaorealismointernacionalqueprevalecia nos centros de estudos internacionais e o cosmopolitismoaindadefendidoporneokantianos,pacifistasesimpatizantesdealgumaformadeutopiasocial.

8 RAWLS,J. The law of peoples,p.3.

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Segundo Rawls, os povos são atores na Sociedade dos Povosassim como os cidadãos são os atores na sociedade nacional, comcaracterísticas institucionais,culturaisemoraisqueosdistinguemdeEstadosenações,aomesmotempoemquedeterminamsuasafinidadescomunseumaidentidadecoletivacomogrupossociaisdeindivíduos.Éestabelecida,destarte,umaimportantedistinçãoentredireitoshumanosbásicos–estendidosatodosospovos–eosdireitosdecadacidadãodeumademocraciaconstitucionalliberal.Rawlsconsideracincotiposdiferentesdesociedadesnacionais,asaber:ospovosliberaisrazoáveis(aquelesqueaderem,numamaioroumenorproporção,aosprincípiosdo Estado democrático de direito); os povos decentes (povos não-liberaisquenãonegamosdireitoshumanos,masosreconhecemeosprotegem);Estadosforadalei(regimesqueserecusamaaquiesceraumDireito dosPovos razoável, recorrendo à guerra e ao terrorismoparapromoverseus interessesnão-razoáveis); sociedadessoboônusdecondiçõesdesfavoráveis;osabsolutismosbenevolentes(povosquehonramosdireitoshumanosmasnegamaosseusmembrosumpapelsignificativonasdecisõespolíticas).Rawlspropõe,então,oitoprincípiosdedireitointernacional:(1)ospovossãolivreseindependentes,esualiberdadee independênciadevemser respeitadasmutuamente; (2)ospovosdevemobservartratadosecompromissos;(3)ospovossãoiguaisesãopartesemacordosqueobrigam;(4)ospovossujeitam-seaodeverde não-intervenção; (5) os povos têmodireito de autodefesa, únicomotivolegítimoparaaguerrajusta;(6)ospovosdevemhonrarodireitoshumanos;(7)ospovosdevemobservarcertasrestriçõesespecificadasnacondutadaguerra;(8)ospovostêmodeverdeassistiraoutrospovosvivendosobcondiçõesdesfavoráveis9.

SegundoRawls,oqueéprimordialmenteimportanteparaoDireitodosPovoséqueajustiçasejaasseguradapelaestabilidadedesociedadesliberais edecentes,maisoumenos comoexperienciamoshojenumaconjunturarelativamenteestáveldepazmundialentreamaiorpartedospaíses-membrosdaOrganizaçãodasNaçõesUnidas,comaexceçãodospovos,gruposouEstados“foradalei”,namedidaemquefomentamaguerraeoterrorismo.Umaintervençãomilitarcomfinshumanitáriosouautodefesaseria,portanto,umarespostalegítimaataisabusos,epoderiasercaracterizadacomoumainstânciade“guerrajusta”.

9 OLIVEIRA,N.Tout autre est tout autre:direitoshumanoseperspectivismosemântico-transcendental.p.98-108.

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2 O pluralismo religioso de Geffré e o enigma da alteridade irredutível

ProfessordeteologiapormuitosanosnoSaulchoirenoInstitutoCatólicodeParis, ex-diretordaEscolaBíblicade Jerusalém,ClaudeGeffré produziu uma vasta literatura na linha da teologia comohermenêuticaemsuainfindávelbuscaderespostasrazoáveisaodesafioimprescindíveldopluralismoreligiosocontemporâneoatravésdeumaabordagemhermenêutica da teologia. SegundoGeffré, uma teologiacomorientaçãohermenêuticanãodesigna apenasmaisumacorrenteteológica,mas “opróprio destinoda razão teológica no contexto dopensávelcontemporâneo”10,poisdizrespeitoaumanovaposturadiantedopluralismoreligiosohodierno,oqualrepresentaumnovoparadigmateológico.

Há um enigma presente na alteridade plural das concepçõesreligiosas,cujamanifestaçãoexpressaariquezaespiritualdavivênciahumanadodivino11.Osentidodaverdadenãopodesercompletamenteesgotado por nenhuma religião especificamente, porém, é em cadatradição religiosa, respeitada em sua alteridade irredutível, que semanifestaaverdadeemsuacontingênciaculturalehistórica.Aprópriateologiacatólicatembuscadosuperarumaposturaeclesiocêntricaparaabraçar um sentidomais ecumênico e reinocêntrico da revelação deDeusnahistória.Háumanovasensibilidadeemcursonaelaboraçãoteológica,menosexclusivistaemais inclusivista.SegundoGeffré,asreligiõesconstituemmediaçõesderivadasdavontadesalvíficauniversaldeDeus,sendoquecabeapenasaJesusCristoamediaçãoessencial,numaconcepçãocristológicaesoteriológicasensívelaoqueHansKüngdenominou de Weltethos, uma ética global, de formaqueos valorescrísticospossamserpercebidosnasmaisdiversasreligiões.OmistériodeCristo superabundana história humana.A Igreja não émediaçãoexclusiva da salvação,mas um instrumento que se insere dentro dadinâmicadaEconomiadaSalvaçãoreveladanahistóriahumana.Deuspodeagiralémdasmediaçõeseclesiais.Alémdisso,todasasreligiões 10 GEFFRÉ,C.Crer e interpretar,p.23.11 “As religiões, cada uma delas, são totalidades complexas de resposta ao divino.”(QUEIRUGA,A.T. O diálogo das religiões, p. 16). Na teologia contemporânea háa tendência emconsiderar a veracidade da pluralidade religiosa, pois estamos “diantedeumadisseminação legítimadas religiões:elas sãocaminhosautênticosnabuscadodivino.”(DUQUOC,C.A teologia no exílio,p.29).

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comportam ambiguidades, pois são objetivações relativas de umarealidadeabsolutamentemaior,inabarcáveleimanipulável.

ParaGeffré,aprópriahumanidadedeJesusémarcadapelalimitação,apesardeabertaàsriquezasdoVerbo.JesuséíconeenãoídolodeDeus.AeconomiadoVerboencarnadoénarealidadeamanifestaçãodeumaeconomiamaisampla12,emborasejaaformamaisplenadeexpressãodomistériodivino.OmistériodaEncarnaçãorevelaadinâmicaquenóticadocristianismoedateologiacatólica,cujaintrínsecadinâmicadialogalconvidaareconhecerooutroeodiferentecomoirredutíveisàegolatriasubjetivadounototalizante.ÉnasentranhasdalógicainclusivaquesedevebuscaradinâmicadialogaldarevelaçãodeDeusàhumanidade.Nãosedeveconfundiroreconhecimentodeumauniversalidadecrísticapresentenapluralidadedasmanifestaçõesreligiosascomadefesadeumacristandadeenquantoreligiãohistórica.

ÉprecisorecolocarasbasesdamissãodateologianaperspectivaempáticaedialogaldeumahermenêuticareinocêntricadarevelaçãodeDeus,semreduzirooutroàlógicaparticulardedeterminadatradiçãoespecífica,masintencionandoumaautênticametanoia, cujoresultadoéatransformaçãorecíprocapelabuscacomumdaverdade.Opluralismoreligioso emerge, portanto, comoumnovoparadigma teológico quenos convida a reinterpretar algumas das verdades fundamentais docristianismo a partir da experiência histórica contemporânea, queconciliaaomesmotemposecularização,ateísmo,indiferençareligiosa,retornoaoreligiosoeconcepçõesreligiosasdiversasquedivergemdaBíblia.Odiálogoecumênicoquebrouaposturacatólicahegemônica13. “O Vaticano II significou o fim de um certo absolutismo católico[...] que coincidia com um eclesiocentrismo”14. Pela primeira vez oMagistériodaIgrejaemiteumjulgamentopositivoarespeitodasoutras

12 “O fundamento teológico do pluralismo religioso, que legitima o novo diálogo inter-religioso recomendado pela Igreja, é a ideia de que a economia doVerbo encarnadoé o sacramentodeuma economiamais vasta que coincide comahistória religiosa dahumanidade.Quandoseprocurajustificar,teologicamente,odiálogointer-religioso,vol- ta-sesempreparaomistériodaEncarnação.”(GEFFRÉ,C. De Babel a Pentecostes,p.54).

13 “Oecumenismoéumadasgrandesformasdaexperiênciaeclesialcontemporânea.Suaopçãoéclara:regularpelanegociaçãoasquestõesquedividemasIgrejas.Estaopçãoéreligiosaepolítica:elaéjustificadapelasconvicçõesevangélicasdasconfissõesatualmenteseparadase rompecomosenfrentamentosdecaráterpolíticoquehumilharamduranteséculosafécristã,privando-adeseuhorizontefraterno.”(DUQUOC,C.A teologia no exílio,p.79).

14 GEFFRÉ,C.Crer e interpretar,p.132.

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confissõesreligiosas,assumindoumaposturadediálogo.Ateologiaéchamadaa“reinterpretaraunicidadedocristianismocomoreligiãodesalvaçãoentreasreligiõesdomundo”15, superando a ideia triunfalista docristianismosobreasoutrasreligiões.

O fundamento teológico do pluralismo religioso e, portanto, dodiálogo inter-religioso depende do fato de que a economia doVerboencarnadoéosacramentodeumaeconomiamaisvasta,quecoincidecomahistóriareligiosadahumanidade.Desdeasorigens,essahistórianãocessoudeserfecundadapelassementesdoVerboeosdonsdoEspírito16.

As diferenças religiosas são vistas, nessa perspectiva, comoexpressãodasriquezasespirituaisdispensadasporDeusaospovos.“Ocritérioapartirdoqualsedeveinterpretaropluralismodastradiçõesreligiosas é evidentemente a afirmação fundamental da vontade desalvação universal de Deus que se estende a todos os humanos”17. Asalvaçãoédestinadaa todosos sereshumanos,pois“Deus,nossoSalvador, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem aoconhecimentodaverdade”(1Tm 2,3-4).Pentecosteséumalegitimaçãodapluralidadepelamanifestaçãomultiformedasexpressõesinesgotáveisna experiência de Deus.Amultiplicidade de formas religiosas nãocontradiz a unidade do desígnio de Deus que pretende estabeleceraliançacomoserhumanoparasalvá-lo.Apossibilidadedesalvaçãoexcedeamediaçãoeclesiástica.

O Concílio Vaticano II, naNostra Aetate n. 2, preferiu olharpositivamenteparaatradiçãohistóricadasreligiões,dizendoquesuastradiçõescontêmprefiguraçõesdareligiãocristã.Éocasodeentendera singularidade da mediação de Cristo não de modo relativo, masmenos totalitário.É preciso respeitar a identidade do outro. “Temosdificuldadeemassumirconvicçõesquenossãoculturalereligiosamenteestranhas.Éprecisotentarsuperarosprópriospreconceitoshistóricosnãocriticados”18. Através de uma imaginação analógica,quepercebeassemelhançasnasdiferenças,mantendoasdiferenças,éprecisoescapardoequívocosemcairemumunívoco.Maséprecisoserfielàprópria

15 GEFFRÉ,C.Crer e interpretar,p.134.16 Idem.De Babel a Pentecostes, p. 8.17 Idem.Crer e interpretar,p.136.18 Ibidem,p.144.

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identidade, pois nem sempre são conciliáveis as diferentes verdadesreligiosas, há divergências fundamentais muitas vezes. É precisomanteraprópriaidentidadeparaquesepossatravarumdiálogosinceroe frutuoso na integridade da interlocução, não sendo aconselhávelprocederaumasuspensãoprovisóriadaprópriafécomocondiçãodaaberturaaooutro.

O cristianismo é uma realidade relativa, pois a verdade quetestemunhanãoénemexclusivade todaoutraverdade,nemmesmoabsolutamente inclusiva,mas é relativa aoquehádeverdadeiro nasoutrasexpressõesreligiosas.“AsuperabundânciadomistériodeCristonão encontrou sua tradução adequada no cristianismo histórico queconhecemos,eassimoutrastradiçõesreligiosaspodemmisteriosamenteencarnarcertosvalorescrísticos”19.Afécristãnãopodeprescindirdesuas limitações enquanto fenômenohumano e histórico.Por isso, asoutrasreligiõespodemajudarocristianismoaexplicitarmelhoralgumasdas virtualidades domistério cristão, pois segundo JohnHick, todasas religiões, inclusiveo cristianismo,giramem tornodomistériodeDeus20;esegundoRaymondPanikkar,“asreligiõesgiramemtornodeCristo”21,concebendoassim,umCristocósmicopreexistente22.

Atualmente a humanidade vive uma era de mundialização,de globalização, de estreitamento das distâncias, graças às novaspossibilidades de comunicação a nível planetário entre as pessoas.Surgeapossibilidadedeumecumenismoplanetárioquepromovanahumanidadeaconsciênciadeconstituirumaúnicafamíliahabitandoemumacasacomum.Apesardoscontratestemunhosdahistória,“devemosquestionar a ideia tipicamentemoderna segundo a qual haveria umacontradição fatal entre a busca do absoluto e humanoverdadeiro”23. Todaautênticaexperiênciareligiosacoincidecomcertodescentramentodesiecomabuscadeumhumanismointegralpelaatitudedaalteridade.Cabeà teologia,apartirdaconsciênciadeque“Deusnãoestápresoàsmediaçõeseclesiais”24, reinterpretaroseuestatutoepistemológico,percebendonas religiõespossibilidadesexistenciaisque favorecemaaberturaaomistériodasalvação.

19 GEFFRÉ,C.Crer e interpretar, p. 160.20 HICK,J.God has many Names. 21 GEFFRÉ,C.Crer e interpretar,p.163.22 PANIKKAR,R.The unknown Christ of hinduism.23 GEFFRÉ,C.Crer e interpretar, p. 151.24 Ibidem,p.159.

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AestaalturadareflexãopodemosnosperguntarseamissãodaIgreja ainda tem sentido. Podemos afirmar que a superação de umeclesiocentrismofezaIgrejaentenderque“nãoéaIgrejaquedefineamissão,maséamissãoquedefineafisionomiadaIgreja,afimdequeelasejaosinalescatológicodoReinodeDeus”25.Avocaçãohistóricada Igreja não consiste na incorporação quantitativa demembros aoseucorpo,masnotestemunhoqueprestaaomundodoReinodeDeuscujavindaéiminente.Amissãonadaperdeudesuaurgênciamesmoquenãoviseprimeiramenteconverterooutro“comoseamudançadereligiãofossecondiçãosine qua non desuasalvação”26.OtestemunhoprestadoaoamordeDeuseaosvaloresdoReino,aconversãorecíprocaentendidacomometanoia,sãoofundamentodamissãodaIgreja.

O que dá finalidade a toda a atividade missionária da Igrejaé proclamar em palavras e em atos que o Reino de Deus veiorealmenteemJesusCristo.Odiálogointer-religiosoéumatodeesperança e de comunhão entre as pessoas. Não é apenas umaexigênciadorespeitodaliberdadedooutro,umatodetolerância:éumaexigênciadorespeitodevidoaoscaminhosmisteriososdeDeusnocoraçãodapessoahumana27.

EmseulivroVers une théologie du pluralisme religieux28,JacquesDupuisoptaporumamisteriosacomplementaridadeentreastradiçõesreligiosas.EleseguealinhadepensamentodeTeilharddeChardinoqualtemumaperspectivadeconvergênciauniversalnofimdostemposdetodosnoCristoÔmega29.ParaClaudeGeffré,complementaridade“nãorespeitadevidamenteaalteridadeirredutíveldecadatradiçãoreligiosa.[...]Épreferível suportar compaciência e tolerar intelectualmenteoenigma do pluralismo religioso”30. É preciso respeitar os caminhosmisteriosos de Deus no coração da humanidade com humildade e

25 GEFFRÉ,C.Crer e interpretar, p. 172.26 Ibidem,p.174.27 Ibidem,p.176.28 DUPUIS,J.Vers une théologie du pluralisme religieux.29 NaObra deTeilhard, o pontoÔmega pode significar: “1 –O ponto de convergêncianaturaldahistóriahumanaedaevoluçãocósmica.[...]2–OpontoÔmegaimanenteaomundopodeganharexpressãopessoalnoDeustranscendentedafé.[...]3–OutrasvezesdesignaoCristo ressuscitado.OCristonaparusia incorporaomundoeahumanidadeao CorpoMístico, no acabamento doCristo Total.” (ZILLES,U.Pierre Teilhard de Chardin,p.120).

30GEFFRÉ,C.Crer e interpretar, p. 178.

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“acautelar-sedeumavisãoglobaloudeumaexplicaçãototalitária”31, procurandolernahistóriaossinaisdesabedoriaedeesperançaquenospermitaminterpretarmelhorosentidodenossavida.

Deve-se interpretaradiversidadedos fenômenosreligiososà luzdaafirmaçãofundamentaldoNovoTestamentorelativaàvontadedeDeusdesalvaçãouniversal,vontadequeseestendeatodososhomensdesdeasorigens:“Deusquerquetodososhomenssejamsalvosecheguemaoconhecimentodaverdade”(1Tm 2,4).Enoseudiscursoaospagãos,Pedrodeclara:“VerificoqueDeusnãofazacepçãodepessoas,masque,emqualqueração,quemo temeepraticaajustiçalheéagradável”(At 10,34-35).Assim,opluralismoreligioso pode ser considerado comoumdesígniomisterioso deDeuscujasignificaçãoúltimanosescapa32.

Nessesentido,ClaudeGeffréfaztrêsobservaçõesfundamentaisnotocanteàteologiadarevelaçãolidaeinterpretadaapartirdoparadigmapluralista,emumaperspectivahermenêutica:

1.Hoje temos consciênciamais viva de que a Palavra deDeusnão se identifica nemcoma letra daEscritura, nemcoma letrados enunciadosdogmáticos.DogmaeEscritura são testemunhosparciaisdaplenitudedoEvangelho,queédeordemescatológica.2.Arevelaçãonãoéacomunicação,apartirdoalto,deumsaberfixado vez por todas. Ela designa, aomesmo tempo, a ação deDeusnahistória e a experiência de fé dopovodeDeus, que setraduzemexpressãointerpretativadessaação.Emoutraspalavras,o que chamamosEscritura já é interpretação.E a resposta da fépertenceaopróprioconteúdodarevelação.3.Arevelaçãoatingesuaplenitude,seusentidoesuaatualidadesomentenaféqueaacolhe.Por isso a revelação, enquanto Palavra de Deus numa palavrahumanaouvestígiodeDeusnahistória,nãosesujeitaamétodocientífico,histórico-crítico.Afé,emseuaspectocognitivo,ésempreconhecimento interpretativomarcado pelas condições históricasdeumaépoca.Eateologia,enquantodiscursointerpretativo,nãoé somente a expressão diferente de um conteúdo da fé sempreidêntico,queescapariaàhistoricidade.Elaétambémainterpretaçãoatualizantedopróprioconteúdodafé.33

31DUQUOC,C.A teologia no exílio, p. 100.32 GEFFRÉ,C. De Babel a Pentecostes, p. 52.33 Idem. Como fazer teologia hoje, p. 18.

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3 Hermenêutica teológica e política em Rawls e Geffré

Diante da atual polifonia religiosa entoada pelamultiplicidadede religiões do mundo, com suas consonâncias e dissonâncias, ocristianismoéchamadoaexpressarearedefinirasuaidentidadesingular.Para Geffré, o sagrado só pode ser concebido como um fenômenomultifacetado.Omodelohermenêutico temcomopontodepartidaotexto,compreendendo-oapartirdeumadadatradiçãocontextualaqualforneceosesquemasinterpretativosapartirdosquaisarealidadereferidaécompreendidaeosconceitossãoelaborados34.Nãohápensamentoforadalinguagemedaculturacircunstancial35.Emsuasprópriaspalavras:

Não há conhecimento do passado sem precompreensão e seminterpretaçãovivade simesmo.Estamos sempre inscritos numacerta tradição de linguagem que nos precede. E é pelo fato depertencermosàmesmatradiçãoqueaquelaquesuscitouotexto,quetemosalgumachancedecompreendê-lo.[...]Operigopermanentede uma atitude hermenêutica é adaptar a mensagem cristã aosimperativos da cultura histórica dominante e aos interesses dacomunidade.A tarefamais urgente é não apenas fazer umbomdiagnósticode nossa situaçãopresente,mas saber reconstruir asestruturas constantes da experiência cristã de uma salvação emJesusCristo.Nãohá tradiçãoviva se nãohouver atualizaçãodaexperiênciacristãfundamental.[...]Nãohácompreensãodafésemreinterpretaçãocriadora. [...]Trata-sedeprocederde talmaneiraquearevelaçãosejaumeventosemprecontemporâneo36.

34 “Poderíamosdescreverateologiacomofenômenodeescritura.Defato,comonocasodetodaescritura,trata-sesemprede‘reescritura’.Emcadaépocadesuahistória,ateologiaseatribuiuatarefadetornarmaisinteligívelemaisfalantealinguagemjáconstruídadarevelação.EssalinguageméprivilegiadaenormativaparatodaafédaIgreja.Masnãopodemoscontentar-noscomrepeti-lapassivamente.Eladeveser,semcessar,reatualizadademaneiraviva,emfunçãodesituaçãohistóricanovaeemdiálogocomosrecursosinéditosdedadacultura.Ateologiaé,pois,‘reescritura’apartirdeescriturasanteriores,nãosomenteda Escritura-fonte do dois testamentos, mas também das novas escrituras suscitadasporelaaolongodavidadaIgreja.”(GEFFRÉ,C. Como fazer teologia hoje,p.64-65).

35 “Sabe-seque,tradicionalmente,oCristianismo,comooutrasreligiões,tendeaproclamara posse da verdade. No entanto, por definição, a própria verdade cristã é maior etranscendente, portanto, irredutível a qualquer apreensão histórica.A sua adesão só épossível na liberdade e sob os condicionamentos da existência humana.Manifesta-senaresponsabilidaderazoáveldeexpressãoecomunicaçãodessaconvicção,recebidaemformadepalavraoutradição,oralouescrita.Introduz-se,então,entreaverdadeeoseupesquisador,entreoem-sieoem-mim,adistânciadeumcaminho,oem-siquesefazoutroparamim.”(HAMMES,E.J.Hermenêuticaeteologia,p.57).Aconsciênciadessedistanciamentodaverdadenoslevaàhumildadedaposturahermenêuticaemteologia.

36GEFFRÉ,C.Crer e interpretar, p. 24-25.

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Em teologia, os testemunhos buscam traduzir o acontecimentofundador,superandoatentaçãofundamentalistaquefavoreceabuscade umapalavra pura e original.A releitura da tradição emcontextosincrônico e diacrônico37, na sua atualidade e conformação, buscadiscerniraexperiênciahistóricaquesubjazàsformulaçõesdogmáticas.Paracompreenderoalcancedeumenunciadodogmáticoéprecisoforjarasituaçãohermenêuticacorretaqueédeterminadapelojogodaperguntaedaresposta.Fazerumaboaperguntaéformularaquestãoàqualotexto responde.Umadefiniçãodogmática sópode ser compreendidaem relação com a questão histórica que a provocou. Há nisto umaverdadebemprofunda.Todo textoéuma resposta aumapergunta enãopodemoscompreender a resposta contidano textoenquantonãotivermoscompreendidoaperguntaàqualotextoresponde38.

Oprocedimentointerpretativopodeseraplicadonãoapenasaostextosdarevelação,comotambémaostextosdatradiçãodogmática.Talatividaderequerfidelidadeaopassadoecriatividadenaaplicabilidadeno presente. O que é transmitido, o acontecimento Jesus Cristo,é uma realidade sempre atual. Por isso, a tradição cristã precisa sercompreendidanasuadinâmicade inserçãonocoraçãodahistória.Amissão da teologia hermenêutica é atualizar para o hoje da históriahumanaamensagemperenedarevelação.

Trata-sesempredodiálogodeumleitorcomumtexto,otextoquemefalaequemefazperguntas.Maseutambémnãosoupuramentepassivo:façoperguntasaotexto.Etenhochancesdecolocarboasquestões,seelasestãonopontodeencontrodohorizontedotextocomomeuprópriohorizontedecompreensão.Éestadialéticadotextoedoleitorqueforneceprogressivamenteohorizontejustoquevaipermitir-meatingiraverdadecujoportadoréotexto.[...]Nãohá tradiçãoviva se nãohouver atualizaçãoda experiência cristãfundamentaldarevelação,mesmoquesejasegundointerpretaçõesdiferentes39.

37 “Podemos(1)estudaro textoemsuacondiçãoatual,ou(2)procurarexplicarcomoseformou a redação que chegou até nós.No primeiro caso, dá-se uma leitura chamadasincrônica(sincronia=contemporaneidade;dogregoσύν=junto,com;χρόνος=tempo);no segundo, a leitura é do tipo diacrônico (diacronia=evolução;dogregoδιά=atravésde;χρόνος=tempo).”(SILVA,C.M.Dda.Metodologia da exegese bíblica,p.80-81).

38GEFFRÉ,C.Crer e interpretar, p. 69-70.39 Ibidem,p.42.

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As confissões de fé emergemda tradição, cujas definições nãopodemserconcebidasapenascomoatosdejurisprudência,massimcomoatraduçãodeatosdeinterpretaçãoquebuscamresponderàssituaçõesexistenciaisdecrise,ondeoelementodafééquestionado40.Amudançadassituaçõescontextuaisprovocaumaadequaçãodosentidooriginalàrealidadeemquestão.Adinâmicadarecepçãoprovocaumaaberturadesentidoaosenunciadosdaféreveladaeelaboradadogmaticamente.Adisposiçãoemretomardemodocriativoosentidodaféemvistadasnovasexperiênciashistóricas,trazumavitalidadeaosenunciadosdafé:

AhermenêuticateológicanãodizrespeitoapenasàleituradenossasEscriturasfundadoras,masàreleituradatradição,emparticulardasfórmulasdogmáticas.Defato,seriaparadoxalquetivéssemosumaliberdadebemmenordeinterpretaçãoapropósitodosenunciadosdogmáticosdoquenocasodostextosdaEscritura41.

Comofoiassinaladoacima,oquechamaatençãonaleituraqueRawls faz do problema da guerra justa é que, embora semantenhainalteradadesdesuasprimeirasformulaçõesnosanos1960,culminandocomaTeoria da Justiça em1971, até as suas reformulações tardiasdoliberalismopolíticonosanos1980,culminandocomoDireito dos Povos em 1999, o seu modo de apresentação favorece uma maioraberturadinâmicaparaodiálogo,atolerânciaeoacolhimentodoOutro,do estrangeiro e do imigrante.Emvez de partir de umexperimentomental(thought experiment, Denk-Experiment),comeusnoumênicos(noumenal selves)oupessoaslivreseiguaiscomsentidodejustiçaeconcepçãodobem,Rawlsmantémoprocedimentalismodoequilíbrioreflexivoemsentidoinverso,partindodateorianão-ideal(depessoasconcretasnumaculturapolítica,ondesedãoosconflitoseembatesentre 40 “Averdadeiratradiçãonãoéatransmissãomecânicadeumconteúdodoutrinalnosentidodeumainvariantequimicamentepura.Elaéfeitaderetomadascriativasdamensagemcristã.PodemosconsideraroNovoTestamentocomooatodeinterpretaçãodaprimeiracomunidade cristã e a distância que nos separa dela, longe de ser um obstáculo, é acondiçãodeumnovoatode interpretaçãohoje.Destemodo,ocristianismoé tradiçãoporqueelevivedeumaorigemprimeiraqueédada,quenosprecede,masaomesmotempoénecessariamenteinovação,porqueestaorigemsópodeserreditahistoricamenteesegundoumainterpretaçãocriativa.EatualizaratradiçãoépropornovasinterpretaçõesdaEscritura,dossímbolosdafé,dasfórmulasdogmáticas.”(GEFFRÉ,C.Crer e interpretar, p.67-68).

41 GEFFRÉ,C.Crer e interpretar, p. 25.

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doutrinasabrangentes)emdireçãoànormatividadeidealizadaemtextosconstitucionais, normas e convenções internacionais, servindo-se deumaepistemologiasocialdecoerência,emqueumconjuntodecrençaséconcatenadoeconsolidadoatravésdeumprocessodeajustemútuo,recursivo,retroalimentado,calibradoedeliberativoentrejuízosmoraisparticulares eosprincípiosgerais e as construções teóricas adotadospelas partes envolvidas.

Ahermenêuticapolíticaemergenesseespaçoderazãopúblicaondesedáoconsensosobreposto:comodoutrinasreligiosaseconcepçõesabrangentes do bem conflitantes e incompatíveis podem semostrarrazoáveis, na esfera pública, de forma a permitir sua coexistênciapacífica? O liberalismo político busca acomodar tal pluralidade dedoutrinas abrangentes razoáveis através do consenso sobreposto,por exemplo, quando todas as partes subscrevem a concepçõesminimalistasdedireitoshumanos.Depoisdesuamorte,Rawlsaindasuscitouvários debates em tornodoproblemada secularização e dareligiãoemsociedadesdemocráticascontemporâneas,sobretudoapóspublicaçõespóstumasde alguns de seus escritos sobre a religião.Ofatode reconciliar suavisãopolítico-liberaldademocraciacomumaconcepçãoheterodoxadeigualitarismosocialpermitenãoapenasumareformulaçãodoqueseriaumsocialismoliberaloudeumliberalismosocial(comooencontramosemNorbertoBobbio),mastambémdeumaconcepçãoliberaldeteologiapolítica.

O jovemRawls retomouo termo“inquérito” (inquiry), que erautilizadopelosinterlocutoresdeístaseiluministasquandoquestionavama teodiceia e tentativas de justificação racional doproblemadomal,emseutrabalhodeconclusãodecurso(Senior thesis),Breve Inquérito sobre o significado do pecado e da fé: Uma interpretação baseada no conceito de comunidade (A Brief Inquiry into the Meaning of Sin and Faith: An Interpretation Based on the Concept of Community),defendidonaPrincetonUniversity emdezembrode 1942.O fato deRawls ter confessadomais tarde que teria abandonado suas crençasreligiosasdepoisdeterconhecidooshorroresdaSegundaGuerraedoHolocaustoébastanteinstrutivo.Emseuescritoautobiográfico“OnMyReligion” (1997), talmudançanopensamentodeRawls foimarcadapeloestudodahistóriadaInquisição,logonosprimeirosanosapósaguerra,tendoservidocomomarine(fuzileironaval)noPacífico,pelarejeiçãodaortodoxia(naspalavrasdojovemRawls,“opoderpolíticopara estabelecer a sua hegemonia e para oprimir outras religiões”),

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pelaÉticaTeológica e pelaTeologiaPolítica.Rawls entendeuqueoproblemateológicodajustificaçãoseriacorrelatoaodajustiçapolítica,emseuintentoprogramáticode“interpretarahistóriacomoaexpressãodavontadedeDeus,avontadedeDeusdevendoestardeacordocomas ideiasmais básicas de justiça como nós as conhecemos”. Rawlsobservara combastante propriedadeque enquanto a religiãogrega eromanaeraumareligiãocívica,servindoparaincutirlealdadeparacoma polisouoImperador,especialmenteemtemposdeguerraedecrise,permitindoumcerto tipodepluralismoreligioso,ahistóriadaIgrejaCristãdesvelaosprofundos laçoshistóricoscomoEstadoe seuusodopoderpolíticoparaestabelecer suahegemoniaeparasuprimirouoprimiroutrasreligiões.Rawlsobservaqueseriacontraessepano-de-fundodereligiõesexpansionistascomooCristianismoeoIslamismoquesepromoveriaointeressecomumemumaguerra justaenquantodefesanacional42.

SegundoRawls,oCristianismoMedievaltinhacincocaracterísticasquea religiãocívica ignorava: tendiaaumareligiãoautoritária,cujaautoridade era institucional, centralizada e quase absoluta, embora aautoridadesupremadopapativessesidoalgumasvezescontestada(porexemplo,noperíodoconciliardosséculosXIVeXV),eraumareligiãosalvacionista,ondeumúnicocaminhoparaavidaeternaeparaasalvaçãoexigiaumacrençaverdadeiraaserensinadapelaIgreja.Nestesentido,oCristianismoseconsolidariacomoumareligiãodoutrináriacomumcredoquedeviaserprofessado.Eraumareligiãodesacerdotescomaúnicaautoridadeparadispensarmeiosdegraça,significanormalmenteessencialparaasalvação.Finalmente,eraumareligiãoexpansionistadeconversãoquenãoconhecialimitesterritoriaisparasuacurtaautoridadedomundo como um todo.AReforma teve enormes consequências.Comoautoridadesalvacionistae religiãoexpansionistaquedividiuocristianismomedieval,estainevitavelmentesignificaaaparênciadentrodamesmasociedadedeumareligiãoautoritáriaesalvacionistarival,diferente em alguns aspectos da religião original a partir da qual seseparou, mas que por um determinado período de tempo teve muitas dasmesmascaracterísticas.

Considerar a teologia como hermenêutica é repor em causa adistinçãoentreodado e o construído,estudadanateologiatradicional,eultrapassaraoposiçãoentreumateologiaditapositiva e uma teologia 42 RAWLS,J.A theory of justice,§§25,39.

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dita especulativa,quehámaisdetrêsséculoscomprometeaunidadedosaberteológico.Defato,essadistinçãoconsagravaodivórcioentrearazãoeahistórianotrabalhoteológicoeotriunfodeumaescolásticaseparadadesuasfontesbíblicas.Opositivismohistóricoeoracionalismoteológicotêmamesmaorigem,asaber,odesconhecimentodeverdadeiracompreensão hermenêutica do passado. Nós já o sugerimos: essedesconhecimentoéherançadadistinçãokantianaentreoconhecimentodos fatoseaprocuradosentido.A teologiaditapositiva se limitavaaregistrardocumentosdopassado.Issofeito,ateologiaespeculativapodia entregar-se ao seu trabalho de construção teórica, como sepudéssemoscontentar-noscomdistinçãoingênuaentreumdadocujosentidopudéssemosler,pondoentreparêntesesnossacompreensãodehoje, eumaconstruçãoque tivesseapenas relaçãodistantecomessedado.Sabemosquenãopodemosfazeroinventáriodasfontesdafé,semnosdarmosatodoumtrabalhodeinterpretação43.

Emsuaobra-primade1971, adoutrinadaguerra justa apareceao lado de temas tais como a teoria da punição, a justificação dasváriasmaneiras de se opor a regimes injustos, a desobediência civile a objeçãode consciência44.O contexto semântico-conceitual aindaseriaodaconcepçãoidealdejustiça,quandoperguntamosse,eemquecircunstâncias,arranjosinjustosdevemsertolerados,ouseja,comoaconcepçãoidealdejustiçaseaplicaaoscasosemque,emvezdeterquefazerajustesparalimitaçõesnaturais,somosconfrontadoscomainjustiça45.Assim,Rawls se coloca a pergunta: “Será queo pacifistapossuiumaimunidadedeserviçomilitaremumaguerrajusta,assumindoque existemessas guerras?Ou é o estado autorizado a impor certasdificuldadesresultantesdanão-conformidade?”46

O princípio básico do Direito dos Povos é um princípio deigualdade,asaber,quepovosindependentesorganizadoscomoEstadostêmcertos direitos fundamentais iguais.Este princípio é análogo aoda igualdade de direitos dos cidadãos emum regime constitucional.Umadasconsequênciasdessa igualdadedospovosedasnaçõeséoprincípiodaautodeterminação,qualseja,odireitodeumpovoaquepossaresolverosseusprópriosassuntossemaintervençãodepotências

43 GEFFRÉ,C. Como fazer teologia hoje, p. 24-25.44 RAWLS,J.A theory of justice, p. 8.45 Ibidem,§5,p.309.46 Ibidem,§56,p.325.

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estrangeiras.Outraconsequênciaéodireitodeautodefesacontra-ataquesexternos,incluindoodireitodeformaraliançasdefensivasparaprotegereste direito.Umoutro princípio é que os tratados, pactos e acordosdevemsermantidos,desdequesejamcoerentescomosoutrosprincípiosqueregemasrelaçõesdosEstados.Quandoumanaçãotemumajustacausanaguerraou,nafrasetradicional,seujus ad bellum,podeocorrertambémqueosprincípiosqueregulamosmeiosquepodeusarparafazera guerra, seu jus in bello,sejamounãoaceitáveissegundoargumentosrazoáveis47.SegundoRawls,outroaspectoquedevemoscontrastarcomomundoclássicoéqueduranteasguerrasdereligiãoaspessoasnãoestavamemdúvidasobreanaturezadobemmaior,ousobreabasedaobrigaçãomoralnaleidivina.Naconcepçãoclássicadaguerrajusta,osfiéisachavamquesabiamcomacertezadafé,namedidaemqueasuateologiamoraldeu-lhesorientaçãocompletapararesolverosseusconflitoscomoutroscredosououtrasinterpretaçõesdafécristã.Nessesentido,podemosnosquestionar:Comoéasociedadeaindapossívelentreaquelesdediferentescredos?Oquepodeserconcebívelsobreabasedatolerânciareligiosa?Assim,aorigemhistóricadoliberalismopolítico (e do liberalismomais geral) encontra-se naReforma, suascontradições e consequências, com as longas controvérsias sobre atolerânciareligiosanosséculosXVIeXVII.

Embora a formulação original de uma teoria da justiça comoequidadetenhasidorevistaereformuladapelopróprioRawlsaolongodeseusescritostardios,ointentoprogramáticodejustificaracoexistênciapacíficadegrupossociaisconflitantesnumamesmasociedadecivilépreservadoeradicalizadoatravésdeváriosargumentosqueretomamaquestãodiretrizdatolerânciapolítica:“Comotolerarointolerante?Comoreconciliarinteressesincompatíveisatravésdeumaconcepçãopúblicadebemcomum?”48EmseuLiberalismo Político,JohnRawlsobservademaneiraumtantoinstrutivaqueLuteroeCalvinoforamtãodogmáticoseintolerantesquantoaIgrejaCatólicaRomanatinhasidoantesdeles49. Contudo, segundo Rawls, a Reforma do século XVI inaugurou demaneiradefinitivaopluralismoreligiosonomundoocidentalmoderno.Seosgregos,assimcomoasreligiõespoliteístasemgeral,erambemmaistolerantesdoqueospovosqueadeririamareligiõesmonoteístas, 47 RAWLS,J.A theory of justice,§58,p.332.48 Ibidem,§§34,35.49 Idem.Political liberalism, p. 25.

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emparticularaocristianismodepoisdaconversãodeConstantino,sófoicomaReformaquefoiconcretizadooproblemadoliberalismopolítico,asaber,“comoépossívelexistir,ao longodo tempo,umasociedadeestávelejustadecidadãoslivreseiguais,profundamentedivididospordoutrinasreligiosas,filosóficasemoraisrazoáveis”.(How is it possible that there may exist over time a stable and just society of free and equal citizens profoundly divided by reasonable religious, philosophical, and moral doctrines?)

Deacordo comRawls, a liberdadedos antigos sediferenciadados modernos não apenas pela emergência de um novo paradigmade subjetividade (o indivíduo político, seus direitos civis e suasliberdadesbásicas)masainda–edemaneiramaisfundamental–pelaintrodução deste “choque entre religiões salvacionistas, doutrináriase expansionistas” e pela internalização de tal conflito “latente eirreconciliável”:“Anovidadeemrelaçãoaessechoque”(clash),escreveRawls, “é que ele introduz nas concepções de bemdas pessoas umelemento transcendental quenão admite conciliação.Esse elementoconduzforçosamenteouaumconflitomortal,moderadoapenaspelacircunstância e pela exaustão, ou a liberdades iguais de consciênciae de pensamento.Exceto por essas últimas,firmemente arraigadas epublicamente reconhecidas, nenhuma concepçãopolítica razoável dejustiçaépossível”.Énestesentido,portanto,queRawlspodeasserir,emtomdeconstatação,que“aorigemhistóricadoliberalismopolíticoedoliberalismoemgeralestánaReformaeemsuasconsequências,comas longas controvérsias sobre a tolerância religiosa nos séculosXVI eXVII”. ERawls ainda comenta, não sem ironia, que “comoHegelsabiamuitobem,opluralismopossibilitoualiberdadereligiosa,algoquecertamentenãoeraa intençãodeLutero,nemdeCalvino”,fazendo alusão ao parágrafo 270 dasGrundlinien der Philosophie des Rechts de 182150.Decerto, toda afilosofiapolítica da tolerânciaque seria desenvolvida de JohnLocke, nofinal do séculoXVII, atéJohnStuartMill,emmeadosdoséculoXIX,marcariaumaevoluçãonotávelnaaplicaçãodeconceitosfundamentaiscomojustiça,liberdadeeigualdadeaesferascadavezmaisabrangentesdotecidosocialedasinstituiçõessociais,econômicasepolíticas.BastalembrarqueumautorcomoHobbes,apesardesuascríticasveementesàIgrejaedetersidoaparentemente indiferente à religião, se opôs taxativamente à tole- 50 RAWLS,J.The law of peoples,p.32.

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rânciareligiosaenãotolerouoscalvinistasemembrosdeoutrasseitas protestantes.

Deresto,asguerrasreligiosaseasgrandesinsurreições,rebeliõeseguerrascivisnosséculosXVIeXVIIpareciamsolaparaestabilidadedoEstadodedireito.Osmodelosjusnaturalistasprocurariam,portanto,estabelecer demaneira definitiva uma justificação coerente dopoderinstituído – que, em última análise,mesmo sem recorrer ao direitodivinodos reisera tambémrepresentadonavidareligiosadopovoeseuslíderesespirituais.Oproblemadetolerardiferentesconcepçõesdodivino,sobaameaçaconstantedegrandesheresias,apostasiasecisões,inevitavelmentenosremeteria,numasituaçãoextrema,aoproblemadeaté que ponto pode-se tolerar o intolerante51.Rawlsobservaqueantesda prática pacífica e bem-sucedidada tolerância em sociedades cominstituiçõesliberais,nãohaviacomosaberdaexistênciadapossibilidadedeumasociedadepluralistaestávelerazoavelmenteharmoniosa.Porisso, a intolerância foi aceita durante tantas décadas,mesmodepoisda Reforma, como uma condição da ordem e estabilidade sociais.Certamenteasecularização–eestefoiumprocessoquesedesenvolveupaulatinamenteapartirdeconcepçõesliberaisemcírculosteológicos– viria a coroar de vez a especificidade do liberalismo político,autodiferenciadodoproblemadobemsupremo.ComoRawlsobserva,paraosmodernos,obemsedavaaconheceremsuareligião;comsuasdivisõesprofundas,omesmonãoseverificavaemrelaçãoàscondiçõesessenciaisdeumasociedadeviávelejusta.Assimasdiferenciaçõesdasesferasdopolítico,dosocialedoeconômicoseguemorganicamenteaseparaçãopós-luteranaentreaesferaeclesiásticaeaesferacivil.

Segundo John Rawls, a característica mais fundamental epermanentedeumaculturapolíticademocrática,pública,éprecisamenteoqueeledenominao“fatodopluralismorazoável”.DeacordocomoLiberalismo Político, tal “cultura pública compreende as instituiçõespolíticas de um regime constitucional e as tradições públicas de suainterpretação (inclusive as do judiciário) [semgrifos nooriginal]”52. Alémdeserumaconcepçãomoralespecificamentepolítica–namedidaemqueseaplicaà“estruturabásicadasociedade”,istoé,àsinstituiçõespolíticas, sociais e econômicas de uma democracia constitucionalmoderna – e de ser apresentada como uma “visão autossuficiente” 51 RAWLS,J.A theory of justice,§35.52 Idem.Political liberalism,p.53.

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(freestanding view) – diferenciada, portanto, em sua especificidadepolítica de doutrinas abrangentes (comprehensive doctrines)morais,religiosas e filosóficas –, a “justiça como equidade” parte de “umacerta tradiçãopolítica”, assumindocomo sua ideia fundamental ada“sociedade como um sistema equitativo de cooperação ao longo dotempo,deumageraçãoatéaseguinte”.ERawlsacrescenta,“essaideiaorganizadora central corre paralela a duas outras, fundamentais, quesão suas companheiras inseparáveis: a de que os cidadãos (aquelesenvolvidosnacooperação)sãopessoaslivreseiguais;eadequeumasociedadebem-ordenadaéefetivamentereguladaporumaconcepçãopolítica de justiça. Supomos também que essas ideias podem sertrabalhadasnumaconcepçãopolíticadejustiçacapazdeconquistaroapoiodeumconsensosobreposto[overlapping consensus]”53.

Somenteassim,podemoscompreenderporqueomassacredeSãoBartolomeu,em1572(Massacre de la Saint-Barthélemy,quandocercade10milhuguenotesteriamsidoassassinadosporcatólicosfanáticos)easguerrasreligiosassãotomadaspelojovemRawlseevocadasemseus escritos tardios como importantesmarcos do desenvolvimentoe evolução da democracia liberal na Europa e nomundo ocidental.Rawls observa ainda que “não deve ser esquecido o fato de que aconcepçãodemoníacadeHitlerdomundoera,decertaformaperversa,religiosa.Istoéevidenteapartirdesuaderivaçãoedesuasprincipaisideiaseódio.Oseuantissemitismoredentor,comoSaulFriedlanderochama, inclui elementosnãoapenas raciais...masnascedomedodadegeneraçãoracialedacrençareligiosanaredenção.”Rawlsobserva,destarte,umavergonhosalinhadeódioreligiosoquebuscavajustificarde forma irracional a guerra, desde as guerras étnico-religiosas e oantissemitismo na Antiguidade e no Medievo até as suas versõesmodernaseoHolocausto54.

Como reação a umclimade relativismogeneralizado, segundoGeffré,emergemasposturasfundamentalistas,asquaissurgemcomoumapedradetropeçocontratodaplausibilidadecientíficaehistórica,provocandoumsuicídiointelectual.Osfundamentalistasnãoadmitemadinâmicahermenêuticaehistóricadafé,caindoemumhermetismodoutrinaleanacrônico,quesóconcebeumaveracidadedasEscriturasSagradasseestasestiveremomaispertopossíveldafonte,queseriam 53 RAWLS,J.Political liberalism,§§3.3,5,6,p.57-58.54 Idem.The law of peoples, p. 20 ss.

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aspalavrasoriginaisdeJesus.Opressupostoconsistenacrençadequequantomaisprimitivoéotestemunho,maisoriginaleleseria.

A constituição do Novo Testamento como ato de revelação daprimeira comunidadecristãprolongou-seporumperíododeunstrintaouquarentaanos.Oqueresultouporescritonofinaldesteprocesso não é menos importante do que o que foi escrito nocomeço.Masalgunsexegetasrecusamosdadosmaiscomprovadosporque,paraeles,aoralidadeécomoqueinvestidadeumpodermuitomaiordoqueaescrita.ElesdesejariamencontrarumescritoprimitivoquefosseexatamenteaestenografiadapalavravivadeDeus.[...]ÉimpossíveltermosacessodiretoàpalavravivadeJesus.Sempreaencontramospormeiodostextoseéporissoquepodemosinterrogar-nossobreummétodoexegéticoquequercentrartudonoquesechamasentidoliteral.[...]Éprecisoaceitarapassagempormeioda linguagem,equemdiz linguagemdizaomesmo tempointerpretaçãoemrelaçãoaumeventoeemrelaçãoaotestemunhooral.Algunstêmaobsessãodapurezaoriginária55.

Oparadigma pluralista permite uma humilde interpretação dosenunciadosdafédemodoaprocurar“darasrazõesdaprópriaesperançaàquelesqueaspedirem”(cf.1 Pd 3,15).OdesígniomisteriosodeDeusnosinserenessadinâmicadialéticaderevelaçãoeescondimento,emqueéprecisoadmitirquenãosetemocontroletotaleabsolutodasituação,nemqueépossíveltutelarconceitualmenteasverdadesdivinas,masquesomosenvolvidosporalgoquefogeànossaplenacompreensão,apesardenãosercontraditórioànossaracionalidade.Serpluralistasignificaadmitirquetodasignificaçãoúltimanosescapa.

4 Algumas aproximações teológico-políticas entre Rawls e Geffré

Ora, as recentes incursões do Estado Islâmico e os frequentesataquesterroristasperpetradosporgruposfundamentalistastêmajudadoapropagarsentimentosreligiososeantirreligiososporrazõesbastantesimples de seremconstatadas,masque revelama complexidadedostemas e problemas correlatos da teologia política.Ao contrário deumaversãodeteologiapolíticaantimodernistaouantiesclarecimento, 55 GEFFRÉ,C.Crer e interpretar,p.92-93.

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comoadeCarlSchmitt,Rawls se aproximada abordagempolítico-teológicaliberal,comoadeGeffré,seguindoJohannBaptistMetzaodefenderopluralismorazoávelnumaesferapúblicapós-secular(comodiriaHabermas), onde o papel da religião assumepublicamente seudiálogo com um conceito do político (das Politische) em constanteredefiniçãodemocrática, desmistificadopela deliberaçãopública nasdemocraciasmodernas, resgatando concepções teológicas que foramsecularizadas, tais como “soberania” e “autoridade”, e voltaram aser revisitadas na própria formação de opinião e vontade, inerentesa processos de aprendizagem da democracia, não apenas em suasrespectivas transformações semânticas, mas sobretudo em suaspretensõesnormativasdevalidade.

TantoRawls quantoGeffré recorrem amodelos construtivistasmitigados,namedidaemqueaconstruçãosocialquepermiteodiálogoeadeliberaçãopúblicapodemsertomadoscomoexemplosdefensáveisde um construcionismo social metodológico fraco que enfrenta osdesafiosdorelativismoculturaledopluralismodoscontextossemânticosintersubjetivos,semabdicardeumaconcepçãodenormatividadeético-moral, embora não absolutista, permitindo a identidade religiosa emmeioacelebraçõesdediversidadeetolerância.Afimdereconstruirumahermenêuticadaguerrajusta,podemosrecapitular,emconclusão,queassimcomoalinguagemantropocêntricaeahistoricidadeeurocêntricado jusnaturalismo moderno prepararam o terreno para implementar umadeclaraçãouniversaldosDireitosHumanoslogoapósaSegundaGuerraMundialeparareabilitarpossíveisdoutrinasdaguerrajustanoSéculoXX,princípiosesuposiçõesuniversalizáveissobreajus in bello postulamumaideiadeguerrajustaunicamentetravadaporumpovoemautodefesaouparapromoverumapazjustaeduradouraentrepovos,namedidaemqueospovosbem-ordenados(porexemplo,democracias)não declaram guerra uns aos outros, mas apenas contra Estados fora-da-leioucujaambiçãoexpansionistavisaameaçarasinstituiçõesderegimesbem-ordenados56.

Conclusão

Ahermenêutica teológica deClaudeGeffré nos ajuda a reler ofenômeno da revelação em sua pluralidade irredutível, cuja riqueza 56 RAWLS,J.The law of peoples, §§ 5, 8.

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nãoseesgotanocristianismoenquantoreligiãohistórica,emboratenhanele,umaexpressãoprivilegiadadamanifestaçãododesígniosalvíficodeDeusparaahumanidade.Sóépossívelcrerinterpretando57, ou seja, atualizandoparaohojeasexperiênciasdeontem,abrindoumhorizontedeesperançaparaoamanhã,comoumdescortinardoinefávelparaaimanênciadahistória.Autopiasocialdaescatologiacristãseencontranomesmohorizontededesafiosnormativosinerentesaoprojetorawlsianodeumautopiarealista.Nãonosparecenadarazoável,portanto,postularhojeumapax americanaque,assimcomoapax romanahádoismilênios,carecedefundamentosnormativospelaprópriaimposiçãoviolentadeinteresseseconômicosegeopolíticosparticulares.Rawlssemprefoi,deresto,implacávelnassuascríticasàpolíticaexternaamericana,desdeo uso de bombas atômicas contra a população civil deHiroshima eNagasaki até a intervenção desastrosa contra regimes democráticos,como o de Allende, por interesses econômicos e ideológicos de“segurança nacional”. Rawls também não hesitou em vincular oHolocaustonazistaaoantissemitismodeumacertainterpretaçãocristãquepermiteapersistênciada intolerância, reproduzidana IrlandadoNorteenoconflitopalestino-israelense,equecontinuasendoomaiordesafio para a normatividade ético-políticamoderna, a saber, comodiferentes doutrinas abrangentes (religiosas, morais, ideológicas),incompatíveis entre si, podem conviver pacificamente de forma aviabilizarasociabilidade?

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57 “Ahermenêutica teológica,emseucuidadoporatualizaraPalavradeDeusparahoje,nãosecontentacomproduzirnovoscomentários.ÀforçadefrequentarumtextoqueéatestemunhaprivilegiadadaPalavraatuantedeDeus,oteólogotemavocaçãoexigentedeexercer,istoé,deproporpráticassignificantesparaaIgreja.Masissoépouco.Aprópriapráticadoscristãosélugar teológico queoferecedadosaoteólogoemsuareinterpretaçãocriativadafé.SobaaçãodoEspírito,quenuncalhefalta,acomunidadecristãtodatemcompetência parainterpretaros‘sinaisdostempos’eparacriaroutrasfigurashistóricasdaplenitudeinsondáveldomistériodeCristo.”(GEFFRÉ,C. Como fazer teologia hoje,p.11).

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