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JUVENTUDE PROJETO EPREVENÇÃODA VIOLÊNCIA Realização: Parceria estratégica: Estratégias para atuação de educadores sociais em contextos violentos Guia prático

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    EPREVENODAVIOLNCIA

    Realizao: Parceria estratgica:

    Estratgias para atuao de educadores sociais em contextos violentos

    Guia prtico

  • Sumrio

    Introduo................................... 2

    1. Quais as caractersticas dos contextos violentos? ................. 4

    2. Como entender a relao entre juventude e violncia?................ 8

    3. Como trabalhar com adolescentes e jovens em contextos de violncia?............. 15

    4. Como lidar com situaes-limite?......................................... 27

    5. Recomendaes s instituies e seus gestores.... 34

    Para saber mais......................... 40

    Introduo

    Este guia destina-se aos profissionais que trabalham com adolescentes e jovens em contextos de violncia. Em-bora esteja focado nos educadores sociais, as

    informaes e recomendaes aqui contidas

    tambm podem ser teis para os gestores de

    projetos e instituies.

    No Brasil, j existe um conhecimento acu-

    mulado sobre o trabalho com adolescentes

    e jovens, mas ainda falta material que discu-

    ta a atividade do educador especificamente

    em contextos de violncia. Profissionais que

    atuam em realidades complexas, onde h di-

    ferentes tipos de violncia envolvendo ado-

    lescentes e jovens, como brigas, presena

    de armas de fogo, ameaas, agresses fsicas

    e verbais, entre outras, muitas vezes lidam

    com essas situaes sem orientao e aca-

    bam tendo que resolv-las de acordo com

    sua experincia pessoal ou bom-senso. Mas

    ser que isso suficiente? Os educadores se

    sentem seguros e, mais do que isso, sentem

    que sua atuao diante desses casos est de

    acordo com os propsitos da educao so-

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    cial, ou seja, est promovendo a transfor-

    mao e a emancipao de cada adoles-

    cente e jovem? A resposta mais realista

    no: os educadores se sentem inseguros,

    necessitam de apoio e formao.

    Diante dessa constatao, elaborou-se o

    presente guia, a partir de oficinas e en-

    trevistas com educadores que atuam em

    contextos de violncia nas cidades de

    So Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Du-

    que de Caxias e Braslia. O objetivo deste

    material no oferecer uma receita pron-

    ta de como atuar diante de cada situao,

    mas sim apresentar conceitos que podem

    ajudar o profissional que est na ponta

    a entender melhor como as diferentes

    violncias envolvendo adolescentes e jo-

    vens acontecem, alm de mostrar cami-

    nhos para lidar com elas. O guia surgiu a

    partir de uma demanda dos gestores do

    PROTEJO, o Projeto Proteo de Jovens

    em Territrio Vulnervel, no mbito das

    iniciativas do Pronasci. Mas pretende-se

    que esse material possa ser utilizado por

    qualquer educador que atue em contex-

    tos de violncia.

    Ao final do guia, so apresentadas reco-

    mendaes para os gestores de projetos

    e instituies, visando no s subsidiar o

    trabalho dos educadores, mas tambm

    aperfeioar a atuao da instituio. Para

    aqueles que quiserem se aprofundar em

    determinados temas abordados aqui, in-

    dicada uma lista de referncias.

    Esperamos, com este material, contribuir

    para fortalecer a atuao de todos aqueles

    que se dedicam a melhorar as condies de

    vida dos adolescentes e jovens do Brasil.

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    1. Quais as caractersticas dos contextos violentos?

    O educador que atua em contextos de violncia precisa conhecer as caractersticas destes locais, para entender como estas influenciam os comportamentos e atitudes dos jovens e tambm para obter mais elementos para pensar em intervenes adequadas. claro que cada comu-nidade possui sua histria, identidade e cultura, mas, mesmo diante das peculiaridades de cada local,

    possvel perceber aspectos comuns a estes lugares, que sero apresentados a seguir.

    1.1 Violncia no Brasil e os contextos violentos

    No Brasil, j faz muitos anos que a violncia se tornou um grave problema social e passou a fazer parte

    da agenda nacional. Isso porque, desde a dcada de 1980, os ndices de homicdios, sequestros, latroc-

    nios, roubos, assaltos e outros crimes cometidos com violncia comearam a aumentar de maneira alar-

    mante, gerando entre a populao uma sensao de pnico e a demanda por medidas para enfrentar

    estes problemas. Assim, quando a opinio pblica fala em violncia, est se referindo, sobretudo, a estes

    crimes, mas o conceito de violncia bem mais amplo.

    Ateno!

    Violncia e crime so dois conceitos diferentes.

    Violncia toda ao intencional que provoca um dano (fsico, psicolgico ou

    moral), podendo ser autoinfligida, interpessoal ou coletiva.

    Crime tudo aquilo que est tipificado na lei penal ou seja, a lei precisa dizer o

    que ou no um crime. H crimes contra a pessoa, contra o patrimnio, contra

    os costumes, contra a administrao pblica, etc. Eles podem ou no envolver

    violncia.

    Nem todo crime violento, assim como nem toda situao de violncia ilegal!

    Apesar de ser um problema de dimenso nacional e que provoca um sentimento de insegurana ge-

    neralizado, a violncia afeta as pessoas de formas diferentes, de acordo com sua localizao geogrfica,

    classe social e faixa etria, entre outros. Por exemplo, em uma cidade, os assaltos acontecem com mais

    frequncia nas reas mais abastadas, enquanto os homicdios se concentram em reas mais excludas.

    Neste guia, ao tratar de contextos violentos, estamos nos referindo a localidades com altos ndices

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    de homicdios, que constituem o tipo mais grave de violncia. Os dados e pesquisas existentes

    revelam que as periferias dos grandes centros urbanos so os locais com maior concentrao de

    assassinatos no pas.

    Ateno!

    Pesquisas recentes, como o Mapa da Violncia 2010 Anatomia dos homi-

    cdios no Brasil, tem apontado um movimento de interiorizao dos ho-

    micdios, ou seja, eles tem migrado para cidades menores, do interior do

    pas, prximas a regies fronteirias. Neste guia, no entanto, trataremos,

    sobretudo, da realidade nas periferias das regies metropolitanas.

    Estes territrios possuem algumas caractersticas, apresentadas a seguir.

    So regies vulnerveis social e economicamente, com pouca presena do Estado. Nessas localidades, faltam recursos e equipamentos pblicos de sade, educao, cultura e lazer, entre ou-

    tros. Em alguns casos, so reas que tiveram uma ocupao recente e pouco planejada, com condies

    precrias de habitao. O Estado ora est ausente (quando deixa de prestar os servios e instalar os

    equipamentos necessrios), ora se faz presente de maneira insatisfatria, com programas e servios

    insuficientes e profissionais desmotivados.

    Ainda comum que, para estes lugares, sejam direcionados servidores desmotivados e, em alguns ca-

    sos, menos preparados, seguindo a lgica de que trabalhar nestes locais um castigo, quando, ao

    contrrio, para estas localidades deveriam ser enviados mais recursos e os melhores profissionais. Essa

    situao acontece tanto com servidores da sade, da educao, da assistncia social, quanto com os

    agentes de segurana pblica. Policiais sem preparo nem motivao acabam perpetuando, junto co-

    munidade, uma relao de medo e desconfiana.

    O individualismo e o uso da fora so aceitos para conquistar direitos. A falta de confiana e vnculo da populao com os policiais, a ausncia de mecanismos formais de resoluo de conflitos e

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    a pouca presena do Estado fazem com que, em muitos casos, as pessoas recorram ao uso da fora ou

    a mecanismos informais e at mesmo ilegtimos para buscar justia e garantir seus direitos. Diante de

    um cenrio de tantas dificuldades e carncias, muitas pessoas acabam optando por recorrer a solues

    imediatistas: em vez de se engajarem em aes coletivas que tendem a gerar transformaes a longo

    prazo, buscam solues individuais por meio de favores de polticos ou at de pessoas ligadas ao crime

    organizado. Vale mencionar, alis, que em algumas comunidades comum que o crime organizado re-

    gule as relaes, no s determinando como se dar a circulao das pessoas no territrio, mas tambm

    atuando como um aparente regulador dos conflitos.

    A cultura do medo e da violncia est disseminada. Outro ponto a ser considerado sobre estes locais o aspecto cultural e simblico da violncia, ou seja, a forma como se estabelecem e so social-

    mente aceitas relaes interpessoais pautadas na violncia. Isso influencia no s a maneira como as

    pessoas e grupos resolvem seus conflitos e buscam acessar seus direitos, mas tambm as relaes coti-

    dianas, at mesmo dentro de casa. Em muitas famlias, na escola e em outros espaos de convivncia, a

    cultura da punio, do castigo, da violncia fsica e da intolerncia ainda est muito presente.

    Este um fator muito relevante inclusive quando se trata de violncia letal. Por exemplo, estudos realiza-

    dos pela Polcia Civil de So Paulo apontam que cerca de 60% dos homicdios so cometidos por motivos

    banais, por pessoas que se conhecem e sem ligao com atividades criminosas. Numa comunidade onde

    se aceita o uso da fora como uma resposta violncia ou como maneira legtima de solucionar conflitos

    (independente de sua gravidade), a cultura da violncia que estimula o olho por olho tambm potencia-

    liza o nmero de assassinatos. Porm, ela tambm tem outras consequncias: perpetua a ideia de que s

    possvel se relacionar desta maneira, minimizando a importncia do dilogo, da palavra, da negociao,

    da tolerncia e do respeito ao diferente, como valores que deveriam pautar o convvio social.

    Presena do trfico de drogas. Alm da cultura da violncia que permeia muitas relaes, no se pode negar o impacto da existncia de atividades ilcitas a maioria ligada ao trfico de drogas nesses

    territrios. Em alguns locais, as lideranas do trfico ocupam o vazio criado pela ausncia do Estado,

    seja regulando as relaes e mediando conflitos, seja provendo servios e at resolvendo problemas

    individuais. Alm de no contriburem para o desenvolvimento da autonomia da comunidade, pois

    alimentam a dependncia dos moradores, a presena e o poder do trfico de drogas nestes locais criam

    em muitos adolescentes e jovens a ideia de que participar de alguma forma dessa estrutura a nica

    maneira de conseguir sucesso, visibilidade e reconhecimento.

    Em contraponto a essas caractersticas, importante ressaltar que muitas dessas comunidades, a des-

    peito das ausncias e das frustraes, seguem se mobilizando e lutando por melhores condies de

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    vida. Nestes locais, h inmeras pessoas dispostas a se envolver em projetos coletivos e participar de

    aes em benefcio da comunidade, mas em alguns casos elas no encontram oportunidades para o

    engajamento e a participao.

    Mesmo quando o Estado atua de forma insuficiente, as pessoas tem se organizado para tentar suprir as

    demandas. As atuaes de igrejas, associaes de bairro, grupos de moradores e coletivos juvenis so

    exemplos de mobilizaes por melhorias na comunidade. Tambm possvel encontrar nestas locali-

    dades servidores pblicos que, a despeito de todas as dificuldades inerentes a reas vulnerveis e com

    poucos recursos, realizam um trabalho de excelncia.

    Em relao ao problema da violncia e da insegurana, tambm preciso reconhecer que, recentemen-

    te, tem sido realizados esforos por parte do Estado para construir comunidades seguras, direcionando

    investimentos para o desenvolvimento dessas localidades e a melhoria dos servios, alm da mudana

    nas polticas de segurana pblica. O Estado tem investido em projetos de preveno da violncia e na

    melhoria da atuao policial, no sentido de aperfeioar a formao destes profissionais e valorizar pro-

    gramas de aproximao com a populao.

    1.2 Quais os desafios para os educadores que atuam em contextos de violncia?

    Os pontos explicitados anteriormente so aqueles para os quais o educador social deve estar atento

    quando comea a trabalhar em um contexto de violncia. Afinal, em seu cotidiano, ele perceber que

    estas caractersticas influenciam as diversas situaes de violncia que podero ocorrer dentro do pro-

    jeto ou at mesmo em outros espaos mas que, ainda assim, influenciaro de alguma forma a dinmi-

    ca do grupo.

    Um dos maiores desafios para aqueles que atuam em contextos de violncia no desanimar diante

    de um cenrio de tantas adversidades, com a violncia to presente no cotidiano dos adolescentes e

    jovens. preciso continuar acreditando que a transformao possvel, que a educao social, princi-

    palmente nestes territrios, faz sentido e tem potencial para melhorar a vida pessoal e social de cada

    atendido. Neste trabalho, os educadores precisaro estar mais instrumentalizados e ter sua disposio

    mais ferramentas e recursos. Porm, nada disso adiantar se o educador no acreditar de verdade na

    possibilidade de mudana, uma vez que isso repercutir em sua postura, em como construir vnculo

    com o grupo, em como se relacionar com cada jovem e em como lidar com cada situao-limite.

    Outro ponto-chave olhar a comunidade para alm das estatsticas criminais, buscando entender o

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    cenrio de vulnerabilidade e excluso do local e sua influncia sobre a maneira como as pessoas se rela-

    cionam. Tambm importante conhecer como a comunidade tem reagido a essa situao, procurando

    conhecer as boas iniciativas existentes.

    Estar preparado para lidar com a frustrao, a descrena, a desconfiana da comunidade e, paradoxal-

    mente, com a expectativa de que aquele projeto solucionar todos os problemas tambm um desafio

    que se coloca aos profissionais. Por isso, muito importante alinhar as expectativas e trabalhar sempre

    na perspectiva de um trabalho integrado, em rede, pois nem o educador nem o projeto so os grandes

    salvadores da comunidade. E cada educador precisa ter clareza de que no est ali para, sozinho, dar

    conta de todos os problemas. Este um peso muito grande, que no corresponde realidade e gera

    frustraes tanto para o prprio educador quanto para a comunidade.

    2. Como entender a relao entre juventude e violncia?

    A relao entre juventude e violncia no simples de se entender e muito menos fcil de se tra-balhar na prtica, pois ainda faltam aes e metodologias consolidadas. No entanto, partindo de alguns conceitos, possvel compreender melhor como se d essa relao. Ao perceber como alguns desses conceitos se concretizam, o educador ganha mais ferramentas para lidar com os desafios

    cotidianos, pensar em estratgias preventivas e tambm em como agir diante de situaes-limite.

    2.1 O que a realidade nos mostra...

    A associao entre juventude e violncia se evidencia nos dados alarmantes que apontam que os jo-

    vens so hoje as maiores vtimas de homicdios no Brasil e, em muitos casos, so tambm os autores

    dessas mortes. Os jovens constituem, ainda, o grupo mais envolvido com diversas outras situaes de

    violncia, sejam criminosas ou no.

    Com relao aos homicdios, os dados revelam um contexto em que a cultura da violncia e a falta de

    investimento nos jovens so fatores que impactam diretamente os ndices. Vamos aos fatos.

    Os jovens so as maiores vtimas, sobretudo os jovens homens e, mais ainda, jovens negros. O

    Mapa da Violncia 2010, que rene dados nacionais referentes a 2007, aponta, por exemplo, que

    naquele ano foram assassinadas 47.707 pessoas, sendo 17.475 jovens de 15 a 24 anos. Desse gru-

    po, 16.408 eram homens e, entre estes, os negros correspondiam a 11.905.

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    Por que s vezes

    eles abordam

    pessoas que no

    fazem nada?

    Para o clculo do ndice de Vulnerabilidade Juvenil Violncia (IVJ-V), elaborado pelo Frum Bra-

    sileiro de Segurana Pblica e Fundao Seade em 2010, com dados de 2006, foram consideradas

    diferentes dimenses, dentre as quais se destacam a proporo de jovens que no trabalham

    nem estudam, renda familiar per capita inferior a um salrio mnimo, porcentagem de domiclios

    localizados em assentamentos precrios. A vulnerabilidade juvenil de jovens violncia est dire-

    tamente vinculada a essas dimenses. O que demonstra que quanto menor o investimento em

    educao, trabalho e moradia, mais h risco de envolvimento com violncia.

    A mesma pesquisa que elaborou o IVJ-V fez um levantamento mais detalhado em 31 municpios

    brasileiros e constatou que 31% dos jovens entrevistados disseram ter facilidade para obteno

    de armas de fogo, alm disso, contatou que cerca de 30% desses jovens so expostos violncia,

    o que significa que apresentaram histrico ou algum risco mais concreto de exposio violncia.

    O dado mais chocante, que desse grupo de expostos violncia, 88% j viram pessoas assassi-

    nadas.

    A maioria dos assassinatos acontece entre pessoas que se conhecem e sem antecedentes crimi-

    nais. Alguns estudos indicam que motivos banais e conflitos de relacionamento, como uma briga

    no bar, no trnsito, pela namorada, porque a pessoa de determinado grupo ou porque torce por

    outro time, so a principal causa dos homicdios. O Departamento de Homicdios e Proteo Pes-

    soa da Polcia Civil de So Paulo analisou mais de 1100 homicdios cometidos entre 2005 e 2009 e

    apontou que os jovens de 18 a 30 anos representam quase a metade (48,9%) das vtimas e quase

    2/3 dos autores (62%). O estudo tambm revelou que motivos fteis foram a principal causa dos

    assassinatos, seguidos por vinganas, desavenas e cimes/passional. Outra informao relevante

    o fato de que 51% dos autores no tinham antecedentes criminais; entre as vtimas, esse nmero

    chegou a 69,7%.

    Ateno!

    Para saber mais sobre o IVJ-V, acesse:

    http://www2.forumseguranca.org.br/ivj/documentos

    E se quiser consultar os dados relativos ao seu municpio, acesse:

    http://www2.forumseguranca.org.br/ivj/informacoes-municipais

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    possvel perceber, ento, o quanto a violncia uma forma de se relacionar naturalizada, valorizada e

    muitas vezes justificada pela sociedade. A maneira como as pessoas negociam interesses e lidam com

    conflitos cotidianos, utilizando recursos violentos, culmina em mortes desnecessrias e alimenta o ciclo

    de violncia.

    Ateno!

    A falta de tolerncia e de respeito diversidade, o medo do dife-

    rente, a ausncia de espaos de convivncia e de uma cultura de di-

    logo e mediao, alm da valorizao de determinados smbolos,

    comportamentos e atitudes pela mdia, so fatores diretamente

    relacionados ao cenrio de violncia e s altas taxas de homicdios

    no Brasil. Vale acrescentar o fato de que a maioria (70%) dos homi-

    cdios cometida com armas de fogo, que, para muitas pessoas,

    ainda so vistas como smbolos de poder e defesa pessoal.

    Se este contexto um retrato genrico de toda a sociedade, ele ainda mais importante para nos aju-

    dar a entender a relao entre juventude e violncia. Para isso, preciso analisar dois aspectos: de um

    lado, as caractersticas, demandas e necessidades da juventude; e, de outro, como a violncia, j to

    valorizada e disseminada em nossa sociedade, pode ser o recurso que os jovens utilizam para vivenciar

    as experincias inerentes a essa fase da vida e obter aquilo que desejam. Para avanar nessa discusso,

    vale aprofundar como os jovens tem sido vistos pela sociedade.

    2.2 Quem e o que quer o jovem?

    Genericamente, pode-se dizer que jovem a pessoa na faixa etria entre 15 e 29 anos, como sugerem

    a ONU e a Secretaria Nacional de Juventude. Mas ser que na mesma cultura, poca e realidade h ho-

    mogeneidade de experincias e modos de ser jovem? possvel falar de uma juventude, ou seria mais

    apropriado pluralizar esse conceito? Por mais que a faixa etria e algumas caractersticas subjetivas e

    biolgicas aproximem essa multido, o contexto socioeconmico e cultural proporciona experincias e

    juventudes diversas.

    Assim, antes de mais nada, preciso reformular a pergunta: quem so e o que querem os jovens? Afinal,

    no possvel reduzir um grupo to amplo (que j representa 48 milhes de brasileiros) e to diverso

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    a uma nica categoria: o jovem. Entre muitas pessoas que estudam ou trabalham com esse grupo, j

    consenso que o mais adequado falar em jovens, em juventudes, justamente para reforar a ideia de

    diversidade e evitar uma homogeneizao que no reflete a realidade.

    Pensando no Brasil, onde jovens vivem nas zonas rurais e urbanas, em estados pauprrimos e muito

    ricos, nas periferias e nos bairros da elite, negros, brancos e mestios, trabalhadores e desempregados

    para falar de algumas diferenas , nosso olhar precisa ser mltiplo. Esses grupos tem acessos e n-

    veis de acessos diferentes cultura, ao lazer, ao trabalho, escolarizao, circulao nas cidades, nos

    estados e no pas. A despeito de todas essas diferenas, h consensos sobre essa fase da vida, como as

    apresentadas a seguir.

    A juventude um perodo crucial para a construo da identidade dos indivduos. Por isso, a tendncia dos jovens experimentar, arriscar, criticar, questionar o que apresentado como certo e de-

    finitivo. Tambm nessa fase, pertencer a um lugar e ser reconhecido e validado pelo grupo so objetivos

    muito importantes para os jovens. Eles precisam buscar quem so suas referncias, em quem querem se

    espelhar, testam comportamentos, atitudes e linguagens (Gosto disso? Me sinto melhor me vestindo des-

    sa ou daquela forma? Me identifico mais com esse ou aquele jeito de falar?), se associam a diversos grupos,

    numa tentativa de viver intensamente as emoes e conquistar um espao no presente.

    Os jovens no so um problema social; so sujeitos de direitos. As vises sobre os jovens tem evoludo ao longo do tempo, mas preciso superar de vez a concepo de jovens como problema

    social, rebeldes e potenciais criminosos e consolidar a concepo de que eles so sujeitos de direitos.

    At a dcada de 1970, no Brasil, eram considerados efetivamente jovens (como condio social, para

    alm da definio meramente etria) os indivduos das classes mdia e alta. Os jovens das camadas

    populares, tendo de trabalhar e interromper os estudos muito cedo, ou a eles nem tendo acesso, eram

    excludos dessa categoria.

    Ao longo do tempo, a viso sobre a juventude em situao de vulnerabilidade tambm evoluiu: passou

    de uma concepo repressivo-correcional (que procurava, pela conteno, livrar os jovens de seus as-

    pectos nocivos) para uma ideia assistencialista, que via no jovem algum que no tem, no sabe e no

    pode nada e que, portanto, precisaria ser suprido pelo educador. Finalmente, tem se consolidado uma

    vertente cidad, que pressupe a garantia de direitos como sentido preponderante do trabalho com

    jovens, considerando sua criatividade e potencial transformador. essa vertente que precisa ser cada

    vez mais fortalecida.

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    Os jovens moradores de contextos violentos tem diante de si, alm de todos os desafios inerentes a essa fase da vida, aqueles relacionados a uma situao de privao de direitos. No Brasil, apesar dos inegveis avanos em relao s polticas para crianas e adolescentes, faltam

    polticas especficas para a juventude (e ainda mais aquela moradora de contextos de violncia) que

    atendam s suas necessidades e caractersticas dessa fase.

    Diante destas especificidades, considerando-se um contexto em que a violncia legitimada na socie-

    dade e so poucas as oportunidades para os jovens que vivem em regies mais vulnerveis e sem aces-

    so a direitos, muitos estudiosos da relao entre juventude e violncia apontam que os jovens acabam

    vendo na violncia o caminho mais curto, fcil e rpido de se colocar no mundo, ganhar o respeito dos

    colegas, ter um lugar na comunidade, ser vistos e ouvidos pela sociedade.

    2.3 O que pode ser feito?

    Ainda que a relao entre juventude e violncia seja complexa e o envolvimento dos adolescentes e

    jovens em situaes de violncia seja causado por fatores de naturezas muito distintas, possvel pen-

    sar caminhos para prevenir esse envolvimento ou lidar com ele da maneira mais adequada. Para isso,

    muito importante:

    entender as caractersticas inerentes a essa fase: a necessidade de visibilidade e reconhecimento,

    de pertencer a um grupo com o qual possa compartilhar os mesmos sentimentos e objetivos, ser

    tratado com dignidade e respeito, ser valorizado por suas competncias e aes positivas;

    acreditar no alto poder criativo dos jovens, apostando na juventude mais como uma oportuni-

    dade de construo de identidades positivas do que como um risco de desvios e envolvimento

    com a violncia;

    entender o conceito de vulnerabilidade e realizar uma leitura mais ampla do contexto de violn-

    cia em que o jovem est inserido, identificando os fatores que aumentam seu risco de envolvi-

    mento com a violncia;

    entender o conceito de resilincia, como ela pode ser fortalecida nos jovens e desenvolver aes

    para isso.

    O que vulnerabilidade? At algumas dcadas atrs, era comum responsabilizarmos pessoas ou grupos por situaes muito pre-

    crias de vida. Por exemplo, o Cdigo de Menores responsabilizava famlias pobres pela falta de condi-

    es de prover adequadamente seus filhos, como se as condies sociais, econmicas, educacionais em

    que viviam no tivessem nenhuma contribuio na sua existncia especialmente difcil.

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    Situao parecida foi vivida no perodo de descoberta da Aids. Quem no ouviu falar nos grupos ou

    comportamentos de risco? Os homossexuais, hemoflicos, prostitutas eram responsabilizados e discri-

    minados porque pertenciam a grupos ou agiam de maneira a facilitar a contaminao pelo vrus HIV.

    Mas ser que essa relao era to direta e simples assim? No, claro que no!

    no fervor dessa discusso que surge o conceito de vulnerabilidade, que inclui na anlise do quadro

    epidmico da Aids as condies de vida que facilitavam a contaminao. Ou seja, alm dos fatores indi-

    viduais, comearam a ser consideradas as questes ambientais, sociais, econmicas, de direitos huma-

    nos que contribuam para que houvesse a infeco.

    Vulnerabilidade ento um conceito que surgiu na rea da sade e ganhou espao na anlise de temas

    sociais, contribuindo para uma viso mais complexa da realidade. Ao trabalhar a partir da ideia de vul-

    nerabilidade s situaes de violncia, estamos aceitando que, alm de fatores individuais que podem

    influenciar a exposio das pessoas violncia, existem elementos sociais, ambientais, econmicos e

    de direitos humanos, denominados de fatores de risco, que contribuem e/ou determinam a exposio

    a essas situaes.

    O que significa resilincia? Todos ns j vivemos ou conhecemos pessoas que tiveram perdas importantes, sofreram acidentes

    graves, foram vtimas de aes violentas e, apesar de todo o sofrimento, conseguiram se reorganizar e

    continuar vivendo bem, planejando um futuro, s vezes at melhor. O que essas pessoas tem de espe-

    cial? Ultimamente, temos ouvido dizer que so resilientes. Mas, o que isso significa?

    Resi lincia um conceito da Fsica, que descreve a capacidade dos materiais de voltarem sua con-

    dio original, sem deformaes aps sofrerem grande presso. Nas cincias humanas, esse conceito

    refere-se possibilidade de enfrentamento e superao de situaes-limite ou situaes de risco.

    Ateno!s vezes, resilincia confundida com a capacidade de no se deixar afetar pe-

    las dificuldades. Mas as experincias de resilincia pressupem o contato com

    as adversidades e a disposio para sair das desventuras de maneira positiva.

    A grande pergunta : por que algumas pessoas conseguem lidar bem com problemas to srios e ou-

    tras no? Os primeiros estudos sobre resilincia consideravam-na uma capacidade individual, inata, pre-

    sente em algumas pessoas. Hoje, estudos apontam que a resilincia se constitui de aspectos individuais,

    ambientais e sociais. Assim, alm de caractersticas pessoais, tambm estariam envolvidos as condies

    de vida, o contexto, as redes de apoio, a existncia de um projeto de vida.

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    14Conceitos importantes

    H autores que dizem que a resilincia est presente em todos ns. Mais do que isso, ela pode ser apren-

    dida e aprimorada. possvel aprender a levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima!

    Analisando pessoas ou grupos resilientes, podemos perceber algumas caractersticas presentes: con-

    fiana em sua capacidade de viver e superar problemas; viso positiva de si mesmo; existncia de um

    projeto de vida que mobiliza as aes, uma direo para onde ir e um lugar aonde se quer chegar; a ex-

    perincia ou a vontade de pertencer a grupos; a valorizao da solidariedade; a compreenso analtica

    do mundo, do contexto em que se vive.

    Quando abordamos situaes de violncia, identificamos fatores individuais, sociais, ambientais, eco-

    nmicos e de direitos humanos, que minimizam a probabilidade de ocorrncias dessas situaes, neu-

    tralizam fatores de risco, ou fortalecem a resilincia das pessoas. So os chamados fatores de proteo.

    Como os conceitos de vulnerabilidade e resilincia podem ajudar o trabalho do educador? O conceito de vulnerabilidade refora a importncia de ampliar o olhar sobre o indivduo: alm dos aspec-

    tos individuais e do histrico de vida de cada um, necessrio considerar quais caractersticas sociais e

    ambientais podem estar influenciando a relao de determinada pessoa ou grupo com a violncia.

    J o conceito de resilincia mostra que a capacidade de reagir bem s adversidades pode ser aprendida,

    e os educadores podem trabalhar isso com o grupo. Levando em conta as caractersticas e necessidades

    dos jovens, os educadores podem, no seu cotidiano de trabalho:

    promover o dilogo com os jovens e entre eles;

    realizar atividades que coloquem o jovem no lugar de protagonista, aquele que tem a ideia e

    lidera diferentes atividades;

    estimular sempre as atividades coletivas;

    construir relaes de afeto e confiana com os jovens e entre eles;

    procurar caminhos para envolver a famlia e a comunidade dos jovens nas atividades do projeto.

    Ateno!

    Os termos fator de risco e fator de proteo aplicados a contextos de vulnerabili-

    dade e resilincia a situaes de violncia so os fatores que podem aumentar a

    possibilidade de uma ao violenta, ou aqueles que podem diminuir a probabili-

    dade de situaes de violncia e neutralizar os fatores de risco. Mas ateno: fator

    de risco no significa uma relao automtica de causa e efeito!

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    15

    3. Como trabalhar com adolescentes e jovens em contextos de violncia?

    Cada contexto nico, cada projeto tem seus prprios princpios, cada grupo tem suas singula-ridades e cada educador tem sua experincia pessoal e seu modo de trabalhar. Mesmo assim, h recomendaes que podem ser teis a todos aqueles que atuam com adolescentes e jovens em contextos violentos. Muitas das situaes de violncia que acontecem em projetos e atividades com

    este pblico podem ser evitadas ou minimizadas se o educador estiver atento sua postura, forma

    como estabelece relaes com o grupo (e como media as relaes entre seus integrantes), s regras de

    convivncia que se estabelecem e como se zela por elas, entre outros. Por isso, neste captulo, so apre-

    sentadas sugestes que ajudaro os educadores a construir um ambiente participativo, pautado pelo

    dilogo e pelo respeito, em que cada um se sinta parte do grupo e responsvel por ele.

    Trabalhando em contextos de violncia, muitas vezes o educador pode se deparar com situaes que

    acontecem fora do projeto, mas que afetam e prejudicam o desenvolvimento dos adolescentes e jo-

    vens atendidos como brigas, casos de violncia domstica, violncia policial, conflitos relacionados

    ao consumo ou trfico de drogas, etc. Por isso, o profissional deve estar atento aos sinais de que h algo

    errado e estar disponvel para escutar os problemas e pensar, junto com os envolvidos, o que fazer. Nes-

    ses casos, muito importante envolver a famlia e a comunidade. Isso no significa que um educador

    que dedica inmeras horas de seu trabalho prestando um atendimento direto a adolescentes e jovens

    deva despender a mesma quantidade de tempo em contatos com a famlia ou aprofundando relaes

    comunitrias. O que queremos dizer que estes trs mbitos devem ser considerados em seu trabalho

    e que o educador pode e deve lanar mo da famlia e da comunidade como importantes aliados, quan-

    do necessrio. Por isso, a parte final deste captulo traz algumas consideraes sobre o envolvimento da

    famlia e da rede de proteo existente na comunidade.

    3.1 Onde tudo comea: a postura do educador

    Como j vimos, o sentido do trabalho do educador social promover transformaes, envolvendo

    nesse processo os adolescentes e jovens para que sejam sujeitos ativos da mudana. O educador uma

    pea-chave no grupo e, em ltima anlise, constitui a maior referncia naquele espao. Por isso, muito

    importante que esteja atento ao seu prprio comportamento e atitudes, pautando seu trabalho pelos

    aspectos apresentados a seguir.

  • Profissionalismo. O educador deve respeitar os horrios estabelecidos, no faltar e cumprir o planejado com o grupo, pois ele um exemplo para o grupo e precisa mostrar que est realmente engajado com o

    trabalho. Estas so atitudes simples que sinalizam seu comprometimento com o que acontece ali.

    Crena no potencial transformador da educao social. Trabalhando em contextos de violn-cia, ainda mais importante que o educador esteja ali porque realmente acredita na possibilidade de

    transformao daquele grupo, mesmo diante de situaes-limite, e perceba que todo acontecimento

    ali pode ser trabalhado como uma situao pedaggica mesmo uma briga, um conflito, uma situao

    de violncia precisam ser tratados dessa maneira.

    Coerncia com os valores e princpios do projeto. O educador deve agir, em todas as situaes, de acordo com os princpios e valores ticos do projeto e/ou instituio que o contratou. Isso pode sig-

    nificar, por exemplo, no tolerar a presena de armas, apoiar o policiamento comunitrio, no negociar

    com o trfico, etc. Para que isso acontea, essencial que a instituio deixe claro para o educador quais

    seus princpios e valores, o que pode ajud-lo a tomar decises cruciais em momentos que exigem uma

    resposta rpida.

    Ateno! comum, em muitos projetos, ter educadores que residem nas comunidades onde

    o projeto acontece. Nesses casos, essencial estar atento sua postura mesmo fora

    do projeto. preciso ser coerente o tempo todo, em todas as situaes. Por exemplo,

    um educador que diz ao grupo que no legal adquirir produtos falsificados no

    pode ser visto comprando um DVD pirata na feirinha do bairro!

    Reconhecimento dos seus limites. O educador pode muito, mas no pode tudo. Com as recomen-daes aqui reunidas, acreditamos que possvel estabelecer uma relao de dilogo e confiana com

    os jovens, que permita ao educador se posicionar com mais tranquilidade diante de situaes comple-

    xas. Mas em casos realmente graves, o educador no pode colocar sua segurana e a do grupo em risco,

    devendo procurar apoio imediato de outros colegas ou da coordenao da instituio, ou interromper

    as atividades e trabalhar a situao em outro momento (no prximo captulo, trataremos disso com

    mais detalhes). Reconhecer os limites no ser omisso, ser responsvel!

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    17

    3.2 A relao do educador com o grupo

    Criar uma boa relao com o grupo uma das primeiras condies para se desenvolver um trabalho so-

    cial qualificado. Em contextos violentos, ainda mais importante que o educador se empenhe para ter

    um bom relacionamento com o grupo e com cada jovem. Assim, ele se consolidar de fato como uma

    referncia e, diante de uma situao-limite, ser ouvido e respeitado. Para isso, o educador deve:

    Criar vnculo com o grupo. O educador no est ali para ser amigo e nem submisso ao grupo, mas tambm no pode ter uma relao fria e distante. Interessar-se pela realidade dos adolescentes e jo-

    vens, buscar saber do que eles gostam, incorporar sua linguagem e seus desejos ao programa de ativi-

    dades constituem formas de estabelecer um vnculo que, aos poucos, se transforma tambm em uma

    relao de respeito e confiana. Isso pode acontecer em conversas informais no incio da atividade,

    fora do momento de aula ou at mesmo em atividades em que se d espao para o jovem falar de si e

    de seu universo. Tambm essencial que o educador estabelea relaes claras, definindo os papis e

    responsabilidades de cada um.

    Construir legitimidade e autoridade perante o grupo. O que confere legitimidade e autoridade ao educador no s sua funo profissional e conhecimentos, mas tambm a relao que ele estabele-

    ce com o grupo e como os jovens iro ouvi-lo e respeit-lo. Isso no acontece de uma hora para a outra,

    mas sim a partir de cada atitude do educador, de seu esforo em criar vnculo com os participantes, de

    sua postura durante as atividades.

    Em muitos projetos, os educadores no se sentem legitimados a adotar certas posturas, questionar os

    jovens e tratar de temas mais delicados porque no fazem parte daquela realidade muitas vezes at

    tem origens sociais distintas dos participantes do projeto. preciso se lembrar que a legitimidade no

    tem a ver com origem social, mas sim com a postura, o repertrio e a experincia do educador, o que

    possibilita quebrar essa barreira com os jovens.

    Ateno!

    Autoridade no deve ser confundida com autoritarismo! A autoridade o po-

    der conferido a algum por conta de sua funo ou cargo. Autoritarismo o

    abuso da autoridade. Uma postura autoritria por parte do educador s afas-

    tar os jovens e criar um ambiente de medo e submisso, pouco produtivo e

    com mais chances de gerar situaes violentas.

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    18Como fazer?

    Criar um ambiente participativo. Os adolescentes e jovens precisam exercitar a participao e o tra-balho em grupo. Alm de ser uma experincia formadora que eles podero levar para outros espaos,

    garantir processos participativos uma maneira de melhorar a relao entre o educador e o grupo, de

    fazer com que o grupo se reconhea mais nas aulas e no projeto, gerando um importante sentimento

    de pertencimento e responsabilizao pelo que est acontecendo ali. Para que a participao acontea,

    o educador pode criar uma rotina em que, ao final de cada aula, os participantes faam uma avaliao

    do dia, apontando o que mais gostaram, o que no gostaram, o que pode melhorar (ateno: impor-

    tante tentar incorporar as demandas e sugestes dos jovens, para que a participao faa sentido!).

    Tambm possvel construir combinados com o grupo, definindo as regras de convivncia naquele

    espao, por exemplo.

    A construo das regras coletivas possibilita que o grupo sirva tambm de elemento regulador, auxi-

    liando o cumprimento ou no dos combinados. Mas vale destacar que muitas vezes os jovens so muito

    rigorosos e papel do educador mediar os combinados, em conjunto com o grupo.

    Ateno! muito provvel que no incio o grupo se sinta mais inibido a participar; por isso

    cabe ao educador estimular as pessoas a falar, fazendo perguntas e solicitando

    a opinio de cada um. Para que as pessoas se sintam mais confortveis para

    manifestar sua opinio, o educador pode usar a estratgia da roda, em que todo

    mundo se enxerga e se ouve, ou ainda criar estratgias ldicas para que eles se

    expressem por meio da msica, da arte, por exemplo, valorizando a linguagem

    local e simultaneamente ampliando o repertrio dos jovens.

    No quebrar a confiana do grupo. A partir do momento em que a confiana foi conquistada, ela precisa ser mantida e cabe ao educador zelar por isso. Assim, preciso estar ainda mais atento para no

    quebrar os combinados com o grupo, continuar com uma relao de transparncia, explicitando sempre

    os motivos de suas atitudes, e sempre que possvel compartilhar com todos ou com determinado jovem

    as tomadas de decises que dizem respeito a problemas coletivos ou individuais. Tambm importante

    ter cuidado com as informaes trazidas pelos jovens. Por exemplo, quando algum compartilhar um

    problema com o educador, ele no pode tomar nenhuma deciso de encaminhamento sozinho, sendo

    necessrio consultar o jovem (e muitas vezes a famlia) para juntos chegarem a uma soluo que seja

    a mais adequada. Isso muito importante, principalmente em situaes em que o jovem esteja sendo

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    19

    tecer de f o r m a

    violen- ta, na

    medida e m

    q u e essa

    a ma- n e i r a

    muitas v e z e s

    a c e i t a e legi-

    timada p e l a

    s o c i e - d a d e

    para a soluo

    de conflitos ou a conquista de respeito.

    vtima de algum tipo de violncia. O educador no pode decidir fazer uma denncia, por exemplo, sem

    consultar a vtima e seus familiares.

    Corresponsabilizar o grupo pelo que acontece no ambiente de aprendizagem. Se os jovens so sujeitos de direitos, eles devem ser tratados como tal, o que significa tambm que devem fazer parte

    do projeto no apenas como atendidos, mas como sujeitos que podem e devem contribuir com o que

    acontece ali opinando sobre as atividades, cuidando do espao, construindo as regras de convivn-

    cia e at discutindo coletivamente as solues para os problemas que acontecem durante a atividade.

    Com isso, eles vo percebendo que suas atitudes tem consequncias para sua vida, seu desenvolvimen-

    to e para o andamento do grupo, o que vale tanto para sua experincia no projeto, quanto para a vida

    em sociedade.

    No ser omisso. Se um problema acontece em sala de aula, ou se um jovem relata alguma situao que est vivenciando, o educador no pode se omitir, pois assim estar quebrando a relao de confian-

    a que foi estabelecida. Isso no significa que o educador ter que resolver sozinho aquele problema;

    provavelmente ter que pedir ajuda, mas o importante escutar o que est sendo trazido e tomar uma

    atitude, que provavelmente ser consultar a famlia do jovem e outros profissionais da instituio para,

    juntos, chegarem a uma soluo.

    3.3 A postura do educador diante de cada jovem

    Como j mencionamos, hoje ainda muito forte a viso do jovem como um problema e da juventude

    como um perodo de risco. Quando se trata de jovens moradores de locais que concentram situaes

    de violncia, essa situao se agrava ainda mais, pois, alm dos estigmas sobre sua condio etria, eles

    carregam os esteretipos sobre sua condio social, o que acaba afetando sua autoestima. O educador

    precisa estar atento para no reforar os estigmas da sociedade sobre o jovem e tambm ter sensibili-

    dade para tentar, com o jovem, desconstru-los.

    No revitimizar o jovem. Mesmo conhecendo seu histrico de vida, o educador no deve olhar para o jovem e agir com ele somente a partir desse histrico, de algum fato isolado. preciso um olhar mais

    amplo, que acredite nas potencialidades de cada um. E s vezes, ao tratar o jovem como um coitado,

    ao no responsabiliz-lo por suas aes, ao concordar com todas as suas atitudes, o educador tambm

    acaba contribuindo para revitimiz-lo e mant-lo neste lugar de vtima social, que em nada contribui

    para seu desenvolvimento.

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    20

    Trabalhar a partir do positivo. Em vez de reforar no jovem o que ele no tem, o que no sabe, o que falta, importante que o educador trabalhe a partir do que ele traz de positivo. Muitos educadores

    j perceberam que os piores jovens do grupo, aqueles com mais problemas de indisciplina, so justa-

    mente os mais criativos, com perfil de liderana e que mais contribuem com o grupo mas para que

    isso acontea, no podem ficar reforando o que eles tem de pior. Outra dica iniciar qualquer crtica

    com um elogio.

    Ateno!

    Responsabilizar no sinnimo de punir e muito menos de castigar. Respon-

    sabilizar significa fazer com que o jovem seja capaz de responder por seus

    atos, percebendo que h consequncias em suas atitudes.

    Ateno!A crtica deve ser em relao ao comportamento do jovem e no a ele como pes-

    soa. Por exemplo, se o jovem for agressivo com um colega, o educador pode dizer:

    esse jeito de falar com ele no legal, mas no voc sempre to grosso!.

    No ter medo de questionar, mas fazer isso sem julgamento negativo. O educador deve, sim, questionar os valores e comportamentos dos jovens quando sentir que eles esto simplesmente re-

    produzindo esteretipos e que aquilo no est contribuindo para seu desenvolvimento (por exemplo,

    quando o jovem gosta de se apresentar como bandido, porque aprendeu que s assim ele ter algum

    respeito). Mas nunca deve julgar, dizer isso errado, isso feio, no est certo. A postura deve ser ques-

    tionadora, propondo uma reflexo sobre aquela situao ou atitude, para que juntos construam uma

    viso e posturas diferentes.

    Adaptar as atividades do projeto ao interesse dos jovens. Para que eles se sintam parte do pro-jeto, se engajem e, mais ainda, que as experincias vividas no projeto faam sentido para eles, preci-

    so que o educador abra espao para conhecer e ouvir o que os jovens gostam, seus interesses. Isso diz

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    21

    respeito no s s estratgias por exemplo, grafite, msica, esporte , mas tambm s experincias

    que o projeto pode lhes proporcionar. Por exemplo, se nessa fase de vida estar em grupo muito

    importante para o jovem, o projeto pode investir em aes e atividades que promovam o fazer junto,

    o associativismo e a tomada de decises coletiva, tais como delegar aos jovens a organizao de um

    campeonato, festival ou seminrio, envolv-los na organizao das atividades de encerramento do

    projeto, entre outras.

    Ter claro qual o seu lugar. s vezes o educador, para criar vnculos com o grupo e at desenvolver melhor as atividades, se coloca como um par, como um igual, um brother. Isso gera confuso de papis

    e pode prejudicar a legitimidade e a autoridade do educador. claro que possvel e at recomendvel

    se apropriar de grias e demonstrar interesse pelo universo juvenil, mas h limites para isso. Educadores

    precisam se portar como educadores, em todas as situaes.

    3.4 A construo de um ambiente seguro

    O educador que atua em contextos de violncia deve contribuir para a construo de ambientes de

    aprendizagem seguros e a preveno de situaes extremas de violncia naquele espao. claro que

    isso no garantia de que alguma situao mais grave no ocorra, mas cria um ambiente menos pro-

    pcio a esses problemas e onde possvel resolver as questes de outras formas, diferentes daquelas a

    que os garotos esto acostumados em suas casas, na escola, na comunidade. Nesse sentido, vale:

    Construir combinados com o grupo. Isso significa estabelecer, juntamente com os jovens, algumas regras de convivncia naquele espao. Cada um tem interesses, vises de mundo, sonhos e vontades

    diferentes, que precisam ser respeitados. Entretanto, quando se pensa no grupo, preciso superar as

    individualidades e olhar para o que importante para todos. O que gostaramos de garantir em nossa

    convivncia? O que precisamos mudar para viver melhor? Nesse processo, os jovens (e os educadores)

    exercitam a negociao, o que pressupe respeitar o outro, ouvir, argumentar e encontrar solues

    maiores do que simplesmente ganhar uma discusso. Esse processo permite que os jovens vivenciem

    outras formas de se relacionar em grupo, aprender a reconhecer e defender seus interesses, argumentar

    na tentativa de convencer os divergentes e ceder quando for convencido ou quando o grupo optar por

    outra opo. Mas os combinados tem outra importncia e funo: ao serem construdos coletivamen-

    te, os jovens passam a ser corresponsveis por aquele espao e pelas relaes que ali acontecem, e os

    combinados podem ser retomados toda vez que houver conflitos de interesses. Os combinados podem

    tratar desde pontos bsicos horrio das atividades, tolerncia para atrasos at questes mais comple-

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    22

    xas, como a forma que sero abordados os conflitos (por meio da fora? Do dilogo?). Em alguns proje-

    tos, os educadores costumam escrever esses combinados e deix-los afixados no espao da atividade.

    Sempre que um combinado for quebrado, o educador precisa retomar com o grupo as regras e pode at

    questionar se aquela regra ainda faz sentido.

    No abrir mo de certos valores e regras. Algumas coisas podem ser inegociveis, de acordo com os princpios e valores do projeto, tais como no frequentar o projeto portando uma arma, no partici-

    par das aulas sob efeito de drogas ou lcool, no levar produto de roubo, etc. Mas, mesmo que sejam

    inegociveis, elas precisam ser compartilhadas com o grupo e o educador deve explicitar porque no

    se pode abrir mo delas. O educador tambm deve estar aberto para algumas regras que podem ser

    inegociveis para o jovem: por exemplo, no ser chamado por tal apelido.

    Pautar-se sempre pela legalidade. Mesmo quando falta clareza sobre os princpios do projeto, o educador pode (e deve) se pautar pela legalidade na hora de tomar decises, principalmente quando

    h conflitos sobre o que pode e o que no pode fazer no ambiente do projeto. Em ltima anlise, deve

    sempre prevalecer o que diz a lei, e o educador no pode ser flexvel com relao a isso. Por exemplo,

    como ilegal fumar maconha, o educador no pode ser permissivo caso algum esteja fumando no

    projeto. Mas no adianta s dizer que no pode fumar maconha porque a lei probe: preciso mostrar

    que pode haver consequncias para aquele ato.

    Ateno!

    O educador no um policial e no deve exercer essa funo. Isso no sig-

    nifica que o educador no deva agir frente a uma situao complexa e at

    mesmo ilegal; mas sim que ele pode atuar de uma maneira diferente. Por

    exemplo, se um jovem estiver fumando maconha no projeto, no papel do

    educador lev-lo at a delegacia; sua funo conversar, dizer que ali no

    pode, discutir a situao com o grupo...

    Estar atento ao clima do grupo e perceber quando h algo errado. Essa uma habilidade que o educador vai desenvolvendo conforme aumenta sua experincia profissional e tambm medida que

    conhece mais o grupo. preciso prestar ateno no clima, se o grupo est se comportando de forma

    diferente, e conversar com os jovens para entender o que est acontecendo.

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    23

    Trazer o grupo para a resoluo dos problemas. O grupo, assim como responsabilizado pelo que ocorre ali quando constri os combinados, tambm deve responder pela quebra de algum combinado,

    ou quando acontece alguma situao-limite. Isso pode se dar na roda final de avaliao da aula, por

    exemplo. Em alguns casos, o educador pode ainda decidir parar a atividade e fazer uma discusso cole-

    tiva sobre aquela situao. No prximo captulo trataremos dessas questes com mais profundidade.

    Propor maneiras diferentes de resolver conflitos. O conflito faz parte da vida em sociedade, afinal, as pessoas tem interesses, desejos e expectativas diferentes, que precisam ser constantemente negocia-

    dos. O negativo nos conflitos a forma como eles podem ser resolvidos (pela fora, pela violncia) e no

    a sua existncia. Assim, cabe ao educador agir no para aniquilar os conflitos, mas sim para estimular

    o grupo ou os envolvidos no conflito para que possam experimentar formas diferentes de resolv-lo: o

    dilogo, a escuta do outro, a negociao.

    Ter postura mediadora. O papel do educador no apontar as solues para um conflito quando ele surge, mas sim intermediar as relaes, trazer as partes em conflito para a conversa, estimular o dilogo

    e a discusso, fazendo com que elas se responsabilizem pela soluo. Para isso, muito importante,

    antes de tudo, ser imparcial! Alm disso, preciso conseguir ler a situao, resgatar e apresentar os ar-

    gumentos dos envolvidos no conflito, encaminhar o dilogo e, em alguns casos, sugerir algum caminho

    para solucionar o conflito.

    Fortalecer a cultura de paz. Ela um contraponto cultura da violncia que permeia a forma como as pessoas se relacionam, como deixam de ouvir o outro, como tentam impor seus interesses acima

    do bem comum e como usam desnecessariamente a fora e a violncia. O educador pode fortalecer a

    cultura de paz ao valorizar e estimular a diversidade e a convivncia entre diferentes (garotos e garotas,

    tribos diferentes, moradores de comunidades diferentes). Para isso, podem ser criadas aes, em sala

    de aula, que integrem os gneros, as tribos, os grupos rivais, sempre respeitando o contexto local. Por

    exemplo, em uma comunidade onde h diversas faces disputando territrios e quem mora em uma

    localidade no pode circular para a outra, os educadores do projeto podem propor uma atividade em

    que os jovens de todas as comunidades rivais se encontram, tais como um seminrio organizado por

    eles fora daquele territrio. Outra maneira de estimular a cultura de paz desvalorizar a violncia como

    forma de se expressar e se colocar socialmente, estimulando a comunicao no violenta. Isso pode ser

    feito cotidianamente, por meio do questionamento de posturas e atitudes violentas, para marcar com o

    grupo que a violncia no legal.

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    24

    3.5 A importncia da famlia

    Quando se pensa em aes voltadas para adolescentes e jovens que vivem em contextos de vulnera-

    bilidade violncia, preciso considerar a forma de envolver a famlia e a comunidade (sobretudo a

    rede de proteo) nesse processo. Em primeiro lugar, porque ningum vive isolado, nossa vida e nossas

    relaes acontecem em determinados ambientes, junto a certas pessoas e grupos, sendo que muitas

    de nossas atitudes decorrem destas experincias. Assim, na maioria dos casos, os comportamentos dos

    jovens no projeto so reflexos do que eles vivem e aprendem fora dali, de suas referncias em casa e na

    comunidade. Por isso, conhecer a dinmica familiar dos participantes do projeto facilita a compreenso

    de muitas aes e posturas e possibilita ao educador pensar em maneiras mais eficazes de acessar os

    adolescentes e jovens.

    A famlia tambm tem papel fundamental porque deve ser acionada e envolvida quando for preciso

    acionar a rede de proteo para encaminhar situaes mais graves. Alis, importante frisar que a fa-

    mlia deve ser acionada sempre! No caso de garotos e garotas cumprindo medidas socioeducativas, a

    aproximao com a famlia no apenas necessria, como tambm obrigatria! Mas, mesmo em outras

    situaes, essencial tentar trazer a famlia para perto do jovem. Para isso, o educador (e todos os outros

    profissionais da instituio) deve estar atento a dois pontos.

    O primeiro refere-se a um desafio que deve ser superado quando se trabalha a famlia em con-

    textos violentos: a viso recorrente de que o problema a famlia desestruturada, que no

    corresponde mais aos modelos de 30, 40 anos atrs. preciso estar atento a essas mudanas

    e conseguir trabalhar a ideia de famlia a partir de uma viso mais adequada realidade atual.

    Afinal, j foi o tempo em que a definio de famlia se resumia s relaes de consanguinidade.

    Alis, na prtica, os laos de afetividade sempre se impuseram aos de consanguinidade, a ponto

    de chamarmos de tia, av, irmo aquelas pessoas que amamos e que no necessariamente tem

    algum grau de parentesco conosco.

    A composio das famlias tambm apresenta uma multiplicidade que precisa ser considerada. Hoje,

    grande parte dos grupos familiares chefiada por mulheres, havendo ainda pais solteiros que criam

    seus filhos, casais homossexuais, filhos de casamentos diferentes co-habitando a mesma moradia, entre

    vrios outros tipos de arranjos familiares. Alm disso, hoje em dia os prprios jovens constituem fam-

    lias, que tambm apresentam essas caractersticas. O importante, mesmo, reconhec-las. Isso ajuda a

    superar a ideia de famlia desestruturada em oposio viso de famlia ideal formada por pai provedor,

    me cuidadora, filhos obedientes, casa arrumada, harmonia absoluta.

    Para o jovem, nem sempre tranquilo pertencer a uma famlia que no responda a esse ideal,

    ainda que ningum tenha uma famlia perfeita. Cabe ao educador no ignorar esse assunto. No

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    Ateno!entanto, preciso ser cuidadoso para no impor valores pessoais como verdadeiros para todos.

    Ouvir o jovem, ajud-lo a contar sua histria familiar, ir descobrindo que relaes regem esse

    grupo e quais as expectativas que tem em relao a ele um bom comeo!

    Outro ponto a ser considerado o histrico de muitas famlias nessas comunidades. So pais e mes

    que muitas vezes tiveram que abdicar, muito cedo, de sua juventude, para assumir papis e responsa-

    bilidades de adultos: trabalhar, casar, criar filhos e sustentar um lar. Por causa disso, muitos pais tem di-

    ficuldades em entender e se aproximar de seus filhos, pois no compreendem a linguagem, os desejos,

    as questes dessa fase da vida. No se trata somente de um conflito de geraes, mas sim do fato de

    que muitos pais nem puderam ser jovens, o que faz com que cobrem de seus filhos atitudes de adultos,

    quando muitas vezes eles no esto prontos para isso, e nem conseguem ajud-los a se formar, pois

    tiveram que aprender a ser gente grande na marra. Assim, os pais ora assumem diante dos filhos uma

    postura bastante rgida, conservadora, pouco afetuosa e at violenta (provavelmente reproduzindo o

    comportamento de seus prprios pais), ora abdicam de seu dever de apoiar e educar os filhos, pois no

    se sentem preparados para isso.

    Essas atitudes tem reflexos diretos na maneira de os jovens se relacionarem, se comportarem, em sua vi-

    so de mundo e autoestima. Assim, importante reconhecer que a famlia exerce forte influncia sobre

    os jovens, bem como trabalhar para, quando possvel, apresentar aos jovens outras referncias, outros

    modos de ser, de conviver, de se enxergar e se colocar no mundo. Alm disso, o educador pode ter mais

    condies do que as famlias de entender os pedidos de socorro dos adolescentes e jovens por estar

    mais familiarizado com seu universo e at por ter conseguido estabelecer uma relao de proximidade

    que os jovens no tem em casa.

    Ateno!

    Apesar de muitas vezes aparecer para os educadores situaes de conflito en-

    tre o jovem e seus familiares, no papel do educador mediar nem solucionar

    esse tipo de problema. O educador pode e deve acolher e escutar o jovem ,

    procurando pensar, juntamente com a equipe tcnica do projeto, os encami-

    nhamentos mais adequados.

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    26

    3.6 Como aproximar a famlia do projeto?

    Existem muitas formas de aproximar as famlias (quaisquer que sejam suas configuraes) do projeto.

    Aqui, apresentamos algumas sugestes, que podem ser pensadas e implementadas pelos educadores

    e a coordenao do projeto.

    Criar um grupo de familiares voluntrios que ajudem o projeto de alguma maneira. Para

    isso, a instituio e os educadores podem identificar as demandas existentes e conversar com os

    familiares para saber quem est interessado em participar e como podem contribuir.

    Convidar os familiares para participarem das atividades realizadas pelos seus filhos no pro-

    jeto por exemplo, organizar uma atividade de grafitti para os pais. Uma boa ideia pode ser

    colocar os jovens como educadores dos familiares nestas atividades.

    Oferecer terapia comunitria , como um espao de conversa e troca dos familiares sobre as di-

    ficuldades que sentem em relao aos adolescentes e jovens ou outras questes.

    Criar um espao de encontro dos familiares , conduzido por um educador ou outra pessoa do

    projeto por exemplo, uma reunio bimestral, um caf da manh para as famlias, etc.

    Abrir a possibilidade de fazer encontros temticos de formao dos familiares para que se

    sintam mais preparados para lidar com os adolescentes e jovens por exemplo, se sentem difi-

    culdade em tratar de assuntos como drogas e sexualidade com os filhos, oferecer uma palestra

    para que os familiares se informem e debatam o assunto pode ser uma estratgia interessante.

    3.7 A importncia da comunidade

    Tendo em vista que o trabalho com o jovem deve envolver as dimenses individual, familiar e comuni-

    tria e que nenhuma instituio, sozinha, dar conta de resolver os problemas de todos esses mbitos,

    ganha fora a rede de apoio local.

    Todo projeto desenvolvido em um determinado territrio, bairro, comunidade, onde existe uma srie de

    instituies e servios governamentais e no governamentais, sendo que alguns funcionam bem e outros

    no. fundamental que o educador conhea todas essas instituies e servios. No entanto, preciso ter

    clareza que a principal funo do educador ser um educador e, portanto, mapear a rede, criar vnculos,

    participar de fruns e outros espaos comunitrios no deve ser atribuio exclusiva dos educadores a

    no ser que isso no consuma demais seu tempo, a ponto de prejudicar seu trabalho com o grupo. O ideal

    que os gestores da instituio faam esse mapeamento e estabeleam os vnculos necessrios e que,

    cotidianamente, tcnicos da instituio (psiclogos e assistentes sociais, por exemplo) estejam prximos

    rede. No Captulo 5, apresentamos sugestes sobre o mapeamento e a aproximao com a rede.

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    4. Como lidar com situaes-limite?

    No seu dia-a-dia de trabalho, o educador se depara com situaes-limite, nas quais conflitos e violncias eclodem durante a atividade ou no espao do projeto, impondo a necessidade de uma reao imediata de sua parte. Tais situaes so mais frequentes quando o trabalho desenvolvido em contextos vulnerveis com alta concentrao de violncia.

    Esses so momentos que colocam o educador em cheque e para os quais no h respostas prontas,

    tampouco um passo-a-passo definido para lidar com cada um deles. Ainda assim, possvel orientar o

    educador e dar suporte para que ele tenha melhores condies de lidar com tais situaes e encami-

    nh-las da melhor maneira para os envolvidos.

    Quando falamos de situaes-limite, nos referimos aos casos mais graves vivenciados nos projetos,

    como um jovem chegar sob o efeito de lcool ou outras drogas, algum chegar armado ou ameaando

    o grupo, um jovem levar produto de roubo para o projeto, entre outros. Tambm consideramos situa-

    es-limite aquelas que acontecem fora do projeto, mas que so trazidas pelo jovem e que demandam

    algum tipo de atitude do educador ou da instituio por exemplo, o jovem sofrer violncia domstica,

    sexual, policial, etc.

    Embora tais situaes no sejam a regra, importante que o educador esteja preparado para lidar com

    elas, devendo:

    tomar decises em situaes de urgncia;

    no colocar em risco a sua vida e a dos demais jovens com quem trabalha;

    ter repertrio, tranquilidade e segurana para trabalhar com os jovens os fatos ocorridos, discu-

    tindo os problemas vividos sob uma perspectiva pedaggica;

    reconhecer suas limitaes e recorrer instituio quando viver alguma situao-limite, seja

    antes, durante ou depois delas acontecerem.

    4.1 Como agir quando acontece uma situao-limite?

    A partir de entrevistas e conversas com educadores e gestores de projetos que atuam em contextos vio-

    lentos, elaboramos algumas recomendaes que podem ajudar o educador na hora de tomar decises.

    Apesar de termos coletado muitos relatos sobre como cada profissional se portou diante de situaes-

    limite, acreditamos que a melhor forma de auxiliar os educadores , em vez de descrever acontecimen-

    tos especficos, apontar recomendaes genricas, que podem ser aplicadas a qualquer caso e ajudar

    na tomada de decises.

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    Ser coerente com os princpios e valores do projeto/ instituio. Para tomar as melhores deci-ses em situaes-limite, o educador precisa conhecer os princpios bsicos do projeto e/ou instituio

    para o qual trabalha e ser coerente com eles. Por exemplo, em um projeto de preveno da violncia,

    alguns princpios podem ser os seguintes: valorizao do dilogo e de formas pacficas para resolver

    conflitos; respeito lei; valorizao do jovem como sujeito de direitos.

    Se, por exemplo, comear uma discusso com ofensas e xingamentos entre dois jovens, o educador

    poder recorrer ao dilogo e a uma dinmica de conversa, em que cada um exponha os motivos que o

    levaram quela situao, de forma a mediar o conflito. Se um jovem aparece portando um objeto ilcito,

    o educador saber que aquilo no aceitvel pelo projeto e poder pedir para que o objeto seja retira-

    do e depois trabalhar o tema da legalidade e ilegalidade dentro do projeto.

    Trabalhar pedagogicamente a situao-limite. Um ponto crucial e desafiador para o educador a importncia de transformar as situaes-limite vivenciadas em um processo reflexivo e pedaggico.

    Isso significa que, se acontecer algum caso de violncia durante as atividades, se algum quebrar um

    combinado e colocar em risco a segurana do grupo, tal fato deve ser trabalhado com todos, a partir da

    conversa e da reflexo. A prpria maneira como o educador conduz a situao (provavelmente de uma

    forma diferente da que acontece em suas casas e na comunidade) constitui um importante aprendizado

    para os jovens, que percebem que possvel lidar com as situaes de violncia sem recorrer fora

    fsica, agresso verbal ou a outros recursos mais extremos.

    Ateno!

    Em um projeto, ocorreu uma briga entre dois jovens durante as atividades.

    O educador, ao apartar a briga, acabou levando um soco. Quando todos es-

    tavam mais calmos, os dois jovens, o educador, outra educadora e a coorde-

    nadora do projeto sentaram para conversar sobre o que tinha acontecido. O

    educador que apanhou disse a eles que estava ali justamente para dizer que,

    mesmo tendo apanhado, ele no revidaria e iria resolver a situao na con-

    versa, ao contrrio do que acontecia ali no bairro. Tratava-se de uma forma

    de mostrar aos jovens que era possvel fazer diferente.

    Independente da situao, importante que o educador tenha clareza sobre a mensagem que preten-

    de passar para o grupo, as reflexes que pode propor e o que todos podero aprender com o ocorrido.

    E, acima de tudo, que a inteno do projeto justamente ser transformador; portanto, nada de repetir

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    atitudes e frmulas recorrentes em outros espaos. Por exemplo, se um colega rouba o bon do outro,

    vale chamar a polcia, gritar com os envolvidos, revistar as mochilas de todos, como aconteceria fora do

    projeto? Ou ser que no melhor pensar em outras formas de fazer com que a pessoa que roubou o

    bon se responsabilize pelo ato, perceba as conseqncias e at possa reparar seu dano?

    Dependendo da situao, o trabalho pedaggico pode ser feito logo aps o ocorrido quando o educa-

    dor chama todos para conversarem se legal ter uma briga durante a atividade, por exemplo ou ento

    em outro momento, quando os nimos j estiverem apaziguados. Nem sempre, como veremos a seguir,

    o educador deve trabalhar tudo no coletivo em alguns casos, necessrio fazer uma conversa somente

    com os envolvidos na situao e depois trabalhar o acontecimento com o grupo, resgatando o combina-

    do, avaliando o que aconteceu e propondo que pensem em outras formas de resolver a questo.

    Outra situao pode ocorrer quando o educador prope uma discusso sobre um tema especfico,

    como uso ou trfico de drogas ou violncia domstica, por exemplo, e um jovem declara que faz parte

    de uma gangue ou que vtima de violncia domstica. Se isso ocorre no grupo, o educador precisar

    ser capaz de seguir com o debate, procurando despersonaliz-lo, em vez de abordar o tema dizendo

    no caso de fulano, que passa por tal e tal problema..., tentando trabalhar de maneira mais genrica, de

    forma a expor menos o jovem: em situaes que ocorram tal e tal problema.... Depois, individualmente,

    deve procurar entender o que ocorre e trabalhar o problema, sempre com o apoio da instituio.

    O importante no deixar de trabalhar essas situaes-limite com o grupo. claro que o educador

    precisar sempre avaliar a melhor forma de fazer esse trabalho, de maneira a no se colocar em risco e

    muito menos o grupo. E se ele no souber o melhor caminho para abordar a situao, ser fundamental

    envolver a instituio na qual atua, pedindo ajuda e utilizando os espaos de discusso e superviso.

    Ateno!O educador deve ter claro que ele conta (ou deve contar...) com apoio institucio-

    nal. Se ele est ali fazendo um trabalho com um grupo de jovens, porque faz

    parte de um projeto desenvolvido por uma instituio. Como o trabalho em con-

    textos de violncia no se trata de algo simples, importante que a instituio

    oferea ao educador espao de apoio ao qual ele possa recorrer quando precisar

    de ajuda para tomar decises, encaminhar casos e refletir sobre situaes que

    tenha vivido. claro que, no calor da situao, muitas vezes o educador que,

    sozinho, ter que decidir como fazer, mas fundamental saber a quem recorrer

    em sua instituio to logo tenha oportunidade.

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    Ter cuidado com o tom e a mensagem. preciso muito cuidado com o tom da conversa com os en-volvidos na situao-limite. claro que eles precisam perceber o que fizeram de errado e as consequn-

    cias de seus atos, mas h muitas maneiras de se fazer isso, que geram efeitos diversos. Dependendo da

    forma como o educador se porta, como fala e o que fala, o jovem poder se sentir excludo (chegando

    at a abandonar o projeto), poder achar que a conversa do educador no faz sentido ( apenas mais

    um sermo entre os tantos que ouve em casa), poder ignorar a situao, ou ento escutar o educa-

    dor, pensar no que aconteceu e se abrir para que a situao seja resolvida da melhor maneira. Dessas

    possibilidades, obviamente a ltima a mais desejada e, para isso, preciso que o educador e a equipe

    adotem um tom acolhedor, para desarmar o jovem, acess-lo e ter chance de trabalhar aquela situao

    com ele. Mas ateno: acolher no significa passar a mo na cabea e dizer que est tudo bem. Significa

    reforar o quanto o jovem importante para o projeto, o quanto as pessoas ali gostam dele e contam

    com ele, o quanto ele respeitado pelo educador e pelo grupo, e fazer perguntas para entender porque

    ele agiu de tal maneira, o que est acontecendo.

    Expor, estigmatizar, ironizar, culpar o jovem na frente dos outros so estratgias que no funcionam e s

    o afastam do projeto e de qualquer possibilidade de dilogo e de transformao. Isso vale para diversas

    situaes: quando h uma briga, chamar os envolvidos para conversar em outra sala; se a polcia entra

    no projeto para revistar ou prender algum, levar todos para um espao reservado, para preservar os

    envolvidos; se algum no grupo furta algo de um colega e o educador sabe quem foi, conversar indivi-

    dualmente; se um jovem foi vtima de violncia, evitar especulaes sobre o caso e fazer o possvel para

    preservar a vtima.

    Assim no!

    Durante uma atividade, um garoto roubou o celular de um colega. O grupo no viu quem pegou o

    celular, mas o educador logo percebeu quem era. Quando a atividade terminou, ele deixou o garoto ir

    embora e, ento, pediu a outro participante que fosse casa do ladro buscar o celular de volta. Ou seja,

    o educador exps o garoto perante o grupo e ainda colocou em risco a segurana do colega que deveria

    resgatar o celular! Seria muito mais adequado fazer uma conversa com todos sobre como no legal

    roubar, quais os riscos e as consequncias quando se rouba algum, e oferecer uma chance para quem

    roubou devolver anonimamente o celular por exemplo, definindo um lugar (uma sala, uma caixa) por

    onde todos passariam e quem pegou o celular poderia devolv-lo sem ser identificado. Caso ningum

    devolvesse o celular, ele poderia ento pensar numa punio: cancelar a excurso, suspender as ativida-

    des at o celular reaparecer, etc. E se o educador realmente tivesse certeza sobre quem pegou o celular,

    poderia, depois, conversar a ss com o garoto, mas num tom acolhedor, no acusatrio.

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    Assim no!

    Uma educadora presenciou uma abordagem policial em frente instituio. Os abordados

    eram todos jovens do projeto. Indignada, ela chegou por trs do policial, perguntando: o que

    est acontecendo? Ou seja, ela colocou em risco a sua segurana e a dos rapazes, pois chegou

    de surpresa, questionando um policial que estava tenso e armado. E pior: questionou sua auto-

    ridade, o que gerou problemas de relacionamento entre a polcia e o projeto por alguns anos. O

    mais recomendvel, quando um educador presenciar uma abordagem policial, se apresentar

    aos policiais, dizer que trabalha no projeto, se colocar disposio para ajudar, mas nunca ques-

    tionar a autoridade nem colocar a segurana de ningum em risco. Se achar que a polcia est

    sendo abusiva, pode acompanhar toda a abordagem (geralmente isso j inibe os policiais) e,

    juntamente com a instituio, acionar os mecanismos formais de denncia.

    Avaliar os riscos e a gravidade da situao. Por exemplo, se algum chega armado, se est muito agressivo, est oferecendo riscos segurana do grupo, melhor terminar a atividade, dispensar a tur-

    ma (explicando porque est fazendo isso) e voltar a conversar com a pessoa depois, em outra situao

    em que ela esteja mais calma ou desarmada.

    Se acontecer uma briga, com agresso fsica, durante as atividades, o educador pode tentar apart-la,

    mas deve saber que a chance de se machucar grande. Mas em alguns casos, se a conteno fsica for a

    nica sada, o educador pode apartar e, se tiver chance, aconselhvel chamar algum colega.

    Assim no!

    Uma garota chegou bbada ao projeto algumas vezes. O educador, irritado, resolveu

    conversar com ela: se para aparecer assim, melhor que voc no venha, volte quan-

    do estiver melhor. E ela nunca mais voltou.

    O mais recomendado teria sido acolh-la e conversar com ela em outro tom.

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    Entender o que est por trs daquela situao. Muitos acontecimentos so, na verdade, a ponta do iceberg, e o educador precisa ter sensibilidade para perceber o que pode estar por trs de determi-

    nada situao. Ter vnculo com os jovens facilita essa leitura, pois o educador pode se aproximar, fazer

    algumas perguntas para tentar entender melhor o que se passa. Por exemplo, se algum chega ao pro-

    jeto sob efeito de lcool ou drogas, o que pode estar acontecendo? Trata-se de um caso de vcio, um

    acontecimento isolado ou recorrente, ou pode ser um pedido de socorro? Nessas situaes, desejvel

    que o educador no impea que o jovem fique naquele espao e at participe da atividade (a no ser

    que ele possa se machucar), ou o convide para assistir o grupo. Terminada a atividade, podem conversar

    a ss sobre o que est acontecendo, se o jovem quer ajuda, se precisa de algum apoio para voltar para

    casa (nesse caso, o educador pode pedir o contato de algum amigo ou mesmo familiar).

    Outra situao, por exemplo, aquela em que o jovem chega desesperado e conta que est devendo

    dinheiro para o trfico. Sua necessidade no curto prazo conseguir o dinheiro, mas ser que ele no

    precisa tambm de proteo, j que pode estar sendo ameaado? Nesses casos, recomendvel no

    dar o dinheiro, mas pensar juntamente com o jovem, a equipe tcnica do projeto e sua famlia como

    sair daquela situao: se h meios de conseguir o dinheiro, ou como conseguir alguma proteo (ser

    abrigado, por exemplo).

    Assim no!

    O funcionrio de um projeto ficou sabendo que, no espao da instituio, uma garota de

    12 anos estava tendo relaes sexuais com vrios garotos ao mesmo tempo. Decidiu cha-

    mar a polcia para que tirassem a garota e os meninos daquele espao, pois aquilo poderia

    comprometer a imagem do projeto. Ou seja, ele empurrou o problema para outro lugar,

    sem procurar entender quem era aquela menina e porque estava acontecendo uma situa-

    o grave como aquela. O ideal teria sido procurar algum tcnico do projeto que pudesse

    ir conversar com a garota, saber de onde era, conhecer um pouco seu histrico; quem

    eram os meninos, qual a relao deles com ela, e acionar a famlia, no a polcia.

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    Preservar a imagem e a intimidade dos envolvidos. Quando uma situao de violncia acontece, dentro ou fora do projeto, crucial no expor os envolvidos, sejam eles autores ou vtimas. O educador

    (e outros profissionais da instituio), ao expor o garoto que roubou um bon, o jovem que estapeou o

    colega, aquele que chegou chapado, s estar contribuindo para estigmatiz-lo e consolidar uma ima-

    gem de mau elemento, que para o garoto at pode ser interessante alimentar (pois uma forma de se

    destacar no grupo), mas que nada tem a ver com o propsito do projeto. Esse cuidado deve ir alm da

    sala de aula, devendo estar presente em todo o espao da instituio. Por exemplo, se algum se envol-

    ve em uma situao realmente grave e a polcia chamada, o melhor a fazer levar todos os envolvidos

    (policiais inclusive) para uma sala reservada, onde a situao possa ser resolvida, mas longe dos olhares

    e especulaes das outras pessoas.

    Tambm as vtimas no devem ser expostas. Em casos menos graves (uma briga entre colegas durante

    a atividade, por exemplo), se o educador sentir que h clima no grupo, ele pode promover uma conver-

    sa com todos do grupo, ou ento levar os envolvidos para outro espao, onde podero conversar com

    tranquilidade. Em casos muito graves, a preservao das vtimas ainda mais importante. Por exemplo,

    um adolescente que frequentava um projeto foi vtima de violncia sexual (fora do projeto) e sofreu

    tantas agresses que precisou ser hospitalizado. Todos no bairro ficaram sabendo e no projeto todos

    comentavam o que havia acontecido e especulavam as razes. Os educadores foram instrudos a no

    negar que o problema ocorreu, dizer que as providncias necessrias j haviam sido tomadas e mudar

    de assunto, para no alimentar mais fofocas. Nesse caso, a coordenao optou por discutir o caso em

    uma reunio de pais. E quando a vtima volta ao projeto, preciso que os educadores trabalhem esse

    retorno com o grupo, conversando antes com todos os participantes sobre como devem se comportar

    com a vtima.

    Assim no!

    Um educador contou a seus supervisores que estava muito preocupado com um garoto que

    devia dinheiro para o trfico. Ele queria emprestar dinheiro ao garoto e foi proibido de fazer

    isso. A instituio disse que nesses casos no poderia fazer nada. E todos ficaram aliviados

    quando, por sorte, o garoto conseguiu fazer um bico e arranjar o dinheiro. Ou seja, a insti-

    tuio fez certo ao reconhecer os limites do educador, mas poderia ter pensado em outras

    solues: chamar o garoto para uma conversa (se possvel juntamente com seus familiares),

    incluir a assistente social, pensar em como o garoto poderia conseguir o dinheiro ou ento

    como poderia ser protegido das ameaas do trfico.

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    Discutir o caso com a coordenao e outros profissionais para decidirem sobre o encami-nhamento. No papel do educador resolver todos os problemas que aparecem. Em alguns casos, outras pessoas precisam ser acionadas: os familiares do jovem, outros profissionais da instituio e at

    mesmo os gestores. Isso porque o educador tem um tempo, um preparo e um conhecimento limita-

    dos, e precisa garantir, antes de tudo, a qualidade de seu trabalho. Outros profissionais podem ter mais

    condies de avaliar a situao, discutir a soluo mais adequada, pensar em como envolver a famlia e

    acompanhar o encaminhamento do caso rede.

    5. Recomendaes s instituies e seus gestores

    O presente guia foi elaborado para oferecer apoio e orientao aos educadores que atuam em contextos violentos. Ao longo do processo de elaborao do material, no entanto, ficou cla-ro que preparar melhor os educadores s uma parte de um trabalho que precisa ser mais amplo para dar conta de todos os desafios quando se realiza esse tipo de interveno. O educador

    sem dvida uma pea central no projeto, pois quem lida com os adolescentes e jovens, conduz as

    atividades e impulsiona os processos de empoderamento e transformao do grupo. Mas ele no pode

    e nem deve estar sozinho nessa empreitada que, como sabemos, apresenta desafios enormes. Por isso,

    elencamos aqui recomendaes s instituies e seus gestores, que certamente fortalecero a atuao

    dos educadores na ponta e tambm contribuiro para a melhoria da instituio em geral.

    Assim no!

    Dois garotos brigaram em um projeto. O educador, muito preocupado com a situao,

    conversou com eles e decidiu que o melhor a fazer seria internar um dos meninos na cl-

    nica de um pastor que ele conhecia, pois ele estava precisando de orientaes espiritu-

    ais. Ou seja, ele tomou uma deciso baseada em seus valores e no em critrios tcnicos,

    excluindo o jovem e seus familiares dessa deciso. O melhor a fazer seria contatar a assis-

    tente social do projeto e pedir para que ela conversasse com o garoto e seus familiares,

    para entender a situao e qual seria o melhor encaminhamento.

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    5.1 Investir em educadores qualificados

    O trabalho realizado pelos educadores difcil e desafiador em muitos momentos e demanda prepara-

    o para lidar com diversas situaes. Esse preparo depende no apenas de caractersticas pessoais e da

    experincia de cada um, mas tambm de recursos oferecidos pela instituio para qualificar o trabalho

    de sua equipe. A seguir, apontamos alguns aspectos que a instituio deve considerar.

    Composio da equipe: da mesma forma que no adianta contratar bons profissionais se a instituio

    no investe continuamente em sua formao, tambm no produtivo investir continuamente (e ex-

    cessivamente) na formao de profissionais pouco preparados. Por isso, a preocupao com a qualida-

    de dos educadores deve estar presente desde o momento da composio da equipe. preciso atentar

    para o histrico e a experincia profissional, assim como para algumas caractersticas que podem aju-

    dar o educador no dia-a-dia: ter flexibilidade, saber trabalhar em grupo, saber pedir ajuda, no ter pre-

    conceitos e ter disposio e condies de estabelecer vnculos com adolescentes e jovens. A institui-

    o tambm pode levantar quais outros aspectos gostaria de ver em seus educadores a partir de seus

    princpios e objetivos de atuao. Alis, quanto mais claras e organizadas estiverem essas caractersti-

    cas para a instituio, mais fcil fica o processo de contratao, formao e avaliao dos profissionais.

    Em muitas instituies, percebemos o dilema, na hora de contratar, em optar por pessoas que

    moram naquela comunidade (ou em realidades similares) ou por pessoas com outras origens so-

    ciais. ainda muito forte a crena de que educadores que vivem nas comunidades tem mais faci-

    lidade para entender as dinmicas locais, se aproximar dos jovens e lidar com situaes-limite.

    Mas isso precisa ser relativizado: por um lado, estes profissionais podem acabar reproduzindo va-

    lores e vises daquela comunidade e trabalhando com eles como se fossem inexorveis; por

    outro, profissionais que vm de outros lugares podem ter mais capacidade para propor outros

    olhares e novas formas de atuar. Portanto, mais importante conseguir combinar estes perfis,

    contratando pessoas que tem habilidade para lidar com as situaes e realizar um trabalho peda-

    ggico transformador, do que usar a origem dos educadores como nico critrio de contratao.

    Mais do que recomendada, a atuao em dupla uma necessidade, pois qualifica o trabalho na medi-

    da em que oferece olhares diferentes sobre a mesma situao, compreenses diversas sobre os fatos

    e apoio mtuo entre os educadores. A composio da dupla pode representar um salto qualitativo se

    puder ser mista, formada por educadores de ambos os sexos. Esse arranjo facilita a insero na comu-

    nidade e o contato com os jovens, que podem escolher, dependendo do assunto, com quem querem

    falar. Institucionalmente, a atuao em dupla garante a continuidade do trabalho e uma figura de

    referncia para o jovem no caso de uma das pessoas deixar a organizao.

    Capacitao da equipe: ela essencial e pode se dar de diversas maneiras, constantemen-

    te, devendo ser planejada pela instituio para ocorrer tanto interna como externamen-

  • JUVENTUDE PROJETO

    EPREVENODAVIOLNCIA

    36

    te. Educadores ouvidos para elaborao deste material apontaram a importncia de um

    processo formativo organizado, planejado, que acontece sempre que novos profissionais

    chegam instituio por meio da leitura de materiais produzidos e conversas com a coor-

    denao, por exemplo e, periodicamente, como um momento de reflexo aprofundada, con-

    tando com a participao de especialistas. Tambm mencionaram que as reunies de equi-

    pe e os momentos de troca entre educadores constituem boas oportunidades de formao.