Heisenberg e a Doutrina Das Cores de Goethe e Newton

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    Heisenberg e a doutrina das coresde Goethe e Newton

    Al exandr e de Oliveira Ferreira

    Este artigo destina-se a introduzir a conferncia de Heisenberg A doutrina goethiana

    e newtoniana das cores luz da fsica moderna, proferida em 1941, cuja traduo aqui publicada. Analisa-se primeiramente o projeto filosfico de uma ordenao darealidade, desenvolvido pelo fsico no incio da dcada de 1940, o qual subjaz discus-so sobre as doutrinas das cores em Goethe e Newton. No segundo momento, faz-seuma exposio de algumas das implicaes filosficas da teoria quntica, com nfasena interpretao da assim denominada escola de Copenhague. Por fim, procura-semostrar como a querela entre Goethe e Newton utilizada para defender as abstraesda fsica terica dos ataques da assim denominada fsica ariana e, ao mesmo tempo,preservar o valor das consideraes intuitivas de Goethe.

    * * *

    O oposto de uma suposio correta uma suposio

    falsa. Mas o oposto de uma verdade profunda pode

    tambm ser uma verdade profunda(Niels Bohr apudHeisenberg, 2005a, p. 124).

    Introduo

    A conferncia, cuja traduo aqui publicada, faz parte de uma reunio de palestrasproferidas por Heisenberg entre 1933 e 1958, intitulada Mudanas nos fundamentosdas cincias da natureza(cf. Heisenberg, 2005b). Essa coletnea insere-se em um con-

    junto mais amplo de textos e comunicaes que o fsico produziu durante toda sua vidae que tm como objetivo a reduo daquilo que denomina de abismo entre duas cultu-ras, entre a cultura tcnico-cientfica e a cultura das cincias humanas e da arte(Heisenberg, 2005a, p. 7).

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    documentoscientficos

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    Assim, devemos cuidar para no interpretar A doutrina goethiana e newtonianadas cores luz da fsica moderna como uma tentativa de informar o leitor leigo dasdescobertas da fsica quntica a fim de que a nova fsica pudesse iluminar e esclareceras doutrinas das cores de Goethe e Newton mediante uma explicao mais verdadei-ra. A discusso entre o fsico ingls e o poeta, vrias vezes retomada por Heisenberg,remete antes a um projeto filosfico desenvolvido pelo fsico alemo no incio da d-cada de 1940 cujo objetivo identificar uma ordem e uma unidade entre os diversosmodos do saber humano. Segundo esse projeto, cincia e arte no podem ser reduzidasuma outra ou explicadas uma pela outra, mas devem antes ser pensadas como dom-nios ou modos diferentes de ordenao da realidade, cuja relao deve ser redefinidacom o advento da teoria quntica.

    Com efeito, o desenvolvimento da fsica quntica, no incio do sculo xx, faz comque a batalha entre Goethe e Newton j no possa ser decidida dentro do referencialterico da fsica clssica que ope o discurso objetivo e exato da cincia linguagemsubjetiva e alegrica do poeta. Segundo a interpretao da escola de Copenhague,1

    com a teoria quntica no apenas descartada a possibilidade de se descrever uma re-alidade independente do observador, como o prprio alcance dos conceitos clssicostorna-se problemtico. Nas palavras de Niels Bohr, conceitos clssicos como part-cula e onda, quando aplicados a fenmenos qunticos, so meras metforas que

    visam expressar, maneira dos poetas, um estado de coisas que foge nossa intuio

    (cf. Heisenberg, 2005a, p. 54).Em um segundo momento, a disputa entre Goethe e Newton utilizada para dis-cutir o prprio valor das cincias naturais que, de modo sempre crescente, substituemnossa experincia viva e intuitiva do mundo por uma natureza tecnicamente produzi-da, explicada mediante abstraes que no podem ser diretamente traduzidas em con-ceitos intuitivos. Essa defesa da fsica terica se deve, em grande parte, necessidadede responder s objees da assim denominada fsica alem (deutsche Physik), ou fsicaariana (arische Physik). Iniciado na primeira metade da dcada de 1920, esse movi-mento ganhou proeminncia com a ascenso do nazismo, sustentando que as cincias

    so determinadas por elementos culturais e raciais. Os autodenominados fisicos aria-nos, dentre eles os ganhadores do prmio Nobel, Philipp Lenard e Johannes Stark,rotulam a fsica quntica e a teoria da relatividade como fsicas judaicas, calcadas em

    1A assim denominada escola de Copenhague representa uma determinada interpretao da teoria quntica quecomea a se consolidar a partir da segunda metade dos anos vinte, sustentada por fsicos e pesquisadores ligados aBohr, dentre eles Heisenberg e Pauli. Portanto, as concluses da escola de Copenhague no so uma unanimidadeentre os fsicos, existindo outras interpretaes divergentes. Entretanto, para os nossos propsitos, iremos nosconcentrar apenas nela. Cf., para uma considerao mais detida do desenvolvimento da teoria quntica, Bezerra,2003, 2004).

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    meras abstraes e especulaes que no possuem respaldo na experincia. Emcontraposio aos defensores da deutsche Physik, para os quais Goethe era consideradoum modelo a ser seguido, Heisenberg cria um pano de fundo filosfico que permiteordenar em um todo coerente a objetividade da fsica clssica, as abstraes da teoriaquntica e as intuies poticas de Goethe.

    1 Goethe e a ordenao da realidade

    A busca por uma unidade do saber humano um tema recorrente entre os cientistascom os quais Heisenberg dialoga. Planck, Einstein, Bohr, dentre outros grandes nomes

    da fsica do sculo xx, escreveram textos sobre a relao entre a fsica e as outras reasdo conhecimento e sobre as implicaes epistemolgicas das descobertas cientficas.Como observa Helmut Rechenberg, Heisenberg considera como um dos aspectos maisimportantes da obra de Bohr, ao lado dos seus estudos sobre fsica, o esforo na cria-o de um meio espiritual no interior do qual as diversas linhas da moderna cincia danatureza se unificassem e pudessem ser postas em relao com o fundo filosfico co-mum a todas as cincias (Heisenberg apudBlum; Drr & Rechenberg, 1986, p. 41).

    Destarte, poca da preleo sobre a doutrina das cores de Goethe e Newton,Heisenberg trabalhava em um projeto filosfico que buscava pensar a unidade entre as

    cincias da natureza e as cincias do esprito a partir da ideia de que os diversos modosdo saber humano constituem determinados domnios (Bereiche) da realidade. Isso re-sultou na elaborao de um manuscrito concludo em 1942 e publicado postumamentesob o ttulo Ordenao da realidade. Heisenberg toma como modelo para tal orde-nao uma passagem de um suplemento Doutrina das coresde Goethe, na qual o poetadiz:

    Todos os efeitos, de quaisquer tipos que sejam, que observamos na experinciaesto conectados da maneira mais constante possvel, convertem-se uns nos ou-

    tros, ondulam do primeiro at o ltimo. inevitvel que se os separem uns dosoutros, que se os oponham e que se os misturem; todavia precisou surgir comisso uma contenda sem limites nas cincias. Uma pedanteria que cinde de ma-neira inflexvel e um misticismo fluidificante produzem ambos as mesmas des-graas. Mas aquelas atividades, da mais comum at a mais elevada, da telha quecai do telhado at o olhar luminoso do esprito que irrompe em ti ou que tu me-deias, se encontram justapostas. Ns tentamos expor esse fato: casual; mec-nico; fsico; qumico; orgnico; psquico; tico; religioso; genial (Goethe apudHeisenberg, 2009, p. 27-8).

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    Essa passagem, citada por Heisenberg em vrias ocasies, denota o respeito quepossua no apenas pela poesia de Goethe, como tambm por seus estudos sobre a na-tureza. Admirador do poeta desde a juventude, a ponto de saber de cor vrios dos seusescritos, o fsico acredita que todo grande cientista da natureza possua uma afinidadecom a poesia. Entretanto, para compreendermos como possvel que Heisenberg possainspirar-se em um modelo de ordenao proposto por um dos maiores inimigos dafsica newtoniana, faz-se necessria uma breve anlise da interpretao que ele faz dessadiviso da realidade sugerida por Goethe.

    Segundo Heisenberg, no se trata aqui de uma diviso entre as coisas que exis-tem na natureza, como se a pedra estivesse no nvel mais baixo e o esprito humano nomais elevado. Quando Goethe se refere a cada uma dessas regies como atividades

    (Ttigkeiten), ele estaria antes indicando que o que determina um domnio e o separados outros so as leis ou normas (Gesetze) que possibilitam o estabelecimento de de-terminados nexos (Zusammenhngen)na natureza. A ideia de lei tomada em um sen-tido amplo, aproximando-se do nomos grego, indicando que tanto as leis naturaisquanto as normas que nos orientam no mundo so dependentes dos nexos que estabe-lecemos entre as coisas. Desse modo, Heisenberg define a realidade como uma tessitura(Gewebe) composta por nexos nomolgicos (gesetzmssige Zusammenhnge). Cada uni-dade nomolgica um domnio da realidade, tomada como uma totalidade (Gesamtheit)dotada de sentido. Com isso, a tarefa filosfica proposta pelo fsico seria a de:

    Compreender e determinar em sua relao recproca os diversos nexos ou do-mnios da realidade; coloc-los em ligao com a diviso em um mundo obje-tivo e um subjetivo; delimit-los reciprocamente e perceber como eles socondicionados uns pelos outros; por fim, avanar at uma compreenso da reali-dade como parte de um nico mundo ordenado e dotado de sentido (Heisenberg,2009, p. 9).

    O uso de aspas na citao acima se deve ao fato de o conceito de realidade aqui

    proposto no admitir uma diviso estanque entre um mundo objetivo e um mundo sub-jetivo. A ideia de uma objetividade totalmente independente do nosso modo de pensare agir est totalmente descartada da definio de realidade defendida por Heisenberg.Para aqueles que sustentam que h uma realidade em si, o fsico nos diz que a ex-presso h provm da linguagem humana e, com isso, no pode significar bem algoque no estaria de maneira alguma ligado nossa capacidade cognitiva. Para ns s h

    justamente o mundo no qual a expresso h tem sentido (Heisenberg, 2009, p. 34).Assim, os nexos de sentido das diferentes camadas (Schichten) da realidade de-

    vem ser sempre expressos pela linguagem, essa ltima tomada em sentido bastante

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    amplo, envolvendo tanto a linguagem cotidiana, quanto a poesia e a matemtica.Heisenberg relaciona o grau de objetividade de um domnio da realidade a dois modosdistintos, porm inseparveis, de expresso, a saber, o esttico e o dinmico.

    No modo esttico a linguagem usada do ponto de vista da exatido. Isso exigeuma acuidade e especializao no uso dos conceitos, a fim de que eles possam repro-duzir com preciso um determinado estado de coisas. Esse rigor conceitual supe umrgido formalismo no encadeamento dos conceitos, de modo que cada sentena possaser inequivocamente caracterizada como verdadeira ou falsa. O modo esttico preva-lece, por exemplo, na linguagem do direito, da cincia e da matemtica. Entretanto, argida especializao e a acuidade no uso dos conceitos trazem consigo uma limitao eempobrecimento da linguagem, a qual s pode ser usada em relao a um domnio es-

    pecfico da realidade, renunciando a uma multiplicidade de possibilidades e relaes.No modo dinmico, o que est em jogo no a exatido, mas a criatividade.A linguagem dinmica prolfera e flexvel, ela no procura esclarecer (erklren) umestado de coisas com preciso, mas antes indicar (deuten) uma gama de possveis rela-es. Nela as frases no so corretas (richtig) ou falsas (falsch), mas verdadeiras (wahr).O contrrio de uma proposio correta uma proposio falsa. O contrrio de umaproposio verdadeira, porm, ser com frequncia tambm uma proposio verda-deira (Heisenberg, 2009, p. 15). Exemplos do uso dinmico da linguagem so a reli-gio, o mito e a poesia.

    Como foi dito, todo modo de expresso da realidade ao mesmo tempo esttico edinmico. Um pensamento unicamente esttico cairia em um formalismo estril e o ex-cesso de dinamismo levaria a relaes vagas e ininteligveis. Aqui se faz ver o apreo queHeisenberg tem pela poesia como modo de expresso no qual esses dois extremos seencontram, pois ela une a palavra viva e dinmica a um formalismo, em um certo sentidomatemtico, expresso no ritmo e na mtrica. Mais ainda, para Heisenberg a passagemde um domnio j conhecido para um novo no pode ocorrer mediante mero uso lgicoda linguagem (aqui v-se claramente uma crtica ao positivismo lgico), mas apenas me-diante um pensamento criativo que possa saltar (berspringen) o abismo entre eles.

    O surgimento de um novo domnio da realidade, inaugurado pela mecnica qun-tica, exige uma reordenao do mundo, pois sempre que um novo conhecimento fun-damental aparece conscincia dos homens, em uma determinada situao da vidaespiritual, a questo sobre aquilo que afinal propriamente a realidade precisa sernovamente colocada prova e respondida (Heisenberg, 2009, p. 3).

    A seguir, mostraremos alguns aspectos da teoria quntica que rompem com aobjetividade inaugurada pela fsica clssica, exigindo um novo modo de ordenao darealidade. Concentraremo-nos em uma determinada interpretao da fsica quntica qual Heisenberg se vincula, a saber, a assim denominada escola de Copenhague.

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    2 O significado da palavra entender na fsica moderna

    Um bom comeo para compreendermos as implicaes filosficas da teoria quntica nos remetermos a uma questo de cunho epistemolgico, que preocupava Heisenbergdesde os seus primeiros anos como estudante de fsica, concernente ao significado dapalavra entender (Verstehen) nas cincias da natureza. A esse respeito, ele nos lem-bra de uma conversa ocorrida no ano de 1921 (cf. Heisenberg, 2005a, p. 39-56), du-rante um passeio de bicicleta com seu ento colega do quarto semestre do curso defsica na Universidade de Munique e futuro ganhador do prmio Nobel em 1945,

    Wolfgang Pauli. Ambos eram alunos de Arnold Sommerfeld,2em cujos seminrios eramestudados o modelo atmico do fsico dinamarqus Niels Bohr e a teoria da relativida-

    de especial de Albert Einstein. Tambm tomou parte nesse passeio o jovem estudanteOtto Laporte, cujo pragmatismo sbrio e sensato, segundo Heisenberg, servia de con-traponto ndole filosfica dos outros dois interlocutores.

    A importncia dessa conversa, ocorrida quando o fsico tinha apenas vinte anosde idade, assinalada por Heisenberg em vrias de suas comunicaes direcionadas aopblico no especializado. O fsico relembra esse dilogo at mesmo em conversasposteriores com Pauli (cf. Heisenberg, 2005a, p. 241-55), quando ambos j possuamgrande renome como ganhadores do prmio Nobel.

    No dilogo em questo, Heisenberg confessa a seus colegas que as discusses

    sobre a teoria da relatividade, ocorridas durante os seminrios de Sommerfeld, le-varam-no a questionar o significado da palavra entender nas cincias da natureza.Isso porque no conseguia conceber intuitivamente a nova concepo de tempointroduzida por Einstein, embora compreendesse o arcabouo matemtico de sua teo-ria. E acrescenta:

    Mas me sinto de certa forma enganado pela lgica com a qual esse arcabouomatemtico trabalha. Ou voc tambm pode dizer que eu compreendi a teoriacom a cabea, mas no com o corao. Eu acredito compreender o que significa

    tempo, mesmo sem ter estudado fsica, e nosso pensar e agir pressupem sem-pre esse conceito ingnuo de tempo. Talvez se possa tambm formular isso as-sim: nosso pensamento se apoia no fato de que esse conceito de tempo funciona,de que obtemos xito com ele. Mas se agora afirmamos que esse conceito de tem-po deve ser modificado, ento j no sabemos se nossa linguagem e nosso pensa-

    2Arnold Johannes Wilhelm Sommerfeld (1868-1951), indicado vrias vezes ao prmio Nobel de fsica, sem nuncater ganho, foi professor e orientador de Heisenberg e Pauli. Contribuiu no aperfeioamento do modelo atmico deBohr e foi fundamental no desenvolvimento da teoria quntica.

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    mento so ferramentas teis para nos orientarmos. Com isso no pretendo mereportar a Kant, que caracteriza o espao e o tempo como formas a priorida intui-o e com isso deseja conceder um ttulo absoluto a essas formas fundamentais,

    assim como elas parecem valer na fsica anterior. Apenas quero frisar que, quan-do alteramos esses conceitos fundamentais, nossa linguagem e pensamento tor-nam-se incertos, e incerteza no se coaduna com entendimento (Heisenberg,2005a, p. 41-2).

    A dvida de Heisenberg diz respeito a um dos problemas fundamentais no pro-cesso de constituio da fsica moderna,3a saber: at que ponto nossa linguagem, for-mada por conceitos que, em certa medida, apoiam-se em nossa experincia intuitiva

    da natureza, pode servir a uma cincia cujos objetos escapam nossa intuio ime-diata das coisas. bem verdade, como reconhece Heisenberg, que na passagem da fsica antiga

    para a fsica clssica houve tambm a necessidade de se introduzir novos conceitos, decarter matemtico e abstrato, que subvertiam noes da fsica aristotlica e ptolomaica,mais prximas nossa intuio imediata da natureza. Nesse sentido, Coprnico eGalileu teriam provocado uma revoluo no mundo antigo muito mais profunda que ada fsica moderna no mundo clssico. Os fundadores da fsica clssica teriam introdu-zido noes totalmente alheias s concepes antigas da natureza, ao passo que a fsica

    moderna fora desenvolvida na tentativa de realizar de modo coerente o programa dafsica clssica (cf. Heisenberg, 2005b, p. 33). Embora rompendo com a teoria clssica,a fsica moderna expressaria uma tendncia (crescente nas cincias da natureza desde,pelo menos, a revoluo cientfica do sculo xvii) de se distanciar de uma apreensointuitiva do mundo em direo a um domnio cada vez mais abstrato do saber e a umaexperincia da natureza forjada mediante meios tcnicos sempre mais sofisticados.

    Entretanto, como observa Michel Paty, apesar de os conceitos da fsica clssicaserem entidades abstratas e matematizadas, eles possuam a faculdade de ser, em se-guida, rapidamente investidos com todas as aparncias do natural, em uma fsica

    adaptada experincia familiar do mundo sensvel (Paty, 1995, p. 139). Assim, a fsi-ca clssica trata do deslocamento dos corpos no espao e de suas modificaes no tem-po, segundo leis causais regulares e constantes. Sua objetividade conduzida pela cer-teza de um mundo objetivo e mecnico, no qual espao e tempo, entidades consideradasinalterveis e independentes entre si, configuram o esquema universal de todo acon-

    3 importante ter claro que a expresso fsica moderna indica a fsica que surge no sculo xx, em contraposio fsica clssica que tem incio na idade moderna. Em termos histricos, podemos dizer que a fsica clssica serefere idade moderna e a fsica moderna nossa contemporaneidade.

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    tecimento possvel e apresentam uma realidade independente de qualquer observadore comum a todos os homens (cf. Heisenberg, 2005b, p. 32). No por acaso que Kantfaz do espao e do tempo as formas puras da intuio sensvel, as quais, unidas s cate-gorias do entendimento (dentre elas a causalidade), constituem a condio de possi-bilidade de todo objeto da experincia. Embora, para Kant, essas condiesa priorisejam dadas no sujeito, sua validade objetiva e seu alcance universal, traando os li-mites de todo conhecimento terico humano dentro dos quais foram elaborados osconceitos da fsica clssica. justamente o carter absoluto dessas formas e categoriase, consequentemente, da prpria objetividade do mundo, que comea a ser abaladopela teoria da relatividade e, de modo mais radical, pela mecnica quntica.

    Por exemplo, as teorias da relatividade especial e geral destroem a concepo do

    senso comum de que tempo e espao so entidades independentes e inalterveis. Ditode modo sumrio, a teoria da relatividade especial demonstra, dentre outras coisas,que tempo e espao variam relativamente ao lugar e velocidade do observador. A teo-ria da relatividade geral mostra como a gravidade e, consequentemente, a matria e aenergia atuam no espao-tempo e o deformam. Espao e tempo j no so formas in-dependentes e imutveis nas quais os eventos ocorrem, mas variam em funo do mo-

    vimento e da matria.Porm, apesar de subverter nossas experincias cotidianas do espao e do tem-

    po, a teoria da relatividade parece ainda poder ser intuda mediante experimentos fa-

    cilmente imaginveis(cf. Paty, 1995, p. 140). Talvez tenha sido essa possibilidade detraduo das noes introduzidas pela teoria da relatividade para nossa intuio quelevou o pragmtico Otto Lapport, no dilogo em questo, a tomar por infundadas asdvidas de Heisenberg com respeito ao uso da nossa linguagem na descrio de fen-menos fsicos que parecem subverter nossa intuio do tempo e do espao. Bastariarestringir a linguagem quilo que imediatamente dado observao sensvel, mesmoque essa observao seja feita atravs de aparatos tcnicos complexos, para que saiba-mos exatamente a qual objeto cada conceito se refere. Laporte acreditava que a teoriada relatividade especial teria como ponto de partida o conceito banal de tempo, a sa-

    ber, o tempo que observamos no relgio. Para ele, Einstein teria se inspirado no mto-do positivista do fsico e filsofo Ernst Mach,4segundo o qual os conceitos da fsicadevem obedecer a uma economia do pensamento. Ou seja, entender no significarianada alm do que capturar uma multiplicidade de fenmenos dados na observao sen-svel em um nmero reduzido e simplificado de conceitos e formulaes matemticas

    4A obra de Mach a qual Laporte se refere e na qual exposto o principio de economia do pensamento Die Mechanikin ihrer Entwicklung historischkritisch Dargestellt (A mecnica em seu desenvolvimento exposta de modo histrico-crtico),publicada em 1883 (cf. Paty, 1995, p. 45). Posteriormente, em suas Notas autobiogrficas, publicadas em 1949,Einstein afirma ter sofrido grande influncia dessa obra (cf. Einstein, 1982, p. 29).

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    para, desse modo, poder prever uma srie de acontecimentos. Nesse sentido, a dife-rena entre a astronomia de Ptolomeu e a de Newton seria apenas relativa ao grau deprevisibilidade do movimento dos corpos celestes. A mecnica newtoniana estaria ba-seada em conceitos cuja representao matemtica seria mais simples e precisa na pre-

    viso dos fenmenos do que os ciclos e epiciclos do sistema ptolomaico.Esse positivismo ingnuo, que Laporte acreditava estar na base da teoria da rela-

    tividade especial, foi desmentido pelo prprio Einstein em uma conversa comHeisenberg no ano de 1926, aps um colquio sobre fsica moderna na Universidadede Berlin. Na ocasio, o pai da teoria da relatividade admitia no compreender comoseria possvel que Heisenberg afirmasse a existncia dos eltrons no tomo e, ao mes-mo tempo, negasse a possibilidade de descrever sua trajetria ao redor do ncleo.

    Heisenberg responde dizendo que, como no se pode observar diretamente a trajet-ria de um eltron, apenas frequncias da luz emitida por ele quando perde energia,nada se poderia afirmar sobre a existncia ou no de sua rbita ao redor do ncleo.Com isso, acreditava adotar um mtodo semelhante ao que o prprio Einstein, inspi-rado em Mach, utilizara na elaborao da teoria da relatividade, a saber: uma teoriadeveria ser elaborada apenas a partir de grandezas que pudessem ser empiricamenteobservveis e cujas leis pudessem ser descritas do modo mais econmico possvel.

    Segundo o relato de Heisenberg, Einstein respondera a essas observaes di-zendo existir certa confuso em relao influncia de Mach na elaborao da teoria

    da relatividade. Mais ainda, segundo ele: do ponto de vista do princpio, totalmentefalso querer fundamentar uma teoria apenas sobre grandezas observveis. Apenas ateoria decide sobre o que pode ser observado (Heisenberg, 2005a, p. 80). Einsteinacredita que a simplicidade das leis pelas quais descrevemos a experincia no podeser apenas um modo de calcular e prever determinados eventos, ela tem de ser antes aexpresso real da maneira pela qual a natureza efetivamente se comporta, devendo re-

    velar um nexo na natureza que subjaz multiplicidade das experincias sensveis e queindepende de qualquer observador. Apenas quando possumos uma teoria podemosidentificar vrios fenmenos como conectados entre si e, assim, podemos observ-los

    de fato. Einstein adota certo realismo5segundo o qual as frmulas matemticas e osconceitos pelos quais prevemos os acontecimentos naturais constituem uma parteimportante da natureza: O possvel, o que esperado, um componente importantede nossa realidade que, junto com o factual, no deve simplesmente ser esquecido.(Heisenberg, 2005a, p. 82).Segundo Einstein, Mach teria negligenciado o carter realda simplicidade da natureza e seu conceito de economia do pensamentopossuiria

    5O problema da realidade fsica est no centro dos debates e das divergncias entre Einstein e Niels Bohr. No cabeaqui nos aprofundarmos nessas questes (cf., para uma introduo a esse assunto, Freire Jnior et al., 2009).

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    uma colorao por demais subjetiva: na verdade, a simplicidade das leis da natureza tambm um fato objetivo e trata-se de, em uma construo conceitual correta, colocarem um justo equilbrio os lados subjetivo e objetivo da simplicidade (Einstein apudHeisenberg, 2005a, p. 80).

    No dilogo entre Heisenberg e seus colegas, Wolfgang Pauli j havia notado essalimitao do mtodo de Mach. A dificuldade em perceber a realidade dos conceitos eformulaes da fsica, restringindo-os a uma mera descrio pragmtica de dadosempricos com vistas a prever determinados fenmenos, teria feito que Mach negassea existncia do tomo, justamente porque a realidade atmica foge nossa intuioemprica.

    Segundo Pauli, Newton no teria partido do princpio da economia do pensamen-

    to e achado uma soluo mais simples que a de Ptolomeu para calcular o movimentodos corpos celestes, mas teria antes introduzido um novo modo de questionamento danatureza. Em comparao com a fsica ptolomaica, mais presa descrio empricados fenmenos, a fsica newtoniana perguntara pela causa do movimento dos plane-tas, introduzindo o conceito de fora gravitacional e possibilitando uma apreenso edescrio matemticas da natureza. Seria esse modo novo de questionar, e no o prin-cpio de economia do pensamento, que permitiria remeter o complexo movimento dosplanetas a uma frmula simples e universal, aplicvel aos corpos em geral e no apenasao movimento dos corpos celestes. Entender seria essa remisso da variedade

    multiforme ao geral e ao simplesou, como j diziam os gregos,doMltiplo ao Uno.A habilidade de prever uma consequncia de entender, de possuir conceitos corre-tos, mas no simplesmente idntica ao entender (Heisenberg, 2005a, p. 46).

    Porm Pauli reconhece que a relao entre os conceitos da fsica e a realidade danatureza se torna mais complexa quando investigamos a estrutura do tomo. Como sesabe, o modelo atmico adotado por Niels Bohr buscava resolver algumas inconsistn-cias do assim denominado modelo planetrio, proposto pelo fsico ingls Rutherford.Nesse ltimo, o tomo representado como constitudo de um ncleo em torno doqual os eltrons giram semelhana dos planetas em torno do sol. Entretanto, tal re-

    presentao se mostra problemtica. Torna-se questionvel a prpria existncia de umarbita do eltron em torno do ncleo. Conseguimos observar a trajetria de um el-tron, por exemplo, em uma cmara de nuvens,6mas no podemos observar direta-mente seu comportamento no tomo. O modelo atmico proposto por Rutherford nosremete intuitivamente aos princpios da fsica clssica, os quais so insuficientes paraexplicar a estabilidade do tomo. Segundo as leis clssicas do eletromagnetismo, toda

    6A cmara de nuvens, ou cmara de Wilson (inventada em 1897 pelo fsico ingls Charles Wilson), um dispositivoque permite observar o rastro deixado por partculas subatmicas por meio da ionizao do gs presente no seu interior.

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    carga eltrica, quando acelerada, irradia energia. Assim, o eltron deveria perder ener-gia at se chocar com o ncleo. Porm o que se observa que um tomo pode sofreruma srie de alteraes, pode receber ou perder energia e reagir com outros tomos e,entretanto, conservar sempre as mesmas propriedades. Assim, a principal dvida deHeisenberg e Pauli no incio de seus estudos era a relao entre o modelo atmicode Bohr e a estabilidade do tomo.

    Heisenberg obteve uma primeira resposta s questes acima do prprio Bohrquando, em 1922, foi convidado por Sommerfeld para assistir a uma srie de preleesdo fsico dinamarqus na cidade alem de Gttingen. Durante o encontro, Niels Bohrconvidou o jovem estudante para um passeio na tarde do dia seguinte aps uma dasprelees. Segundo Heisenberg: esse passeio exerceu a mais forte influncia em meu

    desenvolvimento cientfico posterior, ou talvez seja melhor dizer que meu desenvolvi-mento cientfico propriamente dito apenas teve incio com esse passeio (Heisenberg,2005a, p. 51).

    Durante a caminhada, Bohr teria dito que reconhecia as falhas de seu modeloatmico, cuja analogia com um sistema planetrio no deveria ser tomada de modoliteral. Para o fsico dinamarqus, explicar a realidade atmica envolve uma dificulda-de peculiar na histria da cincia. As cincias naturais costumam apoiar-se em con-ceitos e mtodos j disponveis a fim de explicar novos fenmenos, remetendo-os aleis e processos j conhecidos. Entretanto, os conceitos clssicos que se encontram

    disposio dos fsicos so insuficientes para explicar os fenmenos que ocorrem nonvel atmico. Precisamos falar da estrutura do tomo, mas no possumos uma lin-guagem apropriada. Assim, ao ser questionado sobre o significado de seu modelo at-mico, Bohr teria respondido:

    Essas imagens foram, sim, deduzidas ou, se o senhor preferir, elas foram adi-vinhadas a partir de experincias e no conquistadas mediante meros clculostericos. Espero que essas imagens descrevam to bem a estrutura do tomo e,precisamente, apenas to bem quanto seja possvel descrev-la na linguagem in-

    tuitiva da fsica clssica. Ns devemos ter claro que aqui a linguagem s pode serutilizada de modo semelhante poesia, na qual no se trata de representar preci-samente um estado de coisas, mas antes de criar imagens e gerar associaes in-telectuais na conscincia do ouvinte (Heisenberg, 2005a, p. 54).

    A relao entre a nossa linguagem e a objetividade da natureza constitui um dosproblemas fundamentais da assim denominada Escola de Copenhague. SegundoBohr: o significado da cincia fsica para a filosofia no reside meramente no cons-tante aumento em nossa experincia da matria inanimada, mas, sobretudo, na opor-

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    tunidade de testar os fundamentos e o alcance de alguns de nossos conceitos mais ele-mentares(Bohr, 1963, p.17).

    Antes de comentarmos alguns dos problemas filosficos e epistemolgicos dis-cutidos pela Escola de Copenhague, faz-se necessrio traar um breve histrico da re-lao entre a mecnica quntica e a teoria atmica.

    2.1 O quantum de ao de Planck e a fsica atmica

    Como se sabe, a mecnica quntica tem suas origens na virada do sculo xx, a partir dosestudos do fsico alemo Max Planck sobre termodinmica, mais precisamente sobre a

    radiao emitida por um corpo negro.

    7

    poca, um dos grandes problemas da ter-modinmica dizia respeito transmisso da radiao trmica. As teorias dominantes,segundo as quais um corpo poderia emitir ou absorver energia de modo contnuo eindefinidamente, mostravam-se insuficientes para descrever alguns experimentosempricos, sendo muitas vezes refutadas pelos fatos. No cabe aqui nos aprofundarmosnas teorias e experimentos que antecederam a descoberta de Planck. Para os nossosobjetivos, basta indicar certos aspectos dessa descoberta que nos ajudaro a compre-ender algumas das rupturas produzidas pela mecnica quntica no pensamento clssico.

    Dito de modo sumrio, em 1901 Planck props que a transmisso de energia se

    daria de modo discreto (e no contnuo como se pensava anteriormente) na forma depacotes, ou quanta de energia. No caso da radiao trmica, o valor mnimo de umquantum de energia transmitida, tambm denominado de quantum de ao, expres-so pelo produto da frequncia () da onda eletromagntica (luz e calor) pela constantede Planck (h): E= h, onde h igual a 6,626 x 10-34J/s (joules por segundo). Assim, ostomos (ento designados por Planck como osciladores) no interior do corpo negro spoderiam absorver e emitir energia em quantidades discretas e limitadas, obedecendoao valor expresso na frmula de Planck. Como o quantum de ao da ordem de 10-34,ele torna-se imperceptvel no nvel da nossa experincia cotidiana, mas no pode ser

    negligenciado na anlise dos fenmenos que ocorrem em escalas muito pequenas.Em 1905, Einstein utilizou a descoberta de Planck para explicar o efeito foto-

    eltrico, ou seja, o fato de a luz poder arrancar eltrons de uma superfcie metlica.Segundo ele, a luz tambm se propagaria atravs de quanta de energia, denominadosde ftons. Dependendo da frequncia da luz emitida, um fton teria energia suficiente

    7O corpo negro um objeto hipottico que absorveria toda radiao que incidisse sobre ele. Na prtica, um fornohermeticamente isolado, que no troca energia com o exterior, e com uma pequena abertura pela qual a energiagerada em seu interior emitida (tal qual utilizado por Max Planck em seus experimentos), aproxima-se do conceitode corpo negro.

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    para chocar-se com o eltron e arranc-lo do tomo. A descoberta de Einstein, quelhe rendeu o prmio Nobel em 1921, implica um questionamento sobre a prpria na-tureza da luz que pode comportar-se como uma partcula (uma substncia limitada aum volume diminuto), como no caso do efeito fotoeltrico, ou como uma onda (umcampo que se propaga em um vasto espao), como quando verificamos os fenmenosda difrao ou da interferncia.8

    A explicao de Einstein sobre o efeito fotoeltrico corrobora o fato de que a hi-ptese de Planck no se restringe ao problema da irradiao de calor, devendo ser to-mada como uma lei fundamental da natureza. Assim, em 1913, a fim de estabelecerum nexo entre o modelo de Rutherford e o fato da estabilidade da matria, Bohr intro-duziu a ideia dos nveis estacionrios de energia, inspirado na teoria do quantum de

    ao. Se a alterao de energia no tomo ocorre mediante pores discretas, ento otomo tambm deveria existir em nveis estacionrios de energia. Assim, o tomo pos-suiria um nvel mnimo de energia no qual ele se encontraria em seu estado natural,ao qual ele sempre retornaria aps perder energia. No caso do eltron, poderamosdizer, em uma ilustrao intuitiva, que seu lugar natural seria aquele mais prximoao ncleo, no qual ele possuiria seu limite mnimo de energia. Quando um eltron re-cebe energia, ele salta de uma camada mais interna outra mais externa, retornandosempre ao nvel mais baixo e emitindo a energia excedente em forma de luz. Isso ex-pressaria o fato de um eltron nunca chocar-se com o ncleo.

    Aps as descobertas de Planck, Einstein e Bohr, seguiu-se um intenso debateem torno da teoria quntica, sobretudo na segunda metade dos anos vinte. Em 1923, ofsico norte-americano Arthur Compton comprova o carter corpuscular da luz me-diante experincias com raiosX. Em 1924, o francs Louis-Victor de Broglie identificaa dualidade onda-partcula tambm no comportamento do eltron e das demais partcu-las sub-atmicas, transformando-a em um dos problemas fundamentais da fsica qun-tica. Em 1925 Heisenberg elabora, com a ajuda de Max Born e Pascual Jordan, a assimdenominada mecnica matricial, como uma primeira tentativa de descrever mate-maticamente os fenmenos qunticos. Em 1926, Erwin Schrdinger desenvolve a me-

    cnica ondulatria. Em 1927 ocorre a famosa conferncia de Solvay, na qual se renemos maiores nomes da fsica moderna (ver figura 1). Essa conferncia o marco onde seconsolidam as principais interpretaes da mecnica quntica no final dos anos vinte,dentre as quais nos concentraremos, como dissemos, na escola de Copenhague.

    8Difrao um fenmeno ondulatrio que consiste no desvio da trajetria de uma onda ao contornar um objeto oupassar por um orifcio cujas dimenses sejam da mesma ordem de grandeza do comprimento da onda. A interfern-cia a superposio da amplitude de duas ondas que se encontram. A interferncia pode ser construtiva, quandoduas ondas esto em fase e produzem uma onda maior. A interferncia destrutiva quando duas ondas possuemfases invertidas e se anulam.

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    2.2 A escola de Copenhague: complementaridade e incerteza

    Segundo Heisenberg, a escola de Copenhague parte de um paradoxo que pode ser for-mulado da seguinte maneira: todo experimento fsico deve ser descrito com os concei-tos da fsica clssica, forjados a partir de uma linguagem adaptada nossa experinciaintuitiva das coisas no espao e no tempo. As perguntas que dirigimos natureza, me-diante os experimentos e aparatos com os quais a investigamos, so feitas sobre essabase conceitual e lingustica, haurida da nossa realidade circundante. Sem o uso dessalinguagem no poderamos nos comunicar e transmitir o conhecimento obtido, com-prometendo assim a prpria objetividade cientfica. Entretanto, a tentativa de descre-

    Figura 1. A Conferncia de Solvay de 1927 faz parte de uma srie de conferncias iniciadas pelo industrial

    Belga Ernest Solvay (1838-1922) que criou em Bruxelas um frum para discutir problemas cientficos.Em p, da esquerda para direita: A. Piccard, E. Henriot, P. Ehrenfest, E. Herzen, T. de Donder, E.

    Schrdinger, J. E. Verschaffelt, W. Pauli, W. Heisenberg, R. H. Fowler, L. Brillouin. No centro, sentados,

    da esquerda para direita: P. Debye, M. Knudsen, W. L. Bragg, H. A. Kramers, P. A. M. Dirac, A. H. Compton,

    L. de Broglie, M. Born, N. Bohr. Na frente, da esquerda para direita: I. Langmuir, M. Planck, M.

    Skodowska-Curie, H. A . Lorentz, A . Einstein, P. Langevin, C.-E. Guye, C. T. R. Wilson, O. W. Richardson.

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    ver os fenmenos qunticos com conceitos clssicos parece conduzir a uma srie decontradies que subvertem a prpria experincia intuitiva sobre a qual esses concei-tos foram produzidos (Heisenberg, 2006, p.42).

    Assim, o incio da dcada de 1920 marcado, por um lado, pela tentativa de ela-borar um formalismo matemtico que pudesse representar as descontinuidades pre-sentes nos fenmenos qunticos e, por outro lado, pela dificuldade em obter uma in-terpretao dos fenmenos atmicos que pudesse ser expressa intuitivamente medianteos conceitos da fsica clssica. A primeira tentativa nesse sentido foi a criao da me-cnica matricial elaborada por Heisenberg, Jordan e Born em 1925. Essa nova mec-nica tinha o mrito de dar conta de um grande nmero de dados experimentais, em-bora fosse combatida por muitos cientistas, em especial pelo fsico austraco Erwin

    Schrdinger, por seu carter pouco intuitivo (unanschaulich)

    9

    (cf. Mehra, 1987, p. 478),ou seja, por impossibilitar descrever os dados observveis enquanto fenmenos queobedecessem a leis causais contnuas no espao e no tempo (cf. Hilgevoord & Uffink,2012, p. 3).

    Em resposta mecnica matricial de Heisenberg, Schrdinger prope em 1926sua mecnica ondulatria, a qual proporcionava uma descrio mais intuitiva dos fe-nmenos atmicos que podiam ser explicados mediante funes de onda. O formalismomatemtico proposto por Schrdinger teve uma rpida aceitao na comunidade cien-tfica, apesar dos protestos de Heisenberg. Este ltimo opusera-se desde o incio

    mecnica ondulatria, objetando, dentre outras coisas, que ela no explicava as des-continuidades presentes nas leis de Planck sobre a irradiao de energia (cf. Blum;Drr & Rechenberg, 1985, p. 514-7; Jammer, 1974, p. 56).

    A repercusso causada pela teoria de Schrdinger levou Bohr e Heisenberg aconvid-lo a expor e discutir sua mecnica ondulatria para a sociedade de fsica deCopenhague. Apesar de haver uma correspondncia entre os formalismos das mec-nicas ondulatria e matricial, poca existia uma grande divergncia entre as inter-pretaes de Heisenbreg e Schrrendiger sobre o significado fsico do arcabouo ma-temtico da teoria quntica.10

    9A palavra alem Anschaung, da qual surge o adjetivo anschaulich, pode ser traduzida por intuio no sentido(kantiano) da percepo de algo em uma relao de espao e tempo mediante relaes de causalidade. Como vere-mos adiante, Heisenberg dar outra definio a essa palavra a fim de rebater as crticas que acusavam a teoria qun-tica de ser excessivamente abstrata e contraintuitiva (unanschulich).10Em uma carta de 1926 a Pauli, Heisenberg se refere mecnica ondulatria como sendo um lixo e detestvel (cf.Mehra, 1987, p. 483). Segundo relato de Heisenberg, Schrdinger teria dito, a respeito da hiptese de Bohr sobre osalto quntico, o seguinte: Se ainda devemos insistir nesse maldito salto quntico, ento me arrependo de ter algu-ma vez me ocupado com a teoria quntica (Heisenberg apudBlum; Drr & Rechenberg, 1984, p. 436). Como sesabe, em 1930 Neumann ir demonstrar de modo claro a correspondncia entre as mecnicas matricial e a ondulatria(cf. Jammer, 1974, p. 22).

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    A confrontao com a mecnica de Schrdinger levou a um debate intenso entreHeisenberg e Bohr acerca de uma teoria quntica que pudesse servir a uma explicaofsica coerente dos dados experimentais (cf. Jammer, 1974, p. 57), resultando na for-mulao de dois princpios fundamentais elaborados pela escola de Copenhague a partirde 1927, quais sejam: o princpio de incerteza de Heisenberg e o princpio de comple-mentaridade de Niels Bohr.

    Heisenberg apresenta seu princpio de incerteza11pela primeira vez em umartigo de 1927 intitulado: ber den anschaulichen Inhalt der quantentheoretischenKinematik und Mechanik. Em uma livre traduo para o portugus o ttulo pode serescrito da seguinte maneira: Sobre o contedo intuitivo (anschaulich) da cinemtica eda mecnica na teoria quntica. Logo no incio do artigo, Heisenberg define o que

    compreende por contedo intuitivo:

    Acreditamos compreender intuitivamente uma teoria fsica quando ns, em cadacaso particular, podemos pensar qualitativamente as consequncias experimen-tais dessa teoria e quando ns ao mesmo tempo reconhecemos que a aplicaodessa teoria no contm nenhuma contradio. (...) A mecnica quntica surgiuprecisamente da tentativa de romper com os conceitos cinemticos familiares e,no lugar deles, estabelecer relaes entre quantidades concretamente dadas naexperincia. Como isso parece ter sido alcanado, o esquema matemtico da teo-

    ria quntica no necessita de reviso (Heisenberg, 1927, p. 172).

    Esse esquema matemtico fora obtido pela aplicao das leis de transformaode Dirac e Jordan mecnica matricial12e a partir dele que Heisenberg deduz, nasegunda parte do artigo de 1927, as relaes de indeterminao mais tarde batizadas deprincpio de incerteza. Como se sabe, o formalismo diz que em um sistema qunticono se pode determinar simultaneamente com preciso o valor de duas grandezascannicas conjugadas (Heisenberg, 1927, p. 179), sendo que o produto entre elas nopode ser inferior constante de Planck (h) dividida por 2p. As grandezas conjugadas

    11A expresso princpio de incerteza no utilizada por Heisenberg no artigo de 1927 e pouco usada por ele emtextos posteriores. Ela teria sido cunhada, provavelmente, pelo fsico ingls Arthur Eddingon em 1928 (cf. Hilgevoord& Uffink, 2012, p. 9), tornando-se popular nos textos em ingls. Heisenberg normalmente utiliza a expresso rela-o de indeterminao (Unbestimmtheitsrelation) ou relao de impreciso (Ungenauigkeitsrelation). No artigo de1927 a palavra incerteza Unsicherheit utilizada apenas no apndice (escrito aps algumas ressalvas feitas por Bohrao artigo), mas sem relacion-la palavra princpio (cf. Jammer, 1974, p. 61.) No obstante, utilizaremos a ex-presso princpio de incerteza, por ser um termo amplamente aceito e difundido na literatura sobre o assunto.12No cabe aqui reproduzir as explicaes matemticas do princpio de incerteza. Para um melhor detalhamentode como Heisenberg deduz as relaes de indeterminao a partir das teorias de transformao de Dirac e Jordan,ver, alm da segunda parte do artigo de Heisenberg de 1927, tambm as sees 7 e 8 de Mehra, 1987, p. 490-7.

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    pelas quais o princpio de incerteza mais conhecido so o momento (p) e a posio(q), assim: dpdq e h/2p.13

    Vimos que Heisenberg procura atribuir um carter intuitivo a esse formalismomatemtico. Segundo a passagem acima citada, uma teoria tida como intuitiva nopela possibilidade de explicar os fenmenos fsicos mediante relaes causais cont-nuas no espao e no tempo, como na mecnica ondulatria de Schrdinger. O carterintuitivo de uma teoria se deve, por um lado, ao fato de que as consequncias experi-mentais dela extradas possam ser pensadas sem contradies. Por outro lado, umateoria evita contradies quando edificada a partir da tentativa de descrever relaesentre grandezas concretamente observveis nos experimentos.

    Assim Heisenberg busca esclarecer intuitivamente essas relaes de indeter-

    minao mediante um experimento mental que ficou conhecido como microscpio deraios g.14Segundo ele, mesmo que houvesse um microscpio suficientemente desen-volvido que possibilitasse olhar diretamente o eltron em torno do ncleo, ainda as-sim seria impossvel determinar simultaneamente com preciso sua velocidade eposio. Para que o eltron fosse visto, seria necessrio lanar luz sobre ele. Suponha-mos que nosso microscpio fosse sutil ao ponto de lanar apenas um fton de luz sobreo eltron. A preciso com que veramos o eltron seria tanto maior quanto menor fosseo comprimento de onda e, consequentemente, maior a frequncia do fton. Entre-tanto, como a energia do fton aumenta com a frequncia, esse quantum de luz se cho-

    caria com o eltron, alterando seu movimento e deslocando-o de sua trajetria. Pode-ramos localizar o eltron, mas no saberamos nada sobre seu movimento. SegundoHeisenberg, mediante o experimento imaginrio descrito acima visualizamos umaexplicao intuitiva direta da relao pq qp = h/2pi (cf. Heisenberg, 1927, p. 175).

    A equao representa as leis de transformao de Dirac-Jordan a partir das quais foideduzido o princpio de incerteza. Uma consequncia imediata das relaes de in-determinao expressas na nova mecnica o fato de o ideal clssico de causalidade e,consequentemente, de uma previsibilidade determinista dos fenmenos ficar amea-ado quando aplicado aos fenmenos qunticos.

    Segundo o ideal determinista da fsica clssica, se conhecermos as coordenadasiniciais de um sistema fsico e possuirmos o esquema matemtico correto de suas leiscausais poderemos predizer o que ocorrer com esse sistema em um tempo futuro.J em um sistema quntico, as relaes de indeterminao fazem que as coordenadas

    13Essa relao vale tambm para as demais grandezas conjugadas como tempo e energia (dtdE h/2p) e momentoangular e fase (dwdj h/2p).14Heisenberg expe esse experimento mental, pela primeira vez, no texto de 1927 (cf. p. 174 ss.), retomando-o emvrias outras ocasies, por exemplo, em Heisenberg, 1949 e 2006.

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    iniciais de um fenmeno atmico devam ser matematicamente descritas mediante fun-es de probabilidade, as quais no representam fenmenos efetivos, mas indicamantes possibilidades, tendncias para que algo ocorra. Heisenberg compara essas fun-es de probabilidade noo aristotlica de dynamis, no sentido de uma potncia aser realizada (cf. Blum; Drr & Rechenberg, 1984, p. 208).

    Por exemplo, para observarmos a trajetria de um eltron devemos, primei-ramente, determinar a sua posio em um instante dado. Com isso no conseguiremossaber com preciso sua velocidade, mas podemos calcular a probabilidade de ele seencontrar em uma determinada regio no instante seguinte. Porm a passagem da po-tncia ao ato, ou seja, o lugar onde o eltron efetivamente se encontrar em um instan-te seguinte, s se realiza quando uma nova medio for feita. Em uma interpretao

    clssica, diramos que, entre uma medio e outra, o eltron deve ter percorrido umdeterminado caminho. Porm, segundo Heisenberg, tal afirmao seria um mau em-prego dos conceitos clssicos. No podemos dizer o que efetivamente aconteceu com oeltron entre uma medio e outra, a prpria ideia de uma trajetria torna-se proble-mtica. Apenas verificamos que ele saltou de uma posio para outra. Esse saltoquntico no implica uma relao de causalidade em um esquema espao-temporal,mas antes a realizao, durante a observao, de uma potencialidade em meio a umconjunto de possibilidades (cf. Heisenberg, 2006, p. 44-5). Sobre essa ruptura da f-sica quntica com o ideal clssico de causalidade, Heisenberg diz, no final do seu arti-

    go de 1927, o seguinte:

    Mas na formulao acurada da lei de causalidade: quando conhecemos exata-mente o presente, podemos calcular o futuro, no a concluso, mas sim a pre-missa que est errada. Por princpio ns no podemos conhecer o presente emtodos os seus elementos determinantes. Por isso toda observao uma escolhaentre uma abundncia de possibilidades e uma restrio de possibilidades futu-ras. O fato de o carter estatstico da teoria quntica estar estreitamente ligado inexatido (Ungenauigkeit) de toda observao poderia conduzir suposio de

    que por trs do mundo estatisticamente observado haveria ainda um mundoreal, no qual a lei de causalidade valesse. Mas tal afirmao nos parece, e nsassinalamos isso enfaticamente, infrutfera e sem sentido. A fsica deve apenasdescrever formalmente os nexos do que observado. Podemos antes caracterizarmuito melhor o verdadeiro estado de coisas dizendo: porque a experincia estsubmetida s leis da mecnica quntica, ento mediante a mecnica quntica ficaestabelecida definitivamente a invalidade da lei causal (Heisenberg, 1927, p. 197).

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    A relao entre as indeterminaes dadas pelo esquema matemtico da mecni-ca quntica e, ao mesmo tempo, a exigncia de que uma teoria deva ater-se ao que concretamente observvel, tal como fora apresentada no artigo de 1927, respons-

    vel por uma polmica, at hoje presente, acerca do estatuto do princpio de incerteza.Trata-se de saber se as relaes de indeterminao podem ser consideradas como in-trnsecas teoria quntica, ou seja, se elas so princpio aplicvel a toda experinciapossvel, ou se elas decorrem apenas do processo de medio dos dados observveis.

    Por exemplo, em um artigo publicado recentemente por cientistas canadenses oprincpio de incerteza abordado mediante dois aspectos. O primeiro, tido como atu-almente aceito e incontestvel, toma o princpio em questo como intrnseco a todosistema quntico, cuja comprovao independente de qualquer medio especfica.

    Entretanto, esse carter intrnseco no atribudo diretamente a Heisenberg, e simaos aperfeioamentos das relaes matemticas de indeterminao feitos posterior-mente por Kennard em 1927, Wyl em 1928 e Robertson em 1929. Segundo o artigo, em1927 Heisenberg teria pensado seu princpio de incerteza apenas em relao s impre-cises e s distores causadas pelos processos de medio: Aqui, Heisenberg seguiuo exemplo de Einstein e tentou basear a nova teoria fsica apenas em quantidades obser-

    vveis, ou seja, apenas nos resultados de medies (Rozema et al., 2012, p. 1). Essasegunda verso do princpio de incerteza contestada experimentalmente nesse arti-go atravs de um experimento envolvendo medies fracas.

    Entretanto, outros autores como Jammer (1974, p. 57) e Mehra (1987, p. 495) lem-bram que se Heisenberg aprendera com Einstein que uma teoria deve ser baseada ape-nas em grandezas observveis, o prprio Einstein tambm lhe dissera, como j indica-mos na seo 2 desta introduo, que apenas a teoria decide sobre o que pode serobservado.15Para Jammer o princpio de incerteza formulado por Heisenberg em 1927 uma consequncia matemtica imediata do formalismoda mecnica quntica, maisprecisamente da teoria da transformao de Dirac e Jordan (1974, p. 60). Assim, a ori-gem conceitual do princpio de incerteza envolveria uma dupla questo: (1)saber se oformalismo matemtico possibilita o fato de que variveis conjugadas so determin-

    veis em um momento dado apenas com uma preciso limitada; (2)uma vez comprovadateoricamente essa impreciso, seria necessrio saber se ela compatvel com o mximode acuidade obtida pelos instrumentos de medida (cf. Jammer, 1974, p. 61).

    Segundo essa interpretao, a teoria parece ser anterior aos dados experimen-tais e o microscpio de raios g visto como um experimento mental destinado a com-

    15Em um artigo intitulado Observaes sobre a gnese da relao de indeterminao, escrito um ano antes de suamorte (1975), Heisenberg cita o comentrio de Einstein ao qual nos referimos acima e afirma que ele fora de fundamen-tal importncia para a descoberta das relaes de indeterminao (cf. Blum; Drr & Rechenberg, 1985, p. 514-7).

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    provar e dotar a teoria de um carter intuitivo. Essa precedncia da teoria sobre a ex-perincia parece ser corroborada pelo prprio Heisenberg em uma entrevista na qualresume as divergncias entre ele e Bohr que precederam elaborao dos princpiosde incerteza e de complementaridade:

    O ponto fundamental era que Bohr queria tomar o dualismo entre onda e part-cula como o cerne do problema. Eu [por outro lado] diria: ns possumos umesquema matemtico consistente e ele nos diz tudo que pode ser observado. Noh nada na natureza que no possa ser descrito por esse esquema matemtico.Havia um modo diferente de olhar para o problema porque Bohr no gostava dedizer que a natureza imita o esquema matemtico, que a natureza s faz coisas que

    se encaixam no esquema matemtico (Heisenberg apudMehra, 1987, p. 496).

    Embora no texto de 1927 a preponderncia do formalismo matemtico no sejato evidente quanto nos escritos tardios de Heisenberg, parece precipitado dizer queele primeiramente formulou seu princpio de incerteza considerando apenas as dis-tores causadas pelos instrumentos de medio. No obstante a isso, a interao en-tre o arranjo experimental e o objeto observado ocupa um lugar de destaque nos textosde Heisenberg, constituindo-se como um dos problemas centrais abordados pela es-cola de Copenhague. Uma das principais consequncias de tal interao a ruptura

    com a diviso cartesiana clssica entre sujeito e objeto.Com efeito, a fsica clssica parte da certeza de que os fenmenos fsicos so even-tos que ocorrem em um esquema espao-temporal, cujas leis causais podem ser mate-maticamente descritas como expresso de uma realidade que independe de qualquerobservao. Mesmo que o acesso a essas leis dependa de experimentos de alta comple-xidade tcnica, a fsica clssica acredita ser sempre possvel descontar as distorescausadas pelos aparelhos de medio e descrever a natureza tal qual ela efetivamente .

    J no nvel atmico, o aparato conceitual e tcnico utilizado para penetrar nessaregio diminuta da natureza no apenas provoca alteraes irreversveis no objeto in-

    vestigado como tambm determina suas caractersticas.16Essa impossibilidade decompensar o efeito causado pelo experimento no objeto no reside em uma falha denosso entendimento e nem no fato de ainda no possuirmos uma aparelhagem tcnicasuficientemente desenvolvida para investigar o que realmente ocorreria no tomo.

    A prpria natureza do tomo, e de todo fenmeno onde o quantum de ao de Planckno pode ser negligenciado, impossibilita uma separao radical entre sujeito e obje-to. Assim, a objetividade da natureza no nvel quntico torna-se indissocivel dos apa-

    16Isso fica claro na interpretao de Bohr sobre a dualidade onda-partcula, como veremos adiante.

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    ratos tcnicos que utilizamos para investig-la e da linguagem com a qual a descreve-mos. Ns devemos nos lembrar que aquilo que observamos no a natureza ela mes-ma, mas a natureza que submetida ao nosso modo de questionamento ( Heisenberg,2006, p. 60-1).

    Vemos que o papel do observador decisivo para se estabelecer as propriedadesde um sistema quntico, e isso de um modo radicalmente distinto daquele da fsicaclssica. Para essa ltima, podemos descobrir as propriedades de um determinadoobjeto mediante a repetio de um mesmo experimento ou combinando diversos ex-perimentos para nos certificarmos de suas caractersticas. Assim, os vrios resultadosobtidos so suplementares e nos ajudam a obter uma imagem consistente do objeto.

    J na investigao dos objetos qunticos, a interao entre os instrumentos de

    medida e o objeto exige uma nova forma de abordagem dos fenmenos. Se tomarmoscomo exemplo a dualidade onda-partcula, central para a elaborao do princpio decomplementariadade de Bohr, veremos que tanto nossa linguagem quanto nossos ex-perimentos impedem que tenhamos em uma mesma imagem a representao de algocomo sendo simultaneamente onda e partcula. Dizer que algo e no a mesma coisaao mesmo tempo fere o princpio lgico de contradio. Entretanto, alguns experi-mentos podem nos mostrar um eltron na forma de onda, enquanto outros revelam-no como uma partcula. Para Bohr, essas duas determinaes so complementares.Dependendo do arranjo experimental e da pergunta com a qual nos dirigimos natu-

    reza, uma partcula subatmica pode apresentar um comportamento ondulatrio oucorpuscular. Para Bohr o que decide sobre quais propriedades um objeto quntico podeapresentar , no limite, o prprio observador. Isso no implicaria uma limitao nainvestigao da natureza, mas antes um modo de inquirio adequado ao mundo qun-tico: longe de restringir nossos esforos em questionar a natureza, a noo de com-plementaridade simplesmente caracteriza as respostas que podemos obter com essemodo de questionamento sempre que a interao entre os instrumentos de medida eos objetos formar uma parte integral do fenmeno (Bohr, 1963, p. 4).

    O princpio de complementaridade rompe com alguns pressupostos do positi-

    vismo com relao ao uso e formao dos conceitos. Assim, Heisenberg relata umaconversa que tivera com Bohr e Pauli em 1952, na qual o fsico dinamarqus esclarecesua posio diante do positivismo (cf. Heisenberg, 2005a, p. 241-55). Segundo ele, opositivismo teve o mrito de romper com os mtodos antigos de investigao da natu-reza e com as explicaes religiosas e supersticiosas do mundo, impondo a necessida-de da verificao emprica dos fenmenos e de clareza conceitual em sua explicao.Entretanto, com isso, o positivismo imps uma restrio aos conceitos e aos assuntosmais genricos que no se referem diretamente ao que se verifica na experincia, clas-sificando-os como resqucios de uma metafsica a ser superada.

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    Bohr lembra aos outros dois fsicos de um encontro filosfico em Copenhagueno qual estavam presentes alguns adeptos da escola de Viena. O fsico dinamarqusconta ter estranhado o fato de, aps ter exposto alguns dos princpios da teoria quntica,nenhuma pergunta ou objeo lhe ter sido feita: pois impossvel algum ter com-preendido a teoria quntica, sem antes ter se espantado com ela (Heisenberg, 2005a,p. 241).Para Pauli, essa falta de espanto poderia ser atribuda ao fato de os positivistasterem se contentado com as explicaes logicamente coerentes da teoria quntica quepossibilitam certo grau de previsibilidade nos resultados empricos. Questes de cu-nho filosfico, como os princpios de complementaridade e de incerteza, ou proble-mas relativos ao papel do observador seriam desprezados, pois remeteriam a uma vi-so pr-cientfica da natureza. Bohr completa dizendo que, embora concordasse com

    a necessidade de clareza conceitual e verificao emprica, a restrio dos positivistasaos conceitos genricos e s aproximaes imagticas ou alegricas impediria qual-quer avano na teoria quntica.Citando uma passagem do poema de Schiller, A sen-tena de Confcio, segundo a qual s a plenitude conduz clareza, a verdade mora noabismo, Bohr diz que os positivistas possuem a tcnica correta para evitar os erros,mas no para se precipitar em direo verdade.

    Se compararmos as interpretaes da teoria quntica de Bohr e Heisenberg, emum primeiro momento parece correto afirmar, como o faz Karl Popper, que o progra-ma epistemolgico desse ltimo era expurgar as interpretaes do fsico dinamar-

    qus das magnitudes no observveis, purificando-as de toda inferncia metafsica.Da, por exemplo, a impossibilidade de se afirmar a existncia de uma trajetria doeltron em torno do ncleo, visto que a rbita do eltron no pode ser experimental-mente observvel.17Entretanto, no menos verdade que o fsico alemo progressi-

    vamente incorpora elementos metafsicos em sua interpretao da teoria quntica.Assim, em uma conversa reservada com Pauli, Heisenberg afirma no concordar in-teiramente com Bohr a respeito da necessidade de se evitar temas antigos nas cinciasda natureza. Ao contrrio, segundo ele, a fsica quntica retoma a antiga discusso en-tre materialistas e idealistas, remetendo, sobretudo, disputa entre Plato e os ato-

    mistas (cf. Heisenberg, 2005a, p. 248 ss.).Admirador do Timeudesde a juventude, Heisenberg acredita que Plato, e antes

    dele a escola pitagrica, descobrira uma relao fundamental entre a matemtica e anatureza ao atribuir uma estrutura geomtrica aos quatro elementos fundamentais quecompem o mundo material. Assim, a menor poro do elemento terra corresponderia

    17A afirmao de Popper sobre o programa epistemolgico de Heisenberg baseada em um escrito do fsico alemode 1929,Physikalische Prinzipien der Quantentheorie, no qual a postura antimetafsica de se evitar qualquer refernciaa grandezas no observveis bastante clara.

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    ao cubo; a do elemento gua ao icosaedro; do ar ao octaedro e do fogo ao tetraedro.Entretanto, alguns desses elementos poderiam ser divididos e reduzidos forma nicado tringulo. Logo, as partculas elementares, os tomos de Demcrito, teriam sua ver-dadeira realidade no no que materialmente dado, mas nas ideias, nas formas mate-mticas que os precedem.

    Assim, podemos identificar um certo platonismo na interpretao que Heisen-berg faz do formalismo da teoria quntica:

    Quando sintetizamos os resultados de experimentos em uma frmula e assimchegamos a uma descrio fenomenolgica de um evento, como sempre se devefazer na fsica terica, temos o sentimento de ns mesmos havermos inventado

    essa frmula. Porm, quando nos deparamos com essas simples e grandiosasconexes que finalmente so fixadas na axiomtica, ento tudo parece diferente.A surge, de uma vez, diante de nosso olho espiritual, um nexo que, mesmo semns, j sempre esteve a e que manifestamente no foi feito pelo homem. Essasconexes so precisamente o contedo de nossa cincia. Ns somente podemoscompreender efetivamente nossa cincia quando admitimos a existncia de taisconexes (Heisenberg, 2005a, p. 120-1).

    Vemos que, por um lado, Heisenberg assinala a necessidade de que toda teoria

    deva ser construda sobre evidncias empricas, evitando qualquer referncia a ele-mentos no observveis. Por outro lado, ele parece sugerir que as frmulas e sime-trias matemticas, pelas quais representamos as potencialidades existentes na natu-reza, possuem no apenas uma anterioridade lgica, mas tambm ontolgica sobre aefetividade do mundo material, chegando mesmo a se referir ao arcabouo matemti-co da fsica como uma relao entre o homem e aquilo que denomina de a ordem cen-tral do mundo (die zentrale Ordnung der Welt) (2005a, p. 251 ss.).

    No cabe aqui nos aprofundarmos na complexa interpretao de Heisenberg dateoria quntica e em sua oscilao entre positivismo e um certo platonismo (cf. Leite &

    Samuel, 2010). Nosso objetivo em expor algumas das posturas epistemolgicas defen-didas pela escola de Copenhague o de simplesmente visualizarmos a perspectiva pelaqual Heisenberg compara as concepes de natureza em Newton e Goethe.

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    3 A teoria das cores de Newton e Goethe luz da fsica moderna

    Cinza, fiel amigo, toda a teoria,

    e verde a urea rvore da vida.

    (Goethe, 1981, parte 1)

    A retomada da discusso que Goethe estabelece com a ptica newtoniana se deve, emgrande parte, ao fato de Heisenberg acreditar na atualidade e na urgncia das objeesfeitas pelo poeta ao crescente desenvolvimento das cincias da natureza e necessida-de de esclarec-las luz das novas descobertas da fsica moderna. Some-se a isso acrtica dos assim denominados fsicos alemes que atribuam o carter abstrato da

    teoria quntica sua origem judaica. As bases da fsica alempodem ser vislumbradasem uma das passagens mais notrias do manual editado por Phillip Lenard em 1936,intituladoFsica alem em quatro tomos:

    Algum poderia perguntar: fsica alem? Eu poderia ter dito tambm fsica aria-na, ou fsica dos homens de tipo nrdico, fsica dos fundamentadores da realida-de, dos perseguidores da verdade, dos fundadores das cincias da natureza. Al-guns podero contestar-me: a cincia e permanece internacional! Mas aquijaz um erro. Na verdade a cincia , como tudo que o homem produz, determina-

    da pela raa e pelo sangue (Lenard, 1936, p. xiv).

    Para os autointitulados fsicos arianos, a verdadeira cincia deveria ser aqueladesenvolvida pelos homens nrdicos, cujas investigaes baseavam-se em evidnciasempricas. Desse modo, ao retomar as crticas de Goethe a Newton, Heisenberg con-quista uma base histrica para discutir o problema do formalismo matemtico nas cin-cias. As objees de Goethe, tomado pelos fsicos arianos como exemplo de homemnrdico, dizem respeito justamente ao carter abstrato da fsica newtoniana, esta lti-ma incontestavelmente fundamentada na experincia (cf. Costa & Videira, 2007).

    Com efeito, para Heisenberg o que est em jogo na crtica de Goethe o prpriovalor das abstraes e do formalismo, cada vez menos intuitivos, com os quais des-crevemos a natureza. precisamente nesse abandono de um mundo intuitivamenteapreensvel, em direo a uma cincia da natureza cada vez mais abstrata, que reside,segundo Goethe, o carter demonaco da fsica clssica. J no prefcio Doutrina dascores, o poeta nos deixa claro qual ideia de natureza subjaz s suas investigaes sobreas cores:

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    As cores so atos da luz, atos e afetos (Taten und Leiden). Nesse sentido, a partirdelas podemos almejar obter esclarecimentos sobre a luz. Cores e luz relacio-nam-se entre si do modo mais estrito, mas devemos pens-las como pertencentes

    natureza como um todo: pois a natureza toda que atravs delas quer revelar-seespecialmente sensibilidade do olho (...). Assim, a natureza fala decres-centemente a outros sentidos conhecidos, incompreendidos, desconhecidos;assim a natureza fala consigo mesma e conosco mediante milhares de fenme-nos (Goethe, 2010, loc. 1037).

    Figura 2. Tela retratando Goethe em 1787 na sua campanha pela Itlia, pas cujas paisagens lhe inspira-

    ram escrever uma teoria das cores mais viva e intuitiva que a de Newton. O detalhe curioso dessa tela que

    nela o poeta retratado com dois ps esquerdos.

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    Goethe acredita que a natureza em sua totalidade fala a ns atravs de nossossentidos. Portanto, o ponto de partida de suas consideraes cientficas so as impres-ses sensveis que intumos imediatamente em nossa experincia do mundo circun-dante. Isso no significa que o poeta seja avesso a qualquer forma de abstrao. Segun-do ele, toda teoria sobre a natureza deve buscar nela um fenmeno originrio (Urphnomen),a partir do qual a multiplicidade das aparies sensveis possa ser compreendida. Emseu estudo sobre a morfologia das plantas, por exemplo, Goethe busca a planta origi-nria (Urpflanze), ou seja, a forma originria com a qual a natureza produz a multipli-cidade da vida vegetal. Na posse desse modelo o investigador da natureza poderia des-cobrir uma infinidade de plantas que mesmo se no existissem, poderiam existire possuir uma verdade e necessidade intrnsecas(Goethe apudHeisenberg, 1971,

    p. 245). Tambm em seus estudos sobre mineralogia, Goethe acredita que o granito apedra originria (Urstein), fonte da multiplicidade das formaes geolgicas. As peque-nas formaes metlicas, raramente encontradas em algumas massas de granito, seriama prova de uma dinmica, de uma metamorfose presente desde a formao de cristais,a primeira individuao bem sucedida da natureza,s mais elementares formas de

    vida vegetal, como os corais (Goethe, 2009, p. 212). Do mesmo modo, na suaDoutrinadas cores, Goethe acredita ter descoberto o fenmeno originrio da produo das coresna mistura entre o claro e o escuro, entre o luminoso e o turvo.18

    Portanto, Goethe reconhece que toda teoria implica certo grau de abstrao e

    que no podemos conhecer a natureza sem identificarmos nela um fenmeno origin-rio, sem remetermos a multiplicidade dos fenmenos a uma base comum. At mesmoo uso da matemtica e da geometria aparece nas consideraes de Goethe sobre a na-tureza. Em suas anlises sobre efeitos sensveis e morais das cores, o poeta estabele-ce uma complexa ordem simtrica entre as cores, distribuindo-as em um hexaedro.Entretanto, ao mesmo tempo, o poeta assinala a necessidade de sermos prudentes esabermos reconhecer os limites de nossa abstrao:

    Todo observar transforma-se em um considerar, todo considerar em um refletir,

    todo refletir em um associar e, assim, podemos dizer que, em cada olhar atentosobre o mundo, ns j teorizamos. Mas isso procedendo e agindo com conscin-cia, com autoconhecimento, com liberdade e, para nos utilizarmos de uma pala-vra ousada, com ironia. Tal postura necessria para que a abstrao, que nstememos, torne-se inofensiva e para que os resultados prticos que esperamospossam tornar-se vivos e teis (Goethe, 2010, loc. 1078.).

    18Para saber mais detalhes sobre isso, ver a traduo aqui publicada da conferncia de Heisenberg.

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    Essa abstrao que ns tememos aquela que, desde Galileu, toma como o maisfundamental na natureza grandezas abstratas e matematicamente quantificveis. ParaGoethe, uma fsica como a newtoniana, que isola uma parte da natureza e a submete auma srie de experimentos para ento explic-los mediante abstraes matemticas,estaria submetendo a totalidade livre e viva da natureza a uma natureza artificial-mente produzida e aprisionada pelos instrumentos de observao. Logo, ele coeren-te quando afirma que aquilo que o fsico investiga, com suas frmulas e experimentos,

    j no a natureza.Assim, o fenmeno originrio de Goethe no deve ser tomado como mera abs-

    trao ou princpio sobre o qual, maneira cartesiana, poderamos dedutivamenteerigir uma teoria. Ele deve ser pensado antes como uma apario fundamental (Grund-

    erscheinung) no interior da quala totalidade viva da natureza se oferece e pode servir sdiversas formas de expresso humana: olhar, saber, supor, crer e todas as antenascom as quais o homem tateia o mundo devem ento agir conjuntamente quando nossaimportante, embora difcil, tarefa for cumprida (Goethe apud Heisenberg, 1971,p. 254).A unidade viva da natureza deveria ser expressa na unidade do saber humano.Logo, a abstrao vlida somente quando serve a alguns resultados prticos, ou seja,quando permite no apenas o conhecimento terico da natureza, como tambm suafruio esttica e seu uso moral. A teoria das cores de Goethe deveria servir aos fsicos,filsofos, mdicos e, sobretudo, aos artistas. No por acaso, a ltima parte de sua dou-

    trina diz respeito aos efeitos morais e sensveis das cores. Da a crtica de Goethe a umacincia cujo grau de abstrao ultrapassa nossa intuio viva do mundo e que isola averdade da moral e da esttica. Como bem observa Heisenberg:

    Para Goethe, a verdade era inseparvel do conceito de valor. O unum, bonum,verum, o uno, bom, verdadeiro, era para ele, assim como para os antigos fil-sofos, o nico compasso pelo qual a humanidade poderia se orientar atravs dossculos na busca de seu caminho. Uma cincia que apenas exata (richtig), naqual os conceitos de exatido e verdade encontram-se separados, na qual a

    ordem divina j no norteia a partir de si mesma, por demais arriscada e deveser, pensando novamente noFausto de Goethe, rejeitada como obra do demnio(1971, p. 252).

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    Devemos cuidar aqui para no pensarmos que Goethe tem como ideal uma natu-reza humanizada. No apenas a cincia moderna mas tambm o romantismo alvo desuas crticas. Os romnticos tambm desprezariam a unidade da natureza, tornando-a

    prisioneira da subjetividade humana. Como observa Heisenberg:

    Toda arte que, assim como o romantismo, distancia-se do mundo, que j nocorresponde ao mundo efetivo, mas apenas ao seu espelhamento na alma do ar-tista, parece a ele [Goethe] to insatisfatria quanto uma cincia que no tomacomo objeto a natureza livre, e sim fenmenos isolados, selecionados e, em certamedida, preparados atravs de aparelhos (1971, p. 255).

    A natureza livre , para Goethe, aquela que intumos diretamente atravs dos

    sentidos. Ao investigador da natureza cabe escutar a linguagem pela qual ela fala nos-sa intuio e reconhecer os nexos de sua ordenao viva. A inteno principal de suadoutrina das cores era aplicar essa designao universal, essa linguagem natural, tam-bm teoria das cores, enriquecer e ampliar essa linguagem mediante a teoria das co-res e, assim, facilitar o compartilhamento das mais elevadas intuies (Anschaungen)entre os amigos da natureza (Goethe, 2010, loc. 1066). Ao se afastarem dos sentidos,em direo a abstraes matemticas ou aos estados da alma, tanto o fsico como o ro-mntico teriam fechado os ouvidos linguagem da natureza e desprezado o valor da suaunidade e ordenao internas.

    Figura 3. O crculo das cores desenhado por Goethe,

    extrado do captulo acerca da ao tico-moral das

    cores. No crculo interior, cada cor relacionada a

    um adjetivo esttico-mora l: o vermelho ao belo

    (schn); o laranja ao nobre (edel); o amarelo ao bom(gut); o verde ao til (ntzlich); o azul ao vulgar(gemein) e o roxo ao desnecessrio (unnthig). No

    crculo exterior, as interseces das cores corres-pondem s faculdades da alma: vermelho/laranja

    razo (Vernunft); amarelo/verde entendimento(Verstand); verde/azul sensibilidade (Sinnlichkeit) eroxo/vermelho fantasia (Phantasie).

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    Segundo Heisenberg, Goethe no est totalmente errado. Para ele, todo aumen-to de nosso conhecimento sobre a natureza implica uma limitao e uma renncia nacompreenso do mundo em sua totalidade. Todo avano na cincia implica o sacrifciode alguns questionamentos e construes conceituais anteriormente conquistados:

    a observao da natureza pelo homem remete aqui a uma analogia com o ato iso-lado da percepo que podemos conceber, como o faz Fichte, como uma auto-limitao do Eu: em cada ato perceptivo ns escolhemos uma determinada pos-sibilidade em meio a uma abundncia ilimitada e, assim, limitamos a plenitudede possibilidades para o futuro (Heisenberg, 2005b, p. 2).

    Desse modo, no podemos dizer que a doutrina das cores de Newton mais oumenos verdadeira que a de Goethe, pois ambas as teorias tratam de nveis diferentesda realidade: o poeta fala a partir da natureza viva que se comunica atravs dos nossossentidos e o cientista a partir de uma na-tureza matematicamente quantificada eexperimentalmente forjada.

    Ao analisar a disputa entre Goethee Newton em termos de domnios da rea-lidade, Heisenberg tambm desqualifica

    as crticas dos fsicos arianos, para osquais existe apenas um domnio da reali-dade, qual seja, a realidade emprica aces-svel intuio. Do mesmo modo queGoethe e Newton so ambos verdadeirosdentro de seus respectivos domnios, as-sim tambm a fsica newtoniana verda-deira e exata na escala intuitiva da nossaexperincia ordinria, ao passo que a f-

    sica quntica possui o grau de exatidoexigido para fenmenos onde o quantumde ao no pode ser negligenciado. Maisainda, para Heisenberg, aquele que noestiver preparado para renunciar a umaocupao viva com a natureza e galgar os

    Figura 4. Retrato de Newton em 1702, com 61 anos

    de idade, pintado por Godfrey Kneller.

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    domnios abstratos da fsica moderna deve abandonar, ao menos por enquanto, o ca-minho das cincias exatas.

    Entretanto, Heisenberg no descarta a possibilidade de a moderna fsica, comseu formalismo matemtico e experimentos tcnicos, poder um dia servir a uma com-preenso mais viva do mundo. O fsico chega mesmo a questionar se os elementos es-senciais, que nos permitem estabelecer as grandes conexes na natureza, no se ex-pressariam antes nas abstraes que se furtam nossa intuio imediata:

    mas devemos perguntar ento de onde sabemos, ou de onde sabe Goethe, que asconexes mais prprias e profundas possam ser to imediatamente visveis, queelas se mostrem to abertamente luz do dia? No poderia ser que exatamente

    aquilo que Goethe sente como a ordenao divina da manifestao da naturezaapenas se apresente a ns, em sua plena clareza, nas abstraes mais elevadas?No poderia a moderna cincia da natureza dar respostas que possam resistir atodas as exigncia valorativas de Goethe? (Heisenberg, 1971, p. 255).

    Heisenberg compara o crescente formalismo pelo qual a fsica moderna traduz anatureza com a ascenso ao cimo de uma montanha. Assim como um montanhista, queaps atravessar regies inspitas onde a vida se torna escassa e o ar rarefeito, pode

    vislumbrar a amplitude dos vales e das paisagens abaixo de si, tambm o cientista po-

    deria ter a esperana de observar, do alto de suas idealizaes, a unidade viva e coesado mundo.Como no sabemos a qual distncia estamos do cume, ou se ao menos existe um

    cume, a discusso entre Goethe e Newton se torna to mais atual quanto mais abstratonosso saber cientfico e maior nossa dominao tcnica da natureza.

    Alexa nd re de Oliveira FerreiraDepartamento de Filosofia,

    Universidade Federal de So Paulo, Brasil.

    [email protected]

    Heisenberg and the doctrine of colors of Goethe and Newton

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    This paper aims at exposing the Heisenbergs conference The teachings of Goetheand Newton on colors in the light of modern physics, presented in 1941, whose trans-lation is presented here. In the first place the paper analyzes the philosophical projectof an ordination of the reality, developed by the physicist in the early 1940s and whichis the basis for the discussion of the Teachings of Goethe and Newton on colors. Sec-ondly it exposes some philosophical implications of the quantum theory by emphasiz-ing the point of view of the Copenhagen school. Finally, it shows how the dispute be-tween Goethe and Newton is exploited to defend the abstractions of the theoreticalphysics against the attacks of the so called German physicists and, at the same time,to preserve the worth of the Goethes intuitive analysis.

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