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8/19/2019 Herberto Sales
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HERBERTO SALES
PERFIL DO ACADÊMICOQuarto ocupante da Cadeira 3, eleito em 6 de abril de 1971, na sucessão de Aníbal
Freire da Fonseca e recebido pelo Acadêmico Marques Rebelo em 21 de setembro de1971. Recebeu o Acadêmico José Cândido de Carvalho.
Cadeira:
3
Posição:
4
Antecedido por:
Aníbal Freire
Sucedido por:
Carlos Heitor Cony
Data de nascimento:
21 de setembro de 1917
Naturalidade:
Andaraí - BA
Brasil
Data de eleição:
6 de abril de 1971
Data de posse:
21 de setembro de 1971
Acadêmico que o recebeu:
Marques Rebelo
Data de falecimento:13 de agosto de 1999
BIOGRAFIA
Herberto Sales (H. de Azevedo S.), jornalista, contista, romancista e memorialista, nasceuem Andaraí, BA, em 21 de setembro de 1917. Faleceu no dia 13 de agosto de 1999, no
Rio de Janeiro.
http://www.academia.org.br/academicos/anibal-freirehttp://www.academia.org.br/academicos/carlos-heitor-conyhttp://www.academia.org.br/academicos/marques-rebelohttp://www.academia.org.br/academicos/carlos-heitor-conyhttp://www.academia.org.br/academicos/marques-rebelohttp://www.academia.org.br/academicos/anibal-freire
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Filho de Heráclito Sousa Sales e Aurora de Azevedo Sales. Fez o curso primário em suacidade natal, e o curso ginasial (abandonado no 5º ano) em Salvador, no colégio AntonioVieira, dos jesuítas. O professor Agenor Almeida descobriu-lhe, numa prova, a vocação
literária, chamando para isso a atenção do padre Cabral, que por sua vez foi o descobridor,alguns anos antes, no mesmo colégio, da vocação literária de Jorge Amado. Abandonados
os estudos, voltou para Andaraí, onde viveu até 1948. Com a publicação, em 1944,deCascalho, seu romance de estreia, projetou de impacto o seu nome nos meios literários
do país. No Rio de Janeiro, para onde então se transferiu e residiu até 1974, foi jornalistamilitante, com atividade nos “Diários Associados”, de Assis Chateaubriand, na área darevista O Cruzeiro da qual foi assistente de Redação, na melhor fase desse famoso órgãoda imprensa brasileira. Exerceu o cargo de diretor de outras unidades da mesma empresa,inclusive de sua editora de livros. Em 1974 mudou-se para Brasília, onde foi por dez anosdiretor do Instituto Nacional do Livro, e, por um ano, assessor da Presidência daRepública, sob José Sarney. A partir de 1986, por quatro anos, residiu em Paris, servindocomo adido cultural à Embaixada brasileira. Regressando ao Brasil, fixou residência emSão Pedro da Aldeia, onde levou vida isolada, de autoexílio, o que deu motivo a serchamado, em artigo de Josué Montello, “O Solitário de São Pedro da Aldeia”. Foi casado
com Maria Juraci Xavier Chamusca Sales e com ela teve três filhos: Heloísa, Heitor eHerberto.
BIBLIOGRAFIA
Cascalho, romance (1944);
Além dos marimbus, romance (1961);
Dados biográficos do finado Marcelino, romance (1965);
Histórias ordinárias, contos (1966);
O sobradinho dos pardais, infanto-juvenil (1969);
O lobisomem e outros contos folclóricos, contos (1970);
Uma telha de menos, contos (1970);
O Japão: experiências e observações de uma viagem, notas de viagem (1971);
A feiticeira da salina, infanto-juvenil (1974);
A vaquinha sabida, infanto-juvenil (1974);
O homenzinho dos patos, infanto-juvenil (1975);
Armado cavaleiro o audaz motoqueiro, contos (1980);
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Einstein, o minigênio, romance (1983);
Os pareceres do tempo, romance (1984);
O menino perdido, infanto-juvenil (1984);
A volta dos pardais do sobradinho, infanto-juvenil (1985);
A porta de chifre, romance (1986);
SubsiDiário, memórias (1988);
Na relva da tua lembrança, memórias (1988);
Andanças por umas lembranças (Subsidiário 2), memórias (1990);
O urso caçador, infanto-juvenil (1991);
Eu de mim com cada um de mim (Subsidiário 3), memórias (1992);
Rio dos morcegos, romance (1993);
As boas más companhias, romance (1995);
Rebanho do ódio, romance (1995);
A prostituta, romance (1996).
TEXTOS ESCOLHIDOS
A MORTE NA GRUNA
Começaram a entrar na gruna.
Um bafo de umidade retida os envolve. Filó vai na frente, seguido de perto por JoaquimBoca-de-Virgem e Neo. Seguram a candeia com uma das mãos, e com a outra amparam o
corpo para não rolarem pelo lajedo. Agora já é preciso curvarem a cabeça, porque a grunase torna cada vez mais baixa. Filó é o rompedor. Sua candeia alumia o caminho difícil.
Dela se desprende uma fumaça densa, o cheiro do azeite se misturando ao do limo quecobre as pedras. O ar se faz mais pesado, como que palpável. Entre o teto e o chão há
apenas uma fenda, como se o caminho tivesse terminado ali. Mas é necessário avançarmais - e Filó avança, agachando-se, a princípio, para logo se estirar de comprido sobre alaje. Se aparecer de súbito uma cobra, uma cabeça-de-patrona ou uma jaracuçu, cuja
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picada "quando não mata, aleija", ele fará o que todo gruneiro tem obrigação de fazer - desaber fazer. Procurará encandear os olhos da cobra com a luz da candeia, até poder pegá-la pela cabeça com mão firme, esmagando-a contra a pedra. Não há outra saída. Atrás
dele, também de rastos, vêm os demais companheiros, com o rosto a um palmo dedistância da planta dos pés uns dos outros, formando a fieira por meio da qual se farão
chegar os sacos de cascalho à boca da gruna. Os sacos são de algodãozinho, e depequenas dimensões, porque de outro modo não seria possível movimentarem-se com
eles ali. No serviço de gruna, o garimpeiro é obrigado a abolir o carumbé comumenteusado para o transporte de cascalho. Filó sabe que, se não pode recuar, em virtude deestarem atrás dele os outros, também não lhe é possível avançar com rapidez: seu peito esuas costas se roçam nas pedras. Vai empurrando a trouxa de sacos e os frincheiros, ecalcula já ter avançado uns trinta metros pela gruna adentro. É noite, mas ainda que fossedia a escuridão da gruna seria a mesma: é qualquer coisa sempre igual, como aeternidade. Lá fora, o velho Justino deve estar aguardando com ansiedade a chegada dossacos. Ignora o que se passa dentro da gruna, quando muito imagina que os garimpeirospossivelmente estão perto do cascalho - isso lhe interessa bastante. Dos gruneiros só teránotícias quando os sacos começarem a chegar lá fora, como cartas. De repente, um bafo
mais acentuado de umidade entra pelas narinas de Filó. Ele se arrasta mais um pouco, e,finalmente, consegue ficar de cócoras. Nesta posição, movimenta-se com dificuldade
durante alguns minutos, esgueirando-se através de uma passagem cheia de obstáculos,até que, por fim, se ergue.
Chegou ao salão - espécie de coração da gruna, vão úmido e tresandando a lodo, em cujointerior há um montículo de cascalho recolhido das frinchas. Filó começa a encher o
primeiro saco, quando a cabeça de Joaquim emerge do fundo do lapeiro que dá acesso aolocal onde se realiza a extração do cascalho. Pela primeira vez se falam.
- Está vendo que frio danado? - disse Filó.
Encontram-se como que encurralados no âmago da gruna - seres insignificantes ao lado
das grandes rochas úmidas e escuras, sobre as quais veem projetadas suas própriassombras. Joaquim põe a candeia no chão:
- Frio é o menos. O pior é que carbonato continua sem preço.
E acrescenta:
- Neco me disse. Se a gente pegar algum - e suspendeu o saco que o outro enchera - ovelho Justino me disse que vai guardar até o preço subir. Não estou gostando nada disso.
- Na minha opinião - observou Filó - se a gente pegar algum, Deus nos livre e guarde, agente deve vender por qualquer preço. Em último caso, até trocar por comida.
E começando a encher outro saco:
- O coronel, se quiser, que espere a alta: nós não podemos esperar coisa nenhuma.
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De novo o silêncio recai. Agora só se ouve o ruído do frincheiro tirando cascalho: é comoalgo que estivesse arranhando o interior de uma sepultura. A terra escura e úmida vaisendo reunida com o auxílio da mão, e, por fim, é colocada dentro do outro saco. Em
alguma parte, há um ruído incessante de água pingando. O novo saco é passado aJoaquim, que se encaminha para a boca do lapeiro e o entrega a Neco. Filó continua a
esgravatar as frinchas. Já está quase no fim, mas o velho Justino quer que a piçarra fiquetotalmente limpa, pois onde há qualquer restinho de cascalho há a probabilidade de se
achar o diamante - não se deve facilitar. Vai-se mais um saco, e volta-se a ouvir o ruído dofrincheiro - insistente e enervante arranhar. Joaquim pensa que, se a gruna fosse maisespaçosa, não era preciso tanto trabalho: lavariam o cascalho ali mesmo. De repente, obafo de umidade se torna mais acentuado, ao mesmo tempo que os dois homens escutamo rumor de qualquer coisa que começa a correr. Entreolham-se espantados, e Filócompreende num relance: foi a chuva que desabou lá fora. Tão rápido como o seupensamento, o fio da minação desliza por entre as pedras e, à luz das candeias, torna-seuma realidade a presença ameaçadora da água.
- Corre, Joaquim! - grita Filó: sabe que, nesse momento, isso é tudo que temverdadeiramente para fazer.
O outro parece vacilar - não era essa a espécie de morte que imaginara ter. O rumor daágua continua a crescer dentro da gruna - fio de água transformando-se em enxurrada.Filó grita de novo:
- Corre, diabo!
E com íntima impaciência:
- Corre, que é vem água!
Os sacos e os frincheiros são abandonados, e os dois homens se metem pelo lapeiroadentro - Filó com a candeia na mão e Joaquim na frente, repetindo o grito de alarma. Aságuas, correndo atrás deles, arrastam consigo o resto do cascalho. Através da fumaça dacandeia, Filó enxerga os pés do companheiro. Joaquim pensa em Rita Pandeiro, e imagina
que não mais se encontrará com ela. Ela vai saber de sua morte pela boca dos outros.
Joaquim vê a morte diante dos olhos, e lembra-se de outros garimpeiros que, indo àprocura de cascalho dentro das grunas, de lá foram retirados como postas de carne.Nunca mais verá Rita. Vai morrer, Sinhá do Ouro encomendará a alma dele no velório. A
última vez que esteve com Rita foi na semana passada; procura reconstituir o que ela lhedisse antes de sair para o rio, com a gamela de pratos na cabeça. Tudo agora vai terminar,porque a água continua a avolumar-se; mas, de certo modo, sente-se contente por se terdesviado de um bico de pedra - não chegara realmente a acreditar que pudesse passarpor ali. Neco vai na frente. A enxurrada se arremete no seu encalço. Para espanto seu, atéagora não encontrou nenhum dos companheiros que formavam a fieira para a passagemdo saco: era como se alguém houvesse determinado que, a partir daquele instante, só ele,
Joaquim e Filó deviam ficar dentro da gruna.
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Sente-se apanhado irrevogavelmente na armadilha: ia morrer como um bicho - sem velanem sentinela - e esse pormenor lhe causava uma espécie de decepção. Por mal dospecados, sua candeia apagara-se: mais pelo instinto que por outra coisa, avançava através
da escuridão do lapeiro. Evidentemente, os outros gruneiros tinham fugido com muitarapidez ao ser dado o alarma, pois, do contrário, também estariam lutando ali para não
morrer: isso lhe parecia de certo modo injusto. Enterra os pés na areia, para dar impulsoao corpo. Tem vontade de gritar, mas não o faz, por considerar essa ideia totalmente inútil:
no bojo da gruna outra coisa não se ouve que não seja o rumor da água. Nesse momento,Filó sente que algo mole flutua ao seu lado, e imagina logo que só pode ser um dos sacosque abandonou na fuga. O mesmo saco, encharcado de areia e água, já esteve antescolado ao seu calcanhar, mas ele atirou-o para longe com um arremesso da perna: dava-lhe a desagradável impressão de uma cataplasma. Vai avançando sempre, com a candeiana mão - mas, de súbito, nota que Joaquim se acha imobilizado à sua frente, atravancandoo caminho. Num relance, compreende que o companheiro está enganchado.Naturalmente, a areia trazida pela enxurrada obstruiu a passagem. Se Neco conseguiuatravessar, era devido ao fato de ser mais magro do que Joaquim. Este sente sob o peito oatrito da areia, e nas costas a pressão do teto da gruna. A muito custo, consegue manter o
nariz fora da água, lutando para não morrer asfixiado; é debalde, porém, o esforço que fazpara se libertar da terrível prisão: não pode avançar nem recuar. Imediatamente, Filó lança
mão do único recurso para o caso: leva ao calcanhar do companheiro a chama da candeiafumegante - e o pé deste se contrai, tisnado, enquanto se espalha na gruna um cheiro de
carne queimada. Uma dor extremamente aguda percorre o corpo de Joaquim. Ele deixaescapar um grito, e em vão se debate entre as pedras, como um rato na ratoeira. Jáesperava que o outro lhe aplicasse o conhecido expediente. Por esse motivo, Filó insiste, e
queima repetidamente o mesmo calcanhar, uma, duas, três vezes. Por fim, soltando umberro, Joaquim dá um arranco e consegue livrar-se: traz a frente e as costas da camisa emtrapos. Sem perda de tempo, Filó se estira todo e precipita-se no rumo do companheiro.Sabe que, se lhe acontecer o mesmo, estará irremediavelmente perdido - é o último dostrês, não há ninguém para o socorrer como ele fez a Joaquim. A essa ideia, lembra-se de
que é mais magro, e isso lhe parece uma vantagem extraordinária. Vai rastejandoapressadamente, mantendo a candeia tanto quanto possível acima da água. Mas logo uma
sensação de cãibra se lhe apodera do braço e, antes que ele possa mudar a candeia paraa outra mão, a enxurrada se avoluma e ele é obrigado a abandoná-la, a fim de manter o
corpo soerguido. Conseguiu transpor o lugar do enganchamento, mas agora se encontra
no escuro, tendo a candeia desaparecido para sempre na enxurrada. Filó já não acreditana possibilidade de salvamento. Deixa-se arrastar pela água, e por ela unicamente seorienta. No meio da escuridão, como poderá localizar o esbirro que sustenta o emburrado?O emburrado terá desabado? A saída estará obstruída? Que tolice ter acreditado que erabastante forte para vencer todos os obstáculos! Tenta em vão erguer-se, e a água já oimpede de respirar. O rumor cresce aos seus ouvidos - a água batendo de encontro aoteto, saltando como uma coisa viva, acometendo por dentro da escuridão. Talvez que, nofim de contas, ele nada mais fosse do que um estorvo à passagem da água. Que horaspoderiam ser? Oito... dez... Talvez oito... De repente, pareceu-lhe que nada tinha já que ver
com o que pudesse ocorrer ali. Houve então um baque, um estrebuchamento, e a água,
por fim, encheu totalmente a gruna.
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Era de manhã, e a luz de um novo dia se derramava sobre a serra, quando retiraram ocorpo de dentro da areia. Colocaram-no em uma rede e levaram-no para a cidade. Maisuma vez, o velho Justino ia à procura do coronel para lhe dar notícias do garimpo: morrera
apenas um homem. Acima do córrego, guarnecido por um corte de pedras secas, elevava-se contra a claridade do céu um monte de terra escura. Era o paiol de cascalho.
(Cascalho, 1944.)
A MORTE DE MARCELINO
Quando, revolvendo as gavetas de velhas cômodas, e os baús e as arcas de guardados da
minha família, acumulados com o tempo no depósito do sobrado, comecei a recolher, emAndaraí, muitos anos depois da morte de tio Marcelino, aquele esparso material evocativoda sua vida, a ressurgir do desbotado antigo e grave de fotografias, álbuns, cartas, e dospostais enviados do estrangeiro à minha mãe - considerei, nas boas lembrançassuscitadas por aquelas relíquias de intimidade familiar, o sombrio contraste daqueles anosde solidão no palacete, culminados num episódio tão dramático para todos nós. Sim:nunca hei de me esquecer. Estava em aula, absorvido nos meus apontamentos, quando oProfessor Costa Pereira irrompeu na sala, transtornado, e me pediu que o acompanhassesem me deixar sequer recolher os livros e os cadernos:
- Deixe isso aí; depois você apanha. Vamos!
No corredor, andando apressado à minha frente, deixou escapar, nervoso, esta brevefrase:
- Seu tio sofreu um acidente.
Quase a correr, transpôs o portão do colégio, e ganhou a rua, sem chapéu, o paletó a
descair-lhe dos ombros, desabotoado, e rumou para a Avenida Bastos, que ficava perto.Eu me esforçava por emparelhar-me com ele, ao longo da calçada, sem o conseguir; no
meu aturdimento, estranhava que o bom Costa Pereira, homem de morosidades e de
estudo, perdido nos seus vagares, se agitasse tanto, naquele ímpeto inusitado. Hoje,compreendo os motivos da sua grande pressa, determinada por uma aflição de espíritoque, naquela época, certamente escapava à minha percepção de menino. Ao chegarmosao palacete, havia alguns curiosos estacionados no passeio; uma ambulância se afastava,branca e veloz. Não era, como as atuais, provida de sirene. Fazia soar uma estridentecampainha, a pedir passagem, num alarido de urgência e desespero, amortecido aospoucos na distância, entre o rumor dos bondes, no fim da rua. Ainda com aquele agoniadotoque a vibrar nos ouvidos, atravessamos o jardim; e, ao aproximarmo-nos da varanda,senti no ar, como a desprender-se das palmeiras, um cheiro abafado de fumaça. Curioso,
lancei os olhos ao recanto onde meu tio habitualmente se entregava ao trato dos seus
adubos, na ideia de encontrá-lo ali. O que vi, entretanto, foram uns estranhos sinais dedesordem - terra espalhada no chão, vasos quebrados, e em meio àquilo uma peneira
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chamuscada. Sem dúvida, lavrara no local um começo de incêndio, de que havia vestígiosmais evidentes nuns sacos de aniagem enegrecidos pelo fogo. Devia ter sido apagadocom a mangueira da rega, a esguichar ainda um fio de água nos ladrilhos, enquanto o
velho Alfredo fechava precipitadamente a torneira. Não me foi difícil então localizar ocheiro: todo aquele trecho da varanda cheirava a queimado. E, como primeiro indício de
que algo muito mais grave ocorrera no palacete, a cozinheira, trêmula, a um canto,enxugava com o avental os olhos marejados de lágrimas. Um indício mais claro surgiria
logo depois: fomos encontrar tia Edite na sala, derreada numa cadeira, chorando, e oVilela a seu lado, muito pálido, a dar-lhe a beber num copo um calmante. Ia pela casa umadesolação. Havia como um vazio, a indicar, naquela atmosfera pesada, de reposteiros ecandelabros, a mudança, o fim de alguma coisa imponderável. Erguendo os braços, nasua aflição, Costa Pereira correu para Vilela:
- Acabo de ser avisado do acidente. Mas que houve?
E Vilela, inda com o copo de remédio na mão:
- Uma desgraça! Uma desgraça! A ambulância acaba de levar Marcelino para o hospital.
Vamos para lá agora mesmo.
Numa confusão, com tia Edite chorando inconsolavelmente, saímos todos, sem outrocuidado senão o de ficarmos perto de meu tio. A guarda do palacete foi entregue ao velhoAlfredo, empregado de inteira confiança. E logo ele se pôs a fechar as portas e as janelas,
num ruído cavo de ferrolhos, que nos acompanhou pelo jardim, até apanharmos, no
portão, um automóvel que passava. Impossível recompor, embora com auxílio dasinformações por mim recolhidas muitos anos mais tarde, o que se passou durante o trajeto.Dele guardo a impressão de um fundo silêncio, a manter-nos todos presos aos soluços de
tia Edite, enquanto o carro rodava em direção ao Hospital Português, na Barra. Lá já seencontravam, quando chegamos, João Félix, Pessanha e Lemos, reunidos num pequenogrupo silencioso, em frente à porta de um quarto. Médicos e enfermeiras, em seusaventais brancos, transitavam apressadamente no corredor. À aproximação de tia Edite,amparada por Vilela e Costa Pereira, houve uma certa agitação. Os outros movimentaram-se, cercando-a de cuidados, e, com a ajuda de uma enfermeira, levaram-na para uma salapróxima, onde a fizeram sentar-se num sofá. E enquanto a afastavam, na precipitação
daquele ajuntamento, vi, por um instante, abrir-se a porta do quarto, para dar passagem aum médico. Foi tudo muito rápido. Mas bastou para que eu recolhesse, perplexo, numaonda inebriante de éter, a visão de um corpo enfaixado da gaze e ataduras, estendido
sobre uma mesa esmaltada de branco. Era meu tio que ali estava. A porta fechou-se logo.Gravou-se-me nos olhos, porém, e agora é como se eu a revisse, associada a uma ideia
de sofrimento físico, a cena surpreendida no entremostrar daquele interior asséptico eneutro, fixado numa sinistra imagem de pensos, ferros e aventais. Reunidos na sala, nãosei por quanto tempo ali permanecemos. Os amigos de meu tio conversavam em vozbaixa: de vez em quando, algum deles ia até o corredor, num passo vagaroso e leve. Aovoltar, os outros o rodeavam, como a pedir notícias, na ansiedade da longa expectativa.
Havia, não raro, grandes silêncios entre eles, interrompendo aquele grave cochichar deespera e apreensão. Desdobravam-se nas atenções dispensadas a tia Edite,
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principalmente Vilela, que se mantinha a seu lado, zeloso de ajudá-la a recompor-se de tãoforte abalo. Dizia-lhe uma palavra de conforto, ora tomava-lhe o pulso, ora punha-lhe amão nas têmporas. Ela continuava a chorar, o rosto afundado num lenço. Lembro-me de
uma enfermeira aplicando-lhe uma injeção. E, por mais de uma vez, vieram servir-noscafé, tomado em silêncio por todo o grupo, mal se ouvindo então o raspar das xícaras nos
pires. Fiquei a um canto, aturdido com o que se passava, e a espaços ia à janela, embusca de uma distração. Punha-me a ver, lá fora, as árvores, a rua, e mais além o farol,
numa elevação, recortando contra o céu a grande torre erguida diante do mar. De repente,surgiu, de avental, Dr. Freire. Médico particular de meu tio, acompanhara todos os socorrosque lhe foram prestados no hospital, depois do acidente. E tudo se precipitou. Todoscorreram atarantados para o quarto, ficando na sala, apenas, eu e tia Edite, e o Dr. Freire,que a amparava no ombro, a consolá-la, mas chorando tanto quanto ela. Trouxera ele apior notícia que se poderia esperar: meu tio acabara de falecer. Transcorridos uns minutosangustiados, o grupo voltou a reunir-se na sala. E recordo-me que, na impressão daqueladespedida fúnebre, todos sofriam, num pranto silencioso, a perda do grande amigo. Emmeio à confusão reinante, sob os efeitos daquele golpe que se abatera sobre eles, retive alembrança de João Félix, de pé, ao lado da janela, as costas voltadas para a sala, como
fitando lá fora um ponto invisível, a levar de quando em quando o lenço aos olhos.Somente eu, muito menino ainda para me capacitar do horror daquele transe, somente eu,
que nunca vira morrer ninguém, e nada sabia do significado da morte, somente eu nãochorava. Dir-se-ia que eu apenas estranhasse o fato de uma pessoa poder deixar de viver.
Mas as lágrimas que então me faltaram vêm-me agora, não aos olhos, mas ao coração,cristalizadas numa dor sincera, ao lembrar como tio Marcelino, entre as palmeiras que lhealegraram tanto a vida, foi encontrar tão tragicamente a morte.
(Dados biográficos do finado Marcelino, 1965.)