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José Isidio da Silva
Heróis Desconhecidos
Esta é uma obra de ficção. Os personagens, nomes, lugares e acontecimentos
descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com
nomes e acontecimentos reais é mera coincidência.
Primeira Edição
São Paulo
2014
3
Apresentação
Quem são esses heróis desconhecidos?
São todos os que sofrem injustiças, quer infligida quer por omissão
daqueles que detêm o poder de equilibrar a balança, não deixando que
pese mais, ou menos, em detrimento dos menos favorecidos. São
todos os que, durante a vida toda, suportam a dor da perda sem
encontrar voz que lhe sirva de bálsamo, sem uma resposta de por quê;
são os inumeráveis sobreviventes da maldade humana, anônimos,
porque passam despercebidos mesmo sendo heróis em suas lutas e
vitórias.
Heróis Desconhecidos é dedicado a todos os que já viveram – por
experiência própria ou por conhecimento – a angústia de ver o mal
prevalecer, e o sentimento de impotência diante das injustiças.
Àqueles que lutam em desvantagem, com o poder e as armas que lhes
são disponíveis.
É uma ficção com personagens e fatos da vida real e, por isso, não são
perfeitos. Amor, ódio e desejo de vingança são sentimentos
encontrados entre eles.
O autor.
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Prólogo
O HOMEM de preto, com o chapéu de abas caídas, esgueira-se pelos
becos e ruas mais escuras e menos movimentadas. Anda com passos
largos, apressado. Sai da cidade. Toma uma estrada. Logo depois,
olhando para trás, abandona-a e entra por um caminho. É mais seguro
e encurta a distância. Noite escura. E naquele caminho tudo parece
mais escuro e aterrorizante. Está pálido. É a sua primeira vez. Sempre
tem uma primeira vez... Tem que ir sozinho. Não pode confiar em
ninguém... Sem testemunhas... Avista a casa. Olha ao redor. Não há
ninguém por perto. Aproxima-se mais. Uma luz fraca, vindo de
dentro, atravessa as frestas da janela. Abre o portãozinho que dá
acesso ao jardim e entra. A porta está logo à sua frente. Hesita um
pouco... Tem que ir em frente, e acabar de uma vez... Tira a arma da
cintura e a coloca no bolso. Bate na porta. O jovem casal, dentro de
casa, troca olhares de surpresa. O esposo vai abrir a porta, enquanto
ela fica parada, atrás dele, com o coração batendo acelerado. O
homem de preto entra mesmo antes de ser convidado. Tira a arma do
bolso e aponta.
-- Falou pra mais alguém, além do delegado, sobre o que viu? –
pergunta, apontando o revólver.
-- Não, não falei a ninguém... – recua, colocando-se na frente da
esposa, protegendo-a com os braços abertos.
-- Ótimo!
E dispara dois tiros certeiros.
A esposa, horrorizada, grita e debruça-se sobre o marido,
tentando socorrê-lo, mas ele já está morto. Ergue a cabeça e mal
consegue ver o inimigo em pé à sua frente, porque as lágrimas
inundam os olhos e o rosto. Recebe um tiro no peito e outro no
pescoço, e cai também sem vida sobre o corpo do marido.
O assassino ainda continua em pé no mesmo lugar, por alguns
instantes, observando. Vê o menino debaixo da mesa, com os olhos
parados, fixos nele. Já ia colocar a arma na cintura. Pensa um pouco,
olhando para o garoto, e decide. Aponta e aperta o gatilho: uma... duas
vezes...
Pela manhã, ainda escuro, o delegado acompanhado de mais
dois policiais batem à porta de Simeão. Este abre, sem saber de quem
se trata, e é empurrado bruscamente para dentro pelos policiais que
entram e o seguram com violência.
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-- Você está preso – anuncia o delegado.
-- Preso? O quê eu fiz? – pergunta Simeão, demonstrando-se
surpreso.
-- Você está preso por assassinato – diz o delegado enquanto
procura na gaveta da cômoda. Encontra o revólver e sorri.
-- Assassinato?!
-- De quem é esta arma? – pergunta o delegado, mostrando o
revólver.
-- É minha, mas...
-- Os projéteis foram deflagrados – abre o tambor e mostra. –
Você está preso!
7
Primeira parte
1
1954 (São Francisco, Pernambuco)
OS QUATRO garotos caíram na água e com braçadas rápidas
nadaram rumo à pedra. Um deles, por ser mais vigoroso, chegou
primeiro, alcançando a pedra pela parte de cima. Os outros pegaram o
remanso e subiram, sem mais esforço. Ficaram ali alguns momentos,
enquanto descansavam um pouco, tagarelando. O que havia chegado
primeiro, no entanto, se mantinha sempre calado. Sentado sobre a
pedra, no meio do rio, era como um rei no seu trono. Dali
contemplava a margem, e pessoas que não sabiam nadar não podiam
chegar até onde ele estava. Mulheres lavavam roupa, outras
carregavam água. Mais embaixo, pescadores. Daquela posição muita
coisa se podia ver. Que garoto de nove anos não sentia orgulho e uma
sensação de poder e liberdade em estar ali? Era a primeira e grande
vitória dos pequenos nadadores, alcançarem a pedra. O próximo
desafio era o serrote – pequena ilha pedregosa, com alguns arbustos,
três ou quatro vezes mais distante do que a pedra. Os nadadores
veteranos venciam a distância em poucos minutos, e quase sem se
cansarem. Mas para os iniciantes era necessário fazer o “estágio”,
parando um pouco ali, onde estavam os meninos, para depois tentarem
a parte mais difícil, que era a água corrente mais forte e maior
distância. Muitos chegavam até aquele ponto com intenção de
continuar, mas quando sentiam a força da água e a distância a vencer,
ficavam com medo, e depois de descansarem um pouco, dali mesmo
voltavam. Quando era a primeira vez que enfrentavam a fúria da
correnteza para alcançar o serrote, sempre iam em grupo. Nunca
alguém ia sozinho fazer a primeira experiência. Em grupo uns
encorajavam os outros e todos se tornavam afoitos. Sozinho ninguém
tinha coragem. Ou até então ninguém tinha tido.
Decorrido algum tempo, um dos garotos sugeriu:
-- Vamos voltar?
-- Vamos – responderam os outros dois.
Logo em seguida os três lançaram-se na água, iniciando o
retorno.
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O que tinha chegado ali primeiro ficou só. Contemplava os três
companheiros já chegando à beira do rio. Olhou para o serrote,
desafiador. Tinha alcançado a pedra pelo lado de cima. Não precisou
pegar o remanso. Sentia que não se esforçara muito para chegar até
ali. Agora lá estava o serrote, com suas pedras negras e lisas,
brilhantes ao sol. Para ele, um mistério. A correnteza a ser vencida e
aquela distância por ele ainda não enfrentada. Pensou. Olhou. Cerrou
os dentes e decidiu. Caiu na água, sentindo o coração bater mais forte
ao pensamento de que estava se submetendo àquela aventura, sozinho,
pela primeira vez. Percebeu que a água o arrastava com força, no
entanto não entrou em pânico. Em perfeito domínio de si mesmo,
prosseguiu. Seus braços de criança feriam a água com firmeza, mas
num ritmo não muito acelerado. Sem que ninguém lhe tivesse
ensinado, ele sabia que precisava poupar o fôlego o máximo possível.
Com os dedos bem unidos, as mãos espalmadas e os pés em
movimentos cadenciados, seu corpinho, quase todo submerso, era
impulsionado para frente. Estava na metade do caminho, no entanto
parecia que o serrote estava agora bem mais distante, e a correnteza
mais forte. Estava sendo arrastado muito velozmente pela água.
Forçou mais os braços e as pernas, que já doíam, mas sem
fraquejarem. Tinha que vencer a forte correnteza, antes que fosse
arrastado para além da água mansa que fica na parte inferior da ilhota.
Da beira do rio tinha visto muitas vezes essa travessia ser feita por
rapazes e meninos experientes. Conhecia a linha a ser seguida para
alcançar o objetivo. Mas de longe, observando os outros nadando,
parecia tudo bem mais fácil. Olhando à distância, a água também não
parecia ser tão forte. Mas agora ele estava ali, sozinho, enfrentando a
impetuosidade e a força da correnteza, que lhe resistia sem piedade.
Não podia fracassar. Aceitou o desafio e estava disposto a vencer. Era
apenas necessário não se deixar dominar pelo medo. E não estava com
medo. Sentiu um pouco no início, mas agora não. Agora estava
lutando, decidido a alcançar a vitória, e nessas circunstâncias não
havia lugar para medo. Enquanto ia assim, nadando, pensava no que
diriam os seus colegas quando soubessem. Sentiriam inveja. Conhecia
uma porção de meninos bem mais velhos do que ele que não eram
capazes de realizar esta proeza. Muitos nem sabiam nadar. Suas mães,
medrosas, não os deixavam vir tomar banho no rio. Não aprendendo a
nadar, não podiam fazer o que ele estava fazendo. Que orgulho sentia
disso! Estava, de certo modo, tirando desforra de alguns deles que
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tinham bicicletas novas, ou brinquedos que ele não podia possuir.
Com esses pensamentos, cerrou os dentes e fez uso de todas as suas
energias para vencer os últimos metros da correnteza. Agora via o
serrote bem próximo. Via-o majestoso, com suas enormes pedras
negras e lisas. Finalmente, estava chegando. A água capitulou,
tornando-se mansa de repente, e não mais o arrastava com força.
Quatro ou cinco braçadas mais e tocou as pedras. Saiu da água, e, do
alto do serrote, qual guerreiro vitorioso, olhou para a margem do rio,
de onde tinha vindo. As pessoas lá pareciam tão pequenas. Eram
gravetos andando, subindo e descendo o barranco. Ouviam-se alguns
sons da cidade, um alto-falante, uma buzina de automóvel. Voz
humana, só se fosse de alguma mãe estabanada chamando a gritos os
filhos, ou alguma criança chorando a plenos pulmões nas casas
próximas ao rio.
Ah! Que sensação estar ali! Que solidão agradável!
Deu uma volta pelo outro lado da ilhota, até então desconhecido
para ele. Explorou todos os recantos. Encontrou num deles uma areia
fina, macia, muito limpa. Deitou-se de costas e contemplou o céu azul,
sem nuvens. O céu azul, a água do rio esverdeada, ou quase azul
também; as pedras negras, a areia branca. Ali era outro mundo, onde
as cores e os sons da natureza lhes traziam ao tenro espírito
recordações distantes, imprecisas. Fechou os olhos numa quase
sonolência, e nesse estado de rápido torpor, mesmo com a claridade
do sol, pareceu ver, de frente, um rosto gordo, com vasto bigode, olhar
cruel e aquele sinal: a metade da sobrancelha esquerda toda branca.
Levantou-se de um salto, afugentou os fantasmas de sua mente,
respirou fundo o ar puro e fresco, e, pulando de pedra em pedra,
desceu ao pequeno estreito que dividia o serrote em duas partes.
Atravessou a nado, e fez também o reconhecimento daquela parte da
ilhota. Demorou-se mais um pouco, ora sentado nas pedras, ora a
andar de um lado para o outro desfrutando o quanto podia o prazer da
conquista. Satisfeito, enfim, resolveu iniciar o retorno.
Heróis Desconhecidos – José
Isidio
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2
-- MAX! Venha cá, lave aqui estas peças. Aqui, olhe, pegue esta bacia
com gasolina, lave estas peças e ponha em cima da bancada.
-- Néco! Pode dar uma olhada no meu carro?
Manoel virou-se para ver quem lhe falara.
-- Ah, é você, Quinca? Qual é o problema?
-- Está falhando. Parece que é entupimento no carburador.
-- Espere um pouco. Logo a gente vê isso.
Voltou-se para terminar o que estava fazendo.
-- Está bom, Max, agora segure um pouco aqui.
-- E o pequeno mecânico, aí?
-- É um cabra homem mesmo.
-- Tem jeito de homem valente!
-- E é! Trago-o para se ocupar um pouco aqui porque só quer
viver no rio. Desse tamanho e já nada que só peixe. E olhe aí, o
Toninho...
-- Por falar em peixe, me fez lembrar minha sogra...
-- Mas que lembrança, rapaz! Logo de sua sogra! Tenha
vergonha!
-- Não, quiá, quiá, quiá! Não é o que está pensando! É que ela,
na semana passada levou um peixe pra casa, e o danado estava tão
podre que a casa toda ficou fedendo! Quiá, quiá, quiá!
-- Por isso que eu notei uns urubus sobrevoando sua casa – disse
Manoel, caindo também na risada.
A brincadeira durou apenas poucos instantes.
-- Que hora você fecha a oficina, Néco?
-- Às seis.
-- Vou deixar o carro aí e volto mais tarde. Tenho uns negócios
pra resolver.
-- Passe antes das seis.
-- Tudo bem. Mas se eu não passar, não se preocupe. Pego o
carro amanhã cedo. Até logo.
-- Até.
Faltavam poucos minutos para a hora de fechar a oficina,
quando Manoel estacou, de súbito, dando um tapa com a mão
espalmada em sua testa.
-- Antonio, Max, vão para casa, tomem banho, arrumem-se e
fale para os outros também se arrumarem. Combinem para fazer tudo
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sem que Marina perceba. Precisamos fazer uma surpresa. Hoje é o dia
do aniversário dela. Vão! Logo estarei chegando. Tenho que ir
comprar um presente, antes que as lojas fechem.
Fechou a oficina e desceu a rua em passos rápidos, apressado,
resmungando consigo mesmo o seu esquecimento durante todo o dia.
Ainda bem que se lembrara antes de findar o dia. Sim, mas quase que
foi tarde demais. Mas ainda havia tempo para comprar o presente, e
Marina não precisava saber que ele tinha se lembrado na última hora.
Agora a grande dificuldade era: o quê comprar? Sempre achou difícil
escolher presente. Na última vez deu à mulher um jogo de panelas. No
momento ela havia se mostrado muito contente. O entusiasmo, no
entanto, diminuiu rapidamente logo que o presente passou para a
cozinha. Ele notara isso, mas não deixou de rir-se de sua esperteza em
comprar como presente algo que ele já sabia estar necessitando em
casa, e que era seu dever comprar qualquer dia. Agora não devia
repetir a malandragem. O quê comprar? Com essa dúvida, entrou na
primeira loja. Não era uma loja de artigos para presentes, e não viu
nas prateleiras nada que pudesse interessar. Não podendo pedir nada,
nem desejando solicitar uma sugestão, sentiu-se embaraçado ante o
interesse da moça em atendê-lo. Resmungou qualquer coisa e saiu à
procura de outra casa.
-- Às suas ordens...
Sem dizer nada, olhou rapidamente para os artigos nas
prateleiras e tabuleiros. Como já havia sido comerciante, dono de
mercearia, tinha experiência em verificar, num lance de olhos, o que
faltava numa loja. E desta vez, para não sair dali como quem não sabe
o que quer, pediu o que ele sabia que não tinha.
-- Soda cáustica?...
-- Está em falta – respondeu o rapaz, depois de verificar por
alguns momentos – talvez o senhor encontre na mercearia da esquina,
mas a esta hora já deve estar fechando.
Ora, não estou interessado em sua informação, nem em droga
de soda cáustica –, dizia Manoel para si mesmo, regozijando-se ao
mesmo tempo por ter enganado o balconista. E quase deu uma risada
alta ao pensamento de estar procurando o presente para a mulher e
pedir soda cáustica. O que diria Marina se soubesse? Quase não
reprimia o riso interior. Cessou o desejo de rir quando se lembrou de
que o tempo estava passando rapidamente, e poderia perder a
oportunidade de comprar o presente. Entrou em outra loja.
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-- Já estamos fechando, moço, mas diga o que deseja – disse a
dona um tanto indiferente.
-- Aquele broche ali, aquele espelhinho, aquela caixa de pó,
aquele pente e um lenço daqueles – falou numa decisão rápida e
espontânea, deixando, por um instante, a dona da loja atônita. Sentiu
prazer por ter feito a mulher se embaraçar por um momento. A
mulher, logo se refazendo, passou a atendê-lo com toda gentileza.
-- Faça um pacote só, em papel de presente.
-- Sim, senhor.
Depois de pagar, saiu satisfeito em direção a casa. Estava
aliviado agora. Tinha, finalmente, se desincumbido de uma grande
tarefa.
Em casa, encontrou as crianças prontas, numa agitação quase
silenciosa. Entravam e saiam do quarto, de onde pretendiam preparar a
surpresa.
-- Onde está ela? – perguntou Manoel.
-- Saiu para o quintal.
-- Ela desconfiou?
-- Acho que não. A gente se arrumou escondido, sem fazer
barulho.
-- Mas parece que ela viu Claudia colhendo uma rosa no jardim.
-- Não, ela não viu! Olhe, até furei o dedo num espinho e nem
gritei!
-- Luisinha ficou só pedindo uma roupa pra vestir...
-- Mas Luisinha é pequenininha, e você que pediu pra ela
pentear o seu cabelo?
Manoel olhava para um e outro enquanto falavam.
-- Calma! Calma! Agora vocês estão fazendo barulho. Já percebi
que ela não “desconfiou” de nada – falou com humor e ironia,
enquanto virava os olhos para cima. – Então, temos uma rosa? Ótimo,
Claudia, você teve uma boa idéia. Eu não teria pensado nisso. Você
mesmo entrega a rosa...
-- Não, pai, fica melhor a Luisinha entregar, porque ela é a mais
pequena!
-- Está bem, vamos ficar todos aqui, ao lado da porta, e Luisinha
chama pela mãe. Quando ela chegar, todos juntos gritamos parabéns!
-- O que tem nesse pacote?
-- Depois você vê. Chama, Luisinha.
-- Mainha! Mainha!
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Quando Marina se aproximou da porta do quarto, todos juntos
apareceram e começaram a cantar os “parabéns pra você”.
A algazarra foi maior do que a surpresa que pensavam fazer, e
Marina fez o jogo direitinho até ao final, para não decepciona-los.
Passada a euforia daqueles rápidos momentos, tudo voltou ao
normal, como se não fosse dia de aniversário, e como se nenhuma
comemoração tivesse sido feita. Após o jantar – pão com manteiga,
café e leite – todos procuraram uma direção, ou ocupação, conforme
suas disposições de fazerem ou não alguma coisa. O casal, sentado no
sofá gasto pelo uso, descansava e cochilava, não tendo o que
conversar. Desde que se casaram, esgotaram-se os assuntos
empolgantes. Em todo casamento, quando se realiza, finaliza-se um
romance, acaba-se uma ilusão, inicia-se a vida real. Agora era
trabalhar, procurar sempre melhores condições, prosperidade, e encher
a casa de filhos. Isso Manoel conseguiu. Encheu a casa de filhos.
Prosperidade também havia conseguido, mas o revés da vida o
arrastou para a estaca zero; menos a disposição de trabalhar e viver.
Não achava penoso recomeçar. Tinha recomeçado. Estava agora bem
estabelecido com sua oficina. Não era grande coisa, mas nunca se
incomodava com grande ou pequena coisa. Nunca se importava com
sucesso ou insucesso. Quando precisava, recomeçava. Marina era da
mesma índole. Acompanhava o marido nos altos e baixos, não se
sentindo, em nenhumas circunstâncias, orgulhosa ou humilhada.
Talvez por sua extraordinária capacidade de permanecer incólume
ante os açoites da adversidade, pôde conservar, mesmo sem o saber,
ou fazer qualquer coisa propositalmente para isso, a beleza e o frescor
da juventude. Não sentia abalo psicológico ou físico quando as coisas
não iam bem. Tivera muitos filhos. Ali estavam todos eles. Antonio, o
primeiro, era também o mais promissor. Inteligente, muito interessado
nos estudos, submisso aos pais e aos professores, conquistava a
simpatia e a benevolência de todos. Contava agora quinze anos. Ana
Paula, a segunda na ordem dos filhos, parecia-se com a mãe. Morena
clara, cabelos lisos e negros, olhos meigos e quietos. Nunca se
irritava. Era muitas vezes conciliadora entre os demais irmãos. Muitas
vezes substituía a mãe nos afazeres de casa, no cuidado dos menores,
e, até mesmo, de Antonio. Era uma mãezinha. Seus irmãos
tacitamente assim a consideravam e sempre a procuravam quando
necessitavam de qualquer coisa. Todos brigavam, às vezes, entre si,
mas com Aninha ninguém importunava. Ela era para todos um ponto
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de apoio, de equilíbrio, em que se desfaziam as divergências e se
estabelecia a paz. Ao contrário de Antonio, Ana Paula não tinha
inclinação para os estudos. Tinha dificuldade em quase todas as
matérias. Invariavelmente procurava auxílio do irmão para realizar as
tarefas escolares. Antonio a ajudava, mas ficava aborrecido por sua
irmã não ser tão inteligente quanto ele. Só não se recusava porque era
Aninha. Ninguém sabia dizer não a Aninha.
Os outros filhos de Marina e Manoel eram: Claudia, Marcos e
Luisinha. Todos saudáveis e bonitos. E havia Max.
Manoel Correia de Moraes era descendente de português. Seus
pais, ainda vivos, mais quatro irmãos, nunca deixaram o Rio Grande
do Sul, sua terra natal.
Com vinte anos de idade Manoel migrou-se para o nordeste, de
onde também jamais sairia. Trabalhou em várias atividades de
comércio, como vendedor ambulante, venda em feira livre, balconista
de lojas, tentando seguir uma tradição de seus ancestrais, embora não
conseguisse ver glória e honra nisso. Em meio às idas e vindas,
visitava oficinas, atraído pela mecânica. Por puro prazer e curiosidade
ajudava amigos a consertar carros e, com isso, sem muito esforço,
aprendeu este ofício. Mas sabia que ser comerciante era quase uma
questão de honra na família. Não queria que seus pais e irmãos
soubessem que ele trabalhava em oficina de auto, sujo de óleo e graxa.
Enquanto ainda jovem e solteiro exercera essa profissão, alternando de
vez em quando com o comércio, tentando juntar algumas economias e
começar um negócio próprio. Por várias vezes quase conseguiu, mas
fracassava sempre, voltando às vendas ambulantes ou às oficinas,
onde se sentia muito à vontade. Gostava do cheiro de óleo e da
camaradagem que reinava naquele ambiente, sem luxo, sem
sofisticação. Manoel, conhecido na intimidade como Néco, era
simples e gostava das coisas simples e humildes. Por isso se adaptou
bem com o povo nordestino. Conheceu Marina, filha de uma família
de agricultores, e com ela se casou. Vieram os filhos, e nunca teve
grandes problemas, exceto alguns fatos com pessoas ligadas por laços
de amizade a ele e à esposa – acontecimentos que buscava esquecer.
Marina abriu os olhos, com esforço, bocejou, e chamou o
marido.
-- Néco!
-- Hum?!
-- Vamos logo dormir de uma vez.
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-- É. Vamos. Na verdade já estamos mesmo dormindo.
Levantaram-se do sofá, os dois sonolentos, e dirigiram-se ao
quarto.
Ana Paula cuidou de arrumar Luisinha na cama, fez as últimas
tarefas da cozinha, e também foi dormir.
3
A ESCOLA Municipal, por não haver nenhuma particular, servia a
alunos de todas as classes sociais. Ricos e pobres, negros e brancos;
amarelos, vermelhos e mestiços, se os houvesse na cidade ou nos
arredores; ricos enfatuados e pobres desinibidos e exibicionistas, que
forçavam parecer ricos; pobres simples, humildes, conformados,
decentes na simplicidade; outros humildes e humilhados, miseráveis,
filhos de alcoólatras e prostitutas. Havia também alguns abastados e
de boa família que pouco caso faziam dessas vantagens sociais, ou,
pelo menos, não viam nisso qualquer impedimento de fazer amizades
e de se misturar com outros menos favorecidos. Outros procuravam
grupos que mais se identificassem com suas índoles e posses.
Impossível não haver discriminação. Mas na sala de aula todos
estavam juntos, e ali parecia que todas as desigualdades se desfaziam,
embora não se pudesse deixar de notar as fardas de alguns sempre
novas, e de bom tecido; e as de outros desbotadas, puídas,
remendadas, quando não rasgadas – sinal de serem usadas, por falta de
roupa, em ocasiões que não exclusivamente para irem à escola. No
estado dos sapatos também se notava a diferença entre os alunos. Era,
no entanto, a inteligência de um pobre com farda surrada, o bom
domínio das matérias, as boas notas nas provas, a capacidade e
temeridade de passar uma “cola” para um colega em apuros, que
faziam eclipsar-se, em alguns, qualquer pretensão de superioridade
com base em meios aquisitivos. Um aluno pobre, mas inteligente, em
sala de aula era superior ao rico obtuso.
Quando a campainha tocava, dando aviso da hora de recreio, a
turba levantava-se ruidosamente, empurrando uns aos outros, pulando
carteiras, comprimindo-se nas portas, cada um querendo sair primeiro.
Consideravam preciosos cada minuto daqueles momentos de
brincadeiras e descontração. E corriam, espraiando-se pelos
corredores, em direção aos sanitários, aos bebedouros, à cantina, à
secretaria. Gritos, pulos, empurrões. Nenhum pai ou mãe via os seus