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1 José Isidio da Silva Heróis Desconhecidos Esta é uma obra de ficção. Os personagens, nomes, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes e acontecimentos reais é mera coincidência. Primeira Edição São Paulo 2014

heróis desconhecidos – josé isidio - perse.com.br · três ou quatro vezes mais distante do que a pedra. Os nadadores veteranos venciam a distância em poucos minutos, e quase

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José Isidio da Silva

Heróis Desconhecidos

Esta é uma obra de ficção. Os personagens, nomes, lugares e acontecimentos

descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com

nomes e acontecimentos reais é mera coincidência.

Primeira Edição

São Paulo

2014

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Digitação e diagramação: José Isidio

Capa: Rua do Funil – velha Petrolândia

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Apresentação

Quem são esses heróis desconhecidos?

São todos os que sofrem injustiças, quer infligida quer por omissão

daqueles que detêm o poder de equilibrar a balança, não deixando que

pese mais, ou menos, em detrimento dos menos favorecidos. São

todos os que, durante a vida toda, suportam a dor da perda sem

encontrar voz que lhe sirva de bálsamo, sem uma resposta de por quê;

são os inumeráveis sobreviventes da maldade humana, anônimos,

porque passam despercebidos mesmo sendo heróis em suas lutas e

vitórias.

Heróis Desconhecidos é dedicado a todos os que já viveram – por

experiência própria ou por conhecimento – a angústia de ver o mal

prevalecer, e o sentimento de impotência diante das injustiças.

Àqueles que lutam em desvantagem, com o poder e as armas que lhes

são disponíveis.

É uma ficção com personagens e fatos da vida real e, por isso, não são

perfeitos. Amor, ódio e desejo de vingança são sentimentos

encontrados entre eles.

O autor.

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Prólogo

O HOMEM de preto, com o chapéu de abas caídas, esgueira-se pelos

becos e ruas mais escuras e menos movimentadas. Anda com passos

largos, apressado. Sai da cidade. Toma uma estrada. Logo depois,

olhando para trás, abandona-a e entra por um caminho. É mais seguro

e encurta a distância. Noite escura. E naquele caminho tudo parece

mais escuro e aterrorizante. Está pálido. É a sua primeira vez. Sempre

tem uma primeira vez... Tem que ir sozinho. Não pode confiar em

ninguém... Sem testemunhas... Avista a casa. Olha ao redor. Não há

ninguém por perto. Aproxima-se mais. Uma luz fraca, vindo de

dentro, atravessa as frestas da janela. Abre o portãozinho que dá

acesso ao jardim e entra. A porta está logo à sua frente. Hesita um

pouco... Tem que ir em frente, e acabar de uma vez... Tira a arma da

cintura e a coloca no bolso. Bate na porta. O jovem casal, dentro de

casa, troca olhares de surpresa. O esposo vai abrir a porta, enquanto

ela fica parada, atrás dele, com o coração batendo acelerado. O

homem de preto entra mesmo antes de ser convidado. Tira a arma do

bolso e aponta.

-- Falou pra mais alguém, além do delegado, sobre o que viu? –

pergunta, apontando o revólver.

-- Não, não falei a ninguém... – recua, colocando-se na frente da

esposa, protegendo-a com os braços abertos.

-- Ótimo!

E dispara dois tiros certeiros.

A esposa, horrorizada, grita e debruça-se sobre o marido,

tentando socorrê-lo, mas ele já está morto. Ergue a cabeça e mal

consegue ver o inimigo em pé à sua frente, porque as lágrimas

inundam os olhos e o rosto. Recebe um tiro no peito e outro no

pescoço, e cai também sem vida sobre o corpo do marido.

O assassino ainda continua em pé no mesmo lugar, por alguns

instantes, observando. Vê o menino debaixo da mesa, com os olhos

parados, fixos nele. Já ia colocar a arma na cintura. Pensa um pouco,

olhando para o garoto, e decide. Aponta e aperta o gatilho: uma... duas

vezes...

Pela manhã, ainda escuro, o delegado acompanhado de mais

dois policiais batem à porta de Simeão. Este abre, sem saber de quem

se trata, e é empurrado bruscamente para dentro pelos policiais que

entram e o seguram com violência.

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-- Você está preso – anuncia o delegado.

-- Preso? O quê eu fiz? – pergunta Simeão, demonstrando-se

surpreso.

-- Você está preso por assassinato – diz o delegado enquanto

procura na gaveta da cômoda. Encontra o revólver e sorri.

-- Assassinato?!

-- De quem é esta arma? – pergunta o delegado, mostrando o

revólver.

-- É minha, mas...

-- Os projéteis foram deflagrados – abre o tambor e mostra. –

Você está preso!

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Primeira parte

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1954 (São Francisco, Pernambuco)

OS QUATRO garotos caíram na água e com braçadas rápidas

nadaram rumo à pedra. Um deles, por ser mais vigoroso, chegou

primeiro, alcançando a pedra pela parte de cima. Os outros pegaram o

remanso e subiram, sem mais esforço. Ficaram ali alguns momentos,

enquanto descansavam um pouco, tagarelando. O que havia chegado

primeiro, no entanto, se mantinha sempre calado. Sentado sobre a

pedra, no meio do rio, era como um rei no seu trono. Dali

contemplava a margem, e pessoas que não sabiam nadar não podiam

chegar até onde ele estava. Mulheres lavavam roupa, outras

carregavam água. Mais embaixo, pescadores. Daquela posição muita

coisa se podia ver. Que garoto de nove anos não sentia orgulho e uma

sensação de poder e liberdade em estar ali? Era a primeira e grande

vitória dos pequenos nadadores, alcançarem a pedra. O próximo

desafio era o serrote – pequena ilha pedregosa, com alguns arbustos,

três ou quatro vezes mais distante do que a pedra. Os nadadores

veteranos venciam a distância em poucos minutos, e quase sem se

cansarem. Mas para os iniciantes era necessário fazer o “estágio”,

parando um pouco ali, onde estavam os meninos, para depois tentarem

a parte mais difícil, que era a água corrente mais forte e maior

distância. Muitos chegavam até aquele ponto com intenção de

continuar, mas quando sentiam a força da água e a distância a vencer,

ficavam com medo, e depois de descansarem um pouco, dali mesmo

voltavam. Quando era a primeira vez que enfrentavam a fúria da

correnteza para alcançar o serrote, sempre iam em grupo. Nunca

alguém ia sozinho fazer a primeira experiência. Em grupo uns

encorajavam os outros e todos se tornavam afoitos. Sozinho ninguém

tinha coragem. Ou até então ninguém tinha tido.

Decorrido algum tempo, um dos garotos sugeriu:

-- Vamos voltar?

-- Vamos – responderam os outros dois.

Logo em seguida os três lançaram-se na água, iniciando o

retorno.

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O que tinha chegado ali primeiro ficou só. Contemplava os três

companheiros já chegando à beira do rio. Olhou para o serrote,

desafiador. Tinha alcançado a pedra pelo lado de cima. Não precisou

pegar o remanso. Sentia que não se esforçara muito para chegar até

ali. Agora lá estava o serrote, com suas pedras negras e lisas,

brilhantes ao sol. Para ele, um mistério. A correnteza a ser vencida e

aquela distância por ele ainda não enfrentada. Pensou. Olhou. Cerrou

os dentes e decidiu. Caiu na água, sentindo o coração bater mais forte

ao pensamento de que estava se submetendo àquela aventura, sozinho,

pela primeira vez. Percebeu que a água o arrastava com força, no

entanto não entrou em pânico. Em perfeito domínio de si mesmo,

prosseguiu. Seus braços de criança feriam a água com firmeza, mas

num ritmo não muito acelerado. Sem que ninguém lhe tivesse

ensinado, ele sabia que precisava poupar o fôlego o máximo possível.

Com os dedos bem unidos, as mãos espalmadas e os pés em

movimentos cadenciados, seu corpinho, quase todo submerso, era

impulsionado para frente. Estava na metade do caminho, no entanto

parecia que o serrote estava agora bem mais distante, e a correnteza

mais forte. Estava sendo arrastado muito velozmente pela água.

Forçou mais os braços e as pernas, que já doíam, mas sem

fraquejarem. Tinha que vencer a forte correnteza, antes que fosse

arrastado para além da água mansa que fica na parte inferior da ilhota.

Da beira do rio tinha visto muitas vezes essa travessia ser feita por

rapazes e meninos experientes. Conhecia a linha a ser seguida para

alcançar o objetivo. Mas de longe, observando os outros nadando,

parecia tudo bem mais fácil. Olhando à distância, a água também não

parecia ser tão forte. Mas agora ele estava ali, sozinho, enfrentando a

impetuosidade e a força da correnteza, que lhe resistia sem piedade.

Não podia fracassar. Aceitou o desafio e estava disposto a vencer. Era

apenas necessário não se deixar dominar pelo medo. E não estava com

medo. Sentiu um pouco no início, mas agora não. Agora estava

lutando, decidido a alcançar a vitória, e nessas circunstâncias não

havia lugar para medo. Enquanto ia assim, nadando, pensava no que

diriam os seus colegas quando soubessem. Sentiriam inveja. Conhecia

uma porção de meninos bem mais velhos do que ele que não eram

capazes de realizar esta proeza. Muitos nem sabiam nadar. Suas mães,

medrosas, não os deixavam vir tomar banho no rio. Não aprendendo a

nadar, não podiam fazer o que ele estava fazendo. Que orgulho sentia

disso! Estava, de certo modo, tirando desforra de alguns deles que

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tinham bicicletas novas, ou brinquedos que ele não podia possuir.

Com esses pensamentos, cerrou os dentes e fez uso de todas as suas

energias para vencer os últimos metros da correnteza. Agora via o

serrote bem próximo. Via-o majestoso, com suas enormes pedras

negras e lisas. Finalmente, estava chegando. A água capitulou,

tornando-se mansa de repente, e não mais o arrastava com força.

Quatro ou cinco braçadas mais e tocou as pedras. Saiu da água, e, do

alto do serrote, qual guerreiro vitorioso, olhou para a margem do rio,

de onde tinha vindo. As pessoas lá pareciam tão pequenas. Eram

gravetos andando, subindo e descendo o barranco. Ouviam-se alguns

sons da cidade, um alto-falante, uma buzina de automóvel. Voz

humana, só se fosse de alguma mãe estabanada chamando a gritos os

filhos, ou alguma criança chorando a plenos pulmões nas casas

próximas ao rio.

Ah! Que sensação estar ali! Que solidão agradável!

Deu uma volta pelo outro lado da ilhota, até então desconhecido

para ele. Explorou todos os recantos. Encontrou num deles uma areia

fina, macia, muito limpa. Deitou-se de costas e contemplou o céu azul,

sem nuvens. O céu azul, a água do rio esverdeada, ou quase azul

também; as pedras negras, a areia branca. Ali era outro mundo, onde

as cores e os sons da natureza lhes traziam ao tenro espírito

recordações distantes, imprecisas. Fechou os olhos numa quase

sonolência, e nesse estado de rápido torpor, mesmo com a claridade

do sol, pareceu ver, de frente, um rosto gordo, com vasto bigode, olhar

cruel e aquele sinal: a metade da sobrancelha esquerda toda branca.

Levantou-se de um salto, afugentou os fantasmas de sua mente,

respirou fundo o ar puro e fresco, e, pulando de pedra em pedra,

desceu ao pequeno estreito que dividia o serrote em duas partes.

Atravessou a nado, e fez também o reconhecimento daquela parte da

ilhota. Demorou-se mais um pouco, ora sentado nas pedras, ora a

andar de um lado para o outro desfrutando o quanto podia o prazer da

conquista. Satisfeito, enfim, resolveu iniciar o retorno.

Heróis Desconhecidos – José

Isidio

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-- MAX! Venha cá, lave aqui estas peças. Aqui, olhe, pegue esta bacia

com gasolina, lave estas peças e ponha em cima da bancada.

-- Néco! Pode dar uma olhada no meu carro?

Manoel virou-se para ver quem lhe falara.

-- Ah, é você, Quinca? Qual é o problema?

-- Está falhando. Parece que é entupimento no carburador.

-- Espere um pouco. Logo a gente vê isso.

Voltou-se para terminar o que estava fazendo.

-- Está bom, Max, agora segure um pouco aqui.

-- E o pequeno mecânico, aí?

-- É um cabra homem mesmo.

-- Tem jeito de homem valente!

-- E é! Trago-o para se ocupar um pouco aqui porque só quer

viver no rio. Desse tamanho e já nada que só peixe. E olhe aí, o

Toninho...

-- Por falar em peixe, me fez lembrar minha sogra...

-- Mas que lembrança, rapaz! Logo de sua sogra! Tenha

vergonha!

-- Não, quiá, quiá, quiá! Não é o que está pensando! É que ela,

na semana passada levou um peixe pra casa, e o danado estava tão

podre que a casa toda ficou fedendo! Quiá, quiá, quiá!

-- Por isso que eu notei uns urubus sobrevoando sua casa – disse

Manoel, caindo também na risada.

A brincadeira durou apenas poucos instantes.

-- Que hora você fecha a oficina, Néco?

-- Às seis.

-- Vou deixar o carro aí e volto mais tarde. Tenho uns negócios

pra resolver.

-- Passe antes das seis.

-- Tudo bem. Mas se eu não passar, não se preocupe. Pego o

carro amanhã cedo. Até logo.

-- Até.

Faltavam poucos minutos para a hora de fechar a oficina,

quando Manoel estacou, de súbito, dando um tapa com a mão

espalmada em sua testa.

-- Antonio, Max, vão para casa, tomem banho, arrumem-se e

fale para os outros também se arrumarem. Combinem para fazer tudo

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sem que Marina perceba. Precisamos fazer uma surpresa. Hoje é o dia

do aniversário dela. Vão! Logo estarei chegando. Tenho que ir

comprar um presente, antes que as lojas fechem.

Fechou a oficina e desceu a rua em passos rápidos, apressado,

resmungando consigo mesmo o seu esquecimento durante todo o dia.

Ainda bem que se lembrara antes de findar o dia. Sim, mas quase que

foi tarde demais. Mas ainda havia tempo para comprar o presente, e

Marina não precisava saber que ele tinha se lembrado na última hora.

Agora a grande dificuldade era: o quê comprar? Sempre achou difícil

escolher presente. Na última vez deu à mulher um jogo de panelas. No

momento ela havia se mostrado muito contente. O entusiasmo, no

entanto, diminuiu rapidamente logo que o presente passou para a

cozinha. Ele notara isso, mas não deixou de rir-se de sua esperteza em

comprar como presente algo que ele já sabia estar necessitando em

casa, e que era seu dever comprar qualquer dia. Agora não devia

repetir a malandragem. O quê comprar? Com essa dúvida, entrou na

primeira loja. Não era uma loja de artigos para presentes, e não viu

nas prateleiras nada que pudesse interessar. Não podendo pedir nada,

nem desejando solicitar uma sugestão, sentiu-se embaraçado ante o

interesse da moça em atendê-lo. Resmungou qualquer coisa e saiu à

procura de outra casa.

-- Às suas ordens...

Sem dizer nada, olhou rapidamente para os artigos nas

prateleiras e tabuleiros. Como já havia sido comerciante, dono de

mercearia, tinha experiência em verificar, num lance de olhos, o que

faltava numa loja. E desta vez, para não sair dali como quem não sabe

o que quer, pediu o que ele sabia que não tinha.

-- Soda cáustica?...

-- Está em falta – respondeu o rapaz, depois de verificar por

alguns momentos – talvez o senhor encontre na mercearia da esquina,

mas a esta hora já deve estar fechando.

Ora, não estou interessado em sua informação, nem em droga

de soda cáustica –, dizia Manoel para si mesmo, regozijando-se ao

mesmo tempo por ter enganado o balconista. E quase deu uma risada

alta ao pensamento de estar procurando o presente para a mulher e

pedir soda cáustica. O que diria Marina se soubesse? Quase não

reprimia o riso interior. Cessou o desejo de rir quando se lembrou de

que o tempo estava passando rapidamente, e poderia perder a

oportunidade de comprar o presente. Entrou em outra loja.

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-- Já estamos fechando, moço, mas diga o que deseja – disse a

dona um tanto indiferente.

-- Aquele broche ali, aquele espelhinho, aquela caixa de pó,

aquele pente e um lenço daqueles – falou numa decisão rápida e

espontânea, deixando, por um instante, a dona da loja atônita. Sentiu

prazer por ter feito a mulher se embaraçar por um momento. A

mulher, logo se refazendo, passou a atendê-lo com toda gentileza.

-- Faça um pacote só, em papel de presente.

-- Sim, senhor.

Depois de pagar, saiu satisfeito em direção a casa. Estava

aliviado agora. Tinha, finalmente, se desincumbido de uma grande

tarefa.

Em casa, encontrou as crianças prontas, numa agitação quase

silenciosa. Entravam e saiam do quarto, de onde pretendiam preparar a

surpresa.

-- Onde está ela? – perguntou Manoel.

-- Saiu para o quintal.

-- Ela desconfiou?

-- Acho que não. A gente se arrumou escondido, sem fazer

barulho.

-- Mas parece que ela viu Claudia colhendo uma rosa no jardim.

-- Não, ela não viu! Olhe, até furei o dedo num espinho e nem

gritei!

-- Luisinha ficou só pedindo uma roupa pra vestir...

-- Mas Luisinha é pequenininha, e você que pediu pra ela

pentear o seu cabelo?

Manoel olhava para um e outro enquanto falavam.

-- Calma! Calma! Agora vocês estão fazendo barulho. Já percebi

que ela não “desconfiou” de nada – falou com humor e ironia,

enquanto virava os olhos para cima. – Então, temos uma rosa? Ótimo,

Claudia, você teve uma boa idéia. Eu não teria pensado nisso. Você

mesmo entrega a rosa...

-- Não, pai, fica melhor a Luisinha entregar, porque ela é a mais

pequena!

-- Está bem, vamos ficar todos aqui, ao lado da porta, e Luisinha

chama pela mãe. Quando ela chegar, todos juntos gritamos parabéns!

-- O que tem nesse pacote?

-- Depois você vê. Chama, Luisinha.

-- Mainha! Mainha!

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Quando Marina se aproximou da porta do quarto, todos juntos

apareceram e começaram a cantar os “parabéns pra você”.

A algazarra foi maior do que a surpresa que pensavam fazer, e

Marina fez o jogo direitinho até ao final, para não decepciona-los.

Passada a euforia daqueles rápidos momentos, tudo voltou ao

normal, como se não fosse dia de aniversário, e como se nenhuma

comemoração tivesse sido feita. Após o jantar – pão com manteiga,

café e leite – todos procuraram uma direção, ou ocupação, conforme

suas disposições de fazerem ou não alguma coisa. O casal, sentado no

sofá gasto pelo uso, descansava e cochilava, não tendo o que

conversar. Desde que se casaram, esgotaram-se os assuntos

empolgantes. Em todo casamento, quando se realiza, finaliza-se um

romance, acaba-se uma ilusão, inicia-se a vida real. Agora era

trabalhar, procurar sempre melhores condições, prosperidade, e encher

a casa de filhos. Isso Manoel conseguiu. Encheu a casa de filhos.

Prosperidade também havia conseguido, mas o revés da vida o

arrastou para a estaca zero; menos a disposição de trabalhar e viver.

Não achava penoso recomeçar. Tinha recomeçado. Estava agora bem

estabelecido com sua oficina. Não era grande coisa, mas nunca se

incomodava com grande ou pequena coisa. Nunca se importava com

sucesso ou insucesso. Quando precisava, recomeçava. Marina era da

mesma índole. Acompanhava o marido nos altos e baixos, não se

sentindo, em nenhumas circunstâncias, orgulhosa ou humilhada.

Talvez por sua extraordinária capacidade de permanecer incólume

ante os açoites da adversidade, pôde conservar, mesmo sem o saber,

ou fazer qualquer coisa propositalmente para isso, a beleza e o frescor

da juventude. Não sentia abalo psicológico ou físico quando as coisas

não iam bem. Tivera muitos filhos. Ali estavam todos eles. Antonio, o

primeiro, era também o mais promissor. Inteligente, muito interessado

nos estudos, submisso aos pais e aos professores, conquistava a

simpatia e a benevolência de todos. Contava agora quinze anos. Ana

Paula, a segunda na ordem dos filhos, parecia-se com a mãe. Morena

clara, cabelos lisos e negros, olhos meigos e quietos. Nunca se

irritava. Era muitas vezes conciliadora entre os demais irmãos. Muitas

vezes substituía a mãe nos afazeres de casa, no cuidado dos menores,

e, até mesmo, de Antonio. Era uma mãezinha. Seus irmãos

tacitamente assim a consideravam e sempre a procuravam quando

necessitavam de qualquer coisa. Todos brigavam, às vezes, entre si,

mas com Aninha ninguém importunava. Ela era para todos um ponto

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de apoio, de equilíbrio, em que se desfaziam as divergências e se

estabelecia a paz. Ao contrário de Antonio, Ana Paula não tinha

inclinação para os estudos. Tinha dificuldade em quase todas as

matérias. Invariavelmente procurava auxílio do irmão para realizar as

tarefas escolares. Antonio a ajudava, mas ficava aborrecido por sua

irmã não ser tão inteligente quanto ele. Só não se recusava porque era

Aninha. Ninguém sabia dizer não a Aninha.

Os outros filhos de Marina e Manoel eram: Claudia, Marcos e

Luisinha. Todos saudáveis e bonitos. E havia Max.

Manoel Correia de Moraes era descendente de português. Seus

pais, ainda vivos, mais quatro irmãos, nunca deixaram o Rio Grande

do Sul, sua terra natal.

Com vinte anos de idade Manoel migrou-se para o nordeste, de

onde também jamais sairia. Trabalhou em várias atividades de

comércio, como vendedor ambulante, venda em feira livre, balconista

de lojas, tentando seguir uma tradição de seus ancestrais, embora não

conseguisse ver glória e honra nisso. Em meio às idas e vindas,

visitava oficinas, atraído pela mecânica. Por puro prazer e curiosidade

ajudava amigos a consertar carros e, com isso, sem muito esforço,

aprendeu este ofício. Mas sabia que ser comerciante era quase uma

questão de honra na família. Não queria que seus pais e irmãos

soubessem que ele trabalhava em oficina de auto, sujo de óleo e graxa.

Enquanto ainda jovem e solteiro exercera essa profissão, alternando de

vez em quando com o comércio, tentando juntar algumas economias e

começar um negócio próprio. Por várias vezes quase conseguiu, mas

fracassava sempre, voltando às vendas ambulantes ou às oficinas,

onde se sentia muito à vontade. Gostava do cheiro de óleo e da

camaradagem que reinava naquele ambiente, sem luxo, sem

sofisticação. Manoel, conhecido na intimidade como Néco, era

simples e gostava das coisas simples e humildes. Por isso se adaptou

bem com o povo nordestino. Conheceu Marina, filha de uma família

de agricultores, e com ela se casou. Vieram os filhos, e nunca teve

grandes problemas, exceto alguns fatos com pessoas ligadas por laços

de amizade a ele e à esposa – acontecimentos que buscava esquecer.

Marina abriu os olhos, com esforço, bocejou, e chamou o

marido.

-- Néco!

-- Hum?!

-- Vamos logo dormir de uma vez.

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-- É. Vamos. Na verdade já estamos mesmo dormindo.

Levantaram-se do sofá, os dois sonolentos, e dirigiram-se ao

quarto.

Ana Paula cuidou de arrumar Luisinha na cama, fez as últimas

tarefas da cozinha, e também foi dormir.

3

A ESCOLA Municipal, por não haver nenhuma particular, servia a

alunos de todas as classes sociais. Ricos e pobres, negros e brancos;

amarelos, vermelhos e mestiços, se os houvesse na cidade ou nos

arredores; ricos enfatuados e pobres desinibidos e exibicionistas, que

forçavam parecer ricos; pobres simples, humildes, conformados,

decentes na simplicidade; outros humildes e humilhados, miseráveis,

filhos de alcoólatras e prostitutas. Havia também alguns abastados e

de boa família que pouco caso faziam dessas vantagens sociais, ou,

pelo menos, não viam nisso qualquer impedimento de fazer amizades

e de se misturar com outros menos favorecidos. Outros procuravam

grupos que mais se identificassem com suas índoles e posses.

Impossível não haver discriminação. Mas na sala de aula todos

estavam juntos, e ali parecia que todas as desigualdades se desfaziam,

embora não se pudesse deixar de notar as fardas de alguns sempre

novas, e de bom tecido; e as de outros desbotadas, puídas,

remendadas, quando não rasgadas – sinal de serem usadas, por falta de

roupa, em ocasiões que não exclusivamente para irem à escola. No

estado dos sapatos também se notava a diferença entre os alunos. Era,

no entanto, a inteligência de um pobre com farda surrada, o bom

domínio das matérias, as boas notas nas provas, a capacidade e

temeridade de passar uma “cola” para um colega em apuros, que

faziam eclipsar-se, em alguns, qualquer pretensão de superioridade

com base em meios aquisitivos. Um aluno pobre, mas inteligente, em

sala de aula era superior ao rico obtuso.

Quando a campainha tocava, dando aviso da hora de recreio, a

turba levantava-se ruidosamente, empurrando uns aos outros, pulando

carteiras, comprimindo-se nas portas, cada um querendo sair primeiro.

Consideravam preciosos cada minuto daqueles momentos de

brincadeiras e descontração. E corriam, espraiando-se pelos

corredores, em direção aos sanitários, aos bebedouros, à cantina, à

secretaria. Gritos, pulos, empurrões. Nenhum pai ou mãe via os seus