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The Holy See back up Searc riga CARTA APOSTÓLICA NOVO MILLENNIO INEUNTE DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II AO EPISCOPADO, AO CLERO E AOS FIÉIS NO TERMO DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000 Aos Irmãos no Episcopado, aos sacerdotes e diáconos, aos religiosos e religiosas, a todos os fiéis leigos. 1. No início do novo milénio quando se encerra o Grande Jubileu, em que celebrámos os dois mil anos do nascimento de Jesus, e um novo percurso de estrada se abre para a Igreja, ressoam no nosso coração as palavras com que um dia Jesus, depois de ter falado às multidões a partir da barca de Simão, convidou o Apóstolo a « fazer-se ao largo » para a pesca: « Duc in altum » (Lc 5,4). Pedro e os primeiros companheiros confiaram na palavra de Cristo e lançaram as redes. « Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe » ( Lc 5,6). Duc in altum! Estas palavras ressoam hoje aos nossos ouvidos, convidando-nos a lembrar com gratidão o passado, a viver com paixão o presente, abrir-se com confiança ao futuro: « Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e sempre » (Heb 13, 8). Ao longo do ano jubilar, grande foi a alegria da Igreja, que se dedicou a contemplar o rosto do seu Esposo e Senhor. Ela tornou-se mais intensamente povo peregrino, guiado por Aquele que é « o grande Pastor das ovelhas » (Heb 13,20). O povo de Deus, com um dinamismo extraordinário que envolveu muitos dos seus membros, seja aqui em Roma, seja em Jerusalém e em cada uma das Igrejas locais, passou pela « Porta Santa » que é Cristo. A Ele, meta da história e único Salvador do mundo, a Igreja e o Espírito gritaram: « Maranatha — Vem, Senhor Jesus! » (cf. Ap 22,17.20; 1 Cor 16,22). É impossível medir o sucesso de graça que, ao longo do ano, tocou as consciências. Mas certamente um « rio de água viva », o mesmo que jorra incessantemente « do trono de Deus e do Cordeiro » (Ap 22,1), inundou a Igreja. É a água do Espírito que sacia e renova (cf. Jo 4,14). É o amor misericordioso do Pai que uma vez mais nos foi manifestado e oferecido em Cristo. No termo deste ano, podemos repetir, com renovado júbilo, aquele antigo refrão de acção de graças: « Louvai o Senhor porque Ele é bom, porque é eterna a sua misericórdia » (Sal 118117,1). 2. Sinto, por isso, a necessidade de me dirigir a vós, irmãos muito amados, para partilhar convosco o cântico de louvor. A este ano santo 2000, tinha eu pensado como uma data importante, desde o princípio do meu pontificado. Tinha entrevisto esta celebração como um momento providencial em que, trinta e cinco anos depois do Concílio Ecuménico Vaticano II, a Igreja seria convidada a interrogar-se sobre a sua renovação para assumir com novo impulso a sua missão evangelizadora. O Jubileu terá conseguido realizar este desígnio? O nosso empenho, com seus generosos esforços e inevitáveis fragilidades, Deus o conhece. Mas não podemos subtrair-nos ao dever de agradecer « as maravilhas » que Deus fez por nós. « Misericordias Domini in aeternum cantabo » (Sal 8988,2).

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Novo Millenium Ineunte

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    CARTA APOSTLICANOVO MILLENNIO INEUNTE

    DO SUMO PONTFICEJOO PAULO II

    AO EPISCOPADO,AO CLERO E AOS FIIS

    NO TERMO DO GRANDE JUBILEUDO ANO 2000

    Aos Irmos no Episcopado,aos sacerdotes e diconos,aos religiosos e religiosas,a todos os fiis leigos.

    1. No incio do novo milnio quando se encerra o Grande Jubileu, em que celebrmos os dois milanos do nascimento de Jesus, e um novo percurso de estrada se abre para a Igreja, ressoam nonosso corao as palavras com que um dia Jesus, depois de ter falado s multides a partir dabarca de Simo, convidou o Apstolo a fazer-se ao largo para a pesca: Duc in altum (Lc5,4). Pedro e os primeiros companheiros confiaram na palavra de Cristo e lanaram as redes. Assim fizeram e apanharam uma grande quantidade de peixe (Lc 5,6).

    Duc in altum! Estas palavras ressoam hoje aos nossos ouvidos, convidando-nos a lembrar comgratido o passado, a viver com paixo o presente, abrir-se com confiana ao futuro: Jesus Cristo o mesmo, ontem, hoje e sempre (Heb 13, 8).

    Ao longo do ano jubilar, grande foi a alegria da Igreja, que se dedicou a contemplar o rosto do seuEsposo e Senhor. Ela tornou-se mais intensamente povo peregrino, guiado por Aquele que ogrande Pastor das ovelhas (Heb 13,20). O povo de Deus, com um dinamismo extraordinrio queenvolveu muitos dos seus membros, seja aqui em Roma, seja em Jerusalm e em cada uma dasIgrejas locais, passou pela Porta Santa que Cristo. A Ele, meta da histria e nico Salvadordo mundo, a Igreja e o Esprito gritaram: Maranatha Vem, Senhor Jesus! (cf. Ap 22,17.20;1 Cor 16,22).

    impossvel medir o sucesso de graa que, ao longo do ano, tocou as conscincias. Mascertamente um rio de gua viva , o mesmo que jorra incessantemente do trono de Deus e doCordeiro (Ap 22,1), inundou a Igreja. a gua do Esprito que sacia e renova (cf. Jo 4,14). oamor misericordioso do Pai que uma vez mais nos foi manifestado e oferecido em Cristo. No termodeste ano, podemos repetir, com renovado jbilo, aquele antigo refro de aco de graas: Louvai o Senhor porque Ele bom, porque eterna a sua misericrdia (Sal 118117,1).

    2. Sinto, por isso, a necessidade de me dirigir a vs, irmos muito amados, para partilhar convoscoo cntico de louvor. A este ano santo 2000, tinha eu pensado como uma data importante, desde oprincpio do meu pontificado. Tinha entrevisto esta celebrao como um momento providencial emque, trinta e cinco anos depois do Conclio Ecumnico Vaticano II, a Igreja seria convidada ainterrogar-se sobre a sua renovao para assumir com novo impulso a sua misso evangelizadora.

    O Jubileu ter conseguido realizar este desgnio? O nosso empenho, com seus generosos esforos einevitveis fragilidades, Deus o conhece. Mas no podemos subtrair-nos ao dever de agradecer as maravilhas que Deus fez por ns. Misericordias Domini in aeternum cantabo (Sal8988,2).

  • Ao mesmo tempo, tudo o que aconteceu sob os nossos olhos merece ser ponderado e de certomodo decifrado, para ouvir aquilo que, ao longo deste ano to intenso, o Esprito disse Igreja (cf.Ap 2,7.11.17 etc.).

    3. Mas sobretudo nossa obrigao, amados irmos e irms, lanar-nos para o futuro que nosespera. Nestes meses, olhmos frequentemente para o novo milnio que comea, vivendo o Jubileuno s como lembrana do passado, mas tambm como profecia do futuro. Agora precisoguardar o tesouro da graa recebida, traduzindo-a em ardentes propsitos e directrizes concretasde aco. A esta tarefa, desejo convidar todas as Igrejas locais. Em cada uma delas, reunida volta do seu Bispo na escuta da Palavra, na unio fraterna e na fraco do po (cf. Act 2,42), est e opera a Igreja de Cristo una, santa, catlica e apostlica .1 principalmente na realidadeconcreta de cada Igreja que o mistrio do nico povo de Deus assume aquela configuraoparticular que o torna aderente aos diversos contextos e culturas.

    Este enraizamento da Igreja no tempo e no espao reflecte, em ltima anlise, o movimentomesmo da encarnao. hora, pois, de cada Igreja reflectir sobre o que o Esprito disse ao povode Deus neste especial ano de graa e tambm no arco mais amplo de tempo desde o ConclioVaticano II at ao Grande Jubileu, medindo o seu fervor e ganhando novo impulso para os seuscompromissos espirituais e pastorais. Com tal finalidade, desejo oferecer nesta Carta, noencerramento do ano jubilar, o contributo do meu ministrio petrino, para que a Igreja resplandeacada vez mais na variedade dos seus dons e na unidade do seu caminho.

    IO ENCONTRO COM CRISTO,

    LEGADO DO GRANDE JUBILEU

    4. Graas Te damos, Senhor, Deus Todo-poderoso (Ap 11,17). Na Bula de proclamao doJubileu, fazia votos de que a celebrao bimilenria do mistrio da encarnao fosse vivida como um nico e incessante cntico de louvor Trindade 2 e, ao mesmo tempo, como caminho dereconciliao e como sinal de genuna esperana para todos os que levantam seu olhar para Cristoe para a sua Igreja .3 A experincia do ano jubilar modelou-se precisamente segundo estasdimenses vitais, atingindo momentos de tal intensidade que nos fizeram quase palpar sensivelmentea presena misericordiosa de Deus, do Qual provm toda a boa ddiva e todo o dom perfeito (Tg 1,17).

    Penso, antes de mais, dimenso do louvor. Realmente daqui que parte toda a autnticaresposta de f revelao de Deus em Cristo. O cristianismo graa, a surpresa de um Deusque, no satisfeito com criar o mundo e o homem, saiu ao encontro da sua criatura e, depois de terfalado muitas vezes e de diversos modos pelos profetas, falou-nos agora, nestes ltimos tempos,pelo Filho (Heb 1,1-2).

    Agora! Sim, o Jubileu fez-nos sentir que passaram dois mil anos de histria sem se atenuar apujana daquele hoje referido pelos anjos, quando anunciaram aos pastores o acontecimentomaravilhoso do nascimento de Jesus em Belm: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos umSalvador, que o Messias, Senhor (Lc 2,11). Passaram dois mil anos, mas permanece viva comonunca a proclamao que Jesus fez da sua misso aos conterrneos na sinagoga de Nazar,deixando-os atnitos ao aplicar a Si prprio a profecia de Isaas: Cumpriu-se hoje esta passagemda Escritura, que acabais de ouvir (Lc 4,21). Passaram dois mil anos, mas volta sempre, cheio deconsolao para os pecadores necessitados de misericrdia e quem no o ? , aquele hoje da salvao que, na Cruz, abriu as portas do Reino de Deus ao ladro arrependido: Em verdadete digo: hoje estars Comigo no Paraso (Lc 23,43).

    A plenitude dos tempos

  • 5. A coincidncia deste Jubileu com a entrada num novo milnio favoreceu seguramente, sem cairem fantasias milenaristas, a percepo do mistrio de Cristo no grande horizonte da histria dasalvao. O cristianismo religio entranhada na histria. Com efeito, foi no terreno da histriaque Deus quis estabelecer com Israel uma aliana e, deste modo, preparar o nascimento do Filhono ventre de Maria, na plenitude dos tempos (Gal 4,4). Visto no seu mistrio divino e humano,Cristo o fundamento e o centro, o sentido e a meta ltima da histria. De facto, foi por Ele, Verboe imagem do Pai, que tudo comeou a existir (Jo 1,3; cf. Col 1,15). A sua encarnao, queculminou no mistrio pascal e no dom do Esprito, constitui o corao pulstil do tempo, a horamisteriosa em que o Reino de Deus passou a estar ao nosso alcance (cf. Mc 1,15), antes lanourazes na nossa histria como semente destinada a ser uma grande rvore (cf. Mc 4,30-32).

    Cristo ontem, Cristo hoje, Cristo sempre, meu Salvador... : com este cntico, milhares de vezesrepetido, contemplmos ao longo deste ano Cristo tal como no-Lo apresenta o Apocalipse: OAlfa e o mega, o Primeiro e o ltimo, o Princpio e o Fim (Ap 22,13). E, ao mesmo tempo quecontemplmos Cristo, adormos o Pai e o Esprito, a Trindade nica e indivisvel, mistrio inefvelno qual tudo tem a sua origem e perfeio.

    Purificao da memria

    6. Para que os nossos olhos pudessem ficar mais puros para contemplarem o mistrio, este anojubilar caracterizou-se intensamente pelo pedido de perdo. Isto verificou-se nos indivduos, que seinterrogaram sobre a sua prpria vida para implorar misericrdia e obter o dom especial daindulgncia, mas tambm com a Igreja inteira, que quis recordar as infidelidades de muitos dos seusfilhos que ao longo da histria obscureceram o seu rosto de Esposa de Cristo.

    H muito que nos predispnhamos para este exame de conscincia, cientes de que a Igreja,contendo pecadores no seu seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificao .4Congressos cientficos ajudaram-nos a focalizar os aspectos onde nem sempre brilhou o espritoevanglico, no arco dos primeiros dois milnios. Como esquecer a comovente Liturgia de 12 deMaro de 2000 na baslica de S. Pedro, durante a qual, com os olhos fixos no Crucifixo, fiz-meporta-voz da Igreja, pedindo perdo pelo pecado de todos os seus filhos? Esta purificao damemria reforou os nossos passos no caminho para o futuro, tornando-nos ao mesmo tempomais humildes e vigilantes na nossa adeso ao Evangelho.

    As testemunhas da f

    7. A conscincia penitencial mais viva no nos impediu, porm, de dar glria ao Senhor por tudo oque Ele fez ao longo dos sculos, de modo particular neste ltimo que deixmos para trs,assegurando sua Igreja uma longa srie de santos e de mrtires. Para alguns deles, este anojubilar foi o ano da beatificao ou canonizao. Quer atribuda a Pontfices bem conhecidos dahistria quer a figuras humildes de leigos e religiosos, a santidade apareceu mais claramente, dumextremo ao outro do globo, como a dimenso que melhor exprime o mistrio da Igreja. Mensagemeloquente que no precisa de palavras, aquela representa ao vivo o rosto de Cristo.

    Muito se fez tambm, por ocasio do ano santo, para recolher as memrias preciosas dasTestemunhas da f do sculo XX. No dia 7 de Maio de 2000, juntamente com os representantesdas outras Igrejas e Comunidades eclesiais, fizemos a sua comemorao no sugestivo cenrio doColiseu, smbolo das perseguies antigas. uma herana que no se deve perder, mas fazerfrutificar num perene dever de gratido e num renovado propsito de imitao.

    Igreja peregrina

    8. Seguindo de algum modo as pegadas dos Santos, foram-se alternando aqui em Roma, junto dotmulo dos Apstolos, inumerveis filhos da Igreja, desejosos de professar a prpria f, confessaros seus pecados e receber a misericrdia que salva. Neste ano, o meu olhar no se deixouimpressionar apenas pelas multides que encheram a Praa de S. Pedro durante muitascelebraes, pois no era raro deter-me a contemplar tambm as longas filas de peregrinos que

  • esperavam pacientemente a sua vez de atravessar a Porta Santa. Em cada um deles, eu procuravaimaginar uma histria de vida, feita de alegrias, ansiedades, sofrimentos; uma histria acolhida porCristo, e que, no dilogo com Ele, retomava o seu caminho de esperana.

    Naquele fluxo contnuo dos grupos, deparava-se-me quase uma imagem palpvel da Igrejaperegrina, daquela Igreja que vive, como diz S. Agostinho, no meio das perseguies do mundoe das consolaes de Deus .5 A ns, -nos concedido apenas observar a face mais exterior desteacontecimento singular. Quem pode calcular as maravilhas da graa, que se realizaram noscoraes? O melhor calar e adorar, confiando humildemente na aco misteriosa de Deus ecantando o seu amor sem fim: Misericordias Domini in aeternum cantabo !

    Os jovens

    9. Os numerosos encontros jubilares permitiram congregar-se as mais diversas categorias depessoas, com uma participao verdadeiramente impressionante, que s vezes chegou a prduramente prova os esforos dos organizadores e animadores, tanto eclesiais como civis. Desejoaproveitar esta Carta para exprimir a todos o meu agradecimento mais cordial. Mas, para alm donmero, aquilo que muitas vezes me tocou foi verificar a seriedade do compromisso de orao,reflexo, comunho, que quase sempre se manifestava nestes encontros.

    De modo especial, como no recordar o encontro jubiloso e estimulante dos jovens? Se h umaimagem do Jubileu do ano 2000 que ficar mais do que outras viva na memria, seguramente adaquela multido ocenica de jovens com quem pude estabelecer uma espcie de dilogoprivilegiado, ditado por uma recproca simpatia e uma sintonia profunda. Verificou-se isto logodesde o momento das boas-vindas, que lhes dei na Praa de S. Joo de Latro e na Praa de S.Pedro. Depois vi-os moverem-se pela cidade, alegres como devem ser os jovens, mas tambmpensativos, vidos de orao, de sentido , de amizade verdadeira. Tanto para eles mesmoscomo para aqueles que os contemplaram, no ser fcil apagar da memria aquela semana em queRoma se fez jovem com os jovens . No ser possvel esquecer a celebrao eucarstica de TorVergata.

    Os jovens revelaram-se uma vez mais, para Roma e para a Igreja, um dom especial do Espritode Deus. s vezes encontra-se na anlise que fazem dos jovens, com todos os problemas efragilidades que os caracterizam na sociedade contempornea, uma tendncia ao pessimismo. Ora,o Jubileu dos Jovens fez-nos ver que no caso disso, ao deixar a mensagem contrria dumajuventude que, no obstante possveis ambiguidades, sente um anseio profundo daqueles valoresautnticos que tm em Cristo a sua plenitude. Porventura no Cristo o segredo da verdadeiraliberdade e da alegria profunda do corao? No Cristo o maior amigo e, simultaneamente, oeducador de toda a amizade autntica? Se Cristo lhes for apresentado com o seu verdadeiro rosto,os jovens reconhecem-No como resposta convincente e conseguem acolher a sua mensagem,mesmo se exigente e marcada pela Cruz. Por isso, vibrando com o seu entusiasmo, no hesitei empedir-lhes uma opo radical de f e de vida, apontando-lhes uma misso estupenda: fazerem-se sentinelas da manh (cf. Is 21,11-12) nesta aurora do novo milnio.

    Peregrinos das vrias categorias

    10. No posso, por razes bvias, concentrar-me detalhadamente sobre os diversos eventosjubilares. Cada um deles teve o seu carcter prprio e deixou a sua mensagem no s para osparticipantes directos, mas tambm para quantos ouviram falar ou tomaram parte distncia atravsdos mass-media. Mas, como no recordar o tom festivo do primeiro grande encontro, dedicados crianas? O facto de se comear com elas significava, de algum modo, acolher a advertncia deJesus: Deixai vir a Mim as criancinhas (Mc 10,14). E significava talvez ainda mais repetir o gestopraticado por Ele, quando colocou no meio um menino e fez dele o prprio smbolo docomportamento que se tem de assumir, se se quiser entrar no Reino de Deus (cf. Mt 18,2-4).

    Assim, em determinado sentido, foi seguindo os passos das crianas que vieram pedir a

  • misericrdia jubilar as mais variadas categorias de adultos: dos idosos aos doentes e invlidos, dostrabalhadores das fbricas e dos campos aos desportistas, dos artistas aos docentes universitrios,dos Bispos e presbteros s pessoas de vida consagrada, dos polticos aos jornalistas e at aosmilitares, que vieram reafirmar o sentido da sua misso como um servio paz.

    Grande significado teve a concentrao dos trabalhadores, realizada no dia tradicional da suafesta o primeiro de Maio. Pedi-lhes para viverem a espiritualidade do trabalho, imitando S. Jose o prprio Jesus. Alm disso, aquele jubileu deu-me ocasio para lanar um forte apelo a fim de sesanarem os desequilbrios econmicos e sociais que existem no mundo do trabalho e pautaremdecididamente os processos da globalizao econmica em funo da solidariedade e do respeitodevido a cada pessoa humana.

    As crianas voltaram, com a sua alegria incontida, no Jubileu das Famlias, tendo-as entoapontado ao mundo como primavera da famlia e da sociedade . Foi verdadeiramente expressivoeste encontro jubilar com tantas famlias das mais diversas regies do mundo, que vieram receber,com novo fervor, a luz de Cristo sobre o desgnio originrio de Deus para elas (cf. Mc 10,6-8; Mt19,4-6). Comprometeram-se a irradi-la sobre uma cultura que, de forma sempre maispreocupante, corre o risco de perder o sentido do matrimnio e da instituio familiar.

    Entre os momentos mais tocantes que tive, conta-se o encontro com os presos doEstabelecimento Prisional Regina Cli. Nos seus olhos, vi amargura, mas tambm oarrependimento e a esperana. Para eles, o Jubileu foi a ttulo absolutamente especial um ano demisericrdia .

    Por fim, nos ltimos dias do ano, teve lugar o encontro com o mundo do espectculo, que tantasimpatia e encanto desperta no corao das pessoas. A quantos trabalham neste sector, recordei agrande responsabilidade de propor, atravs do divertimento jovial, mensagens positivas,moralmente ss, capazes de infundir confiana e amor vida.

    O Congresso Eucarstico Internacional

    11. No desenvolvimento deste ano jubilar, esperava-se que tivesse um significado qualificante oCongresso Eucarstico Internacional; e teve-o. Se a Eucaristia o sacrifcio de Cristo que Setorna presente entre ns, poderia a sua presena real no estar no centro deste ano santo dedicado encarnao do Verbo? Por isso mesmo, foi previsto como ano intensamente eucarstico 6 eassim procurmos viv-lo. Ao mesmo tempo, como podia faltar a meno da Me, ao recordarmoso nascimento do seu Filho? Maria esteve presente na celebrao jubilar mediante oportunos equalificados Congressos, mas sobretudo atravs do grande Acto de Entrega com que, ladeado porboa parte do Episcopado mundial, confiei sua solicitude materna a vida dos homens e mulheresdo novo milnio.

    A dimenso ecumnica

    12. compreensvel que me venha mais espontneo falar do Jubileu visto da Sede de Pedro.Todavia no esqueo que fui eu mesmo a desejar que a sua celebrao se realizasse, a pleno ttulo,tambm nas Igrejas particulares; e foi l que a maior parte dos fiis pde obter as graas especiaisconexas com o ano jubilar, e de modo particular a indulgncia. Mas no deixa de ser significativoque muitas dioceses tenham sentido o desejo de fazer-se presente, com grupos numerosos de fiis,tambm aqui em Roma. Assim, a Cidade Eterna manifestou uma vez mais o seu papel providencialde lugar onde as riquezas e os dons de cada Igreja, e mesmo de cada nao e cultura, seharmonizam na catolicidade , para que a nica Igreja de Cristo revele de modo cada vez maiseloquente o seu mistrio de sacramento de unidade.7

    No mbito do programa do ano jubilar, tinha pedido que se desse uma ateno especial tambm dimenso ecumnica. Que ocasio mais propcia poderia haver, para encorajar o caminho para aplena comunho, do que a celebrao comum do nascimento de Cristo? Muitos esforos serealizaram com tal finalidade, sobressaindo pelo seu significado o encontro ecumnico na baslica de

  • S. Paulo, no dia 18 de Janeiro de 2000: pela primeira vez na histria, uma Porta Santa foi abertaconjuntamente pelo Sucessor de Pedro, o Primaz Anglicano e o Metropolita do PatriarcadoEcumnico de Constantinopla, na presena de representantes de Igrejas e Comunidades eclesiaisde todo o mundo. Nesta linha, contam-se tambm alguns encontros importantes com PatriarcasOrtodoxos e chefes doutras confisses crists; recordo, em particular, a recente visita de SuaSantidade Karekin II, Patriarca Supremo e Catholicos de todos os Armnios. Houve tambmmuitos fiis doutras Igrejas e Comunidades eclesiais que tomaram parte nos encontros jubilares dasdiversas categorias. O caminho ecumnico continua certamente fatigoso, e talvez longo, mas anima-nos a esperana de sermos guiados pela presena do Ressuscitado e pela fora inexaurvel do seuEsprito, capaz de surpresas sempre novas.

    A peregrinao na Terra Santa

    13. E como no recordar ainda o meu Jubileu pessoal pelas estradas da Terra Santa? O meudesejo era t-lo iniciado em Ur dos Caldeus para percorrer quase sensivelmente os passos deAbrao, nosso pai na f (cf. Rom 4,11-16); mas tive de contentar-me com uma paragemapenas espiritual atravs da sugestiva Liturgia da Palavra , que foi celebrada a 23 de Fevereirona Aula Paulo VI. Logo a seguir comeou a peregrinao em sentido prprio, seguindo o itinerrioda histria da salvao. Tive a alegria de parar no Monte Sinai, no cenrio do dom do Declogo eda primeira Aliana. Um ms depois retomei o caminho que me levou at ao Monte Nebo e, emseguida, aos lugares habitados e santificados pelo Redentor. difcil exprimir a emoo que senti aopoder venerar os lugares do nascimento e da vida de Cristo em Belm e Nazar, ao celebrar aEucaristia no Cenculo lugar da sua instituio, e ao meditar o mistrio da Cruz no Glgota ondeEle deu a vida por ns. Naqueles lugares, ainda muito atribulados e recentemente funestadostambm pela violncia, pude experimentar um acolhimento extraordinrio no s dos filhos daIgreja mas tambm por parte das comunidades israelita e palestinense. Com intensa emoo, vivi aorao junto do Muro das Lamentaes e a visita ao Mausolu de Yad Vashem, memorialchocante das vtimas dos campos de extermnio nazistas. Aquela peregrinao foi um momento defraternidade e de paz que me apraz registar como um dos mais belos dons do evento jubilar.Recordando o clima vivido naqueles dias, no posso deixar de exprimir sentidos votos dumasoluo solcita e justa para os problemas ainda inconclusos naqueles lugares santos, amadossimultaneamente por judeus, cristos e muulmanos.

    A dvida internacional

    14. Alm disso, o Jubileu foi um grande acontecimento de caridade; e no podia ser de outromodo. J desde os anos preparatrios, tinha lanado o apelo para uma ateno maior e maisefectiva aos problemas da pobreza que ainda afligem o mundo. Neste cenrio, assumiu particularsignificado o problema da dvida internacional dos pases pobres. Um gesto de generosidadepara com tais pases estava inscrito logicamente no prprio Jubileu, sabendo ns que este, na suaprimordial configurao bblica, era precisamente o tempo em que a comunidade se comprometia arestaurar a justia e a solidariedade nas relaes entre as pessoas, restituindo-lhes inclusivamente osbens de que tinham sido privadas. Com satisfao, vejo que recentemente os Parlamentos demuitos dos Estados credores votaram um substancioso perdo da dvida bilateral que pesava sobrepases mais pobres e endividados. Fao votos de que os respectivos Governos dem, em breve,cumprimento a tais decises parlamentares. J se apresentou mais problemtica a questo da dvidamultilateral, ou seja, a dvida contrada pelos pases mais pobres junto dos organismos financeirosinternacionais. Espero que os Estados membros destes organismos, sobretudo aqueles com maiorpeso decisrio, consigam reunir os consensos necessrios para se chegar rpida soluo dumaquesto que mantm suspenso o caminho do progresso de muitos pases, com pesadasconsequncias sobre a condio econmica e existencial de tantas pessoas.

    Um novo dinamismo

    15. Estas so apenas algumas das linhas resultantes da experincia jubilar. Desta ficam-nosgravadas tantas recordaes; se quisssemos circunscrever o ncleo essencial do grande legado

  • que ela nos deixa, no hesitaria em v-lo na contemplao do rosto de Cristo: considerando-Onos seus traos histricos e no seu mistrio, acolhendo-O com a sua multiforme presena na Igrejae no mundo, confessando-O como sentido da histria e luz do nosso caminho.

    Agora, devemos olhar para a frente, temos de fazer-nos ao largo confiados na palavra deCristo: Duc in altum! O que realizmos neste ano jubilar no pode justificar uma sensao desaciedade nem induzir-nos a uma atitude de relaxamento. Pelo contrrio, as experincias vividasdevem suscitar em ns um dinamismo novo, que nos leve a investir em iniciativas concretasaquele entusiasmo que sentimos. O prprio Jesus nos adverte: Quem, depois de deitar a mo aoarado, olha para trs, no apto para o Reino de Deus (Lc 9,62). Na causa do Reino, no htempo para olhar para trs, menos ainda para dar-se preguia. H muito trabalho nossa espera;por isso, devemos pr mos a uma eficaz programao pastoral ps-jubilar.

    Mas muito importante que tudo o que com a ajuda de Deus nos propusermos, estejaprofundamente radicado na contemplao e na orao. O nosso tempo vivido em contnuomovimento que muitas vezes chega agitao, caindo-se facilmente no risco de fazer por fazer .H que resistir a esta tentao, procurando o ser acima do fazer . A tal propsito,recordemos a censura de Jesus a Marta: Andas inquieta e perturbada com muitas coisas; masuma s necessria (Lc 10,41-42). Com este esprito desejo, antes de propor vossaconsiderao algumas linhas de aco, partilhar qualquer tpico de meditao sobre o mistrio deCristo, fundamento absoluto de toda a nossa aco pastoral.

    IIUM ROSTO A CONTEMPLAR

    16. Queramos ver a Jesus (Jo 12,21). Este pedido, feito ao apstolo Filipe por alguns gregosque tinham ido em peregrinao a Jerusalm por ocasio da Pscoa, ecoou espiritualmente tambmaos nossos ouvidos ao longo deste ano jubilar. Como aqueles peregrinos de h dois mil anos oshomens do nosso tempo, talvez sem se darem conta, pedem aos crentes de hoje no s que lhes falem de Cristo, mas tambm que de certa forma lh'O faam ver . E no porventura a missoda Igreja reflectir a luz de Cristo em cada poca da histria, e por conseguinte fazer resplandecer oseu rosto tambm diante das geraes do novo milnio?

    Mas, o nosso testemunho seria excessivamente pobre, se no fssemos primeiro contemplativosdo seu rosto; por certo o Grande Jubileu ajudou-nos a s-lo mais profundamente. Concludo oJubileu, ao retomarmos o caminho de sempre, conservando na alma a riqueza das experinciasvividas neste perodo muito especial, o olhar permanece mais intensamente fixo no rosto doSenhor.

    O testemunho dos Evangelhos

    17. A contemplao do rosto de Cristo no pode inspirar-se seno quilo que se diz d'Ele naSagrada Escritura, que est, do princpio ao fim, permeada pelo seu mistrio; este apareceobscuramente esboado no Antigo Testamento e revelado plenamente no Novo, de tal maneira queS. Jernimo afirma sem hesitar: A ignorncia das Escrituras ignorncia do prprio Cristo .8Permanecendo ancorados na Sagrada Escritura, abrimo-nos aco do Esprito (cf. Jo 15,26),que est na origem dos seus livros, e simultaneamente ao testemunho dos Apstolos (cf. Jo15,27), que fizeram a experincia viva de Cristo, o Verbo da vida: viram-No com os seus olhos,escutaram-No com os seus ouvidos, tocaram-No com as suas mos (cf. 1 Jo 1,1).

    Por seu intermdio, chega-nos uma viso de f, sustentada por um testemunho histrico concreto:um testemunho verdadeiro que os Evangelhos, apesar da sua redaco complexa e finalidadeprimariamente catequtica, nos oferecem de forma plenamente atendvel.9

    18. De facto, os Evangelhos no pretendem ser uma biografia completa de Jesus, segundo os

  • cnones da cincia histrica moderna. No entanto, neles aparece, com fundamento histricoseguro, o rosto do Nazareno, visto que foi preocupao dos Evangelistas deline-lo, recolhendotestemunhos fidedignos (cf. Lc 1,3) e trabalhando sobre documentos sujeitos a cuidadosodiscernimento eclesial. Foi com base nestes testemunhos da primeira hora que eles, sob a acoiluminadora do Esprito Santo, souberam do facto humanamente desconcertante de Jesus ternascido virginalmente de Maria, esposa de Jos. Daqueles que O tinham conhecido durante ostrinta anos aproximadamente que vivera em Nazar (cf. Lc 3,23), recolheram os dados sobre a suavida de filho do carpinteiro (Mt 13,55) e d'Ele mesmo carpinteiro , com o quadro da suaparentela bem especificado (cf. Mc 6,3). E registaram a sua grande religiosidade que O levava a irem peregrinao anual, juntamente com os seus, ao templo de Jerusalm (cf. Lc 2,41) e sobretudofazia d'Ele um frequentador habitual da sinagoga da sua cidade (cf. Lc 4,16).

    As notcias tornam-se mais abundantes, embora no cheguem a ser um relato orgnico e detalhado,no perodo do ministrio pblico, a comear do momento em que o jovem Galileu Se fez baptizarpor Joo Baptista no Jordo; animado pelo testemunho do Alto e com a conscincia de ser o Filho predilecto (Lc 3,22), d incio sua pregao anunciando a chegada do Reino de Deus,ilustrando as suas exigncias e a sua fora atravs de palavras e sinais de graa e misericrdia. OsEvangelhos apresentam-no-Lo caminhando por cidades e aldeias, acompanhado por dozeApstolos que Ele escolhera (cf. Mc 3,13-19), por um grupo de mulheres que O servem com osseus bens (cf. Lc 8,2-3), por multides que O procuram e seguem, por doentes que esperam noseu poder de cura, por interlocutores que ouvem, com variado proveito, as suas palavras.

    A narrao dos Evangelhos concorda tambm no facto de mostrar a tenso que foi crescendo entreJesus e os grupos dominantes da sociedade religiosa de ento at crise final, que teve o seueplogo dramtico no Glgota. a hora das trevas, qual se segue uma aurora nova, radiante edefinitiva. De facto, os relatos evanglicos terminam mostrando o Nazareno vitorioso sobre a morte:assinalam o seu tmulo vazio e acompanham-No no ciclo das aparies, durante as quais osdiscpulos, primeiro perplexos e atnitos e depois cheios de inefvel alegria, O experimentam vivo eglorioso, tendo recebido d'Ele o dom do Esprito (cf. Jo 20,22) e o mandato de anunciar oEvangelho a todas as naes (Mt 28,19).

    O caminho da f

    19. Alegraram-se os discpulos, ao verem o Senhor (Jo 20,20). O rosto, que os Apstoloscontemplaram depois da ressurreio, era o mesmo daquele Jesus com quem tinham convividocerca de trs anos e que agora os convencia da verdade incrvel da sua nova vida, mostrando-lhes as mos e o lado (Jo 20,20). Certamente no foi fcil acreditar. Os discpulos de Emas sacreditaram no fim dum penoso itinerrio do esprito (cf. Lc 24,13-35). O apstolo Tom acreditouapenas depois de ter constatado o prodgio (cf. Jo 20,24-29). Na realidade, por mais que seolhasse e tocasse o seu corpo s a f podia penetrar plenamente no mistrio daquele rosto.Esta experincia, deviam j t-la feito os discpulos na vida histrica de Cristo, sempre que selevantavam questes na sua mente ao sentirem-se interpelados pelos seus gestos e palavras. AJesus s se chega verdadeiramente pelo caminho da f, um caminho cujas etapas o prprioEvangelho parece delinear na famosa cena de Cesareia de Filipe (cf. Mt 16,13-20). Fazendo decerto modo um primeiro balano da sua misso, Jesus pergunta aos discpulos o que pensam oshomens acerca d'Ele, tendo ouvido como resposta: Uns [dizem] que Joo Baptista; outros,que Elias; e outros, que Jeremias ou algum dos profetas (Mt 16,14). Uma consideraocertamente elevada, mas ainda distante e muito! da verdade. O povo chega a pressentir adimenso religiosa, absolutamente excepcional, deste Rabbi, cujas palavras o deixa fascinado, masainda no consegue coloc-Lo acima dos homens de Deus que apareceram ao longo da histria deIsrael. Ora, Jesus realmente muito mais. precisamente este passo sucessivo de conhecimento,que diz respeito ao nvel profundo da sua pessoa, que Ele espera dos seus : Vs, quem dizeisque Eu sou? (Mt 16,15). S a f professada por Pedro e, com ele, pela Igreja de todos ostempos atinge o corao do mistrio, a sua profundidade: Tu s o Cristo, o Filho de Deus vivo (Mt 16,16).

  • 20. Como chegou Pedro a esta f? E o que se requer de ns, se quisermos seguir de forma cadavez mais convicta as suas pegadas? Mateus d-nos um indcio esclarecedor nas palavras com queJesus acolhe a confisso de Pedro: No foram a carne nem o sangue quem to revelou, mas o meuPai que est nos cus (Mt 16,17). A expresso carne e sangue evoca o homem e o seu modocomum de conhecer que, no caso de Jesus, no basta. necessria uma graa de revelao que vem do Pai (cf. Mt 16,17). Lucas oferece-nos uma indicao, que aponta na mesma direco,ao observar que este dilogo com os discpulos teve lugar quando [Jesus] orava em particular,estando com Ele apenas os discpulos (Lc 9,18). As duas anotaes levam-nos a tomarconscincia de que, plena contemplao do rosto do Senhor, no chegamos pelas nossas simplesforas, mas deixando a graa conduzir-nos pela sua mo. S a experincia do silncio e daorao oferece o ambiente adequado para maturar e desenvolver-se um conhecimento maisverdadeiro, aderente e coerente daquele mistrio cuja expresso culminante aparece na soleneproclamao do evangelista Joo: E o Verbo fez-Se carne e habitou no meio de ns; e ns vimosa glria d'Ele, glria que Lhe vem do Pai como a Filho nico, cheio de graa e de verdade (Jo1,14).

    A profundidade do mistrio

    21. O Verbo e a carne, a glria divina e a sua tenda no meio dos homens! na unio ntima eindivisvel destes dois plos que est a identidade de Cristo, segundo a formulao clssica doConclio de Calcednia (ano 451): uma pessoa em duas naturezas . A pessoa unicamente a doVerbo eterno, o Filho de Deus. As duas naturezas, sem qualquer confuso mas tambm sempossvel separao, so a divina e a humana.10

    Temos conscincia do carcter limitado dos nossos conceitos e palavras. Embora sempre humana,a frmula est calibrada cuidadosamente no seu contedo doutrinal, permitindo em certa medida denos debruarmos sobre o abismo do mistrio. Sim! Jesus verdadeiro Deus e verdadeiro homem!Como sucedeu com o apstolo Tom, a Igreja continuamente convidada por Cristo a tocar assuas chagas, ou seja, a reconhecer a plena humanidade d'Ele, assumida de Maria, entregue morte,transfigurada pela ressurreio: Chega aqui o teu dedo e v as minhas mos; aproxima a tua moe mete-a no meu lado (Jo 20,27). Como Tom, a Igreja prostra-se em adorao diante doRessuscitado, na plenitude do seu esplendor divino, e perenemente exclama: Meu Senhor e meuDeus! (Jo 20,28).

    22. O Verbo fez-Se carne (Jo 1,14). Esta sublime apresentao joanina do mistrio de Cristo confirmada por todo o Novo Testamento. Assim, S. Paulo afirma que o Filho de Deus nasceu dadescendncia de David segundo a carne (Rom 1,3; cf. 9,5). Se hoje, com o racionalismo quegrassa em muitos sectores da cultura contempornea, a f na divindade de Cristo a encontrar maisproblemas, tambm j houve contextos histricos e culturais em que predominou a tendncia areduzir ou diluir o carcter histrico concreto da humanidade de Jesus. Mas, para a f da Igreja, essencial e irrenuncivel afirmar que verdadeiramente o Verbo Se fez carne e assumiu todas asdimenses do ser humano, excepto o pecado (cf. Heb 4,15). Nesta perspectiva, a encarnao verdadeiramente um despojar-se (kenosis), por parte do Filho de Deus, da glria que Elepossui desde toda a eternidade (cf. Fil 2,6-8; 1 Ped 3,18).

    Por outro lado, esta humilhao do Filho de Deus no fim em si mesma, mas visa a plenaglorificao de Cristo, inclusivamente na sua humanidade: Por isso que Deus O exaltou e Lhedeu um nome que est acima de todo o nome, para que, ao nome de Jesus, todo o joelho se dobrenos cus, na terra e nos abismos, e toda a lngua confesse que Jesus Cristo o Senhor para glriade Deus Pai (Fil 2,9-11).

    23. o teu rosto, Senhor, que eu procuro (Sal 2726,8). Este antigo anseio do Salmista nopodia ter recebido resposta melhor e mais surpreendente que a contemplao do rosto de Cristo.N'Ele, Deus nos abenoou verdadeiramente, fazendo resplandecer sobre ns a luz do seu rosto (Sal 6766,2). Sendo ao mesmo tempo Deus e homem, Ele revela-nos tambm o rosto autntico dohomem, revela o homem a si mesmo .11

  • Jesus o homem novo (cf. Ef 4,24; Col 3,10), que convida a humanidade redimida a participarda sua vida divina. No mistrio da encarnao encontram-se as bases para uma antropologia capazde ultrapassar os seus prprios limites e contradies, caminhando para o prprio Deus, antes, paraa meta da divinizao , pela insero em Cristo do homem resgatado, admitido intimidade davida trinitria. Os Santos Padres insistiram muito sobre esta dimenso soteriolgica do mistrio daencarnao: s porque Se fez verdadeiramente homem o Filho de Deus, que o homem pode,n'Ele e por Ele, tornar-se realmente filho de Deus.12

    Rosto do Filho

    24. Esta sua identidade divino-humana manifesta-se intensamente nos Evangelhos; estes do-nosuma srie de elementos que nos permitem penetrar naquela rea reservada do mistrio que aautoconscincia de Cristo. A Igreja no tem dvidas de que, narrando inspirados pelo Alto, osEvangelistas captaram correctamente, nas palavras pronunciadas por Jesus, a verdade da suapessoa e a conscincia que Ele tinha da mesma. No precisamente isto que exprime Lucasquando refere as primeiras palavras de Jesus, com doze anos apenas, no templo de Jerusalm? Jento Ele est consciente de possuir uma relao nica com Deus, prpria de filho . De facto,quando a Me Lhe faz saber a aflio com que Ela e Jos O procuraram, Jesus responde semhesitar: Porque me procurveis? No sabeis que devia estar em casa de meu Pai? (Lc 2,49).Por isso, no admira que, uma vez homem feito, a sua linguagem exprima decididamente aprofundidade do seu prprio mistrio, como largamente o sublinham quer os evangelhos sinpticos(cf. Mt 11,27; Lc 10,22), quer sobretudo o evangelista Joo. Na conscincia que tem de Simesmo, Jesus no nutre qualquer dvida: O Pai est em Mim e Eu n'Ele (Jo 10,38).

    Embora seja lcito pensar que, no respeito da condio humana que O fazia crescer emsabedoria, em estatura e em graa (Lc 2,52), tambm a conscincia humana do seu mistrio tenhacrescido at expresso plena da sua humanidade glorificada, no h dvida de que Jesus, j nosdias da sua existncia histrica, tinha conscincia da sua identidade de Filho de Deus. Joosublinha-o tanto que chega a afirmar que, em ltima anlise, foi esse o motivo por que O rejeitarame condenaram: na realidade procuravam mat-Lo no s por violar o sbado, mas tambmporque dizia que Deus era seu Pai, fazendo-Se igual a Deus (Jo 5,18). No cenrio do Getsmanie do Glgota, a conscincia humana de Jesus ser submetida a dura prova; mas nem sequer odrama da sua paixo e morte conseguir turbar a sua serena certeza de ser o Filho do Pai celeste.

    Rosto doloroso

    25. E assim a nossa contemplao do rosto de Cristo trouxe-nos at ao aspecto mais paradoxaldo seu mistrio, que se manifesta na hora extrema a hora da Cruz. Mistrio no mistrio, diantedo qual o ser humano pode apenas prostrar-se em adorao.

    Passa diante dos nossos olhos, em toda a sua intensidade, a cena da agonia no Horto das Oliveiras.Oprimido ao pressentir a prova que O espera, Jesus, sozinho com Deus, invoca-O com a suahabitual e terna expresso de confidncia: Abba, Pai . Pede-Lhe para que, se for possvel, afasted'Ele o clice do sofrimento (cf. Mc 14,36); mas, o Pai parece no querer atender a voz do Filho.Para transmitir ao homem o rosto do Pai, Jesus teve no apenas de assumir o rosto do homem, masde tomar inclusivamente o rosto do pecado: Aquele que no havia conhecido pecado, Deus Ofez pecado por ns para que nos tornssemos n'Ele justia de Deus (2 Cor 5,21).

    Jamais acabaremos de sondar o abismo deste mistrio. Este paradoxo surge, em toda a sua rudeza,no grito de dor aparentemente desesperado que Jesus eleva na cruz: Elo, Elo, lamsabachthani?, que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste? (Mc 15,34).Ser possvel imaginar um tormento maior, uma escurido mais densa? Na realidade, aquele porque , cheio de angstia, dirigido ao Pai com as palavras iniciais do Salmo 22, apesar deconservar todo o realismo dum sofrimento inexprimvel, esclarecido pelo sentido geral da orao:o Salmista, num misto impressionante de sentimentos, une lado a lado o sofrimento e a confiana.

  • Com efeito, o Salmo prossegue dizendo: Em Vs confiaram os nossos pais; confiaram e Vs oslivrastes. [...] No Vos afasteis para longe de mim, porque estou atribulado; no h quem me ajude (2221,5.12).

    26. O grito de Jesus na cruz, amados irmos e irms, no traduz a angstia dum desesperado, masa orao do Filho que, por amor, oferece a sua vida ao Pai pela salvao de todos. Enquanto Seidentifica com o nosso pecado, abandonado pelo Pai, Ele abandona-Se nas mos do Pai.Os seus olhos permanecem fixos no Pai. Precisamente pelo conhecimento e experincia que s Eletem de Deus, mesmo neste momento de obscuridade Jesus v claramente a gravidade do pecado eisso mesmo f-Lo sofrer. S Ele, que v o Pai e por isso rejubila plenamente, avalia at ao fundo oque significa resistir com o pecado ao seu amor. A paixo sofrimento atroz na alma, antes de oser e bem mais intensamente que no corpo. A tradio teolgica no deixou de interrogar-se comopde Jesus viver simultaneamente a unio profunda com o Pai, por sua natureza fonte de alegria ebeatitude, e a agonia at ao grito do abandono. Na realidade, a presena conjunta destas duasdimenses, aparentemente inconciliveis, est radicada na profundidade insondvel da uniohiposttica.

    27. Para penetrarmos neste mistrio, a par da pesquisa teolgica pode-nos vir uma ajuda relevantetambm daquele grande patrimnio que a teologia vivida dos Santos. Estes do-nospreciosas indicaes que nos permitem acolher mais facilmente a intuio da f; e fazem-no mercdas luzes particulares que alguns deles receberam do Esprito Santo, ou mesmo da experincia queeles prprios tiveram daqueles terrveis estados de provao que a tradio mstica designa por noite escura . No raro terem vivido os Santos algo que se assemelha experincia de Jesusna cruz, num misto paradoxal de beatitude e dor. Na obra Dilogo da Divina Providncia, temosDeus Pai que mostra a Catarina de Sena como possvel estar presente, nas almas santas,simultaneamente a felicidade e o sofrimento: A alma sente-se feliz e atormentada: atormentadapelos pecados do prximo, feliz pela unio e afecto da caridade que a invadiu. Essas [almas santas]imitam o Cordeiro imaculado, o meu Filho Unignito, que na cruz Se sentia feliz e atormentado .13Da mesma forma, Teresa de Lisieux vive a sua agonia em comunho com a de Jesus, verificandoem si prpria precisamente o paradoxo de Jesus feliz e angustiado: Nosso Senhor, no Horto dasOliveiras, gozava de todas as alegrias da Trindade, e todavia a sua agonia no era menos atroz. um mistrio; mas posso assegurar-lhe escreve ela Superiora que compreendo alguma coisadesse mistrio a partir do que sinto em mim mesma .14 um testemunho esclarecedor! Alis, estapercepo eclesial da conscincia de Cristo encontra fundamento na prpria narrao dosEvangelistas, quando referem que, mesmo no seu abismo de sofrimento, Ele morre implorandoperdo para os seus carrascos (cf. Lc 23,34) e manifestando ao Pai o seu extremo abandono filial: Pai, nas tuas mos entrego o meu esprito (Lc 23,46).

    Rosto do Ressuscitado

    28. Como em Sexta-feira e Sbado Santo, a Igreja no cessa de contemplar este rostoensanguentado, no qual se esconde a vida de Deus e se oferece a salvao do mundo. Mas a suacontemplao do rosto de Cristo no pode deter-se na imagem do Crucificado. Ele oRessuscitado! Se assim no fosse, seria v a nossa pregao e a nossa f (cf. 1 Cor 15,14). Aressurreio foi a resposta do Pai sua obedincia, como recorda a Carta aos Hebreus: Quandovivia na carne, [Cristo] ofereceu, com grande clamor e lgrimas, oraes e splicas quele que Opodia salvar da morte, e foi atendido pela sua piedade. Apesar de Filho de Deus, aprendeu aobedecer, sofrendo, e, uma vez atingida a perfeio, tornou-Se para todos os que Lhe obedecemfonte de salvao eterna (5,7-9).

    Agora para Cristo ressuscitado que a Igreja olha. F-lo, seguindo os passos de Pedro que choroupor t-Lo negado e retomou o seu caminho confessando, com compreensvel tremor, o seu amor aCristo: Tu sabes que Te amo (Jo 21,15-17). A Igreja f-lo, seguindo Paulo que ficou fascinadopor Ele depois de O ter encontrado no caminho de Damasco: Para mim, o viver Cristo e omorrer lucro (Fil 1,21).

  • Passados dois mil anos destes acontecimentos, a Igreja revive-os como se tivessem sucedido hoje.No rosto de Cristo, ela a Esposa contempla o seu tesouro, a sua alegria. Dulcis Iesumemoria, dans vera cordis gaudia : Como doce a recordao de Jesus, fonte de verdadeiraalegria do corao! . Confortada por esta experincia revigoradora, a Igreja retoma agora o seucaminho para anunciar Cristo ao mundo ao incio do terceiro milnio: Ele o mesmo ontem, hojee sempre (Heb 13,8).

    IIIPARTIR DE CRISTO

    29. Eu estarei sempre convosco, at ao fim do mundo (Mt 28,20). Esta certeza, amados irmose irms, acompanhou a Igreja durante dois milnios e foi agora reavivada em nossos coraes coma celebrao do Jubileu; dela devemos auferir um novo impulso para a vida crist, melhor, fazerdela a fora inspiradora do nosso caminho. com a conscincia desta presena do Ressuscitadoentre ns que hoje nos pomos a pergunta feita a Pedro no fim do seu discurso de Pentecostes, emJerusalm: Que havemos de fazer? (Act 2,37).

    Interrogamo-nos animados de confiante optimismo, embora sem subestimar os problemas.Certamente no nos move a esperana ingnua de que possa haver uma frmula mgica para osgrandes desafios do nosso tempo; no ser uma frmula a salvar-nos, mas uma Pessoa, e a certezaque Ela nos infunde: Eu estarei convosco!

    Sendo assim, no se trata de inventar um programa novo . O programa j existe: o mesmo desempre, expresso no Evangelho e na Tradio viva. Concentra-se, em ltima anlise, no prprioCristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n'Ele viver a vida trinitria e com Ele transformara histria at sua plenitude na Jerusalm celeste. um programa que no muda com a variaodos tempos e das culturas, embora se tenha em conta o tempo e a cultura para um dilogoverdadeiro e uma comunicao eficaz. Este programa de sempre o nosso programa para oterceiro milnio.

    Mas, necessrio traduzi-lo em orientaes pastorais ajustadas s condies de cadacomunidade. O Jubileu proporcionou-nos a oportunidade extraordinria de nos empenharmos,durante alguns anos, num caminho comum da Igreja inteira, um caminho de catequese articuladasobre o tema trinitrio e acompanhada por especficos compromissos pastorais em ordem a umaexperincia jubilar fecunda. Agradeo a adeso ampla e cordial reservada proposta que fiz naCarta apostlica Tertio millennio adveniente. Agora, j no uma meta imediata que seapresenta diante de ns, mas o horizonte mais vasto e empenhativo da pastoral ordinria. Norespeito das coordenadas universais e irrenunciveis, necessrio fazer com que o nico programado Evangelho continue a penetrar, como sempre aconteceu, na histria de cada realidade eclesial. nas Igrejas locais que se podem estabelecer as linhas programticas concretas objectivos emtodos de trabalho, formao e valorizao dos agentes, busca dos meios necessrios quepermitam levar o anncio de Cristo s pessoas, plasmar as comunidades, permear em profundidadea sociedade e a cultura atravs do testemunho dos valores evanglicos.

    Por isso, exorto vivamente os Pastores das Igrejas particulares, valendo-se do contributo dasdiversas componentes do povo de Deus, a delinear confiadamente as etapas do caminho futuro,sintonizando as opes de cada Comunidade diocesana com as das Igrejas limtrofes e as da Igrejauniversal.

    Tal sintonia ser certamente facilitada pelo trabalho colegial, que j habitual, realizado pelosBispos nas Conferncias Episcopais e nos Snodos. Porventura no foi este tambm o motivo dasAssembleias continentais do Snodo dos Bispos que marcaram a preparao do Jubileu,elaborando vlidas directrizes para o anncio actual do Evangelho nos mltiplos contextos e nasdiversas culturas? Este rico patrimnio de reflexo no deve ser esquecido, mas levado aco

  • concreta.

    Espera-nos, portanto, uma entusiasmante obra de relanamento pastoral; uma obra que nos toca atodos. Entretanto, como incitamento e orientao comum, desejo apontar algumas prioridadespastorais que a experincia do Grande Jubileu me fez ver com particular intensidade.

    A santidade

    30. Em primeiro lugar, no hesito em dizer que o horizonte para que deve tender todo o caminhopastoral a santidade. No era isso tambm o objectivo ltimo da indulgncia jubilar, enquantograa especial oferecida por Cristo para que a vida de cada baptizado pudesse purificar-se erenovar-se profundamente?

    Espero que tenham sido tantos, dentre os que participaram no Jubileu, aqueles que gozaram de talgraa, com plena conscincia do seu carcter exigente. Terminado o Jubileu, volta-se ao caminhoordinrio, mas apontar a santidade permanece de forma mais evidente uma urgncia da pastoral.

    Assim, preciso redescobrir, em todo o seu valor programtico, o captulo V da Constituiodogmtica Lumen gentium, intitulado vocao universal santidade . Se os padres conciliaresderam tanto relevo a esta temtica, no foi para conferir um toque de espiritualidade eclesiologia,mas para fazer sobressair a sua dinmica intrnseca e qualificativa. A redescoberta da Igreja como mistrio , ou seja, como um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Esprito Santo ,15no podia deixar de implicar um reencontro com a sua santidade , entendida no seu sentidofundamental de pertena quele que o Santo por autonomsia, o trs vezes Santo (cf. Is 6,3).Professar a Igreja como santa significa apontar o seu rosto de Esposa de Cristo, que a amouentregando-Se por ela precisamente para a santificar (cf. Ef 5,25-26). Este dom de santidade, porassim dizer, objectiva oferecido a cada baptizado.

    Mas, o dom gera, por sua vez, um dever, que h-de moldar a existncia crist inteira: Esta avontade de Deus: a vossa santificao (1 Tes 4,3). um compromisso que diz respeito noapenas a alguns, mas os cristos de qualquer estado ou ordem so chamados plenitude da vidacrist e perfeio da caridade .16

    31. A recordao desta verdade elementar, para fazer dela o fundamento da programao pastoralque nos ocupa ao incio do novo milnio, poderia parecer, primeira vista, algo de poucooperativo. Pode-se porventura programar a santidade? Que pode significar esta realidade nalgica dum plano pastoral?

    Na verdade, colocar a programao pastoral sob o signo da santidade uma opo carregada deconsequncias. Significa exprimir a convico de que, se o Baptismo um verdadeiro ingresso nasantidade de Deus atravs da insero em Cristo e da habitao do seu Esprito, seria um contra-senso contentar-se com uma vida medocre, pautada por uma tica minimalista e uma religiosidadesuperficial. Perguntar a um catecmeno: Queres receber o Baptismo? significa ao mesmo tempopedir-lhe: Queres fazer-te santo? Significa colocar na sua estrada o radicalismo do Sermo daMontanha: Sede perfeitos, como perfeito vosso Pai celeste (Mt 5,48).

    Como explicou o Conclio, este ideal de perfeio no deve ser objecto de equvoco vendo nele umcaminho extraordinrio, percorrvel apenas por algum gnio da santidade. Os caminhos dasantidade so variados e apropriados vocao de cada um. Agradeo ao Senhor por me terconcedido, nestes anos, beatificar e canonizar muitos cristos, entre os quais numerosos leigos quese santificaram nas condies ordinrias da vida. hora de propor de novo a todos, comconvico, esta medida alta da vida crist ordinria: toda a vida da comunidade eclesial edas famlias crists deve apontar nesta direco. Mas claro tambm que os percursos dasantidade so pessoais e exigem uma verdadeira e prpria pedagogia da santidade, capaz de seadaptar ao ritmo dos indivduos; dever integrar as riquezas da proposta lanada a todos com asformas tradicionais de ajuda pessoal e de grupo e as formas mais recentes oferecidas pelasassociaes e movimentos reconhecidos pela Igreja.

  • A orao

    32. Para esta pedagogia da santidade, h necessidade dum cristianismo que se destaqueprincipalmente pela arte da orao. O ano jubilar foi um ano de orao, pessoal e comunitria,mais intensa. Mas a orao, como bem sabemos, no se pode dar por suposta; necessrioaprender a rezar, voltando sempre de novo a conhecer esta arte dos prprios lbios do divinoMestre, como os primeiros discpulos: Senhor, ensina-nos a orar (Lc 11,1). Na orao,desenrola-se aquele dilogo com Jesus que faz de ns seus amigos ntimos: Permanecei em Mim eEu permanecerei em vs (Jo 15,4). Esta reciprocidade constitui precisamente a substncia, a almada vida crist, e condio de toda a vida pastoral autntica. Obra do Esprito Santo em ns, aorao abre-nos, por Cristo e em Cristo, contemplao do rosto do Pai. Aprender esta lgicatrinitria da orao crist, vivendo-a plenamente sobretudo na liturgia, meta e fonte da vidaeclesial,17 mas tambm na experincia pessoal, o segredo dum cristianismo verdadeiramente vital,sem motivos para temer o futuro porque volta continuamente s fontes e a se regenera.

    33. No ser porventura um sinal dos tempos que se verifique hoje, no obstante os vastosprocessos de secularizao, uma generalizada exigncia de espiritualidade, que em grande partese exprime precisamente numa renovada carncia de orao? Tambm as outras religies, jlargamente presentes nos pases de antiga cristianizao, oferecem as suas respostas a talnecessidade, chegando s vezes a faz-lo com modalidades cativantes. Ns que temos a graa deacreditar em Cristo, revelador do Pai e Salvador do mundo, temos obrigao de mostrar aprofundidade a que pode levar o relacionamento com Ele.

    A grande tradio mstica da Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, bem elucidativa a talrespeito, mostrando como a orao pode progredir, sob a forma dum verdadeiro e prprio dilogode amor, at tornar a pessoa humana totalmente possuda pelo Amante divino, sensvel ao toque doEsprito, abandonada filialmente no corao do Pai. Experimenta-se ento ao vivo a promessa deCristo: Aquele que Me ama ser amado por meu Pai, e Eu am-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele (Jo 14,21). Trata-se dum caminho sustentado completamente pela graa, que no entanto requergrande empenhamento espiritual e conhece tambm dolorosas purificaes (a j referida noiteescura ), mas desemboca, de diversas formas possveis, na alegria inexprimvel vivida pelosmsticos como unio esponsal . Como no mencionar aqui, entre tantos testemunhos luminosos, adoutrina de S. Joo da Cruz e de S. Teresa de vila?

    As nossas comunidades, amados irmos e irms, devem tornar-se autnticas escolas deorao, onde o encontro com Cristo no se exprima apenas em pedidos de ajuda, mas tambm emaco de graas, louvor, adorao, contemplao, escuta, afectos de alma, at se chegar a umcorao verdadeiramente apaixonado . Uma orao intensa, mas sem afastar do compromissona histria: ao abrir o corao ao amor de Deus, aquela abre-o tambm ao amor dos irmos,tornando-nos capazes de construir a histria segundo o desgnio de Deus.18

    34. Sem dvida que so chamados de modo particular orao os fiis que tiveram o dom davocao a uma vida de especial consagrao: esta, por sua natureza, torna-os mais disponveis paraa experincia contemplativa, sendo importante que eles a cultivem com generoso empenho. Masseria errado pensar que o comum dos cristos possa contentar-se com uma orao superficial,incapaz de encher a sua vida. Sobretudo perante as numerosas provas que o mundo actual pe f, eles seriam no apenas cristos medocres, mas cristos em perigo : com a sua f cada vezmais debilitada, correriam o risco de acabar cedendo ao fascnio de sucedneos, aceitandopropostas religiosas alternativas e acomodando-se at s formas mais extravagantes de superstio.

    Por isso, preciso que a educao para a orao se torne de qualquer modo um pontoqualificativo de toda a programao pastoral. Eu mesmo propus-me dedicar as prximascatequeses das quartas-feiras reflexo sobre os Salmos, comeando pelos salmos das Laudes, aorao pblica com que a Igreja nos convida a consagrar e dar sentido aos nossos dias.

  • Seria de grande proveito que se diligenciasse com maior empenho nas comunidades no sreligiosas mas tambm paroquiais para que o clima fosse permeado de orao, valorizando com odevido discernimento as formas populares, e sobretudo educando para as formas litrgicas. A ideiade um dia da comunidade crist, em que se conjuguem, os mltiplos compromissos pastorais e detestemunho no mundo, com a celebrao eucarstica e mesmo com a reza de Laudes e Vsperas, talvez mais pensvel do que se cr. Demonstra-o a experincia de tantos grupos cristmenteempenhados, mesmo com forte presena laical.

    A Eucaristia dominical

    35. H-de-se pr o mximo empenho na liturgia, a meta para a qual se encaminha a aco daIgreja e a fonte donde promana toda a sua fora .19 No sculo XX, sobretudo depois do Conclio,a comunidade crist cresceu muito no modo de celebrar os Sacramentos, sobretudo a Eucaristia. preciso prosseguir nesta direco, dando particular relevo Eucaristia dominical e ao prpriodomingo, considerado um dia especial de festa, dia do Senhor ressuscitado e do dom do Esprito,verdadeira Pscoa da semana.20 H dois mil anos que o tempo cristo marcado pela recordaodaquele primeiro dia depois do sbado (Mc 16,2.9; Lc 24, 1; Jo 20,1), quando Cristoressuscitado trouxe aos Apstolos o dom da paz e do Esprito (cf. Jo 20,19-23). A verdade daressurreio de Cristo o dado primordial, sobre o qual se apoia a f crist (cf. 1 Cor 15,14), umfacto que est situado no centro do mistrio do tempo, e prefigura o ltimo dia em que Jesusvoltar glorioso. No sabemos os acontecimentos que nos reserva o milnio que est a comear,mas temos a certeza de que este permanecer firmemente nas mos de Cristo, o Rei dos reis eSenhor dos senhores (Ap 19,16); e, celebrando precisamente a sua Pscoa no s uma vez porano mas todos os domingos, a Igreja continuar a indicar a cada gerao o eixo fundamental dahistria, ao qual fazem referncia o mistrio das origens e o do destino final do mundo .21

    36. Por isso, desejo insistir, na linha do que disse na Carta apostlica Dies Domini, em que aparticipao na Eucaristia seja verdadeiramente, para cada baptizado, o corao do domingo:um compromisso irrenuncivel, abraado no s para obedecer a um preceito mas comonecessidade para uma vida crist verdadeiramente consciente e coerente. Estamos a entrar nummilnio que se anuncia caracterizado por uma profunda amlgama de culturas e religies mesmo nospases de antiga cristianizao. Em muitas regies, os cristos so ou vo-se tornando um pequenino rebanho (Lc 12,32). Isto coloca-os perante o desafio de testemunharem com maisfora, muitas vezes em condies de solido e hostilidade, os aspectos especficos que osidentificam. Um deles a obrigao de participar todos os domingos na celebrao eucarstica. Aocongregar semanalmente os cristos como famlia de Deus volta da mesa da Palavra e do Po devida, a Eucaristia dominical tambm o antdoto mais natural contra o isolamento; o lugarprivilegiado, onde a comunho constantemente anunciada e fomentada. Precisamente atravs daparticipao eucarstica, o dia do Senhor torna-se tambm o dia da Igreja,22 a qual poder assimdesempenhar de modo eficaz a sua misso de sacramento de unidade.

    O sacramento da Reconciliao

    37. Solicito ainda uma renovada coragem pastoral para, na pedagogia quotidiana das comunidadescrists, se propor de forma persuasiva e eficaz a prtica do sacramento da Reconciliao. Em1984, como recordareis, intervim sobre este tema atravs da Exortao ps-sinodal Reconciliatioet paenitentia, na qual foram recolhidos os frutos da reflexo duma Assembleia do Snodo dosBispos dedicada a esta problemtica. L, convidava a que se fizesse todo o esforo para superar acrise do sentido do pecado , que se verifica na cultura contempornea,23 e, mais ainda, que sevoltasse a descobrir Cristo como mysterium pietatis, no qual Deus nos mostra o seu coraocompassivo e nos reconcilia plenamente Consigo. Tal o rosto de Cristo que importa fazerredescobrir tambm atravs do sacramento da Penitncia, que constitui, para um cristo, a viaordinria para obter o perdo e a remisso dos seus pecados graves cometidos depois doBaptismo .24 Quando o referido Snodo se debruou sobre o tema, estava vista de todos a crisedeste Sacramento, sobretudo nalgumas regies do mundo. E os motivos que a originaram, no

  • desapareceram neste breve espao de tempo. Mas o ano jubilar, que foi caracterizadoparticularmente pelo recurso Penitncia sacramental, ofereceu-nos uma estimulante mensagem queno deve ser perdida: se tantos fiis jovens muitos deles se aproximaram frutuosamente desteSacramento, provavelmente necessrio que os Pastores se armem de maior confiana,criatividade e perseverana para o apresentarem e fazerem-no valorizar. No devemos render-nos,queridos Irmos no sacerdcio, diante de crises temporneas! Os dons do Senhor e osSacramentos contam-se entre os mais preciosos deles vm d'Aquele que bem conhece ocorao do homem e o Senhor da histria.

    O primado da graa

    38. No mbito da programao que nos espera, apostar com a maior confiana numa pastoral quecontemple o devido espao para a orao pessoal e comunitria significa respeitar um princpioessencial da viso crist da vida: o primado da graa. H uma tentao que sempre insidiaqualquer caminho espiritual e tambm a aco pastoral: pensar que os resultados dependem danossa capacidade de agir e programar. certo que Deus nos pede uma real colaborao com a suagraa, convidando-nos por conseguinte a investir, no servio pela causa do Reino, todos os nossosrecursos de inteligncia e de aco; mas ai de ns, se esquecermos que, sem Cristo, nadapodemos fazer (cf. Jo 15,5).

    a orao que nos faz viver nesta verdade, recordando-nos constantemente o primado de Cristoe, consequentemente, o primado da vida interior e da santidade. Quando no se respeita esteprimado, no h que maravilhar-se se os projectos pastorais se destinam ao falimento e deixam naalma um deprimente sentido de frustrao. Repete-se ento connosco aquela experincia dosdiscpulos narrada no episdio evanglico da pesca miraculosa: Trabalhmos durante toda a noitee nada apanhmos (Lc 5,5). Esse o momento da f, da orao, do dilogo com Deus, paraabrir o corao onda da graa e deixar a palavra de Cristo passar por ns com toda a sua fora:Duc in altum! Na pesca de ento, foi Pedro que disse a palavra de f: tua palavra, lanarei asredes (Lc 5,5). Neste incio de milnio, seja permitido ao Sucessor de Pedro convidar toda aIgreja a este acto de f, que se exprime num renovado compromisso de orao.

    Escuta da Palavra

    39. No h dvida que este primado da santidade e da orao s concebvel a partir dumarenovada escuta da palavra de Deus. Desde o Conclio Vaticano II, que assinalou o papelproeminente da palavra divina na vida da Igreja, muito se avanou certamente na escuta assdua ena leitura atenta da Sagrada Escritura. Foi-lhe garantido o lugar de honra que merece na oraopblica da Igreja. A ela recorrem j em larga medida os indivduos e as comunidades, e h muitosentre os prprios fiis leigos que dela se ocupam, habilitados com a ajuda preciosa de estudosteolgicos e bblicos. E sobretudo h a obra da evangelizao e da catequese que se temrevitalizado precisamente pela ateno palavra de Deus. preciso, amados irmos e irms,consolidar e aprofundar esta linha, inclusive com a difuso do livro da Bblia nas famlias. De modoparticular necessrio que a escuta da Palavra se torne um encontro vital, segundo a antiga esempre vlida tradio da lectio divina: esta permite ler o texto bblico como palavra viva queinterpela, orienta, plasma a existncia.

    Anncio da Palavra

    40. Alimentar-nos da Palavra para sermos servos da Palavra no trabalho da evangelizao: tal, sem dvida, uma prioridade da Igreja ao incio do novo milnio. Deixou de existir, mesmo nospases de antiga evangelizao, a situao de sociedade crist que, no obstante as muitasfraquezas que sempre caracterizam tudo o que humano, tinha explicitamente como ponto dereferncia os valores evanglicos. Hoje tem-se de enfrentar com coragem uma situao que se vaitornando cada vez mais variada e difcil com a progressiva mistura de povos e culturas quecaracteriza o novo contexto da globalizao. Ao longo destes anos, muitas vezes repeti o apelo nova evangelizao; e fao-o agora uma vez mais para inculcar sobretudo que preciso

  • reacender em ns o zelo das origens, deixando-nos invadir pelo ardor da pregao apostlica quese seguiu ao Pentecostes. Devemos reviver em ns o sentimento ardente de Paulo que o levava aexclamar: Ai de mim se no evangelizar! (1 Cor 9,16).

    Esta paixo no deixar de suscitar na Igreja uma nova missionariedade, que no poder serdelegada a um grupo de especialistas , mas dever corresponsabilizar todos os membros dopovo de Deus. Quem verdadeiramente encontrou Cristo, no pode guard-Lo para si; tem de Oanunciar. preciso um novo mpeto apostlico, vivido como compromisso dirio dascomunidades e grupos cristos. Que isso se faa, porm, no devido respeito pelo caminhoprprio de cada pessoa e com ateno pelas diferentes culturas em que deve ser semeada amensagem crist, para que os valores especficos de cada povo no sejam renegados, maspurificados e levados sua plenitude.

    O cristianismo do terceiro milnio dever responder cada vez melhor a esta exigncia deinculturao. Permanecendo o que , na fidelidade total ao anncio evanglico e tradioeclesial, o cristianismo assumir tambm o rosto das diversas culturas e dos vrios povos onde foracolhido e se radicar. Ao longo do ano jubilar, pudemos saborear de modo especial a beleza desterosto pluriforme da Igreja. Talvez seja s um incio, um cone apenas esboado do futuro que oEsprito de Deus nos prepara.

    Cristo h-de ser proposto a todos com confiana. A proposta seja feita aos adultos, s famlias, aosjovens, s crianas, sem nunca esconder as exigncias mais radicais da mensagem evanglica, masadaptando-a, a nvel de sensibilidade e linguagem, situao de cada um, segundo o exemplo dePaulo que afirmava: Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a todo o custo (1 Cor 9,22).Ao recomendar tudo isto, penso particularmente pastoral juvenil. Precisamente vindo dosjovens, o Jubileu, como acima recordei, presenteou-nos com um testemunho de generosadisponibilidade. Temos de saber valorizar resposta to consoladora, investindo aquele entusiasmocomo um novo talento (cf. Mt 25,15) que o Senhor colocou nas nossas mos para faz-lo frutificar.

    41. Nesta missionariedade confiante, empreendedora e criativa, sirva-nos de estmulo e orientaoo exemplo luminoso de tantas testemunhas da f que o Jubileu nos fez recordar. A Igreja encontrousempre, nos seus mrtires, uma semente de vida. Sanguis martyrum, semen christianorum : 25esta clebre lei enunciada por Tertuliano, sujeita prova da histria, sempre se mostrouverdadeira. Porque no haveria de o ser tambm no sculo e milnio que estamos a comear?Talvez estivssemos um pouco habituados a ver os mrtires de longe, como se se tratasse dumacategoria do passado associada especialmente com os primeiros sculos da era crist. Acomemorao jubilar descerrou-nos um cenrio surpreendente, mostrando o nosso tempoparticularmente rico de testemunhas, que souberam, ora dum modo ora doutro, viver o Evangelhoem situaes de hostilidade e perseguio at darem muitas vezes a prova suprema do sangue.Neles, a palavra de Deus, semeada em terra boa, produziu o cntuplo (cf. Mt 13,8.23). Com o seuexemplo, indicaram-nos e de certo modo aplanaram-nos a estrada do futuro. A ns, resta-nosapenas seguir, com a graa de Deus, as suas pegadas.

    IVTESTEMUNHAS DO AMOR

    42. por isto que todos sabero que sois meus discpulos, se vos amardes uns aos outros (Jo13,35). Se verdadeiramente contemplmos o rosto de Cristo, amados irmos e irms, a nossaprogramao pastoral no poder deixar de inspirar-se ao mandamento novo que Ele nos deu: Assim como Eu vos amei, tambm vs deveis amar-vos uns aos outros (Jo 13,34).

    o outro vasto campo, em que se torna necessrio um decidido empenho programtico a nvel daIgreja universal e das Igrejas particulares: o da comunho (koinonia), que encarna e manifesta aprpria essncia do mistrio da Igreja. A comunho o fruto e a expresso daquele amor que,

  • brotando do corao do Pai eterno, se derrama em ns atravs do Esprito que Jesus nos d (cf.Rom 5,5), para fazer de todos ns um s corao e uma s alma (Act 4,32). Ao realizar estacomunho de amor, a Igreja manifesta-se como sacramento, ou sinal, e instrumento da ntimaunio com Deus e da unidade de todo o gnero humano .26

    A tal respeito, as palavras do Senhor so to precisas que no possvel reduzir o seu alcance. AIgreja ter necessidade de muitas coisas para a sua caminhada histrica, tambm no novo sculo;mas, se faltar a caridade (agape), tudo ser intil. O apstolo Paulo recorda-no-lo no hino dacaridade: Ainda que falssemos as lnguas dos homens e dos anjos e tivssemos uma f capaz detransportar montanhas , mas faltasse a caridade, de nada nos serviria (cf. 1 Cor 13,2). Acaridade verdadeiramente o corao da Igreja, como bem intuiu S. Teresa de Lisieux que euquis proclamar Doutora da Igreja precisamente como perita da scientia amoris: Compreendi quea Igreja tem um corao, um corao ardente de amor; compreendi que s o amor fazia actuar osmembros da Igreja [...]; compreendi que o amor encerra em si todas as vocaes, que o amor tudo .27

    Uma espiritualidade de comunho

    43. Fazer da Igreja a casa e a escola da comunho: eis o grande desafio que nos espera nomilnio que comea, se quisermos ser fiis ao desgnio de Deus e corresponder s expectativasmais profundas do mundo.

    Que significa isto em concreto? Tambm aqui o nosso pensamento poderia fixar-se imediatamentena aco, mas seria errado deixar-se levar por tal impulso. Antes de programar iniciativasconcretas, preciso promover uma espiritualidade da comunho, elevando-a ao nvel deprincpio educativo em todos os lugares onde se plasma o homem e o cristo, onde se educam osministros do altar, os consagrados, os agentes pastorais, onde se constroem as famlias e ascomunidades. Espiritualidade da comunho significa em primeiro lugar ter o olhar do coraovoltado para o mistrio da Trindade, que habita em ns e cuja luz h-de ser percebida tambm norosto dos irmos que esto ao nosso redor. Espiritualidade da comunho significa tambm acapacidade de sentir o irmo de f na unidade profunda do Corpo mstico, isto , como um quefaz parte de mim , para saber partilhar as suas alegrias e os seus sofrimentos, para intuir os seusanseios e dar remdio s suas necessidades, para oferecer-lhe uma verdadeira e profunda amizade.Espiritualidade da comunho ainda a capacidade de ver antes de mais nada o que h de positivono outro, para acolh-lo e valoriz-lo como dom de Deus: um dom para mim , como o para oirmo que directamente o recebeu. Por fim, espiritualidade da comunho saber criar espao para o irmo, levando os fardos uns dos outros (Gal 6,2) e rejeitando as tentaes egostas quesempre nos insidiam e geram competio, arrivismo, suspeitas, cimes. No haja iluses! Sem estacaminhada espiritual, de pouco serviro os instrumentos exteriores da comunho. Revelar-se-iammais como estruturas sem alma, mscaras de comunho, do que como vias para a sua expresso ecrescimento.

    44. Posto isto, o novo sculo h-de ver-nos empenhados mais intensamente na valorizao edesenvolvimento dos sectores e instrumentos que, segundo as grandes directrizes do ConclioVaticano II, servem para assegurar e garantir a comunho. Como no pensar, em primeiro lugar, adois servios especficos de comunho que so o ministrio petrino e, intimamente ligada comele, a colegialidade episcopal? Trata-se de duas realidades que tm o seu fundamento econsistncia no prprio desgnio de Cristo sobre a Igreja,28 mas por isso mesmo necessitam dumaverificao contnua que assegure a sua autntica inspirao evanglica.

    Depois do Conclio Vaticano II, j muito se fez nomeadamente quanto reforma da Cria Romana, organizao dos Snodos, ao funcionamento das Conferncias Episcopais; mas certamente hainda muito que fazer para valorizar o melhor possvel as potencialidades destes instrumentos dacomunho, hoje particularmente necessrios tendo em vista a exigncia de dar resposta pronta eeficaz aos problemas que a Igreja tem de enfrentar nas rpidas mudanas do nosso tempo.

  • 45. Os espaos da comunho ho-de ser aproveitados e promovidos dia-a-dia, a todos os nveis,no tecido da vida de cada Igreja. Nesta, a comunho deve resplandecer nas relaes entre Bispos,presbteros e diconos, entre Pastores e o conjunto do povo de Deus, entre clero e religiosos, entreassociaes e movimentos eclesiais. Para isso, devem-se valorizar cada vez mais os organismos departicipao previstos no direito cannico, tais como os Conselhos Presbiterais e Pastorais.Como se sabe, estes no se regem pelos critrios da democracia parlamentar, porque operam porvia consultiva, e no deliberativa; 29 mas no por isso que perdem o seu sentido e importncia. que a teologia e a espiritualidade da comunho inspiram uma recproca e eficaz escuta entrePastores e fiis, que por um lado os mantm unidos a priori em tudo o que essencial, e por outrof-los confluir normalmente para decises ponderadas e compartilhadas mesmo naquilo que opinvel.

    Com tal finalidade, preciso assumir aquela antiga sabedoria que, sem prejudicar em nada o papelcategorizado dos Pastores, procurava incentiv-los mais ampla escuta de todo o povo de Deus. significativo o que S. Bento lembra ao abade do mosteiro, ao convid-lo a consultar tambm osmais novos: frequente o Senhor inspirar a um mais jovem um parecer melhor .30 E S. Paulinode Nola exorta: Dependemos dos lbios de todos os fiis, porque, em cada fiel, sopra o Espritode Deus .31

    Desta forma, se a cincia jurdica, ao estabelecer normas precisas de participao, manifesta aestrutura hierrquica da Igreja e esconjura tentaes de arbtrio e injustificadas pretenses, aespiritualidade da comunho confere uma alma ao dado institucional, ao aconselhar confiana eabertura que corresponde plenamente dignidade e responsabilidade de cada membro do povo deDeus.

    A variedade das vocaes

    46. Esta perspectiva de comunho est intimamente ligada capacidade que tem a comunidadecrist de dar espao a todos os dons do Esprito. A unidade da Igreja no uniformidade, masintegrao orgnica das legtimas diversidades; a realidade de muitos membros unidos num scorpo, o nico Corpo de Cristo (cf. 1 Cor 12,12). Por isso, necessrio que a Igreja do terceiromilnio estimule todos os baptizados e crismados a tomarem conscincia da sua prpria e activaresponsabilidade na vida eclesial. Ao lado do ministrio ordenado, podem florescer outrosministrios institudos ou simplesmente reconhecidos em proveito de toda a comunidadeajudando-a nas suas diversas necessidades: desde a catequese animao litrgica, desde aeducao dos jovens s vrias expresses da caridade.

    Um generoso empenho certamente h-de ser posto sobretudo atravs de uma orao insistenteao Senhor da messe (cf. Mt 9,38) na promoo das vocaes ao sacerdcio e de especialconsagrao. Trata-se dum problema de grande importncia para a vida da Igreja em todo omundo. Mas, nalguns pases de antiga evangelizao, tal problema tornou-se dramtico devido alterao do contexto social e aridez religiosa causada pelo consumismo e secularismo. necessrio e urgente estruturar uma vasta e capilar pastoral das vocaes, que envolva asparquias, os centros educativos, as famlias, suscitando uma reflexo mais atenta sobre os valoresessenciais da vida, cuja sntese decisiva est na resposta que cada um convidado a dar aochamamento de Deus, especialmente quando esta pede a total doao de si mesmo e das prpriasforas causa do Reino.

    Neste contexto, aparece em todo o seu valor cada uma das restantes vocaes, radicadas nariqueza da vida nova recebida no sacramento do Baptismo. Em particular, h que descobrir cadavez melhor a vocao prpria dos fiis leigos, que so chamados, enquanto tais, a procurar oReino de Deus, tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus ,32 e tmtambm um papel prprio a desempenhar na misso do inteiro povo de Deus, na Igreja e nomundo [...], com a sua aco para evangelizar e santificar os homens .33

    Nesta mesma linha, reveste uma grande importncia para a comunho o dever de promover as

  • vrias realidades agregativas, que, tanto nas suas formas mais tradicionais como nas maisrecentes dos movimentos eclesiais, continuam a dar Igreja uma grande vitalidade que dom deDeus e constitui uma autntica primavera do Esprito . , sem dvida, necessrio queassociaes e movimentos, tanto a nvel da Igreja universal como das Igrejas particulares, actuemem plena sintonia eclesial e obedincia s directrizes autorizadas dos Pastores. Mas, a todos dirigida, de forma exigente e peremptria, a advertncia do Apstolo: No extingais o Esprito,no desprezeis as profecias. Examinai tudo e retende o que for bom (1 Tes 5,19-21).

    47. Deve ser assegurada tambm uma especial ateno pastoral da famlia, ainda maisnecessria na poca actual, que regista uma crise generalizada e radical desta instituiofundamental. Na viso crist do matrimnio, a relao entre um homem e uma mulher relaorecproca e total, nica e indissolvel corresponde ao desgnio originrio de Deus, o qual,ofuscado na histria pela dureza do corao , foi restaurado no seu esplendor primordial porCristo, mostrando o que Deus quis ao princpio (Mt 19,8). No matrimnio elevado dignidadede Sacramento, est expresso o grande mistrio do amor esponsal de Cristo pela sua Igreja (cf.Ef 5,32).

    Sobre este ponto, a Igreja no pode ceder s presses de determinada cultura, ainda quegeneralizada e por vezes agressiva. Ao contrrio, preciso fazer com que, por meio dumaeducao evanglica sempre mais completa, as famlias crists ofeream um exemplo persuasivo dapossibilidade de um matrimnio vivido de forma plenamente congruente com o desgnio de Deus ecom as verdadeiras exigncias da pessoa humana a pessoa dos esposos e sobretudo a pessoamais frgil dos filhos. As prprias famlias ho-de estar cada vez mais conscientes da ateno que devida aos filhos, tornando-se sujeitos activos, na Igreja e na sociedade, com uma presena eficazna defesa dos seus direitos.

    O empenho ecumnico

    48. Depois, como no mencionar a urgncia de fomentar a comunho no mbito delicado doempenho ecumnico? Infelizmente, os tristes legados do passado vo acompanhar-nos ainda paraalm do limiar do novo milnio. A celebrao jubilar registou algum sinal verdadeiramente profticoe tocante, mas h ainda tanto caminho a percorrer!

    Na realidade, o Grande Jubileu, levando-nos a fixar o olhar em Cristo, fez-nos tomar mais vivaconscincia da Igreja como mistrio de unidade. Creio na Igreja una : isto que afirmamos naprofisso de f, tem o seu fundamento ltimo em Cristo, no Qual a Igreja no est dividida (cf.1 Cor 1,11-13). Enquanto Corpo de Cristo, na unidade realizada pelo dom do Esprito, a Igreja indivisvel. A realidade da diviso forma-se no terreno da histria, nas relaes entre os filhos daIgreja, em consequncia da fragilidade humana para acolher o dom que continuamente dimana deCristo-Cabea para o seu Corpo mstico. A orao de Jesus no Cenculo que todos sejamum; como Tu, Pai, ests em Mim e Eu em Ti, que tambm eles estejam em Ns (Jo 17,21) simultaneamente revelao e invocao. Revela-nos a unidade de Cristo com o Pai, como lugarfontal da unidade da Igreja e dom perene que ela receber misteriosamente d'Ele at ao fim dostempos. Esta unidade, que no deixa de realizar-se concretamente na Igreja Catlica, apesar doslimites prprios do ser humano, manifesta-se tambm, em diversa medida, nos numerososelementos de santificao e de verdade que se encontram no seio das outras Igrejas eComunidades eclesiais; tais elementos, enquanto dons prprios da Igreja de Cristo, impele-asincessantemente para a unidade plena.34

    A orao de Jesus lembra-nos que este dom precisa de ser acolhido e fomentado de maneirasempre mais profunda. A invocao ut unum sint simultaneamente imperativo que nos obriga,fora que nos sustenta, salutar censura nossa preguia e mesquinhez de corao. sobre aorao de Jesus, no sobre as nossas capacidades, que assenta a confiana de poder chegar,tambm na histria, comunho plena e visvel de todos os cristos.

    Nesta perspectiva de renovado caminho ps-jubilar, olho com grande esperana para as Igrejas

  • do Oriente, esperando que retorne plenamente aquela permuta de dons que enriqueceu a Igreja doprimeiro milnio. A lembrana do tempo em que a Igreja respirava com dois pulmes , estimuleos cristos do Oriente e do Ocidente a caminharem juntos, na unidade da f e no respeito daslegtimas diferenas, aceitando-se e ajudando-se uns aos outros como membros do nico Corpo deCristo.

    Com idntico empenho h-de ser cultivado o dilogo ecumnico com os irmos e irms daComunho Anglicana e das Comunidades eclesiais nascidas da Reforma. O confrontoteolgico sobre pontos essenciais da f e da moral crist, a colaborao na caridade e sobretudo ogrande ecumenismo da santidade no deixaro, com a ajuda de Deus, de produzir os seus frutos nofuturo. Entretanto, prossigamos confiadamente pelo caminho, suspirando pelo momento em quepoderemos, com todos os discpulos de Cristo sem excepo, cantar juntos com toda a nossa voz: Como bom e agradvel viverem os irmos em harmonia! (Sal 133132,1).

    A caridade fraterna

    49. Partindo da comunho dentro da Igreja, a caridade abre-se, por sua natureza, ao serviouniversal, frutificando no compromisso dum amor activo e concreto por cada ser humano. Estembito qualifica de modo igualmente decisivo a vida crist, o estilo eclesial e a programaopastoral. de se esperar que o sculo e o milnio que esto a comear ho-de ver a dedicao aque pode levar a caridade para com os mais pobres. Se verdadeiramente partimos dacontemplao de Cristo, devemos saber v-Lo sobretudo no rosto daqueles com quem Ele mesmoSe quis identificar: Porque tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber; eraperegrino e recolhestes-Me; estava nu e destes-Me de vestir; adoeci e visitastes-Me; estive napriso e fostes ter Comigo (Mt 25,35-36). Esta pgina no um mero convite caridade, masuma pgina de cristologia que projecta um feixe de luz sobre o mistrio de Cristo. Nesta pgina,no menos do que o faz com a vertente da ortodoxia, a Igreja mede a sua fidelidade de Esposa deCristo.

    certo que ningum pode ser excludo do nosso amor, uma vez que, pela sua encarnao, Ele, oFilho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ; 35 mas, segundo as palavrasinequivocveis do Evangelho que acabmos de referir, h na pessoa dos pobres uma especialpresena de Cristo, obrigando a Igreja a uma opo preferencial por eles. Atravs desta opo,testemunha-se o estilo do amor de Deus, a sua providncia, a sua misericrdia, e de algum modocontinua-se a semear na histria aqueles grmenes do Reino de Deus que foram visveis na vidaterrena de Jesus, ao acolher a quantos recorriam a Ele para todas as necessidades espirituais emateriais.

    50. No nosso tempo, de facto, so muitas as necessidades que interpelam a sensibilidade crist. Onosso mundo comea o novo milnio, carregado com as contradies dum crescimento econmico,cultural e tecnolgico que oferece a poucos afortunados grandes possibilidades e deixa milhes emilhes de pessoas no s margem do progresso, mas a braos com condies de vida muitoinferiores ao mnimo que devido dignidade humana. Como possvel que ainda haja, no nossotempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado doscuidados mdicos mais elementares, quem no tenha uma casa onde abrigar-se?

    E o cenrio da pobreza poder ampliar-se indefinidamente, se s antigas pobrezas acrescentarmosas novas que frequentemente atingem mesmo os ambientes e categorias dotados de recursoseconmicos, mas sujeitos ao desespero da falta de sentido, tentao da droga, solido navelhice ou na doena, marginalizao ou discriminao social. O cristo, que se debrua sobreeste cenrio, deve aprender a fazer o seu acto de f em Cristo, decifrando o apelo que Ele lana apartir deste mundo da pobreza. Trata-se de dar continuidade a uma tradio de caridade, que jteve inumerveis manifestaes nos dois milnios passados, mas que hoje requer, talvez, aindamaior capacidade inventiva. hora duma nova fantasia da caridade , que se manifeste no snem sobretudo na eficcia dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidriocom quem sofre, de tal modo que o gesto de ajuda seja sentido, no como esmola humilhante, mas

  • como partilha fraterna.

    Por isso, devemos procurar que os pobres se sintam, em cada comunidade crist, como em suacasa . No seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentao da boa nova do Reino? Sem estaforma de evangelizao, realizada atravs da caridade e do testemunho da pobreza crist, o annciodo Evangelho e este anncio a primeira caridade corre o risco de no ser compreendido oude afogar-se naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicao diariamente nosapresenta. A caridade das obras garante uma fora inequivocvel caridade das palavras.

    Os desafios de hoje

    51. E como ficar indiferentes diante das perspectivas dum desequilbrio ecolgico, que tornainabitveis e hostis ao homem vastas reas do planeta? Ou face aos problemas da paz,frequentemente ameaada com o ncubo de guerras catastrficas? Ou frente ao vilipndio dosdireitos humanos fundamentais de tantas pessoas, especialmente das crianas? Muitas so asurgncias, a que o esprito cristo no pode ficar insensvel.

    Um especial empenho deve colocar-se em alguns aspectos da radicalidade evanglica quefrequentemente so menos compreendidos, chegando a tornar-se impopular a interveno daIgreja, mas isso no pode fazer com que estejam menos presentes na agenda eclesial da caridade.Refiro-me obrigao de se empenhar pelo respeito da vida de cada ser humano, desde aconcepo at ao seu ocaso natural. De igual modo, o servio ao homem obriga-nos a gritar,oportuna e inoportunamente, que todos os que lanam mo das novas potencialidades da cincia,principalmente no mbito das biotecnologias, no podem jamais descurar as exignciasfundamentais da tica, fazendo apelo a uma discutvel solidariedade que acaba por discriminar vidasentre si, com desprezo pela dignidade prpria de cada ser humano.

    Para a eficcia do testemunho cristo, especialmente nestes mbitos delicados e controversos, importante fazer um grande esforo para explicar adequadamente os motivos da posio da Igreja,sublinhando sobretudo que no se trata de impor aos no crentes uma perspectiva de f, mas deinterpretar e defender valores radicados na prpria natureza do ser humano. A caridade tomarento necessariamente a forma de servio cultura, poltica, economia, famlia, para que emtoda a parte sejam respeitados os princpios fundamentais de que depende o destino do ser humanoe o futuro da civilizao.

    52. Tudo isto h-de ser naturalmente realizado com um estilo especificamente cristo: competesobretudo aos leigos, no cumprimento da vocao que lhes prpria, fazerem-se presentes nestastarefas sem nunca ceder tentao de reduzir as comunidades crists a agncias sociais. De modoparticular, o relacionamento com a sociedade civil dever verificar-se no respeito da sua autonomiae competncia, segundo os ensinamentos propostos pela doutrina social da Igreja.

    conhecido o esforo que o Magistrio eclesial tem realizado, sobretudo no sculo XX, para ler arealidade social luz do Evangelho e oferecer de forma cada vez mais concreta e orgnica o seucontributo para a soluo da questo social, hoje alargada escala planetria.

    Esta vertente tico-social uma dimenso imprescindvel do testemunho cristo: h que rejeitar atentao duma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com asexigncias da caridade, com a lgica da encarnao e, em ltima anlise, com a prpria tensoescatolgica do cristianismo. Se esta tenso nos torna conscientes do carcter relativo da histria,no o faz para nos desinteressarmos do dever de a construir. A tal respeito, continua sempre actualo ensinamento do Conclio Vaticano II: A mensagem crist no afasta os homens da tarefa deconstruir o mundo, nem os leva a desatender o bem dos seus semelhantes, mas, antes, os obrigaainda mais a realizar essas actividades .36

    Um sinal concreto

    53. Para dar um sinal desta dimenso da caridade e da promoo humana, que se funda nas

  • exigncias ntimas do Evangelho, quis que o ano jubilar, entre os numerosos frutos de caridade quej produziu durante a sua realizao penso de modo particular ajuda dada a muitos irmosmais pobres que lhes permitiu tomar parte no Jubileu deixasse tambm uma obra que de algummodo constituisse o fruto e o selo da caridade jubilar. Muitos peregrinos deram, de diversosmodos, a sua esmola e, com eles, tambm muitos protagonistas da actividade econmicaofereceram apoios generosos, que serviram para garantir uma adequada realizao da ocorrnciajubilar. Uma vez pagas as despesas que foi preciso fazer durante o ano, o saldo que houver deveerser destinado para fins de caridade. realmente importante que, dum acontecimento religioso tosignificativo, seja afastado qualquer indcio de especulao econmica. O que sobrar h-de servirpara se repetir, nesta circunstncia tambm, a experincia j muitas vezes vivida ao longo da histriaa comear dos primrdios da Igreja, quando a comunidade de Jerusalm deu o testemunho quetanto impressionou os no cristos duma espontnea permuta de dons, at posse comum dosbens, em favor dos mais pobres (cf. Act 2,44-45).

    A obra a realizar ser apenas um pequeno rio que ir confluir no grande caudal da caridade cristque atravessa a histria. Um rio pequeno, mas significativo! O Jubileu fez com que o mundo olhassepara Roma, a Igreja que preside caridade ,37 e deixasse nas mos de Pedro a sua esmola. Estacaridade que se manifestara no centro da catolicidade derrama-se agora, de algum modo, sobre omundo atravs deste sinal que se pretende seja fruto e recordao viva da comunhoexperimentada por ocasio do Jubileu.

    54. Comea um novo sculo e um novo milnio sob a luz de Cristo. Nem todos, porm, vem estaluz. A ns cabe a tarefa maravilhosa e exigente de ser o seu reflexo . o mysterium lunae, toquerido contemplao dos Santos Padres que usavam esta imagem para indicar como a Igrejadepende de Cristo: Ele o Sol, cuja luz ela reflecte.38 Era uma maneira de exprimir o que Cristodisse quando se apresentou como Luz do mundo (Jo 8,12) e pediu tambm aos seus discpulospara serem a luz do mundo (Mt 5,14).

    Este um encargo que nos faz tremer, quando olhamos para a fraqu