HG163 - Wolfgang Dopcke - A vida longa das linhas retas - cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra.pdf

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    A PARTICIPAOBRASILEIRAEMNEGOCIAESMULTILATERAISEREGIONAIS... 77

    A vida longa das linhas retas:

    cinco mitos sobre as fronteiras nafrica Negra1

    WOLFGANG DPCKE*

    Introduo

    As fronteiras dos Estados africanos modernos so um polmico objeto deestudo. So apontadas, tanto no discurso acadmico quanto na opinio pblica2 ,como um dos principais culpados pela instabilidade poltica e pelos conflitos nocontinente. A maneira arbitrria pela qual as fronteiras foram impostas ssociedades africanas pelos colonizadores europeus, ignorando as realidades tnicas,geogrficas, ecolgicas e polticas existentes3 , teria criado as razes de one ofAfricas greatest problems that developed with the European conquest.4 O ditofamoso de Lord Curzon de que frontiers are indeed the razors edge on whichhad suspended the modern issues of war and peace parece ser verdadeiro tambmpara a frica.5

    O termofronteira aqui referido como a divisa internacional que delimitao territrio sobre o qual um Estado comstatuse papel internacional exerce soberaniae jurisdio. Esta noo de fronteira, ao contrrio dafrontierentendida na lnguainglesa como uma zona6 , refere-se a uma linha described in words in a treaty,and/or shown on a map or chart, and/or marked on the ground by physical indicators

    [...]. A boundary has no breadth and a meeting of boundaries [...] involves a pointand not a zone of joint sovereignty.7 A criao de fronteiras na poca modernaenvolve um processo histrico com trs fases distintas: a) a alocao, sendo umadiviso bruta e inexata de territrio; b) a delimitao, sendo a descrio dopercurso da linha fronteiria em um tratado, um mapa ou outro documento; c) ademarcaofsica da fronteira na paisagem.

    Os atuais 54 Estados africanos8 esto divididos por 109 fronteirasinternacionais que medem no conjunto cerca de 50.000 milhas e, dentro destaperspectiva, a frica o continente mais dividido. As fronteiras modernas na

    Rev. Bras. Polt . Int. 42 (1): 77-109 [1999]* Professor Adjunto em Histria Contempornea do Departamento de Histria da Universidade deBraslia.

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    frica so, em elevada proporo, consideradas artificiais. Somente 26% delassegue linhas dadas pelo relevo natural (como montanhas, rios, linhas divisrias deguas). Quase a metade das fronteiras corresponde a linhas astronmicas e 30%

    a linhas matemticas.9 As fronteiras tambm dividem o que antigamente foidenominado reas tribais e o que hoje aparece mais como reas culturais. Aindaque tenhamos em mente a complexidade e a impossibilidade de se atribuir limitesexatos a fenmenos to flexveis e fluidos como culture areaou denominaotnica, podemos afirmar que, na frica contempornea, muito poucas fronteirascoincidem com as culture areas e que entre 131 e 187 destas culture areas,respectivamente reas tribais, esto divididas entre um ou mais Estados.10

    No debate sobre os conflitos polticos na frica contempornea, comumente

    destaca-se o papel das fronteiras e suas origens coloniais como uma das principaisvertentes. Entretanto, este discurso, dominado por cientistas polticos, recorrefreqentemente a esteretipos e mitos e se recusa a reconhecer a complexidadedo assunto, especialmente na sua dimenso histrica. objetivo deste trabalhoconfrontar e discutir esses mitos sobre fronteiras na frica. Ao contrrio do discursopopular, ser argumentado que na frica pr-colonial existiam claras noes delimites dos espaos polticos e que, desta forma, o conceito de fronteira trazidopelos colonizadores europeus no representava muita novidade para as sociedadesafricanas. Ser demonstrado, tambm, que o papel da Conferncia de Berlim de

    1884/5 na delimitao das fronteiras foi muito limitado e que o respeito s fronteirascoloniais durante a transferncia de poder poltico do sistema colonial para osEstados independentes na frica no representou um automatismo, mas foi oresultado de um processo poltico complexo, que articulava vrias alternativas eopes. Ser argumentado tambm que, em vez de simplesmente ignorar asfronteiras ou de aceit-las como barreira insupervel, a populao africanafronteiria tentou se aproveitar das fronteiras e manipul-las para melhor serviraos seus interesses. Finalmente, ser demonstrado que fronteiras, na frica moderna,sejam elas artificiais ou no, no representam um fator importante nos conflitosentre os Estados, ou mesmo dentro deles.

    Mito 1: O conceito de fronteira poltica alheio s comunidades africanaspr-coloniais e foi importado do contexto cultural ocidental

    Um aspecto importante do argumento de que as fronteiras modernas docontinente africano so artificiais a afirmao de que ou as fronteiras polticasem si mesmas, ou o conceito de fronteira como linha reta, no existiam na frica

    pr-colonial. Uma fonte do argumento da diferena entre fronteiras pr-coloniaise modernas a suposio de que, na poca pr-colonial, o bem escasso no eraa terra mas o homem, e que a competio poltica e as guerras focalizavam acaptura de populao e no de terras. Dominao poltica, jurisdio e construo

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    de identidades teriam se baseado nas relaes entre pessoas e no estariamvinculadas a territrio. Zartman, por exemplo, argumenta que era o povo quemdemarcava a extenso geogrfica de um Estado africano pr-colonial e que no

    eram os limites territoriais que determinavam a lealdade do povo.11Mas este argumento, pressupondo uma contradio entre territorialidade

    e parentesco como base de poder poltico, problemtico. Por maior que sejam oslaos e lealdades entre a linhagem dos chefes e os seus sditos, as sociedadesafricanas precisavam de terras para sobreviver. Por isso, dominao sobre pessoase territrio coexistiam. J. Koponen, por exemplo, argumenta que, embora o sistemade parentesco constitusse a base da organizao social e poltica na Tanznia pr-colonial, o princpio da territorialidade que implica fronteiras tambm tinha

    relevncia. J no sculo XIX, talvez desde o sculo XVII, predominavam chefiascom fronteiras nitidamente esboadas. Aspectos rituais de dominao poltica econstituio social (como, por exemplo, alguns cultos religiosos regionais e tambmo rainmaking) possuam uma clara dimenso espacial. Na anlise sobre aPondolndia na frica do Sul, W. Beinart identifica um processo histrico dodesdobramento do domnio baseado em territorialidade. O poder dos chefes sefundamentava principalmente sobre as pessoas e se baseava em lealdade eparentesco, embora o princpio espacial de controle nunca tivesse estado ausente.Com a crescente permanncia das estruturas de povoamento, a demarcao das

    chefias teria alcanado maior importncia.12Existem, nas mais diversas fontes, fortes indcios de que sociedades

    africanas tinham uma clara noo de territorialidade, inclusive de fronteiras. JohnThornton enfatiza isso: Anyone who reads the accounts of nineteenth centurytravellers is aware of the African concepts of boundaries before the colonial period.They frequently note that this or that point makes the border between the domainsof this or that ruler, and those who travel with trading caravans are reminded inmore tangible ways they must pay taxes, transit tolls and the like upon makingthese crossings. [...] Political control was symbolized by these two powers, to taxand to give justice, and they were definitely confined within borders. Refugees,sometimes even whole villages could escape the jurisdiction of one authority bycrossing a river or a forest, and those fleeing justice might be harbored or extraditedby authorities who also had this consciousness.13

    Melhor documentadas so as fronteiras dos reinos e dos imprios pr-coloniais do sculo XIX. O Califado de Sokoto, por exemplo, demarcou o seuterritrio e construiu cidades muradas nas suas fronteiras. Os Emirados de Bauchie Kano, que se localizavam tambm na regio da atual Nigria, seguiram a mesma

    poltica.14

    O Imprio de Asante se caracterizava por uma organizao territorial ecom clara identificao geogrfica dos limites de poder poltico do Estado e doAsantehene.15 As divisas entre os Reinos dos Yoruba foram identificadas atravsde elementos naturais ou foram marcadas artificialmente pelo homem. A

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    demarcao fsica de fronteiras tambm relatada com relao a regies daTanznia pr-colonial e ao territrio da atual Uganda.16 Grupos que se sustentavamprincipalmente da caa ou da pecuria transumante, como os Khoikoi ou os Massai,

    tambm tinham territrios claramente delimitados.17A segunda parte do argumento sobre o desconhecimento do conceito de

    fronteira na frica pr-colonial se refere ao tipode fronteira. Argumenta-se, nestesentido, que no se conhecia na frica pr-colonial o conceito de fronteira comolinha (imaginada ou no) e que, onde existiam fronteiras, estas no eramfixas ergidascomo no sculo XX. Faz parte deste raciocnio a idia de que a noo defronteira como linhano somente teria sido importada com a colonizao, masque tambm era na prpria Europa um conceito relativamente recente, resultante

    de um processo que havia substitudo a fronteira tipozona.18

    Os exemplos citados acima e muitos outros que poderiam ser mencionadosmostram, todavia, que a noo de fronteira como uma linha no era desconhecidana frica pr-colonial. Alm de dividir as terras das famlias dentro das unidadespolticas, delimitava tambm os limites de chefias ou reinos, muitas vezes rigidamente.Mas, provavelmente, isto no era a regra. Muitos autores argumentam que asfronteiras pr-coloniais entre as unidades polticas consistiam mais em zonas doque em linhas estreitas. As unidades polticas, sejam elas pequenas chefias oureinos de grande extenso, seriam cercadas por terras sem dono (Niemandsland)

    ou Grenzwilderniss. A fisso de sociedades estabelecidas, a migrao e a conquistadeste espao inabitado representaria, segundo Kopytoff, o ciclo eterno dareproduo e da ampliao geogrfica do modelo africano da sociedade patriarcalque, por meio desta conquista dafrontier(no sentido americano) se multiplicaria,mas contrariamente idia de Turner sobre a frontier americana no setransformaria.19

    Sem dvida, estasfrontier zonesexistiam, mas s como umapossibilidadeentre outras. Regies com povoamento mais denso no conheciam aGrenzwildernisse mesmo regies de floresta tropical virgem, sem cultivo, tinhamdonos. Por exemplo, a migrao dos cultivadores de cacau de Akwapim para afloresta virgem de Akim Abuakwa (hoje Gana) a partir do final do sculo XIX, todetalhadamente pesquisada por Polly Hill, demonstra esta ausncia de terras semdono, assim como a incluso de amplas regies de terras inabitadas na jurisdiodas chefias.20 Nugent ainda identifica outros tipos de fronteira, dependendo daatividade econmica principal e do carter poltico-militar da sociedade que afronteira delimita.21

    Uma caraterstica marcante de Estados na frica pr-colonial, e sobretudo

    daqueles formados no sculo XIX, era uma espcie de soberania graduada, sendoabsoluta no centro do Estado e ficando mais fraca na periferia. Por exemplo, D.Beach sugeriu, para o Estado Mwene Mutapo e para aquele dos Ndebele, umadiviso da territorialidade em trs zonas principais: a) o Estado nuclear; b) uma

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    zona constituda por chefias que tinham que pagar tributos, mas que mantiveramuma certa independncia; c) uma zona que regularmente era sujeita a saquesviolentos. A clareza e a eficcia das fronteiras diminuam do centro para a periferia

    do Estado.22Esperamos ter demostrado que o conceito de fronteiras polticas no estava

    to alheio s comunidades africanas pr-coloniais como muitas vezes alegado. Foiexplicado tambm que umtipo de fronteira pr-colonial africana no existia. Ocarter das fronteiras africanas pr-coloniais variava bastante, dependendo demuitos fatores, como o sistema poltico e econmico ou a proporo entre terra epopulao. Portanto, importante sublinhar que, para o continente como um todo,a fronteira importada no representava uma novidade absoluta.

    O que, ento, as fronteiras pr-coloniais separavam? essencialcompreender que elas separavam entidades polticas,de tamanho muito variado,e no entidades culturais, lingsticas ou tnicas. Em regra, as entidades polticas,sejam elas pequenas chefias ou grandes imprios, eram menores ou maiores doque as identificaes tnicas ou culturais. Para citar mais uma vez John Thornton:But over and over again, we see that these borders were not ethnic. Mostly onesees that jurisdiction was local, held by a small polity that never had a prayer ofbeing dominant over a whole ethnic group, and to the degree that they aspired tocontrol other groups they did this with their immediate neighbors who might ormight not be linguistically or culturally similar. Even large polities, however, usuallyexercised their control by taking these smaller jurisdictions and agglomerating theminto a larger polity over which they might appoint officials or station garrisons, butrarely did they interfere too much.23

    Assim, as pequenas chefias se espalharam em um contnuo cultural semlimites perceptveis, como no planalto zimbabueano. Tambm, as fronteiras dosgrandes Estados ou imprios nunca englobaram apenas uma etnia, lngua ou grupocultural. Eram mquinas de integrao de grupos, sociedades, chefias de diversas

    origens, tradies, lnguas etc. Os grandes Estados, seja Old Oyo, Ashanti, Songhaina frica Ocidental, os chamados imprios secundrios do sculo XIX na fricaOriental, os Ndebele, Zulu ou Sotho na frica Austral, todos estes Estadosintegravam grupos diferentes em termos de descendncia, cultura, lngua etc. Aetnicidade poderia ter tido uma certa importncia, mas no para definir a identidadedo Estado, que era definida politicamente, e sim para estruturar a hierarquiainterna.24

    Mito 2: As fronteiras coloniais e, por conseqncia, modernas foramdelimitadas na Conferncia de Berlim de 1884/85. Naquela Conferncia,as potncias coloniais concordaram, tambm, em estabelecer regras fixase consensuais que depois orientariam a chamada Partilha da frica

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    A Conferncia de Berlim sobre a frica Ocidental de 1884/525 est entreos acontecimentos histricos mais bem explicados.26 Mas, apesar disso, essaConferncia mitificada tanto junto opinio pblica quanto em trabalhos cientficos

    e lhe atribudo, erroneamente, um significado absoluto para a Partilha da fricaentre as potncias coloniais europias. A viso popular sobre a Conferncia temas suas origens, em parte, na encenao do acontecimento: os delegados, emnmero de 15, e Bismarck, como anfitrio, reuniram-se na residncia oficial deBismarck na Wilhemstrasse, junto a uma mesa em forma de ferradura sob umenorme mapa do continente africano. As idias populares e pblicas de que naConferncia foi realizada a Partilha da frica, e de que os delegados desenharamno grande mapa com uma rgua as linhas retas que delimitaram as esferas de

    influncia entre as potncias europias foram influenciadas por essa encenao.27

    Essa imagem popular da Conferncia foi reproduzida em publicaes srias e emalgumas obras cientficas. Kwame Nkrumah, ex-presidente de Gana e pensadorpan-africanista, declara, por exemplo, que the original carve-up of Africa [was]arranged at the Berlin Conference of 188428 . Basil Davidson, talvez o maisconhecido historiador africano da atualidade, argumentava que in 1884-5, at aconference in Berlin [the European powers] agreed to invade and take Africawithout fighting each other. They marked out spheres of interest.29

    Mantm-se, ainda, um outro mito acerca da Conferncia, este ainda mais

    forte do que o anterior: o de que foram ali estabelecidas regras e princpios clarospara a Partilha da frica que se condensariam no chamado princpio da ocupaoefetiva. Este princpio significaria que nenhuma potncia colonial poderia fazervaler suas reivindicaes coloniais (junto s outras potncias coloniais) sem tercontrole efetivo do territrio reivindicado. Somente um acordo com chefes ou reisafricanos, os assim chamados tratados de proteo, no bastaria para fundamentaras reivindicaes territoriais. Essa interpretao estende-se pela literatura comoum fio condutor sem, porm, corresponder s resolues da Conferncia.30

    O que realmente foi decidido na Conferncia de Berlim e qual a suarelevncia para a Partilha da frica? A Conferncia foi inaugurada por Bismarckno sbado, dia 15 de novembro de 1884, e encerrou-se no dia 26 de fevereiro de1885. As 15 naes participantes, a maior parte delas sem interesses coloniais oucomerciais na frica, estavam representadas pelos seus embaixadores.31 A razoinicial da Conferncia foi a recusa da Frana e da Alemanha em reconhecerem oacordo anglo-portugus de junho de 1884. Neste acordo, que foi precedido poruma disputa entre a Frana, Portugal e a Associao Internacional da frica doRei Leopoldo II sobre a regio do rio Congo e a sua foz, a Inglaterra reconheceu

    as antigas e constantes reivindicaes de Portugal de exercer hegemonia histricasobre a regio do Congo. Por meio deste acordo, a Gr-Bretanha intencionavacolocar Portugal como barreira contra possveis investidas coloniais de outrosEstados, sobretudo da Frana. Bismarck, profundamente ctico a respeito da idia

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    colonial e partidrio do livre comrcio na frica, viu na desavena entre a Inglaterrae a Frana uma oportunidade de aproximao com a Frana. Embora ele tenhaaprovado um limitado engajamento alemo na frica, ele pensava exclusivamente

    na dimenso estratgica europia. Para ele, as aquisies na frica, assim como aConferncia, somente serviam para impedir o surgimento de um campo inimigo naEuropadirigido contra a Alemanha.

    Bismarck definiu claramente no seu discurso de abertura as trs metas daConferncia: a garantia de liberdade de comrcio e da navegao nos rios Congoe Nger e a concluso de um acordo sobre os critrios de futuras anexaes nafrica. Bismarck procurou deixar claro que a Conferncia no trataria de questesde soberania, isto , da partilha territorial da frica ou de reivindicaes territoriais.

    Os dois primeiros pontos de discusso, podemos argumentar, eram mais anticoloniaisque coloniais. Procediam do liberalismo comercial e se destinavam contra omonoplio do comrcio colonial. O terceiro ponto criou uma resoluo contraditria,que abaixo abordaremos, que foi ultrapassada pela realidade, j na poca daConferncia.

    A Conferncia aderiu pauta encaminhada por Bismarck. No foramdiscutidas reivindicaes territoriais, muito menos foi decidida a Partilha da frica.Em um nico caso, os delegados se dedicaram a reivindicaes territoriais, pormde forma informal e fora das reunies. Fecharam uma srie de acordos bilaterais

    com os representantes da International Congo Association, e reconheceram o Congo(Belga) como um Estado livre, independente e soberano.

    As resolues mais claras adotadas pela Conferncia fortaleceram o espritoliberal e se referiram garantia do livre comrcio na bacia do Congo, uma enormeregio, que se estendia pela parte central do continente africano, bem como garantia da livre navegao, mesmo em caso de guerra, nos rios Congo e Nger.32

    O tema mais debatido, isto , o assunto verdadeiramente poltico e polmico, foi aformulao de critrios para justificar reivindicaes coloniais. A Alemanha e aFrana defenderam a diferena entre anexao e proteo e formularam oprincpio da ocupao efetiva como condio para o reconhecimento de domniocolonial. Com a imposio deste princpio, assim pensavam ambos os Estados,poderia a hegemonia colonial da Gr-Bretanha ser contida, j que esta semprepreferiu fechar tratados de proteo mais flexveis em vez de anexar as colniasformalmente. A Gr-Bretanha recusou o princpio da ocupao efetiva porprotetorados e fez prevalecer suas idias na Conferncia. Aps longa discusso,Bismarck uniu-se posio da Gr-Bretanha e formulou o famoso captulo VI daAta Geral da Conferncia, que mais tarde deu motivo para interpretaes

    contraditrias.33

    O Artigo 34 da Ata Geral estabelecia o dever de informar osoutros Estados signatrios em caso de uma ocupao de territrio colonial e oArtigo 35 formula o domnio efetivo como pr-condio para o reconhecimentodas reivindicaes coloniais porm, somente em relao possessofuturade

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    territrios nas costasda frica. Com essa restrio, a formulao do princpio daocupao efetiva torna-se insignificante porque, no momento do encerramentoda Conferncia, a costa africana j se encontrava partilhada entre as potncias

    coloniais europias. As formulaes do Artigo 35, portanto, no se adequaram sreivindicaes coloniais no interior da frica ou noHinterlandda costa. O chamadoconceito deHinterland, considerado pela literatura como um ilimitado direito sobreos territrios do interior atrs da linha costeira depois da ocupao do litoral, nofoi sequer discutido, muito menos sancionado na Conferncia.

    Qual, ento, a importncia da Conferncia para a partilha do continenteafricano? A literatura pertinente assinala que o papel da Conferncia e foisuperestimado. Hargreaves mostra que as resolues da Conferncia tiveram pouco

    efeito prtico sobre a futura partilha da frica.34

    Pakenham resume a importnciada Conferncia com as seguintes palavras: There are thirty-eight clauses to theGeneral Act, all as hollow as the pillars of the great saloon. In the years aheadpeople would come to believe that this Act had had a decisive effect. It was Berlinthat precipitated the scramble. It was Berlin that set the rules of the game. It wasBerlin that carved up Africa. So the myths would run. It was really the other wayround. The scramble had precipitated Berlin. The race to grab a slice of the Africancake had started long before the first day of the conference. And none of thethirty-eight clauses of the General Act had any teeth. It had set no rules for dividing,

    let alone eating the cake.35No entanto, a Conferncia no ficou sem impacto. Popularizou a idia

    colonial junto opinio pblica e, assim, acelerou a corrida pela a frica. Oprincpio da ocupao efetiva, que a Conferncia limitou costa, adquiriu certaimportncia durante a partilha do interior do continente. O princpio, portanto, nofoi inventado pela Conferncia. H muito existia.36 No entanto, ainda que shouvesse sido formulado para o litoral, a aplicao do princpio estendeu-se, naprtica,ao interior da frica e aos protetorados. A Gr-Bretanha, que conseguiuimpor na Conferncia sua recusa ao princpio, acabou adotando-o, e argumentava,por exemplo na disputa com Portugal, em 1890, sobre a limitao fronteiria entreMoambique e os territrios britnicos da frica Central (Malaui e Rodsia doSul), que se tratava do Art. 35 da Ata de Berlim de direito internacional, quetambm seria vlido para o interior da frica. Humilhado, Portugal cedeu nessaluta, menos em funo, porm, dos argumentos jurdicos britnicos que pelaimponncia da armada britnica no Atlntico e no Oceano ndico.37

    Em seu trabalho sobre a delimitao fronteiria da Libria, Gershoni mostracomo o princpio da efetiva ocupao foi usado pela Frana e pela Inglaterra

    para questionar a soberania da Libria no interior e para alargar suas prpriascolnias, em prejuzo da Libria. Antes da Conferncia de Berlim bastava aconcluso de um acordo com os chefes locais para constituir uma reivindicaoterritorial. Depois da Conferncia, estes acordos perderam o valor e a Frana e a

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    Inglaterra passaram a insistir no controle efetivo dos territrios disputados. Elasusaram o princpio no para fundamentar suas prprias reivindicaes, mas comoprova da falta de controle efetivo por parte da Libria. Embora o Estado

    independente da Libria tenha pedido muitas vezes intermediao e intervenodiplomtica de seu protetor informal, os Estados Unidos, no pode conter totalmentea expanso territorial britnica.38

    Em outras ocasies, o princpio da ocupao efetiva no exerceu nenhumpapel ou um papel muito subordinado. A Gr-Bretanha, por exemplo, reconheceuo tratado de proteo concludo entre a Alemanha e os Duala como prova efetivapara as reivindicaes coloniais alems sobre Camares. A questo do controleefetivo, ou melhor, a falta desse controle, no foi levada em conta. Os inmeros

    acordos bilaterais entre as potncias coloniais europias, por meio dos quais foramestabelecidas, entre 1885 e 1898, as esferas de influncia no continente, a troca deterritrios e a delimitao de fronteiras, recorreram mais aos interesses e ao consensodas potncias do que ao princpio da ocupao efetiva. Isto demonstra que o princpioda ocupao ou controle efetivo no prevaleceu como princpio universal durantea Partilha da frica. Foi usado, porm, para estabelecer reivindicaes pontuaisou para recusar reivindicaes de outros Estados. Foi utilizado, sobretudo, pelasgrandes potncias coloniais como argumento seletivo (atrs do qual se escondiauma ameaa poltica e militar), de forma a expandir os seus prprios territrios

    coloniais s custas dos Estados mais fracos.Se, na Conferncia de Berlim, no foi realizada a Partilha da frica, nem

    foram estabelecidas as regras definitivas para a Partilha, quando e como foramestabelecidas as fronteiras coloniais?

    A maioria das fronteiras entre as esferas de influncia das diferentespotncias coloniais e, com isso, as fronteiras entre os futuros territrios coloniaisforam estabelecidas consensualmente em acordos bilaterais aps a Confernciade Berlim. A maioria destes acordos foi concluda nos anos 90. Entre eles, devemser destacados: os acordos germano-britnicos de 1886 (sobre frica Ocidental) ede 1890 (o chamado Acordo Helgolndia-Zanzibar), o acordo anglo-italiano (1891),o acordo franco-luso (1886), o acordo anglo-luso (1890) e a Conveno da Nigria(Oeste da frica) e a conveno franco-britnica do ano 1898 (sobre o Egito e oSudo), que foi fechada aps a Crise Fashoda.39

    Estes acordos delimitaram, em geral, o percurso fronteirio entre aschamadas esferas de influncia de forma superficial. Foram seguidos por vriascomisses bilaterais de delimitao e demarcao, que estipulavam o local exatoda fronteira, e cujos trabalhos se estenderam at as primeiras dcadas do sculo

    XX. Em muitos setores de fronteira o trabalho de demarcao no foi realizado,sobretudo nas antigas fronteiras internas das federaes coloniais francesas (AOFe AEF), o que provocou, no perodo ps-colonial, divergncias na interpretao dadelimitao fronteiria e, em alguns casos, levou a tenses entre os Estados africanos.

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    Mito 3: As fronteiras coloniais foram transformadas automaticamente esem contestao em fronteiras dos Estados africanos independentes

    Ainda que seja, com certeza, correto observar que o atual percurso daslinhas retas divisrias entre os Estados africanos tem origem colonial, atransformao das fronteiras coloniais em limites dos Estados independentes noocorreu sem contestao. Na realidade, resulta de um processo poltico que sedesdobrou principalmente entre 1956 e 1963, envolvendo a nova elite africana bemcomo as potncias coloniais. Conceitos alternativos que rejeitavam a diviso colonialdo continente africano como um modelo para o futuro foram articuladosespecialmente durante este perodo chave da descolonizao.

    As contestaes contra a utilizao das divises coloniais como fronteirasde uma frica independente partiram de perspectivas diferentes. Em primeirolugar, os nacionalistas contestaram a delimitao das fronteiras coloniais comoalgo contrrio aos interesses da populao local, muitas vezes etnicamente divididapor fronteiras entre os Estados. Expresso especfica deste sentimento foram asmanifestaes irredentistas, baseadas ou em argumentos histricos (caso deMarrocos), ou tnicos (caso da Somlia) ou em ambos os argumentos (caso dosEwe de Gana e Togo). Em segundo lugar, lutava-se em favor da preservao dasgrandes federaes coloniais francesas na frica (a frica Ocidental Francesa e

    a frica Equatorial Francesa) e contra a balcanizao destes territrios emEstados separados. Em terceiro lugar, a tradio pan-africanista de unidade africana,representada principalmente por Nkrumah, lutava pela superao da diviso polticado continente e em favor de uma Unio dos Estados, na qual as fronteiras de entos teriam a funo de divises administrativas internas.

    Antes da discusso dos aspectos principais da contestao do desenhocolonial das fronteiras africanas, preciso ressaltar que, em certos casos, asfronteiras determinadas durante a corrida pela frica foram mudadas na suadelimitao no decorrer da poca colonial. Isto se aplica especialmente s fronteirasentre colnias adminstradas pela mesma potncia (por exemplo, no caso de Quniae Uganda). Estas fronteiras tinham status jurdico de fronteiras internas. Asfronteiras do Togo e de Camares, que caram sob a tutela da Liga das Naesdepois da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, e as divisesadministrativas nas federaes coloniais francesas estavam, tambm, sujeitas asubstantivas modificaes.

    A Frana modificou vontade as divises internas dos seus dois grandesblocos coloniais. Estabeleceu em 1890 o Mali (chamado de Sudo Francs) como

    entidade administrativa distinta, abolindo-o nove anos depois. Em 1902, o territriode Senegmbia e Nger foi criado, mas perdendo a sua parte ocidental em 1904 ea sua regio oriental em 1919 que foi juntada ao novo territrio de Alto Volta. Emseguida, o territrio que restou foi renomeado Sudo Francs. Em 1932, o Alto

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    Volta foi abolido e seu territrio somado aos territrios vizinhos de Sudo, Nger eCosta do Marfim. Em 1947, a Mauritnia ganhou terra do Sudo e o Alto Volta foireconstitudo. A criao do Alto Volta se deu, segundo Touval, devido s mudanas

    administrativas introduzidas pela Frana em reao a uma revolta indgena noNger. A abolio em 1932 se deu em funo de presses por parte de interesseseconmicos franceses oriundos da Costa do Marfim. Com o restabelecimento doterritrio em 1947, os Franceses pretendiam impedir o crescimento na regio doRassemblement Dmocratic Africain (RDA), partido anticolonial com vnculoscom o Partido Comunista Francs.40

    A administrao de Camares, ex-colnia alem, foi dividida pela Ligadas Naes depois da Primeira Guerra Mundial entre a Frana e a Inglaterra. A

    menor parte ocidental, sob administrao inglesa, foi integrada Nigria, enquantoo resto da colnia virou territrio administrativo dentro da AOF, isto , Camaresfoi dividido e novas fronteiras foram erguidas. Em 1962, a regio setentrionaldaquelas partes sob a administrao britnica optou por sua permanncia na Nigria,enquanto o sudoeste britnico retornou para os Camares. A outra ex-colniaalem, o Togo, sofreu um destino parecido: foi dividida depois de 1914 entre aFrana, que juntou a sua parte AOF, e a Inglaterra, que administrou o TogoBritnico como parte de Gana (Costa do Ouro). Mas, ao contrrio de Camares,esta diviso foi mantida durante as independncias dos respectivos pases e a

    regio constitui hoje uma parte de Gana.A primeira grande contestao da continuidade das fronteiras coloniais

    para uma frica independente vinha do pensamento e da poltica pan-africanistaque influenciou profundamente os primeiros ativistas anticoloniais na frica. OPan-africanismo, como filosofia e programa polticos, tem suas origens na disporanegra, especialmente no Caribe e na Amrica do Norte, j no sculo XIX.41 Foi,principalmente, um fenmeno do mundo anglfono, apesar de vnculos ocasionaiscom o Brasil ou com a frica francfona. No foi um movimento de massa, masreuniu uma pequena elite intelectual na dispora, na Europa e nas colnias dafrica Ocidental. O Pan-africanismo tinha como um dos seus referenciais principaisa unidade dos africanos, seja racial, cultural ou no sofrimento como escravos,seres humanos discriminados ou sditos coloniais. Pensadores e ativistas, comoMarcus Garvey, consideravam a frica como terra natal de todos os negros esonhavam com a independncia de toda a frica e a criao dos Estados Unidosda frica, um sonho que, profundamente, influenciou o lder nacionalista e primeiropresidente de Gana, Kwame Nkrumah.

    Enquanto as primeiras manifestaes do Pan-africanismo, desde o Primeiro

    Congresso Pan-africanista em 1900, referiam-se ao conjunto dos negros, seja nadispora, seja na prpria frica, o enfoque deslocou-se gradualmente para a frica.O VI Congresso Pan-africano de 1945 em Manchester efetivamente quebrou otringulo de influncia e inspirao entre a dispora, a frica e a Europa e deu,

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    pela primeira vez, aos assuntos do continente africano, uma importncia maior.42

    O referencial geogrfico dos primeiros ativistas nacionalistas na frica,particularmente na frica Ocidental que tinha uma tradio mais profunda, antiga

    e maior de articulaes anticoloniais no era a colnia individual. Eles pensavame agiam em termos de unidade da regio, ou em termos do conjunto das colniasdo mesmo poder colonial na frica Ocidental.

    Formou-se, no ano de 1920, o National Congress of British West Africa ea West African Students Union. Durante os anos 30, quando o National Congressficou enfraquecido, a West African Youth League, liderada por Wallace-Johnson,articulou uma perspectiva decididamente pan-africanista e tentou tambm, nassuas atividades, integrar representantes das colnias lusfonas e francfonas. Depois

    do Congresso em Manchester em 1945, Kwame Nkrumah se tornou orepresentante mais expressivo do pensamento pan-africanista. Fundou, junto comWallace-Johnson, em 1946, o West African National Secretariat, cujo lema eraFor Unity and Absolute Independence. O grupo tinha como objetivo a criaode uma frica Ocidental unida e independente, uma Unio de Repblicas Socialistasda frica Ocidental, e propagava a luta contra as divises artificiais da regio.Tinha a perspectiva da frica Ocidental como um todo, incluindo as colnias delngua no-inglesa, e teve contato com deputados negros no Parlamento francs.43

    Mas, em torno de 1948, o movimento pan-africanista desintegrou-se em

    diversos partidos nacionais que lutavam pela independncia dos seus territrioscoloniais individuais. Mesmo Nkrumah, que sempre tinha condenado asindependncias individuais como reacionrias, levou sua colnia nativa, Gana, liberdade. No entanto, importante ressaltar que, em seu pas, que se tornouindependente em 1957, ele criou uma nova plataforma e base para a propagaodas idias pan-africanistas no continente.

    A trajetria dos movimentos anticoloniais, partindo de uma perspectivaregional e chegando aos territrios individuais, no era fundamentalmente diferentenas colnias francesas. A centralizao da administrao colonial francesa nasduas grandes federaes (AOF e AEF) e a eleio de representantes para oParlamento francs entre a pequena comunidade assimilada nas federaesajudaram a orientao interterritorial do nacionalismo. Os partidos polticos tinhamcarter interterritorial desde a fundao. O mais importante entre eles, oRassemblement Dmocratique Africain (RDA), fundado em 1946 em Bamako,tinha representantes em todos os territrios administrativos. Mas a loi-cadrede1956 e oreferendumde 1956/7, que gerou uma diviso profunda entre os lderesnacionalistas sobre a questo de federalismo ou territorialismo, fizeram desintegrar

    o RDA interterritorial.44

    Sobrou o nacionalismo territorial.Entre 1957, quando se deu a independncia de Gana, e 1963, ano daformao da Organizao da Unidade Africana (OUA), o Pan-africanismo entrouem uma nova fase. Esses cinco anos de relaes interafricanas se caracterizaram

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    por muita volatilidade, insegurana, tenso, mltiplas competies e ameaas segurana de Estados individuais. Os jovens Estados africanos chegaram a sedividir em trs blocos, que podem ser chamados Estados radicais, moderados e

    conservadores. Alm da crise do Congo e da luta armada do FNL na Arglia,foram as questes de unidade no continente e do respeito s fronteiras herdadasdo colonialismo que dividiram os Estados. O resultado foi a derrota de conceitosradicais de unidade africana na tradio do Pan-africanismo e, com a fundao daOUA em 1963, a institucionalizao dostatus quoterritorial entre os Estados.

    No incio deste perodo, as idias pan-africanistas ganharam novo flegocom a independncia de Gana, cujo presidente Nkrumah, junto com o caribenho G.Padmore, usava o palco do novo Estado e a sua poltica exterior para articular sua

    viso dos Estados Unidos da frica. Nesse caso, as fronteiras de ento steriam a funo de simples divises administrativas. Haveria um ParlamentoInterafricano, uma poltica exterior comum, um alto comando militar pan-africano,e um mercado africano comum, com moeda nica e Banco Central.45

    Gana apresentou seus objetivos pan-africanistas em uma srie deconferncias internacionais que circundaram as independncias africanas. Em grausvariados, esses eventos foram influenciados pela postura radical de Nkrumah ePadmore. A All-African Peoples Conference, realizada em Acra, Gana, emdezembro de 1958, adotou uma posio extremista acerca das fronteiras coloniais

    e uma mais moderada acerca da forma da unidade africana. Declarou como seuobjetivo a criao de um Commonwealth of Free African States.46

    A Conferncia no somente props, seguindo a tradio pan-africanista,uma unio dos Estados africanos, alis vagamente definida, mas criticou tambmas fronteiras coloniais como ilegtimas e exigiu a sua reviso: 3) Whereas artificialbarriers and frontiers drawn by imperialists to divide African peoples operate tothe detriment of Africans and should therefore be abolished or adjusted...47

    A questo do respeito ao status quo das fronteiras coloniais e, maisespecificamente, sobre a postura irredentista de Marrocos, que reivindicou partesda Arglia, o territrio do Saara Espanhol e a Mauritnia como parte do seu territrionacional, aprofundou tambm as divises entre os trs grupos de Estados que seformaram a partir de 1960. Inicialmente, um pequeno grupo de Estados radicais, ochamado grupo de Casablanca (Gana, Guin, Mali e os Estados norte-africanosexceto a Tunsia), enfrentou um maior conjunto de Estados conservadores. Estegrupo consistia nas 12 recm-independentes ex-colnias francesas que se firmaramsob o nome da instituio de cooperao funcional que eles formaram (UnionAfricaine et Malgache, UAM), e tambm sob o nome da cidade (Brazzaville)

    onde foi realizada a segunda conferncia deste grupo. Os pontos principais dadissenso entre os dois grupos era a poltica acerca da crise do Congo e da lutaarmada pela independncia da Arglia. Mas, atrs destas divergncias aparentesna poltica, existiam diferenas mais profundas sobre o carter da insero

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    internacional dos novos Estados africanos e sobre suas relaes com as ex-potnciascoloniais.

    Os Estados do grupo de Brazzaville seguiram uma poltica colaboradora,

    que se baseava nos laos polticos, econmicos e culturais entre a Frana e asnovas classes dirigentes da frica. Essa elite desejava a continuao da presenae influncia da Frana no continente e visava trocar o alinhamento com a Franapor cooperao e assistncia financeira. Estes Estados propagaram uma visoconservadora, para no dizer reacionria, no s em relao poltica internacionalmas, tambm, a respeito da organizao poltica e social interna das suas sociedades.A rationaleda unidade africana deste grupo era colaboradora, destinada a facilitara cooperao com a ex-potncia colonial e a aumentar o poder de barganha

    internacional para conseguir igualdade com as elites mundiais.48

    Unidade africanapara este grupo significava a cooperao entre Estados soberanos, o respeitoabsoluto aostatus quoterritorial e a adeso ao princpio da no-interferncia napoltica interna dos pases vizinhos. Acusavam os Estados mais radicais,especialmente Gana, de desrespeitar essas normas do direito internacional e deminar a integridade nacional dos Estados africanos, questionando a legitimidadedas fronteiras e se envolvendo em atividades subversivas contra governos vizinhos.Mas, na prtica poltica, a ideologia conservadora das elites destes Estados fezcom que eles ferissem os mesmos princpios. Eles no somente de fatotomarampartido da Frana na luta anticolonial na Arglia mas, tambm, foram eles quequestionaram a integridade do Congo, mostrando uma atitude mais conciliatriajunto ao regime secessionista, mas pr-ocidente, de Tshombe em Katanga, ehesitando dar apoio inequvoco ao Primeiro Ministro Lumumba, e, depois, ao seuvice Gizenga.49

    Os Estados de Casablanca tinham uma postura mais radical, sejainternacional ou internamente. Eles confrontaram a ordem internacional, rejeitarama influncia contnua, direta ou indireta, das ex-potncias coloniais que Nkrumah

    denunciou como neocolonialismo50 e argumentaram que obedincia irrestrita sfronteiras coloniais traria graves conflitos entre os Estados porque essas fronteiraseram artificiais. Eles queriam unidade africana para poder afastar a interfernciadas grandes potncias e das ex-potncias coloniais do continente.51 Mas, assimcomo o grupo de Brazzaville no obedeceu estritamente aos seus princpios, ogrupo de Casablanca era composto de elementos bem diversos. Marrocos, umEstado internamente conservador e com uma orientao pr-ocidente, se juntou aeste grupo, em uma barganha de favores polticos. Em troca de tcito apoio ao

    irredentismo marroquino pelo grupo, este Estado tomou partido dos Estados maisradicais na crise do Congo. Nesta ocasio, o grupo de Casablanca, que por princpioquestionava a rationaledas fronteiras coloniais, empenhou-se em favor da defesada integridade nacional, nas fronteiras coloniais do Congo.

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    Os Estados radicais ficaram at mais isolados quando, em maio de 1961,os Estados moderados (entre eles Nigria e Libria) se juntaram UAM, formandoo chamado Grupo de Monrvia.52 O respeito ao status quo territorial e no-

    interferncia na poltica domstica (Gana foi acusado por eles de ter desrespeitadoambos os pontos) eram os elementos principais de consenso entre estes Estados.A Nigria, que se projetou como um dos maiores adversrios do radicalismoganense53 , liderou o movimento contra a reviso das fronteiras coloniais, umaposio bem compreensvel, considerando a heterogeneidade tnica e cultural desteque o maior pas africano.

    Na Assemblia Geral das Naes Unidas, em 1960, o Primeiro Ministronigeriano, Sir Abubakar Talawa Balewae, explicou a posio do seu pas: The

    colonizing powers of the last century partitioned Africa in a haphazard and artificialmanner and drew boundaries which often cut right across the former groupings.Yet, however artificial those boundaries were at first, the countries they have createdhave come to regard themselves as units, independent of one another [...]. It istherefore our policy to leave these boundaries as they are at present and to discourageany adjustment.54

    Nkrumah ficou crescentemente isolado. A posio pan-africanista quepropugnava pela rendio de parte da soberania dos Estados em favor de umgoverno em comum no continente, no recebeu apoio nem dos Estados mais radicais

    como a Guin. Mencione-se, ainda, a irritao cada vez maior, causada pelasambies pessoais de Nkrumah autodenominado salvador da frica (Osegyefo),pelo irredentismo de Marrocos, e pelas reivindicaes territoriais do prprio Ganacontra os seus vizinhos.

    O isolamento do Pan-africanismo radical, junto com o encaminhamentodos conflitos na Arglia e no Congo, e uma mudana na poltica do Ocidenteacerca da secesso de Katanga contriburam para uma reconciliao e umrapprochement entre os Estados africanos que culminaram na formao daOrganizao da Unidade Africana (OUA) em 1963. O novo consenso sacrificouos ltimos resduos da tradio pan-africanista. Nkrumah apresentou mais umavez a sua idia de um Union Government, mas recebeu apoio somente de Uganda.Ao contrrio de afirmaes romnticas e da retrica da prpria OUA, que inserema organizao na tradio do pensamento pan-africanista55 , o sucesso dareconciliao entre os Estados e da formao da OUA dependia da rejeio dosprincpios pan-africanistas e da mtua reafirmao dos Estados africanos comoautnomos, independentes e iguais membros do sistema internacional de Estados.Neste sentido, Walraven argumenta que a OUA no surgiu das idias do Pan-

    africanismo em si, mas expressed the drive for inter-African reconciliation andaspirations to a world role and equality of status with other state elites.56

    A formao da OUA, assim como a sua Carta, representou no somenteuma clara rejeio reviso das fronteiras coloniais em favor da integrao, mas

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    mostrou tambm uma oposio reviso pontual destas fronteiras com base emreivindicaes histricas e tnicas. No debate geral na Assemblia da Cpula deEstados africanos, em maio de 1963, em Adis Abeba, ocasio em que a Carta da

    OUA foi aprovada, muitos representantes manifestaram-se contra revises dasfronteiras existentes, que consideravam representar um perigo paz. Alertaram,tambm, para a impossibilidade de se encontrar critrios racionais e prticos parauma nova diviso do continente.57

    Embora a Conferncia tenha atingido quase unanimidade sobre a questoda manuteno das fronteiras coloniais (somente a Somlia, que reivindicou partesdo Qunia e da Etipia para construir uma Greater Somalia, discordou e oMarrocos no participou da Conferncia), sua Ata Final e a Carta no contm

    referncias explcitas s fronteiras. Indiretamente, porm, a formulao dosprincpios de respeito soberania e integridade territorial dos Estados comoprincpios bsicos das relaes interafricanas reafirma o status quoterritorial.58

    A intensificao de conflitos fronteirios, aps a aprovao da Carta daOUA, fez com que a cpula dos Estados africanos tratasse da questo das fronteirasmais uma vez no seu encontro no Cairo, em Julho de 1964.59 Nesta oportunidade,aprovou-se uma resoluo que condenava explicitamente as polticas de revisoterritorial e reafirmava o status quo territorial declarando que the borders ofAfrican States, on the day of their independence, constitute a tangible reality: ...60

    Esta resoluo, que na literatura comparada ao princpio de uti possidetis jurisque governou as independncias da Amrica Latina aplicou-se originalmente aosconflitos sobre fronteiras e territrio entre Estados, mas, no decorrer do tempo, foitacitamente estendida para no reconhecer tentativas de secesso que, na viso dealguns Estados africanos, expressariam um legtimo direito de autodeterminao.61

    Assim como a poltica pan-africanista no quadro da diplomacia continental,as tentativas mais modestas de superar as fronteiras coloniais a nvel regionalfracassaram visivelmente. A unio de Gana e Guin, formada em 1958, emboratenha salvado a dissidente Guin do ostracismo infligido pela Frana e pelos pasesfrancfonos conservadores, no saiu do papel. Mesmo a incluso do Mali nestaUnio, renomeada The Union of African States, no a salvou do rpidodesaparecimento.62

    A segunda tentativa de rejeio do desenho colonial das fronteirasaconteceu no mbito francfono. Trata-se da luta pela manuteno das duas grandesfederaes, a AOF e a AEF, e da descolonizao destas como entidades, emoposio poltica francesa de balcaniz-las em 14 pequenos Estadosindependentes, cuja maioria foi considerada incapaz de sobreviver sem assistncia

    permanente da Frana.A poltica francesa de centralizao chegou ao seu fim com as reformasda loi-cadrede 1956/7. Essas reformas concederam um tipo de autogoverno internoe (quase) sufrgio universal, mas no para as federaes, e sim para os territrios

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    individuais. Visava-se a instalao de uma Comunidade Franco-Africana, comonovoframeworkdas relaes entre a metrpole e as suas antigas colnias, agoraentituladas repblicas autnomas. O referendum de 1958 terminou com as

    estruturas federais, abrindo o caminho para as independncias individuais, obtidasfinalmente com o colapso da Comunidade em 1960.

    A balcanizao do imprio colonial francs na frica gerou muitacontestao.63 Os sindicatos, o RDA e os outros partidos com expressointerterritorial, e polticos influentes como Senghor e Skou Tour eram a favor dofederalismo. Do lado oposto, o movimento antifederal foi liderado por Houphout-Boigny da Costa de Marfim, ento o mais influente poltico africano junto a Paris,auxiliado por Lon MBa do Gabo.64 J nas vsperas da passagem da loi-cadre,

    Houphout-Boigny, junto com altos funcionrios da administrao colonial,empenhou-se com muito xito contra a manuteno das federaes. O motivo era,alm de ideolgico, de natureza econmica. Ele no estava a fim de compartilhara relativa riqueza da sua Costa do Marfim com os seus vizinhos pobres e rejeitavaqualquer arranjo constitucional que lhe obrigasse a considerar os interesses dosoutros integrantes da federao. Os motivos de Lon MBa eram semelhantes.Alguns autores consideraram a influncia de Houphout-Boigny imprescindvel nadeciso acerca do futuro das federaes. Il est cout de Gaston Defferre [Ministrede la France doutre-mer] [et] obtient mme la mort de la fdration dAOF,

    argumenta Valette.65Houphout-Boigny torpedeou, tambm, as tentativas regionais de

    cooperao que considerava ameaadoras hegemonia da Costa do Marfim entreos pases francfonos na regio. Durante as negociaes sobre a formao deuma federao entre Senegal, Sudo (Mali), Alto Volta e Daom, ele ameaouAlto Volta e Daom de tal forma que estes se retiraram da unio. Assim, foifundada somente a Federao entre Mali e Senegal em janeiro de 1959 (Federaodo Mali), com durao at agosto de 1960. Para conter as idias federativas (eprogressivas), Houphout-Boigny fundou o Conseil dEntente entre Costa do Marfim,Alto Volta, Daom e Nger. Aquele Conselho no era uma entidade supranacional,mas s uma forma de cooperao entre Estados independentes.66

    A terceira maneira de rejeitar as fronteiras coloniais para a fricaindependente refere-se a trs casos concretos de reivindicaes territoriais,baseados em irredentismo histrico e/ou tnico (Marrocos, Somlia, e Ewe), e spoucas tentativas de secesso. Em todos esses casos no se logrou xito.

    Mito 4: Por causa da sua artificialidade, as fronteiras modernas so

    ignoradas na vida cotidiana e na conscincia dos homens comuns. Ou,alternativamente: as fronteiras modernas inibem, efetivamente, omovimento das pessoas e, assim, acabaram com a tradio pr-colonial demigrao, contato e intercmbio das populaes

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    Existem avaliaes bem diversas, e mesmo contraditrias, relativas sseqelas trazidas pelas fronteiras modernas para as populaes africanas. De umlado, argumenta-se que as fronteiras internacionais obstruam os movimentos da

    populao. Por exemplo, Fanso sublinha que: The disregard for the relevancy oftraditional political divisions during the establishment of colonial boundaries hascontinued to obstruct the movement of people and goods between neighbouringAfrican States even after the attainment of independence. Today, the divided peoplesacross the inherited boundaries continue to constitute the major and, in manyinstances, the only source of strained relations between neighbours.67

    De outro lado, afirma-se que as novas fronteiras no teriam tido nenhumimpacto sobre a vida cotidiana das populaes fronteirias: Despite all these divisive

    influences, partitioned Africans have nevertheless tended in their normal activitiesto ignore the boundaries as dividing lines and to carry on social relations acrossthem more or less as in the days before the Partition. [...] Judged, therefore, fromthe viewpoint of border society life in many parts of Africa, the Partition canhardly be said to have taken place.68

    Certamente, a ltima citao est mais prxima realidade, tanto em relao poca colonial como ps-colonial. Claramente, as modernas fronteiras noinibiram muito os movimentos da populao. s vezes, at provocaramdeslocamentos de grande nmero de habitantes. Mesmo assim, problemtico

    afirmar que a populao simplesmente ignorava as fronteiras. Seria mais corretodizer que os africanos se apropriaram das novas fronteiras, j que pouco separavame ofereciam diversas oportunidades.

    O impacto das fronteiras sobre o cotidiano pode ser abordado sob doisngulos. Em primeiro lugar, pode ser estudado o impacto das fronteiras sobre aspopulaes fronteirias, isto , aquelas populaes que vivem nas proximidadesdas fronteiras e que, muitas vezes, foram divididas entre duas colnias. Estaabordagem focaliza as border regions, representando um enfoque que,recentemente, experimentou bastante inovao paradigmtica, especialmente nocontexto da histria das regies fronteirias da Europa.69 Os estudos mais recentesdentro desta perspectiva de histria social tendem a mostrar que, para as pessoascomuns, as fronteiras na frica no representavam nem representam (com a notvelexceo da fronteira da frica do Sul que , em parte, protegida por uma cercaeletrificada) barreiras significantes s atividades cotidianas. As 50.000 milhas defronteiras eram e so insuficientemente policiadas e, na sua maioria, no sodemarcadas. Alm da incapacidade de implantar a fronteira, na realidade devido minscula fora policial, militar e administrativa de que o Estado colonial dispunha,

    muitas vezes faltava, tambm, a vontade de insistir na obedincia s fronteiras.Alm disso, em alguns casos, os governos coloniais garantiram e legalizaram osmovimentos permanentes alm das fronteiras, resultantes de atividadestransumantes, ou permitiram migrao em casos da partilha de uma regio tnica.70

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    As fronteiras africanas eram e so permeveis para a populao local.71

    Conseqentemente, argumenta Griffiths, people whose culture group is dividedby an international boundary normally pay little attention to the boundary in the

    course of their everyday lives. They regularly visit across the border, marry spoucesand, as a result, reside across the border for long periods and attend all manner ofceremonies, social occasions and family celebrations. These activities do not normallyconcern governments and the cross-border movements involved are seldomhampered.72

    No entanto, as fronteiras permeveis no so simplesmente ignoradas,mas tm significados importantes para a populao local. Em primeiro lugar, apesarda fora de identificao tnica alm das fronteiras, a fronteira e as nacionalidades

    implicadas integra o mapa mental e as identificaes das pessoas. Milesargumenta, por exemplo, que, na regio fronteiria entre a Nigria e o Nger, isto ,na Hausalndia cortada pela fronteira, a identidade nacional deve ser no mnimoto importante como a identidade tnica (ou seja, a identidade Hausa), e concluique recent reports of the death of the African state are indeed premature.73

    Nugent observa a mesma relevncia da identidade nacional entre os Ewe, divididospela fronteira entre Gana e Togo.

    Alm dessa relevncia das fronteiras pelas identidades das populaes, asfronteiras entram no dia-a-dia de maneira importante, com impacto nas relaes

    sociais. No seu estudo de caso, Nugent demostrou que atravs da situao fronteirialesser chiefs could enhance their status, aspirant cocoa farmers could lay claim tothe farm lands of their neighbours, and smugglers could make themselves rich.74

    Outro exemplo de apropriao da fronteira pela populao fornecido por umaregio bem diferente: do tringulo fronteirio entre Malaui, Moambique e Zmbia,dividindo os Chewa e os Ngoni entre estes trs Estados modernos. As pessoas,assim divididas no seu espao cultural, no somente se moviam livremente naregio fronteiria, mas tambm selecionavam criticamente as ofertas que cadaEstado fazia. Zambianos atravessam a fronteira para se aproveitar das boas eabundantes terras em Moambique, mas deixam os seus filhos nas escolas deZmbia, que so consideradas melhores. Residentes em Moambique e Malauitambm mandam os seus filhos para a escola em Zmbia. So utilizados, tambm,os servios mdicos no lado da fronteira daquele pas pelas trs nacionalidades,uma vez que em Malaui eles no so gratuitos e no lado moambicano da fronteirano existe hospital. Alm disso, agricultores de Moambique usam os servios deextenso agrcola de Zmbia e tambm vendem os seus produtos neste pas.75

    O segundo ngulo da discusso sobre o impacto das fronteiras modernas

    no cotidiano das pessoas comuns dirigiria-se alegao de que as fronteiras coloniaise ps-coloniais impediriam a migrao das comunidades africanas que tantocaraterizava a situao pr-colonial. Tudo indica, porm, que o contrrio aconteceu:em vez de inibir a migrao, o Estado moderno e as suas fronteiras provocaram

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    deslocamentos de populao em grande estilo. Esses movimentos populacionaistinham como causa dois fatores principais: de um lado, as novas desigualdadeseconmicas, criando novos plos de crescimento e desenvolvimento com as suas

    oportunidades, junto s exigncias do sistema colonial quanto ao pagamento deimpostos e crescente comercializao da vida cotidiana dos africanos; de outrolado, as fugas de grandes populaes de um regime repressivo colonial ou deguerras ou distrbios civis na poca ps-colonial.

    As migraes econmicas, iniciadas com o colonialismo, tinham o maiorimpacto em duas regies: frica Austral e frica Ocidental. Na frica Austral,as minas e as fazendas dos colonos brancos na frica do Sul e na Rodsia do Sul(Zimbbue) atraram migrantes temporrios de Tanganyka (Tanznia), Nyasalndia

    (Malaui), Moambique, Rodsia do Norte (Zmbia), Angola, Betchuanalndia(Botswana), Swazilndia e Basutolndia (Lesoto). As minas de Zmbia, do CongoBelga e as minas e fazendas de Botswana foram, tambm, alvos de migrao.Enquanto a migrao na frica Austral era principalmente de mo-de-obraassalariada, na frica Ocidental as correntes migratrias tinham composio socialmais diversa e tm uma tradio que comeou bem antes do colonialismo. Almde mo-de-obra agrcola, a migrao nesta parte da frica inclui, tambm,cultivadores e comerciantes. A principal regio de origem o cinto de savana nafrica Ocidental, especialmente os pases Mali (Sudo), Guin, Alto Volta e Nger.Tm quatro rotas principais: uma para o oeste (para as regies de cultivo deamendoim na Senegmbia), uma para o sul (para as cidades porturias na costa epara os centros da agricultura comercial na zona da floresta tropical), uma para onorte da Nigria (regio de produo de amendoim e algodo) e para o Planalto deJos (minas de estanho), e a ltima para o leste, levando os fiis muulmanos paraMeca. Estas migraes variavam entre as estritamente de estao (por exemplo,dos navtanes para o Senegal)76 e a permanente (no caso dos cultivadores decacau no cinto da floresta tropical).

    Uma outra oportunidade econmica que as fronteiras oferecem,essencialmente para as populaes locais, a do comrcio, seja ele legal oudenominado contrabando. Mas os africanos no atravessaram as fronteirasinternacionais somente na busca de oportunidades econmicas. As fronteirasofereciam, tambm, a possibilidade de fuga dos excessos de represso durante ocolonialismo. Especialmente o carter predatrio do sistema colonial francs nafrica Ocidental, com altas taxas de tributao, mo-de-obra forada, cultivoobrigatrio e servio militar obrigatrio, fez fugir populaes inteiras para o domnio

    colonial ingls. Foi estimado que, por exemplo, s em 1939, para escapar do cultivocompulsrio de algodo, migraram 100.000 mossi de Alto Volta para Gana.77

    A possibilidade de atravessar a fronteira, para fugir da represso racial epara organizar a luta armada contra os colonialismos e os regimes racistas na

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    frica Austral (no caso de Angola e Moambique, Zimbbue, Nambia e fricada Sul), alerta tambm sobre o potencial histrico das fronteiras na frica.Finalmente, importante sublinhar que, na atualidade, as fronteiras representam

    para milhes de africanos a nica chance de sobreviver s guerras civis nos seuspases. S em 1995, aproximadamente sete milhes de refugiados tinhamatravessado fronteiras internacionais e viviam em um pas vizinho.78

    Demonstramos nesta parte que as fronteiras modernas na frica norepresentaram na poca colonial, nem representam hoje, barreiras efetivas paraos movimentos de populao. Eram e so permeveis, so mais zonas de contatodo que de excluso. Porm, no esto ausentes da mente e da identificao dospovos. As fronteiras representam uma realidade na vida das pessoas. Elas so

    apropriadas, utilizadas e, no seu significado, permanentemente renegociadas, emvez de simplesmente ignoradas.

    Mito 5:A delimitao artificial das fronteiras na frica representa umadas principais causas de conflito entre os Estados e dentro deles

    Virou clichexplicar a instabilidade poltica da frica em parte em funodo impacto das fronteiras herdadas do colonialismo. As fronteiras seriamartificiais, argumenta-se, por isso causam conflitos entre os Estados ou dentro

    deles. Essa suposio ser discutida de duas maneiras. Em primeiro lugar, serquestionada a utilidade do conceito de artificialidade na caraterizao das fronteirasafricanas. Posteriormente, ser mostrado que disputas e conflitos fronteirios norepresentaram um problema grave nas relaes internacionais dos Estados africanosindependentes.

    O conceito de artificialidade muito problemtico, uma vez aplicado sfronteiras. Tradicionalmente, foram os gegrafos que deram cunho a esta palavra,denominando as fronteiras que seguiram os elementos naturais na paisagem comonaturais e as fronteiras baseadas em linhas astronmicas ou geomtricas comoartificiais.79 Mas esta definio contestvel porque a atividade humana raramentese orienta na diviso natural da paisagem. As barreiras naturais no representamfronteiras no espao cultural, poltico ou econmico criado pelas sociedades humanasmas, pelo contrrio, muitas vezes, vias de comunicao e interligao.

    Por isso, necessrio relacionar a caracterizao de uma fronteira comas articulaes das atividades humanas no espao. Neste sentido, comumenteargumentado que as fronteiras africanas so artificiais porque elas foram delimitadasdesrespeitando os espaos culturais, polticos e econmicos criados pelas sociedades

    africanas na poca pr-colonial. Este argumento apresenta problemas por doismotivos. Em primeiro lugar, h fortes indcios de que os colonizadores muitas vezestentaram considerar realidades existentes no desenho das fronteiras. Em segundolugar, existem dvidas de que este fato serve para caracterizar uma singularidade

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    das fronteiras africanas. Cada fronteira moderna, argumenta-se, teria violado osespaos anteriormente criados.

    Embora a alta porcentagem de linhas retas entre as fronteiras e a diviso

    de muitas reas culturais, mencionada acima, sugiram uma poltica de desrespeitos realidades pr-coloniais na delimitao das fronteiras coloniais, existem tambmcasos de correspondncia entre as antigas e as novas fronteiras. Brownlie lista emtorno de quatorze fronteiras (ou parte delas) nas quais a tribal distributioninfluenciou o percurso.80 O desdobramento da Partilha da frica tambm mostrauma certa orientao nas divises polticas autctones. Muitos dos tratados deproteo, celebrados entre chefes africanos e representantes dos Estados europeus,referiram-se aos espaos polticos e de jurisdio daqueles dirigentes africanos.

    Depois, s vezes, a diviso das esferas de colonizao entre as potncias europiasseguia as linhas esboadas pelos tratados de proteo.Nos anos 60, como parte da reviso nacionalista da historiografia africana,

    argumentava-se que, por meio destes mecanismos e da negociao direta, osdirigentes africanos teriam influenciado a delimitao das fronteiras. Por isso,argumenta Touval, African borders in totowere not arbitrarily drawn. [...] Atleast some of the treaties concluded between Europeans and African rulers weregenuine...81 Anene, que examinou detalhadamente o processo histrico deformao das fronteiras internacionais da Nigria, conclui que as far as the boundary

    arrangements for Nigeria are concerned, unqualified suggestions of arbitrarinessand subjective criticism are misleading and dangerous.82 Estudos mais recentesreafirmam esta concluso.83 Alguns autores notam uma diferena nessa polticaentre a Frana, que teria ignorado a situao pr-colonial, e a Gr-Bretanha, queteria se mostrado mais adaptvel.84

    Para nos referirmos ao segundo momento do argumento acima exposto,podemos destacar que alguns autores alegam que a diviso dos espaos culturaise tnicos pelas fronteiras no torna o continente africano excepcional, mascaracterizaria todas as sociedades humanas. Touval argumenta, por exemplo, quethere is no reason why, in Africa, the border between Ghana and the Ivory Coast[...] should be regarded as more artificial than, for example, the border betweenHungary and Yugoslavia [...].85 Uma diferena entre a Europa e a frica seria,segundo alguns autores, que, na frica, essa diviso veio de fora, enquanto naEuropa se tratava do resultado dun quilibre des violences autochtones.86

    Asiwayu nega essa diferena e argumenta que, pela perspectiva das populaeslocais, o processo teria sido o mesmo e que, por exemplo, para os catales, osEstados da Frana e da Espanha, entre os quais sua regio cultural foi dividida,

    teria sido uma fora to distante e usurpadora como a Frana e a Inglaterra forampara os Yoruba, que se encontraram de repente nos dois lados da fronteira entreDaom e Nigria. Baseando seu argumento nos resultados da pesquisa de PeterSahlins sobre a Cerdanya, regio histrica nos Pireneus dividida por Espanha e

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    Frana87 , Asiwaju afirma que politically, socially and economically the boundariesof modern national states, in Europe first and then in Africa and elsewhere, whereknown to have intruded into and strongly impacted on local community life.88

    Na perspectiva do processo histrico, a comparao entre a Europa e africa muito instrutiva. As semelhanas so impressionantes entre, de um lado,as experincias dos cerdes e as suas vises, estratgias, manipulaes enegociaes face linha reta dividindo a sua regio, e as de africanos vivendo nasborder areascoloniais e ps-coloniais. L-se quase como relato sobre a fricaquando Sahlins afirma, que in the first two centuries after the division of thevalley, the Cerdans created their own national identities in other ways. One wasinstrumental, through the use (and abuse) of the nation, whether France or Spain.

    The Cerdans developed a rhetoric of national identity that masked their own interestsand appealed to the ideals of government officials.Contudo, a continuao da citao aponta para uma diferena importante

    entre a frica e a Europa, que coloca em dvida o valor explicativo das semelhanasno processo histrico para a situao de hoje: Yet over the course of two centuries,the Cerdans ended up convincing themselves of their affiliation to France or toSpain ...89 Aqui, no negado que a identidade nacional teria importncia nasidentificaes das populaes fronteirias na frica, talvez o contrrio fosse ocaso. Mas o fator de tempo deve ser considerado como importante neste processo.

    O fato de que as identidades nacionais se formaram nestas periferias da Frana eda Espanha no percurso de sculos, e eram firmes j no final do sculo XIX, deveser um elemento-chave na comparao das situaes fronteirias entre a Europae a frica de hoje. Mas, conclui-se, o termo artificial talvez seja impreciso eambguo demais para adequadamente explicar a diferena entre essas duassituaes fronteirias.

    Outra maneira de se refletir sobre a suposta artificialidade das fronteirasafricanas modernas seria comparar o modo de composio dos Estados coloniaise ps-coloniais com a situao dos Estados pr-coloniais. Demonstra-se que asfronteiras dos Estados modernos cortam reas culturais e os Estados so, emregra, compostos por uma multido de etnias e culturas diferentes. Mas, como foiacima demostrado, este fato em si no representa uma inovao na poltica africana.Os Estados pr-coloniais tinham, na sua composio e estrutura, as mesmascaratersticas: cortavam, atravs de suas fronteiras, grandes regies culturais elingsticas e no se distinguiram por homogeneidade tnica. Neste sentido, afronteira moderna na frica parece at menos artificial. A multietnicidade e asculturas e etnias politicamente divididas representam uma forte tradio africana

    desde a poca pr-colonial, sobrevivendo at os dias atuais.A segunda parte do mito acima citado se refere relao entre aartificialidade das fronteiras e os conflitos na frica contempornea. Em relao freqncia de conflitos, podemos afirmar que, desde a poca da descolonizao, a

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    frica foi o continente com o maior nmero de conflitos armados. Desde 1955,apenas um quinto dos pases africanos foi poupado de um conflito armado: Tunsia,Costa do Marfim, Benin, Guin Equatorial, Gabo, Botswana, Malaui e

    Madagascar.90 Deste grande nmero de conflitos armados, a esmagadora maioria de conflitos internos aos pases, principalmente de guerras e levantes contra oregime no poder. Embora muitas destas guerras internas tenham uma forte dimensoregional em termos de simpatia e apoio de combatentes por pases vizinhos,raramente aconteceu um pleno confronto militar entre dois Estados africanos. Atmais raramente, isto , somente em dois ou trs casos (Marrocos-Arglia e Somlia-Etipia, e, mais recentemente, o conflito entre Eritria e Etipia) uma disputa sobrefronteira evoluiu para uma plena guerra (veja quadro 1).

    O quadro demonstra que a maioria das 30 disputas fronteirias na fricaentre aproximadamente 1958 e 1995, em torno de 25 casos, no envolveu nenhumtipo de violncia. Nas outras ocorrncias, com a exceo dos casos de guerraacima mencionados, a violncia foi limitada (tratava-se, em geral, de incidentesfronteirios menores) e/ou no partiu da ao de Estados. O quadro tambm revelaque a grande maioria das disputas fronteirias foi resolvida por acordo. As causasdessas disputas raramente so de origem tnica e, na sua maioria, so resultantesde interpretaes adversas das delimitaes feitas durante a poca colonial. So,assim, conseqncias das imperfeies tcnicas e da maneira fortuita com que as

    potncias coloniais demarcaram os seus domnios. Irredentismo tnico ou nacional a causa dos conflitos fronteirios entre Marrocos, Somlia e seus respectivosvizinhos.

    Algumas das reivindicaes territoriais difusas feitas por Malaui tambmse baseiam em noes do passado. Mas, j o caso dos Ewe, que muitas vezesigualmente citado como caso clssico de irredentismo tnico, multidimensional.91

    Boyd, em um estudo emprico sobre as causas de conflitos fronteirios na frica,chega mesma concluso e argumenta que a artificialidade das fronteiras norepresenta um fator importante.92

    Mas, mesmo se as culturas divididas no representassem uma causaimportante de conflito entre os Estados, a agregao de etnias diferentes, e muitasvezes antagnicas, em um Estado s no seria causa de conflitos? Certamente, asidentificaes tnicas e regionais muitas vezes representam as linhas divisriasentre as fraes em conflitos na frica. Podemos mesmo alegar que a maioria dosconflitos tem essa dimenso, entre outras. Contudo, etnicidade e identificao tnicaem si no podem ser responsabilizadas pelos conflitos. A prpria tradio multitnicados Estados africanos pr-coloniais e os exemplos de coexistncia pacfica de

    diversas etnias demonstram que no existe automatismo entre multietnicidade econflito. Mas, etnicidade e regionalismo so suscetveis de politizao em conflitopelo poder ou por recursos econmicos devido s imperfeies do processo polticoem muitos pases africanos.

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    Apenas em casos raros as lutas com expresso tnica questionam asfronteiras e a persistncia dos Estados. Os exemplos mais pertinentes deste tipode conflito so as poucas tentativas de secesso que ocorreram na frica

    independente. O conflito de Biafra, a secesso temporria de Katanga, a guerracivil no Sudo no seu incio, a independncia da Eritria, a diviso da Somlia e astentativas de separar os enclaves de Cabinda de Angola e de Casamance do Senegalso os exemplos principais de tentativa de secesso na frica ps-colonial.Interessantemente, as nicas duas tentativas bem sucedidas de secesso (aindependncia da Eritria, cultural e etnicamente muito heterognea, em 1993, e adeclarao unilateral de independncia da Repblica Somalilndia no norte daSomlia, que era culturalmente o Estado africano mais homogneo) reergueram

    as divises coloniais como fronteiras dos seus novos Estados.

    Concluso: enfim, porque as linhas retas sobreviveram com tanto sucesso?

    Agora, podemos unir os argumentos e explicar porque as fronteirasmodernas da frica exibiram, apersar de todas as suas imperfeies e defeitos,tanta resistncia a mudanas. Mostramos, em primeiro lugar, que as fronteirasmodernas na frica tm a sua origem no processo da Partilha do continente entreas potncias coloniais europias mas que o papel da Conferncia de Berlim de

    1884/5 foi muito limitado nesta diviso. Em segundo lugar, foi demonstrado que aaceitao das fronteiras coloniais durante a descolonizao no era automtica,mas o resultado de um processo poltico complexo, que articulava vrias alternativase opes. No final deste processo conflituoso de posicionamento entre os Estadosafricanos recm-nascidos, temos a ampla confirmao dostatus quoterritorial ea quase universal adeso ao princpio de uti possidetis juris, isto , um consensoentre os Estados, simbolizado e reforado pela formao da Organizao da UnidadeAfricana em 1963.

    Com isso, apontamos uma primeira razo da estabilidade das fronteirasafricanas. A OUA e os Estados africanos, com poucas excees, mantiveramesta fixao no status quoe deslegitimaram qualquer mudana nas linhas retassacrossantas, posio que j rendeu muitas crticas. O Presidente Nyerere, porexemplo, criticou a OUA como sindicato dos dirigentes africanos, garantindo-lhes os espaos polticos e, assim, a sua sobrevivncia.93 Outros autores comparama OUA com a Santa Aliana na Europa no incio do sculo XIX.94 Esse consensoconservador das novas elites africanas sobre a mtua preservao das fronteiras,contudo, no s reflete a preocupao com a instabilidade interna e a fraca

    legitimidade que as elites tm mas, tambm, a possibilidade de potencialmentedesequilibrar qualquer pas africano questionando suas fronteiras. Oconservadorismo sobre fronteiras corresponde, tambm, s normas e lgica dosistema internacional que criou os Estados africanos durante o processo de

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    descolonizao. De maneira semelhante garantia das fronteiras coloniais da fricapelas potncias europias, o sistema internacional, com as suas normas de soberania,reconheceu os novos membros da comunidade internacional como Estados,

    independentemente da capacidade destes Estados de se realizarem como Estadospela prpria fora. As qualificaes empricas do exerccio de soberania interna ede suas relaes com outros pases (empirical statehood), que teriam caracterizadoas normas internacionais at ento, foram substitudas por um nico critrio, o doreconhecimento pelos outros Estados. Jackson chama isso desoberania negativae denomina estes Estados como quasi states.95 A lgica e o sentido profundo dasrelaes internacionais africanas mantm esta fico como consenso e, assim, oprocesso poltico na frica baniu o questionamento das linhas retas.

    Certamente, as normas internacionais, a poltica da OUA e o consensoentre os Estados africanos no sentido de manter o status quoa qualquer custoexplicam em parte a dureza das fronteiras. Mas o argumento acima desenvolvido,acerca da funo de fronteiras na frica pr-colonial e do carter das entidadespolticas antes da chegada dos europeus, igualmente importante. Mostramosque, para as sociedades africanas, fronteiras polticas no eram desconhecidas eque o processo de colonizao, neste sentido, no trouxe muita inovao e osafricanos chegaram a se apropriar das fronteiras. Mostramos que, nas estruturasformais e no modo de composio, existiam semelhanas marcantes entre os

    Estados pr-coloniais e coloniais/ps-coloniais. Em ambos os casos, o espao polticono corresponde ao espao tnico ou lingstico. O Estado pr-colonial, bem comoseu sucessor colonial e ps-colonial, era ao mesmo tempo multitnico e dividiacultural areas. Assim, foi mantida uma tradio africana que, em si mesma, gerainstabilidade. A correspondncia entre etnia nica e Estado foi uma inveno daEuropa Ocidental do final do sculo XIX e no representa a nica forma para seconstruir um Estado estvel. Assim, em vez de lamentar a multietnicidade comouma inevitvel causa de conflito, temos que reconhecer sua longa tradio (nosomente na frica) e o seu potencial como forma para compor sociedadescomplexas.

    Um ltimo elemento de explicao deve ser integrado. Refere-se faltade alternativas s fronteiras existentes. Uma vez que a frica decidiu se integrar comunidade internacional na forma de Estados soberanos, foi inevitvel, devidoao grande nmero de etnias, que estes Estados fossem compostos por vrias etniase culturas. Pela mesma razo, e pelo fato de que impossvel delimitar culturalareaspor fronteiras fixas, foi simplesmente impossvel evitar que as novas fronteirascortassem os espaos culturais. Neste sentido, as fronteiras atuais, bem como as

    coloniais, representam uma resposta racional necessidade da frica de participarno sistema internacional do sculo XX.

    Junho de 1999

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    Quadro 1Disputas sobre fronteiras na frica, de 1958 a 1995(a)

    No. Estados envolvidos rea disputada PerodoSituaoem1972(b)

    Situaoem1995(b)

    Violncia?

    (c)1 Marrocos - Arglia Partes do Saara da Arglia colonial

    1956-R R S

    2 Marrocos - Mali Nordeste do Mali 1956-61 R (?) R N3 Tunsia- Arglia Grande Erg Oriental 1956-64

    1966R R N

    4 Gana - Togo a) Gana reivindicou rea do Togob) Togo reivindicou reas de Ganapovoadas por Ewe

    19581957-621974-78

    RRR

    RRR

    N

    5 Gana - Costa do Marfim(1) Gana reivindicou rea Sanwi 1959 R R N6 Gana - Alto Volta (Burkina Farso) Pequena rea na fronteira comum 1963 R R N7 Mali - Alto Volta (Burkina Farso) a) Fronteira no Oudalan

    DitoDito

    19631974-751985-86

    R R

    R

    NSS

    8 Nger - Alto Volta Fronteira comum 1963-64 R R N (?)9 Nigria - Chade Ilhas no Lago Chade 1983 R S

    10 Nigria - Daom (Benin) rea dos Yoruba em Daom 1960 R R N11 Daom (Benin) - Nger Ilha Lete no Rio Nger 1963-65 R (?) R N12 Mali - Mauritnia a) Fronteira comum no Hodh

    b) Regio de Djel Maael at Queneibe1961-631958-63

    RR

    RR

    (S)

    13 Libria - Guin Regio de Mount Nimba 1958 R R N14 Libria - Costa do Marfim rea entre os rios Cess e Cavally 1960 R R N15 Egito - Sudo rea de Wadi Halfa; retngulo Jabel

    Bartazuga-Korosko; tringulo Sarra1958

    1992- P

    N

    (N)16 Somlia - Etipia(2) Haud e Ogaden 1955 - 60

    1960-78 P (?) P (?) S17 Somlia - Qunia(2) Northern Frontier District 1960

    1963-67R R (N)

    18 Somlia - Etipia(2) Djibuti 1960 (?) (?)19 Somlia - Djibuti(2) Djibuti 1976- R N20 Qunia - Etipia Regio fronteiria de Gadaduma Wells 1963 R R N21 Qunia - Uganda(3) Fronteira comum 1962

    19761987

    RRR

    N

    S22 Moambique - Malaui Margem oriental do Lago Shirwa 1962 R R N23 Congo (Braz.) - Gabo Regio de minas de ouro ao sul de

    Franceville1962- R; S R N

    24 Gabo - Guin Equatorial Ilhas na Baa de Corisco 1972 R R N25 Camares - Nigria a) Ex-Camares do Norte

    b) Fernando Poc) Pennsula Bakassi

    1961-61

    1960-611981;1993-

    D RRRP

    NNNS

    26 Nambia-frica do Sul Walvisbay 1977-1994 P R N27 Tanznia - Malaui Fronteira no Lago Nyasa 1962, 1967 (?) R (?) N28 Chade-Lbia rea de anexada pela Lbia annexed

    Aozou em 19731973 - 1994 R S

    29 Malaui - Zmbia M. reivindica Provncia Oriental d. Z. 1981 - 86 R (?) N30 Zmbia Zaire Fronteira comum no Lago Mweru 1980-1986 R (S)

    Notas(a) Estas disputas se referem a disputas sobre a posio de fronteiras, entre Estados africanos. No so includos conflitos de secesso ediviso/desintegrao de territrio de Estados (Bakongo; Katanga; Biafra; Eritria; Somalilndia; Casamane; Sudo, Uganda); nem so includas asdisputas mais recentes (depois de 1995) (Zmbia - Botswana: Eritria - Etipia) ou disputas entre Estados africanos e europeus (por exemplo, oconflito entre Madagascar, Mauritius e Frana sobre as Ilhas Tromelin).(b) R = resolvido; P = pendente; S = suspenso; D = dormindo.(c) Ocorrncia de violncia no conflito: N = no; S = sim: (S) - sim, mas no de Estados.(1) duvidoso se Gana comunicou oficialmente uma reivindicao.(2) A situao acerca das reivindicaes da Somlia no est clara devido desintegrao do Estado unificado da Somlia.(3) No est claro se Uganda oficialmente, e via os meios diplomticos, fez reivindicaes.

    FontesTOUVAL, S. The Boundary Politics of Independent Africa. Cambridge (Mass.): Havard Uni Press, 1972. DAY, A.J. (org.).Border and Territorial

    Disputes. A Keesing's Reference Publication. Harlow, Essex, UK: Longman, 1982. PFETSCH, F.R. (org.). Globales Konfliktpanorama 1990-1995.Mnster: LIT, 1996. PFETSCH, F.R. (org.) Konflikte seit 1945. Daten, Fakten, Hintergrnde. Schwarzafrika. Freiburg, Wrzburg: Ploetz, 1991.WATERS, R. Appendix I: Inter-African Boundary Disputes: A List and a Map. Em: WIDSTRAND, C.G. (org.). African Boundary Problems.Uppsala, 1969. PRESCOTT, J.R.V. Political Frontiers and Boundaries. London: Allen & Unwin, 1987. BROWNLIE, I. African Boundaries: A

    Legal and Diplomatic Encyclopaedia.London: C. Hurst, 1979. BRECHER, M. & WILKENFELD, J. & MOSER, S. Crises of the Twentieth Century.Vol 1: Handbook of International Crisis. Vol 2: Handbook of Foreign Policy Crisis.Oxford: Pergamon Press, 1988.

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    Notas

    1 O autor agradece Norma Breda dos Santos, Olinta Pereira Teixeira Dpcke, ao Jos Flvio

    Sombra Saraiva pelos indispensveis comentrios feitos ao texto, e ao CNPq pelo apoiofinanceiro dado a esta pesquisa.2 Um recente exemplo o artigo de Howard W. French noNew York Timesde 16 de janeiro de

    1999 (Europes Legacy in Africa: Domination, Not Democracy).3 BOAHEN, A. A.African Perspectives on Colonialism. Baltimore: Johns Hopkins UP, 1987,

    p. 96.4 BAH, M.A. The Nineteenth Century Partition of Kissiland and the Contemporary Possibilities

    of Reunification. Em:Liberian Studies Journal, 12, 1, p. 38, 1987.5 CURZON OF KEDLESTON, Lord. Frontiers: the Roman Lectures. Oxford: OUP, 1907,

    citado em: PRESCOTT, J.R.V.Political Frontiers and Boundaries. London: Allen & Unwin,1987, p. 43.

    6 Sobre os conceitos defrontiere boundarynas lnguas europias, veja: KRISTOF, L.K.D. TheNature of Frontiers and Boundaries. Em:Ann. of Ass. of Americ. Geographers, vol. 49, 1959,p. 269-282.

    7 BROWNLIE, I. African Boundaries: A Legal and Diplomatic Encyclopaedia. London:C. Hurst, 1979, p. 3.

    8 Atualmente, em 1998/9, a frica conta com 55 Estados universalmente reconhecidos e aRepblica Democrtica rabe Saara (DAR Saara).

    9 GRIFFITHS, I. Permeable Boundaries in Africa. Em: NUGENT, P. & ASIWAJU, A.I.(orgs.).African Boundaries. Barriers, Conduits and Opportunities. London & New York:Pinter, 1996. BARBOUR, K.M. A Geographical Analysis of Boundaries in Inter-Tropical

    Africa. Em: BARBOUR, K.M. & PROTHERO, R.M. (orgs.).Essays on African Population.London: Routledge & Kegan Paul, 1961, p. 305.10 O nmero de 187, compilado por Barbour no incio dos anos 60, refere-se lista das tribos

    divididas por fronteiras internacionais. Veja: BARBOUR. Op. cit. O nmero de 131 refere-sea culture areas e dado por Asiwaju. Veja: ASIWAJU, A.I. Partioned Culture Areas: Achecklist. Em: ASIWAJU, A.I. (org.).Partitioned Africans. Ethnic Relations across Africas

    International Boundaries 1884-1984. London/Lagos: C.Hurst & Company/University of LagosPress, 1984, p. 252-259.

    11 ZARTMAN, I.W. The Politics of Boundaries in North and West Africa. Em:Journal ofModern African Studies, III, 2, 1965, p. 155-73.

    12 KOPONEN, J.People and Production in late pre-colonial Tanzania. History and Structures.

    Finnland, 1988. BEINART, W. The Political Economy of Pondoland 1860-1930. Cambridge:1982, p. 18. DPCKE, W. O significado de fronteiras na histria de Zimbbue reflexesiniciais. Em: Textos de Histria, Revista da Ps-Graduao em Histria da UnB, Vol. 3, n. 5(1995).

    13 John Thornton, Millersville University: Contribuio na discusso sobre fronteiras coloniais,na Africa Net, 21 Jan. 1999.

    14 Veja: NUGENT. Colonial Boundaries. Op. cit., p. 36.15 WILKS, I. On mental mapping Greater Asante: a study of time and motion. Em:Journal of

    African History33, 1992.16 ASIWAJU, A.I. The Concept of Frontier in the Setting of States in Pre-colonial Africa. Em:

    Presence Africaine, Paris, 1983, p. 45-6. ALLOTT, A.N. The changing legal status ofboundaries in Africa: a diachronic view. Em: INGHAM, K. (org.). Foreign Relations ofAfrican States.