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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
TESE DE DOUTORADO EM FILOSOFIA
HIERARQUIA E ONTOLOGIA: O MOTOR IMÓVEL NO LIVRO XII DA METAFÍSICA
THALES DE OLIVEIRA MALHADO
RIO DE JANEIRO 2007
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2
HIERARQUIA E ONTOLOGIA:
O MOTOR IMÓVEL NO LIVRO XII DA METAFÍSICA
Thales de Oliveira Malhado
Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor, sob a orientação do Prof. Doutor Fernando José de Santoro Moreira.
Rio de Janeiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
2007
3
HIERARQUIA E ONTOLOGIA:
O MOTOR IMÓVEL NO LIVRO XII DA METAFÍSICA
Thales de Oliveira Malhado
Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.
Aprovada por:
_______________________________________________________
Prof. Doutor Fernando José de Santoro Moreira
_______________________________________________________
Prof. Doutor Emmanuel Carneiro Leão
________________________________________________________
Prof. Doutor Fernando Augusto da Rocha Rodrigues
________________________________________________________
Prof. Doutor Izabela Aquino Bocayuva
________________________________________________________
Prof. Doutor Marcus Reis Pinheiro
Rio de Janeiro, RJ – Brasil - 2007
4
Malhado, Thales de Oliveira Hierarquia e Ontologia: O Motor Imóvel no Livro XII da Metafísica Thales de Oliveira Malhado. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGF – IFCS, 2007 350p Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGF – IFCS. 1. Filosofia Antiga. 2. Aristóteles. 3. Tese (Dout. UFRJ/PPGF- IFCS). I. Título
5
Para Michelle Paiva Marinho, que move todo o meu ser.
6
Agradecimentos: à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que patrocinou esta investigação. Ao Prof. Doutor Fernando José de Santoro Moreira, pelo paciente e generoso trabalho de orientação.
7
RESUMO
Justificação da idéia de que há uma escala henológica na ontologia de Aristóteles baseada na separação
ontológica e na auto-enunciação do ente. Assim, o motor imóvel assume o topo da hierarquia enunciativa
do ente e de sua separação do não-ente, isto é, de uma escala simultaneamente autológica e separativa do
ente.
8
ABSTRACT Justification of Idea that there is a henological scale into the Aristotle’s ontology based on the ontological
separation and self-enunciation of the being. So, the immovable mover assume the acme of enunciative
hierarchy of being and of its separation of no-being, that is, of a autological and simultaneously separative
scale of being.
9
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................ 10
PRIMEIRA PARTE: EXPOSIÇÃO CRÍTICA DO LIVRO L.................... 21 I – OS DOIS BLOCOS EM QUE SE SUBDIVIDE O LIVRO L............................................................ 22
II – ANÁLISE DOS CAPÍTULOS QUE COMPÕEM O LIVRO L ....................................................... 29
Primado Heurístico da Essência ........................................................................................................... 29 Os Princípios Metabólicos.................................................................................................................... 35 Modalidade Ontológica dos Princípios Metabólicos ............................................................................ 49 A Redução Analógica dos Princípios ................................................................................................... 60 Redução Analógica da Modalidade Existencial ................................................................................... 64 Demonstração da Supra-essência ......................................................................................................... 68 Natureza da Supra-essência .................................................................................................................. 78 Hierarquia de Supra-essências.............................................................................................................. 86 Aporética da Supra-essência................................................................................................................. 93 Separação da Supra-essência ................................................................................................................ 98
III – INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA DO LIVRO L.................................................................. 103
Grau de Maturidade do Livro L da Metafísica................................................................................... 105 Física, Teologia e Filosofia Primeira.................................................................................................. 113 Modo de Universalidade do Objeto Primeiro ..................................................................................... 115
SEGUNDA PARTE - O MOTOR IMÓVEL REALIZA A UNIDADE MÁXIMA DO ENTE ................................................................................. 117
UNIDADE EM ARISTÓTELES............................................................................................................ 119
UNIDADE DOS SENTIDOS DO ENTE............................................................................................... 145
O ente não é um gênero ...................................................................................................................... 146 UNIDADE DO ENTE ENQUANTO ENTE.......................................................................................... 153
UNIDADE DA ESSÊNCIA ................................................................................................................... 195
Caráter Unificado da Essência............................................................................................................ 196 Caráter Unificador da Essência .......................................................................................................... 209
UNIDADE DA ALMA .......................................................................................................................... 220
UNIDADE DA INTELIGÊNCIA .......................................................................................................... 231
Unidade da Inteligência Separada ...................................................................................................... 234 Unidade e Separação na Intelecção .................................................................................................... 249 Aproximação da Solução do Problema............................................................................................... 255 Relação Inteligência-Inteligível.......................................................................................................... 257 Modo de Imortalidade da Inteligência ................................................................................................ 259
UNIDADE DO MOTOR IMÓVEL ....................................................................................................... 265
CONCLUSÃO ........................................................................................... 307 VOCABULÁRIO DE TRADUÇÃO.......................................................... 319 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................ 346
10
INTRODUÇÃO
11
O “motor imóvel” é o conceito aristotélico fundamental investigado nesta tese. No
entanto, trata-se de um objeto cujo estudo provoca tantas conseqüências em nosso
entendimento da doutrina metafísica de Aristóteles que não foi possível tratá-lo separado
de praticamente nenhum de seus conceitos-chave. Além disso, até os dias atuais o motor
imóvel suscita dúvidas e querelas profundas entre os estudiosos. Nos últimos anos,
voltamos a considerar novamente a maturidade da teologia aristotélica e sua importância
para a sua filosofia primeira, maturidade esta que Jaeger havia posto em xeque em seu já
clássico ‘Aristóteles – bases para a história de seu desenvolvimento intelectual’. Era o
seu método histórico-genético, que postulava um progressivo e consistente afastamento
ideológico entre Aristóteles e seu mestre Platão, no qual a teologia filosófica não
representava senão uma etapa inicial e pouco autônoma. As contribuições para a
hermenêutica do Corpus foram imensas, principalmente pelo caráter gradual deste
método, que tornava cada elemento conceitual integrante de um momento decisivo do
pensamento de Aristóteles.
Então se percebeu1 que este método, como qualquer outro, tinha suas limitações e
poderia provocar sérios mal-entendidos se aplicado indiscriminadamente. E a excessiva
insistência de Jaeger quanto a múltiplos enxertos anacrônicos e apócrifos foi um dos
principais alvos da crítica posterior. Penso que tal insistência era tão forçada e duvidosa
quanto necessária em seu intento. Em determinado momento, tornou-se impossível
explicar a ocorrência da teologia inclusive em obras da metafísica já confirmadas como
1 Natorp, Patzig, Reale, entre outros estudiosos. Na segunda parte da tese abordaremos alguns aspectos desta grande polêmica, particularmente os relativos à natureza do objeto da filosofia primeira. Mas somente na terceira parte poderemos oferecer uma resposta alternativa, calcada no desenvolvimento da perspectiva henológica.
12
maduras mesmo por parte de Jaeger. A hipótese de enxertos ad hoc eram a última
alternativa.
Abordamos aqui a experiência de Jaeger, não somente por se tratar de um marco
de ousadia na exegese de Aristóteles, mas porque podemos aproveitá-la ainda hoje ao
menos em dois aspectos decisivos. O primeiro de ordem negativa, que fica claro pelo
parágrafo anterior: nenhum método hermenêutico deve ser adotado sem reservas para um
estudo de um pensador tão rico e corajoso como Aristóteles, capaz de sustentar teses de
tão difícil conciliação como a teleologia universal e a causalidade casual, a
funcionalidade material da alma e a possibilidade de sobrevivência de uma de suas partes,
só para citar dois exemplos. Trata-se de um filósofo de grandes sínteses, mais ainda do
que Platão o foi. Empirismo e racionalismo, materialismo e espiritualismo já buscaram
paternidade em sua obra. Sendo assim, determinadas convicções altamente improváveis
em certos pensadores, devem ser consideradas com seriedade em seu texto. Aristóteles,
definitivamente, não é um pensador previsível. Por isso, mesmo após a constatação de
uma progressiva negação do imaterialismo da filosofia primeira de Platão, não devemos
nos precipitar afirmando que tal progressão tenha atingido o estágio da oposição perfeita
em que consiste a metafísica materialista. É próprio de Aristóteles procurar suplantar o
adversário mantendo, contudo, o que há de mais elevado e verdadeiro em sua doutrina.
Mas qual o aspecto positivo do intento de Jaeger que procuramos aplicar neste
trabalho? Sem dúvida, o caráter estratificado que procurou perceber em toda a obra de
Aristóteles. Em seu caso, tal estratificação foi de ordem principalmente histórica. Em
nosso estudo, pretendemos focar a de ordem doutrinal, que muitas vezes dispensa a
necessidade da primeira, pois muitas teses que pareciam contraditórias passam a ser
13
vistas como níveis diversos de uma mesma estrutura conceitual ascendente. Não devemos
nos esquecer da lição transmitida pela doutrina da plurivocidade do ente2 (to\ oÄn), no livro
G da Metafísica. Ao estabelecer um sentido central do ente ao lado de sentidos periféricos,
Aristóteles já deixa claro sua concepção hierárquica do ente, que será muito útil em todas
as suas incursões teórico-metafísicas. A natureza de tal hierarquia, bem como o sentido
em que ela se efetiva – é o que veremos preliminarmente no decorrer desta introdução.
O livro L da Metafísica de Aristóteles é um locus classicus para a discussão de
vários problemas referidos à filosofia teórica do Estagirita. Não apenas questões ligadas à
chamada filosofia aristotélica, mas também concernentes à ontologia e cosmologia, bem
como à física e à linguagem se fazem presentes no livro L. Se, no entanto, por um lado
parece claro que tais problemas estão sendo tematizados nas várias passagens do livro,
por outro lado a visão dos intérpretes está longe de ser unânime sobre como devem ser
entendidas as derradeiras posições sustentadas pelo Filósofo diante de tais dificuldades.
Isso levou – sobretudo pelo fato de existirem aparentes incoerências no próprio texto
aristotélico – a que W. Jaeger3 afirmasse que as contradições encontradas (principalmente
entre o capítulo oito e os demais e no próprio capítulo oito consigo mesmo) evidenciam
que parte da obra foi escrita em fase posterior, quando o Filósofo já havia revisto suas
convicções sobre a unidade do primeiro motor.
Tanto as dificuldades presentes no próprio texto de Aristóteles quanto à falta de
consenso dos intérpretes sobre como entender o livro L ou partes desse livro levaram-me
primeiramente a buscar, senão responder, pelo menos sistematizar os problemas acerca
deste livro. É desse modo que a presente tese consiste, em um primeiro estágio, em uma
2 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
14
investigação passo a passo desta obra. Meu objetivo é, por um lado, apresentar a estrutura
e o conteúdo dos dez capítulos que compõem esse texto; por outro, pretendo lançar mão
de alguns dos influentes comentaristas que tentaram elucidar determinados pontos pouco
claros do livro em questão. Esta primeira fase tem como intuito preparar uma discussão
mais profunda, acerca da própria função da idéia do motor imóvel em todo a metafísica
aristotélica, mormente quanto à sua doutrina da unidade do ente em geral. Decidimos que
o livro L seria o ponto central desta investigação - em detrimento de outras obras em que
a natureza de tal essência4 (ou)si¿a) também é tratada - por um fator que nos pareceu mais
do que suficiente: neste livro, o motor imóvel não é apenas mais uma questão entre outras
ou conceito que, embora de grave importância, divida espaço com outros tópicos
igualmente fundamentais. Ao contrário, toda estrutura do livro - como pretendemos
sustentar ao longo da análise - foi tecida em função de um único escopo: demonstrar a
existência, conhecer a natureza e determinar o número de essências imóveis motrizes do
universo.
A tese está organizada em três partes principais.
A primeira consiste em uma exposição crítica do livro L. Em um primeiro
momento, tocaremos na corrente distinção do livro em dois grandes blocos
compreendendo respectivamente os cinco primeiros capítulos. Segue então uma análise
detalhada de cada um dos capítulos, com o propósito de familiarizar o leitor com a
estrutura argumentativa deste livro. Em um terceiro momento, apresentaremos parte dos
problemas hermenêuticos que permeiam aquelas argumentações, desde a discussão
acerca do sentido genuíno de cada argumento, até o problema da ordem de maturidade
3 Jaeger, op. cit, cap. xiv.
15
destes escritos na carreira filosófica de Aristóteles. Consistirá em uma análise crítica das
várias leituras que este livro sofreu por alguns dos principais estudiosos do Corpus
Aristotelicum, bem como em sua tentativa de mostrar que a doutrina do primeiro motor
realiza a ciência buscada por Aristóteles na Metafísica. Não surpreende o fato de, ainda
hoje, existirem tantas controvérsias quanto ao real significado do livro L, principalmente
aquelas em que a discussão filosófica se confunde com a astronômica. Algumas das
questões tocadas aqui ganharão nova luz e um correto equacionamento a partir de uma
tomada de posição acerca da doutrina metafísica aristotélica como um todo. É o que
pretendemos na segunda parte deste trabalho.
Seria, pois, insuficiente uma mera abordagem de todos estes problemas, ausente,
contudo, de um posicionamento diante da plausibilidade de certas opiniões sustentadas
pelos estudiosos, mormente aquelas cuja validade nos pareceu crucial para localizar
nossas próprias posições. Isto será feito tendo em vista uma consideração que nos parece
indispensável para tanto, a saber, que a tese do primeiro motor é a consumação de teses
derradeiras da ontologia aristotélica, algumas das quais decisivas também em outras
obras do Filósofo, como a Física. Eis a segunda parte de nossa investigação, em que
procuramos desvelar o lugar da doutrina do motor imóvel como termo último da doutrina
de uma unidade gradual do ente.
Então veremos, primeiramente, que a noção de unidade em Aristóteles é
separativa, isto é, o caráter do separado (xwristo/n) é fundamental em sua determinação.
Além disso, a separação da unidade de cada ente em meio aos demais entes o conduz à
afirmação do individual como expressão mais plena do separado e, portanto, da unidade.
4 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
16
Aristóteles repudia a idéia de uma unidade universal no sentido de uma mistura de
todas as coisas em um todo homogêneo e indiferenciado, ainda que tal coisa remontasse a
um passado imemorial. Isto fica explícito em sua retificação de doutrinas ancestrais
acerca da unidade primordial do cosmos:
“Portanto, não só podemos dizer, em certo sentido, que tudo provém do
não-ente mas também que tudo provém do ente: evidentemente, do ente potencial
e do não-ente efetivo. E justamente isto significa o um de Anaxágoras; com efeito,
em vez de dizer 'todas as coisas juntas' - e em lugar da 'mistura' de Empédocles e
de Anaximandro e, também, do que diz Demócrito - seria melhor dizer: 'todas as
coisas estavam juntas em potência5 (du/namij), mas não efetivamente. [...] Não é
suficiente, portanto, dizer 'todas as coisas estavam juntas' enquanto as coisas
diferem pela matéria. De fato, por que razão existem infinitas coisas e não, ao
contrário, uma só?” ( Met.1069b.23)
wÐste ou) mo/non kata\ sumbebhko\j e)nde/xetai gi¿gnesqai e)k mh\ oÃntoj, a)lla\ kaiì e)c oÃntoj gi¿gnetai pa/nta, duna/mei me/ntoi oÃntoj, e)k mh\ oÃntoj de\ e)nergei¿#. kaiì tou=t' eÃsti to\ ¹Anacago/rou eÀn: be/ltion ga\r hÄ "o(mou= pa/nta" kaiì ¹Empedokle/ouj to\ miÍgma kaiì ¹Anacima/ndrou, kaiì w¨j Dhmo/krito/j fhsin "hÅn o(mou= pa/nta duna/mei, e)nergei¿# d' ouÃ": [...]ou)d' i¸kano\n oÀti o(mou= pa/nta xrh/mata: diafe/rei ga\r tv= uÀlv, e)peiì dia\ ti¿ aÃpeira e)ge/neto a)ll' ou)x eÀn;
A cosmologia metafísica de Aristóteles se estrutura com base na referida noção de
unidade aliada a três princípios ontológicos fundamentais:
1- Princípio da graduação universal:
O ente admite graus. A essência é ente em maior grau que o concomitante 6
(sumbebhko/j). A essência de cada um (eÀkaston) dos espécimes é ente em maior grau
que a essência da espécie (eiådojŸ. E como o um e o ente são conversíveis, a unidade da
5 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 6 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
17
essência é superior a unidade do concomitante, assim como a unidade da essência
individual o é relativamente à unidade da essência específica, e esta o é relativamente à
unidade genérica. Na verdade, cada estágio henológico 7 pressupõe os estágios
imediatamente inferiores. Eis o princípio hierarquizante do ente:
“Os modos posteriores de unidade implicam sempre os anteriores: por
exemplo, as coisas que são unas pelo número devem sê-lo também pela espécie,
enquanto que nem todas as coisas que são unas pela espécie o são também pelo
número; todas as coisas que são unas pela espécie o são também pelo gênero,
enquanto que nem todas as coisas que são unas pelo gênero o são também pela
espécie, mas o são por analogia; enfim, nem todas as coisas que são unas por
analogia o são também pelo gênero.” (Met. 1016b36)
a)eiì de\ ta\ uÀstera toiÍj eÃmprosqen a)kolouqeiÍ, oiâon oÀsa a)riqm%½ kaiì eiãdei eÀn, oÀsa d' eiãdei ou) pa/nta a)riqm%½: a)lla\ ge/nei pa/nta eÁn oÀsaper kaiì eiãdei, oÀsa de\ ge/nei ou) pa/nta eiãdei a)ll' a)nalogi¿#: oÀsa de\ a)nologi¿# ou) pa/nta ge/nei.
O último modo de unidade mencionado acima, a unidade de analogia, será
apreciado no capítulo em que tratamos da analogia do ente em Aristóteles. Pretendo
mostrar ao longo dos capítulos a seguir que a graduação da unidade do ente prossegue no
interior da própria esfera individual da essência, pois há, entre as espécies de essência,
aquelas de maior ou menor unidade, na exata proporção em que fruem de maior ou menor
grau de separação, porquanto a unidade aristotélica - como se disse e ainda o veremos
mais profundamente - é separativa.
2- Princípio da plenitude:
7 Isto é, cada grau de unidade do ente. Na terceira parte da tese o conceito de henologia, será apreciado mais detidamente, com ênfase na henologia parmenídica e platônica para as quais a aristotélica constitui uma das integrações ontológicas possíveis.
18
Com esta expressão, adotamos aqui a mesma denominação utilizada por A.O.
Lovejoy8. Além de sintetizar o escopo da tipologia essencialista de Aristóteles, que vai
do menos perfeito ao mais perfeito, o termo plenitude 9 (e)ntele/xeia) traduz muito
satisfatoriamente o vocábulo e)ntele/xeia, razão pela qual será adotada por nós em cada
uma de suas ocorrências neste estudo.
Poderíamos resumir este princípio na seguinte fórmula: Sempre que possível,
haverá o pleno e o melhor (to\ be/ltion). Na verdade, o próprio enunciado não difere
muito daquele em duas passagens da Física:
“...pois em todas as coisas naturais e limitado e o melhor deve prevalecer,
quando possível, sobre seus opostos.” (259a11)
e)n ga\r toiÍj fu/sei deiÍ to\ peperasme/non kaiì to\ be/ltion, aÄn e)nde/xhtai, u(pa/rxein ma=llon. “E sempre supomos que o melhor, se possível, existe na natureza.” (260b24)
to\ de\ be/ltion a)eiì u(polamba/nomen e)n tv= fu/sei u(pa/rxein, aÄn vÅ dunato/n.
3- Princípio do indivíduo absoluto:
Os dois princípios acima conduzem ao princípio do indivíduo absoluto, isto é, a
essência que atingiu a unidade separativa plena. É natural que seja assim: se a essência
genuinamente separada só pode ser o indivíduo, quanto mais separado (xwristo/n) mais
individual, assim como quanto mais individual mais separado. Os indivíduos, enquanto
envolvem sempre a separatividade em seu ser, gozam de certa autonomia relativamente
ao meio ôntico circundante. Tal autonomia, no entanto, é passível de vários graus de
8 Cit. por Simon Blackburn,1997, pág. 313.
19
efetividade10 (e)ne/rgeia) (veremos isso no lugar reservado à tipologia de essências), que
são, imediatamente, graus de individualidade. Sendo assim, de acordo com o princípio da
plenitude enunciado acima que fornece: "Sempre que possível haverá o pleno e o melhor",
temos que: Há um ente cuja unidade separativa é plena, quer dizer, há um ente
individualizado em máximo grau, plenamente separado do meio circundante. Eis o motor
imóvel, a exata realização de tal exigência ontológica.
Como estratégia hermenêutica, seguimos o que podemos denominar método
doutrinário: seguir, junto com o Filósofo, as grandes linhas argumentativas e seus
principais conceitos, conduzindo-os às suas conseqüências últimas e expressando-as com
máxima nitidez possível, mesmo quando o próprio Filósofo parece não ter dispensado a
mesma distinção analítica. Com isso, a meta é fazer se destacar do fundo textual,
naturalmente, determinadas respostas a lacunas até então inacessíveis. Além disso,
recorrendo às principais exigências doutrinais, tomadas simultaneamente e em sua
máxima determinação, certas conclusões que, sob outra perspectiva, se mostram
contingentes, são aqui conseqüentes. Se procurarmos cumprir os princípios norteadores
da metafísica de Aristóteles do modo mais completo possível, certas hipóteses
hermenêuticas de sua obra se tornarão clarificadas por um grau de inteligibilidade e
concretude até então empalidecidas para nós.
Pela expressão ‘doutrinal’, entendemos também um distanciamento crítico
relativamente a determinadas premissas e suposições epocais de ordem filosófico-
científica. Certos modelos epistêmicos seguidos e até desenvolvidos por Aristóteles,
como a geração espontânea e a estrutura esfero-concêntrica de todo o universo, podem
9 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 10 Verbete incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
20
parecer, para o leitor contemporâneo, não somente obsoletos, mas também extremamente
extravagantes. Contudo, um trabalho hermenêutico radical exige uma postura abstrativa
relativamente ao que já sabemos ser falso ou obsoleto, para então apreciar, com uma
ingenuidade salutar, o próprio valor heurístico de hipóteses que, durante um longo
período, pareciam razoáveis até para os mais capazes da época. Somente então
entenderemos os princípios metafísicos reguladores de todo um mundo científico então
vigente, princípios estes que não desaparecem com a extinção das hipóteses científicas
dos quais eram também o corolário racional supremo.
Adotei as seguintes traduções:
Metafísica : tradução, introdução e comentário de Giovanni Reale.
Física: tradução de Guillermo R. de Echandía.
De Anima – apresentação, tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis.
Da Geração e da Corrupção - Trad. Renata Maria Parreira Cordeiro
Organon: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos
Posteriores, Tópicos, Refutações Sofísticas – Tradução, textos adicionais e notas
de Edson Bini.
As traduções acima foram modificadas de acordo com a ocorrência de um termo
filosófico importante para o qual a opção do tradutor não se adequava à nossa. A relação
de tais termos e a justificativa para nossa escolha se encontram em apêndice intitulado
‘vocabulário de tradução’.
21
PRIMEIRA PARTE: EXPOSIÇÃO CRÍTICA DO LIVRO LLLL
22
I – OS DOIS BLOCOS EM QUE SE SUBDIVIDE O LIVRO LLLL
Serão apresentadas as razões em virtude das quais o livro L é dividido em duas
partes. Em linhas gerais, tal distinção consiste no que se segue.
Os capítulos 1-5 versam principalmente sobre a natureza da essência sensível,
ainda que não devamos entender por isso que as coisas materiais são o único objeto de
estudo aqui. O Filósofo efetua, na verdade, uma tipologia das essências existentes no
universo:
“Existem três essências. Uma é a essência sensível, que se distingue em a)
eterna e b) corruptível (e esta é a essência que todos admitem: por exemplo, as
plantas e os animais; desta é necessário compreender quais são os elementos
constitutivos, quer eles se reduzam a um só, quer sejam muitos). c) A outra
essência é a imóvel; e alguns filósofos afirmam que ela é separada: alguns a
separam ulteriormente em dois tipos, outros reduzem as Formas e os Entes
matemáticos a uma única natureza, outros ainda só admitem os Entes
matemáticos.
As duas primeiras espécies de essências constituem o objeto da física,
porque são sujeitas a movimento11(ki¿nhsij); a terceira, ao invés, é objeto de
outra ciência, dado que não existe nenhum princípio comum a ela e às outras
duas.”(1069a30)
ou)si¿ai de\ treiÍj, mi¿a me\n ai¹sqhth/ hÂj h( me\n a)i¿+dioj h( de\ fqarth/, hÁn pa/ntej o(mologou=sin, oiâon ta\ futa\ kaiì ta\ z%½a [h( d' a)i¿+dioj]hÂj a)na/gkh ta\ stoixeiÍa labeiÍn, eiãte eÁn eiãte polla/: aÃllh de\ a)ki¿nhtoj, kaiì tau/thn fasi¿ tinej eiånai xwristh/n, oi¸ me\n ei¹j du/o diairou=ntej, oi¸ de\ ei¹j mi¿an fu/sin tiqe/ntej ta\ eiãdh kaiì ta\ maqhmatika/, oi¸ de\ ta\ maqhmatika\ mo/non tou/twn. e)keiÍnai me\n dh\
11 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
23
fusikh=j (meta\ kinh/sewj ga/rŸ, auÀth de\ e(te/raj, ei¹ mhdemi¿a au)toiÍj a)rxh\ koinh/.
Note-se a associação das duas primeiras essências tratadas, as sensíveis, com o
movimento. Toda e qualquer espécie de essência que possua matéria em sua estrutura
está sujeita a alguma espécie de transição. Mais adiante (1069b8), Aristóteles define
quais os tipos de transição existentes no universo e a espécie de essência sensível
correspondente. Correlativamente, também são definidos os tipos de matéria que entram
na estrutura das respectivas essências. No trecho acima, o Filósofo já introduz a discussão
sobre a essência imóvel. Esta justifica sua imobilidade pelo próprio fato de ser imaterial.
Na segunda metade do livro L, porém, percebemos mais claramente a verdadeira
orientação de sua argumentação, em que o papel da essência imóvel na mobilidade
universal assume elevada importância na conclusão de sua imaterialidade.
Na verdade, o que se pretende nos capítulos 1-5 é a delimitação da estrutura da
essência no que diz respeito a uma propriedade que praticamente todas possuem: a
transitoriedade. Busca-se o que realmente sofre transição quando na ocasião de destruição,
alteração, aumento ou meramente locomoção de uma essência. Aristóteles discorda dos
que acreditam que os que realmente sofrem transição são os contrários, ou seja, os
próprios estados sucessivos em que se encontra uma essência. Desta forma, elemento
indispensável para a consecução de uma transição em uma essência é a matéria,
constituinte, juntamente com a forma, de sua estrutura mesma:
“A essência sensível é transitória. Ora, se a transição se dá entre opostos
e intermediários, e não entre quaisquer opostos (pois a voz é não branca, mas
nem por isso transita para branca), mas apenas entre contrários, deve haver
24
algum substrato que transita de um estado para outro contrário, já que os
contrários em si mesmos não transitam. Acresce que algo persiste, mas esse algo
não é o contrário; existe, pois, uma terceira coisa além dos contrários, a saber: a
matéria. Ora, as transições são de quatro espécies: a transição segundo a
essência, qualidade, quantidade ou lugar. A transição segundo a essência é a
simples geração e destruição; no que se refere à quantidade, o aumento e o
decréscimo; quanto à qualidade, a alteração; e quanto ao lugar, o movimento.
Portanto, a transição se dá de um estado para o estado contrário sob estes vários
aspectos. Logo, a matéria que transita deve ser, potencialmente, ambos os
estados.” (1069b2)
¸H d' ai¹sqhth\ ou)si¿a metablhth/. ei¹ d' h( metabolh\ e)k tw½n a)ntikeime/nwn hÄ tw½n metacu/, a)ntikeime/nwn de\ mh\ pa/ntwn (ou) leuko\n ga\r h( fwnh/Ÿ a)ll' e)k tou= e)nanti¿ou, a)na/gkh u(peiÍnai¿ ti to\ metaba/llon ei¹j th\n e)nanti¿wsin: ou) ga\r ta\ e)nanti¿a metaba/llei. eÃti to\ me\n u(pome/nei, to\ d' e)nanti¿on ou)x u(pome/nei: eÃstin aÃra ti tri¿ton para\ ta\ e)nan-ti¿a, h( uÀlh. ei¹ dh\ ai¸ metabolaiì te/ttarej, hÄ kata\ to\ ti¿ hÄ kata\ to\ poiÍon hÄ po/son hÄ pou=, kaiì ge/nesij me\n h( a(plh= kaiì fqora\ h( kata\ <to\> to/de, auÃchsij de\ kaiì fqi¿sij h( kata\ to\ poso/n, a)lloi¿wsij de\ h( kata\ to\ pa/qoj, fora\ de\ h kata\ to/pon, ei¹j e)nantiw¯seij aÄn eiåen ta\j kaq' eÀkaston ai¸ metabolai¿. a)na/gkh dh\ metaba/llein th\n uÀlhn duname/nhn aÃmfw:)
Esta descoberta será decisiva na segunda metade do livro L (6-10), quando a
investigação sobre a essência imaterial obtém proeminência. O fato de que matéria e
transição implicam-se mutuamente é fundamental para as conclusões formuladas no sexto
capítulo:
“Se há, porém, algo que seja capaz mover e produzir, mas não efetive
nada, não haverá movimento, pois o potencial pode não efetivar. [..] Deve, por
conseguinte, haver um tal princípio, cuja própria essência seja a efetividade. Por
outra parte, estas essências devem ser imateriais, pois se há algo de eterno hão
de ser elas. Sua essência é, por conseguinte, a própria efetividade.” (1071b20)
25
¹Alla\ mh\n ei¹ eÃsti kinhtiko\n hÄ poihtiko/n, mh\ e)nergou=n de/ ti, ou)k eÃstai ki¿nhsij: e)nde/xetai ga\r to\ du/namin eÃxon mh\ e)nergeiÍn. [...] deiÍ aÃra eiånai a)rxh\n toiau/thn hÂj h( ou)si¿a e)ne/rgeia. eÃti toi¿nun tau/taj deiÍ ta\j ou)si¿aj eiånai aÃneu uÀlhj: a)i+di¿ouj ga\r deiÍ, eiãper ge kaiì aÃllo ti a)i¿+dion. e)ne/rgeia aÃra.
Quanto ao capítulo três, mostraremos que se trata de um pequeno parêntese, em
que Aristóteles procura prevenir uma interpretação errônea acerca das causas formais de
todos os seres, que, apesar de manterem certas relações com os seres causados, relações
estas análogas àquelas próprias das essências sensíveis com as Idéias - como a
homonímia - possuem natureza radicalmente diferente destas últimas, cuja existência,
além de não servir de fundamento para qualquer teoria do Estagirita, é posta em dúvida
em quase toda a sua obra, principalmente a que agora investigamos.
Os capítulos quatro e cinco, conforme veremos, podem ser considerados um todo
contínuo. A importância das questões então abordadas somente se tornará nítida no
momento final da tese, quando trataremos da maturação filosófica dos principais
conceitos e teorias aristotélicas, maturação essa consumada pela teoria do primeiro motor.
O capítulo seis é, em todos os aspectos, uma transição entre o estudo dos seres
sensíveis e a demonstração da existência da realidade imóvel que ocupa toda a segunda
metade do livro.
A afirmação da existência de uma essência imóvel responsável, no entanto, pelo
movimento universal, forçará Aristóteles a postular uma espécie de efetividade de uma
essência sobre outras que não implique qualquer forma de contato, já que este faria supor
uma ação recíproca entre as essências envolvidas. O Filósofo formula então sua célebre
concepção do movimento causado pelo desejável. É desejando a essência imóvel, pelo
infinito poder de sua autonomia perfeita, que todas as coisas mudam, realizando
26
efetivamente o que possuíam apenas em potência. A efetividade do primeiro motor,
essência imóvel, é, simultaneamente, prazer pleno:
“Desse princípio, portanto, dependem o céu e a natureza. E seu modo de
viver é o mais excelente: é o modo de viver que só nos é concedido por breve
tempo. E naquele estado ele está sempre. Isso é impossível para nós, mas para ele
não é impossível, pois a efetividade de seu viver é prazer.” (1072b13)
e)k toiau/thj aÃra a)rxh=j hÃrthtai o( ou)rano\j kaiì h( fu/sij. diagwgh\ d' e)stiìn oiàa h( a)ri¿sth mikro\n xro/non h(miÍn ouÀtw ga\r a)eiì e)keiÍno: h(miÍn me\n ga\r a)du/naton, e)peiì kaiì h(donh\ h( e)ne/rgeia tou/tou.
O desejo pelo primeiro motor não é restrito aos seres humanos. A influência da
essência imóvel estende-se a todos os seres. Certos comentaristas discutem até que ponto
devemos tomar este desejo de modo semelhante ao usual. Trata-se de saber se isto é ou
não apenas uma figura de linguagem, como quando dizemos que o freio de um carro
ordena a roda a parar. A efetividade delimitada por Aristóteles como a realmente própria
do primeiro motor - a intelecção da intelecção- também será alvo de novas interpretações
por parte de David Ross12. Estas questões que, por seu caráter paradoxal, tanto exigiram
do espírito rigoroso de Aristóteles, serão revistas mais detalhadamente em um terceiro
momento.
A questão do desejo pelo motor imóvel pode ser expressa nos seguintes termos.
Trata-se de saber em que sentido o motor imóvel causa o movimento dos seres, se como
causa eficiente ou como causa completiva. Em momento oportuno deste estudo veremos
que Ross fornece a mais satisfatória das soluções. O motor imóvel é causa eficiente,
posto que esta é aquilo de onde provém o início da transição e do repouso, mas apenas
porque é causa completiva. Esta é, portanto, a única espécie de causa eficiente que move
27
sem manter contato com o movido. A essência imóvel move unicamente em função do
que é, quer dizer, em virtude de sua própria natureza, que Aristóteles demonstra ser pura
efetividade, completude (te/loj) nunca atingida pelos outros seres - devido à sua
materialidade imanente - mas sempre almejada pelos mesmos. O movimento produzido
por tal essência é, pois, aquele resultado do ente enquanto ente, da efetividade pura,
apenas enquanto efetividade, prescindindo de qualquer espécie de contato para ter lugar.
Os outros entes movem enquanto móveis, mas o ente imóvel move apenas enquanto ente.
Guardemos este enunciado. Ele será decisivo na terceira parte da investigação, para uma
compreensão do significado do conceito de motor imóvel no âmbito da estreita conexão
entre ontologia e teologia.
A segunda metade (6-10) do livro L apresenta certas dificuldades. A principal diz
respeito ao capítulo oitavo, cuja boa parte da redação Jaeger13 considerava posterior aos
demais, relativo a um período no qual o Filósofo percebeu a insuficiência da teoria do
motor imóvel único, na medida em que teria de explicar os demais movimentos circulares
efetuados pelos astros. Jaeger extraiu esta conclusão especialmente do passo 1074a35,
que parece contradizer a argumentação desenvolvida ao longo das linhas anteriores, sobre
os quarenta e sete motores imóveis. Admitimos que este trecho do livro é problemático,
quanto mais em vista da perspicaz observação do estudioso, a respeito das linhas
seguintes “estes são deuses”, cujo sujeito gramatical correspondente só pode ser
encontrado retrocedendo ao passo 1074a31 (“algum dos corpos divinos que se movem no
céu”), o que leva a considerar o passo 1074a35 deslocado relativamente ao restante do
texto. Mostraremos, porém, que não procede sua acusação de que o Estagirita se
12 Ross, 1981, p.188.
28
contradiz. Ainda que seja uma adição posterior, este enxerto está em perfeita harmonia
com o restante do capítulo, pois não contradiz - inversamente ao que pensava Jaeger - a
tese da multiplicidade dos motores imóveis. Antes, procura uma síntese entre esta e
aquela doutrina do motor imóvel único, cuja “centralidade motriz” é agora deslocada para
o motor imóvel da esfera das Estrelas Fixas. A referência ao “único chefe” na citação
final de Homero, deve ser entendida, de acordo com a referida passagem, como uma
alusão à anterioridade da essência que move a mais externa das esferas.
Jaeger também sustentava que não há qualquer referência a uma pluralidade de
essências imóveis nos capítulos anteriores. Veremos, no entanto, que uma leitura mais
cuidadosa revela a inverossimilhança desta afirmação. Já no sexto capítulo, o Filósofo
admite que outros motores imateriais podem existir. Isto se tornará mais nítido em outro
momento, quando estes capítulos serão especialmente apreciados.
13 Jaeger, 1960, p.397.
29
II – ANÁLISE DOS CAPÍTULOS QUE COMPÕEM O LIVRO LLLL
Primado Heurístico da Essência
Primeiras palavras do Livro L da Metafísica:
“A essência é o objeto de nossa pesquisa, pois os princípios e causas que
buscamos são os das essências” (1069a17)
Periì th=j ou)si¿aj h( qewri¿a: tw½n ga\r ou)siw½n ai¸ a)rxaiì kaiì ta\ aiãtia zhtou=ntai.
Eis aí a determinação do objeto da pesquisa empreendida no livro L. O estudo da
essência, nas palavras de Aristóteles, se estabelece em perfeita continuidade com o estudo
dos “princípios (a)rxaiì) e causas (aiãtia)”; decorre necessariamente da investigação
destes últimos, pois não há princípios e causas que não sejam os das essências. A razão
desta conexão necessária é fornecida logo a seguir:
''Se consideramos o todo como algo inteiro, a essência é sua parte
primeira; e se o encaramos como uma simples sucessão, também deste ponto de
vista a essência vem em primeiro lugar, seguida pela quantidade e pela
qualidade.''(1069a18)
kaiì ga\r ei¹ w¨j oÀlon ti to\ pa=n, h( ou)si¿a prw½ton me/roj: kaiì ei¹ t%½ e)fech=j, kaÄn ouÀtwj prw½ton h( ou)si¿a, eiåta to\ poio/n, eiåta to\ poso/n.
O entendimento deste trecho se tornaria obscuro se não elucidássemos, ao menos
provisoriamente, o significado do que o Filósofo denomina “considerar como algo
30
inteiro” e “considerar como simples sucessão”. A primeira forma de considerar o
universo aparece, nos últimos capítulos da obra investigada, como a derradeira convicção
do pensador; não sendo mais do que a contemplação da unidade orgânica a que estão
submetidas todas as coisas do universo. Tal unidade é defendida energicamente no passo
1075a15. A partir desta perspectiva da unidade universal, Aristóteles demonstra (sendo
este o objetivo último do livro L), a necessidade de se admitir a primazia da essência
como parte primeira do cosmo, pois esta unidade orgânica somente é compreensível com
a contemplação de uma essência central a qual todas as espécies de movimentos estão
relacionadas. As dificuldades encontradas pelo Filósofo em seu projeto de demonstração
da existência dessa essência, assim como o método utilizado em sua superação, serão
investigadas mais adiante. A expressão “considerar como algo inteiro” significa, pois,
“considerar como algo que possui ordem e harmonia”. Aristóteles escreve que, se o
universo possui harmonia, devemos considerar a essência como sua parte primeira e
central. Com efeito, a parte do universo responsável pela harmonia não é outra coisa
senão uma essência, quer dizer, a essência imóvel, que move todas as outras coisas. Por
mover todas as outras essências, será anterior às mesmas, pois o motor é sempre anterior
ao movido. Ora, o que é anterior a uma essência não poderá ser uma das outras categorias,
como a qualidade ou quantidade, pois a essência é anterior a todas elas, sendo o suporte a
partir do qual são possíveis. Logo, o que move as essências é, seguramente, uma essência.
Este é o argumento apresentado no passo 1073a35 do capítulo oito, já presente
implicitamente aqui. Quanto à segunda forma de contemplar o universo, aquela
equivalente a considerá-lo “como uma simples sucessão”, é justamente a negação da
anterior, quer dizer, trata-se do ponto de vista segundo o qual todas as coisas que existem
31
não mantêm quaisquer tipos de relações umas com as outras. No passo 1076a, Aristóteles
escreve sobre esta convicção:
“...afirmam que há uma série de essências sem fim, e que para cada
essência há diversos princípios, reduzem a realidade do universo a uma série de
episódios (de fato, a existência ou não de uma essência não tem a menor
importância para a outra.)”
kaiì ouÀtwj a)eiì aÃllhn e)xome/nhn ou)si¿an kaiì a)rxa\j e(ka/sthj aÃllaj, e)peisodiw¯dh th\n tou= panto\j ou)si¿an poiou=sin ou)de\n ga\r h( e(te/ra tv= e(te/r# sumba/lletai ouÅsa hÄ mh\ ouÅsa. No entanto, também a partir desse tipo de concepção impõe-se a convicção da
primazia da essência, como a primeira das categorias, aquela que não pode ser predicada
de nada, mas da qual todas as outras são predicadas. Além disso, as demais categorias
não são no sentido estrito do verbo ser, pois são apenas modificações observadas nas
coisas que estritamente são, isto é, as essências. Estas são capazes de existir
independentemente desta ou daquela categoria, mas a recíproca de forma alguma é
verdadeira. Este estudo é efetuado, sobretudo, no livro Categorias, mas possui relevância
aqui, pois justifica a anterioridade da essência em relação a tudo o mais. Todas as outras
categorias são predicadas da categoria da essência, mas esta não é predicada de nenhuma
outra. Por exemplo, dizemos que um homem é branco, mas seria um absurdo dizer que o
branco é homem; esta impossibilidade, já reconhecida pelo senso comum, já indica que
as outras categorias, ou seja, as outras “coisas” que são, devem ser consideradas, mais
verdadeiramente, modos de ser da categoria das coisas que primeiramente são, a saber, as
essências. Quando se afirma que a cor branca é, isto significa apenas que a cor branca é
em alguma essência que a possui, e é apenas porque esta essência é, e somente enquanto
é. Pois se tal essência for destruída, assim será também com a cor branca. É possível
32
entender, da mesma forma, em que sentido a privação de uma qualidade é, “já que
dizemos também que ‘são’, por exemplo, que algo é não-branco” (1069a22). Se o ser de
uma qualidade deve aderir ao ser da essência, o mesmo se dirá de sua privação, da qual,
somente assim, se poderá dizer que é. Por isso podemos afirmar que “os princípios e
causas que buscamos são os das essências” (tw½n ga\r ou)siw½n ai¸ a)rxaiì kaiì ta\
aiãtia zhtou=ntai) (1069a17). No passo 1071a, a mesma primazia é expressa de
maneira um pouco diferente:
“Há coisas separadas, e outras não; e as primeiras é que são essências. E são
também as causas de todas as coisas, pois sem as essências não há passibilidades nem
movimentos.”
¹Epeiì d' e)stiì ta\ me\n xwrista\ ta\ d' ou) xwrista/, ou)si¿ai e)keiÍna. kaiì dia\ tou=to pa/ntwn aiãtia tau)ta/, oÀti tw½n ou)siw½n aÃneu ou)k eÃsti ta\ pa/qh kaiì ai¸ kinh/seij.
Este caráter separado (xwristo/n) da essência será retomado na Unidade III.
Então o reconheceremos como um aspecto fundamental da unidade do ente em
Aristóteles.
Aristóteles busca reforço também nos antigos filósofos, que de certo modo se
aperceberam do primado da essência, em virtude de os princípios, causas e elementos que
tanto investigavam concorrerem justamente para a sua constituição: “E os antigos
filósofos confirmaram efetivamente isso: pois da essência buscavam os princípios,
elementos e causas.” (marturou=si de\ kaiì oi¸ a)rxaiÍoi eÃrg%: th=j ga\r ou)si¿aj
e)zh/toun a)rxa\j kaiì stoixeiÍa kaiì aiãtia.) (1069a25).
Mais adiante ficará mais lúcido o entendimento desta passagem. Por enquanto,
contentemo-nos em seguir o Filósofo em sua introdução ao duodécimo livro da
33
Metafísica. Ao final deste parágrafo Aristóteles faz também um breve comentário a
respeito do que os pensadores antigos tinham em mente na formulação de seu conceito de
essência. Associavam-na com “certas coisas particulares como o fogo e terra, e não o que
é comum a ambos, isto é, o corpo”. Nisto suas opiniões diferem das dos investigadores
contemporâneos ao Estagirita, que identificavam os gêneros das coisas particulares com
os “princípios e essências” das coisas, e por isso adotavam os universais como as
verdadeiras essências, visto que os gêneros são universais.
As linhas seguintes são dedicadas à enumeração e análise dos tipos de essências
que fazem parte do universo:
“Existem três essências. Uma é a essência sensível, que se distingue em a)
eterna e b) corruptível (e esta é a essência que todos admitem: por exemplo, as
plantas e os animais; desta é necessário compreender quais são os elementos
constitutivos, quer eles se reduzam a um só, quer sejam muitos). c) A outra
essência é a imóvel; e alguns filósofos afirmam que ela é separada: alguns a
separam ulteriormente em dois tipos, outros reduzem as Formas e os Entes
matemáticos a uma única natureza, outros ainda só admitem os Entes
matemáticos.
As duas primeiras espécies de essências constituem o objeto da física,
porque são sujeitas a movimento; a terceira, ao invés, é objeto de outra ciência,
dado que não existe nenhum princípio comum a ela e às outras duas.” (1069a30)
ou)si¿ai de\ treiÍj, mi¿a me\n ai¹sqhth/ hÂj h( me\n a)i¿+dioj h( de\ fqarth/, hÁn pa/ntej o(mologou=sin, oiâon ta\ futa\ kaiì ta\ z%½a h( d' a)i¿+dioj hÂj a)na/gkh ta\ stoixeiÍa labeiÍn, eiãte eÁn eiãte polla/: aÃllh de\ a)ki¿nhtoj, kaiì tau/thn fasi¿ tinej eiånai xwristh/n, oi¸ me\n ei¹j du/o diairou=ntej, oi¸ de\ ei¹j mi¿an fu/sin tiqe/ntej ta\ eiãdh kaiì ta\ maqhmatika/, oi¸ de\ ta\ maqhmatika\ mo/non tou/twn. e)keiÍnai me\n dh\ fusikh=j meta\ kinh/sewj ga/r, auÀth de\ e(te/raj, ei¹ mhdemi¿a au)toiÍj a)rxh\ koinh/.
34
Note-se que as essências que possuem a propriedade de transitar são justamente as
sensíveis. A razão disto tornar-se-á mais clara no decorrer do segundo capítulo,
justamente quando será entendida também a existência de duas espécies de essências
sensíveis, a sublunar, perecível, e a supralunar, eterna. E podemos dizer que o livro L
retomará esta questão sempre sob diferentes óticas, em função de demonstrar a
indissociabilidade entre a matéria e o movimento e, conseqüentemente, a inevitável
conclusão na imaterialidade da essência imóvel. Quanto às opiniões existentes a respeito
de tal essência, Aristóteles refere-se à teoria platônica das idéias e à convicção de que os
números são essências independentes que constituem e governam todas as coisas,
associada aos pitagóricos, assim como à possível combinação entre as duas concepções,
quando se procura identificar as Formas com os Números, tomando-os como uma e a
mesma espécie de essência.
É necessário atentar para a distinção efetuada pelo Filósofo entre duas espécies de
ciência, correspondentes aos três tipos de essência enumerados anteriormente. As
essências sensíveis são objeto próprio da Física, visto que esta ciência investiga
justamente o movimento e as coisas que são transitórias. A terceira essência a que se
refere Aristóteles, por ser imóvel, imperecível e imaterial, deve pertencer, em virtude de
sua própria natureza, a uma ciência distinta. No livro Z da Metafísica também ocorre esta
correspondência entre a Física e as essências sensíveis. Neste caso, porém, há uma
denominação interessante para esta ciência: filosofia segunda, o que permite
interpretações em direção à proeminência de uma certa filosofia primeira, que tenha por
objeto o que, necessariamente, é imune à transição. Guardemos este fato textual.
35
Posteriormente será útil retornar a este ponto, quando a questão da posição cronológica
do livro L estiver em relevo.
Os Princípios Metabólicos O capítulo dois é dedicado ao estudo das diversas espécies de transição 14
(metabolh/) possíveis na essência sensível. A transição tem lugar entre opostos e
intermediários, mas seria um erro acreditar que se trata de todo e qualquer par de opostos;
daí o exemplo da voz: é não-branca e esta característica, a saber, ser não branca, não é
substituída pela característica oposta, ser branca. Se algo transita, forçoso é admitir que
há um substrato envolvido neste processo, pois os contrários não sofrem transição. O
terceiro elemento além do par de contrários - a matéria - exerce justamente a função de
substrato, permitindo, desta maneira, a transição de um contrário para o outro, bem como
entre os estados intermediários. Assim, compreendemos o que significa dizer que os
contrários não sofrem transição: determinado contrário existe ou não em uma essência,
não cabendo interpretar o aparecimento de seu oposto como uma transição no contrário
enquanto tal. É a matéria que, ao receber o seu oposto, transforma-se. Quando um
indivíduo, Cálias, por exemplo, passa de ignorante a sapiente, a ignorância não se
transforma em sapiência, mas apenas o indivíduo transita de Cálias ignorante a Cálias
sapiente. O ser do contrário não é afetado pela transição.
Aristóteles segue enumerando as espécies de transição. Quatro são as transições:
quanto à essência, quanto à qualidade, quanto à quantidade e quanto ao lugar. A primeira
nada mais é que a geração e destruição de essências. A transição qualitativa compreende
14 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
36
a simples alteração em um ser, sem que isto comprometa sua essência. O aumento e o
decréscimo são os resultados possíveis de uma transição segundo a categoria da
quantidade. As essências relativas aos astros comportam apenas a espécie mais elementar
de transição, aquela da translação, mera modificação de um lugar para o outro. Para cada
uma destas modificações, se mantém válida a anterior afirmação de que a transição
ocorre entre contrários e que a matéria é o suporte de tal processo. A recapitulação dos
dois sentidos em que uma coisa pode “ser” será essencial no tocante a sua proposta
interpretativa de filósofos antigos, como Anaxágoras e Anaximandro. Com efeito, se algo
pode ser efetiva ou potencialmente, é correto afirmar que todas as essências sensíveis
mudam do que é em potência para o que é efetivamente, asserção que força a convicção
de que coisa alguma sensível é efetiva, se já não tenha foi em potência, existido ao menos
seminalmente em um ser:
“Por conseguinte, não só uma coisa pode vir a ser, por concomitância, do não
ente, mas tudo vem a ser do ente - potencial, entenda-se, e do não-ente efetivo.”(1069b18)
wÐste ou) mo/non kata\ sumbebhko\j e)nde/xetai gi¿gnesqai e)k mh\ oÃntoj, a)lla\ kaiì e)c oÃntoj gi¿gnetai pa/nta, duna/mei me/ntoi oÃntoj, e)k mh\ oÃntoj de\ e)nergei¿#. No entanto, certas coisas existem apenas potencialmente, nunca, porém, em
efetividade. É o caso, por exemplo, do infinito, tratado em Física G. Da mesma forma, o
estado de indiferenciação cósmica, postulado por Anaxágoras. Somente atentando para
isto, compreende a retificação, efetuada pelo Filósofo, da sentença “todas as coisas se
achavam juntas”. O correto será “todas as coisas se achavam juntas potencialmente, mas
não efetivamente” (hÅn o(mou= pa/nta duna/mei, e)nergei¿# d' ouÃ) (1069b23), porque a
37
“mistura (to\ miÍgma) proposta por Anaxágoras e, de modo análogo, por Empédocles e
Anaximandro, não pode ser uma mistura total, ou seja, uma fusão plenamente efetiva de
todas as coisas. Ao final do capítulo veremos as razões levantadas por Aristóteles em prol
desta convicção. A observação efetuada logo a seguir, de que “esses pensadores tinham
alguma noção da matéria”, tem sido encarada com muita perplexidade por muitos
investigadores do pensamento aristotélico. Entretanto, há uma passagem do Livro I da
Metafísica bem elucidativa quanto a esta questão. Veremos a seguir como esclarecer a
observação do Filósofo com base nesta passagem.
Aristóteles, então, retifica a sentença de Anaxágoras “todas as coisas estavam
juntas” para “todas as coisas estavam juntas potencialmente, mas não efetivamente”
(1069b23). Certas coisas nunca existem em efetividade, mas apenas potencialmente. Este
é o caso não só da mistura ou fusão de todas as coisas, expresso acima, como também do
infinito, conforme afirma o Filósofo no livro G de sua Física. A razão de o Estagirita
comentar sobre “certo entendimento” que os antigos possuíam a respeito da matéria
permaneceu, de certa forma, desconhecida, conforme comentamos acima. É suficiente,
no entanto, atentarmos para o fato de que, na filosofia aristotélica, a matéria é constituinte
inseparável de tudo o que contém potência ou somente pode existir potencialmente. Ora,
a “mistura de todas as coisas” só pode existir potencialmente. Daí o fato de tal mistura se
identificar com a matéria, ainda mais tomando em consideração o caráter indeterminado
do contato entre suas partes, que não se dá em virtude de um princípio unificador (isto se
tornará mais claro no princípio do capítulo seguinte, no momento da enumeração das
coisas que identificamos com a noção de essência). Aristóteles já considera, no livro I da
Metafísica, que o princípio e a causa buscada pela maioria dos pensadores antigos é da
38
ordem da matéria. Sua discordância quanto à unilateralidade deste tipo de investigação
reside no fato de que a matéria, por si mesma, não pode ser causa de nenhuma
modificação, quer dizer, “o sujeito mesmo não produz transição em si mesmo, ou seja,
nem a madeira nem mesmo o bronze, por exemplo, são causas de suas próprias
transições” (984a22) (ou) ga\r dh\ to/ ge u(pokei¿menon au)to\ poieiÍ metaba/llein
e(auto/: le/gw d' oiâon ouÃte to\ cu/lon ouÃte o( xalko\j aiãtioj tou= metaba/llein
e(ka/teron au)tw½n).
Aristóteles expressa novamente a idéia, já sustentada no princípio do capítulo, de
que a essência sensível é sujeita à transição. Aqui, porém, o Filósofo expressa
diretamente o elemento responsável pelo caráter sensível de tais essências - a matéria.
Assim, no lugar de “a essência sensível é sujeita à transição” (1069b3), temos “todas as
coisas que mudam têm matéria, mas matéria diversa” (pa/nta d' uÀlhn eÃxei oÀsa
metaba/llei, a)ll' e(te/ran:) (1069b23), em que se deve entender a distinção entre as
matérias como mantendo correspondência biunívoca com as quatro espécies de transição,
totalizando, portanto, quatro matérias distintas. São estas que possibilitam cada uma das
modificações nos seres, contendo potencialmente os contrários, através dos quais tem
lugar a transição. Daí a constatação de que a matéria que constitui as “coisas eternas” -
que se movem no espaço e não comportam outra espécie de transição - não é capaz de
outra transição, senão a local.
No momento em que exclui a possibilidade de que a existência potencial seja
potência para toda e qualquer coisa, o Filósofo pretende retificar definitivamente a
sentença de Anaxágoras para “todas as coisas se achavam potencialmente juntas”. Pois,
se a fusão dos seres teve lugar inclusive efetivamente, não há como explicar como surgiu,
39
da unidade primordial, a diversidade das essências. E a sentença se mostra ainda mais
inverossímil tendo em vista que seu autor mesmo postulava um único princípio motor, a
Inteligência15 (nou=j). O Estagirita considera um absurdo que, de uma mesma matéria e de
um mesmo princípio de movimento, tenha-se originado tamanha diversidade de essências,
pois nem o motor nem a matéria seriam princípios de multiplicidade e individuação.
Como a Inteligência de Anaxágoras é uma, sua única saída teria sido, portanto, postular o
múltiplo se instaurando de saída no ser da matéria. A aparente homogeneidade da matéria
deve ser atribuída, em virtude deste postulado, ao estado ainda indeterminado e difuso do
ser potencial que a matéria, não raro, apresenta relativamente a um certo atributo ou
perfeição.
É preciso ter em vista que a enumeração das três causas e princípios, ao final do
capítulo, é apenas uma das formas como Aristóteles explica a estrutura da essência.
Aquela apresentada, agora de certa forma incompleta (se comparada com a doutrina das
quatro causas), é aplicada como uma conclusão de toda a crítica lançada contra
Anaxágoras. O Filósofo ratifica a necessidade de se admitir um terceiro elemento na
constituição dos seres, além da forma e de sua privação. Somente assim se explica a
diversidade de essências, fato que é evidente pela própria percepção. O terceiro elemento
é justamente a matéria. A teoria dos quatro princípios é forjada mirando uma explicação
mais satisfatória que a de seus predecessores, quanto à transição em geral. Desta forma,
estreitamente vinculadas à concepção aristotélica de transição, as quatro causas são
tratadas exaustivamente na Física, visto ser esta ciência o estudo das essências capazes de
transição. Porém, no Livro D da Metafísica, temos uma explanação ainda mais
15 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
40
satisfatória da estrutura causal das essências. Dadas as dificuldades que muitas vezes
surgem na distinção das causas e sua relevância na investigação da centralidade doutrinal
do conceito de motor imóvel, faremos agora um estudo preliminar deste tópico, cujos
elementos serão investigados ainda mais profundamente em outra unidade.
Aristóteles enumera quatro causas. Estas não são excludentes entre si. Pelo
contrário, todo fenômeno físico tem que possuir estas quatro causas em sua estrutura.
No livro D da Metafísica, o Filósofo fornece a definição de cada uma destas
causas. É considerada uma causa (aiãtioj)16, (a) "...aquilo de que, como algo constitutivo,
provém a coisa; p.e.x., o bronze é a causa da estátua e a prata, da taça e do mesmo modo
todas os gêneros em que estas se incluem” (Aiãtion le/getai eÀna me\n tro/pon e)c ouÂ
gi¿gnetai¿ ti e)nu-pa/rxontoj, oiâon o( xalko\j tou= a)ndria/ntoj kaiì o( aÃrguroj
th=j fia/lhj kaiì ta\ tou/twn ge/nh:(1013a24). Considerar a matéria como causa pode
parecer estranho para uma visão contemporânea do mundo, quando o termo causa é
tomado apenas no sentido daquilo que é capaz de causar transição ou produzir algum
efeito posterior. No entanto, como já vimos antes, a produção de algum efeito pressupõe
a existência de matéria. Somente esta está sujeita à transição em geral. Sendo assim, sem
a sua presença a produção de qualquer efeito seria impossível.
Em segundo lugar, causa significa também (b) "a forma ou modelo, isto é, o
enunciado 17 (lo/goj) do ser-prévio 18 (to\ ti¿ hÅn eiånai), e os gêneros que incluem
16 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 17 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 18 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. A opção ‘o que era o ser’, embora mais fiel à estrutura gramatical do original, é pouco inteligível na língua portuguesa. Entendemos o imperfeito da expressão como significativo de anterioridade ainda efetiva, ao contrário da proposta de Aubenque, que abordamos no apêndice.
41
este”( aÃllon de\ to\ eiådoj kaiì to\ para/deigma, tou=to d' e)stiìn o( lo/goj tou= ti¿
hÅn eiånai kaiì ta\ tou/tou ge/nh) (1013a27). Esta causa, chamada causa formal, é
aquilo que faz com que uma coisa seja considerada isto que é e não outra coisa. Por
determinar entre o que pertence ao seu conceito e o que não pertence, a causa formal é
expressa, portanto, no enunciado (lo/goj) do ser-prévio (tou= ti¿ hÅn eiånai).
Em terceiro lugar, causa significa (c) "o princípio da transição ou do repouso;
p.e.x., o conselheiro é a causa da ação e o pai causa do filho; e, de modo geral, o produtor
é causa do produzido e o modificador, causa da modificado” (eÃti oÀqen h( a)rxh\ th=j
metabolh=j h( prw¯th hÄ th=j h)remh/sewj, oiâon o( bouleu/saj aiãtioj, kaiì o(
path\r tou= te/knou kaiì oÀlwj to\ poiou=n tou= poioume/nou kaiì to\
metablhtiko\n tou= metaba/llontoj) (1013a29). A causa motriz ou eficiente, como é
chamada, é fundamental em um dos principais argumentos aristotélicos contra a doutrina
platônica das Idéias. Em A7 988b, Aristóteles afirma que as Idéias são causas apenas no
sentido apontado anteriormente (b). Ou seja, são apenas causas formais como definição
da essência de cada coisa particular. Sendo imóveis e totalmente separadas das essências
sensíveis, são incapazes de impor movimento ou constituírem-se como princípio de
mutação ou repouso destas essências. O conceito platônico de participação (metéxis), que
talvez resolvesse esse impasse, é criticado por Aristóteles por considerá-lo sem
consistência. Veremos mais claramente isso no capítulo acerca do grau separativo da
unidade do ente assumido pelo motor imóvel, em que discutimos em que sentido
Aristóteles pretende superar a doutrina do mundo supra-sensível de seu mestre.
42
Finalmente, causa também se diz (d) da “completude19 (te/loj), isto é, o “para o
qual”20 (to\ ou eÀneka); p.e.x., a saúde é a causa do passeio. Efetivamente, à pergunta
'por que é que a gente passeia?' respondemos:” para ter saúde “, e ao falar assim julgamos
ter apontado a causa” (eÃti w¨j to\ te/loj: tou=to d' e)stiì to\ ou eÀneka, oiâon tou=
peripateiÍn h( u(gi¿eia. dia\ ti¿ ga\r peripateiÍ; fame/n. iàna u(giai¿nv. kaiì
ei¹po/ntej ouÀtwj oi¹o/meqa a)podedwke/nai to\ aiãtion.) (1013a31).
Apesar do exemplo acima se relacionar meramente ao comportamento humano, o
conceito de completude e causa proposital não é aplicado apenas à esfera das ações
humanas. Aristóteles tem a convicção de que o propósito é inerente a toda e qualquer
modificação nas essências sensíveis. Tudo que possa surgir na natureza tenderá, no curso
de sua existência, a um propósito determinado que constitui sua completude (te/loj). Na
hipótese de que tal propósito não existisse, tudo que podemos ver de bom e belo
manifestado na natureza seria obra do acaso 21 (au)to/matoj). De modo algum teria
surgido por firme necessidade (anagke). A acentuada importância da teleologia em sua
cosmologia culminará na célebre teoria do primeiro motor. O universo inteiro é um todo
orgânico orientando-se sempre em função do bem comum. A relação mútua entre as
essências torna-se conseqüência evidente:
“Não é caso de não haver nada entre uma coisa e outra. Mas realmente há.
Todas as coisas estão coordenadas em referência a algo único.” (L 1075a16)
19 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 20 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice. 21 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
43
kaiì ou)x ouÀtwj eÃxei wÐste mh\ eiånai qate/r% pro\j qa/teron mhde/n, a)ll' eÃsti ti. pro\j me\n ga\r eÁn aÀpanta sunte/taktai
As causas que foram apontadas por seus antecessores não podem ocupar, no
conjunto da natureza, o estatuto de causas propositais. Elementos como o fogo e a terra
são constituintes das essências sensíveis, ou seja, suas causas materiais. Porém não
podem explicar a harmonia existente entre estas essências e como podem, de alguma
forma, estar visando uma meta. Em Metafísica I,3, Aristóteles argumenta assim contra
estas doutrinas anteriores "pois não é verossímil que o fogo, a terra ou qualquer elemento
semelhante seja a razão de manifestar-se a bondade e a beleza tanto nas coisas que são
como nas que vêm a ser,...e, por outro lado, não seria judicioso atribuir efeito de tal
monta ao acaso (au)to/matoj) e à fortuna22 (tu/xh)". Como podemos observar, a concepção
aristotélica de causalidade postula a existência de um princípio completivo regente das
essências sensíveis em seu curso natural. Vejamos outra articulação promovida pelo
Filósofo contra certos antecessores de sua doutrina.
No livro L da Metafísica, o Filósofo concentra as conseqüências de sua teoria
causal na demonstração da existência de uma essência que é, simultaneamente, causa
completiva de todas as essências, tanto as pertencentes à esfera sublunar como à esfera
supralunar. No parágrafo citado acima, Aristóteles julga como sendo sem fundamento a
opinião de pensadores como Espeusipo e os Pitagóricos de que a bondade, a beleza e o
supremo bem não constituem o primeiro princípio. Consideram desta maneira por
acreditarem que a beleza e a perfeição não são anteriores à formação completa de seres
como as plantas e os animais, mas sim simultâneos ao último grau de seu
22 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
44
desenvolvimento. Sendo assim, não são causas destes seres. Com muito mais propriedade
será denominá-las efeitos. Aristóteles rebate este ponto de vista tomando como exemplo a
semente. Esta, que seria considerada como causa por conter em si a forma própria do ser
completo, "provém de outros indivíduos, que são anteriores e completos, e o mais
primitivo não é a semente, mas o ser completo. Devemos dizer, por exemplo, que antes
da semente há um homem - não o homem produzido pela semente - mas um outro, do
qual ela provém".
Como já foi observado antes, as quatro causas não se excluem mutuamente. Para
uma mesma coisa existem várias causas. No entendimento do Filósofo, isto não ocorre do
mesmo modo para cada uma das causas. O fato de que estas ocorrem simultaneamente
não significa que não se possa determinar relativamente a cada objeto, cada uma
separadamente. No livro D da Metafísica podemos visualizar com maior clareza esta
relação:
"... p.e.x., tanto o engenho (te/xnh)23 da escultura como o bronze são
causas da estátua, não em relação a alguma outra coisa, mas enquanto estátua; e
também não do mesmo modo, mas um como matéria e a outra como aquilo de
onde provém movimento...”
oiâon tou= a)ndria/ntoj kaiì h( a)ndriantopoihtikh\ kaiì o( xalko\j ou) kaq' eÀtero/n ti a)ll' v a)ndria/j: a)ll' ou) to\n au)to\n tro/pon a)lla\ to\ me\n w¨j uÀlh to\ d' w¨j oÀqen h( ki¿nhsij (1013b7).
No exemplo acima a função de cada elemento causador da estátua é bem nítida. O
engenho da escultura responsável pela transformação do estado original do bronze é,
portanto, classificado como a causa da origem do movimento, ou causa motriz. E o
23 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
45
bronze, por constituir a estátua de modo a tornar sua forma (antes apenas concebida pelo
escultor) uma forma sensível, é a causa material da estátua.
Se consideramos a noção de causa tal como aparece desde a filosofia moderna
com o objetivo de tentar interpretar a filosofia aristotélica a partir desta noção,
encontram-se vários problemas.
A noção contemporânea de causa e efeito visa explicar a concatenação de eventos
de tal modo que cada um seria visto como resultado do outro. Esta relação entre dois
eventos, chamada de causalidade, reduz-se ao mecanicismo e explica, por meio de leis
físicas, o encadeamento dos eventos na ordem temporal. Em uma seqüência temporal,
será considerada causa de um evento aquele que lhe seja imediatamente anterior e sem o
qual, aquele não ocorreria. Ou seja, a causa de um evento é o elo anterior do
encadeamento de eventos que o antecede. E assim sucessivamente na determinação das
causas de cada um dos eventos. Como podemos constatar a partir desta análise, os
eventos são causas uns dos outros. Isto não significa que um mesmo evento possua várias
causas. Só é considerado causa de um evento aquele que é imediatamente anterior a este,
ainda que todos os outros tenham sido necessários para o seu advento. Uma tal visão
poderia, à primeira vista, ser adequada como uma explicação da causa motriz aristotélica.
Sendo produtora de modificação em um dado objeto, corresponderia ao conceito de causa
motriz. Esta sempre antecede o efeito por ela produzido. Conforme observamos em
Metafísica L,3: "As causas motrizes são preexistentes.” (ta\ me\n ouÅn kinou=nta aiãtia
w¨j progegenhme/na oÃnta,) (1070a22). A mesma visão não seria, no entanto, válida
para as outras três causas. Quanto à causa completiva, por exemplo, uma visão
mecanicista exclui qualquer teleologia na natureza. A idéia de um propósito pré-existente
46
coordenando um conjunto de eventos e que será, posteriormente, atingido, é inconcebível
para a noção de causalidade da ciência moderna. Isto se deve, entre outros motivos, ao
fato que descrevemos acima. Neste tipo de concepção, a causa terá que ser sempre
anterior ao efeito produzido. Da mesma forma, a noção aristotélica de causa material não
coincide com a causalidade moderna por não ser capaz de produzir efeitos. Ao contrário,
por ser aquilo de que é feito um objeto, a causa material lhe confere a possibilidade de
receber os efeitos. Além disto, o conceito de matéria em Aristóteles é muito mais
abrangente que o conceito proposto pela modernidade. Não se restringe a um dos termos
de uma dualidade “mente x matéria” ou “espírito x matéria”. Matéria é justamente o que
está sujeito à modificação em cada objeto. No livro Z da Metafísica, Aristóteles escreve:
"... embora uma coisa provenha tanto da sua privação como de seu sujeito,
que denominamos matéria (por exemplo, o que recobra a saúde é ao mesmo
tempo um homem e um enfermo), perfeitamente se diz que ela provém da sua
privação (por exemplo, é antes do enfermo que do homem que provém o homem
sadio”).
aiãtion de\ oÀti gi¿gnetai e)k th=j sterh/sewj kaiì tou= u(pokeime/nou, oÁ le/gomen th\n uÀlhn (oiâon kaiì o( aÃnqrwpoj kaiì o( ka/mnwn gi¿gnetai u(gih/jŸ, ma=llon me/ntoi le/getai gi¿gnesqai e)k th=j sterh/sewj, oiâon e)k ka/mnontoj u(gih\j hÄ e)c a)nqrw¯pou.
Uma leitura mais detalhada do que Aristóteles compreende por causa motriz
mostra, no entanto, que a noção moderna de causa não é suficiente para explicar nem
mesmo a causa motriz aristotélica. Isto ocorre por dois motivos. (a) A causa motriz,
sendo produtora de efeitos na matéria, nesta impõe uma determinação, delimitando-a
através de uma forma. Ou seja, a causa motriz, ao impor uma forma (identificada em ??2
com o que é expresso pela definição da essência) na porção de matéria de um certo objeto,
47
é responsável pela concepção deste objeto. Torna-se necessário que o julguemos como
sendo de uma certa natureza e não de outra. Esta necessidade não pode ser encontrada na
ciência moderna. Esta não vincula a causa de um objeto com a concepção que possamos
ter a seu respeito. (b) A causa motriz, conforme é pensada por Aristóteles, não está
necessariamente encerrada em um elemento anterior de uma seqüência causal na qual o
evento seria um elo posterior. Considera-se causa motriz, por exemplo, o agente
responsável pela seqüência causal do evento. Em Metafísica D,2, podemos constatar este
fato: "O sêmen, o médico, quem aconselha e, em geral, o agente, são todos eles
princípios de transição ou repouso” (to\ de\ spe/rma kaiì o( i¹atro\j kaiì o(
bouleu/saj kaiì oÀlwj to\ poiou=n, pa/nta oÀqen h( a)rxh\ th=j metabolh=j hÄ
sta/sewj.) (1013b20). A ciência moderna não considera o agente como um todo a causa
de um evento. Antes, julga cada movimento do agente uma causa com seu efeito
correspondente.
A tentativa de se obter uma melhor compreensão das quatro causas de Aristóteles
a partir da noção moderna de causa parece então fadada ao fracasso.
(3) Para se obter uma compreensão mais adequada da teoria aristotélica das quatro
causas, partirei da hipótese de que as várias interpretações filosóficas desenvolvidas por
Aristóteles têm por fim elucidar as estruturas que regem a maneira como nós
quotidianamente compreendemos o mundo. Sendo assim, no que diz respeito à Física, W.
Wieland 24 mostra que a física aristotélica é uma elucidação do modo como
compreendemos a noção de objeto espaço-temporal submetido ao movimento, uma
compreensão que não é nenhuma construção científica, mas sim um refinamento de nosso
48
senso-comum. De modo semelhante, vários comentaristas, como por exemplo C. Kahn
(1985) , interpretaram a chamada teoria das categorias como tendo surgido através dos
vários tipos de questões que nós ordinariamente podemos colocar acerca de um dado
objeto. O mesmo tipo de interpretação parece ser válido para a teoria das quatro causas.
A palavra causa, aitía, é cognata ao verbo aitiáomai, que significa “considerar
como autor, como responsável". A pergunta pré-filosófica grega correspondente ao nosso
“por que x ?” é “diá tí x”. Ao se fazer essa pergunta acerca de um objeto, o que se quer
saber é o que ou quem é o responsável por esse objeto. Essa pergunta, no entanto, tem
quatro sentidos diferentes na filosofia aristotélica, que podem ser evidenciados em suas
respectivas respostas. Há vários tipos de “coisas” que podem ser responsáveis pelo
aparecimento de um objeto. Um objeto físico só pode ser o que é, por sua vez, porque
tem algum elemento responsável pelas alterações que nele ocorrem. Desta maneira, tem
que haver nele algum outro elemento responsável pelo fato de que, alterando-se este
objeto, permanece o mesmo. Ou seja, um elemento responsável por que as alterações se
dêem em certos limites. Este elemento é denominado “causa formal”, sendo correlato da
“causa material”, recipiente destas alterações. Estes dois elementos, por sua vez, têm que
ser unidos um ao outro. Enfim, é uma concepção ordinária da visão grega de mundo que
algo não pode ser sem que tenha por meta certa completude (te/loj). Nesse sentido, vê-
se como a pergunta “por que x?” assume quatro diferentes interpretações, já que podemos
mencionar quatro elementos responsáveis pela existência de um dado objeto.
24 (Wieland,1992)
49
Modalidade Ontológica dos Princípios Metabólicos
Escreve Aristóteles:
"É preciso observar que a matéria e a forma - os princípios últimos - não se
geram. De fato, tudo o que transita é algo, que transita por obra de algo e para
algo. Aquilo pelo que ocorre a transição é o primeiro motor; o que transita é a
matéria; aquilo para o que tende a transição é a forma. De fato, iríamos até o
infinito se não somente a esfera de bronze fosse gerada, mas também a esfera ou
o bronze. Portanto, é necessário que haja um termo no qual se deva parar."
(1069b35)
Meta\ tau=ta oÀti ou) gi¿gnetai ouÃte h( uÀlh ouÃte to\ eiådoj, le/gw de\ ta\ eÃsxata. pa=n ga\r metaba/llei tiì kaiì u(po/ tinoj kaiì eiãj ti: u(f' ou me/n, tou= prw¯tou kinou=ntoj: oÁ de/, h( uÀlh: ei¹j oÁ de/, to\ eiådoj. ei¹j aÃpeiron ouÅn eiåsin, ei¹ mh\ mo/non o( xalko\j gi¿gnetai stroggu/loj a)lla\ kaiì to\ stroggu/lon hÄ o( xalko/j: a)na/gkh dh\ sth=nai.
Vemos assim que, pelo trecho acima, a matéria e a forma, consideradas em si
mesmas, são ingênitas. A impossibilidade de atingir um processo de geração até o infinito
50
é o argumento fornecido pelo Filósofo em prol da eternidade da matéria e da forma
últimas. Devemos entender última, no sentido de que não se trata aqui desta ou daquela
matéria, mas da matéria em geral relativa a cada tipo de essência. O exemplo da esfera de
bronze é esclarecedor: a forma esférica do objeto tem sua origem em outro ser que
comunicou, em efetividade, a forma esférica, e assim por diante; e da mesma forma o
bronze, matéria do objeto, que foi tomado de outro ser; mas o bronze e o esférico sempre
existiram, ainda que em diferentes seres. Mas através de outro livro da Metafísica vemos
que o argumento da impossibilidade de recorrência infinita da geração seria uma
conseqüência direta de uma única recorrência. Com efeito, se a forma e a matéria
primeira fossem geradas uma única vez, nada impediria que tal geração se processasse
indefinidamente. É o que lemos no livro Z da Metafísica particularmente no tocante à
forma, identificada com a essência:
"Se, ao contrário, houvesse geração também do ser da esfera em geral,
ela deveria provir de outra coisa; de fato, o que se gera deve sempre ser divisível:
deve ser em parte isso e em parte aquilo: o que seja, em parte matéria e em parte
forma. E se a esfera é a figura que tem todos os pontos eqüidistantes do centro,
então seria preciso distinguir nela, por um lado, aquilo em que se encontra o que
se produz, e o todo será aquilo que se produziu, como no caso da esfera de
bronze. Portanto o que se chama forma e essência não se gera, mas é o
concreto25 que é gerado." (Met. Z 1033b11)
tou= de\ sfai¿r# eiånai oÀlwj ei¹ eÃstai ge/nesij, eÃk tinoj tiì eÃstai. deh/sei ga\r diaireto\n eiånai a)eiì to\ gigno/menon, kaiì eiånai to\ me\n to/de to\ de\ to/de, le/gw d' oÀti to\ me\n uÀlhn to\ de\ eiådoj. ei¹ dh/ e)sti sfaiÍra to\ e)k tou= me/sou sxh=ma iãson, tou/tou to\ me\n e)n %Ò eÃstai oÁ poieiÍ, to\ d' e)n e)kei¿n%, to\ de\ aÀpan to\ gegono/j, oiâon h( xalkh= sfaiÍra. fanero\n dh\
25 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
51
e)k tw½n ei¹rhme/nwn oÀti to\ me\n w¨j eiådoj hÄ ou)si¿a lego/menon ou) gi¿gnetai, h( de\ su/noloj h( kata\ tau/thn legome/nh gi¿gnetai. Assim, o trecho deixa claro que o "ser esférico", isto é, a forma da esfera não
pode ser gerada, pois toda geração envolve novamente outra forma e matéria
constituintes, o que não é possível ocorrer no ser da esfera, que é a pura forma da esfera,
pois ao tomá-la em sua pureza, já excluímos qualquer matéria de sua concepção. Resta-
nos tão somente o conceito, a idéia primeira de esfera em geral que podemos expressar na
definição "figura que tem todos os pontos eqüidistantes do centro", definição esta que não
comporta divisibilidade em matéria e forma, pois contém tão somente a estrutura de
eqüidistância mantida em tudo o que denominamos esfera. Esta estrutura é a forma da
esfera. Ora, "a forma é indivisível" (aÃtomon ga\r to\ eiådojŸ (Met. Z, 1034a8).
Permanece apenas a questão da razão de Aristóteles considerar o bronze como ingênito.
Seria natural considerar possível a geração da matéria do bronze por outra "menos
enformada". Penso que uma boa aproximação para uma resposta satisfatória é atentar
para a homogeneidade do bronze, que dificulta a percepção fenomênica de alguma
determinação em sua natureza. Tal propriedade talvez lhe conferisse imunidade ao devir
semelhante ao que agora deduzimos para forma pela indivisibilidade desta última. O
homogêneo é uma das espécies de contínuo, e este, juntamente com o indivisível é uma
das muitas faces do um - como vemos no livro D da Metafísica. E a unidade homogênea
do bronze torna impossível a cognição de uma estrutura discriminada ou uma nova
dicotomia hilemórfica pela sua mera representação, coisa já demonstrada ser impossível
também na forma que essa matéria pode assumir.
52
Aristóteles afirma que “cada coisa é gerada a partir daquela com que compartilha
o nome.” (e(ka/sth e)k sunwnu/mou gi¿gnetai ou)si¿a) (1070a5). E logo a seguir
enumera quatro maneiras pelas quais algo se gera. São estas: a geração por engenho
(te/xnv), por natureza (fu/sei), por acaso (t%½ au)toma/t%) ou por fortuna (tu/xv).
Define geração por engenho como aquela em que o princípio de geração reside em outra
coisa diversa da coisa gerada, ao contrário da geração por natureza, em que o princípio
está na própria coisa gerada, como no caso do homem, pois “o homem gera o homem”. A
geração casual é uma privação (ste/rhsij) do princípio de geração natural, quando
então decorre que a causa da geração de determinado ser é totalmente desconhecida. Diz-
se que é por fortuna toda geração de um ser em que não houve real intenção por parte
daquele que possui o engenho; esta é a diferença entre as duas espécies de gerações: a
primeira é uma negação da geração por natureza, e a segunda, uma negação da geração
por engenho. A sentença “o homem gera o homem” poderia sugerir que na afirmação
“todas as coisas se geram de algo que compartilha o seu nome e essência”, a expressão
“todas as coisas” se refere, de fato, a todos os seres gerados por natureza, pois apenas
sobre estes poderíamos dizer o mesmo que se diz quanto ao homem, “que gera o homem”.
Entretanto, logo tal convicção se apresenta desarticulada relativamente a outros escritos
do Estagirita. No livro Z da Metafísica lemos que, em certo sentido, todas as coisas se
geram de algo que compartilha o seu nome, caso das coisas naturais, ou de uma parte que
compartilha o seu nome, caso do engenho, pois a forma do objeto criado tem o mesmo
nome que a forma que a precedeu na mente do criador. Daí a razão de Aristóteles afirmar,
mesmo das coisas cujo princípio de geração reside em outro ser, a mesma conexão
nominal entre gerado e gerador, pois ainda que o princípio de geração seja extrínseco à
53
coisa gerada, alguma de suas partes compartilha o mesmo nome que esta. Quando
escreve “a partir daquela com que compartilha o nome” (e)k sunwnu/mou) (1070a5),
refere-se aos sinônimos, tratados no princípio das Categorias. Sinônimos são as coisas
que tem o mesmo nome e esse nome indica que há, de fato, comunidade de essência. São
homônimos de uma tipo especial, pois a igualdade nominal aqui não é fortuita. Certas
dificuldades foram levantadas a respeito do significado das gerações casuais e fortuitas
quanto à convicção previamente assumida da geração pelo homônimo. Se tais fenômenos
sucedem pela ausência dos princípios de engenho e natureza, de que princípios estas
essências são sinônimas? Ross acredita que se tratam de meras exceções que
confirmariam a regra anteriormente estabelecida. Preferimos, no entanto, investigar a
questão com base no passo 1065a30 do livro XI da Metafísica, em que o Filósofo escreve
que as gerações casuais e fortuitas são gerações em sentido concomitante, e não em
sentido absoluto, e da mesma forma devemos considerar as eventuais causas, ainda que
sejam desconhecidas, já que só podem ser concebidas como desvios em relação às
intenções dos agentes inteligentes e naturais, causas em sentido absoluto de gerações em
sentido absoluto, a saber, as gerações por engenho e por natureza, respectivamente. Ao
afirmar que todas as gerações procedem de algo sinônimo, Aristóteles se refere a todas as
gerações que se dizem tais em sentido próprio, e não àquelas tomadas como gerações
apenas por concomitância.
Como vimos acima, Ross acredita que a referência às gerações por acaso e fortuna
são apenas exceções que confirmam a regra da geração por algo sinônimo. Aristóteles as
define como privações de natureza e engenho. Ross acredita que estas privações sejam
gerações com o mesmo direito que as outras duas. O estudioso se apóia na extensa
54
discussão a respeito dos três princípios e causas - forma, privação e matéria - que
evidenciaria fortemente o lugar da privação em sua doutrina da causalidade. A privação,
assim, seria uma causa tanto quanto a forma, ao contrário do que poderia sugerir o passo
1070a10, em que Aristóteles parece considerar a privação uma causa de segunda ordem.
Na verdade, há uma certa confusão quanto aos usos do termo privação. Ross não
considera que são modos diferenciados, o que o faz tratar como tendo o mesmo
significado a privação da forma - especialmente apreciada nos capítulos quatro e cinco - e
as privações de engenho e natureza, que no passo 1070a10, são nitidamente tomadas
como causas de segunda ordem, acidentais. Extraímos esta conclusão da leitura do livro
XI, particularmente o capítulo oitavo. Aristóteles afirma que as causas das gerações por
acaso e fortuna - que em L,3 são definidas como privações das outras espécies de
geração - são causas em sentido concomitante. São causas à margem da completude
(te/loj), o para algo, próprio dos agentes naturais e artificiais. A fortuna (tu/xh) é a
privação do ‘para o qual’ (to\ ou eÀneka), ou seja, o propósito relativo à geração pelo
engenho, cujo agente é o homem. O acaso, por sua vez, tem lugar na ausência do para
algo presente nas produções naturais - nas quais, como vimos em L,3 - o princípio de
movimento reside no próprio ser, pois tal princípio é a natureza (fu/sij). Realmente
peculiar neste tipo de privação é que a mesma significa a produção de algo diferente
daquele originado de uma geração pela forma, seja esta natural ou concebida pelo artífice.
Porém, o modus operandi é, inexplicavelmente, o mesmo. Daí o Filósofo afirmar no
tocante a tu/xh:
55
“E indeterminadas são as causas pelas quais são geradas as coisas que se geram
pela fortuna, de forma que este é oculto para o raciocínio humano, sendo causa
em sentido concomitante, mas não é nada em sentido absoluto”.
ta\ d' aiãtia a)o/rista a)f' wÒn aÄn ge/noito ta\ a)po\ tu/xhj, dio\ aÃdhloj a)nqrwpi¿n% logism%½ kaiì aiãtion kata\ sumbebhko/j, a(plw½j d' ou)deno/j. (1065a33)
A perplexidade do Estagirita quanto a este tipo de privação, o levou, em outras
retomadas sobre o assunto, a assumir uma tese no mínimo atípica no conjunto de seu
pensamento. Em Z,9, Aristóteles sustenta que a causa do acaso é a capacidade que a
matéria possui, muitas vezes, de mover a si mesma, de tal maneira como o faria um
princípio natural de movimento, como é o caso da saúde, que certas vezes é restaurada
sem a intervenção do engenho médico. Vale notar que, neste último exemplo, a privação
da geração por engenho não é a fortuna, como seria de se esperar, mas o acaso. A razão
disto pode ser procurada na própria natureza da medicina. Trata-se de um engenho bem
peculiar: age, necessariamente, de acordo com os princípios naturais, o que torna esta
espécie de recuperação do indivíduo explicável tanto em termos de acaso como pela
fortuna. O que é realmente curioso aqui é a tese proposta por Aristóteles, de que a matéria
poderia mover a si mesma, o que tornaria compreensível a geração, mesmo na ausência
de princípios formais, sejam estes naturais ou artificiais. Sabemos que o Filósofo, ao
longo de seu pensamento, não sustenta o automovimento da matéria, postulando sempre
uma outra causa para sua modificação. É exatamente assim que censura os filósofos
jônios em 984a20. A matéria, segundo Aristóteles, é o único princípio que estes
pensadores buscaram para explicar a realidade. Mas não podemos explicar o movimento
em geral somente com este princípio, pois a matéria não impõe a si mesma qualquer
56
modificação, “nem a madeira nem o bronze são causa, respectivamente, de sua própria
transição.”
Resulta claro então por que, no passo 1070a11 do livro L, o Filósofo se refere tão
brevemente ao acaso e à fortuna. Nas linhas anteriores, em que afirma que “cada
essência é gerada a partir daquela que tem o mesmo nome” (1070a5), não previa, como
supôs Ross, uma exceção à regra. O que pretende é que todas as coisas geradas em
sentido próprio, sucedem assim por algo sinônimo. A definição da fortuna e ao acaso
como privações de engenho e natureza, longe de significar um caso especial nesta lei
ontológica, é na verdade, condicionada por um âmbito de fatores completamente
diferentes não só das respectivas gerações - de que são negações - como também da
simples privações da forma, bem mais inteligível e investigada em boa parte do livro L.
A privação que Aristóteles considera causa e princípio com o mesmo direito que a
matéria e a forma, é simplesmente uma negação desta última, perfeitamente
compreensível, porquanto origina um ser bem diverso. Ao contrário, as privações de
natureza e engenho, na medida em que geram os mesmos seres que os princípios naturais
e artificiais, são duplamente negações porque a) negam a forma, ausências que são dos
princípios de movimentos sinônimos, quer dizer, dos princípios equivalentes às formas
dos seres produzidos ; e b) negam o próprio modo de geração, pois os seres gerados são,
surpreendentemente, os mesmos, ou seja, não são outros seres, mas desvios ou falhas dos
mesmos.
Agora estamos em condições de compreender a totalidade do terceiro capítulo.
Aristóteles o inicia demonstrando a impossiblidade de geração da forma e da matéria. A
seguir, como pudemos apreciar, estabelece o modo conforme o qual todas as essências
57
vêm a ser, qual seja, a partir de algo sinônimo. A partir destes dois pressupostos, não
seria surpreendente a ocorrência de uma confusão a respeito das reais convicções do
Filósofo, principalmente uma identificação errônea com a doutrina platônica das idéias.
Pois também as idéias são ingênitas e são causas de mesmo nome e essência que as
essências por elas geradas (com efeito, a essência do redondo se identifica com a idéia de
redondo). É exatamente se prevenindo contra este tipo de interpretação que Aristóteles 1)
explica em que sentido se diz que as causas são “sinônimas”, 2) determina o modo de ser
das formas das coisas e 3) nega firmemente a necessidade de admitir as Idéias, mesmo
para explicar a geração das coisas naturais, pois “um homem gera um homem”.
Nas produções através do engenho, as causas não existem em si e por si mesmas,
à maneira das Idéias, pois existem apenas enquanto inteligidas pelo artífice. Nas
produções naturais, objeto de estudo da Física, as causas não existem separadas da
matéria, pois são intrínsecas aos entes causados. Nos dois casos, portanto, as causas
sinônimas não correspondem às Idéias platônicas. Para os produtos do engenho, observa
o Estagirita, mesmo Platão não postulava formas separadas.
No passo 1070a5, lemos que “toda a essência compartilha de algo do mesmo
nome e essência, tanto as essências naturais como as outras”. Por essência natural,
entende-se uma coisa gerada por natureza, o que, nas linhas seguintes, é expresso como
“um princípio que está na coisa mesma”. O princípio imanente é diverso de um princípio
exterior à coisa. Aquele é o caso, por exemplo, da geração de um homem por outro
homem, pois neste caso o princípio de geração reside, de certa forma, no que é gerado,
visto que o gerador e o gerado são, ambos, homens. Quanto à construção de uma casa por
58
um homem, dizemos que o princípio de geração não reside na coisa mesma, mas lhe é
exterior, pois uma coisa é o homem que projeta a casa, outra a casa projetada.
A partir da classificação acima, é natural perceber uma incongruência
relativamente ao que o Estagirita denomina geração por algo de mesmo nome (e)k
sunwnu/mou). Que a geração de um homem por outro homem seja a geração de uma
essência por algo do mesmo nome e essência, parece evidente por si mesmo. E da mesma
forma quanto às demais essências naturais. As dificuldades surgem no que diz respeito às
produções artificiais, que o Filósofo também admite como sinônimas. A princípio,
pareceria estranho encontrar na construção de uma casa a geração de algo de mesmo
nome e essência, pois o construtor é um homem. É que Aristóteles pressupõe um
argumento já confeccionado no passo 1034a25 do livro Z da Metafísica:
“Resulta igualmente claro que, de certo modo, todas as coisas se geram de algo
de mesmo nome, como as coisas naturais, ou a partir de uma parte de mesmo
nome (por exemplo, a casa a partir da casa enquanto presente na inteligência,
pois o engenho é a forma.”).
dh=lon d' e)k tw½n ei¹rhme/nwn kaiì oÀti tro/pon tina\ pa/nta gi¿gnetai e)c o(mwnu/mou, wÐsper ta\ fu/sei, hÄ e)k me/rouj o(mwnu/mou oiâon h( oi¹ki¿a e)c oi¹ki¿aj, v u(po\ nou=: h( ga\r te/xnh to\ eiådoj. Torna-se mais nítida, a partir da leitura acima, a razão de Aristóteles afirmar que
as produções artificiais, assim como as naturais, são gerações a partir de algo de mesmo
nome e essência. Pois as essências provêm de algo totalmente sinônimo ou de algo
parcialmente sinônimo, sendo que, no caso da construção de uma casa, por exemplo, a
parte sinônima responsável pela geração nada mais é que a forma da casa, presente na
59
mente do construtor. Assim, não é absurdo dizer que a casa é gerada de algo do mesmo
nome, pois é gerada de outra casa, quer dizer, daquela concebida pelo construtor.
O que resulta estranho é o motivo pelo qual o Filósofo se refere àquele que gera
como homônimo, no livro Z, e como sinônimo, no livro L. Sabemos que são duas noções
diferentes, distinção efetuada no princípio de Categorias. Em verdade, “chamam-se
homônimos os nomes que só têm de comum o nome, enquanto o enunciado (lo/goj) de
sua essência é distinta” ( ¸Omw¯numa le/getai wÒn oÃnoma mo/non koino/n, o( de\ kata\
touÃnoma lo/goj th=j ou)si¿aj eÀteroj,). Aristóteles ilustra a definição aludindo a
homonímia existente entre um homem e um homem em pintura; a coincidência nominal
não implica uma identidade de essência. Com os sinônimos ocorre algo bem diferente: há
uma simultaneidade entre o nome e a essência dos respectivos objetos. Daí o fato
estranho que é Aristóteles aplicar estes dois termos de maneira, aparentemente,
indiscriminada. Mas encontramos a razão disto no fim mesmo do capítulo três do livro L,
quando ele afirma que o engenho médico, a qual pressupõe o enunciado formal da saúde
concebida pelo médico, se identifica com a saúde mesma. Da mesma forma, lemos no
capítulo quatro do mesmo livro: “O homem gera o homem e o indivíduo gera outro
indivíduo. O mesmo vale para o engenho: o engenho médico é o enunciado da saúde.
(aÃnqrwpoj ga\r aÃnqrwpon genn#=, o( kaq' eÀkaston to\n tina/: o(moi¿wj de\ kaiì
e)piì tw½n texnw½n: h( ga\r i¹atrikh\ te/xnh o( lo/goj th=j u(giei¿aj e)sti¿n.)
(1070a28)”
No livro L, Aristóteles ratifica uma convicção que já possuía em Z, a de que a
forma inteligida no engenho e a forma na essência mesma se identificam em nome e
60
essência. Por isso em Z o Filósofo utiliza o termo homônimo (mesmo nome) e em L o
termo sinônimo. Isto confirma a maturidade do livro L, relativamente ao Z.
A Redução Analógica dos Princípios
Aristóteles afirma, no princípio do capítulo quatro, que há dois modos de
considerar as causas e princípios de todas as coisas. A partir de um destes modos,
dizemos que as causas e princípios das coisas são diferentes para cada um dos seres
existentes. Trata-se da perspectiva abordada no capítulo anterior, em que se identifica na
causa algo de mesmo nome e essência que o causado. Sendo assim, cada coisa terá sua
própria causa, aquela correspondente a sua essência mesma. Outro modo de considerar a
causalidade consiste em “enunciar algo universalmente e por analogia” (kaqo/lou le/gv
tij kaiì kat' a)nalogi¿an,) (1070a31), o que significa investigar e enumerar as causas
a partir do que possuem em comum. A indefinida diversidade de causas e princípios se
mostra, sob este enfoque, redutível a uma relação de poucos tipos, segundo as funções
gerais exercidas nos seres.
Cabe demonstrar, primeiramente, a impossibilidade de fazer derivar todas as
categorias a partir dos mesmos elementos. “O elemento é anterior (pro/teron) àquilo de
que é elemento” (pro/teron de\ to\ stoixeiÍon hÄ wÒn stoixeiÍon:) (1070b1). Isto força
que não haja “nenhum elemento comum ao lado da essência e das outras categorias”
61
(para\ ga\r th\n ou)si¿an kaiì taÅlla ta\ kathgorou/mena ou)de/n e)sti koino/n,)
(1070a36). Em Categorias26 , Aristóteles enumera dez modos de ser27 , dez maneiras
segundo as quais dizemos que uma coisa é; a essência ocupando o lugar central, como
fundamento único em que as demais categorias subsistem. Se existissem, de fato,
elementos comuns a todas as categorias, teriam que ser anteriores às mesmas, o que seria
equivalente a postular a necessidade de “novas categorias”, além da décade já conhecida.
Mas a décade é justamente a relação dos gêneros supremos, anteriores a todos os outros.
Outra possibilidade é também descartada: os elementos comuns não podem pertencer a
uma das categorias, pois é inadmissível que uma categoria seja elemento de outra. As
categorias, além de serem maximamente gerais, são distintas entre si, tal distinção
tornando-as absolutamente irredutíveis umas às outras.
Os elementos, vale ainda ratificar, são constitutivamente anteriores às coisas de
que são elementos. Por isto é impossível, afirma Aristóteles, que certas noções universais,
como “o que é” (ón) e “um” (hén), sejam elementos dos compostos, caso contrário, nada
poderia “ser” ou “ser um”, sem a conseqüência de se identificarem com seus próprios
constituintes.
Forma, privação, matéria: três princípios e causas universais, porque não são outra
coisa senão um modo analógico de estudar a geração e a constituição dos seres. Nas
coisas dotadas de matéria, por exemplo, o calor e o frio podem exercer, respectivamente,
a função analógica de forma e privação; a matéria, por sua vez, é potencialmente quente
ou fria, atualizando-se conforme o que prevaleça, a forma ou a privação. Os elementos
das coisas não se identificam totalmente com as mesmas, mas compartilham o mesmo
26 Cat. 1b25
62
nome e essência, conforme vimos anteriormente. A forma de uma essência, nesta
existindo em efetividade, pode ser transmitida a outra essência que já possua esta forma,
ainda que potencialmente; é o caso da forma de homem, transmitida em efetividade do
pai a seu filho. Sendo assim, há um antes e um depois no tocante ao “ser” da forma de
homem presente no filho: a determinação antes própria de uma essência, o pai, passa
então a fazer parte de outra essência, o filho. Tal coisa não se verifica quando as noções
de “um” e “o que é” são tratadas como elementos. Logo se verifica o absurdo da tese,
pois não há como considerar um modo segundo o que algo seja a causa do caráter de
“um” ou de “algo que é” de outra coisa. Estas noções são trans-genéricas, sendo que as
categorias são maneiras segundo as quais conhecemos “o que é” e o “o que é um”,
destacando-se entre todas aquela de caráter próprio e central, a essência. “Ser” e “ser um”
são as condições mesmas para que algo seja objeto de intelecção.
Não obstante, cada coisa possui sua própria matéria, forma ou privação de forma.
A matéria da cor não é a mesma que a da do dia e da noite: na primeira a superfície; nas
segundas, o ar. E as mesmas distinções se verificam quanto aos demais princípios, como
a forma e privação. Com isto quer Aristóteles fazer entender que estes três princípios o
são apenas analogicamente, não cabendo tomá-los em sentido absoluto, como
subsistentes em si mesmos independentemente do que são para cada coisa particular.
Assim, a “Forma em geral” ou a “Privação em geral” não são causas do dia e da noite;
antes, a forma da luz e sua privação, a obscuridade, são suas respectivas causas.
Todo elemento é um princípio, mas nem todos os princípios são elementos. A
noção de elemento é mais restrita que a de princípio. Os elementos são sempre imanentes
27 Esta lista não é definitiva nos próprios textos de Aristóteles. Referimo-nos ao livro Categorias por se tratar da versão mais completa forncecida pelo Estagirita.
63
às coisas, ao contrário dos princípios, em que se incluem, além das causas imanentes, os
agentes externos produtores de movimentos. Ambos, os princípios e os elementos, são
causas, pois a noção destas, além de abranger os princípios intrínsecos e extrínsecos, se
aplica também a todos os elementos. Por isso, escreve o Filósofo: “os elementos são três
analogicamente, enquanto as causas e princípios são quatro”. Os elementos constitutivos
de todas as coisas, tomados analogicamente, já foram enumerados: são a matéria, a forma
e sua privação. Sendo elementos, são também causas e, da mesma forma, determinado
tipo de princípios, vale dizer, os de ordem intrínseca. Aristóteles se refere às causas
motrizes quando indica a existência de uma quarta causa. Vale notar a significativa
diferença entre esta enumeração das causas e aquela “canônica”, que expomos
anteriormente, em que se faz referência àquilo para o qual, a causa completiva. Outra
divergência é que neste tipo de classificação tradicional não notamos a consideração da
privação como uma das causas. Martínez (1998, p.478) supõe que, a exemplo do que faz
no capítulo três, o Filósofo identifica a causa completiva com a forma. De qualquer forma,
esta “tábua” de causas também é objeto de uma tentativa de redução. No fim do capítulo,
o Filósofo alude novamente para o modo como têm origem os seres naturais e os
produtos do engenho. Nos primeiros, as causas produtoras de movimento são intrínsecas
aos seres causados, como é o caso de um homem em relação a seu pai, o que permite
identificar a causa produtora de movimento com a causa formal; os produtos do engenho
também admitem esta identificação, pois a causa motriz é a própria forma, enquanto
inteligida pelo artífice. Em ambos os casos, portanto, a relação se reduz a apenas três
causas.
64
De maneira extremamente sucinta, Aristóteles alude à questão fundamental do
livro L, somente investigada realmente a partir do capítulo sexto. Assim, escreve
Aristóteles: “E, além de todas estas causas, está aquela que move todas as coisas, por ser
a primeira de todas elas” (eÃti para\ tau=ta to\ w¨j prw½ton pa/ntwn kinou=n
pa/nta.) (1070b34). É o primeiro motor a causa que move todas as coisas.
Compreenderemos o pleno significado desta passagem no sétimo capítulo, quando o
Estagirita conclui na identidade do que é maximamente inteligível e do que é desejável
em máximo grau, justamente o motor primeiro de todas as coisas, que as move sem ser
movido, pois atua mediante o desejo que possuem pela sua perfeição.
Redução Analógica da Modalidade Existencial No capítulo a seguir, Aristóteles segue estendendo-se na argumentação da tese
estabelecida anteriormente: a de que os princípios e causas de todos os seres não são os
mesmos, diversificando-se conforme a diversidade mesma das coisas; mas, em certo
sentido, são as mesmas, segundo sejam tomadas em sua universalidade, quer dizer, as
funções exercidas por todas as causas e princípios, indiscriminadamente. Porém, aqui são
propostas novas analogias, além daquela relativa a forma, privação, matéria e causa
motriz.
Posto que nada pode existir separadamente das essências, é preciso admitir que
sem as essências não poderia haver movimento algum, e portanto, nenhuma espécie de
causalidade teria lugar. Daí o dizer que as essências, sob esta perspectiva - que leva em
conta seu caráter imprescindível no tocante à geração e destruição - são as causas de
todas as coisas.
65
É possível dividir as causas segundo dois modos gerais de ser: aquelas que o são
potencialmente e as que são em efetividade. Neste sentido também as causas são as
mesmas para todas as coisas. O Filósofo, porém, adverte que “estas são também distintas,
e de distintos modos, para coisas distintas” (a)lla\ kaiì tau=ta aÃlla te aÃlloij kaiì
aÃllwj.)(1071a4). Com isto quer introduzir a discussão sobre as diversas causas que, a
despeito de estarem sob a mesma denominação no que diz respeito à potência e à
efetividade, originam os seres de maneiras bem distintas.
Efetividade e potência não são princípios absolutamente distintos dos
investigados até agora; antes, mantêm estreita relação com a forma, a privação e matéria,
além do concreto (su/noloj) constituído de matéria e forma, essência propriamente dita.
A matéria se identifica, de certa forma, com a potência, pois apenas potencialmente a
matéria é alguma coisa determinada, mudando de um para outro contrário de acordo com
o princípio efetivador ao qual se encontra submetido no momento. “A forma é efetiva na
medida em que é separada (xwristo/n) (e)nergei¿# me\n ga\r to\ eiådoj, e)a\n vÅ
xwristo/n.) (1071a7)”: eis uma passagem complicada. Separação da forma não deve,
obviamente, ser entendida à maneira como se entende a separação das Idéias, visto ser
Aristóteles opositor desta teoria. Pressupõe-se, na verdade, o mesmo que no princípio do
capítulo três, isto é, a forma como aquilo para o qual, a causa completiva sendo o mesmo
que a causa formal, porquanto a realização completa de uma essência reside na plena
efetividade de sua forma. Considerada como forma individual relativa à matéria própria
do indivíduo, a forma é a essência mesma, pois, conquanto não exista independentemente
da matéria, como se subsistisse em si mesma, é o princípio mesmo de cognoscibilidade
da essência, pois definir é expressar a forma assumida pela matéria. A matéria não pode
66
ser conhecida, nem mesmo por abstração, pois não possui determinação. A forma, pois, é
efetiva, tal qual a essência, porquanto razão mesma de sua efetividade. A privação
permanece sendo a negação da forma, ausência de uma específica determinação na
essência, somente inteligida a partir de seu contrário, a forma, pois “é como a escuridão e
a doença” (oiâon sko/toj hÄ ka/mnon) (1071a9).
Aristóteles não admite que princípios universais sejam causas no mesmo sentido
em que os indivíduos são causas dos indivíduos. Em Categorias28, lemos que as essências
primeiras, essências em sentido próprio, diz-se daquelas coisas que não se predicam de
nada mais, pois até mesmo as essências segundas, como “homem” e “macaco” podem ser
predicadas de ao menos uma coisa, a saber, as essências primeiras, “este homem
particular e “este macaco particular”. Os indivíduos são, pois, causas com mais
propriedade que os princípios universais, pois são causas de essências primeiras,
enquanto um universal somente pode ser causa de um universal. Por isso escreve assim o
Estagirita: “Peleo é [princípio] de Aquiles, e teu pai de ti, e este B particular deste BA,
mas B em geral de BA em geral” (Phleu\j ¹Axille/wj sou= de\ o( path/r, kaiì todiì
to\ B toudiì tou= BA, oÀlwj de\ to\ B tou= a(plw½j BA.) (1071a22).
Afirmar que as essências são causas de tudo o que existe significa também admitir
os princípios e causas das essências como causas de todas as coisas. Da mesma forma,
porém, o Filósofo nos adverte contra o perigo de interpretar o caráter universal da
causalidade de modo rígido e dogmático. Há o gênero, a espécie e o indivíduo; somente o
último tem existência separada, subsistindo em si mesmo. O princípio de individuação, o
que diversifica a espécie em seres particulares, é a matéria, pois cada essência possui
28 Cat. 2a15
67
matéria diferente de todas as outras. A matéria relativa ao indivíduo mesmo, ao contrário
daquela universal, é, pois, sempre distinta. Tomás de Aquino, em sua obra “O Ente e a
Essência” (1996, 29) denominou esta matéria - a que realmente está concretizada em um
ser - matéria signada, em contraposição à matéria não-signada, produto da abstração,
como quando dizemos “a carne em geral” ou “o bronze em geral”. A matéria, vista sob
este aspecto, já torna bem distinta a significação do dizer que as causas e princípios são
os mesmos para a totalidade dos seres. Aristóteles acentua a irredutibilidade última dos
princípios generativos, mesmo a partir de uma reflexão que não inclua a matéria, a
medida em que as causas de coisas congêneres podem diferir, caso pertençam a espécies
distintas.
Há uma outra maneira segundo a qual se pode contemplar a universalidade das
causas responsáveis pelas diversas transições, desde o movimento espacial até a geração
e destruição das essências. Trata-se da essência que existe plenamente em efetividade, a
primeira de todas, que a todas move e, por isso, é universal. Esta essência, já anunciada
no princípio do capítulo como imóvel e não-sensível (pois nada sensível pode ser imóvel)
será realmente investigada a partir do sexto capítulo. O primeiro motor é universal por ser
a primeira das causas. Este raciocínio não é único dentro da totalidade da Metafísica. No
livro VI, escreve assim o Estagirita:
“Se, pelo contrário, existe uma essência imóvel, esta será anterior, e filosofia
primeira, e será universal deste modo: por ser primeira.” (1026a28)
ei¹ d' eÃsti tij ou)si¿a a)ki¿nhtoj, auÀth prote/ra kaiì filosofi¿a prw¯th, kaiì kaqo/lou ouÀtwj oÀti prw¯th:
68
A essência imóvel, portanto, é um universal de um modo radicalmente diferente
daquele próprio de um gênero ou de qualquer noção geral. É universal não porque
determinação geral de um conjunto de coisas, mas enquanto domina um conjunto de
coisas. É universal porque central. Enquanto a noção de um gênero está presente
universalmente nas espécies, a essência imóvel está presente universalmente em toda a
referência à efetivação de seus móveis. Com tais palavras o Filósofo estabelece de
maneira explícita a conexão mantida entre a ontologia e teologia, isto é, entre a ontologia
geral e a ontologia especial. Torna também complicadas quaisquer tentativas de ver, no
Livro L um trabalho ainda “platônico”, que seria substituído pela fase em que as
essências sensíveis constituiriam o único objeto da filosofia primeira.
Aristóteles nos fornece o que parece uma síntese de todo o capítulo, quando
afirma que, além da matéria relativa às coisas individuais, são diversos ainda os
contrários, com exceção dos genéricos e dos que admitem múltiplos significados. Estes
últimos são, evidentemente, a privação e a forma, visto a multiplicidade de significados
que podem assumir, pois cada coisa possui sua forma e privação próprias. Os contrários
genéricos, quer dizer, os que se dizem universalmente, não devem também ser contados
entre as causas efetivas das essências. As causas efetivas, as responsáveis pelas coisas
particulares, são sempre diferentes pois, ao diferirem as espécies, da mesma forma serão
as causas; justamente por isso, como já vimos mais acima, os contrários genéricos, como
o “o redondo em geral” ou “o reto em geral” não se contam entre as causas efetivas dos
indivíduos.
69
Demonstração da Supra-essência
A classificação estabelecida no princípio do livro L, a qual observava a existência
de três tipos de essências primeiras - quer dizer, três espécies de seres que não se
predicam de nada mais e subsistem em si mesmos -, será retomada no sexto capítulo, pois
se trata agora de investigar a essência imóvel, mesmo para saber se realmente existe.
Deve-se demonstrar a existência de uma essência imóvel, esta já brevemente
aludida no capítulo primeiro do livro agora investigado. Aristóteles já forneceu as razões
da prioridade da essência em relação a todas as outras coisas que dizemos que são, pois
sem a essência não existiriam nem qualidades nem quantidades, dado que estas são
apenas qualidades e movimentos (poio/thtej kaiì kinh/seij) (1069a22). Pois bem, se
devemos às essências a totalidade dos movimentos existentes, é necessário aceitar que
nem todas as essências estão sujeitas à corrupção, caso contrário o movimento em geral
também seria corruptível, isto é, não seria eterno, “mas é impossível que o movimento se
gere ou se corrompa, pois sempre foi assim” (a)ll' a)du/naton ki¿nhsin hÄ gene/sqai
hÄ fqarh=nai (a)eiì ga\r hÅn) (1071b8). A eternidade do movimento não é, porém, uma
mera opinião do Estagirita, certa convicção gratuita, mas é especialmente tratada em
Física, Q. É preciso, por isso, ter em vista as “obras físicas” - não apenas o capítulo oito,
como também G, para não incorrer em mal-entendido ao longo das linhas seguintes,
quando é dito que o tempo “ou é o movimento ou uma passibilidade do movimento” (hÄ
ga\r to\ au)to\ hÄ kinh/sew¯j ti pa/qoj) (1071b10). Com isso não pretende o Filósofo
70
identificar tempo e movimento de modo simples, trivial. O fato é que o tempo não é
perceptível sem alguma forma de movimento, e , como este último, é impensável sem
antes e um depois. Ora, como se afirma mais adiante, o antes e o depois não existem sem
o tempo; são noções, portanto, interdependentes. Por isso, já no livro D da Física,
Aristóteles define o tempo como “o número do movimento segundo o antes e o depois”
(tou=to ga/r e)stin o( xro/noj, a)riqmo\j kinh/sewj kata\ to\ pro/teron kaiì
uÀsteron.) (219b1). No âmbito das discussões levantadas no presente capítulo, contudo,
é imprescindível apreciar com detalhes a demonstração da eternidade do movimento
efetuada no livro Q da Física”.
Aristóteles empreende, no livro Q da Física, a investigação sobre a possível
eternidade do movimento. Duas hipóteses são primeiramente analisadas: a doutrina do
Nous de Anaxágoras e a teoria do Amor e do Ódio de Empédocles. A primeira postula
que todas as coisas encontravam-se, durante um tempo infinito, juntas de maneira
indiferenciável no mais completo repouso. Em certo instante deste tempo infinito de
repouso, todas as coisas sofrem a ação do Nous que, como princípio racional de
movimento, estabelece um termo para o estado de repouso cósmico ao mesmo tempo em
que instaura a diferenciação. É evidente que, segundo tal concepção, o movimento nem
sempre existiu, não sendo eterno no sentido do tempo passado. Uma das objeções de
Aristóteles a esta teoria é o fato de que não é estabelecida a razão pela qual o movimento
originou-se em determinado momento e não em outro qualquer. Esta lacuna é intolerável
para Aristóteles pois torna toda teoria isenta de necessidade, fundamental para o discurso
científico, que versa sobre coisas que são por natureza, isto é “tem um modo de ser
simples e não é agora de uma maneira e logo de outra (como o fogo, que é levado
71
naturalmente para cima, e não às vezes sim e às vezes não), ou há um enunciado para
sua não simplicidade ” (kaiì ou)x o(te\ me\n ouÀtwj o(te\ d' aÃllwj, oiâon to\ pu=r aÃnw
fu/sei fe/retai kaiì ou)x o(te\ me\n o(te\ d' ouÃ: hÄ lo/gon eÃxei to\ mh\ a(plou=n)
(252a18). Quanto à doutrina de Empédocles - segundo a qual o universo alterna eras de
repouso e de movimento em virtude das forças do amor e do ódio, responsáveis pela
união e separação dos elementos, respectivamente - Aristóteles considera, pelos
argumentos que apresentaremos a seguir, “mais parecida com uma mera ficção” (kaiì
ga\r eÃoike to\ ouÀtw le/gein pla/smati ma=llon.) (252a5).
Aristóteles faz uso da alternância cronológica da potencialidade sobre a
efetividade para provar a impossibilidade de um momento primeiro coincidente com a
geração do movimento. Pois, para que cada espécie de movimento ocorra é necessário,
previamente, que exista algo que possa mover-se segundo uma das espécies de
movimento, já que o movimento, enquanto “plenitude (e)ntele/xeia) do móvel enquanto
móvel” (202a9), só pode existir juntamente com a existência do móvel. Isto significa que
sempre haverá, anteriormente a uma efetivação cinética, uma prévia existência de algo
potencialmente móvel e cuja potencialidade corresponda àquela efetividade. Por outro
lado, todo ente potencial pressupõe algum ente efetivo que primeiramente o condicionou
segundo tal espécie de potência. Antes do homem há o menino, mas antes do menino, há
outro homem. Sendo assim, supor que o movimento nem sempre existiu, mas que foi
gerado em determinado momento, significa admitir que antes deste momento todas as
coisas estavam potencialmente em movimento, mas efetivamente em repouso. Mas o
repouso é a privação do movimento e a potencialidade para o movimento, que não seria
possível sem a existência de um movimento anterior ao repouso que seja a causa de sua
72
existência. Ora, é evidente então que a suposição de que o movimento foi gerado implica
na existência de um movimento anterior ao movimento. Existe, pois, uma contradição
interna nesta tese.
A segunda prova, praticamente idêntica à primeira, leva em conta os elementos
inseparáveis da própria concepção de movimento, a coisa que move (motor) e a coisa
movida. Para que estes dois elementos possam realizar o movimento – que é a plenitude
(e)ntele/xeia) do móvel enquanto móvel – devem manter certo tipo de relação. É
necessário que mantenham certa disposição e uma devida aproximação entre si. A
disposição consiste na possibilidade de uma das coisas mover a outra. A aproximação
adequada é indispensável para que o movimento realmente ocorra, pois, sem que a
direção e o sentido do motor estejam voltados para o móvel, este não receberá o
movimento transmitido em efetividade pelo motor. Ou seja, não existindo relação
apropriada entre os elementos responsáveis pelo movimento, este não ocorrerá, ainda que
não seja contrário à natureza de cada um dos elementos, tomados separadamente.
Admitido o raciocínio acima como verdadeiro, é forçoso negar a possibilidade de um
período remoto em que não houve movimento, pois neste caso as condições para que este
ocorra não poderiam estar presentes, mas ao menos algo deve ter se movido e transmitido
o movimento a outra coisa, perfazendo a relação motor-movido, caso contrário aquele
período de repouso absoluto jamais teria terminado. Da mesma forma como no primeiro
argumento, existirá um movimento anterior ao suposto começo do movimento em geral.
A mesma contradição interna ocorre, no entendimento de Aristóteles, para qualquer tipo
de transição. Ocorre, por exemplo, “no caso dos relativos; por exemplo, se uma coisa é o
73
dobro que outra, mas antes não era, então teriam que ter mudado uma ou outra, senão
ambas. Logo haverá uma transição anterior a primeira.”
Aristóteles prossegue em suas demonstrações da infinitude do processo cósmico
do movimento. Desta vez fundamenta-se na existência de tempo e de sua conexão
necessária com o movimento. A existência do tempo é evidente por si mesma, bastando,
para simples reminiscência, atentar para a nossa percepção mais espontânea do fluxo em
geral. “Ademais, escreve o Filósofo, como poderia haver um ‘antes’ e um ‘depois’ se não
existisse o tempo?” (pro\j de\ tou/toij to\ pro/teron kaiì uÀsteron pw½j eÃstai
xro/nou mh\ oÃntoj;)(251b12). Este fato, juntamente com a definição fornecida no livro
D da Física, que formula o tempo como o “número do movimento” (220a25), e a
premissa de que o tempo é eterno, permite a conclusão de que também o movimento é
eterno. A relação existente entre o tempo e o movimento, que permite a dedução da
propriedade de um a partir do reconhecimento da mesma propriedade em outro, deve-se a
própria definição o tempo, que somente é possível em virtude da mensurabilidade do
movimento. No livro G Aristóteles afirma que o numerável (neste caso, o movimento) é
numerado por algo congênere. O exemplo fornecido, de um conjunto de cavalos
numerado por um cavalo, já fornece um esclarecimento do significado desta afirmação:
para numerar um conjunto, precisamos possuir, primeiramente o conceito em que se
compreende cada um dos elementos deste conjunto e tomar este conceito como unidade
de medida. Sendo assim, apesar de um cavalo ser diferente de dez cavalos, possui a
mesma natureza que cada um deles. Se, com o tempo e o movimento ocorre a mesma
relação, determinada propriedade do tempo implica a existência da mesma propriedade
no movimento, como por exemplo, a eternidade.
74
Em sua Física, Aristóteles demonstra então a razão da eternidade do tempo, que
no argumento fornecido no capítulo seis da Metafísica foi meramente assumida como
verdadeira. O Filósofo faz uso da noção de agora (nu=n), já que este possui o privilégio de
ser indispensável para a nossa percepção de temporalidade, pois “o tempo não pode
existir nem ser passível de intelecção sem o agora” (ei¹ ouÅn a)du/nato/n e)stin kaiì
eiånai kaiì noh=sai xro/non aÃneu tou= nu=n) (251b20) . E como em todo agora há o
antes e o depois, não há como negar que o tempo seja eterno, visto que isto significaria
atingir um agora sem um antes - pela tese da geração do tempo - ou sem um depois, se
admitimos que o tempo será destruído.
O movimento é eterno. Contudo, nem todos os movimentos podem ser eternos,
mas somente o movimento local ; deste, porém, conforme se demonstrou nos capítulos
sete, oito e nove do livro Q da Física, somente o movimento local circular. Os
movimentos circulares, efetuados especialmente pelos astros, são os mantenedores do
movimento em geral, todos os outros, ao contrário, tendo um princípio e um fim e não
sendo, portanto, eternos.
Aristóteles não promove, no entanto, um aprofundamento da conexão existente
entre o movimento circular e a essência imóvel eterna. Isto será efetuado no oitavo
capítulo. A partir do passo 1071b15, o que busca é investigar a natureza mesma da
essência imóvel, tendo como pressuposto a primazia da efetividade em relação à potência.
O primeiro motor, isto é, a essência imóvel, tem que ser em efetividade, “pois o ente
potencial pode não ser” (e)nde/xetai ga\r to\ duna/mei oÄn mh\ eiånai.) (1071b19). Por
isso o Filósofo rejeita novamente a teoria das Formas, pois estes entes separados não
possuem um princípio efetivamente capaz de produzir movimento. Esta rejeição, no
75
entanto, não tem como alvo apenas as Idéias ou Formas platônicas, mas todo e qualquer
ser cuja natureza, mesmo sendo em efetividade, implique em algum tipo de potência, pois
esta tornaria impossível a continuidade eterna do movimento. Não há outra maneira de
conceber o primeiro motor senão como uma essência que é a efetividade mesma, ou seja,
efetividade pura e absolutamente livre de potencialidade. Esta é a conclusão de
Aristóteles, que o força a dissociar o primeiro motor e a matéria, porquanto esta é sempre
matéria para algum movimento, sendo este, sempre, a efetividade de alguma espécie de
potência. As essências imóveis são, portanto, efetividades puras e imateriais pois “se há
algo de eterno, tem de ser estas” (1071b21).
Como é freqüente no pensamento do Estagirita, devemos distinguir duas
perspectivas, uma das quais validando sentença contrária à outra. “Que a potência é
anterior à efetividade, é razoável em um sentido, e em outro não, como já dissemos” (to\
me\n dh\ du/namin oiãesqai e)nergei¿aj pro/teron eÃsti me\n w¨j kalw½j eÃsti d' w¨j
ouà (eiãrhtai de\ pw½j) (1072a3). Não concordamos com a interpretação oferecida por
Giovanni Reale29, sobre tal modo de considerar as coisas, referido pelo Filósofo, que
torna válida a convicção de que a potência é anterior à efetividade. Em linhas gerais, seu
raciocínio consiste no seguinte. Verificamos a primazia da potência em sentido bem
limitado, quer dizer, aquele relativo aos indivíduos considerados meramente como
indivíduos. Por exemplo, Sócrates, em sua individualidade, já existia em potência bem
antes de ser em efetividade. Por isso a potência é anterior à efetividade: o que dizemos de
Sócrates também pode ser dito de todos os outros indivíduos. Reale observa também que,
mesmo sob tal perspectiva limitada à temporalidade, a efetividade é primeira, na medida
29 Reale, 1978, pág. 279.
76
em que introduzimos na reflexão o pai de Sócrates, que deve existir em efetividade para o
gerar. Esta é uma solução tipicamente aristotélica, e encontramos um melhor
aprofundamento da questão em Metafísica, Q, se bem que ainda recorrente no capítulo
sétimo do próprio livro L. Mas o fato é que, neste momento específico do texto, quando
o Filósofo procura demonstrar a existência da essência imóvel, é desnecessário e
insuficiente apelar para este aspecto da doutrina da efetividade e da potência. Voltemos
para as linhas em que Aristóteles se decide em favor de uma das duas alternativas:
“De outro lado, surge uma aporia: parece, de fato, que tudo quanto existe
em efetividade pressupõe a potência e que, ao contrário, nem tudo o que é em
potência passa à efetividade; portanto, de tal modo, a potência seria anterior à
efetividade. Mas, se fosse assim, não existiria nenhum dos seres: é possível, de
fato, que aquilo que seja em potência não passe ao ser.” (1071b24).
kai¿toi a)pori¿a: dokeiÍ ga\r to\ me\n e)nergou=n pa=n du/nasqai to\ de\ duna/menon ou) pa=n e)nergeiÍn, wÐste pro/teron eiånai th\n du/namin. a)lla\ mh\n ei¹ tou=to, ou)qe\n eÃstai tw½n oÃntwn: e)nde/xetai ga\r du/nasqai me\n eiånai mh/pw d' eiånai.
Consideremos o silogismo alvo da refutação do Estagirita. As premissas “tudo o
que existe em efetividade pressupõe potência” (1071b25) e “nem tudo o que é em
potência passa à efetividade” (1071b26) implicariam em “a potência é anterior à
efetividade” (1071b27). A segunda premissa é admitida como verdadeira por Aristóteles
quando, em seguida, afirma que “é possível, de fato, que aquilo que é em potência não
passe à efetividade” (1071b29). Isto já comprova que Reale falha ao afirmar que
Aristóteles contrapõe este modo de pensar a causalidade àquele em que o retrocesso no
tempo é ainda maior, levando a admitir como causa de um indivíduo não mais seu estado
77
potencial anterior, mas outro indivíduo existente em efetividade. “Se fosse assim, não
existiria nenhuma das coisas que são” (1071b28); mas a existência dos seres é uma
verdade patente aos sentidos, não cabendo duvidar de algo tão óbvio. Mas é exatamente a
isso que seriam obrigados a admitir os que postulam a anterioridade da potência. Contudo,
o silogismo efetuado por esses defensores da “noite e mistura” originárias, não é
formalmente atacado por Aristóteles. A falha, portanto, consiste em afirmar que tudo o
que existe em efetividade pressupõe potência. É fácil perceber, especialmente no presente
contexto do capítulo seis, o porquê da falha. É que existe ao menos uma espécie de
essência que, existindo em efetividade, não pressupõe potência, pois é efetividade pura: a
essência imóvel, primeiro motor de todos os seres, enquanto causa originária do
movimento em geral. A necessidade efetiva desta essência torna existente toda a série dos
possíveis potenciais, que, de outro modo, permaneceriam para sempre apenas possíveis.
Sabe-se, assim, a que momento de sua investigação Aristóteles se refere quando escreve,
relativamente ao sentido em que é inverídico o afirmar - como modo de dizer que algo é -
que a potência é anterior à efetividade : “Ora, aceitar que a potência é anterior à
efetividade, em um sentido, é verdadeiro, como já se disse” (1072a2).
Ora, o “já dito” correspondente à refutação desenvolvida no passo 1071b24,
refere-se às essências imateriais, às quais o Filósofo acabara de conferir a eternidade
como característica exclusiva dentre as essências universais.
Assim Aristóteles estabeleceu o primado da essência sobre todas as coisas que são,
pois aquela que rege todas as outras - tornando o universo “como um todo”, é uma
essência; da mesma forma vemos que, antes da potência, há a efetividade, pois a primeira
das essências é efetividade pura.
78
Natureza da Supra-essência O sétimo capítulo é um aprofundamento da investigação acerca da natureza do
princípio a que estão condicionadas todas as coisas. O movimento circular é, como vimos,
o primeiro dos movimentos locais, pois é o único capaz de ser eternamente. E isto,
escreve em seguida, é evidente não apenas para o raciocínio, mas em virtude da própria
experiência: o movimento dos astros no espaço é nitidamente circular. A conclusão de
que, sendo assim. o primeiro céu é eterno, mostra que o Filósofo, apesar de ter em vista a
totalidade dos movimentos circulares, aponta principalmente para o primeiro céu. De fato,
o primeiro céu é eterno justamente porque atua segundo um movimento eterno, sendo
esta a única possibilidade de transição a que está passível, a geração e destruição, por
exemplo, não existindo nos seres supralunares.
Tudo aquilo que move e é movido não é o termo último de nenhuma espécie de
série, pois implica na existência de um ser anterior que o move. Portanto, mesmo sendo o
primeiro dos movimentos, deve haver algo além do deslocamento circular, que o mova
sem, contudo, mover a si mesmo. Este é o primeiro motor, a essência eterna e plenamente
efetiva.
A tábua dos opostos, aplicada ao problema da essência imóvel, é o que
encontramos nas linhas seguintes. Em Metafísica I,5 e G,2 a tábua também aparece.
Trata-se de duas colunas correspondentes, uma das quais composta de todos os gêneros
de coisas inteligíveis por si mesmas, a outra composta de gêneros somente inteligíveis a
partir dos elementos correspondentes da primeira coluna. Esta última, também
79
denominada positiva, é a coluna do ser. A segunda coluna é constituída da negação de
cada um dos elementos da primeira, sendo, por isso, denominada coluna do não-ser; por
exemplo, a saúde, inteligível por si mesma, tem como negação a doença, esta somente
compreendida tendo em vista a saúde, a qual é concebida como ausente. O topo da coluna
positiva é a essência, pois esta é a primeira das coisas que são; entre as essências, a
primeira é a que “é simples e efetiva” (kaiì tau/thj h( ou)si¿a prw¯th, kaiì tau/thj h(
a(plh= kaiì kat' e)ne/rgeian) (1072a32), ou seja, a essência imóvel. O maximamente
inteligível é, pois, algo em si e por si mesmo existente, por ser uma essência. Da coluna
dos inteligíveis por si mesmos faz parte o belo e bom, pois não são compreendidos a
partir da negação de coisa alguma. Se o belo é inteligível por si, o maximamente belo e
bom e o maximamente inteligível coincidem no topo da coluna, ocupado pela essência
imóvel. O maximamente inteligível deve, necessariamente, ser belo e bom em grau
máximo.
Existe o “para o qual”, o propósito no primeiro motor. Em que sentido podemos
afirmar isso, é o que Aristóteles procura determinar. Duas distinções cabem aqui,
relativamente à significação da palavra propósito: a) aquilo para o bem do qual algo é
feito e b) o escopo mesmo de qualquer coisa. Este último significado é próprio da
essência imaterial, porque move todas as coisas enquanto objeto maximamente desejável.
Nisto reside a diferença entre o primeiro motor e os outros motores. É que a essência
imóvel move sem se mover, pois não há necessidade alguma de modificação no objeto
amado, para que este possa atrair o amante; a atração se dá simplesmente porque o objeto
amado é, e enquanto é, ou seja, porque possui determinada perfeição. O movimento
assim provocado é, pois, movimento em virtude do desejado somente enquanto desejado,
80
em que nenhuma forma de contato se faz necessária. Veremos ainda que, no caso do
objeto amado possuir a perfeição máxima, tal contato não é apenas desnecessário, mas
também impossível.
Na verdade, Aristóteles concebeu o universo como um grande sistema hierárquico,
em seus variados graus de perfeição, conforme cada um dos seres pode manifestar.
Quanto menos se modifica um determinado ser, mais perfeita é esta modificação. A
transição relativa à qualidade, por exemplo, é mais perfeita que a transição relativa à
essência, pois identificamos o ser e sua essência com mais propriedade do que
identificamos o ser e uma de suas qualidades; ora, se a transição relativa à qualidade
representa uma modificação menor para o ser em questão do que aquela relativa à
essência, então é uma forma de movimento mais perfeita que esta última. Por esta razão o
movimento local é o mais perfeito que há, pois é a menor modificação possível nos seres
sensíveis. Há também uma razão de ordem biológica para a convicção aristotélica da
primazia do movimento local. Em sua Física, verificamos com detalhes este aspecto de
sua doutrina do movimento:
“Em geral, o que se está gerando parece incompleto e a caminho de um princípio,
de tal maneira que o que é posterior na geração parece ser anterior por natureza.
Ora, o movimento local é o último dos movimentos das coisas que estão em
geração; por isso alguns seres viventes, como as plantas e muitas espécies
animais, são inteiramente imóveis por carecer do órgão requerido, enquanto
outros adquirem o movimento quando aperfeiçoados. Por conseguinte, se o
movimento local pertence sobretudo àquelas coisas receberam mais da natureza,
então este movimento também será anterior relativamente à essência.” (261a15)
oÀlwj te fai¿netai to\ gigno/menon a)tele\j kaiì e)p' a)rxh\n i¹o/n, wÐste to\ tv= gene/sei uÀsteron tv= fu/sei pro/teron eiånai. teleutaiÍon de\ fora\
81
pa=sin u(pa/rxei toiÍj e)n gene/sei. dio\ ta\ me\n oÀlwj a)ki¿nhta tw½n zw¯ntwn di' eÃndeian [tou= o)rga/nou], oiâon ta\ futa\ kaiì polla\ ge/nh tw½n z%¯wn, toiÍj de\ teleioume/noij u(pa/rxei. wÐst' ei¹ ma=llon u(pa/rxei fora\ toiÍj ma=llon a)peilhfo/sin th\n fu/sin, kaiì h( ki¿nhsij auÀth prw¯th tw½n aÃllwn aÄn eiãh kat' ou)si¿an
Isto é, a geração está para o deslocamento assim como assim como “o que se está
gerando” está para “o que é posterior na geração”. Com tal analogia, pretende o Filósofo
mostrar que o movimento local e as coisas posteriores na geração - segundo e quarto
elementos da proporção - são mais perfeitos que a geração e as coisas cuja geração ainda
é incompleta, até porque se manifestam mais tardiamente nos seres, quando a realização
dos respectivos fins é mais eminente, pois “receberam mais da natureza”. As linhas
seguintes do trecho destacado acima são análogos àquele do capítulo sétimo agora
investigado, quanto mais por levar em conta a imutabilidade da essência do móvel no
movimento puramente local, ao contrário do que se verificam nos demais tipos de
movimento.
O movimento local é o mais perfeito de todos, e aquele no decurso do qual o
móvel menos se afasta do que era anteriormente. Contudo, não é próprio das coisas
capazes de permanecer eternamente o que são, pois tudo o que se move, pode ser ainda
diverso daquilo que é. Há uma outra essência, capaz de produzir movimento sem manter
contato algum com a coisa movida. Quanto à questão de se a primeira essência é causa
eficiente ou completiva, afirmamos o mesmo que David Ross30 , quando habilmente
responde que o primeiro motor é causa eficiente somente porque é causa completiva, e de
nenhum outro modo. De fato, a essência imóvel não poderia deixar de ser eficiente, pois é
justamente este um dos principais aspectos que a torna uma solução mais satisfatória que
82
a teoria das Idéias. Não esqueçamos de que, no passo 1071b15 do sexto capítulo,
Aristóteles julga insuficiente a introdução de essências eternas, como as Formas, se estas
não possuem “um princípio capaz de produzir transição”. Contudo, a essência imóvel é
causa eficiente apenas em virtude de atrair todas as coisas, da mesma forma que um
“objeto de desejo” atrai para si o “sujeito desejoso”. O “desejo” pelo primeiro motor nada
mais é que o desejo pela perfeição da efetividade pura, que as outras essências não
logram alcançar devido à materialidade imanente. O máximo de perfeição que podem
atingir é a efetividade do movimento circular. Sendo local, este movimento é o que
menos corrompe o móvel; a circularidade, por outro lado, garante a eternidade do
movimento. Os corpos celestes são, como se vê, as essências que mais se assemelham à
efetividade pura do motor imóvel, mas “apontam” para algo além de si mesmos, algo
ainda mais perfeito, pelo simples fato de não serem suficientes, por si mesmos, para
explicar a eternidade de seu próprio movimento.
Há muita discussão a respeito do passo 1072b10, em que Aristóteles afirma que o
motor imóvel é necessário e ,logo a seguir, distingue três maneiras de dizer que algo é
necessário: “De fato, o ‘necessário’ tem os seguintes significados: a) aquilo que se faz
por força e contra a inclinação, (to\ me\n bi¿# oÀti para\ th\n o(rmh/n) b) aquilo sem o
qual não existe o bem (to\ de\ ou ou)k aÃneu to\ euÅ,) e c) aquilo que não pode
absolutamente ser diferente do que é.” (to\ de\ mh\ e)ndexo/menon aÃllwj a)ll'
a(plw½j). Ross31 descarta a possibilidade de que os motores imóveis sejam necessários
tanto no primeiro como no segundo sentido. Apoia-se, para isso, em D,5. Mas nesta
30 Ross, 1981, p.186. 31 Ross, 1981, p.378.
83
passagem o Filósofo descarta apenas o primeiro sentido, ao negar que haja algo de
violento ou antinatural nas realidades imóveis. A solução encontrada por Ross não é,
além disso, satisfatória. Permanece incompreensível o porquê de Aristóteles escrever que
o primeiro motor existe como bem, porque existe necessariamente, e que deste modo é
princípio. Ross tomou como base um capítulo que servirá, da mesma forma, para
esclarecer a questão, ao menos o quanto o texto nos permite. É certo que o sentido
fundamental de necessário é aquele que define o que não pode ser diferente do que é. As
outras duas maneiras de dizer que algo é necessário derivam da primeira, como quando as
condições primordiais da vida são ditas necessárias, pois a vida não pode se manter de
outra maneira, o que dá a idéia de algo que não pode ser diferente do que é. Da mesma
forma é necessário que alguém aja de tal maneira se foi forçado a isso, pois a ação não
poderia ter outro desfecho. De tudo o que não pode ser diferente do que é, ou seja, o
necessário em sentido absoluto, são-nos indicadas duas coisas: 1) as demonstrações, pois,
uma vez postas as premissas, a conclusão só pode ser uma, e 2) as realidades imóveis,
porquanto possuem apenas um modo de ser. A resposta, agora, quase que surge por si
mesma: assim como aquilo sem o que não se dá o bem de algo (segundo significado de
acordo com a ordem estabelecida em L,7), dizemos que são necessárias apenas em
virtude do significado primeiro de necessário - próprio do que não pode ser diferente do
que é - da mesma forma falamos do bem produzido pelas realidades imóveis como um
dos casos de significação de necessário, aplicado principalmente à realidade imóvel,
posto que esta não pode ser diferente do que é. O caso do bem necessário das realidades
imóveis é diferente, contudo, do bem necessário relativo à vida, por exemplo. Neste
último há apenas uma relação analógica entre o sentido fundamental de necessário e o
84
meramente concomitante: o essencial à vida é necessário somente porque a vida não pode
ter outro modo de ser que prescinda do que lhe é essencial - respirar, por exemplo; mas
nenhum dos termos da relação, tomados isoladamente, é imutável, porquanto o que é vivo
pode morrer, e a respiração, cessar. O bem produzido pela realidade imóvel, porque se
faz em virtude da natureza imutável de tal essência, é necessário no mesmo sentido
fundamental que tal essência como um todo. Com efeito, a essência imóvel é efetividade
pura, não podendo ser diferente do que é, e o mesmo, portanto, é o bem indissociável que
produz em todos os seres, pois “desta forma é princípio” (kaiì ouÀtwj a)rxh) (1072b12),
princípio do movimento, sem o qual não existe o bem nas coisas sensíveis.
Ao longo das linhas seguintes, nos deparamos com uma espécie de hino
(adotando aqui a mesma expressão de Reale) que preconiza a natureza impassível da
essência perfeita, que prescinde do movimento para ser. O homem, ao contrário, alterna
incessantemente vários modos de ser, não sendo capaz de permanecer para sempre no
mesmo estado. Muda não somente por passar de uma espécie de efetividade a outra -
porquanto não é uma essência simples - mas também pela incapacidade de ser
unicamente em efetividade, constituído que é de matéria. O princípio imóvel de que
“dependem o céu e a natureza” não passa a uma espécie de efetividade diferente da que
sempre mantém, pois é uma efetividade simples, efetividade de uma essência simples. Da
mesma forma não há obstáculo à eternidade da efetividade simples, em virtude de ser
efetividade pura, quer dizer, absolutamente livre de matéria. A efetividade é fonte de
prazer. Por isso devemos considerar o modo de vida do motor primeiro o mais excelente
e prazeroso de todos, livre que é de tudo o que conduz à fadiga ou à dor, enquanto
potência. Mesmo o prazer que sentimos com lembranças e esperanças, que mais
85
próximos estão da inatividade, somente existe em virtude destes estados da alma estarem
diretamente vinculados aos estados da “vigília, sensação e inteligência”, que existem em
efetividade.
Aristóteles entende que não há outra efetividade absolutamente simples e pura,
senão a efetividade da inteligência que atinge a inteligência, inteligência de si mesma. Na
medida em que a inteligência é o objeto mais inteligível e excelente que há, a auto-
intelecção é o máximo de perfeição atingida pelo que de mais perfeito e divino
conhecemos, a própria inteligência. Esta efetividade, o Filósofo identifica com a
realidade imutável, porquanto a única digna de tão divina essência.
Determinada maneira de pensar a natureza dos princípios não é compatível com a
contemplação da suprema beleza e bondade da essência imóvel. Trata-se de Espeusipo e
dos Pitagóricos. Sustentam estes que a beleza e perfeição promanam dos princípios, mas
não são os princípios mesmos. Da simples observação da natureza obteríamos tal certeza,
dado que as coisas precisam de tempo para concluir sua formação. Aceitar este raciocínio
seria, contudo, negar os fundamentos de sua própria teoria do movimento em geral. Por
isso, Aristóteles investe firmemente contra esta doutrina. A refutação não é, como
facilmente se crê, simplesmente apoiada na essência sensível, quando o Estagirita afirma
que “não é o homem que provém do sêmen, mas este daquele provém” (1073a1) Se esta
fosse apenas uma observação empírica, a teoria dos Pitagóricos e de Espeusipo não
estaria, de forma alguma, superada, mas apenas confrontada com uma interpretação
inversa a respeito dos mesmos fatos naturais. O que o Filósofo pretende com tal inversão
é a consideração de uma perspectiva da causalidade além da simples temporalidade do
vir-a-ser das essências. Trata-se da causa completiva, aquilo para o qual, que, já no passo
86
1070a do terceiro capítulo, é identificada com a forma. Pois aquilo a que todo ser tende é
sua própria forma, ao termo da qual atinge sua completude (télos). Esta, porém, de certa
forma já existe, enquanto aquilo a que tende o ser, ou seja, enquanto causa completiva. A
anterioridade da completude e beleza é de ordem atemporal, mesmo quanto aos seres que
não prescindem da duração para se realizarem. Por isso, "antes da semente há o homem”
(1073a1). Pois o homem é a razão mesma do processo de geração, reprodução e morte.
Assim, não deve ser visto como um absurdo que o princípio supremo de todas as coisas
seja, da mesma forma, bondade e beleza, visto que mesmo nas essências mutáveis a
perfeição é causa e princípio.
Resulta, assim, como conclusão do capítulo, que o motor imóvel não possui
grandeza. Toda grandeza é finita ou infinita. Ora, uma grandeza infinita não é possível e
o infinito em geral só pode ser potencial, conforme se demonstrou em Física, G. Isto
afasta a possibilidade de que a essência imóvel seja infinita, já que neste caso o infinito
seria efetivo. Por outro lado, a natureza desta essência é incompatível com uma grandeza
finita, dado o movimento infinito que produz (L 1073a6). Resta, portanto, a
inaplicabilidade do ser da grandeza ao ser do motor imóvel.
87
Hierarquia de Supra-essências
O oitavo capítulo é dedicado à investigação acerca do número de motores imóveis.
Certos estudiosos, entre os quais Werner Jaeger32, apostavam na redação tardia de boa
parte deste capítulo, bem diferente do período representado pelos capítulos anteriores, em
que sequer é feita referência a uma pluralidade de essências divinas. Sabemos que há
sérias evidências textuais que enfraquecem este ponto de vista, particularmente o passo
1071b20, do sexto capítulo, quando Aristóteles afirma que as essências imóveis são
imateriais, o que torna claro que, desde o princípio da segunda metade do livro L -
dedicada ao estudo da essência imóvel - já se admite que pode haver mais de uma destas
essências divinas.
A teoria das Idéias é criticada novamente, desta vez por não prever o número de
princípios supremos de que todas as coisas participariam, quer dizer, seus defensores
simplesmente não revelam o número exato das Idéias. Mesmo no tocante à quantidade
dos números, que esses pensadores identificam com as Idéias, não há uma devida
delimitação, já que alguns crêem na infinidade dos números “ideais”, outros reduzem-nos
à décade.
Além do movimento do Todo, existem outros movimentos circulares, e não há
razão para pensar que não sejam eternos. Sendo assim, devemos admitir a existência de
motores imóveis responsáveis pela manutenção de tais movimentos, a medida em que são
“desejados” pelos corpos celestes que, deste modo, se movimentam. Estes motores
imóveis, assim como o motor imóvel do primeiro céu, não são outros princípios que não
88
essências. Aquilo que é anterior a uma essência é uma essência. Os motores são
anteriores às coisas movidas, o que torna verdadeiro o dizer que os motores imóveis são
anteriores aos corpos celestes. Ora, os corpos celestes são essências. Logo, os motores
imóveis são essências.
A ciência que mais se aproxima do estudo destas essências, ainda que estas não
sejam seu objeto, é a astronomia. Pois a esta compete a investigação acerca das essências
que se movem circularmente no céu, os corpos celestes. E as essências imóveis de que
tratamos agora devem ser buscadas a partir de um conhecimento preciso destes
movimentos, justamente os que são produzidos a partir da atração pela efetividade pura.
Os corpos celestes, contudo, não possuem apenas um movimento, mas efetuam diversos
tipos de translações. Deve-se determinar o número destes movimentos, pois este será
igualmente o número de essências imóveis. O Filósofo admite a necessidade de
posicionar a questão nos alicerces já construídos por outros estudiosos dos astros.
Restringe-se, contudo, a Eudoxo e Calipo. Este último, como veremos mais adiante,
fornece um esquema astronômico mais complexo que o de Eudoxo.
As esferas são essências intermediárias entre os corpos celestes, já conhecidos, e
os motores imóveis. Seus movimentos circulares é que produzem as translações dos
planetas e estrelas. Cada esfera é responsável por apenas um dos diversos movimentos
realizados pelos astros. E para cada esfera, há somente um motor imóvel, o que explica a
convicção de que o número de movimentos é equivalente ao número de essências
imóveis. O fato é que Eudoxo postula a existência de três esferas para o Sol e para a Lua,
respectivamente. Combinadas, as rotações destas esferas produzem os variados
deslocamentos destes corpos. Estes deslocamentos são, aparentemente, irregulares, mas
32 Jaeger, 1960, p.397.
89
compreensíveis com a introdução das esferas. Os outros planetas compartilham ao menos
duas esferas com o Sol e a Lua: a esfera dos Fixos, e aquela imediatamente inferior, em
cuja circunferência estão os pólos da terceira esfera de cada planeta. Cada “terceira
esfera” possui seu próprio pólo, exceto as esferas de Vênus e Mercúrio, cujos pólos
coincidem. A quarta esfera, por sua vez, tem lugar de modo oblíquo em relação ao centro
da terceira esfera. A estrutura astronômica de Calipo seria a mesma de Eudoxo, se não
fosse o acréscimo de duas esferas para o Sol e a Lua, uma para cada planeta. Aristóteles
torna ainda mais complexo todo este esquema, a medida em que introduz, para cada
esfera, uma outra contrária, espécie de duplo que, movendo-se em sentido inverso,
devolveria a mesma posição à esfera mais próxima de cada planeta. A razão do número
quarenta e sete, em lugar de cinqüenta e cinco, para a quantidade de esferas, é até hoje
desconhecida. Descarta-se a possibilidade de outros motores imóveis além dos já
numerados. Com efeito, afirma o Filósofo, “a completude de todos os deslocamentos é
algum dos corpos divinos que se movem no céu” (te/loj eÃstai pa/shj fora=j tw½n
ferome/nwn ti qei¿wn swma/twn kata\ to\n ou)rano/n) (1074a30). E a conclusão a
respeito do número destes corpos deve ser verdadeira, não somente por estar de acordo
com a observação, mas também porque a convicção na existência de outras essências
levaria a um processo de investigação sem perspectiva de completude, o que não é, de
forma alguma, satisfatório.
Jaeger33 acreditava que em Metafísica 1074a30 Aristóteles refuta a tese de que há
um gênero “motor imóvel” que se especifica em vários seres. “Quer dizer, esta suma
33 Jaeger, 1960, p.403.
90
forma não é um gênero que se manifeste em uma pluralidade de exemplares”. O passo em
questão é o seguinte:
“É evidente que o céu é um só. De fato, se existissem muitos céus, como
existem muitos homens, então o princípio de cada céu deveria ser um só quanto à
forma, mas múltiplo quanto ao número. Mas todas as coisas que são múltiplas
quanto ao número têm matéria: de fato, a forma de uma multiplicidade é única
como, por exemplo, a forma do homem, enquanto Sócrates e Cálias o são quanto
ao número. Ora, o ser-prévio e o primeiro não tem matéria. Portanto, o motor
primeiro e imóvel é um tanto pela forma como pelo número e, por isso, também é
um aquilo que por ele é movido sempre e ininterruptamente. Concluindo, o céu é
um e único.” (1074a31)
oÀti de\ eiâj ou)rano/j, fanero/n. ei¹ ga\r plei¿ouj ou)ranoiì wÐsper aÃnqrwpoi, eÃstai eiãdei mi¿a h( periì eÀkaston a)rxh/, a)riqm%½ de/ ge pollai¿. a)ll' oÀsa a)riqm%½ polla/, uÀlhn eÃxei (eiâj ga\r lo/goj kaiì o( au)to\j pollw½n, oiâon a)nqrw¯pou, Swkra/thj de\ eiâjŸ: to\ de\ ti¿ hÅn eiånai ou)k eÃxei uÀlhn to\ prw½ton: e)ntele/xeia ga/r. eÁn aÃra kaiì lo/g% kaiì a)riqm%½ to\ prw½ton kinou=n a)ki¿nhton oÃn: kaiì to\ kinou/menon aÃra a)eiì kaiì sunexw½j: eiâj aÃra ou)rano\j mo/noj.
Sem adentrar aqui nos pormenores desta difícil passagem, cujo alcance doutrinal
somente poderá ser esclarecido satisfatoriamente no último capítulo deste trabalho, pode-
se, no entanto, afirmar que a tese realmente combatida por Aristóteles não é a da
impossibilidade de vários motores imóveis. Na verdade, o Filósofo procura demonstrar
que há apenas um primeiro motor imóvel, ou seja, um motor imóvel da esfera das estrelas
fixas, o céu. Trata-se de estabelecer apenas uma esfera não-inscrita, isto é, apenas uma
esfera que não é envolvida por nenhuma outra e, assim, somente um motor imóvel
totalmente universal. Se admitíssemos mais de uma esfera não-inscrita, teríamos de
admitir também outras causas últimas absolutas, e assim ad infinitum, algo sempre
91
combatido por Aristóteles, até o último enunciado do livro L, citação de Homero em prol
da unicidade do princípio governante:
“Mas as coisas não querem ser mal governadas: o governo de muitos não é bom.
Um só seja o governante.” (1076a3)
ta\ de\ oÃnta ou) bou/letai politeu/esqai kakw½j. "ou)k a)gaqo\n polukoirani¿h: eiâj koi¿ranoj eÃstw."
É por isso que o Filósofo precisa admitir também, simultaneamente, a existência
de apenas um céu. Esta implicação mútua entre o céu e o primeiro motor imóvel torna
evidente que, apesar de não haver individuação material nos motores imóveis, há
individuação formal, e esta é garantida pelo fato de que cada motor imóvel é um motor
relativamente a sua esfera específica. Por isso o Filósofo afirma que, se houvesse mais de
um céu, haveria também mais de um primeiro motor imóvel, pois este é primeiro porque
move o céu, o limite do universo. Havendo dois céus idênticos, necessariamente os
respectivos motores imóveis também seriam idênticos.
O último parágrafo é como um tributo à sabedoria antiga. Ali o Filósofo reserva
um espaço para o reconhecimento da sapiência demonstrada pela tradição imemorial da
astrologia, que sempre supôs uma verdadeira divindade em cada um dos corpos celestes.
A excelência das essências eternas sensíveis e não-sensíveis, isto é, os astros e seus
motores imóveis, realmente levou Aristóteles a considerá-las divindades. Daí sua
admiração pelas tradições antigas, transmissoras da crença de que “os corpos celestes são
deuses e que o divino abarca toda a natureza” (oÀti qeoi¿ te/ ei¹sin ouÂtoi kaiì
perie/xei to\ qeiÍon th\n oÀlhn fu/sin.) (1074b2), apenas criticando a forma alegórica
sob a qual tal sabedoria foi preservada.
92
Porém, nem mesmo a idéia fundamental destas tradições deve ser tomada como
idêntica à concepção teológica aristotélica. Se o Filósofo mostra ali sua disposição
anuente para com a tradição, isto é possível somente em virtude da flexibilidade de seu
pensamento, que se privilegia o sentido primordial sem negligenciar o secundário. Na
verdade, por um lado, os corpos celestes são os próprios deuses, pois o são enquanto
almas e seus motores - as inteligências separadas – são partes de suas almas, ainda que
partes independentes da própria alma. Em outras palavras: os corpos celestes são divinos
apenas na medida em que as inteligências – que são partes de suas almas – são divinas.
Seria uma divindade por analogia, assim o ser dos concomitantes deriva de uma relação
analógica com a essência, que detém o ser em sentido primeiro. Da mesma forma, o
sentido da divindade do motor imóvel é primária, enquanto que aquela que o Filósofo
atribui aos corpos celestes seria é apenas secundária, resultado de uma transferência de
um atributo da parte para o todo. Não devemos pensar que a separação do motor imóvel -
cuja imobilidade ainda a intensifica infinitamente, pois instaura uma diferença
instransponível entre o seu ser e o ser do movido – abole qualquer nexo entre motor e
movido. O motor, mesmo no caso extremo em que não mantém qualquer contato físico
com o movido, não está isento de uma clara referência ao mesmo. Formam um todo
essencial, mesmo que mantido por relações unilaterais. Veremos, na terceira parte da tese,
o modo como o Filósofo expõe a inteligência no De Anima: ainda que separável e imortal,
a inteligência é uma parte da alma, sem a qual não estaríamos nos referindo a uma alma,
ou ao menos não a uma alma humana.
93
Aporética da Supra-essência
Jaeger34 sustentou que o capítulo nove é a verdadeira continuação de L,7. O
capítulo oito seria um corpo estranho, acrescentado tardiamente. L,8 trata da
multiplicidade das essências imóveis, e boa parte da argumentação é de ordem
astronômica. L,9, ao contrário, segue em harmonia com o capítulo sete, investigando a
“inteligência da inteligência”. É realmente bem difícil afirmar, com certeza, o lugar exato
do oitavo capítulo, mas é certo que pertence ao mesmo período que os demais, não
cabendo pensar, como já se demonstrou, que apresenta convicções incompatíveis com o
restante do livro. Reale 35 defende que não há, efetivamente, uma “quebra” com a
introdução do oitavo capítulo, pois não havia outra coisa a discutir senão a multiplicidade
de essências imóveis, o nono capítulo não sendo mais que uma resolução de dificuldades
teóricas. De fato, é significativo o modo como se inicia esta etapa da investigação:
“Quanto à inteligência, surgem certas aporias” (Ta\ de\ periì to\n nou=n eÃxei tina\j
a)pori¿aj:) (1074b20). Parece sugerir a retomada de um assunto sob perspectivas ainda
não desenvolvidas. Deixemos, porém, estas conjecturas de lado. O que importa realmente
é o aprofundamento da reflexão acerca da efetividade própria do motor imóvel, enquanto
efetividade pura e simples.
A efetividade pura da essência imóvel deve ser a inteligência (nou=j), o que de
mais divino existe no mundo. Mas não basta afirmar que é inteligência. É preciso
34 Jaeger, 1960, p.397. 35 Reale, 1978, p.300.
94
determinar o objeto de intelecção, pois não há inteligência que não o seja de alguma coisa.
E pelo pressuposto já assumido da excelência inigualável da inteligência, somos forçados
a admitir que a inteligência consiste em uma efetividade simples de auto-intelecção. Não
há outro objeto digno da efetividade de tal essência. Se inteligisse algo menos excelente e
belo que ele mesmo, sua própria excelência seria afetada. Daí a atitude de rejeição contra
a suposição de que a inteligência divina tenha qualquer outro objeto: “Pois, não são
coisas bem diferentes inteligir o belo e atingir qualquer outra coisa? Ou, não é absurdo
que exerça a intelecção de certas coisas?” (po/teron ouÅn diafe/rei ti hÄ ou)de\n to\
noeiÍn to\ kalo\n hÄ to\ tuxo/n; hÄ kaiì aÃtopon to\ dianoeiÍsqai periì e)ni¿wn; )
(1074b24)
Isto afasta a possibilidade de que a essência imóvel de Aristóteles seja onisciente,
como tentaram afirmar os pensadores medievais. Entretanto, Reale tem razão ao
considerar desnecessária a alternativa diametralmente oposta: negar que o “Deus” de
Aristóteles tenha qualquer tipo de conhecimento do mundo. A essência imóvel é o bem
último de todas as coisas (isto é afirmado mais explicitamente no décimo capítulo). Ao
atingir a si mesmo, portanto, atinge e conhece o que há de melhor no mundo, o universal
e eterno, de certa forma presente nas essências sensíveis através do desejo que estas
possuem pela efetividade pura. A natureza de tão divino ser não está exatamente
confinada em um isolamento transcendental, apesar de assim parecer, se comparado à
onisciência e onipresença da essência suprema, tal como é concebida no cristianismo.
O motor imóvel não pode compreender os seres sensíveis porque o movimento é
o fato ontológico mais característico destes seres, do qual não se pode abstrair. Ainda que
tivesse conhecimento de todos os estados sucessivos dos seres, continuaria sem conhecer
95
seu movimento, pois o fluxo não pode ser deduzido de uma soma de repousos, nem a
unidade da noção de multiplicidade. O movimento só é conhecido pelo movimento. Não
há comunicação possível entre a simplicidade suprema e a complexidade metabólica.
Aristóteles concebe o múltiplo e o movimento como irredutíveis ao um e ao
repouso. As quatro causas têm o mesmo peso existencial, ainda que não ontológico e
cosmológico. O múltiplo não deriva do um. É um factum ontológico posto de saída no
real, sendo tão primitivo quanto o um. O movimento não pode ser compreendido como
uma multiplicidade de repousos, uma somatória de instantes imóveis. Portanto, não é
redutível ao um nem direta nem indiretamente. Não se reduz diretamente porque suas
noções já diferem imediatamente uma da outra. A idéia de um, em si mesma, não
comporta qualquer transitoriedade, pelo que a máxima unidade possível – própria da
essência suprema – exclui absolutamente o movimento de seu ser. Por outro lado, nem
mesmo como uma unidade de composição o movimento pode ser compreendido. Como
já vimos, nem o movimento é uma somatória de atos imóveis, nem o tempo um composto
de instantes intemporais. O fluxo é uma realidade persistente não obstante qualquer
esforço de dedução totalizante. É próprio da matéria. O ontologicamente superior contém
a realidade do inferior, mas somente no que há de positivo nela. O movimento é uma
propriedade ontológica negativa, pois pressupõe imperfeição, incompletude. Somente as
essências materiais se movem e somente nesta esfera pode haver cognição do fluxo.
Para as coisas que existem independentemente da matéria, a coincidência entre a
inteligência e seu objeto, longe de ser absurda, é perfeitamente possível. É o caso, por
exemplo, do motor imóvel, que não é apenas uma intelecção qualquer, mas a completa
inteligência do motor imóvel, que consiste em atingir a si mesma. Por isso a coincidência
96
perfeita entre a efetividade de intelecção, própria do que é como sujeito, e o ser passível
de intelecção, inerente ao que consideramos objeto no âmbito da cognição. A natureza do
motor imóvel é um todo indivisível de sujeito e objeto.
Os seres imateriais também não possuem partes. A matéria é princípio de
individuação porque é princípio de multiplicidade. E somente é princípio de
multiplicidade por ser capaz de receber a mesma forma de diferentes maneiras e em
distintos momentos. Tornemos ainda mais nítida a concepção do Filósofo: a matéria não
é somente capaz de receber a mesma forma de múltiplas maneiras e em vários instantes,
mas é absolutamente incapaz de o fazer de outro modo. A matéria não pode ser
diferentemente, mas essa é a sua maneira de receber o ser da forma, que é simples. A
matéria torna o simples - a forma - um indivíduo, ao mesmo tempo em que o torna
composto. A forma de homem não é dividida apenas no sentido de que, assim,
multiplica-se em indivíduos. Não apenas a divisão que significa multiplicação é aquela
que tem lugar na matéria. A divisão no próprio indivíduo também se verifica, pois o
homem é o que é através de cada uma de suas partes e devido à composição harmônica
das mesmas; “composição” em virtude da matéria; “harmônica” devido à forma. É sobre
a divisão no próprio indivíduo - que o força à composição para ser o que é - que escreve
Aristóteles no passo 1075a5. O motor imóvel, contudo, não possui matéria. Apesar disto,
não é essência segunda, denominação conferida ao gênero e a espécie na obra Categorias.
É essência primeira, que não pode ser predicada de coisa alguma e subsiste em si mesma,
não obstante a ausência de matéria. O motor imóvel é forma pura, mas somente porque é
efetividade pura. Caso contrário diríamos o mesmo da forma do redondo, o que é um
absurdo, pois esta jamais prescinde da matéria para subsistir em si mesma, de forma
97
alguma se torna efetividade pura. A plenitude (e)ntele/xeia) da efetividade é exclusiva
da forma mais excelente que existe, a inteligência, e tal perfeição intelectual é atingida
apenas por uma espécie de ser, o motor imóvel.
Por isso, a essência imóvel não possui partes, e a perfeição que lhe é própria
independe de composição harmônica para ser atingida. O bem relativo ao motor imóvel,
portanto, “não detém do bem nesta ou naquela parte, mas detém, diversamente, o bem
máximo em sua totalidade” (ou) ga\r eÃxei to\ euÅ e)n t%diì hÄ e)n t%di¿, a)ll' e)n oÀl%
tiniì to\ aÃriston, oÄn aÃllo ti) (1075a10)
Todas estas conclusões são assumidas como já demonstradas no capítulo sétimo, e
o próprio capítulo oito, no passo 1074a35 segue da mesma forma, porquanto não
demonstra o fato de que todas as coisas múltiplas tem matéria. A convicção de Jaeger, de
que o capítulo oito é deslocado, é inverossímil, por não levar em conta a dinâmica da
reflexão filosófica do autor. Reale também falha por aceitar a posição natural atribuída ao
capítulo nove. Na verdade, somente duas alternativas são plausíveis: o capítulo nove seria
imediatamente anterior ao sétimo ou uma introdução ao mesmo.
98
Separação da Supra-essência
O passo 1075a23 é de interpretação extremamente difícil. Ross36 traduz: “Todas
as coisas, ao menos em sua dissolução, contribuem para o bem comum”. Mesmos os
seres que parecem destituídos de importância teriam um papel na manutenção da ordem
do mundo, ao se dissolverem e dar lugar ao crescimento de novos seres. Eis a tradução-
interpretação de Ross. No entanto, Reale 37 apresenta uma tradução completamente
diferente: “Quero dizer que todas as coisas, necessariamente, tendem a se distinguir; por
outro lado, ao contrário, todas as coisas tornam comum uma totalidade” (le/gw d' oiâon
eiãj ge to\ diakriqh=nai a)na/gkh aÀpasin e)lqeiÍn, kaiì aÃlla ouÀtwj eÃstin wÒn
koinwneiÍ aÀpanta ei¹j to\ oÀlon.). Esta leitura oferece a vantagem de não romper com
o fio argumentativo das linhas anteriores, que segue a partir da analogia com o exército e
seu comandante. Eis o que facilmente se depreende. É justamente a terceira alternativa
que Aristóteles enumera, a saber, que o bem é algo separado (xwristo/n) e por si, e,
36 Ross, 1981, p.400. 37 Reale, 1978, p.304.
99
simultaneamente, imanente ao cosmos, como a ordem de suas partes. O motor imóvel é
bem enquanto separado e auto-subsistente, que produz a ordem universal, quer dizer, o
bem como composição harmônica. Já vimos em 1075a5 que “tudo o que não tem matéria
não tem partes”( hÄ a)diai¿reton pa=n to\ mh\ eÃxon uÀlhn) e, portanto, o motor imóvel
“não detém do bem nesta ou naquela parte, mas detém, diversamente, o bem máximo em
sua totalidade” (ou) ga\r eÃxei to\ euÅ e)n t%diì hÄ e)n t%di¿, a)ll' e)n oÀl% tiniì to\
aÃriston, oÄn aÃllo ti) (1075a10). Os seres sensíveis, mesmo os astros, realizam o bem
apenas na medida em que pertencem a uma ordem, tendendo, por isso, à unidade, o que
está de acordo com a tradução de Reale do passo 1075a24.
O terceiro elemento é a matéria. Esta é a sede dos contrários. Estes, em si mesmos,
não mudam. Não há como um contrário originar outro, transmudar-se em seu oposto. Os
contrários mudam apenas enquanto estejam ou não em determinado indivíduo, mas não
mudam em si mesmos. Os graus intermediários têm lugar na matéria, não sendo, portanto,
sinal de um processo de transformação entre os elementos contrários. O terceiro elemento
pode receber a forma e seu oposto, a privação. Conforme bem escreve Reale38, o par
forma-matéria não é um par de contrários. Até porque isto significaria a impossibilidade
de coexistirem para constituir um ser, pela inviolabilidade do princípio de não-
contradição. O par de contrários é aquele constituído pela forma e sua privação.
A segunda parte do capítulo é quase inteiramente dedicada à refutação de
doutrinas incompatíveis com os princípios já demonstrados. A doutrina da Inteligência
(nous), tal como concebida por Anaxágoras, é criticada pelo Estagirita. O pensador da
“mistura cósmica” entende que a inteligência é princípio de movimento. Contudo, não
38 Reale, 1978, p. 305.
100
concebe esta produção de movimento como uma teleologia. Mas toda a investigação de
Aristóteles leva a essa conclusão, a saber, de que a Razão ou Inteligência só pode mover
enquanto propósito do movimento. Sendo assim, o Filósofo efetua duas retificações. A
primeira é uma tentativa de interpretação que torne a teoria aceitável. É o caso de
considerarmos - a exemplo do que é feito nos passos 1070a30 e 1070b30 - a causa
eficiente idêntica à causa formal, que é, por sua vez, a mesma que a causa completiva,
porquanto todas as coisas tendem a atualizar sua forma. Sob este ponto de vista, mas sob
nenhum outro, a teoria de Anaxágoras é razoável. A segunda retificação aponta para uma
falha na teoria, pois esta não prevê existência de algo contrário à Inteligência. Reale não
entende esta reprovação, e nos remete a Bonitz, que manifestou a mesma perplexidade.
Se o próprio Filósofo, mais adiante, assume como verdadeiro que “o primeiro não tem
contrário”(ou) ga/r e)stin e)nanti¿on t%½ prw¯t% ou)de/n:) (1075b21), não haveria
sentido em censurar Anaxágoras por fazer o mesmo em relação à Inteligência, visto que
esta é, sob muitos aspectos, análoga ao primeiro motor, que não tem contrário. Bonitz é
bem sucedido ao afirmar que o primeiro motor não tem contrário por ser imaterial, na
medida em que a matéria, como vimos acima, é a sede dos contrários. No entanto, o
primeiro motor não possui contrário não apenas porque é imaterial, mas devido, também,
a seu modo único de agir sobre os outros seres, isto é, apenas enquanto completude
(télos). É princípio de movimento sem manter contato com coisa alguma, o que o torna
imune a qualquer tipo de resistência ou contrariedade. O mesmo não se pode dizer da
Inteligência de Anaxágoras - e este é o limite das analogias que traçamos com o primeiro
motor - porquanto este pensador não definiu a teleologia como único modo de ação do
princípio supremo, e, mesmo a suposição de que este é um dos modos de ação é apenas
101
uma interpretação extrínseca, como sugere Aristóteles no passo 1075b10. Portanto, o
nous de Anaxágoras, não sendo completamente separado (xwristo/n), não é o nous de
Aristóteles. Para que, imóvel, mova eternamente todos os seres, o nous supremo não deve
ter qualquer comunidade com nenhum dos seres. Caso contrário, sua potência será finita,
pois um contraponto cinético será inevitável, ainda que o próprio Anaxágoras não o tenha
previsto em sua doutrina. Com efeito, ainda que "sem mistura" signifique "estar por si
mesmo separado dos outros entes", a inteligência move todas as coisas produzindo um
turbilhão, e não somente como uma completude separada, pois nous e télos são aqui
distintos:
"Anaxágoras põe o bem como princípio de movimento: de fato, a
inteligência produz movimento. Todavia, ela move em vista de um propósito;
portanto, este é diferente dela; a menos que se aceite o que nós afirmamos: a
medicina é, em certo sentido, a saúde." (Metafísica, 1075b10)
¹Anacago/raj de\ w¨j kinou=n to\ a)gaqo\n a)rxh/n: o( ga\r nou=j kineiÍ. a)lla\ kineiÍ eÀneka/ tinoj, wÐste eÀteron, plh\n w¨j h(meiÍj le/go-men: h( ga\r i¹atrikh/ e)sti¿ pwj h( u(gi¿eia.
Isto torna o nous, de certo modo, parte da mistura universal, ao lado da totalidade
movida, como contrário resistente à sua ação, e resistente porque em contato com o motor,
pois não move como télos do movido, única possibilidade que exclui o contato:
"O primeiro motor, entendido não como propósito, mas como princípio de
onde parte o movimento, está com o movido (digo 'junto' porque não há nada há
intermediário entre eles)." (Física H, 243a31)
To\ de\ prw½ton kinou=n, mh\ w¨j to\ ou eÀneken, a)ll' oÀqen h( a)rxh\ th=j kinh/sewj, aÀma t%½ kinoume/n% e)sti¿. le/gw de\ to\ aÀma, oÀti ou)de/n e)stin au)tw½n metacu/:
102
Daí que a própria imutabilidade atribuída ao nous não encontra sustentação,
embora tal atribuição, em si mesma, seja necessária para a inteligibilidade do movimento
que o nous imprime em todas as coisas em virtude de sua própria potência intelectiva.
Mesmo no De Anima, onde trata de outra espécie de inteligência, Aristóteles já mostrava
aprovação pela doutrina anaxagórica da pureza da inteligência:
"Pois, se intelige tudo, deve ser sem mistura, como disse Anaxágoras.
Com efeito, a interferência de algo alhei interfere e impede." (429a19)
a)na/gkh aÃra, e)peiì pa/nta noeiÍ, a)migh= eiånai, wÐsper fhsiìn ¹Anacago/raj, iàna kratv=, tou=to d' e)stiìn iàna gnwri¿zv. paremfaino/menon ga\r kwlu/ei to\ a)llo/trion kaiì a)ntifra/ttei
Eis agora a mais forte evidência da unidade entre as duas metades do Livro L, a
despeito dos conteúdos em sua maior parte distintos, a primeira tratando principalmente
das essências sensíveis e a segunda da possibilidade e necessidade das supra-sensíveis.
Vimos que, no princípio do capítulo primeiro, Aristóteles estabelece o primado da
essência sobre todas as coisas que são, independentemente de considerarmos o universo
como uma série ou como um todo. Com efeito, sob qualquer um dos pontos de vista,
somos forçados a admitir que a essência é anterior a tudo. Agora, ao fim do último
capítulo, o Filósofo não mais cogita a hipótese de o universo ser apenas uma série de
coisas que não mantêm quaisquer relações umas com as outras. E não poderia mesmo
fazê-lo, dadas as inúmeras demonstrações fornecidas ao longo do livro L, tendo por
fundamento a necessidade do motor imóvel e a ordem universal. Falham, portanto,
aqueles que “reduzem a realidade do universo a uma série de episódios” (1076a1). A
citação final, evocando o poeta Homero, não poderia ser mais oportuna: “Não é bom que
103
governem muitos. Haja um chefe só. ("ou)k a)gaqo\n polukoirani¿h: eiâj koi¿ranoj
eÃstw.")(1076a5)”
104
III – INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA DO LIVRO LLLL
Esta terceira seção tem por objetivo considerar o livro L tanto a partir de sua
relação com outros livros da Metafísica quanto no que toca à sua função, mais
precisamente à doutrina do primeiro motor, relativamente à fundamentação dos
princípios inerentes a todos os seres.
Para discutir o primeiro ponto, partirei de uma leitura da tese de W. Jaeger
segundo a qual o livro L seria um tratado isolado escrito no início do desenvolvimento
intelectual de Aristóteles. Ao mostrar que a tese de Jaeger é pouco verossímil, mostrarei
que há uma relação entre o livro L e alguns outros livros da Metafísica.
Em um segundo momento, tentarei então mostrar como a filosofia universal que
busca Aristóteles em várias passagens da Metafísica encontra sua formulação mais
adequada na doutrina do primeiro motor, já que esta deve ser entendida como o
fundamento dos princípios e causas de todos os seres e, portanto, como universal em
primeiro grau. Sob tal perspectiva deve ser encarada toda a investigação empreendida ao
longo dos capítulos quatro e cinco do livro L, o que nos permite considerá-los não
somente um continuum, mas também como o verdadeiro nexus entre as duas partes do
livro L.
105
Grau de Maturidade do Livro LLLL da Metafísica
Em sua obra Aristóteles- Fundamentos da História de seu desenvolvimento,
Werner Jaeger sustentava que o livro L da Metafísica é anterior aos escritos mais
maduros do Filósofo. Aristóteles ainda estaria fortemente vinculado às principais teses de
seu mestre Platão, tendo como resultado a formulação da doutrina do que ficou conhecido
como o primeiro motor. Vejamos alguns de seus principais argumentos:
(1) Neste livro postula-se que o estudo da essência não-sensível é o único escopo
da metafísica; à física cabe o estudo das essências sensíveis, sendo essa uma ciência
segunda. Jaeger considerava os cinco primeiros capítulos, em que é estabelecida uma
espécie de tipologia das essências existentes no universo, como meramente preliminares.
(2) O claro parentesco entre o livro L e outros livros com datas reconhecidamente
anteriores à maioria das obras do Corpus Aristotelicum.
(3) O livro L não faz referência a qualquer outro livro da Metafísica.
Atualmente, há uma forte tendência dos críticos em desconsiderar boa parte da
gravidade destes argumentos em prol de uma concepção mais una da Metafísica, ou seja,
que demonstre a necessidade de uma continuidade entre o livro L e o restante da
Metafísica. David Ross 39 , por exemplo, minimiza a força do primeiro argumento
apresentado acima. Diligente, aponta para um fato incontestável: a presença, no livro Z,
do mesmo tipo de investigação sobre o verdadeiro objeto da ciência primeira. Refere-se a
passagens como esta:
39 Ross, 1981, p.346.
106
“Cabe investigar se existe - além da matéria de tais essências - uma outra
espécie de matéria, e se devemos buscar alguma essência diferente destas, como
os números ou algo semelhante. Isto será examinado mais tarde, pois é no
interesse dessa pesquisa que procuramos determinar também a natureza das
essências sensíveis, cujo estudo pertence antes à Física, isto é, à Filosofia
Segunda.” (1037a9)
po/teron de\ eÃsti para\ th\n uÀlhn tw½n toiou/twn ou)siw½n tij aÃllh, kaiì deiÍ zhteiÍn ou)si¿an e(te/ran tina\ oiâon a)riqmou\j hà ti toiou=ton, skepte/on uÀsteron. tou/tou ga\r xa/rin kaiì periì tw½n ai¹sqhtw½n ou)siw½n peirw¯meqa diori¿zein, e)peiì tro/pon tina\ th=j fusikh=j kaiì deute/raj filosofi¿aj eÃrgon h( periì ta\j ai¹sqhta\j ou)si¿aj qewri¿a:
A definição do verdadeiro objeto da metafísica, seu distinto escopo relativamente
ao das demais ciências, não é o único tópico recorrente. As implicações escatológicas da
análise do movimento, que possui especial significância no terceiro capítulo do livro L,
também são encontradas no capítulo oito do livro Z. Comparemos os dois momentos
desta temática:
“Depois disto, dizemos que não se geram nem a matéria nem a forma. Me
refiro agora às últimas. Com efeito, em todos os casos transita algo, por ação de
algo, e até algo. Aquele por cuja ação transita é o primeiro que move. O que
transita é a matéria. Aquilo até o qual transita é a forma. E se cairia em um
processo infinito, desde logo, se não apenas fosse feito redondo o bronze, mas
além disso fossem feitos o bronze e o redondo. É, pois, necessário deter-se.” (L,
1069b35)
Meta\ tau=ta oÀti ou) gi¿gnetai ouÃte h( uÀlh ouÃte to\ eiådoj, le/gw de\ ta\ eÃsxata. pa=n ga\r metaba/llei tiì kaiì u(po/ tinoj kaiì eiãj ti: u(f' ou me/n, tou= prw¯tou kinou=ntoj: oÁ de/, h( uÀlh: ei¹j oÁ de/, to\ eiådoj. ei¹j aÃpeiron ouÅn eiåsin, ei¹ mh\ mo/non o( xalko\j gi¿gnetai stroggu/loj a)lla\ kaiì to\ stroggu/lon hÄ o( xalko/j: a)na/gkh dh\ sth=nai.
107
“Com efeito, produzir algo determinado não é senão produzir algo
determinado a partir do que é substrato em sentido absoluto (quero dizer que
tornar redondo o bronze não é fazer nem o redondo nem a esfera, mas algo
distinto, por exemplo, a forma em outra coisa. De modo que se a forma fosse feita,
seria a partir de outra coisa, pois isto já está estabelecido. Fazemos uma esfera
de bronze no seguinte sentido: disto, que é bronze, fazemos outra coisa, que é a
esfera). Por conseguinte, se também fazemos o substrato, é evidente que o
fazemos do mesmo modo, e o processo de produção recuará até o infinito. É
evidente, por conseguinte, que nem se geram a forma, ou como quer que
convenha chamar a figura presente na coisa sensível; nem dela, nem da essência,
há produção; pois isto é o que é gerado em alguma outra coisa quer por engenho,
quer por natureza, quer por alguma potência. Mas a esfera de bronze é o que é
produzido. É produzido, efetivamente, de bronze e de esfera, já que se faz a forma
em tal coisa, e esta é a esfera de bronze. Com efeito, se houvesse geração daquilo
em que consiste ser-esfera em geral, seria algo que procederia de algo. Desde
logo, o gerado têm que ser divisível, e uma parte será isto e outra parte aquilo
outro, quer dizer, um a matéria e outro, a forma.” (Z, 1033a31)
to\ ga\r to/de ti poieiÍn e)k tou= oÀlwj u(pokeime/nou to/de ti poieiÍn e)sti¿n (le/gw d' oÀti to\n xalko\n stroggu/lon poieiÍn e)stiìn ou) to\ stroggu/lon hÄ th\n sfaiÍran poieiÍn a)ll' eÀtero/n ti, oiâon to\ eiådoj tou=to e)n aÃll%: ei¹ ga\r poieiÍ, eÃk tinoj aÄn poioi¿h aÃllou, tou=to ga\r u(pe/keito: oiâon poieiÍ xalkh=n sfaiÍran, tou=to de\ ouÀtwj oÀti e)k toudi¿, oÀ e)sti xalko/j, todiì poieiÍ, oÀ e)sti sfaiÍraŸ: ei¹ ouÅn kaiì tou=to poieiÍ au)to/, dh=lon oÀti w¨sau/twj poih/sei, kaiì badiou=ntai ai¸ gene/seij ei¹j aÃpei-ron. fanero\n aÃra oÀti ou)de\ to\ eiådoj, hÄ o(tidh/pote xrh\ kaleiÍn th\n e)n t%½ ai¹sqht%½ morfh/n, ou) gi¿gnetai, ou)d' eÃstin au)tou= ge/nesij, ou)de\ to\ ti¿ hÅn eiånai (tou=to ga/r e)stin oÁ e)n aÃll% gi¿gnetai hÄ u(po\ te/xnhj hÄ u(po\ fu/sewj hÄ duna/mewjŸ. to\ de\ xalkh=n sfaiÍran eiånai poieiÍ: poieiÍ ga\r e)k xalkou= kaiì sfai¿raj: ei¹j todiì ga\r to\ eiådoj poieiÍ, kaiì eÃsti tou=to sfaiÍra xalkh=. tou= de\ sfai¿r# eiånai oÀlwj ei¹ eÃstai ge/nesij, eÃk tinoj tiì eÃstai. deh/sei ga\r diaireto\n eiånai a)eiì to\ gigno/menon, kaiì eiånai to\ me\n to/de to\ de\ to/de, le/gw d' oÀti to\ me\n uÀlhn to\ de\ eiådoj.
108
O primeiro trecho pertence ao livro L. O segundo, ao livro Z, cuja maturidade
intelectual é assente entre os especialistas, principalmente em virtude da complexificação
de temas ainda germinais em outros livros.
A convicção na impossibilidade de geração da matéria e da forma está presente
nestas duas passagens. O interessante é que a similaridade destes dois momentos deve-se
não somente ao tema compartilhado, mas também ao itinerário argumentativo e à mesma
alusão (exemplo da estátua de bronze). Este último ponto reforça ainda mais a tese de que
são pertinentes a um mesmo período.
Há uma matéria e uma forma ingênitas, que são as últimas. O processo de geração
supõe algo de onde o gerado provém e algo que o gerado se torna, sendo o primeiro a
matéria e o segundo a forma. Aristóteles rejeita uma regressão ad infinitum de geração da
matéria, a qual tornaria impossível um substratum último, e rejeita qualquer processo de
geração da forma. Com efeito, só pode haver geração da coisa que consiste em tal forma
em tal matéria, pois, se a forma mesma fosse gerada, o seria a partir de outra matéria, não
sendo, assim, pura forma, o que contradiz a hipótese inicial. A forma, considerada em si
mesma, é indivisível, quer dizer, irredutível a outros termos. Não devemos, pois, buscar
processos de geração anteriores à matéria denominada bronze e à forma esférica
configurada na esfera de bronze. É importante atentar para o perigo de se confundir tal
concepção com algo similar à doutrina de seu mestre Platão, com a qual divergiu
consideravelmente. As formas não existem separadamente das essências individuais. O
fato de existirem anteriormente a um determinado indivíduo não significa que independa
do processo de causação que o gerou. Na verdade, as formas são ingênitas porque é
ingênito o movimento universal, no âmbito do qual são instauradas na matéria. A
109
eternidade do movimento universal é confirmada no livro L, logo após o trecho
supracitado: “Ora, é impossível que o movimento tenha começado ou que termine, pois
ele deve ter existido sempre; e o mesmo quanto ao tempo, pois do contrário não existiria
um antes e um depois.” (a)ll' a)du/naton ki¿nhsin hÄ gene/sqai hÄ fqarh=nai (a)eiì
ga\r hÅnŸ, ou)de\ xro/non. ou) ga\r oiâo/n te to\ pro/teron kaiì uÀsteron eiånai mh\
oÃntoj xro/nou:) (1071b8)
Isso não significa que os argumentos de Jaeger sejam inúteis no sentido de
explicitar a peculiaridade do livro L. Na verdade, o fato de que aqui não se faça
referência a qualquer outro livro da Metafísica é inegável. É que tal via investigativa
revelou-se pouco fértil para uma maior compreensão do lugar do livro L na totalidade do
Corpus Aristotelicum.
Outro aspecto do segundo argumento apresentado acima se torna frágil pela
simples verificação textual. Jaeger sustentava que os cinco primeiros capítulos desta obra
são manifestamente preliminares, ou seja, não possuem qualquer função na investigação
empreendida pelo Estagirita sobre a existência de um primeiro motor imóvel e imaterial.
Atentemos para o trecho destacado a seguir:
“Existem três essências. Uma é a essência sensível, que se distingue em a)
eterna e b) corruptível (e esta é a essência que todos admitem: por exemplo as
plantas e os animais; desta é necessário compreender quais são os elementos
constitutivos, quer eles se reduzam a um só, quer sejam muitos). c) A outra
essência é a imóvel; e alguns filósofos afirmam que ela é separada: alguns a
separam ulteriormente em dois tipos, outros reduzem as Formas e os Entes
matemáticos a uma única natureza, outros ainda só admitem os Entes
matemáticos.
110
As duas primeiras espécies de essências constituem o objeto da física,
porque são sujeitas a movimento; a terceira, ao invés, é objeto de outra ciência,
dado que não existe nenhum princípio comum a ela e às outras duas.” (1069a30)
ou)si¿ai de\ treiÍj, mi¿a me\n ai¹sqhth/ hÂj h( me\n a)i¿+dioj h( de\ fqarth/, hÁn pa/ntej o(mologou=sin, oiâon ta\ futa\ kaiì ta\ z%½a h( d' a)i¿+dioj hÂj a)na/gkh ta\ stoixeiÍa labeiÍn, eiãte eÁn eiãte polla/: aÃllh de\ a)ki¿nhtoj, kaiì tau/thn fasi¿ tinej eiånai xwristh/n, oi¸ me\n ei¹j du/o diairou=ntej, oi¸ de\ ei¹j mi¿an fu/sin tiqe/ntej ta\ eiãdh kaiì ta\ maqhmatika/, oi¸ de\ ta\ maqhmatika\ mo/non tou/twn. e)keiÍnai me\n dh\ fusikh=j meta\ kinh/sewj ga/r, auÀth de\ e(te/raj, ei¹ mhdemi¿a au)toiÍj a)rxh\ koinh/.
Encontramos tais afirmações no primeiro capítulo do livro L. Estabelece-se aqui
uma tipologia de essências. Além das duas espécies de essência sensível, uma das quais
imperecível e outra, terrestre e corruptível, há uma terceira classe, a da essência imóvel. É
exatamente esta espécie de essência que pertence à “ciência distinta”, notadamente à
Metafísica. A primeira destas essências sensíveis, a que pertence ao chamado mundo
lunar, comporta em si as quatro espécies de transição definidas por Aristóteles. Estas
espécies são: (1) a transição no tocante à essência, (2) a transição no tocante à qualidade,
(3) a transição no tocante à quantidade e (4) a transição no tocante ao lugar. A essência
sensível supralunar, isto é, relativa aos corpos celestes, comporta apenas a quarta espécie
de transição, aquela relativa ao lugar. Devido a isto, a própria matéria que a constitui tem
que ser diferente deste tipo de matéria que vemos nos seres à nossa volta.
O critério fundamental que define duas das três essências acima como
pertencentes a uma mesma classe é, como podemos ver, a transição. A essência
supralunar possui tal propriedade apenas em um nível elementar, pois em Aristóteles a
transição relativa ao lugar constitui a forma mais simples de transição. Por outro lado,
111
ainda que em seu nível mais elementar, a transição denota a existência de matéria em
uma essência, pois somente esta está sujeita à transição por estar sujeita a alterar-se de
um estado para outro contrário. Sendo assim, esses dois tipos de essência são materiais,
ou seja, sensíveis. Isto as coloca dentro do âmbito de uma mesma ciência, a física.
Quanto ao terceiro tipo de essência, a imóvel, justamente por não conter em si a
propriedade de executar nenhuma das quatro espécies de transição, não pode conter
matéria em sua natureza. A questão da imaterialidade da essência imóvel será
desenvolvida mais adiante, juntamente com as provas de sua existência. A “segunda
metade” do livro L, que compreende os cinco últimos, também trata da tipologia das
essências universais conectando-a diretamente à investigação sobre a existência do
primeiro motor. Assim, verificamos no sexto capítulo:
“Dissemos que há três espécies de essência, duas físicas e uma imóvel.
Desta última vamos falar agora, mostrando que existe necessariamente uma
essência imóvel eterna. Porquanto as essências são as primeiras das coisas
existentes, e se todas elas forem destrutíveis, destrutíveis serão também todas as
coisas. Ora, é impossível que o movimento tenha começado ou que termine, pois
ele deve ter existido sempre; e o mesmo quanto ao tempo, pois do contrário não
haveria um antes e um depois. De sorte que o movimento é também contínuo no
mesmo sentido em que o é o tempo, dado que este ou é a mesma coisa que o
movimento, ou um atributo dele. E não existe movimento contínuo salvo o que
ocorre no espaço, e deste, apenas o movimento circular”.
Se há, porém, algo que seja capaz de mover as coisas ou de agir sobre
elas, mas não o faça realmente, não será necessário que haja movimento, pois o
que tem uma potência nem sempre a exerce. Nada nos adianta pois, supor
essências eternas, como fazem os que acreditam nas Formas, a não ser que nelas
haja um princípio capaz de produzir transição. E nem mesmo isso basta, como
tampouco será suficiente uma outra essência além das Formas, pois se ela não
112
for capaz de agir não haverá movimento. Digo mais: ainda que ela aja, isso não
bastará, se a sua essência for apenas potência; não haveria movimento eterno,
porquanto o que é em potência pode não ser. Deve, por conseguinte, haver um tal
princípio, cuja própria essência seja a efetividade. Por outra parte, estas
essências devem ser imateriais, pois se há algo de eterno hão de ser
elas.”(1071b3)”.
¹Epeiì d' hÅsan treiÍj ou)si¿ai, du/o me\n ai¸ fusikaiì mi¿a d' h( a)ki¿nhtoj, periì tau/thj lekte/on oÀti a)na/gkh eiånai a)i¿+dio/n tina ou)si¿an a)ki¿nhton. aià te ga\r ou)si¿ai prw½tai tw½n oÃntwn, kaiì ei¹ pa=sai fqartai¿, pa/nta fqarta/: a)ll' a)du/naton ki¿nhsin hÄ gene/sqai hÄ fqarh=nai (a)eiì ga\r hÅnŸ, ou)de\ xro/non. ou) ga\r oiâo/n te to\ pro/teron kaiì uÀsteron eiånai mh\ oÃntoj xro/nou: kaiì h( ki¿nhsij aÃra ouÀtw sunexh\j wÐsper kaiì o( xro/noj: hÄ ga\r to\ au)to\ hÄ kinh/sew¯j ti pa/qoj. ki¿nhsij d' ou)k eÃsti sunexh\j a)ll' hÄ h( kata\ to/pon, kaiì tau/thj h( ku/kl%. ¹Alla\ mh\n ei¹ eÃsti kinhtiko\n hÄ poihtiko/n, mh\ e)nergou=n de/ ti, ou)k eÃstai ki¿nhsij: e)nde/xetai ga\r to\ du/namin eÃxon mh\ e)nergeiÍn. ou)qe\n aÃra oÃfeloj ou)d' e)a\n ou)si¿aj poih/swmen a)i+di¿ouj, wÐsper oi¸ ta\ eiãdh, ei¹ mh/ tij duname/nh e)ne/stai a)rxh\ metaba/llein: ou) toi¿nun ou)d' auÀth i¸kanh/, ou)d' aÃllh ou)si¿a para\ ta\ eiãdh: ei¹ ga\r mh\ e)nergh/sei, ou)k eÃstai ki¿nhsij. eÃti ou)d' ei¹ e)nergh/sei, h( d' ou)si¿a au)th=j du/namij: ou) ga\r eÃstai ki¿nhsij a)i¿+dioj: e)nde/xetai ga\r to\ duna/mei oÄn mh\ eiånai. deiÍ aÃra eiånai a)rxh\n toiau/thn hÂj h( ou)si¿a e)ne/rgeia. eÃti toi¿nun tau/taj deiÍ ta\j ou)si¿aj eiånai aÃneu uÀlhj: a)i+di¿ouj ga\r deiÍ, eiãper ge kaiì aÃllo ti a)i¿+dion.
Aristóteles torna patente, no trecho destacado acima, que o terceiro tipo de
essência tratado no primeiro capítulo é, na verdade, o agente responsável pela eterna
transição universal. A razão da imaterialidade desta essência fica também demonstrada: o
agente responsável pela transição eterna não pode conter qualquer tipo de potência nesta
efetividade, pois assim nada garantiria a eterna sustentação da efetividade universal; tudo
que possui matéria possui também alguma das quatro espécies de potência relativas às
quatro espécies de transição; logo, o agente responsável pela transição eterna universal
113
não pode conter matéria em sua natureza. A tipologia das essências universais é essencial
na investigação sobre o que, mais adiante, tomará definitivamente a forma da doutrina
conhecida como a do primeiro motor. O simples reconhecimento destas conexões textuais
enfraquece o primeiro argumento de Jaeger, de que os cinco capítulos iniciais possuem
pouca importância na confecção do livro L.
Física, Teologia e Filosofia Primeira
Muito oportuna para a nossa investigação é a referência à linha argumentativa de
outro estudioso do Corpus Aristotelicum. Natorp (1888, 24) acredita que os trechos da
Metafísica em que a primeira filosofia é caracterizada como teologia são interpolações
posteriores. Na passagem de VI,1 em que é estabelecida a distinção entre o objeto da
Filosofia Primeira, da Matemática e da Física (1026a15), Natorp utiliza-se de uma
tradução de acordo com a qual a Filosofia se ocuparia também das essências imutáveis e
independentes apenas porque se ocupa de tudo. Seu objetivo é neutralizar a opinião de
que a Filosofia Primeira seria a Teologia. Se a Filosofia Primeira não se ocupa
exclusivamente das essências imóveis, que Aristóteles considera divinas, então não
haveria razão para qualificar esta esfera da sabedoria de ciência do divino. Natorp
sustenta que a ciência fundamental não lida exclusivamente com o imaterial, mas também
com o sensível e transitório, ao contrário da Física, cujo âmbito pertence unicamente a
esta espécie de ser. Patzig (1979, p.36) o censura de ter negligenciado uma leitura mais
atenta da frase “h( me\n ga\r fusikh\ periì xwrista\ me\n a)ll' ou)k
a)ki¿nhta”(1026a15) que não pode, de forma alguma, significar “a física lida com as
coisas separadas mas não com as coisas imutáveis”, o que é pretendido por Natorp, pois
114
desta maneira uma interpretação inclusivista da ciência primeira seria permitida. Patzig
destaca que teríamos que acrescentar “peri” antes de “a)ki¿nhta” para que tomássemos
este significado. Mas da forma em que encontramos o texto, a expressão “a)ll' ou)k
a)ki¿nhta” se refere apenas ao “xwrista” que é o objeto da Física, ou seja, uma
propriedade intrínseca - a transitoriedade - às coisas separadas tratadas por esta ciência.
Patzig, assim, pretende mostrar que a tradução adotada por Natorp é incorreta. Quanto à
suposição de Natorp, de que houve uma interpolação nas passagens em que a primeira
filosofia é identificada com a teologia, Patzig o censura por não ter percebido que os oito
primeiros capítulos de K contêm um sumário das afirmações encontradas em B, G e E.
Isto nos obrigaria a considerar inautêntico o livro K, o que, embora possível, requer outra
série de argumentos ad hoc.
Patzig oferece uma solução menos radical que a encontrada por Jaeger e Natorp,
solução essa baseada na análise detalhada do próprio texto. Procura interpretar o Filósofo
de modo a descobrir sua maneira característica de pensar e raciocinar. Este método
procura neutralizar as supostas contradições do texto, mostrando que, na verdade, não
passam de um mal-entendido. Enquanto Jaeger afirmava que as partes da Metafísica que
identificam a Primeira Filosofia com a Teologia são frutos de uma fase primitiva e ainda
platônica do desenvolvimento da filosofia do Estagirita, Patzig atenta para a
improbabilidade de um pensador do calibre de Aristóteles permitir a justaposição de duas
posições fundamentais e contraditórias em um único tratado sobre a Filosofia Primeira.
Para tornar aceitável a tese Jaegeriana, a única saída seria a hipótese em última instância
inverificável de enxertos ad hoc, tanto quanto isso fosse necessário.
115
Além disso, Patzig questiona como a Primeira Filosofia, atribuída ao sophos, que
“possui um certo conhecimento de tudo” (tou/twn de\ to\ me\n pa/nta e)pi¿stasqai t%½
ma/lista eÃxonti th\n kaqo/lou e)pisth/mhn a)nagkaiÍon u(pa/rxein) (982a23),
poderia ser limitada pelo conhecimento da essência e existência de Deus. Poderíamos
pensar que Patzig entra em contradição aqui: procura refutar uma opinião que considerou
verdadeira, a saber, aquela de que a teologia como Filosofia Primeira é encontrada
mesmo na maturidade de Aristóteles. Atentemos para o fato de que, em sua investida
contra Natorp, este é criticado por acreditar, baseado em tradução incorreta, que o estudo
das essências imutáveis é apenas um dos objetos da Filosofia Primeira, pois esta se
ocuparia de tudo. Porém, deve-se considerar que Patzig censura Natorp apenas por sua
tentativa de identificar uma teologia não-filosófica na determinação da Filosofia Primeira.
Modo de Universalidade do Objeto Primeiro
Na verdade, a fonte das dificuldades em torno das quais tem lugar a crítica de
Patzig reside na questão de se a filosofia primeira é ou não universal. Esta noção, contudo,
sofre uma modificação na própria doutrina do Filósofo à medida que investiga o objeto
da mais alta ciência. A ciência primeira é universal, não porque trata de um objeto que se
predica de várias coisas, até porque isto nem mesmo é possível, dado que a essência não
se predica de coisa alguma e o objeto de tal investigação - como vemos principalmente
no livro L - é uma espécie de essência. A universalidade da ciência primeira, como
116
veremos na segunta parte deste trabalho, decorre não só da generalidade de suas
principais noções investigadas, que versam sobre o que pertence a qualquer ente tão
simplesmente por ser um ente, mas também porque concentra os resultados deste estudo
em determinados entes, cuja natureza os torna determinantes da natureza de outros
conjuntos de entes. Confirmaremos isto nos livros VI e XI, sendo que este último - como
já apontou Patzig - teria que ser considerado apócrifo em sua totalidade, se admitíssemos
a tese de Natorp, de que tais passagens do livro VI são interpolações.
A dedicação exclusiva, já tratada acima, de cinco capítulos inteiros do livro L à
análise da essência sensível, também é utilizada por Patzig em sua tentativa de obter uma
solução menos radical que Natorp e Jaeger. Refere-se a este fato para mostrar a fraqueza
da teoria de Jaeger segundo a qual a fase primitiva de Aristóteles, à qual o livro L
pertenceria, é marcado pela “pura teologia” que antecede a fase madura do Filósofo, esta
sendo o período de ocorrência da ontologia universal, em que as essências sensíveis
ocupam a totalidade da investigação. Este argumento de Patzig, porém, é frágil. Nada
impediria que, em sua fase primitiva, Aristóteles tenha dedicado grande parte de suas
investigações à análise da essência sensível, e posteriormente concedido a tal estudo a
totalidade da Filosofia Primeira. A tese de Jaeger não pode ser abalada por esta referência
de Patzig aos cinco primeiros capítulos. No entanto, como afirmamos acima, já não
podemos aceitar a opinião de Jaeger de que os cinco primeiros capítulos do livro L são
meramente introdutórios.
A credibilidade de uma concepção que restaure a continuidade entre este livro e o
conjunto da Metafísica é então revigorada com os trabalhos de Patzig. A doutrina do
117
primeiro motor seria assim apreciada como uma obra genuinamente representativa da
plena maturidade intelectual de Aristóteles.
O Movente Imóvel do livro L mantém seu caráter polêmico até os dias de hoje.
Algumas tendências, contudo, confirmam-se. O terreno comum que partilham seus cinco
primeiros capítulos e o livro VII apontam para um evidente parentesco; nesta direção e
perspectiva devem desenvolver-se os novos estudos sobre o livro L.
Há, porém, a necessidade de um argumento mais sólido acerca da maturidade do
livro L e de sua eminente doutrina teológica. É o que procuramos oferecer na próxima
unidade. Veremos como o conceito de uma essência imóvel-motora pode ser percebido
como último escopo de uma cadeia hieráquico-conceitual pela qual o Estagirita obtém
uma imagem discursiva densa e coerente de toda a esfera dos entes.
118
SEGUNDA PARTE - O MOTOR IMÓVEL REALIZA A UNIDADE MÁXIMA DO ENTE
119
UNIDADE EM ARISTÓTELES Exame do problema da unidade em Aristóteles e sua relação com a noção de mesmo
(au)toj) e outro (alloj). Compreensão do caráter separativo e progressivo da unidade
em Aristóteles.
A compreensão da noção de unidade em Aristóteles é inefetiva se desgarrada da
antecedente platônica que lhe serviu de base e diante da qual se construirá criticamente. É
a partir de um desprendimento de certas exigências da henologia do mestre, que
Aristóteles estabeleceraá sua própria concepção acerca da unidade em geral e da fonte de
toda unidade do ente.
No diálogo de maturidade Parmênides, Platão nos brinda com o célebre eleata a
discorrer acerca da natureza do um absoluto, o um em si mesmo, abstraído de toda
referência sensível. O um absoluto, a idéia do um, é a idéia das idéias, de que participam
todas as idéias. O diálogo, contudo, nos mostra que a idéia do um, quando inteligida
relativamente às outras idéias – como, por exemplo, a do múltiplo, do grande e do
pequeno - suscita inevitáveis paradoxos. No entanto, como só se pode inteligir algo
distinto inteligindo, também, as idéias derivadas da idéia do um, então a idéia de um não
pode ser inteligida sem gerar dificuldade (aporia), pois sua intelecção, para que tenha
genuíno valor cognitivo, envolve relação entre a própria idéia do um – que é o objeto da
intelecção – e outras idéias derivadas do um, sem as quais nenhuma intelecção é possível.
A lição que podemos tirar do “Parmênides” é que nada é absolutamente um, quer
dizer, indivisível sob todos os aspectos, embora todas as coisas pressuponham, pelos
graus de unidade a que pertencem, o um absoluto, como medida de todos os outros “uns”.
O um absoluto é uma imposição ontológica, uma instância última a qual todas se referem.
120
É mais uma exigência do que uma constatação. O um absoluto, mais que um ser, é um
“dever ser um”.
O um é a negação do múltiplo. A unificação efetiva uma diferenciação do
múltiplo externo e uma equalização do múltiplo interno. Quanto mais homogeneidade
interna, maior a multiplicidade externa e menor a multiplicidade interna. No momento em
que a coesão se torna intensa de tal modo que não há qualquer grau de multiplicidade
interna, o que restará para o ser do um negar? Tal aporia provém de uma constatação
decisiva de Platão. No domínio do puro um e do puro múltiplo, o que é um para um
múltiplo pode se tornar - a partir de múltiplas relações com sua própria unidade -
múltiplo para si mesmo revelando, assim, seus uns constitutivos. Platão demonstra que o
um não é o mesmo de fora para dentro e de dentro para fora. As duas perspectivas – a
centrípeta e a centrífuga – coexistem no um. Daí que o um tenha sempre um outro um
dentro de si e outro um fora de si, e além disso, seja outro que o outro de si. Porém, no
domínio do puro um outra proposição se faz necessária: a pura relação um-múltiplo
desconhece a distinção aristotélica entre o ser da essência e o ser do concomitante. Onde
há ser, há também essência. A ousía em Platão nada mais é a aquilo de que participa tudo
o que é. Tudo o que é participa da essência. Aqui não há lugar para concomitante. O que
seria um mero concomitante é contemplado como outra essência:
“Mas se dizemos coisas verdadeiras, é evidente que as dizemos como sendo. Ou
não é assim? – É efetivamente assim. – Uma vez pois que afirmamos dizer coisas
verdadeiras, é-nos necessário afirmar também que dizemos coisas que são. – É
necessário. – Logo, segundo parece, o um que não é, é. Pois se ele não for algo
que não é, mas se, de certa maneira, largar o ser por conta de seu não-ser,
imeditamente será algo que é. – Absolutamente sim. – Logo, é preciso que ele
tenha o ser-algo-que-não-é como um elo com o não-ser, se deve não ser, de modo
121
semelhante justamente a como o que é precisa ter o ‘não ser algo que não é’,
para que, por sua vez, perfeitamente seja. Pois assim, o mais plenamente possível,
tanto o que é será, quanto o que não é não será, participando o que é da essência
“ser algo que é”, e da não essência “não ser algo que não é”, se deve
perfeitamente ser; e participando o que não é da não essência “não ser algo que
é” e da essência “não ser algo que não é”, se também o que não é, por sua vez,
perfeitamente não for.”40
ei¹ de\ a)lhqh=, dh=lon oÀti oÃnta au)ta\ le/gomen. hÄ ou)x ouÀtwj; – OuÀtw me\n ouÅn. – ¹Epeidh\ de/ famen a)lhqh= le/gein, a)na/gkh h(miÍn fa/nai kaiì oÃnta le/gein. – ¹Ana/gkh. – ãEstin aÃra, w¨j eÃoike, to\ eÁn ou)k oÃn: ei¹ ga\r mh\ eÃstai mh\ oÃn, a)lla/ pv tou= eiånai a)nh/sei pro\j to\ mh\ eiånai, eu)qu\j eÃstai oÃn. – Panta/pasi me\n ouÅn. – DeiÍ aÃra au)to\ desmo\n eÃxein tou= mh\ eiånai to\ eiånai mh\ oÃn, ei¹ me/llei mh\ eiånai, o(moi¿wj wÐsper to\ oÄn to\ mh\ oÄn eÃxein mh\ eiånai, iàna tele/wj auÅ [eiånai] vÅ: ouÀtwj ga\r aÄn to/ te oÄn ma/list' aÄn eiãh kaiì to\ mh\ oÄn ou)k aÄn eiãh, mete/xonta to\ me\n oÄn ou)si¿aj tou= eiånai oÃn, mh\ ou)si¿aj de\ tou= <mh\> eiånai mh\ oÃn, ei¹ me/llei tele/wj eiånai, to\ de\ mh\ oÄn mh\ ou)si¿aj me\n tou= mh\ eiånai [mh\] oÃn, ou)si¿aj de\ tou= eiånai mh\ oÃn, ei¹ kaiì to\ mh\ oÄn auÅ tele/wj mh\ eÃstai.
Como conseqüência, não há unidade para a essência, pois qualquer coisa que a ela
se refira, mesmo que a título de negação, é uma nova essência dentro da essência, o que
significa a dissolução do que antes considerávamos essência. Se toda referência é
essência, toda essência se dissolve em pura referência. Ora, mesmo a pura concomitância
é referência. Ainda que da essência, extrínseca e concomitantemente, seja verdadeiro o
dizer que ela não é um certo algo, o não-ser certo algo significa, na própria essência, uma
não essência. Além disso, a própria verdade desta negação que constitui a não essência
nos dizemos que é uma verdade. Daí que se trate não somente de algo que participa do
não-ser, mas também do ser, ou seja, outra essência.
40 Parmênides, 162a8
122
Platão sustenta que, embora o ente dependa da essência, o um independe do ente e
da essência. O um é e não é. Eis a conclusão inevitável deste Diálogo. As duas
alternativas tem o mesmo direito ontológico. Logo, o um está acima do ente. É supra-
ontológico.
O um em Aristóteles, por outro lado, tem que ser uma essência ou ser relativo a
uma (prós hên) essência . O ser repousa na essência, pois que todos os seus sentidos
convergem subalternamente para a essência. Adotando a tese platônica da
conversibilidade de ente e um, o Filósofo faz repousar também o um na essência, e esta
no indivíduo. É que, se os termos são conversíveis, seus ápices semânticos coincidirão.
De fato, se o um é o que não é múltiplo, é forçoso que seu mais alto grau seja, por si
mesmo, algo não-múltiplo, ou seja, um indivíduo. Ora, a essência é o mais alto grau de
indivíduo auto-subsistente. Daí que a essência suporte o ente e o um. Suporta o ente por
sua própria significação de ente primeiro. Quanto ao um, decorre imediatamente da
autonomia da essência. O um de Aristóteles é um princípio constitutivo. Só pode haver
referência à unidade do ser porque há, primeiramente, entes por si mesmos unos que
constituem a totalidade do ser, isto é, as essências individuais. Enquanto em Platão a
noção do um é idéia-limite para o máximo de simplicidade possível, a noção do um em
Aristóteles requer unidades por si mesmas efetivas e individuais.
Em Aristóteles, portanto, o ente e o um, sob qualquer perspectiva, se implicam
mutuamente. Em Platão, sob determinadas perspectivas dialéticas o ente e o um não
coincidem. Este é, talvez, o ponto mais radical da crítica aristotélica à Teoria das Idéias:
123
“Além disso, parece impossível que a essência seja separada daquilo de
que é essência; conseqüentemente, se são essências das coisas, como podem as
Idéias serem separadas delas?”41
eÃti do/ceien aÄn a)du/naton eiånai xwriìj th\n ou)si¿an kaiì ou h( ou)si¿a: wÐste pw½j aÄn ai¸ i¹de/ai ou)si¿ai tw½n pragma/twn ouÅsai xwriìj eiåen;
Mas se, como pretende Aristóteles, o ente e o um são sempre conversíveis e
pertencem ao mesmo, o um, por si próprio, conduz ao ente, assim como o ente, por si
próprio, conduz ao um. Os “uns” por excelência, as formas, por si mesmas conduzem ao
ser, tanto em si mesmas, quanto em outros. O eîdos transmite seu próprio ser a outro ente,
enformando, a maneira de modelo (paradeigma), outro eîdos correspondente:
“Em outro sentido, causa significa a forma e o modelo.” (1013a24) (aÃllon de\ to\ eiådoj kaiì to\ para/deigma)
Assim, as formas são, autonomamente, causas da geração dos entes. Cada unidade
formal também é, imediatamente, uma unidade ôntica, na exata medida com que produz
movimento. Daí que possamos dizer que, em Aristóteles, o movimento é universal, pois
todas as coisas ou vem a ser pelo movimento (matérias enformadas ), ou passam a existir
pelo movimento (formas materiais) ou produzem o movimento (formas puras). O que
confere unidade a cada ente sensível, desde sua gênese, é o movimento da forma do
gerador na direção de sua matéria própria. Desde então sua matéria foi enformada e o
concreto (su/noloj) veio a ser.
Platão precisou recorrer ao demiurgo para explicar a síntese das formas com a
matéria, pois suas formas não poderiam, por si mesmas, gerar o ser. É que o um, de que
participa cada forma, tanto é como não é, dependendo da perspectiva dialética. Ora, o que
41 Met. 991b1
124
pode ser ou não ser deve buscar além de si a causa adicional para ser, algo que faça
pender o um para a alternativa do “ser”. Eis a aporia platônica: o um será o ser e o não-
ser com necessidades de tal modo equivalentes que acaba por não poder gerá-los. A dupla
possibilidade ontológica torna a distância entre o ente e o um, outrora inexistente, agora
abismal. O um de Platão não é o um de Aristóteles. Está tão acima do ente que não pode
explicá-lo.
Consideremos da seguinte maneira:
Henologia parmenídica: o ente e o um são imediatamente o mesmo.
Henologia platônica: o ente pode se separar/diferir do um.
Henologia aristotélica: após a separação de cada um de sua essência há o
reconhecimento da identidade de ambos em outro nível semântico, com a ulterior
atribuição do nome de cada um ao mesmo somente enquanto puro ente, quer dizer, à
essência. Segue então a primazia nominal do ente, isto é, o nome do um é mais próprio do
um enquanto puro ente do que do um enquanto um. O um deve ser referido a um ente por
si para ser um de fato. O um, como dizia Parmênides, é idêntico ao ente, mas com a
condição de que seja tomado em sua natureza própria - a essência primeira - e não em
sentido concomitante:
“No caso das coisas que se dizem por concomitância, cada um e sua
essência são diferentes.” (Met. 1031a19)
e)piì me\n dh\ tw½n legome/nwn kata\ sumbebhko\j do/ceien aÄn eÀteron eiånai Caso contrário, não haverá identidade onto-henológica , ou seja, entre o um e o
ente. Cairíamos no paradigma platônico.
125
Platão postula uma instância acima da essência, o um, que seria uma super-
essência, um além do ser, no qual até mesmo o não-ser poderia se dar. Aristóteles, porém,
quando ultrapassa o ser, de novo a ele retorna, atribuindo-lhe o mesmo nome, e ainda
com mais força e direito. A instância mais íntima do ser, a essência primeira (proto
ousia), é a causa do ser. Mas a causa do ser não está além do ser, a ponto de poder negá-
lo, pois a causa do ser é o to ti en einai, ‘o que era o ser’ ou seja, “o ser-prévio” o ser
anterior ao ser. A causa do ser é mais ser do que o ser causado em geral. É por isso que
Aristóteles, ao indicar o objeto da ciência primeira, pode falar tanto em ente enquanto
ente como também em ‘princípio e causas do ente enquanto ente’, assim como em
‘princípios e causas da essência’. Na verdade, tudo que é, é ente. Mas ao se referir ao ente
enquanto tal pode-se denominá-lo a causa do ente. Assim, o que causa o ente é mais ente
do que o ente causado. É ente enquanto tal. E quanto mais causador é um ente, com mais
direito será chamado um ente. Ora, como a essência é o próprio ente causador da
‘entidade’ de tudo o mais, a mesma perspectiva pode ser aplicada dentro do próprio
âmbito essencial. Este é o fundamento mesmo da possibilidade se referir a uma essência
primeira, algo realizado especialmente, embora com sentidos não coincidentes, no Livro
H da Metafísica e em Categorias. É que Aristóteles segue aqui um princípio heurístico
muito aplicado em seu pensamento, que podemos denominar princípio da hierarquia
cumulativa: o anterior detém, em maior grau, tudo o que de positivo que há no posterior.
Exemplos: “o que é anterior à efetividade é efetividade em maior grau”, “Aquilo pelo que
cada coisa está presente sempre está presente em um grau mais elevado”42 (ai¹eiì ga\r di'
oÁ u(pa/rxei eÀkaston, e)kei¿n% ma=llon u(pa/rxei). Daí que a causa de algo ser
42 An. Post. 72a28
126
essência é, ainda em maior grau, a essência. Eis o princípio da hierarquia cumulativa
aplicado à forma como essência primeira. A enunciação de tal princípio, inclusive com o
caráter da primazia nominal que segue da primazia ontológica, foi bem expresso no Livro
a da Metafísica:
“O que possui um nome compartilhado pertence em maior grau àquilo em virtude
do que tal coisa também está presente em outros. Por exemplo, o fogo em quente
em máximo grau, porque ele é causa do calor em outras coisas. Portanto, o que é
causa do ser verdadeiro das coisas que dele derivam deve ser verdadeiro mais
que todos os outros.”43
eÀkaston de\ ma/lista au)to\ tw½n aÃllwn kaq' oÁ kaiì toiÍj aÃlloij u(pa/rxei to\ sunw¯numon (oiâon to\ pu=r qermo/taton: kaiì ga\r toiÍj aÃlloij to\ aiãtion tou=to th=j qermo/thtojŸ: wÐste kaiì a)lhqe/staton to\ toiÍj u(ste/roij aiãtion tou= a)lhqe/sin eiånai.
O referido princípio constitui umas das principais notas estruturais da hierarquia
autológica do ente, cujos cinco níveis fundamentais serão abordados nos capítulos que
seguem. Assim, veremos que - no sentido ascendente - o segundo nível contém tudo o
que o primeiro contém, acrescido de uma nota não encontrada no primeiro. Com efeito, a
essência deve, antes de mais nada, ser não-contraditória, pois a natureza intrínseca do
ente deve manter-se em condição de firme auto-identidade. Mas esta nota é atingida
como simples decorrência da autarquia essencial, cuja auto-subsistência, no entanto, não
está presente nos entes do primeiro nível, isto é, não decorre simplesmente do caráter
não-contraditório do ente. Verificaremos o mesmo fato ontológico quando progredirmos
na escala autológica, pois o terceiro nível (alma) está para o segundo (essência) assim
como o segundo (essência) para o primeiro (ente) e o quarto (inteligência) está para o
43 Met. 993b23
127
terceiro assim como o terceiro para o segundo. Assim, toda a essência possui a autologia
não-contraditória do ente em geral, mas tal caráter é dado pela sua própria auto-
subsistência, e não como esta fosse algo colocado ao lado de sua não-contraditoriedade.
Do mesmo modo, toda alma é auto-subsistente, pela própria natureza de sua auto-
efetividade, que não pertence a todas as essências, mas somente às essências vivas. O
mesmo raciocínio aplicamos à auto-enformação da inteligência relativamente à auto-
efetividade da alma. Finalmente, o quinto nível, que identificaremos como o motor
imóvel, implica em si todas as notas dos níveis anteriores, dentro de sua própria natureza
supra-sensível: a auto-ciência absoluta e auto-suficiente. Ao longo dos capítulo seguintes,
apreciaremos cada um destes cinco principais graus ontológicos. Voltemos à reflexão
sobre a especificidade da henologia aristotélica.
Resta ainda uma diferença radical entre a henologia aristotélica e a platônica, que
já fora expressa por Aubenque:
“Se a separação comprometia em Platão [...] a unidade do mundo e do
ser, em Aristóteles ela se torna, paradoxalmente, e em outro sentido, o princípio
mesmo da unidade [...] A unidade não é mais uma propriedade de todos, mas está
mais ou menos presente em cada coisa, e não está presente totalmente senão em
Deus.”.44
Denominemos, pois, a unidade aristotélica “unidade separativa” em contraposição
à unidade integrativa de seu mestre ateniense.
É que, como bem notou Aubenque, ao contrário da unidade platônica, a unidade
aristotélica tende à exclusão do outro. O um de Platão, mesmo quando parece excluir o
não-um para fazer valer sua natureza, reverte o sentido de unificação de modo a transferir
a natureza una até mesmo ao que parecia inevitavelmente múltiplo:
128
“- Bem, já que precisamente são outras que o um, tampouco são o um as
outras coisas, não é? Caso contrário, não seriam outras que o um. - Tampouco,
por outro lado, as outras coisas estão privadas totalmente do um, mas sim
participam dele de alguma maneira. - De que maneira? - Porque, penso, as
coisas outras que o um, é por terem partes que são outras. Pois, se não tivessem
partes, seriam inteiramente um. - Correto. - Mas partes, afirmamos, são partes de
um todo. - Com efeito, afirmamos. - Entretanto, é necessário que o todo seja um
formado de uma multiplicidade de coisas, e desse um as partes serão partes.”
(Parm 157.b.8)
Ou)kou=n e)pei¿per aÃlla tou= e(no/j e)stin, ouÃte to\ eÀn e)sti taÅlla: ou) ga\r aÄn aÃlla tou= e(no\j hÅn. - ¹Orqw½j. - Ou)de\ mh\n ste/retai¿ ge panta/pasi tou= e(no\j taÅlla, a)lla\ mete/xei pv. - Pv= dh/; - àOti pou ta\ aÃlla tou= e(no\j mo/ria eÃxonta aÃlla e)sti¿n: ei¹ ga\r mo/ria mh\ eÃxoi, pantelw½j aÄn eÁn eiãh. - ¹Orqw½j. - Mo/ria de/ ge, fame/n, tou/tou e)stiìn oÁ aÄn oÀlon vÅ. - Fame\n ga/r. - ¹Alla\ mh\n to/ ge oÀlon eÁn e)k pollw½n a)na/gkh eiånai, ou eÃstai mo/ria ta\ mo/ria:
É que se trata da concepção de uma unidade que deve abarcar toda a esfera do ser
de uma só vez. Aristóteles, por seu turno, insiste em uma possibilidade de unificação que
dê conta de cada ente e cada região do ser por vez. O caráter de medida é tomado como a
noção mais originária do um. Ora, ser a condição para que possamos contar uma
determinada quantidade já manifesta o caráter separativo do um, pois contagem dos
elementos pertencentes a uma dada esfera do ser exige, primeiramente, que tomemos,
quer pela percepção, quer pela concepção, cada elemento separadamente de seu vizinho.
O que permite isso é a prévia noção do um aplicada particularmente àquele caso, pois o
um numérico é sempre um de alguma coisa, ou seja, sempre se refere a algo determinado.
Ora, temos então de nos ater um pouco mais na noção de ente separado
(xwristo/n), fundamento da noção do um em Aristóteles.
44 Aubenque, 1962, pág. 409.
129
Reale45 detectou três empregos de xwristo/n em Aristóteles. É usado com o
significado de a) separado dos sensíveis, quer dizer, como supra-sensível; b) auto-
subsistente, o que existe separadamente e c) separado pela inteligência. Faltou, porém,
uma reflexão mais profunda acerca da natureza do xwristo/n, que encontrasse o fundo
comum das três acepções, além do nexo hierárquico que há entre elas. Na verdade, de
todos os significados acima referidos, o que mais coincide com a idéia nuclear do termo é
a de auto-subsistente, observando que auto-subsistência não somente enquanto existência
física independente. O nível mais fraco de auto-subsistência, de autonomia, é a
gnosiológica. É a possibilidade de um ente ser passível de intelecção separadamente dos
demais. Em poucas palavras: a efetividade de análise cognitiva. Neste âmbito entram os
objetos matemáticos, que são passíveis de intelecção independentemente das coisas por
eles quantificadas. Os Livros M e N da Metafísica rechaçam qualquer possibilidade de
existência física destes objetos. Todos são modos de considerar o ente sensível. Em si
mesmo, o número não existe. Existe o objeto material enquanto numerável.
A existência física é justamente o nível imediatamente superior de separação.
Trata-se da separação da inteligência. Os objetos matemáticos são separados pela
inteligência, mas não da inteligência. Suas noções são separáveis cognitivamente das
outras noções em virtude da inteligência. Entretanto, exatamente por conta de seu débito
existencial para com a efetividade intelectual, não podem dela prescindir para existir. Os
entes físicos, por outro lado, existem mesmo que não sejam objetos de intelecção.
A condição de máxima separação, de auto-suficiência total só é atingida pelas
essências que prescindem tanto da matéria como da inteligência para existir. Somente os
45 Reale, 2002, pág. 307.
130
objetos teológicos se encontram em tal condição. Para um melhor entendimento da
convergência das noções de essência e separação, que em seus estágios mais elevados
coincidem, devemos analisar o nexo íntimo que tais noções devem manter já no nível
mais geral e indeterminado.
O separado (xwristo/n) é aquilo que, primeiramente, sofreu um processo de
demarcação de limite (pe/raj). Ora, essência demarca uma fronteira entre o que é uma
coisa e o que está fora de seu ser e compreensão. Daí que, no livro D da Metafísica
Aristóteles estabeleça a essência e o ser-prévio no mesmo sentido de limite, “pois o ser-
prévio é o limite de conhecimento da coisa e, se é limite de conhecimento, é também da
coisa”. No entanto, como já vimos acima, em certos entes, como os objetos matemáticos,
o seu limite de conhecimento não é somente um limite para sua essência, mas também
para sua própria separação, seu ser separado (xwristo/n). Quanto mais definido o limite
da coisa, mais propriamente será denominada uma essência. Daí que Aristóteles
recorrentemente descarte os objetos matemáticos como genuínas essências, embora
reconheça que certos filósofos não rejeitaram tal possibilidade.
Toda essência, enquanto limite da coisa, demarca uma fronteira, uma separação,
entre o que é a essência e o que pertence apenas ao meio circundante. Sendo assim, o
ponto máximo do limite, quer dizer, o limite do limite, é a separação máxima que pode
haver entre a essência e o que apenas agrega. Só podemos conceber esta separação como
uma autonomia absoluta da essência relativamente ao que dela diverge. Sabemos pelo
Livro Z que a essência em seu sentido mais eminente - a próte ousia - é forma pura, sem
a consideração da matéria, embora a forma seja a causadora da matéria (aition thês hýlê).
Portanto, o limite máximo deve separar da matéria, pois esta não faz parte da essência
131
primeira. Contudo, o limite que separa a essência corruptível de sua matéria não é rígido,
pois não há autonomia absoluta. De fato, embora a essência determine a matéria, não
pode subsistir sem um suporte material. A forma corruptível é sempre uma forma
material. Somente uma essência supra-sensível é um limite no grau máximo de sua
função demarcatória. Aqui não há qualquer contato entre essência e não-essência. Tal
essência, em lugar de demarcar limite com outro ser - limite esse que, assim como toda
fronteira, une e separa simultaneamente – toca seu próprio limite, anulando a
possibilidade de um limite compartilhado.
Seguindo tal modelo explicativo da noção de unidade separativa, que tende uma
abstração máxima e radical da forma relativamente ao sujeito material, percebemos os
seguintes momentos em escala:
Primeira separação – entre o ente e o não-ente:
Tópico extensa e intensamente desenvolvido no livro G da Metafísica, no que constitui a
separação mais fundamental, porquanto de todo ente em geral, isto é, do ente enquanto
ente. A verdade que corresponde ao ente é “dizer que o que é é e que o que não é, não é.
Ser e não-ser não podem se fundir completamente. Haverá sempre um aspecto segundo o
qual estarão rompidos um com o outro, “pois é impossível, ao mesmo tempo, o mesmo e
não o mesmo estarem presentes no mesmo, segundo o mesmo (aspecto)” (to\ ga\r au)to\
aÀma u(pa/rxein te kaiì mh\ u(pa/rxein a)du/naton t%½ au)t%½ kaiì kata\ to\ au)to/).
Eis o princípio de não-contradição, determinado no Livro G da Metafísica.
Segunda separação – entre a essência e a não-essência (concomitantes e
categorias):
132
A essência é o “ente enquanto ente e enquanto separado”. Somente a essência
pode existir por si mesma, sem estar agregada ou simplesmente acompanhar outro ente
em sentido mais eminente.
Terceira separação – entre a natureza e o acaso ou autômato.
Quarta separação – entre o animado e o inanimado:
O vivo se distingue do não-vivo pela sua capacidade de mover a si mesmo, se
destacando do meio circundante pela insistência de sua forma imanente, levado à
efetividade completa desde a primeira potência material. A nutrição do ser vivo, descrita
no Da Anima, é o primeiro estágio da separação da matéria não-viva, na elaboração de
seus componentes, que servem à forma autônoma do vivo.
Quinta separação – entre a inteligência e o objeto de intelecção (entre a
inteligência e as partes da matéria):
O fim do De Anima é o lugar da célebre doutrina da “inteligência produtiva”,
acerca da qual Aristóteles conclui sua separação da própria alma material, não obstante
seja uma parte da mesma. É que a inteligência não é efetividade da matéria. É efetividade
da alma, quer dizer, efetividade de uma efetividade da matéria. Meta-efetividade.
Enquanto as demais partes da alma são atos de partes determinadas de matéria, sendo
funções de órgãos singulares, a inteligência não é função de nenhum órgão, daí
decorrendo sua capacidade ultra-separativa.
Sexta separação – entre a inteligência pura e toda a matéria:
O motor imóvel, a “inteligência que intelige a si mesma” efetiva uma espécie de
separação apenas vislumbrada na inteligência produtiva dos homens. Ali a separação da
matéria é desde sempre e para sempre efetiva. Dizê-lo “efetividade pura” é expressar
133
também a separação definitiva entre efetividade e potência, também apenas prefigurada
nos demais âmbitos do cosmos, pois o que se dá realmente nos entes sensíveis é a
inescapável precedência temporal da potência à efetividade, ainda que a noção de
efetividade – enquanto coincidente com a própria noção da essência - possa ser
compreendida independentemente daquela.
A plena separação entre a inteligência suprema e a matéria conferiu à primeira,
justificadamente, o nome de motor imóvel. De fato, aqui se efetiva a mais radical e
imprevisível de todas as separações: aquela entre motor e movido.
Sob a ótica destes cinco principais graus de separação, podemos compreender de
modo mais satisfatório o que ficou conhecido como “teoria dos três graus” de separação
em Aristóteles, a saber, aquela estabelecida entre matemática, física e teologia:
Os objetos matemáticos são separados em potência, mas não em efetividade,
como os da física e metafísica. São modos de intelecção de objetos, pois são números, as
quantidades de entes. Justamente por isso, possuem matéria. É que o conceito de matéria
em Aristóteles co-implica o de potência, envolvendo também, portanto, a continuidade
própria das quantidades matemáticas, o que significa sua indefinida divisibilidade. Já no
Livro Z da Física Aristóteles havia utilizado tal constatação acerca da divisibilidade
indefinida do contínuo contra os paradoxos quantitativos de Zenão. Embora a quantidade,
tomada em si, transcenda a corrutiibilidade do quantificado sensível, o mesmo não se
pode dizer de sua potencialidade, que compartilha com todos os entes materiais.
Os objetos da física, por sua vez, não são separados em efetividade do substrato
material. Portanto, nem mesmo entre si são separados totalmente. Mesmo os corpos
134
celestes, elevados pelo filósofo quase ao status de deuses, escapam desta sentença, na
medida em que são causas mútuas de movimento.
Os objetos da teologia são separados em efetividade entre si e dos objetos da
física. São absolutamente imateriais, posto que sua efetividade própria é definitivamente
separada de toda potencialidade.
Voltemos ao esquema das seis separações. Ficará claro, no capítulo dedicado à
separação da essência, que o conceito desta última conduz – não só em Aristóteles, mas
também em seu mestre Platão – ao conceito de natureza e à sua respectiva separação do
anti-natural (paraphýsis). Portanto, podemos dizer que, em certo aspecto, o mais
fundamental, trata-se apenas cinco separações principais, embora cada qual seja passível
de diversos subníveis. Um bom exemplo de subnível são os corpos celestes, que
Aristóteles percebia como seres vivos e, portanto, em nossa esquema atual, ocupando o
nível da escala. Contudo, trata-se de uma perfeição ulterior dentro deste mesmo nível,
que o aproxima mais ainda do seguinte, relativo à separação da inteligência, razão porque
não devemos nos surpreender com sua doutrina das inteligências celestes. O fato é que a
circularidade dos movimentos destes corpos já é um prelúdio da auto-suficiência superior
que será atingida pela inteligência do corpo celeste. A Física de Aristóteles dedica
extensas discussões acerca do caráter único do movimento circular, que faz o móvel se
voltar para si mesmo e unir princípio e fim de seu movimento, de modo a conseguir, de
tal forma, a eternidade cinética. Citamos este caso porque nos permite vislumbrar, de uma
só vez, a possibilidade de níveis internos aos cinco já estabelecidos, como também ao
sentido mesmo da escala, que é de natureza autológica. O que pretendemos com isso
ficará mais evidente com o que segue.
135
Platão toma a essência como a própria idéia do ente. Aristóteles, por outro lado,
sustenta que a essência deve ser determinada (tóde ti) e não participativa. Platão entende
que o núcleo do ente é o próprio ente em geral, mas na forma do princípio, isto é, a idéia
originária do ente, fonte de todo ente. Embora transcendendo a totalidade dos entes, o
ente em si é sua fonte primeira, da qual promana seu ser. A separação entre o puro ente e
os demais entes, portanto, não é determinada, mas sim problemática. O ente será este ou
aquele ente, dependendo da perspectiva cognitiva em que é tomado, isto é, do ente
particular em questão que dele participa. Isto significa que haverá, simultaneamente,
muitas verdades contrárias a respeito do ente: alto, baixo, reto, curvo, bastando a
variedade infinita de entes em que se encontre. Aristóteles, por outro lado, encontra o
núcleo do ente na separação de ente e não-ente que instaura o ente, no limite entre o ente
e o não-ente, que é a forma: o núcleo do ente é o princípio separativo do ente. Enquanto
seu mestre adota o puro ente como o núcleo do ente, Aristóteles vê no confronto com o
não-ente a instância mais central do ente. Mais do que isso: como não há puro não-ente
em Aristóteles - o não-ente nascendo apenas do confronto do ente com outra
possibilidade não efetiva do ente - o ente enquanto tal se fundamenta na contraposição
com o próprio ente enquanto outro, quer dizer, na diversidade eterna do ente. O múltiplo
se coloca de saída no ente, e de modo inescapável, porquanto fundador. Desde o princípio
há separação no ente. E somente na graduação desta separação descobrimos o critério da
menor ou maior centralidade do ente, que determina o que é e o que não é essência, e o
que é essência com mais direito e efetividade. A negatividade do ente lhe confere
concretude. O confronto com o não-ente e, principalmente, com o próprio ente,
incrementa a consistência mesma da noção de ente, pois, quanto mais o ente se mantém a
136
despeito da possibilidade de não ser, mais afirma sua autonomia e independência
relativamente ao ente circundante que está sempre na situação de ente indeterminado.
Com efeito, o puro ente é predicado seguramente de tudo, justamente pelo que é abstrato,
apenas noção de uma vaga comunidade. O puro ente é irreal, ainda que se refira também
a coisas reais. Sendo predicado até mesmo do que não é, o ente não confrontou o não-
ente, apenas assumiu sua possibilidade. Não operou a devida separação do não-ente e dos
outros entes em vista de sua própria consolidação. Se o fizesse, não seria mais apenas o
puro ente, mas o puro ente tomado em sua mais genuína acepção porquanto efetivamente
separado do não-ente em geral, e do não-ente que constitui a concomitância em geral e a
potencialidade da matéria. Em outras palavras: a essência. É a essência aquilo que
constitui o nível do ente mais primitivo, porque dela dimana toda a possibilidade dos
outros entes, todas as alternativas segundo as quais dizemos que algo é. Na verdade,
podemos agora fazer uma retificação que outrora seria obscura: a essência - puro ente
enquanto separado - constitui um nível de ente ainda mais puro do que o então
denominado puro ente, pois aquele mantinha tal comércio com o não-ente que, de certo
modo, não se encontrava suficientemente separado de sua esfera de atribuição, como bem
demonstrou o próprio Platão no fim de seu diálogo Parmênides.
Em poucas palavras, podemos então expressar a atitude ontológica de Aristóteles
da seguinte maneira.
A separação henológica é simultânea à autologia do ente. Com o termo autologia
queremos signficar aqui algo fundamental na doutrina do ente em Aristóteles: a
enunciação da relação do ente consigo mesmo, seja qual for o nível que examinarmos.
Em qualquer instância de enunciação, o ente enunciado se impõe à enunciação. Mesmo o
137
nível mais elementar, de uma qualidade provisória de uma essência, manifesta este
caráter auto-positivo na enunciação. A constatação da cor branca exige, por si só, a
impossibilidade de sua negação ao menos no nível imediato de sua apresentação. Em
outras palavras: ainda que o sujeito em questão não seja branco, ou que deixe de ser no
momento seguinte, não será possível invalidar o enunciado revelador do instante em que
a cor branca se fazia presente à sensação, assim como a natureza ontológica desta
enunciação, ou seja, o ser mesmo do branco, captado pela sensação e determinado pela
intelecção como distinto em si de qualquer outra cor possível. O ente, portanto, é ente
para si mesmo. O que faz de uma figura um triângulo é uma certa relação consigo mesmo,
a saber, relação entre os segmentos que o constituem e a conseqüente soma de seus
ângulos internos uns com os outros, soma constante e diferente da verificada em qualquer
outra figura. O ente é porque é um consigo mesmo e porque e somente porque se separa
do outro enquanto um e não o outro. Daí que o Filósofo se veja obrigado a afirmar que "o
ente e o um são o mesmo e a mesma natureza, por seguirem um ao outro." (Met. 1003b22)
(to\ oÄn kaiì to\ eÁn tau)to\n kaiì mi¿a fu/sij t%½ a)kolouqeiÍn a)llh/loij). Há,
portanto, total contemporaneidade entre o ente, o um, o mesmo e o separado.
A escala autológica, portanto, consistirá nos diversos graus de efetividade do ente
com seu próprio ser, desde o puro efetivar para fora de si, em outro e para outro – o qual
respeita a identidade do ente em geral consigo mesmo – até a pura inteligência de si,
circuito fechado com seu ser, passando pelo automovimento da vida e a auto-enformação
da inteligência em geral. Vemos, assim, que há uma intensificação estratificada do
mesmo (to autó), uma intensifição da autologia do ente, isto é, da enunciação da auto-
relação do ente. O ente se revela cada vez mais o mesmo, na medida em que subimos
138
pelas camadas. “Cada vez mais o mesmo significa”: sob cada vez mais aspectos o mesmo.
Ora, vimos que no puro ente em geral há um princípio que diz: “o mesmo não pode
pertencer e não pertencer ao mesmo, ao mesmo tempo e segundo o mesmo” (Metaph
1005b.20) (to\ ga\r au)to\ aÀma u(pa/rxein te kaiì mh\ u(pa/rxein a)du/naton t%½
au)t%½ kaiì kata\ to\ au)to/). É o princípio mais universal de todos, o axioma supremo,
mas que, apesar disso, manifesta apenas o nível mais pobre da autologia do ente, somente
aqui o mesmo não se revela segundo todos os aspectos, mas, ao contrário, tal princípio
requer apenas que o correlato do mesmo – o outro – o qual significa a contradição, não se
instaure em todos os aspectos do ente, mas permita sempre uma perspectiva de auto-
identidade, ainda que apenas limitada a um instante indivisível. Esta é a importância do
fator tempo na enunciação do axioma, pois impede que dois “outros” dissolvam a
unidade última do “mesmo instante”, o qual é necessário para qualquer enunciado dotado
de sentido. Ora, qualquer conceito ou noção, por mais simples que seja, requer ao menos
um instante indivisível para sua cognição. Daí que, neste nível primitivo e universal da
autologia, o mesmo ocorra literalmente três vezes, a saber, no ente que está ou não
presente, no ente em que está presente e no aspecto segundo o que está presente. E,
contando com a mesmidade instantânea (aÀma), o mesmo ocorre quatro vezes. Aqui o
mesmo suporta ao menos três aspectos que o anulam, o que dissipa, em muito, a sua
potência signficativa, embora alargue ilimitadamente seu campo de aplicação.
Sendo assim, como dissemos acima, o nível autológico cuja lei é expressa pelo
princípio de não contradição é ainda muito incipiente e precário. No extremo oposto,
percebemos auto-unidade absoluta do motor imóvel, assim como os variados graus que se
interpõem entre ambos. Eis a hierarquia aristotélica do ente, que denominamos autológica.
139
Já concluímos que há uma simultaneidade originária entre o ente, o um e o
mesmo, que mantém estreita conexão segundo a efetividade de separação do oposto do
mesmo – o outro. Sendo assim, vale a pena explicita as três “logias” primordiais,
condições de possibilidade de todo “enunciado” (lo/goj) verídico:
1- Autologia: mesmo versus outro
2- Henologia: um versus múltiplo
3- Ontologia: ser versus não-ser
Repare que pusemos a autologia acima da henologia, e esta acima da ontologia,
não porque tenhamos negado a instantaneidade de tal relação, mas porque, em Aristóteles
– como vimos – há uma anterioridade instauradora do mesmo relativamente ao um, e do
mesmo do um relativamente ao ente. Isto quer dizer apenas que, quanto mais “o mesmo”,
mais “um” e, quanto mais um, mais “ente” e não que haja mesmo sem um ou um sem
mesmo. Na verdade, o mesmo, além de requerer o um e o ente, requer também – para sua
completude – um ente mais completo que o puro ente em geral. Requer a essência, o ente
em sentido eminente. Além disso, o mais alto grau de “um” e “mesmo” só pode se
realizar na estrutura de uma essência tal como o motor imóvel.
Prosseguindo com o raciocínio taxonômico, tão caro ao Estagirita, nos deparamos
com cinco espécies de enunciação ou discurso (lógos) correspondentes àqueles cinco
níveis autológicos do ente:
1- ontologia (teoria do ente)
2- ousiologia (teoria da essência ou do ente enquanto ente)
3- psicologia (teoria da alma ou da essência viva)
4- nousiologia (teria da inteligência ou da alma inteligente)
140
5- teologia (teoria de Deus ou da inteligência infinita )
No entanto, há mais para ser dito acerca da unidade separativa. Como vimos
acima, trata-se de uma unidade autológica. Dizer que a unidade do ente em Aristóteles é
autológica significa: o ente enuncia (légei) a si mesmo, remete a si mesmo no próprio
instante de sua unidade efetiva. Há uma auto-referência em todo ente e simplesmente
enquanto ente, ou seja, por si mesmo o ente se enuncia, e neste ato se afirma como
negação do não-ente para a efetuação de tal enunciado (lo/goj). E esta auto-enunciação
revela a própria unidade do ente consigo mesmo, pois não requer nada além de seu
próprio ser para se pôr como “um”. O caráter de “um” do ente é simultâneo ao seu caráter
de “mesmo” (autó), embora este seja em certo sentido anterior, pois é a autologia do ente
que condiciona e promove sua unidade. A estrutura autológica permite julgar a estrutura
henológica com mais razão e direito, pois é uma perspectiva mais interna, mais enraizada
na coisa. Trata-se, na verdade, da própria remissão do ente a si mesmo, seu modo
fundador e originário. A unidade, quando tomada no sentido interno de unidade do ente
consigo mesmo, de certa forma tem seu sentido de unidade esvaziado, pois o caráter de
“um” pressupõe ao menos uma referência possível com o não-um – o múltiplo –
relativamente ao qual este “um” é efetivamente um e não “mais de um”. Portanto, quando
nos referirmos a um sentido da unidade em que esta revela uma relação originária do ente
consigo mesmo, então já não se trata, na verdade, de pura unidade, mas de algo que a
antecede e a fundamenta. Entendemos aqui o mesmo que Heidegger procurou expressar
acerca da fórmula geral da auto-identidade do ente:
“A fórmula mais adequada para o princípio da identidade A é A não diz apenas:
cada A é ele mesmo o mesmo; ela diz antes: consigo mesmo é cada A ele mesmo o mesmo.
141
Em cada identidade reside a relação ‘com’, portanto, uma mediação, uma ligação, uma
síntese: a união numa unidade.”46
Heidegger enuncia aqui a necessidade originária de o ser do ente estar em relação
com o próprio ente, e não apenas se efetivar para fora dele, em direção ao ser do ente
geral que ele não é. Sem tal relação originária do ente consigo mesmo, não haveria
relação alguma com nada de extrínseco, pois nem sequer haveria ente. Se, como afirma
Aristóteles, todo ente é, simultaneamente um, e se o um originário – isto é, a condição de
possibilidade do um – não pode ser algo dado, extrínseco, mas uma relação de unificação
(união, em Heidegger), então o ente deve se unificar para ser o que é, mesmo no sentido
da unidade indivisível do instante. Assim, mesmo quando não há processo algum
envolvido, ali também haverá, de algum modo, um caráter de unificação, uma relação de
apropriação do ente por si mesmo.
A autologia é, portanto, um nível simultaneamente ontológico e henológico, de tal
modo implicado em ambos os níveis que permite ser enunciado indiretamente por cada
uma destas instâncias, como foi o caso agora, em que nos demos conta de uma unidade
do ente consigo mesmo. Ora, tal “consigüidade” é o mesmo (autó).
Se Platão, por seu turno, estabelece o “um” acima do “ente”, pode-se dizer que,
em Aristóteles, há uma anterioridade do “mesmo” relativamente ao ente e ao um, embora
não devamos, de modo algum, constatar aqui uma transcendência do mesmo - pois o ente
é imediatamente um e o mesmo. Apenas que a estrutura do mesmo permite um juízo
acerca da estrutura do ente e do um com tal rigor que não seria possível inversamente,
por dispensar a referência ao seu oposto - o não-ente – para ser passível de intelecção,
46 Heidegger, 1978, pág. 50.
142
embora signifique, concomitantemente, uma separação do não-ente, isto é, do ente que
cada ente não é.
Como a estrutura do mesmo é anterior à estrutura do ente e do um, uma
intensificação da relação do ente consigo mesmo naturalmente levará a uma
intensificação do grau de anterioridade do ente e do um. De fato, veremos que, quanto
mais estreita é a auto-remissão do ente, mais perfeita será a unidade e seu lugar na escala
hierárquica.
Guardemos a idéia expressa no parágrafo anterior. É o princípio fundamental que
nos conduzirá à natureza e à função última do motor imóvel no Corpus Aristotelicum.
Como vimos, cada ente é, imediatamente, um. Além disso, a unidade em
Aristóteles é separativa e cada um dos graus de separação pressupõe uma relação mais
estreita do ente uno consigo mesmo. Assim, a escala henológica de Aristóteles é uma
escala autológica de cinco graus. Estes cinco graus podem ser enunciados a partir do
próprio texto do Filósofo:
1) O ente em geral não pode ser e não-ser o mesmo segundo o mesmo e ao
mesmo tempo.
2) A essência de uma coisa significa que ela não pode ser diferente do que é. A
essência subsiste por si mesma, quer dizer, pelo efeito (érgon) de seu próprio ser
determinado.
3) A alma é o que, por si mesmo, efetiva o corpo vivo, pois é seu princípio vital.
4) A inteligência recebe, em si mesma, o seu objeto. É a forma das formas
somente porque é a forma que se enforma e informa a si mesma.
143
5) O ente supremo não pode ser e não ser o mesmo, absolutamente. Isto ocorre
somente porque é aquele cuja única efetividade consiste em inteligir a si mesmo.
Na verdade, a autologia é imanente ao ente. Assim, cabe questionar o que
significariam estes cinco níveis autológicos diante da possibilidade de um único fato
autológico universal. Oferecemos a seguinte perspectiva interpretativa.
A escala autológica de Aristóteles pode ser contemplada como cinco possíveis
revelações da autologia enquanto tal ou quatro revelações, a modo de explicitações, de
perfeições contidas eminentemente no quinto nível autológico. O quarto nível revela a
auto-enformação; o terceiro revela a auto-efetividade; o segundo revela a autarquia; o
primeiro revela a auto-identidade. Todas estas quatro perfeições existem no motor imóvel
em grau máximo, na efetividade indivisível da auto-intelecção:
1- auto-identidade – entes em geral, incluindo os concomitantes.
2- auto-autarquia – essências inanimadas.
3- auto-efetividade – essências animadas.
4- auto-enformação – essências inteligentes.
5- auto-intelecção – essência imóvel/auto-inteligente.
Cabe aqui, porém, um pequeno parênteses despretensioso acerca do sentido
mesmo desta estratificação já discutida por outros autores. Poderíamos perguntar: por que
a auto-suficiência perfectiva do último nível não lhe garante também sua unicidade
cósmica? Parafraseando Heidegger com sua célebre sentença “Por que há o ente e não
antes o nada?”, poderíamos adaptar aqui: “Por que há o universo e não apenas o motor
imóvel”? Perante uma questão tão extrema, não ousaríamos oferecer aqui uma resposta
sequer minimamente rigorosa. No entanto, a título de aprofundamento de nossas
144
presentes reflexões, a seguinte alternativa, oriunda em parte pela leitura de L 10, pode ser
apresentada.
A diferenciação em vários níveis torna mais bela a natureza do todo. A unidade
indivisível da inteligência revela toda a sua perfeição nas outras quatro divisões do ser. O
mundo não é somente emulação ou simulação do poder supremo. É sua revelação, isto é,
sua beleza, ou ao menos sua beleza passível de ser compreendida pela inteligência
humana. Na verdade, embora o motor imóvel atinja o máximo possível de separação
ontológica, veremos no capítulo dedicado à sua unidade que o significado mais
derradeiro de sua forma essencial não pode ser concebido sem os entes movidos do qual é
a completude (télos) jamais alcançada, mas sempre emulada. O último nível da escala,
portanto, não deixa de ser a forma de algo sensível – as esferas movidas – embora, neste
caso, a expressão ‘forma de’ não signifique qualquer espécie de comprometimento de sua
natureza supra-sensível com a sensível. Antes, o inverso é que é necessário, o sensível
tendo que, necessariamente estar voltado para o supra-sensível, mas de tal modo que o ser
mesmo do supra-sensível parece ter como função ser o suporte plenamente efetivo de
uma estrutura material orientada para a consecução de uma completude para sempre
potencial. Esta questão remete, na verdade, a outra bem mais simples e difícil: as relações
móvel-imóvel e temporal-intemporal em Aristóteles, tópico que será tratado com a
exigência necessária somente no capítulo relativo à unidade autológica do motor imóvel.
Ali apreciaremos as conseqüências para a teoria cinético-temporal deste conceito único
criado por Aristóteles, paradoxal já na própria expressão que o celebrizou.
145
UNIDADE DOS SENTIDOS DO ENTE Estudo dos sentidos do ente é imprescindível se o objetivo é averiguar o significado de
uma ciência do sentido fundamental do ente - o ente enquanto ente.
Há vários sentidos do ente (tò on). Cada qual é um modo de dizer o ente. A
relação entre os vários sentidos não é uniforme e homogênea. Na verdade, há uma
centralidade no ente, de ordem semântica e existencial, pois cada modo de dizer o ente
corresponde a um modo de ser do ente. Há, portanto, graus do ente. O ente por
concomitância é um ente por outro. Nele não há legítima unidade. A correspondência
com o ser do ente é aqui a mais frágil possível. O ser do concomitante é muito mais um
ser da linguagem do que de realidade, muito embora remonte sua origem a algo
autonomamente real e subsistente. Este centro de onde o concomitante retira sua tênue
existência é a essência, o ente por excelência, que existe por si mesmo, independente
tanto da linguagem quanto das vicissitudes sensíveis. Supomos, por exemplo, um homem
branco. O branco existe, mas sua existência não deve ser entendida .como que centrada
em um ente subsistente denominado “branco”. Neste sentido, o branco não existe.
Quando o branco é, na verdade é o homem que é. A idéia de que o branco simplesmente é
decorre da imperfeição da linguagem, pela qual podemos posicionar como sujeito de uma
proposição algo que, na realidade, não existe como sujeito, o que provoca a ilusão de que
existe algo além do homem cujo ser lhe é acrescentado. Ora, este suposto acréscimo é
justo o que Aristóteles procura transladar para a esfera das coisas que não possuem real
unidade e que, portanto, só ocorrem porque a linguagem possibilita que uma seja o
146
“acompanhante” da outra, sem gozar de verdadeira consistência existencial. Se tomamos
a atribuição do ente em seu mais elevado sentido, é forçoso dizer que o concomitante não
é, mas é apenas um modo de ser da essência. A distinção entre o ser do concomitante e o
ente da essência já demonstra, por si só, o que foi afirmado acima, a saber, que os
sentidos do ente estão dispostos hierarquicamente. Os sentidos do ente são graus do ente.
É um escalonamento dentro da própria idéia do ente.
O ente não é um gênero
Todo gênero é predicado somente de suas espécies, nunca das diferenças. A
espécie mantém com o gênero uma relação de subordinação lógica. Tudo o que se aplica
ao gênero se aplica a cada uma de suas espécies. Daí que, do gênero supremo à espécie
ínfima, haja uma escala ordenada de conceitos, ordem relativa ao grau de universalidade
(extensão) de cada conceito relativamente ao seu superior e ao seu inferior. Os mais
inferiores são os menos amplos, quer dizer, se aplicam a menos indivíduos. Contudo,
embora o gênero seja predicado da espécie, jamais é predicado da diferença específica.
Tomemos uma definição de homem como ‘animal racional’. O homem é, portanto, uma
espécie de animal. Assim, o homem é animal. O gênero é predicado da espécie. No
entanto, não podemos dizer que a racionalidade é animal, pois esta é apenas uma
qualidade do gênero, e não uma espécie dentro do gênero.
Pelo mesmo motivo, o ente não é um gênero. Com efeito, se este fosse o caso,
nenhuma diferença seria:
“Com efeito, existem necessariamente as diferenças de cada gênero, e cada uma
delas é única. Por outro lado, é impossível que as espécies de um gênero se
147
prediquem das próprias diferenças ou que o gênero separado de suas espécies se
predique de suas diferenças. De onde se segue que, se o ente e o um são gêneros,
nenhuma diferença poderá ser nem poderá ser uma.”47
a)na/gkh me\n ga\r ta\j diafora\j e(ka/stou ge/nouj kaiì eiånai kaiì mi¿an eiånai e(ka/sthn, a)du/naton de\ kathgoreiÍsqai hÄ ta\ eiãdh tou= ge/nouj e)piì tw½n oi¹kei¿wn diaforw½n hÄ to\ ge/noj aÃneu tw½n au)tou= ei¹dw½n, wÐst' eiãper to\ eÁn ge/noj hÄ to\ oÃn, ou)demi¿a diafora\ ouÃte oÄn ouÃte eÁn eÃstai.
Por outro lado, isto não significa que não haja uma escala de graduação no ente.
Na verdade, há uma intensificação semântica do ente, no sentido de uma progressiva
conveniência, a cada ente conceituado na escala, da noção de ente, em direção àquele
ente a que esta mais convém, ou seja, quanto mais convir a um ente a identificação com o
que se entende mais plenamente como o sentido do ente, maior é sua aproximação com o
ente enquanto tal. Sabemos, pela leitura do livro VII da Metafísica, que o referido ente é
a essência, identificada com o ser-prévio. É a partir desta estrutura de aproximação com o
ente primeiro que podemos entender a fundamentação da célebre doutrina aristotélica da
analogia do ente, cuja centralidade na essência levou Owen a cunhar a expressão "sentido
focal do ente". Com efeito, toda a esfera dos entes mantém uma relação com um (prós
hên) ente que origina ontológica e cognitivamente a todos entes, pelo que sem dúvida
podemos tomá-lo como o foco dos entes, ou seja, o ponto para onde converge toda a
realidade dos entes e de onde diverge toda a sua compreensão.
Quanto à já antiga referência da relação prós hên como a "analogia do ente",
Reale é cético quanto a seu rigor hermenêutico. Afirma, acerca da relação prós hên:
“Em poucas palavras: tudo que é, é prós tês ousían, é em referência à essência. –
Os múltiplos significados do ente têm uma unidade, que se pretendeu chamar de
47 Met. B 998b24.
148
analógica (analogia de referência a um único termo). A expressão “analogia de
referência a um único termo” é certamente correta, embora, sob certos aspectos,
possa ser perigosa, e se não se tem bem claro o significado da expressão no seu
preciso alcance, pode levar a erro. De fato, Aristóteles, normalmente, chama
“analogia” outro tipo de relação”48.
Reale, aceitando a tese de Brentano 49 , afirma que Aristóteles não tomou o
problema do ente estritamente como uma analogia, embora a relação entre seus múltiplos
significados seja apenas semelhante à analogia. No entender do estudioso italiano, não
poderia haver analogia stricto sensu porque a analogia se estabelece entre quatro termos
diferentes, o primeiro termo mantendo com o segundo a mesma relação que o terceiro
mantém com o quarto. Como a relação entre as acepções do ente é prós hên, isto é, em
referência a um, não haveria propriamente relação analógica, e sim relação de
centralidade, que, embora semelhante à analógica, possui natureza diferente, não
compartilhando com a última nem mesmo a unidade genérica.
No entanto, há um trecho decisivo na Ética a Nicômaco que problematiza esta
tese. Em 1131b, Aristóteles discorre sobre a natureza da analogia em geral, para então
enumerar suas possíveis espécies, com o fito de aplicar de modo apropriado esta noção ao
tema em foco – a justiça.
Primeiramente, o Filósofo trata de justificar o conceito de analogia para outras
relações que não apenas aquela própria de unidades numéricas abstratas, mas o do
número em geral, quer dizer, para tudo aquilo que pode ser quantificado. Logo a seguir,
48 Reale, 2002, pág.154. 49 Cit. por Reale, op. cit, pág. 231.
149
nos oferece sua definição de analogia como “uma igualdade de relações, que envolve no
mínimo quatro termos. Já nas linhas seguintes, ele procura esclarecer melhor a questão no
intuito de prevenir eventuais mal-entendidos que poderiam surgir da mera aplicação
literal da definição. Escreve que, além da analogia descontínua, que explicitamente
envolve quatro termos, há uma outra espécie de analogia que, embora aparentemente
envolva três termos, na verdade está usando quatro, pois menciona um dos termos duas
vezes, reservando, portanto, duas posições para o mesmo termo. É a analogia contínua. O
exemplo dado é muito mais comum em demonstrações geométricas, embora seja de
campo ilimitado: “ A está para B assim como B está para C; B, então, foi mencionado
duas vezes, e por ser ele usada em duas posições, os termos analógicos serão quatro”
(t%½ ga\r e(niì w¨j dusiì xrh=tai kaiì diìj le/gei, oiâon w¨j h( tou= a pro\j th\n tou= b,
ouÀtwj h( tou= b pro\j th\n tou= g. diìj ouÅn h( tou= b eiãrhtai: wÐst' e)a\n h( tou= b
teqv= di¿j, te/ttara eÃstai ta\ a)na/loga.). Neste caso, os termos efetivamente
analógicos perfazem um total de quatro, posto que, não obstante um dos termos, tomado
isoladamente, seja o mesmo, em cada posição sua função analógica será diferente, sendo,
portanto, um termo analógico distinto. Não devemos esquecer a razão de Aristóteles
denominar “contínua” esta espécie de analogia. Em Física, ele escreve que grandezas
contínuas são aquelas que podem ser divididas em partes menores que, por sua vez,
possuem limite comum, quer dizer, o ponto que marca o fim de uma parte é o mesmo que
determina o princípio da outra.
A definição deve ser entendida como: “a analogia é uma igualdade de relações,
que envolve no mínimo quatro termos analógicos”. A referência aos quatro termos é, na
verdade, uma referência puramente formal e não material. A diferença entre os termos
150
não deve ser necessariamente numérico-individual, mas sim formal. O que importa é a
verificação de duas relações quanto aos pares de termos, mas idêntica quanto ao modo de
relação dentro de cada um destes pares. Então, se um mesmo termo se repete nas duas
relações - como é o caso, por exemplo, nas relações de dependência entre as categorias de
quantidade e qualidade com a essência - a analogia se verifica com o mesmo direito do
que em uma analogia de quatro termos numericamente distintos. É por isso que o
enunciado: “o um está para o dois assim como o dois está para o quatro” é uma analogia,
ainda que o dois seja recorrente e o número de termos conceituais seja, na verdade,
apenas três. É que a analogia requer simplesmente quatro termos análogos, não sendo,
necessariamente, todos conceitualmente distintos. Do mesmo modo, o termo adjetivo
saudável está para o termo substantivo saúde assim como o termo adjetivo sadio está para
o termo saúde. ‘Saúde’ aqui é o termo recorrente, mas que, em cada ocorrência, está em
relação com um termo distinto. Nos exemplos acima, tanto o dois quanto a saúde são os
termos centrais da analogia, possibilitando que termos extremos entrem na unidade de um
mesmo enunciado (lógos). Aristóteles afirma que o mesmo ocorre relativamente entre o
ente essencial e os demais entes. A essência ocupa aqui o lugar que denominamos centro
analógico. Quando dizemos que ‘o branco é’, tal afirmação do ser do branco está para o
ser do homem branco assim como a afirmação do ser do corredor – quando dizemos ‘o
corredor é’- está para o ser do homem corredor. Tanto o ente branco quanto o ente
corredor mantém com a essência homem a mesma relação de dependência ontológica:
‘são’ apenas porque se referem a algo que ‘é’ por si mesmo. Neste caso, os exemplos
mostram a categoria da essência mantendo uma relação de centralidade analógica tanto
com a categoria da qualidade (cor branca) quanto com a categoria da ação (ação de
151
correr). Contudo, embora a essência seja a mesma e as relações sejam idênticas, em cada
relação um termo analógico diverso é apresentado, o que torna a relação de analogia
possível, pois, segundo a pura estrutura de proporção, são contados aqui quatro termos,
ainda que dois deles, em si mesmos e fora daquela analogia, sejam o mesmo.
A relação prós hên pode ser vista, portanto, como uma analogia contínua, onde
cada nível secundário de ente está para o nível primário assim como outro nível
secundário está para o mesmo nível primário. Seria uma proporção semelhante a um
segmento de reta divido em quatro partes iguais, em que tomamos como termos a quarta
parte, a metade e o segmento inteiro. Então, o segmento inteiro está para a metade assim
como a metade está para a quarta parte. Aqui, percebemos que a metade do segmento foi
duplamente citada na proporção, o que em nada interferiu em sua genuína natureza de
proporção. O centro do segmento representa o dobro para a quarta parte e a metade para o
segmento inteiro, o que faz sua dupla aparição contar, de fato, como dois termos distintos.
Do mesmo modo, a relação de analogia ontológica é uma relação de centralidade, na qual
o centro é o termo duplicado, quer dizer, aquele que é mencionado duas vezes, ocupando
mais de uma posição. Vemos assim o que é necessário para que uma relação seja
analógica é que seja uma relação de relações, e não somente entre termos isolados. Para
que isso ocorra, basta que a) notemos a existência de algo que esteja em relação com
mais de uma coisa e b) que ao menos duas destas relações sejam equivalentes sob algum
aspecto. Ora, isto é justamente o que ocorre no caso da essência relativamente às demais
categorias. Cada uma tem a mesma dependência ontológica da essência a qual se referem,
não podendo subsistir nem por um instante na ausência deste suporte. De fato, na
ausência da essência, nada mais existiria. Na verdade, a estrita analogia do ente, que
152
aqueles estudiosos tentaram negar, afirmando em troca uma relação analógica em sentido
lato, é conditio sine qua non da centralidade ontológica. Não fosse a rigorosa
equivalência ontológica de todas as sub-categorias relativamente à categoria fundamental,
a própria centralidade unificada se veria dividida em si mesma, a noção mesma de
predicação de um sujeito podendo estar comprometida, dando lugar a uma atribuição a
um ou mais níveis de ente, ou ao composto de ambos.
Fica clara, assim, a distinção efetuada pelo Estagirita entre termo conceitual e
termo analógico, distinção essa que não foi considerada por Reale e Brentano. Munidos
agora da noção de centralidade ontológica, adentremos o problema da possibilidade de
determinação da ciência mais eminente, aquela do ente enquanto tal.
153
UNIDADE DO ENTE ENQUANTO ENTE Possibilidade de uma ciência do ente enquanto ente relativa ao motor imóvel e da
conclusão da ontologia em uma teologia, como sugere o Livro VI da Metafísica. Relação
entre a unidade do ente e o princípio de não-contradição, tal como formulada no livro G.
Para tocar neste ponto, devemos antes nos deter em uma aporia percebida pelo
próprio Aristóteles. Trata-se se conciliar o caráter universalíssimo da ciência do ente
enquanto ente com sua culminação teológica, aparentemente contraditória com o projeto
inicial desta ciência, porquanto o motor imóvel é um indivíduo. Mostraremos que a
conclusão de certos comentaristas, de um fracasso total da metafísica, em flagrante
contradição consigo mesma, não é necessária, pois o próprio pensador já havia articulado
uma resposta a tais dificuldades.
A metafísica possui uma unidade genérica de perspectiva e de objeto. De
perspectiva pela relação prós hên, que unifica referencialmente todos os sentidos do ente.
De objeto porque o sentido de ente exclusivo da metafísica, o ente enquanto ente – a
essência no sentido de ser-prévio - é um conceito que se aplica diretamente aos objetos
que partilham uma propriedade específica, a saber, a auto-subsistência. A própria
expressão ‘ente enquanto ente’ é usada por Aristóteles tanto para significar i) ‘ente
considerado enquanto o próprio ente’, isto é, tudo o que pode estar implíto no próprio
fato de ser, incluindo aí todos os sentidos possíveis segundo os quais algo pode ser; como
também ii) ‘o ente que é enquanto o próprio ente’, ou seja, que é simplesmente devido a
seu próprio ser e não ao ser de outro ente. Neste sentido, trata-se da essência, um dos
sentidos possíveis de ser, incluída no âmbito da acepção (i), aquele sentido de ser do que
154
é por si mesmo. Portanto, quando Aristóteles fala de espécies de ente, há, no mínimo,
dois modos possíveis de entender suas palavras sem incorrermos na contradição com sua
afirmação de que os gêneros não se predicam das diferenças: a) espécies de ente são
espécies do ente enquanto ente tomada no sentido (i), ou seja, espécies de significação da
predicação ontológica, isto é, com o verbo ser; b) espécies do ente são espécies do gênero
categorial50 ‘ente enquanto ente’ tomada na acepção (ii) , ou seja, espécies de essência.
Nos dois casos não será o violado princípio da relação do gênero com a diferença
específica, o qual sentencia a impossibilidade de predicar o primeiro do segundo. Assim,
por exemplo, o gênero categorial ‘essência’ não se predica de animado, pois o animado
não é uma essência, mas uma qualidade de essência. O ente enquanto ente, neste caso, é o
gênero mais amplo de entes, dentro do qual se inclui o sub-gênero ‘essência animada’ e
todas as suas espécies.
Em certas passagens, portanto, Aristóteles utiliza a expressão “espécies de ente”.
Ora, se o ente enquanto ente é a primeira acepção do ente por ser a única que realmente
encerra este significado por si mesmo, nada mais natural que se referir às espécies do ente
enquanto ente como espécies do ente, visto que as duas expressões, no mais alto grau de
significação, se referem a uma coisa única. É isto o que confundiu os intérpretes a
respeito deste trecho do livro G:
“Existem tantas partes da filosofia quantas são as essências; conseqüentemente,
é necessário que entre as partes da filosofia exista uma que seja a primeira e uma
que seja a segunda. De fato, há gêneros imediatos do ente e do um.”(1004a2)
50 No Livro D da Metafísica, Aristóteles escreve que a diversidade entre as categorias (essência, qualidade, quantidade, etc.) é uma diversidade pelo gênero, pois entre quaisquer delas não há uma terceira coisa que lhes seja comum pelo que pudessem ser redizidas a algo único.
155
kaiì tosau=ta me/rh filosofi¿aj eÃstin oÀsai per ai¸ ou)si¿ai: wÐste a)nagkaiÍon eiånai¿ tina prw¯thn kaiì e)xome/nhn au)tw½n. u(pa/rxei ga\r eu)qu\j ge/nh eÃxon to\ oÄn [kaiì to\ eÀn]: A interpretação desta possibilidade intra-genérica do ente (que, em 1003b19, é
intra-específica) proposta por Mansion (pág 165-221, 1958 ), embora engenhosa, se
mostra bem menos verossímil. Mansion afirma que o termo eidos significa ali
simplesmente um aspecto do ente, e não conota qualquer escala de universal-particular.
Mas o Filósofo deixa claro o papel decisivo das essências em tal hierarquia. E parece ser
do ente enquanto ente e enquanto separado que há, na verdade, espécies do ente no
sentido de objetos reais. Ora, a essência é o ente enquanto ente enquanto separado, o ente
simplesmente (haplôs) separado. A árvore de Porfírio51 fornece uma idéia bem clara do
que seria tal divisão intragenérica do ente essencial indicada por Aristóteles.
Além disso, mesmo quando se trata de uma espécie do ente enquanto ente sem
especificação de separabilidade, como veremos mais nitidamente a seguir, é
perfeitamente plausível que o Filósofo tenha se referido às espécies de predicação do
verbo ser, o que explicaria a célebre fórmula: “o ente é dito de muitos modos” (to\ de\ oÄn
le/getai me\n pollaxw½j) (1003a33). Com efeito, a sentença poderia ser expressa
simplesmente com “o ente é múltiplo”, mas a intenção era focar o aspecto mais geral do
uso do verbo ser e seus possíveis usos específicos.
Ainda sobre a expressão ‘espécies do ente enquanto ente’, Reale enumera três
possíveis interpretação para o termo “espécie’ neste contexto. A primeira a), defendida
por Tomás de Aquino52, toma aqui ‘espécies’ como significando as várias espécies de
51 Fornecemos uma ilustração da referida árvore no capítulo dedicado à unidade da alma. 52 Cit. por Reale, 2002, 157.
156
essência; b) a segunda, de Alexandre53, propõe que entendamos espécies como sendo as
categorias do ente (essência, quantidade, qualidade, etc.). Finalmente, c) temos a hipótese
mais aceita pela maioria dos estudiosos – entre eles Colle e Robin54 - de que Aristóteles
se refere ali às noções que pretende tratar, como semelhante, idêntico, etc., justamente as
espécies do um, que são também, como afirma Aristóteles, espécies do ente55.
O problema é que nas linhas seguintes àquela sentença, Aristóteles alude tanto às
espécies de essências, como às categorias do ente e às espécies do ente e do um e, quanto
se trata destas últimas, escreve que o estudo destas espécies também são do escopo da
ciência primeira. Mas no momento em que definirá as partes da filosofia, o Filósofo não
utiliza o estudo destas noções como instrumento para determinar seu número:
“Existem tantas partes da filosofia quantas são as essências;
conseqüentemente, é necessário que entre as partes da filosofia exista uma que
seja primeira e uma que seja segunda.” De fato, o ente é dividido em gêneros e
por essa razão as ciências se distinguem segundo a distinção deste gêneros.
(1004a2)
kaiì tosau=ta me/rh filosofi¿aj eÃstin oÀsai per ai¸ ou)si¿ai: wÐste a)nagkaiÍon eiånai¿ tina prw¯thn kaiì e)xome/nhn au)tw½n. u(pa/rxei ga\r eu)qu\j ge/nh eÃxon to\ oÄn [kaiì to\ eÀn]: dio\ kaiì ai¸ e)pisth=mai a)kolouqh/sousi tou/toij.
O número de partes da filosofia é determinado, portanto, pelo número de
essências. Além disso, na passagem acima Aristóteles usa, indiscriminadamente, os
termos ‘ente’ e ‘essência’. É que a essência é o próprio ente, só que no sentido mais
elevado, pelo que a referência pura ao ente, neste contexto hierarquizante, deixa implícito
que se trata do ente principal.
53 Idem, op. cit. 54 Idem, op. cit.
157
Concordamos, portanto, com a exegese tomista para tal expressão no passo
1003b23. Contudo, não negamos que as categorias – que são diversas espécies de fatos
ontológicos56 - assim como as noções mais gerais do um e do ente também sejam alvo da
ciência buscada por Aristóteles, e que também são chamadas por Aristóteles, no passo
1003b33, de espécies do ente. Só que o estudo destas é meramente preliminar na
desenvolução desta ciência. A investigação projetada por Aristóteles tem como alvo não
somente a determinação destes sentidos, mas também a referência de todos eles aos
sentidos primeiros do ente e do um:
“Assim, depois de ter distingüido de quantos modos se entende cada um desses, é
preciso referir-se ao que é primeiro no âmbito de cada categoria de significados e
mostrar de que modo o significado do termo considerado se refere ao primeiro.”57
wÐste dielo/menon posaxw½j le/getai eÀkaston, ouÀtwj a)podote/on pro\j to\ prw½ton e)n e(ka/stv kathgori¿# pw½j pro\j e)keiÍno le/getai:
Ora, o significado primordial do ente, como vimos ao longo de nossa investigação,
é a essência. E o significado fundamental do um requer a essência:
“...mas, em sentido original, constituem uma unidade todas as coisas cuja
essência é uma, e uma seja por continuidade, seja pela espécie, seja pela
noção.”58
ta\ de\ prw¯twj lego/mena eÁn wÒn h( ou)si¿a mi¿a, mi¿a de\ hÄ sunexei¿# hÄ eiãdei hÄ lo/g%:
55 Met. 1003b33 56 No entanto, Aristóteles, ao se referir à diversidade categorial em D 28, afirma que se trata de uma diversidade pelo gênero e não pela espécie, o que enfraquece tal possibilidade. 57 Met. 1004a29 58 Met. 1016b9
158
Mas ainda estamos na fase inicial da ciência primeira. Cabe também, e
principalmente, determinar as espécies de essência possíveis. Daí que a classificação das
ciências filosóficas tenha que tocar na questão acerca da existência ou não de realidades
supra-sensíveis, e que em G 1 a resposta a tal problema seja equivalente à resposta acerca
do caráter primário ou secundário da física. É natural também, sob esta ótica, que o Livro
L da Metafísica inicie com a célebre tripartição das essências. Assim, o estudo dos tipos
de unidades possíveis do ente serve, antes, como preparação para uma tareja mais elevada:
a descoberta dos graus possíveis de unificação da essência. Em outras palavras: a unidade
essencial mais perfeita ultrapassa a matéria?
O objeto da metafísica, portanto, é um só e o mesmo, não obstante as distintas
expressões que o referem. Sua natureza é a mesma, embora a noção seja diferente, assim
como ocorre com as noções de ente e um, que são perfeitamente convertíveis pela
idêntica referência, embora o modo de referência seja diverso (Tudo que é é um, e tudo
que é um é. “Ser homem” e “um homem” são expressões com a mesma semântica
ontológica. Sempre que um for o caso, ente também será, e vice-versa.). Não há, pois, só
unidade analógica no sentido do ente enquanto ente, mas unidade intragenérica. Cada
uma das essências é um exemplar individual, primeiramente de sua espécie (ex.: homem),
passando pelos gêneros intermediários (ex.: mamífero, animal), até chegarmos ao gênero
supremo de tudo o que é autonomamente: a essência em geral. Neste caso a interdição já
observada no tocante ao puro ente indeterminado - a saber, o absurdo de um gênero ‘ente’
predicado de suas diferenças - não se aplica, pois a essência é um gênero que se comporta
como todos os outros gêneros relativamente a suas diferenças, não se aplicando, por
exemplo, às diferenças animalidade ou racionalidade, pois ambas não são essências.
159
O prós hên, a relação puramente analógica, na verdade, é uma introdução ao
problema do ente, uma estratégia de aproximação à filosofia primeira.
Além disso, mesmo o puro ente em geral, isto é, a universalidade do ente pode ser
um gênero. Com efeito, em muitas passagens Aristóteles não precisaria estar se referindo
diretamente à essência para estabelecer uma relação gênero-espécie. Ele poderia tomar o
ente não como um gênero das coisas que são, mas dos significados do ente, e o próprio
ente significando, na verdade, a aplicação do verbo ser em geral no sentido de tudo
quanto dizemos que “é”. Aplicamos o verbo ser com muitas significações distintas. Cada
sentido do ente é um modo específico de predicação de um gênero de predicação mais
geral, que a todos abarca, que é a predicação com o verbo ser, que difere de qualquer
outra forma de atribuição. Assim, podemos dizer que “‘esta frase’ é” significando “‘esta
frase’ é verdadeira”. Na língua portuguesa não é incomum, embora mais reservada para
um uso informal. Mas em grego era tão natural que foi, até mesmo, um dos sentidos de
“ente” relacionados por Aristóteles no Livro D da Metafísica:
“Ademais, o ser e o ‘é’ significam, ainda, que uma coisa é verdadeira,
enquanto o não-ser e o não-é significam que não é verdadeira, mas falsa; e isso
vale tanto para a afirmação como para a negação. Por exemplo, dizemos
“‘Sócrates é músico’ é”, porque isto é verdadeiro, ou “‘Sócrates não é branco’
é”, na medida em que isto é verdadeiro, e dizemos que “‘a diagonal’ é
comensurável” não é, na medida em que isto não é verdadeiro, mas falso.”
(1017a35)
eÃti to\ eiånai shmai¿nei kaiì to\ eÃstin oÀti a)lhqe/j, to\ de\ mh\ eiånai oÀti ou)k a)lhqe\j a)lla\ yeu=doj, o(moi¿wj e)piì katafa/sewj kaiì a)pofa/sewj, oiâon oÀti eÃsti Swkra/thj mousiko/j, oÀti a)lhqe\j tou=to, hÄ oÀti eÃsti Swkra/thj ou) leuko/j, oÀti a)lhqe/j: to\ d' ou)k eÃstin h( dia/metroj su/mmetroj, oÀti yeu=doj
160
No mesmo lugar do Livro D, Aristóteles aponta também outros três usos do verbo
ser. Além da oposição verdadeiro-falso mostrada acima, há também o a) uso que
distingue ente por acidente e ente por si, assim como b) a que diz respeito às várias
figuras de categorias e c) o uso do verbo ser no sentido de efetividade e potência.
Além da relação prós hên com a essência dentro dos sentidos do ente, o problema
da multivocidade do ente, portanto, se instaura em outros dois níveis. a) na pluralidade de
usos do verbo ser, tal como listada em D7; b) na relação genérica enquanto tal, que é
sempre uma analogia contínua, o gênero sendo o termo duplamente mencionado:
“...nem todas as coisas que são unidade pelo gênero o são pela espécie, mas o
são por analogia; enfim, nem todas as coisas que são unidade por analogia o são
também por gênero.” (1017a1)
oÀsa de\ ge/nei ou) pa/nta eiãdei a)ll' a)nalogi¿#: oÀsa de\ a)nologi¿# ou) pa/nta ge/nei.
O gênero animal está para homem assim como o mesmo gênero está para cavalo.
Ha uma identidade de relação de cada espécie com seus gêneros comuns, de modo que
nenhuma espécie determina mais o gênero do que outra espécie congênere. E a própria
noção de gênero tem lugar somente a partir de tal perspectiva relacional, em que
tomamos duas essências distintas e descobrimos relações idênticas que cada uma mantém
com um terceiro termo idêntico. Ora, o gênero é o terceiro termo.
A unidade analógica funda a unidade genérica, ou seja, é condição de
possibilidade do gênero. Toda analogia genérica é também analógica, embora a recíproca
não se verifique.
161
Retornemos à aporia acerca da tensão existente entre particularidade e
universalidade na ciência primeira.
Na verdade, há outra tensão mais arcaica que não deve ser ignorada, pois
fundamenta a anterior e limita seu alcance. Percebemos, em Aristóteles, um conflito entre
dois atributos próprios do objeto alvejado pela filosofia primeira. Trata-se da
universalidade e da imaterialidade. Este conflito não é exclusivo da filosofia ou ciência
primeira, mas de toda ciência em geral.
Qual é o preponderante, o caráter universal ou o imaterial? O universal é
preponderante no princípio diretivo de uma ciência, mas não no fim, em que há um
retorno ao singular. Percebemos assim que a preponderância cabe ao atributo da
imaterialidade, pois desde o princípio ele deve ter sido buscado em detrimento do puro
universal, quer dizer, do universal por si mesmo. Veremos de perto o que isto significa.
O universal, enquanto noção comum, é, de certa forma, imaterial, pois não pode
ser identificado com este ou aquele composto material. Por outro lado, nunca é
totalmente imaterial, pois se refere sempre a indivíduos sensíveis.
O individual segue outra via ontológica. Em geral, o ente singular é material. Na
verdade, à quase totalidade das essências do universo podemos aplicar o condicional "se
individual, então material". No entanto, como que paradoxalmente, somente um
indivíduo pode ser totalmente imaterial. O motor imóvel atinge um grau de separação da
matéria que universal algum pode atingir, por mais abrangente e elevado que seja. Daí
que o Filósofo leve em consideração uma matéria sensível e outra inteligível. Com efeito,
deste modo se torna claro que a não-efetividade sensível não é sinônimo de
imaterialidade. Um círculo apenas inteligível, quer dizer, presente em efetividade na
162
inteligência, mas não na sensibilidade, nem por isso deixa de ser composto de matéria. A
extensão deste círculo, que o torna passível de uma divisão, ainda que apenas na esfera
imagética e intelectiva, já o torna um ente sensível, dotado de uma espécie de matéria que
Aristóteles, no Livro VII da Metafísica, denomina matéria inteligível (uÀlh nohth/)59.
Ora, as observações anteriores tornam patente que a meta do Filósofo era a
obtenção cognitiva de um objeto plenamente efetivo e, portanto, imaterial, o que decorre
imediatamente de sua própria doutrina, que responsabiliza a matéria pela inevitável
contingência de nosso conhecimento da natureza e, simultaneamente, escolhe a
necessidade para escopo último do saber científico. Ora, neste caso não haveria outra
saída senão a obtenção de um ente absolutamente separado da matéria, único capaz de
satisfazer tal exigência epistemológica, por escapar à contingência da matéria. Deste
modo, desvelando agora o ponto culminante da metafísica aristotélica, na figura de um
indivíduo, o papel do universal também se esclarece, justo pela reflexão feita mais acima,
de que o universal é um primeiro tipo de imaterial, mais afastado, portanto, da
contingência da natureza. No entanto, é natural que o Filósofo não se contentasse
inteiramente com o grau de independência próprio do universal enquanto comum. É que,
justamente pela comunidade predicativa, o universal assim entendido mantém referência
constante com os objetos sensíveis, podendo, assim, ser afirmado ou negado, o que
significa cair na esfera da mera possibilidade material.
Agora estamos mais aptos para comprender a totalidade semântica da expressão
‘ente enquanto ente’, assim como o próprio sentido de universalidade, que até obrigou o
Filósofo a ampliar sua esfera de significado.
59 Met. 1036a10
163
Há uma série de problemas hermenêuticos suscitados pelo uso aristotélico da
expressão "ente enquanto ente". O principal reside na aparente incompatibilidade entre
uma filosofia do ente enquanto ente, tomado, portanto, em toda a sua universalidade, e a
ciência teológica, referida em certos momentos como a ciência do ente enquanto ente e
enquanto separado. Contudo, há uma distinção fundamental que auxilia sobremaneira a
investigação e possível solução da aporia.
A expressão “ente enquanto ente” possui significado metodológico, mais do que
objetivo, ao passo que “essência” possui significado plenamente objetivo. Mas
Aristóteles reservou o caráter de universalidade a ambos os significados. Primeiro
vejamos uma distinção existente dentro da própria universalidade, para então aplicarmos
tal elucidação a essas duas expressões.
A expressão “universal porque primeiro” deve ser entendida como “universal
porque central”. Há o que podemos denominar universal central e o universal periférico.
O primeiro é predicado de muitos; o segundo é sujeito de predicação de muitos. Nos dois
casos, o universal é algo presente em muitos e por muitos, isto é, se refere a mais de um
ente. A grandeza e curvatura são universais na medida em que não se restringem a tais
enunciados, sendo encontrados em muitos outros enunciados, mas no papel de predicados,
e não no de sujeitos essenciais. Trata-se aqui de um universal periférico. Por outro lado,
esta essência individual ‘cadeira’, por exemplo, é universal porquanto sujeito em
enunciados como ‘a cadeira é redonda’, ‘a cadeira é grande’ e a ‘a cadeira é confortável’.
Com efeito, embora seja apenas uma, está presente em muitos, ou seja, é universal
porquanto central. E o que dizer da essência primeira de todo o universo, o motor imóvel?
Movendo a todas as coisas, não se trata também de um mero indivíduo, embora a
164
individualidade seja crucial em sua natureza. O fato de todas as coisas serem sustentadas
pela sua atividade fazem desta essência ainda mais universal que os exemplos anteriores.
Trata-se do universal central por excelência. Daí que, no Livro VI da Metafísica60, o
Filósofo afirme que a existência de uma essência superior a todas as outras exigiria uma
ciência correpondente que teria o caráter universal pela anterioridade ontológica de seu
objeto.
Na verdade, há três definições diretivas da metafísica. A primeira tem como
enunciado: ciência do ente enquanto ente, mas no sentido da compreensão universal do
ser, isto é, das conexões entre seus diversos sentidos e do que pertence a algo
simplesmente enquanto este algo ‘é’. Nesta perspectiva da ciência metafísica estão
compreendidos os textos que listam os usos do verbo ser, o princípio de não-contradição
– que enuncia uma verdade acerca de todos os entes – e o estudo das noções mais gerais
que existem, as que se aplica a qualquer coisa que é, algumas das quais até conversíveis
com o ser, como a noção de um, investigada no Livro D da Metafísica.
Aristóteles, porém, não teve como único escopo tal aplicação do método de
investigar ‘o ente enquanto ente’. A segunda definição diretiva enuncia: ciência do ente
enquanto ente enquanto separado, isto é, a essência. De fato, o Filósofo alterna estas duas
expressões ao longo da Metafísica: ‘ente enquanto ente’ e ‘ente enquanto ente e enquanto
separado’. Neste último caso, há possibilidade de relação gênero-espécie, pois se
tomarmos a essência como o gênero das coisas que são autonomamente, não haverá,
contudo, uma predicação do gênero em suas diferenças. Por exemplo, o gênero ‘essência’
em ‘essência viva’ não pode ser predicado de ‘viva’, que é uma diferença. Assim, neste
60 1026a30
165
caso e em todos os outros em que a essência for o significado da expressão ‘ente
enquanto ente’, não há risco de Aristóteles incorrer em contradição com seu princípio de
que o gênero jamais se predica das diferenças. Tal seria o caso apenas se, nos contextos
em que o Filósofo se refere às espécies de ente enquanto ente, interpretássemos ‘ente
enquanto ente’ como significando o puro ente, pois qualquer diferença é um ente.
A respeito destes dois usos da expressão “ente enquano ente”61, Reale escreve –
comentando uma identificação entre ‘ente enquanto ente’ e ‘essência’, em K3 – abrindo
ainda a possibilidade do terceiro ainda não tocado aqui:
“A fórmula ‘ser enquanto ser’ é, pelo menos, trivalente, significa todo o ser, ou a
substância (como aqui), ou até mesmo Deus.”62
A terceira se enuncia como a segunda, apenas que “separado” sendo entendido
não somente como essência separada de tudo que não é essência, mas também de toda
materialidade. Trata-se da essência supra-sensível, quer dizer, puramente inteligível. Nos
dois últimos casos ocorre o universal central, que pouco tem a ver com a generalidade
abstrata do primeiro sentido. No entanto, não devemos nos esquecer é a universalidade
central que funda a universalidade abstrata, pois noções como homem, animal e cervo só
servem como predicados porque, e somente porque, há universais centrais, isto é,
essências, que admitem a função de sujeitos das respectivas predicações.
Mas porque Aristóteles afirma que, se não há outra essência além da sensível, a
Física seria a filosofia primeira? Isto significaria uma contradição com a definição de
filosofofia primeira como ‘ciência do ente enquanto ente’? De modo algum. Se a física
fosse a filosofia primeira, a ciência do ente enquanto ente não seria abandonada. Seria
61 Ou ‘ser enquanto ser’. 62 Reale, 2002, pág. 550.
166
realizada no âmbito da física, “pois o físico tem de estudar também e principalmente a
essência enquanto forma”. A ciência do ente enquanto ente é, primeiramente, um método
científico, para o qual Aristóteles procura um objeto, seja ele matemático, físico ou
teológico. Lembremos que a matéria dos matemáticos é de escopo metafísico e que o
Filósofo, mesmo nos momentos em que afirma de modo mais imperativo a necessidade
da metafísica, deixa em aberto a questão acerca a realidade do supra-sensível.
Não somente a física de Aristóteles é uma ontologia, como também o próprio
Filósofo pretendia dotá-la de uma ontologia, pois escreve que:
“De fato, em certo sentido, a pesquisa sobre as essências sensíveis pertence à
física e à filosofia segunda; o físico não deve investigar somente acerca matéria,
mas investigar também segundo o enunciado, e principalmente isto.” (1037a15)
e)peiì tro/pon tina\ th=j fusikh=j kaiì deute/raj filosofi¿aj eÃrgon h( periì ta\j ai¹sqhta\j ou)si¿aj qewri¿a: ou) ga\r mo/non periì th=j uÀlhj deiÍ gnwri¿zein to\n fu-siko\n a)lla\ kaiì th=j kata\ to\n lo/gon, kaiì ma=llon.
Daí que “existam tantas partes da filosofia quantas são as essências” 63. Nisso a
filosofia se distingue da sofística, que sendo apenas uma sapiência aparente, se ocupa
somente do concomitante. Mesmo a física seria filosofia primeira. Não haveria metafísica
teológica se não houvesse nada além das essências sensíveis. Haveria então uma
metafísica natural.
Na forma de uma ontologia física, a metafísica aristotélica seria como uma
pirâmide asteca: seu nível mais elevado não teria um ápice, quer dizer, um ponto de
convergência além do qual não seria possível imaginar qualquer perfeição ontológica
ulterior, nenhuma essência mais excelsa. De fato, se não fosse possível a existência de
essências supra-sensíveis, algo interrompido, embora não contraditório, seria percebido
167
na metafísica aristotélica: toda a scala naturae, com seus sucessivos estágios de
autonomia relativamente à matéria, não atingiria um topo no qual uma peculiar essência
realizasse em si a máxima autonomia possível, a saber, a completa imaterialidade. A
pirâmide estaria cortada ao meio. Não haveria uma completude (télos) única da qual
deduzíssemos a complexidade das completudes (telói) das essências cósmicas. Cada
potência (dýnamis) seria inteligível para nós pela simples consideração de seu télos
próprio. Entretanto, não perceberíamos o limite para o qual tende toda continuidade
convergente da série de telói, cada vez mais excelsos e autônomos relativamente ao
substrato material.
Se há uma essência autonomamente separada e imóvel, a filosofia que lhe cabe
será a primeira pela eminência da autonomia e será “pelo todo” da essência que
contempla, pois não haverá matéria a ser considerada, que é sempre extrínseca a qualquer
ciência. Enquanto a matemática se subdivide em gêneros pela matéria inteligível e a
física pela matéria sensível, a filosofia primeira da essência imóvel, não lidando com a
matéria, seria uma e total. A essência suprema é mais facilmente conhecida pela sua
própria natureza imaterial e imóvel e não para nós, o que seria o caso das essências
sensíveis, pois tudo o que é sensível é apreendido e conhecido com anterioridade
cronológica. Por outro lado, o caráter mais fundamental de essência – o de ser autônoma -
é plenamente atribuída ao motor imóvel. Nas demais essências a atribuição é apenas
relativa, devido ao comprometimento existencial da matéria. Além disso, cabe notar que
o primeiro de uma série é o limite da série. E o limite abarca o todo. O ser do primeiro é
“pelo todo”, quer dizer, vale pelo ser do todo, é aquilo segundo o qual (xath) o todo
(hólon) tem o seu ser. A natureza de uma ciência acompanha a natureza de seu objeto.
63 Met. 1004a2.
168
Assim, visto que o objeto da filosofia primeira é anterior aos demais objetos, a filosofia
primeira também será anterior às demais filosofias.
A solução de um objeto teológico, embora não sendo a única alternativa possível
para a filosofia primeira, se revela a mais nobre e preferível e a que mais se identifica
com o método do “ente enquanto ente”. Com efeito, a essência imóvel é a única que é,
simplesmente (háplôs) enquanto é, sem depender do ser da matéria, seja sensível ou
inteligível.
A metafísica define e demonstra as noções que competem ao ente enquanto ente
– a essência. Mas a própria essência de cada ente não pode ser definida por nenhum
enunciado, e sim a essência em geral, quer dizer, o reconhecimento de uma instância
nuclear e auto-suficiente do ente, que é a forma e a natureza do ente. O Livro D da
Metafísica é o primeiro tratado metafísico, a contemplação (teoria) das noções que
decorrem das coisas pelo simples fato de existirem. Ali são investigadas as noções mais
gerais que existem, como a de um e múltiplo, parte e totalidade. O grau de
unviversalidade destas noções as torna aplicáveis cada ente simplesmente enquanto ente,
isto é, da mera existência de algo – seja tal existência possível, real ou necessária –
decorre que este será, forçosamente, um ou múltiplo, não importa se considerado em seu
movimento (física), sua ordem (matemática) ou sua extensão (geometria). Do mesmo
modo, se considerarmos um ente como uma totalidade (hólon), o tomamos como algo
que possui, necessariamente, determinada natureza, uma configuração ontológica
respeitante às relações entre suas partes, independentemente de como estas existem, se
matemática ou fisicamente, não se tratando, pois, do ente enquanto quanto, nem do ente
169
enquanto móvel ou de qualquer perspectiva senão do próprio ente considerado em si
mesmo.
Retornemos à perspectiva teológica da ciência do ente enquanto ente.
O ente enquanto ente é multívoco, embora relativamente ao “um”. Da mesma forma, o
ente enquanto ente é multívoco, conquanto em referência a um sentido primário. Este
sentido é: o que é, (ente) simplesmente porque é (ente), quer dizer, em virtude de seu
próprio ser, enquanto ele mesmo (v au)to) e não enquanto outro (v eÀteron) Este
sentido originário pode assumir, por sua vez, enfoque gnosiológico ou propriamente
ontológico. Com efeito, tomando um ente qualquer, podemos considerar as afirmações
que dele podem ser tiradas pelo mero fato de que ele é, ou seja, de todas as notas que lhe
são próprias (propriedades), decorrentes da simples possibilidade de seu conceito. Por
outro lado, há entes que existem em função de sua própria natureza e não como
aderentes de outros entes. São as essências. Ora, tudo o que decorre do “ente enquanto
ente”, no primeiro sentido também valerá para o segundo, pois “o limite do
conhecimento também é limite da coisa” , mas desde que consideremos a essência
primeira (próte ousia), dado que nas outras acepções a essência envolve a matéria, a qual
não é simplesmente porque é, mas em virtude da forma, esta sim a próte ousia. O
segundo sentido – a essência – por sua vez pode ser compreendido até o grau máximo
das essências que são simples e completamente (autonomamente) porque são. Trata-se
dos objetos teológicos, motores imóveis.
Cabe aqui um parêntese. A matemática não é auto-subsistente porque seu objeto
não existe sem a matéria. Ora, se os objetos com que lida a física são necessariamente
materiais, por que Aristóteles – no livro VI da Metafísica – os considera auto-subsistentes?
170
Porque, enquanto o número é uma passibilidade do indivíduo material em geral que lhe
dá suporte, a essência física enforma sua matéria própria, com a qual constitui uma
essência, ainda que não a próte ousia, a essência primeira. A matéria dá suporte à
essência física apenas enquanto a consideramos em união com a matéria. Se abstrairmos
esta última, ainda restará a essência nuclear, a pura forma sem matéria. Além disso,
mesmo enquanto unida à matéria, temos uma essência completa, o concreto (su/noloj),
composto de matéria e forma. Com efeito, a relação entre matéria e forma é muito
diferente daquela entre essência e passibilidade. Na primeira, forma-se um todo
autônomo, essencialmente unido, posto que essência distinta. A segunda relação já
constitue um ente apenas concomitante, sem qualquer autonomia ontológica, que não
persiste em si mesmo, em separado. Neste caso, a possibilidade de subsistência depende
apenas de um dos termos constituintes, o qual, no caso em questão, não é o número, mas
o ente material que ele quantifica.
Ainda relativamente à noção de ciência em Aristóteles, há muita discussão acerca
de sua compatibilidade com a noção de indivíduo, igualmente cara ao Filósofo, em
virtude da própria exigência separativa de seu conceito de unidade, exigência que o
indivíduo cumpre ao não ser predicado e compartilhado por muitos, ao contrário de um
puro universal. Do equacionamento desta questão depende a possibilidade mesma da
metafísica, da ciência em geral e de uma culminação teológica da metafísica de
Aristóteles.
O próprio Filósofo estava consciente da gravidade do problema. No fim do Livro
M, ele revela sua preocupação com a coisa:
“Que toda a ciência é do universal, e que, conseqüentemente, os
princípios dos entes devam ser universais e não essências separadas é uma
171
perplexidade que apresenta dificuldades maiores do que todos os outros já
tratados.” (1087a10)
to\ de\ th\n e)pisth/mhn eiånai kaqo/lou pa=san, wÐste a)nagkaiÍon eiånai kaiì ta\j tw½n oÃntwn a)rxa\j kaqo/lou eiånai kaiì mh\ ou)si¿aj kexwrisme/naj, eÃxei me\n ma/list' a)pori¿an tw½n lexqe/ntwn...
No entanto, logo a seguir, ele propõe uma nova apreciação do problema que o
livre deste peso aporético:
“Entretanto, o que se disse é verdade num sentido e noutro sentido não.
De fato, a ciência, assim como o tomar ciência, existe de dois modos: em
potência e efetivamente. Ora, porque a ciência em potência é, como a matéria,
universal e indeterminada, refere-se ao universal e ao indeterminado; ao
contrário, a ciência efetiva, sendo definida, refere-se ao que é definido, e sendo
algo determinado, refere-se a algo determinado. Mas a vista vê cor
universalmente por concomitância, ou seja, enquanto esta cor determinada que
vê é, justamente, uma cor; e assim determinado A que o gramático estuda é,
justamente, um A. Se os princípios fossem necessariamente universais, então
deveriam ser necessariamente universais também as coisas que deles derivam,
exatamente como ocorre nas demonstrações. Mas, se assim fosse, nada seria
separado e nada seria essência. Mas é evidente que a ciência, num sentido, é
ciência do universal, enquanto noutro sentido não é.” (1087a13)
ou) mh\n a)lla\ eÃsti me\n w¨j a)lhqe\j to\ lego/menon, eÃsti d' w¨j ou)k a)lhqe/j. h( ga\r e)pisth/mh, wÐsper kaiì to\ e)pi¿stasqai, ditto/n, wÒn to\ me\n duna/mei to\ de\ e)nergei¿#. h( me\n ouÅn du/namij w¨j uÀlh [tou=] kaqo/lou ouÅsa kaiì a)o/ristoj tou= kaqo/lou kaiì a)ori¿stou e)sti¿n, h( d' e)ne/rgeia w¨risme/nh kaiì w¨risme/nou, to/de ti ouÅsa tou=de/ tinoj, a)lla\ kata\ sumbebhko\j h( oÃyij to\ kaqo/lou xrw½ma o(r#= oÀti to/de to\ xrw½ma oÁ o(r#= xrw½ma/ e)stin, kaiì oÁ qewreiÍ o( grammatiko/j, to/de to\ aÃlfa aÃlfa: e)peiì ei¹ a)na/gkh ta\j a)rxa\j kaqo/lou eiånai, a)na/gkh kaiì ta\ e)k tou/twn kaqo/lou, wÐsper e)piì tw½n a)podei¿cewn: ei¹ de\ tou=to, ou)k eÃstai xwristo\n ou)qe\n ou)d' ou)si¿a. a)lla\ dh=lon oÀti eÃsti me\n w¨j h( e)pisth/mh kaqo/lou, eÃsti d' w¨j ouÃ.
172
Agora o Filósofo não se refere a tal exigência científica de universalidade como
algo estritamente necessário. Mas para que posssa fazê-lo sem incorrer em contradição
com a linha imediatamente anterior, é preciso ampliar o sentido de ciência, ou buscar
dentro da própria ciência dois sentidos distintos, um dos quais ainda mantendo tal
exigência, enquanto o outro a dispensa e ultrapassa. O primeiro sentido nada mais é que o
método científico e seus resultados, isto é, o caminho confiável que leva à descoberta e à
comunicação da descoberta, tal como vemos expresso logo no primeiro livro da
Metafísica. Trata-se, portanto, de ciência no sentido de corpo doutrinário e metodológico.
O segundo sentido nada mais é que o exercício e aplicação da doutrina aos objetos do
mundo, isto é, a apropriação mesma do objeto buscado. Ora, enquanto referência direta e
posse definitiva do objeto, esta espécie de saber não pode mais se ater ao puro universal,
mas se adequar ao próprio objeto de sua investigação, que é de natureza essencial e,
portanto, individual. A ciência no primeiro sentido busca o universal e atinge enunciados
de natureza geral e necessária, da forma “todo x é y” ou “todo x em y é z’, mas enquanto
se mantém no universal não é mais que potência para a pura apreensão do objeto em sua
presença efetiva. Tais enunciados são princípios da ciência, e são universais, mas não são
universais as coisas que são regidas por tais enunciados. Ora, tais coisas também são
princípios da ciência, pois se não houvesse qualquer x, y ou z, não faria sentido qualquer
enunciação e raciocínio acerca de suas mútuas relações. Não é possível saber se o objeto
existe ou não existe através da ciência tomada neste sentido. Sabemos apenas que, se
existir, será necessariamente de tal e tal maneira. Porém, quando apreendemos
efetivamente a presença do objeto, então obtemos uma ciência que é como o próprio
objeto: determinada e individual. Assim como a matéria em geral, cuja perfeição consiste
173
em progressivamente ser determinada pela forma, até que o processo de individuação se
complete, do mesmo modo é a relação entre a ciência enquanto método rigoroso e
universal e a ciência lato sensu dos objetos de que também a primeira ciência procura os
princípios. Daí que a aporia perca sua força dialética. É que, não obstante, a ciência seja
do universal e verse sobre os princípios de todas as coisas, isto não significa que os
princípios de todas as coisas são universais. Os princípios essenciais do universo são os
indivíduos, embora, acerca da natureza dos mesmos, possamos estabelecer enunciados
universais que são princípios da ciência. Os enunciados universais da ciência não são
anteriores ao indivíduos, mas justo o contrário. Os enunciados universais são anteriores
aos enunciados particulares, mas não aos próprios particulares. ‘Todos os triângulos têm
dois retos na soma interna dos ângulos’ é anterior a ‘Este triângulo tem dois retos na
soma interna dos ângulos ’, o que não significa que tal verdade universal seja anterior à
possibilidade de construção de algum triângulo particular. Se a construção de um
triângulo particular fosse impossível, também seria inválido o enunciado universal acerca
de todos os triângulos. Não existe um triângulo universal cuja única propriedade seja a de
ter dois retos na soma interna dos ângulos. A verdade de tal enunciado universal reside
tão somente no fato de cada triângulo particular ser, concomitantemente ao que deriva de
sua própria natureza específica de reto, escaleno ou agudo, a propriedade de tal soma
interna. Daí que Aristóteles tenha alargado seu conceito de concomitante para este âmbito
científico. Por isso não devemos nos espantar que, além da passagem acima, há outras,
como no Livro D da Metafísica, em que nos deparamos com concomitantes necessários.
O uso deste termo não é unívoco em Aristóteles. Vale tanto para referência a atributos
174
contingentes quanto necessários de um ente64, embora em outras passagens Aristóteles
denomine concomitante a tudo o que está fora da definição da essência de um sujeito65,
inclusive aquilo cuja predicação é conversível, como, por exemplo, o ‘capaz de rir’ e o
homem (todo homem é capaz de rir e tudo o que é capaz de rir é homem). Parece que na
passagem acima a tendência ampliativa deste uso foi levada ao extremo, até o ponto de
afirmar que o ser mesmo da coisa em sua identidade pode ser verdadeiro por
concomitância, se com isso entendemos o reconhecimento universal desta identidade. É o
caso, na passagem acima, da cor particular agora percebida que Aristóteles afirma estar
inclusa na natureza universal da cor por concomitância, o que significa dizer que não é
universal em si mesma, embora sua natureza individual apresente, simultaneamente, uma
verdade universal66.
É muito importante o fato de Aristóteles ter enfraquecido a aporia apelando para o
objeto da ciência, em detrimento do método e doutrina, algo que contraria o restante de
seus escritos acerca do tema. Entretanto, não é preciso recorrer à hipótese de uma outra
autoria para a passagem. A importância do objeto em seu conceito de ciência, e na
própria hierarquia das ciências, é algo que veremos ao longo das linhas seguintes. Este
caráter de sua epistemologia é decisivo para a compreensão do papel do objeto teológico
em sua filosofia.
Aristóteles, portanto, distingue ciência potencial de ciência efetiva. A ciência
potencial abstrai o universal do individual. Consiste nas definições e demonstrações de
conexões de notas comuns e relações necessárias compartilhadas pelos objetos. Enuncia
64 Met. 1025a15 65 Segundos Analíticos, 73b8. 66 Para maiores esclarecimentos sobre a amplitude semântica deste termo e as sutis conexões entre os diversos usos, ver Angioni (2006, pág. 111-113).
175
leis gerais do comportamento dos seres. A efetividade de cada indivíduo, porém, é única.
A definição de uma efetividade não atinge a natureza última desta efetividade, pois
expressa a natureza de algo que pode ou não ocorrer, enquanto a efetividade é, por
natureza, o que é agora, atualmente. A definição de uma efetividade aponta para uma
instância do ente inacessível ao intelecto. O indivíduo, sempre efetivo, escapa da
potencialidade da definição, sendo sempre algo além do que consta em seu enunciado,
pela sua própria natureza espaço-temporal. O ser do indivíduo corruptível, além disso, só
pode ser captado pela cognição direta da sensação atual, pois além de inscrito no tempo e
no espaço, é incerto em ambas as dimensões:
“As essências corruptíveis, quando fora do alcance das sensações, são
obscuras mesmo para quem possui ciência; e mesmo que delas se conserve na
alma as noções, delas não poderá haver nem definição nem demonstração. Por
isso, no que se refere à definição, é necessário que, quando se define algo das
essências individuais, não se ignore que ele sempre pode faltar, pois não é
possível defini-lo.”(1040a.2)
aÃdhla/ te ga\r ta\ fqeiro/mena toiÍj eÃxousi th\n e)pisth/mhn, oÀtan e)k th=j ai¹sqh/sewj a)pe/lqv, kaiì swzome/nwn tw½n lo/gwn e)n tv= yuxv= tw½n au)tw½n ou)k eÃstai ouÃte o(rismo\j eÃti ouÃte a)po/deicij. dio\ deiÍ, tw½n pro\j oÀron oÀtan tij o(ri¿zhtai¿ ti tw½n kaq' eÀkaston, mh\ a)gnoeiÍn oÀti a)eiì a)naireiÍn eÃstin: ou) ga\r e)nde/xetai o(ri¿sasqai.
O universal, matéria das definições e demonstrações, está a meio caminho entre o
indivisível e o infinitamente divisível. Tomemos o conceito “árvore”. Pode-se dividi-lo
em conceitos mais simples até chegar ao de corpo, o qual, enquanto universal, não pode
mais ser dividido, mas, a título de totalidade, pode ser decomposto em todos os
indivíduos que se encaixam no conceito de corpo. Já a matéria de que são feitos esses
corpos é infinitamente divisível, mesmo na qualidade de matéria. Com efeito, não há
176
termo pensável para o processo. E cada divisão constitui uma diferença efetivada pela
efetividade própria da essência correspondente. Sendo assim, não há definição de uma
essência que abarque toda a complexidade de um único indivíduo, mesmo quando há
referência à matéria inteligível próxima.
A ciência em Aristóteles deve ser ciência do necessário, seja este comum e
universal ou individual. O primeiro é um meio para atingir o segundo. Mas os entes
realmente constitutivos do universo são essências individuais e não entidades universais
compartilhadas por indivíduos. Sob tal ótica também se torna natural o alargamento que o
Filósofo foi obrigado a operar, no Livro VI da Metafísica, no conceito de universal,
apelando para uma espécie de universalidade central em lugar de comum, tema que
abordamos neste mesmo capítulo para atingir sua máxima expressão reservada à essência
imóvel.
A ciência, tanto em Platão com em Aristóteles, é teórica, isto é, contemplativa, o
que significa: o objeto tem a primazia, e não o sujeito e o método. Em Platão, a
matemática está sob a dialética porque é instrumento para esta e a dialética atinge o
objeto mais excelso. A matemática, portanto, é um meio. Em Aristóteles, a matemática
também não tem primazia porque não versa sobre um objeto strictu sensu, mas sobre
passibilidades de objetos. A teologia e a física a ultrapassam, ainda que menos exatas em
seus métodos e resultados. O caráter objetivo do necessário científico ultrapassa o caráter
metodológico do universal científico.
Aristóteles pretende superar o método metafísico concebido até então, quer dizer,
o caminho da ascese cognitiva acerca do ente enquanto ente. Tal método possui as
premissas mais universais e, portanto, de cognição mais afim ao método dedutivo da
177
ciência. O escopo metafísico, no entanto, são as essências propriamente individuais.
Assim, como toda a ciência, a metafísica possui uma tensão imanente entre método
universal e objetos singulares. No entanto, aqui a tensão atingiu o máximo grau. A
metafísica é, simultaneamente, a ciência mais universal, na medida em que versa sobre o
sentido de todo o ser, e a ciência mais particular, pois seu objeto supremo é indivíduo em
máximo grau. A autonomia deste objeto o torna rigidamente fechado em seu próprio ser.
Prossigamos na determinação das relações entre necessário, universal e individual
na ciência metafísica aristotélica.
Está claro que fundamental em ciência aristotélica é o conhecimento necessário.
A universalidade torna o método mais necessário, posto que mais distante da
instabilidade da matéria, e pelo mesmo motivo a autonomia torna o objeto mais
necessário. Autonomia e universalidade, portanto, atingem o necessário pelo afastamente
da imaterialidade, embora a primeira partindo do objeto, enquanto a segunda do sujeito.
Isto é, quando mais autônomo um objeto, maior a necessidade objetiva de sua ciência,
pois o próprio objeto se mostra necessário, isto é, suas propriedades não são apenas
possíveis e contingentes, não variam ou variam menos com o tempo, proporcionalmente
ao seu grau de autonomia relativamente à matéria. Por outro lado, quanto maior a
universalidade dos enunciados efetuados pelo sujeito conoscente acerca do objeto, maior
é a necessidade metodológica da ciência, posto que maiores são as referências de que
dispomos para o conhecimento de sua natureza. O enunciado “todos os seres vivos
crescem” é necessário do ponto de vista metodológico, pois a partir dele estabelecemos
um limite no âmbito de tudo aquilo que os seres vivos podem fazer. No entanto, nosso
conhecimento dos seres vivos é sempre limitado, devido ao próprio tipo de materialidade
178
de que são constituídos. Sua corruptibilidade torna qualquer saber sobre os mesmos quase
sempre probabilístico e aproximado, assim como acerca de qualquer essência composta
de matéria corruptível, que Aristóteles associa ao nosso planeta. A coisa muda de figura
quando emitimos enunciados verdadeiros acerca dos corpos celestes, cuja matéria
constituiente é de natureza incorruptível. A matéria destes corpos é passível somente de
movimento circular, o que torna necessárias as conclusões dos raciocínios perfeitos
quanto aos seus trânsitos cósmicos. Aqui, a necessidade do método encontra maior
realização, porquanto aliada à necessidade do objeto. Tal objeto detém um nível de
efetividade mais elevada que a dos objetos corruptíveis, cuja potencialidade material é
disposta para os quatro tipos de movimento. Daí que a escala de efetividade dos objetos
científicos seja correspondente, em cada grau, à escala de cientificidade de suas
respectivas ciências. A teologia, portanto, será a ciência mais elevada de todas, versando
sobre um objeto imutável e, portanto, necessário e científico em sumo grau.
Assim, no que diz respeito à exigência de necessidade científica, a autonomia do
objeto é mais valiosa que a universalidade do método. O conhecimento matemático está
sempre progredindo da potência à efetividade, pois contém matéria inteligível. Seu objeto,
a quantidade, não é autônomo, o que o torna não tanto um objeto propriamente dito e sim
passibilidade de objetos67.
A este fator, acrescente-se outro igualmente decisivo: os indivíduos, embora em
geral tenham parte com a matéria sensível, são os únicos entes que, em determinados
âmbitos do cosmo, se encontram totalmente destituídos de matéria. Referimo-nos aos
motores imóveis. Como se não bastasse, mesmo os indivíduos sensíveis possuem graus
67 Sobre a natureza real do objeto matemático, enquanto passibilidade própria e necessária das coisas, mas não coisas em si mesmas, ver Met. 1077b20-1078b5
179
diversos de materialidade, até o ponto dos corpos celestes, os quais, além de submeterem
totalmente seu substrato sensível em seus movimentos eternamente circulares, possuem
um tipo de matéria não constituída pelos quatro elementos e, portanto, incorruptível. Há
vários graus, portanto, de separação da matéria, os quais correspondem a diversos níveis
de cientificidade. Eis a célebre teoria dos três graus de separação (matemática, física e
teologia), expresso principalmente no livro VI da Metafísica.
Acerca do primeiro grau de separação, isto é, a separação meramente lógica dos
objetos matemáticos, Mansion68 escreve:
“E é, desta vez, por não poder afirmar mais do que uma separabilidade
puramente lógica da matéria no caso dos seres matemáticos que não há meio de
reconhecê-los como substâncias.”
Os objetos matemáticos, portanto, sempre carregam em si a materialidade dos
objetos não-matemáticos, dos quais na verdade nem mesmo se distingüem. Com efeito,
no livro XIII da Metafísica, Aristóteles escreve que tais objetos são apenas os próprios
objetos sensíveis, mas não enquanto sensíveis, isto é, não considerados em sua
materialidade física, mas apenas quanto a determinadas propriedades69.
Os objetos físicos, contudo, embora sejam separados relativamente à matéria que
não entra em sua essência, nem por isso está livre da matéria que o constitui por natureza.
Somente a teologia lida com objetos totalmente destituídos de matéria. Aqui não há sinal
de matéria etérea dos corpos pesados, nem mesmo da controvertida matéria inteligível
das matemáticas.
68 Mansion, 1958, pág. 159 69 Met. 1077b20
180
Agora, com base nas considerações acima, as aporias do modo de universalidade
da ciência primeira podem ser mais bem elucidadas.Tomemos o seguinte esquema
taxionômico e vejamos sua potência elucidativa:
1- Ente enquanto ente: trata-se do que poderíamos denominar metafísica lato
sensu, propedêutica metafísica ou metafísica básica. Trata-se aqui simplesmente do
escopo metodológico da filosofia que busca os princípios mais puros do ente, aquilo que
lhe compete primordialmente, em contraposição ao mero ente concomitante.
1.1 - Ente enquanto ente enquanto separado: aqui temos a metafísica strictu sensu.
A essência é o “sentido focal” do ente enquanto ente, pois somente ela pode subsistir por
si mesma, ou seja, separada dos entes concomitantes.
1.1.a - Ente enquanto ente enquanto separado porquanto passível de intelecção: é
a física pretendida por Aristóteles, ou seja, do ente enquanto móvel, mas também imóvel,
embora neste aspecto apenas enquanto passível de intelecção. No Livro VII da Metafísica
há um trecho que elucida bem este aspecto de sua epistemologia:
“De fato, em certo sentido, a pesquisa sobre as essências sensíveis pertence à
física e à filosofia segunda; o físico não deve limitar sua investigação à matéria,
mas também acerca da matéria segundo seu enunciado: antes, deve investigar
sobretudo sobre esta.” (1037a13)
e)peiì tro/pon tina\ th=j fusikh=j kaiì deute/raj filosofi¿aj eÃrgon h( periì ta\j ai¹sqhta\j ou)si¿aj qewri¿a: ou) ga\r mo/non periì th=j uÀlhj deiÍ gnwri¿zein to\n fusiko\n a)lla\ kaiì th=j kata\ to\n lo/gon, kaiì ma=llon.
Com efeito, Aristóteles considerou atentamente a aplicação do escopo da filosofia
primeira à física, e com isso nos referimos à responsabilidade do físico para com a
essência do móvel abarcada pelo enunciado definitório do móvel, isto é, a estrutura
primeira do móvel que torna possível o movimento. A constatação de que há duas
181
essências móveis – a lunar e a supralunar – assim como as diversas sub-espécies de
essências móveis fariam parte deste escopo.
Com a expressão “separado apenas enquanto passível de intelecção” entendemos:
não separado realmente da matéria, mas apenas cognitivamente, pois, embora a essência
enquanto forma seja o princípio efetivo do composto, nos entes sensíveis não existe
separadamente, mas apenas em concatenação com a matéria. Neste campo de estudo
entra, por exemplo, a alma, enquanto princípio de movimento das essências vivas, que
não pode – com exceção da parte inteligente da alma humana – prescindir da matéria,
mas pode ser conhecida em separado (xwristo/n), na medida em que o enunciado
(lo/goj) da alma não é o mesmo enunciado do corpo material do qual é a plenitude
(e)ntele/xeia).
1.1.b- Ente enquanto ente enquanto separado enquanto ente » teologia (ente
enquanto ente enquanto separado enquanto separado)
A teologia completa o percurso metafísico da essência inteligível à essência
inteligente, do ‘ente enquanto ente enquanto passível de intelecção’ ao ‘ente enquanto
ente enquanto ente’. A teologia é uma dupla metafísica, metametafísica. O ente enquanto
ente não é aqui uma perspectiva cognitiva baseada na autonomia do ente – a essência.
Aqui o ente só pode ser enquanto ente, sem comércio com outra possibilidade ontológica.
Excluídas desta taxionomia, encontram-se a) a matemática: ente enquanto quanto
(quanto enquanto separado enquanto passível de intelecção) e b) a física antiga: ente
puramente enquanto móvel.
Outra evidência de que “ao falar de espécies de ente” há também um uso de
espécie no sentido de uma escala universal-particular se encontra em Met. VI 1026a25:
182
“Há uma perplexidade acerca de se a filosofia primeira é universal ou se se
refere a um gênero determinado e a uma realidade particular. De fato, a respeito
disso, no âmbito das matemáticas existe diversidade: a geometria e a astronomia
referem-se a determinada realidade, enquanto a matemática geral é comum a
todas. Ora, se não existisse outra essência além das que constituem a natureza, a
física seria a ciência primeira, e desse modo, ou seja, enquanto primeira, ela será
universal e a ela caberá a tarefa de estudar o ente enquanto ente, vale dizer, o
que é o ente e os atributos que lhe pertencem enquanto ente.”
a)porh/seie ga\r aÃn tij po/tero/n poq' h( prw¯th filosofi¿a kaqo/lou e)stiìn hÄ peri¿ ti ge/noj kaiì fu/sin tina\ mi¿an (ou) ga\r o( au)to\j tro/poj ou)d' e)n taiÍj maqhmatikaiÍj, a)ll' h( me\n gewmetri¿a kaiì a)strologi¿a peri¿ tina fu/sin ei¹si¿n, h( de\ kaqo/lou pasw½n koinh/Ÿ: ei¹ me\n ouÅn mh\ eÃsti tij e(te/ra ou)si¿a para\ ta\j fu/sei sunesthkui¿aj, h( fusikh\ aÄn eiãh prw¯th e)pisth/mh: ei¹ d' eÃsti tij ou)si¿a a)ki¿nhtoj, auÀth prote/ra kaiì filosofi¿a prw¯th, kaiì kaqo/lou ouÀtwj oÀti prw¯th: kaiì periì tou= oÃntoj v oÄn tau/thj aÄn eiãh qewrh=sai, kaiì ti¿ e)sti kaiì ta\ u(pa/rxonta v oÃn. Aqui fica claro que a filosofia segunda não deve necessariamente se ocupar
somente da essência sensível sem consideração ao ente enquanto ente, contrariamente ao
que Mansion70. Na verdade, a filosofia que for considerada primeira terá a tarefa de
estudar o ente enquanto ente, mas também a filosofia segunda. Apenas que a
universalidade caberá àquela que for considerada primeira em dois sentidos: a) porque tal
saber se ocupa da essência mais eminente, que determina as causas de todas as demais e b)
os princípios do ente enquanto ente encontrarão expressão mais perfeita em tal saber,
posto que seu objeto goza de maior autonomia relativamente ao não-ente e ao ente
concomitante.
70 Mansion, 1958 pág. 151.
183
Assim, no âmbito da ordem geral das ciências, geometria e arimética são
abarcadas pelo gênero da matemática universal, a ciência do ente enquanto quanto, isto é,
enquanto pura quantidade. A geometria ocupa aqui o lugar de ciência da quantidade
extensa, que nada mais são que as linhas, planos e sólidos, enquanto a aritmética trata da
quantidade inextensa, ou seja, os números e suas propriedades necessárias71.
Acima deste gênero de ciência se acha o da ciência do ente enquanto ente, isto é, a
ciência do puro ente, concentrada necessariamente no ente em sentido mais eminente: a
essência. Como há duas essências, a sensível e a supra-sensível, haverá também duas
possibilidades de concentrações para os princípios da ciência do ente enquanto tal, o que
significa: duas ciências do ente enquanto ente: a) aquela do ente enquanto ente separado
fisicamente, ou seja, existente de fato e independentemente da abstração e b) aquela do
ente enquanto ente separado da matéria, respectivamente, a física e a teologia.
Seguem agora duas observações que surgem naturalmente acerca do nexo entre as
noções de ente enquanto ente, ente separado e suas implicações para o escopo de uma
filosofia primeira.
1) Filosofia primeira é uma expressão propositadamente ordinal, pois o intuito de
Aristóteles, embora não fosse a ambigüidade, foi estabelecer o significado criteriológico
da expressão para a qual deveria ser encontrado seu correlato objetivo, ou seja, a exata
filosofia que corresponderia ao "ser primeiro" da expressão. Da mesma forma deveremos
entender a essência primeira.
2) A unidade metológica da ciência aristotélica é menos rigorosa que a da ciência
de Platão, embora - e justamente por isso - a unidade objetiva de sua ciência seja maior,
71 Para um maior aprofundamento da questão acerca da natureza dos objetos geométricos e aritméticos, é muito útil uma leitura atenta do Livro XIII da Metafísica, particularmente o capítulo três.
184
pois trata do um mais fundamental, o um numérico: o indivíduo. O um de que trata Platão
é aquele que se aplica homogeneamente a tudo quanto é, pois tudo o que é é um. Por isso
não há problema, para o mestre ateniense, em uma distinção entre método e objeto da
filosofia mais excelente. A unidade separativa de Aristóteles, por seu turno, o força a,
partindo do estudo da unidade de todo ente – natureza e escopo da filosofia primeira –
conectá-lo, em seguida, ao estudo do que é um em sentido mais pleno: o indivíduo. Além
disso, como há vários graus de separabilidade individual, o Filósofo também se vê
obrigado a estabelecer a conexão deste escopo metafísico com o indivíduo separado em
máximo grau: o motor imóvel, indivíduo absoluto.
A perplexidade de Mansion, relativamente à íntima ligação entre a ciência do ente
enquanto ente e a ciência do ente separado, em Metafísica XI, não seria compartilhada
por Aubenque, que afirma:
"Se a separação comprometia em Platão, e mais ainda em Espeusipo, a unidade
do mundo e do ente, ela se torna, paradoxalmente, e em um outro sentido, em Aristóteles
o princípio mesmo da unidade.”72
Ora, estabelecido assim o modo como as noções de ente, enquanto enquanto ente,
separação e indivíduo se conectam na filosofia aristotélica, estamos preparados para
entender de modo satisfatório o mais seguro dos princípios, aquele que está na base da
ciência do ente enquanto ente. Aristóteles fornece tal princípio logo após determinar o
horizonte investigativo desta ciência, cuja problemática discutimos acima. Vimos que a
noção de ente enquanto ente vai desde a acepção universal, própria de tudo o que é, até a
acepção mais estrita do que é sentido nuclear: a essência e o indivíduo. Logo, o princípio
universal do ente enquanto ente também conterá estes dois vetores, a saber, o que vai do
185
universal até o indivíduo e o que vai do indivíduo ao universal. O primeiro destes vetores
é que mais se adequa ao escopo do que Aristóteles denomina “ciência efetiva” que, como
vimos acima, trata, preferencialmente, do indivíduo. Deste modo, não devemos nos
surpreender que o Filósofo lance mão de argumentos puramente centrados em instâncias
individuais, como o motor imóvel, por exemplo. A mera existência de algo imóvel já é
motivo, em certo momento, para comprovar o “mais seguro dos axiomas”. E tal essência,
que descobriremos, no devido lugar, ser o indivíduo absoluto, é a expressão mais
derradeira deste princípio. Na verdade, a individualidade não-contraditória do motor
imóvel representa uma prova tão cabal deste princípio quanto às demonstrações acerca da
contraditoriedade de toda enunciação em geral, as quais ocupam todo o projeto
ontológico do livro G. É que, se há uma única essência que escapa totalmente do devir
universal – logo, a toda a contradição – não há mais como defender a tese de que a
contradição está radicada na própria natureza do ente enquanto ente. Logo, em qualquer
instância que fosse possível detectá-la, o seria por qualquer motivo, exceto em razão do
ser mesmo da coisa.
Como última reflexão desenvolvida neste capítulo, que trata da unidade da ciência
do ente enquanto ente, temos então de remeter ao princípio máximo do ente assim
considerado: o princípio de não-contradição. Não deve escapar também sua relação com
a doutrina do motor imóvel, relação esta que será ainda mais aprofundada no devido
capítulo acerca da unidade própria do motor imóvel.
No livro G da Metafísica, portanto, Aristóteles investiga os princípios da ciência
primeira. Após fornecer uma definição desta ciência e distingui-la de outras formas de
72 (1962, pág. 409)
186
saber, o autor segue no estudo dos primeiros princípios que a determinam. Considera,
antes, os caracteres próprios destes princípios. Ou seja, os requisitos que devem
preencher para atuarem, efetivamente, como princípios. Estes requisitos são dois: a) os
princípios devem ser os mais bem conhecidos de todos (gnwrimwta/thn te ga\r
a)nagkaiÍon eiånai th\n toiau/thn) (1005b13); b) não podem ser hipotéticos (tou=to
ou)x u(po/qesij:) (1005b15). Este decorre necessariamente do primeiro. Um princípio
que deve ser o mais bem conhecido por todos não pode ser uma hipótese. Cada um deve
sabê-lo imediatamente.
Aristóteles conclui que o único princípio que realmente satisfaz tais exigências,
não sendo passível de engano sob qualquer hipótese é este: “o mesmo não pode, ao
mesmo tempo, estar presente e não estar presente no mesmo com relação ao mesmo” (to\
ga\r au)to\ aÀma u(pa/rxein te kaiì mh\ u(pa/rxein a)du/naton t%½ au)t%½ kaiì kata\
to\ au)to/) (1005b19). Este princípio elimina a possibilidade da contradição, ou seja, a
presença simultânea, em um mesmo ente, de entes que se excluem mutuamente. O
Filósofo aponta Heráclito como um dos pensadores que tentam violar este princípio em
sua filosofia, pois é conhecido por alguns como um de seus pensamentos o de que os
entes sejam e não sejam o que são. Mais precisamente: que um mesmo ente tenha e não
tenha, ao mesmo tempo, determinado atributo ou propriedade. Contra esta forma de
pensar, própria de muitos físicos em sua época, Aristóteles impõe uma série de refutações.
O que realmente importa nas mesmas é o objetivo último de suas formulações. Este
objetivo pode ser definido como a determinação do primeiro princípio a que está
submetido o vir-a-ser das coisas e dos pensamentos correspondentes, condição sine qua
187
non de ambos. Portanto, situa-se simultaneamente nas duas esferas. Esta é uma
característica recorrente no pensamento do Estagirita. Não esqueçamos o que diz o livro
D da Metafísica, quanto à quarta significação da noção de limite: “a essência, quer dizer,
a essência de cada coisa: esta é, com efeito, o limite do conhecimento, e, se o é de
conhecimento, também o é da coisa.” (th=j gnw¯sewj ga\r tou=to pe/raj: ei¹ de\ th=j
gnw¯sewj, kaiì tou= pra/gmatoj.) (1022a9). Esta ambivalência da essência, que detém
uma verdade simultaneamente ontológica e epistemológica, está presente no uso de outro
termo caro ao Filósofo: o enunciado (logos). Na seção “vocabulário de tradução”,
justificamos nossa opção por este termo português para traduzir o vocábulo grego. Ali
também explicamos a dualidade ontológico-epistemológica de logos, assim como outras
possibilidades de sua aplicação semântica. O que nos importa aqui é destacar, não
obstante a referida ambivalência, que o uso primordial devia estar mesmo reservado ao
ato significante propiciado pela linguagem: ou seja, o enunciado. Ocorre que tal uso foi
estendido mesmo à esfera das coisas significadas e a sua estrutura interna, como o caso
da essência que, como vimos acima, se trata de uma estrutura imanente às coisas, embora
também signifique o resultado das enunciações cognitivas que obtemos a partir desta
estrutura. Assim, a própria essência de uma coisa pode ser expressa em um enunciado, e
este pode significar tanto o modo verbalizado como apreendemos sua estrutura, como a
estrutura mesma da coisa.
Mas a estrutura enunciativa é mais ampla do que a estrutura essencial. Toda
essência possui um enunciado determinado, que é sua definição (ver Livro VII), mas nem
todo enunciado se refere a uma essência. Deste modo, se o objetivo do livro G é
estabelecer um princípio válido para todo ente enquanto ente, e não somente para o ente
188
enquanto ente enquanto separado – isto é, a essência – é claro que deverá tratar das
condições de possibilidade de todo enunciado e objeto enunciável, para então descobrir a
condição mais fundamental de todas, isto é, o mais seguro dos princípios.
Assim, com exceção da parte inicial em que o Filósofo estabelece a problemática
da ciência do ente enuquanto ente, todo Livro G pode ser visto como uma coletânea
sistemática de refutações às doutrinas que negam a unidade separativa de cada enunciado
possível. Deste modo, as refutações também se inserem todas neste domínio, ou seja, são
refutações a partir do mero ‘enunciar’ de algo. Aristóteles pretende salvarguar a unidade
do enunciado e de seu correspondente ontológico lançando mão, tão somente, da própria
estrutura enunciativa, pois ela nos revela, como vimos acima, o essencial do ente.
Embora Aristóteles tenha investigado uma gama considerável de enunciados,
podemos classificá-los em dois grandes gêneros: o enunciados propriamente ditos, isto é,
os enunciados próprios da inteligência e do discurso, e os enunciados que assim
denominamos analogicamente, a saber, os dados apreendidos pela sensação. Embora aqui
Aristóteles não se refira aos últimos como instância deste tipo, em seu De Anima lemos
claramente sua constatação acerca da semelhança estrutural entre a sensação e e o
enunciado. Ali a sensação é descrita como uma certa potência enunciativa73 (lo/goj tij
kaiì du/namij e)kei¿nou), e não como se o lo/goj ali referido como significasse tão
somente uma certa relação ou proporção entre qualidades sensíveis contrárias.
Anteriormente a tal relação entre contrários, há uma potência imanente e condicionante,
73 DA, 424a27
189
articulando os contrários de modo semelhante a uma articulação verbal, enunciativa. Daí
o uso do termo lo/goj naquela passagem, que traz em si tal possibilidade semântica74.
Sendo assim, Aristóteles deve tornar manifesto o caráter uno e separado de cada
uma das espécies destes dois grandes gêneros de enunciados, que chamaremos aqui de
enunciados inteligíveis e enunciados sensíveis. Cada enunciado, no ato mesmo de sua
efetivação, deve excluir terminantemente seus contrários. Em outras palavras: o
enunciado é divisível pelas partes que o compõem, mas não divisível por si mesmo. O
enunciado é um consigo mesmo, não podendo, o ato mesmo de sua enunciação, ser
contrário a si mesmo. Com efeito para que um enunciado significasse que o mesmo está
presente no mesmo ao mesmo tempo e segundo o mesmo' seria preciso que o próprio ato
de sua enunciação enunciasse sua não enunciação, o que é impossível. Significaria
enunciar que agora que digo cão enunciando (me referindo a) este cão, não estou
enunciando cão para enunciar este cão. Mas nenhum ato enunciativo pode enunciar sua
própria não-enunciação no instante mesmo com que enuncia.
Detenhamo-nos, no momento, aos dados sensíveis, cujo caráter enunciativo
apenas vislumbramos acima, para entender exatamente a natureza de sua unidade
separativa.
Aristóteles afirma, no De Anima, que a sensação é uma espécie de enunciado ou
algo semelhante ao enunciado. Isto pode parecer muito estranho sob um primeiro enfoque,
razão pela qual muitos preferem traduzir a passagem correspondente assim: “a sensação é
uma certa relação”. Com isso se pretende que o termo logos aqui é usado apenas no
sentido genérico de relação ou proporção, em nada se referindo ao ato enunciativo. Esta
74 Acerca da mesma temática, é muito interessante a abordagem fenomenológica de Barbara Cassin.
190
tendência se deve ao fato de não ter sido encontrado o modo de semelhança entre o
enunciado verbal e o enunciado sensível.
Quando o som é ouvido, isto é, captado pelo sensório, este efetiva algo
semelhante a uma enunciação. Com efeito, a cognição de algo formado a partir da
mistura de propriedades contrárias é semelhante à unidade na multiplicidade, própria de
toda enunciação. O sensório fornece à cognição a informação de que a parte dominante e
efetiva deste som é aguda, o que equivale à informação de que a parte dominada e
potencial deste som é grave. Há, portanto, um todo informativo equivalente a um só
enunciado: som agudo mesclado com grave. Ora esta vale como que sendo a definição
deste com, embora não seja realmente uma definição, mas sua correlata sensível.
Ora, quanto mais a sensação é semelhante a um enuciado, mais agradável ela será,
principalmente quando se aproximar do enunciado determinado enquanto tal: a definição.
Isto quer dizer que aqueles sons cuja audição é facilmente definível proporcionam um
prazer, inversamente àqueles que são menos passíveis a tal procedimento. É como se a
sensação em geral preparasse, na medida, do possível, a função inteligível da definição.
O caso extremo de um som sem equilíbrio entre contrários, além de não produzir prazer,
é algo doloroso para o órgão sensório e destrutivo para a sensação:
“Por isso, qualquer excesso – ou de agudo, ou de grave – destrói a audição, bem
como o excesso dos sabores destrói a gustação, e, no caso das cores, o
demasiado brilhante e tenebroso destrói a visão, e o odor forte, tanto como o
doce e o amargo, destrói o olfato; pois a sensação é um certo enunciado.”
(426a27)
(Cassin, 1999, pág. 165)
191
kaiì dia\ tou=to kaiì fqei¿rei eÀkaston u(perba/llon, kaiì to\ o)cu\ kaiì to\ baru/, th\n a)koh/n: o(moi¿wj de\ kaiì e)n xumoiÍj th\n geu=sin, kaiì e)n xrw¯masi th\n oÃyin to\ sfo/dra lampro\n hÄ zofero/n, kaiì e)n o)sfrh/sei h( i¹sxura\ o)smh/, kaiì glukeiÍa kaiì pikra/, w¨j lo/gou tino\j oÃntoj th=j ai¹sqh/sewj.
Mas o decisivo aqui é a ruptura da enunciação determinada. Agora o que poderia
ser identificado desde a parte dominante aguda até a peculiaridade proporcionada pela
dose mínima de grave perde então esta distintividade. Torna-se uma simples efetividade
do agudo. Ora, para o senciente isto significará uma sensação desagradável. Embora aqui
ainda haja, aparentemente, uma semelhança com a enunciação, pois esta sensação
equivale ao enunciado "o som é agudo", a analogia é muito imprecisa, pois todo
enunciado é composto de partes, o que não se verifica aqui no que diz respeito a sensação
em si mesma. Assim, embora seja possível o enunciado "o som é agudo", não há um
enunciado possível análogo à sensação mesma deste som, ou seja, uma certa definição do
som. Uma definição no sentido estrito sempre envolve um gênero e uma diferença
específica. No caso, como não se trata de uma definição no sentido rigoroso, mas de um
análogo sensível, bastaria que pudéssemos encontrar, na sensação, uma relação
semelhante àquela presente em uma definição do tipo “triângulo que possui um ângulo
reto’. O gênero triângulo é um primeiro contato com a natureza do objeto, mas seu
enunciado definitório só estará completo se acrescentarmos a diferença específica
‘possuir um ângulo reto’. No caso anterior, "som agudo" seria um análogo ao gênero,
enquanto "mesclado com grave" vale como diferença. A semelhança com uma definição
é princípio de prazer para a sensação. Quanto mais a sensação antecipa a forma ordenada
e discriminada da enunciação propriamente dita, maior será o prazer proporcionado pelo
seu advento. A sensação, assim como a enunciação, embora em sentido apenas análogo,
192
atinge a perfeição quando aprende algo determinado, isto é, com certa articulação patente.
Daí que Aristóteles sinta-se à vontade de se referir à sensação como uma potência
enunciativa. De fato, o lógos é não apenas um enunciado, mas também uma potência
articuladora de enunciação, semelhante às potências sensoriais apreendedoras de relações
bem articuladas e proporcionais nos dados sensíveis.
E o que dizer do caso extremo de um sensível cuja propriedade é tão intensa que
destrói o sentido? A respeito ao sentido do tato, Aristóteles escreve:
“Todo excesso do objeto sensível arruína o órgão sensorial; e, da mesma
maneira, o tangível arruína o tato, que é aquele pelo qual se define o animal.”
(435b12)
panto\j me\n ga\r u(perbolh\ ai¹sqhtou= a)naireiÍ to\ ai¹sqhth/rion, wÐste kaiì to\ a(pto\n th\n a(fh/n, tau/tv de\ wÐristai to\ z%½on:
Se a sensação é semelhante a uma enunciação, está claro que a faculdade sensorial
correspondente é semelhante à faculdade enunciativa com um todo. E se determinados
sensíveis cuja composição qualitativa é pouco equilibrada rompem o enunciado, desde o
ponto da anulação do prazer até o momento doloroso, não devemos nos surpreender que,
em seu limite, tal desproporção qualitativa venha a destruir, não somente o análogo
enunciativo, mas também a análoga faculdade enuciativa enquanto tal pela destruição do
próprio instrumento condicionante desta faculdade, ou seja, o próprio órgão sensorial
correspondente. Deste modo, elevando até o máximo de sua intensidade o som agudo que
em seu primeiro momento havia sido agradável, ocorre algo mais radicalmente destrutivo:
a ruptura da possibilidade de enunciação.
193
Ora, se a sensação realmente é análoga a um enunciado verbal, ou algo cuja
estrutura muito se assemelha a tal coisa, o princípio acerca de todo enunciado também se
aplica ao seu âmbito. Nenhuma sensação pode enunciar algo que está presente e não está
presente no mesmo, ao mesmo tempo e segundo o mesmo. Toda sensação deve enunciar
sua própria natureza interna, em detrimento de tudo que signifique sua não-enunciação.
A enunciação sensível é relativa a algo único, pois se refere a um dado sensível
que, independente de ser predicado do sujeito suposto, é este algo determinado e não
aquela outra. Embora o ser das cores não possa ser apreendido pela definição, isto não
significa que não haja uma determinação em cada uma das cores, que consiste na
imediata separação de uma cor de qualquer outra além dela. A cor vermelha percebida,
mesmo que não pertença ao objeto suposto pelo indivíduo senciente, ainda assim pode ser
distinguida desta outra cor, a cor verde, por exemplo. A sensação da cor é como um
enunciado que efetiva a si mesmo, uma auto-enunciação.
No entanto, não devemos restringir o princípio autológico da não-contradição ao
domínio do puro instante auto-positivo de todo devir, isto é, à autologia originária que
condiciona a possibilidade de toda alteridade. Este princípio também se aplica, e ainda
com mais vigor, aos entes que duram mais do que um instante e, principalmente, aos que
o fazem autonomamente. Em outras palavras, o princípio autológico expresso na
contradição do ente é ainda mais nítido no enunciado que determina a essência.
Uma essência possui um enunciado definitório, cuja unidade decorre de si mesma.
Por exemplo: no enunciado de homem, animal racional, a união dos dois termos é
condicionada pela própria natureza de cada um dos termos, pois é racional é uma
determinação possível do próprio animal enquanto animal. Ao contrário, no enunciado
194
homem branco, há uma unidade apenas concomitante, pois não há nada no ser de homem
enquanto homem que seja determinável pelo acréscimo da brancura. Portanto, tal
diferença não se encontra no próprio homem em si mesmo, não está unificada com seu
ser, mas apenas ao seu 'ser na matéria'. Se estabelecemos animal racional como o
enunciado de homem, tal enunciado não pode ser verdadeiro juntamente com as negações
animal não-racional ou não-animal racional ou não-animal não-racional. Tal
possibilidade é interdita em dois âmbitos: a) o da pura referência a um termo único e
prefixado, que não pode ser outro no instante em que é prefixado; b) o da unificação
intrínseca do enunciado definitório, que dispensa outro ente para ser efetivada, sendo um
enunciado de si para si. Ora, no caso da pura auto-enunciação de uma qualidade sensível,
por exemplo, não há uma autonomia enunciativa efetiva, pois, embora a qualidade em si
mesma seja idêntica a si, seu ser concreto (synolon) é sempre relativo à outro ser
autônomo ao qual está unido segundo uma unidade não necessária e, portanto, variável na
duração do tempo.
O lógico Jan Lukasiewicz, em seu célebre artigo sobre o princípio de não-
contradição, escreveu:
"Na melhor das hipóteses, a lei da contradição teria sido fundamentada
apenas para um domínio muito limitado de objetos, a saber, para a” essência
“das coisas ou para a substância. A sua validade para os concomitantes
permaneceria em questão. - Que Aristóteles nesta demonstração esteja de fato
vindicando a lei da contradição para as substâncias isto resulta, por exemplo, da
seguinte passagem" - E assim haverá algo que designe a essência. Mas, se é
assim, então foi dada a prova de que é impossível predicar contraditórios ao
mesmo tempo.”75
195
Embora não pretendamos seguir aqui o curso da investigação do lógico polonês,
que, aliás, radicaliza para o completo abandono de tal princípio na esfera da não-essência,
que este seja um ensejo para que percebamos a necessidade de uma discussão mais
aprofundada da unidade da essência, unidade essa que surge naturalmente como o passo
seguinte da unidade separativa ainda precária estabelecida pelo princípio de não-
contradição no domínio do puro ente, ou do ente enquanto ente. O devir universal,
principal obstáculo à demonstração aristotélica da unidade do ente, e que levou Crátilo a
afirmar - transcendendo Heráclito - que não é possível entrar no mesmo rio sequer uma
vez, perde muito de sua força contraditória quando entramos na esfera henológica da
essência. Até aqui vimos tão somente a unidade enunciativa da essência, enquanto
conceito que apreende o aspecto essencial do ente. Investiguemos agora se há um fato
ontológico peculiar de sua unidade separativa.
75 Lukasiewicz, 1910, pág. 12.
196
UNIDADE DA ESSÊNCIA A essência é a parte primeira, tanto se o cosmos é tomado como uma série, como se
tomado como um todo, ou seja, como tendo uma ordem, pois tal ordem é devida ao
primeiro motor.
O estudo da unidade da ousia em Aristóteles requer duas abordagens
complementares, sem as quais todo a preponderância deste conceito não seria
devidamente clarificada. A essência é a) unificada, quer dizer, possui uma determinada
coesão interna que a distingue dos outros entes; e b) unificante, o que significa ser
promotora da unidade dos entes e do sistema dos entes: o cosmos. Sendo assim,
seguiremos em aprofundar estas duas faces originárias da essência.
Caráter Unificado da Essência
A essência é algo uno, mas a razão de sua unidade não é bem clara no ato de
determinação do enunciado (lo/goj) de seu ser-pévio (to\ ti¿ hÅn eiånai).
“Refiro-me à seguinte perplexidade: por que é uma unidade aquilo cujo
enunciado (lo/goj) dizemos ser uma definição, por exemplo, no caso do homem,
animal bípede? (digamos que seja esta a definição de homem). Por que, então,
‘animal bípede’ é um e não múltiplo?” (VII 1037b9).
le/gw de\ tau/thn th\n a)pori¿an, dia\ ti¿ pote eÀn e)stin ou to\n lo/gon o(rismo\n eiånai¿ famen, oiâon tou= a)nqrw¯pou to\ z%½on di¿poun: eÃstw ga\r ouÂtoj au)tou= lo/goj. dia\ ti¿ dh\ tou=to eÀn e)stin a)ll' ou) polla.
197
Como duas realidades distintas – animal e bípede, este caso – expressos por
enunciados distintos, podem formar uma mesma realidade, ou seja, algo único? O
enunciado resultante, por si mesmo, não revela tal unicidade, pois é uma combinação de
partes distintas. O caráter enunciativo, portanto, é incompleto no sentido de representar a
unidade da coisa, embora seja um instrumento razoável de apreensão de sua
complexidade.
A questão, na verdade, é saber o modo de unidade do ser-prévio de algo. Ora, no
livro VII da Metafísica o Filósofo revela o modo de expressão enunciativa do aspecto
complexo da coisa:
“Dado que a definição é um enunciado (lo/goj) e que todo enunciado tem
partes e, por outro lado, dado que o enunciado, relativamente à coisa, tem as
mesmas relações que suas partes têm com relação às partes da coisa, põe-se o
problema de saber se é necessário que o enunciado das partes esteja presente no
enunciado do todo ou não.” (VII 1034b20).
¹Epeiì de\ o( o(rismo\j lo/goj e)sti¿, pa=j de\ lo/goj me/rh eÃxei, w¨j de\ o( lo/goj pro\j to\ pra=gma, kaiì to\ me/roj tou= lo/gou pro\j to\ me/roj tou= pra/gmatoj o(moi¿wj eÃxei, a)poreiÍtai hÃdh po/teron deiÍ to\n tw½n merw½n lo/gon e)nupa/rxein e)n t%½ tou= oÀlou lo/g% hÄ ouÃ.
O ser-prévio de algo é sempre expresso nas partes da definição. Aristóteles afirma
que cada parte da definição deve corresponder a uma parte do definido, assim como o
todo da definição corresponde ao todo do definido A aporia consiste no modo pelo qual o
composto gera o simples, como as partes da definição, quer dizer, o seu conjunto de
termos constituintes na forma de gêneros e diferenças essenciais – que são partes
respectivamente correspondentes às partes do ser-prévio da essência – geram a unidade
deste ou daquele ente particular, tornando possível a referência a uma única coisa. Neste
198
ponto, o Filósofo apela para a unidade contínua de matéria e forma e gênero e espécie
segundo efetividade e potência. Ocorre que o gênero nos informa sobre a matéria de algo
e a espécie o faz concernente à sua forma. Um homem, por exemplo, tem como matéria o
corpo animado, que na verdade nos informa também sobre seu gênero, ao passo que o
animal racional - o gênero acrescido da diferença específica - revela sua forma inerente.
Tais dicotomias, contudo, são mais de razão que de fato. A forma nada mais é que a
própria matéria em efetividade e a espécie, por conseguinte, representa o gênero de um
modo determinado, até porque não há gêneros à parte de suas espécies, nem matéria
alguma abstraída de toda enformação, ainda que uma forma sem matéria possa e deva
existir, o que na verdade é o escopo do livro L. O último caso, porém, em nada interfere
na proposta aristotélica de esclarecer o modo de unidade da essência. Com efeito, isto só
era problemático nos entes cuja matéria e forma eram expressos distintamente na
definição, o que trazia à superfície a possibilidade destes dois fatores jazerem distintos no
próprio objeto expresso na definição - a essência. Mas é justamente tal possibilidade a ser
agora descartada.
A investigação acerca da essência deve respeitar dois critérios. Vejamos a razão
disso.
O Filósofo escreve:
“A essência é tomada segundo dois significados: a) o que é sujeito último,
o qual não é predicado de outra coisa, e b) aquilo que, sendo algo determinado,
pode também ser separado, como a estrutura e a forma de cada coisa”.
sumbai¿nei dh\ kata\ du/o tro/pouj th\n ou)si¿an le/gesqai, to/ q' u(pokei¿menon eÃsxaton, oÁ mhke/ti kat' aÃllou le/getai, kaiì oÁ aÄn to/de ti oÄn kaiì xwristo\n vÅ: toiou=ton de\ e(ka/stou h( morfh\ kaiì to\ eiådoj.
199
Três termos são decisivos nesta passagem: sujeito (u(pokei¿menon), separado
(xwristo\n) e algo determinado (to/de ti)
A essência , em Aristóteles, deve ser um sujeito. Cabe, no entanto, perceber dois
sentidos em que isto deve ocorrer:
a) A essência é um sujeito lógico, porquanto não se diz de um sujeito. Este
homem não se diz de algum sujeito, ou seja, aquele homem não é este homem. No
entanto, também um mero acidente, como a brancura, não se diz de um sujeito: este
homem não é brancura, mas branco. Portanto, não basta ser indivíduo lógico para ser uma
essência.
b) A essência é sujeito ontológico, isto é, não se diz em um sujeito. A essência é
sujeito. Este cavalo não está em um sujeito, pois se refere somente a si mesmo, de modo
que aquele cavalo, assim como qualquer outro, não é este cavalo. No entanto, o gênero
também não está em um sujeito, pois não dizemos que animal está no homem, mas
dizemos de homem que é animal. O gênero é dito de um sujeito, mas não em um sujeito.
Portanto, não basta ser sujeito ontológico para ser essência. Até mesmo a matéria, e
principalmente esta, é sujeito ontológico, além de ser sujeito lógico, já que podemos dizer
‘a madeira é esférica’. Neste caso, a forma esférica é predicada da matéria-madeira.
Estas duas instâncias caem no âmbito da subjacência. A subjacência máxima
(atingida pela matéria), não é suficiente para reconhecermos a essência, pois esta deve ser
tóde ti, um isto. A matéria, embora seja o sujeito último, deve ser acompanhada de outra
nota ontológica para que possa ser reconhecida como essência, ou seja, como ‘um isto’.
Ela deve ser delimitada pela forma. E a forma, como nos informa o livro D da Metafísica
é um limite. Somente após sofrer a demarcação de um limite, a matéria pode assumir o
200
caráter de um ente determinado entre outros entes, superando assim o estado de puro
homogêneo, massa informe. A forma é justamente o limite por excelência, pois é aquele
que possibilita tal essencialiação. Para os entes sensíveis, forma e matéria dotam um ao
outro, cada qual em um nível, do caráter de separado (chóriston). É que a matéria
enformada passa a se distinguir da massa homogênea outrora circundante. Ela se separa
do restante material. A forma materializada, por outro lado, adquire a prerrogativa de
existência separada do pensamento. A forma material existe de fato por si só, ainda que
não seja objeto de intelecção.
A matéria, assim, ainda que sujeito último, não pode ser conhecida por si mesma,
justamente porque, em si mesma, é indeterminada (ápeiron):
"Existem partes da forma (por forma entendo o ser-prévio), existem partes
do concreto de matéria e forma e existem partes também da matéria. Mas há
(lógos) somente da forma. [...] A matéria, por si é incognoscível." (1036a5)
me/roj me\n ouÅn e)stiì kaiì tou= eiãdouj (eiådoj de\ le/gw to\ ti¿ hÅn eiånaiŸ kaiì tou= suno/lou tou= e)k tou= eiãdouj kaiì th=j uÀlhj <kaiì th=j uÀlhj> au)th=j. a)lla\ tou= lo/gou me/rh ta\ tou= eiãdouj mo/non e)sti¿n, [...] h( d' uÀlh aÃgnwstoj kaq' au(th/n.
Não há, portanto, enunciado (lo/goj) que permita delimitar o ser da matéria.
A combinação destas duas propriedades – o ser subjacente (u(pokei¿menon) e o
caráter delimitado - são suficientes para destacar a essência em meio aos entes em geral,
pois são as duas notas distintivas do sujeito determinado, indivíduo pleno, verdadeiro
ente separado (xwristo\n).
Sendo assim, o limite (pe/raj) e o ser subjacente (u(pokei¿menon) não podem,
cada qual por si, ser a essência separada, mas o podem conjuntamente. É que cada uma
201
destas duas noções se intensifica e adquire real concretude juntamente com a outra, como
se o puro determinado e o puro subjacente tivessem, ao menos no âmbito da matéria,
genuína possibilidade de efetividade. O puro singular é o designado (esta cor branca, por
exemplo), o delimitado, quer dizer, o que sofreu a imposição do limite (pe/raj), que não
pode ser separado (xwristo\n), pois não é sujeito de nada, subsistindo sempre em um
outro determinado (to/de ti) que lhe serve de sujeito (u(pokei¿menon); o puro sujeito é a
matéria (uÀlh), que também não pode ser separada, pois não é determinada por si mesma,
necessitando de outro sujeito que lhe torne algo determinado, pois em si mesma é
puramente indeterminada (aÃpeiron). A forma assumida pela matéria – forma que
Aristóteles aponta como o limite da essência - embora não seja o sujeito último, é o
sujeito determinante do sujeito material.
A essência é separada (xwristo\n) porque é, simultaneamente delimitada e
subjacente (u(pokei¿menon), sem ser qualquer uma das duas em seu mais alto grau. De
fato, a essência é, de certa forma, ilimitada, em virtude do elemento material que lhe dá
suporte, mas que também lhe impede - porquanto a matéria é sempre potencial - a firme
limitação da efetividade plena. Da mesma forma, a ou)si¿a não é o sujeito último, tal
título, como vimos acima, cabendo à matéria.
Delimitação e subjacência são, pois, vetores opostos e convergentes no sentido da
determinação da essência, limitando-se reciprocamente para a síntese do separado
(xwristo\n) efetivo, distintivo da essência. Na verdade, esta tensão formadora da
202
essência se revela no próprio to/de ti, expressão especialmente cunhada por Aristóteles
para tal fato ontológico. Acerca da peculiaridade de to/de ti, Mesquita76 escreve:
“Ora, a originalidade de to/de ti reside precisamente no fato de envolver duas
notas distintas e, no uso que Aristóteles faz dele, ultimamente contrastantes: a
(irredutibilidade) individual e a determinação (universalizadora)”.
Restam, duas únicas alternativas, que igual título reflectem esta dualidade:
c) to/de ti = um certo isto;
d) to/de ti = este algo.
Ambas são gramaticalmente possíveis, embora pois razões opostas.
Na primeira, o caráter individualizador é atribuído ao pronome indefinido ti
(aqui: «um certo») e o carácter determinante ao pronome demonstrativo to/de
(aqui: «isto»).
Na segunda, o caráter individualizador é introduzido por to/de («este») e o
carácter determinante por ti («algo»).”
Ora, penso que nos dois casos o caráter determinante da expressão é fornecido por
to/de, traduzido por isto, no primeiro caso, e por este, no segundo. Na verdade, o
propósito do Filósofo ao focar este aspecto da essência seria totalmente satisfeito apenas
com to/de, dispensando o ti indeterminador, não fosse materialidade de quase todas as
essências, além da potência multiplicadora que lhe é inerente, que não permitiria definir a
essência como o puro "este", isto é, isto que prontamente é identificado pela mera
estrutura unificada que o distingue da esfera da não-essência, o conjunto dos entes geral.
Ao contrário, a essência não é apenas "isto aqui", mas também tudo aquilo que tiver o
mesmo caráter de isto, ou seja, “algum isto”, este ou aquele isto. Daí que se introduza o
76 Mesquita, 2005, p. 530.
203
ti na expressão, carregando a marca da indeterminação da matéria, a qual põe o to/de
como superposto a um sujeito material (u(pokei¿menon), além de garantir que predicados
materiais - como branco e quente - ao to/de se aplicam como que a um sujeito lógico e
ontológico.
Temos que abordar o problema da determinação e subjacência da essência em
dois âmbitos distintos, o das essências sensíveis e o das essências supra-sensíveis,
respectivamente da Física e da Metafísica, as duas ciências que, no Livro VI da
Metafísica, superam a Matemática quanto à dignidade de seus objetos e 'rivalizam' no
sentido de uma decisão quanto à verdadeira identidade da ciência que merece o título de
Filosofia Primeira. Se os dois referidos aspectos são constitutivos da essência, o modo
como a constituem em cada âmbito do cosmos informará acerca da existência de uma
hierarquia cósmica do ente e do sentido e critério de sua efetividade.
Seja A o nível das essências sensíveis e W o nível das essências supra-sensíveis,
os motores imóveis:
(A) Aqui a essência é o composto de matéria e forma. A segunda determina a
primeira, valendo, pois, como seu limite.
O limite (pe/raj) limita o ilimitado (aÃpeiron) - aqui representado pela matéria -
mas também é limitado por este. É que a forma confere determinação à matéria, a qual
por si só permaneceria amorfa e indeterminada, mas, por outro lado, o princípio formal
não manifesta toda a sua natureza na matéria. Se o fizesse, não haveria mais uma mesma
forma em vários indivíduos, nem transição alguma ocorreria no indivíduo por ela
formado, pois estes dois fatos ontológicos - a multiplicidade e a transitoriedade - não
fazem parte de sua natureza. É a matéria que leva o composto a participar destes fatos,
204
pois, enquanto carregando sempre o traço da indeterminação (por mais determinada que
esteja), impossibilita que o indivíduo hilemórfico assuma um grau pleno de determinação,
ou seja, que detenha um certa natureza e nela se mantenha de modo rígido, constante e
separado de qualquer fato circundante. Por si mesmo, o limite da forma seria capaz de
manter o indivíduo nesta esfera de auto-suficiência estrutural e, assim, manter sua própria
natureza imune a qualquer variação ou ameaça a sua natureza de pura fronteira,
demarcação entre seu ser e o ser inessencial do circundante. Mas como na esfera
ontológica em questão - aquela do fluxo em geral - toda individuação deve ser também
material, então a natureza temporal e espacial ilimitada da forma é limitada pela série de
vicissitudes da matéria. Tais limitações são a série de transições a que o indivíduo
formado se vê submetido, e que não estariam presentes se o seu ser fosse puro limite
formal e se encontrasse na ilimitação do tempo que constitui uma das faces da eternidade.
As limitações são o aspecto sensível da propriedade material da divisão indefinida, que
de fato multiplica a mesma forma em quantos forem os casos para tal.
Em Z3 Aristóteles deixa clara a incompatibilidade entre a subjacência e o “ser
isto” quando tais noções são tomadas em seu sentido mais extremo. Por um lado, lemos
que:
“Dissemos, em síntese, o que é a essência: ela é o que não se predica de
algum sujeito, mas aquilo de que todo o resto se predica. Todavia, não se pode
caracterizar a essência só deste modo, porque isso não basta. De fato, esta
caracterização não é clara. Ademais, nestes termos a matéria seria a
essência”.(1029a7)
nu=n me\n ouÅn tu/p% eiãrhtai ti¿ pot' e)stiìn h( ou)si¿a, oÀti to\ mh\ kaq' u(pokeime/nou a)lla\ kaq' ou ta\ aÃlla: deiÍ de\ mh\ mo/non ouÀtwj: ou) ga\r i¸kano/n: au)to\ ga\r tou=to aÃdhlon, kaiì eÃti h( uÀlh ou)si¿a gi¿gnetai.
205
Quando procuramos atingir a natureza da essência apenas pela natureza do sujeito
último, do qual tudo se predica, mas que não predica de nada, fatalmente nosso critério
investigativo nos levará à matéria, que é o único sujeito a cumprir tal exigência. Mas
então deveríamos reconhecer a matéria como a própria essência. Contudo, cabe a
pergunta: o ser da matéria corresponde ao que podemos esperar de uma essência?
Vejamos o que o Filósofo entende por matéria:
“Chamo matéria aquilo que, por si, não é nem alguma coisa nem uma quantidade
nem qualquer outra das determinações do ente. Há, de fato, algo do qual cada
uma destas determinações é predicado: algo cujo ser é diferente do ser de cada
uma das categorias. Todas as outras categorias, com efeito, são predicadas da
essência e esta, por sua vez, é predicada da matéria. Assim, este termo, por si,
não é nem algo determinado, nem quantidade nem qualquer outra categoria: e
não é nem sequer as negações destas, porque as negações só estão presentes por
concomitância.” (1029a20)
le/gw d' uÀlhn hÁ kaq' au(th\n mh/te tiì mh/te poso\n mh/te aÃllo mhde\n le/getai oiâj wÐristai to\ oÃn. eÃsti ga/r ti kaq' ou kathgoreiÍtai tou/twn eÀkaston, %Ò to\ eiånai eÀteron kaiì tw½n kathgoriw½n e(ka/stv (ta\ me\n ga\r aÃlla th=j ou)si¿aj kathgoreiÍtai, auÀth de\ th=j uÀlhjŸ, wÐste to\ eÃsxaton kaq' au(to\ ouÃte tiì ouÃte poso\n ouÃte aÃllo ou)de/n e)stin: ou)de\ dh\ ai¸ a)pofa/seij, kaiì ga\r auÂtai u(pa/rcousi kata\ sumbebhko/j.
A subjacência se opõe ao “ser isto”, quer dizer, quanto mais subjacente, menor é o
caráter de “isto”. Daí que o sujeito (u(pokei¿menon) primeiro não seja um to/de ti, ou
seja, um isto determinado. A matéria absoluta, separada de qualquer forma, não existe,
mas, se existisse, não teria um caráter de 'isto', justo porque seu caráter de sujeito seria
ilimitado.
206
A diferença que especifica a essência é diferenciada pela matéria (uÀlh)
indiferenciada , o que significa: a matéria é princípio de individuação. Toda a diferença
depende de uma indiferença prévia. O artesão que modela seu vaso diferencia esta massa
de matéria-prima daquela excedente, somente porque previamente havia algo para ser
submetido a tal processo, e que se encontrava em estado de indiferenciação relativamente
à estrutura que viria a ser aplicada a uma parte da massa total. Ora, a mesma diferença
estrutural aplicada agora a uma parte da massa pode também ser aplicada a outra parte da
mesma ou de outra massa de natureza material compatível com a técnica do artesão, o
que possibilita a geração de outros compostos diferenciados, mas com a diferença agora
multiplicada em vários entes. A diferença que marca a essência específica é por si mesma
apenas idêntica a si mesma e a tal ponto que da pura cognição da mesma não deduzimos
nada além de sua pura apresentação numericamente una. Mas o fato de sua individuação
material conduz à possibilidade de seus infinitos duplos, o que já é um modo de fazer a
diferença ir além de si mesma, romper sua pura identidade numérica consigo, o que
significa, ao mesmo tempo, a diversificação de indivíduos que a assumem como marca
distintiva de sua essência.
Estas são conseqüências que bastam para percebermos nitidamente que, na esfera
sensível, o limite repousa no ilimitado, não estando, portanto, plenamente separado para
constituir, por si mesmo, uma unidade individual.
Tais noções acima apreciadas no tocante a matéria exibem o modo como o caráter
do separado (xwristo\n) é assumido pelas essência sensíveis. E ficou claro que em todos
estes aspectos a separação essencial não é completa. Agora, cabe a pergunta:
relativamente à ordem das essências supra-sensíveis, como se comportam noções como
207
forma, sujeito, limite, diferença e determinação. Aqui poderemos verificar o mesmo
intercâmbio com suas contrapartes ontológicas forma, ilimitado, indiferenciado e
indeterminação, intercâmbio esse que ameaça a vigência da exigida separação?
Agora detenhamo-nos em (W), ou seja, o nível das essências supra-sensíveis.
O motor imóvel é pura forma, puro limite que toca a si mesmo, pois sua forma
não é somente inteligência enquanto dada, mas inteligência da inteligência. Mais do que
isso: não é inteligência de outra inteligência qualquer, mas inteligência desta mesma
inteligência que obtém tal intelecção. É auto-inteligência. A forma em questão, a
inteligência, não aponta para fora de si para atingir uma instância material enformada por
ela. Tal era o caso das formas sensíveis relativamente ao sujeito material. E o caso
imediatamente inferior ao que agora apreciamos, tão sutil a ponto de quase tocar nesta
esfera dos motores imóveis, é a inteligência humana. Em seu De Anima o Filósofo
defende duas espécies de inteligência na alma, a inteligência produtiva e a inteligência
potencial. A primeira age sobre a segunda determinando em sua natureza potencial a
efetividade determinada das idéias. Vemos assim um caso limite da relação forma-
matéria, limite-limitado em que ainda é possível distinguir os termos relativos. Aqui tal
distinção já esgota todas as suas possibilidades, pois elemento formal e material
compartilham mesmo seus nomes, cabendo o discernimento de ambos através de uma
diferenciação análoga à especificação intragenérica. Com efeito, sabemos que a forma é a
inteligência produtiva, pois tal é a destinação de todo princípio formal. Em contrapartida,
a separação que se instaura entre inteligência e o todo da alma é tal que sua imortalidade
é mesmo garantida por Aristóteles, em vista da dedução a partir desta separação. Ora, se a
inteligência humana já comporta um grau separativo desta natureza, que lhe confere um
208
ser não limitado pelo tempo, o que diremos da inteligência divina, em que a efetividade
da forma não mais a priva de parte de sua determinação? Com efeito, aqui a forma não
determina algo indeterminado e, em última instância, indeterminável na completude de
seu ser, mas determina a si mesma, limita a si mesma!
O limite (pe/raj), portanto, toca a si mesmo, tornando-se escapando às limitações
tempório-espaciais que seriam expostas por algum ilimitado subjacente, ou seja, algum
substrato material. Em outras palavras: a forma aqui, além de determinada enquanto
limite, não é determinada individualmente por um princípio indeterminado que fosse sua
matéria. A determinação supra-sensível não é, ao contrário da sensível, dependente de um
ulterior grau de determinação pelo seu oposto ontológico - a indeterminação. O
determinado e o indeterminado detém, aqui, plenamente o caráter do separado
(xwristo\n), o que faz o determinado em questão - a forma do motor - fruir de uma
unidade separativa plena e, conseqüentemente, o grau máximo do ente. Esta fato
ontológico da pura forma supra-essencial, que flexiona sobre seu próprio limite, será
revisto e aprofundado no capítulo referente à unidade do motor imóvel, onde veremos
porque sua natureza inteligente é condição desta possibilidade ontológica radical.
A subjacência, por outro lado, é máxima e não se opõe ao “ser isto”, mas o
ratifica plenamente, pois a diferença que especifica a essência é indiferente ao
indiferenciado, pois é diferença máxima, infinita. A diferença aqui é efetivada apenas
pela forma, que prescinde da matéria como princípio de individuação. Assim, entre um
motor imóvel e outro, não há qualquer subjacência e, portanto, nenhum indiferenciado
matricial a partir do qual teria sido efetivada a diferenciação individual da diferença
essencial. O “ser isto” é absoluto.
209
Caráter Unificador da Essência
Cabe aprofundar também, além do caráter unificado da essência, o caráter
unificador relativamente ao ente em geral. O ser e, portanto, a unidade da essência existe
independentemente do ser das outras categorias, como a quantidade e a qualidade. Estas,
no entanto, não existem por si mesmas, subsistindo sempre em alguma essência. Por isso,
as causas de todas as coisas são as essências, visto que não há movimentos ou
passibilidades sem as mesmas. Este é um dos “sentidos analógicos” segundo os quais é
verdadeiro o afirmar que todos os seres têm os mesmos princípios e causas. A questão da
essência, como um destes sentidos, é desenvolvida principalmente no capítulo quinto, que
forma, como se sabe, um continuum com o quarto capítulo. Este raciocínio, porém, já
está presente na introdução do livro L. Aristóteles distingue duas formas de considerar o
conjunto das coisas: “Se consideramos o universo como um todo, a essência é sua parte
primeira; e se o encaramos como uma série, também deste ponto de vista a essência vem
em primeiro lugar, seguida pela quantidade e pela qualidade.” (kaiì ga\r ei¹ w¨j oÀlon
ti to\ pa=n, h( ou)si¿a prw½ton me/roj: kaiì ei¹ t%½ e)fech=j, kaÄn ouÀtwj prw½ton h(
ou)si¿a, eiåta to\ poio/n, eiåta to\ poso/n.) (1069 a18)
A essência é “parte primeira” em ambos os casos. Já investigamos o que o
Estagirita pretende com as expressões “como um todo” e “como uma série”. Estas só
podem ser compreendidas correlativamente, quer dizer, uma em virtude do significado da
outra, sendo concepções nitidamente contrárias. Conceber o universo como um todo é
210
não o fazer como uma série, e vice-versa. Já decidimos anteriormente, a partir da leitura
do tópico “um todo” (oÀlon) - no livro D da Metafísica (1023b26) - que considerar algo
como um todo é o mesmo que estar convicto de sua ordem intrínseca, e tomá-lo como
uma série é negar que possua esta ordem. Como se fala aqui do “conjunto das coisas”,
claro está que se trata do universo. Existindo ordem no universo, esta somente se explica
mediante o reconhecimento de uma essência plenamente efetiva responsável pelo
movimento de todas as coisas, ou seja, o motor imóvel, abordado brevemente nas linhas
seguintes, a cujo estudo, porém, é dedicada toda a segunda metade do livro L. É por isso
que o Filósofo faz uso da estabelecida anterioridade da essência em relação às demais
categorias, ou seja, mesmo que o universo seja um conjunto desordenado de seres, a
essência vem em primeiro lugar, pois em cada ser particular, antecede todos os outros
atributos, que “não são em sentido absoluto, mas sim qualidades e movimentos” (aÀma
de\ ou)d' oÃnta w¨j ei¹peiÍn a(plw½j tau=ta, a)lla\ poio/thtej kaiì kinh/seij) (1069
a22). Entendemos, então, que o discurso acerca da essência revela que o motor imóvel é
princípio e causa suprema. Com efeito, as essências são os princípios de todos os seres, e
o motor imóvel é a primeira das essências. A doutrina da essência imóvel é a verdadeira
consumação do primado da essência no pensamento aristotélico.
A essência centraliza de três formas principais: a) categorialmente, porquanto o
“ser” em sentido primeiro pertence à essência ; b) logicamente, pois a definição
(o(rismo/j), o enunciado (lo/goj) que expressa o ser-prévio, é stricto sensu, exclusivo da
essência; c) cosmicamente, pois o centro do cosmos é uma essência . Esta essência
constitui um centro pela sua potência unificadora, na medida em que não somente produz
movimento, mas é também o primeiro motor. Ora, o movimento possui um caráter
211
unificador. O que produz movimento, portanto, produz unidade e, visto que o ser e o um
são simultâneos, produz também o ser. A causa do movimento é causa da unidade, assim
como causa do ser. É evidente, então que, além de manifestação primeira do ser na forma
da categoria fundamental, a essência é também – no momento da definição - o enunciado
(lo/goj) mais rigorosamente expressivo do ser. Finalmente, é a primeira causa do ser, em
cada instante de mobilização do cosmos.
Cabe agora o exame do sentido mais próprio do ente em sentido próprio, isto é, a
essência da essência, denominada essência primeira (próte ousia).
A essência é o ente primeiro. Sabemos, pelo livro VII, que o ente é a resposta à
pergunta “o que é?” (tiì). Ser a resposta a tal questionamento é justamente o que pretende
Aristóteles ao identificar de modo privilegiado “aquilo que é” (ti¿ e)sti) e ente (to\ oÄn).
Ora, “aquilo que é” que se refere tão somente a essência:
“Mesmo sendo dito de tantos modos, é evidente que o primeiro deles é ‘aquilo
que é’, que significa a essência.”
(tosautaxw½j de\ legome/nou tou= oÃntoj fanero\n oÀti tou/twn prw½ton oÄn
to\ ti¿ e)stin, oÀper shmai¿nei th\n ou)si¿an W) (1028a30)
Portanto, a pergunta “o que é?” significa “o que é a essência?” de modo primeiro.
As outras categorias, por outro lado, são conhecidas quando conhecemos “o que é” cada
uma delas. Logo, a essência é novamente primeira, pois responde a pergunta “o que é” de
modo primeiro.
O ser-prévio é o enunciado (lo/goj) do que está implicado no ser quando dizemos
que algo é, ou seja, o que é aquilo que é. Na verdade, to ti ei einai é uma espécie da
212
pergunta ti esti, só que aprofundada por um segundo questionamento acerca do ser
(efetivado pela duplicação do verbo ser), visando atingir o ser mais fundamental.
Aristóteles escreve que somente a essência primeira coincide com seu ser-prévio.
O que isto significa?
A essência formal, relativamente à essência concreta (sínolon), é uma essência
primeira (prw¯th ou)si¿a). Ora, isso não se dá porque existe em maior grau que uma
essência compósita, mas porque ela coincide com sua definição, isto é, com o enunciado
(lo/goj) de seu ser-prévio (to\ ti¿ hÅn eiånai). Somente da essência primeira haverá
ciência demonstrativa, visto que só há demonstração do que pode ser definido, o que, por
sua vez, não pode ser afirmado de nenhuma outra essência. Com efeito, excetuando a
essência primeira, todas as essências são indefiníveis. Por isso há uma demonstração de
sua essência, quer dizer, do que lhe pertence enquanto essência. Ao contrário, das
essências secundárias, compostas de matéria e forma, nada pode ser dito segundo a
necessidade. Contudo, embora os indivíduos imateriais celestes sejam necessários,
aplicar-lhes uma definição também é tarefa por demais aporética. Ocorre que "toda a
definição consta de nomes, os quais são comuns a mais de um indivíduo". Isto nos
conduz a um problema central do livro VII da Metafísica, de caráter duplo: 1) o que
realmente impossibilita a definição do indivíduo: sua 1.1) materialidade e
corruptibilidade ou sua 1.2) própria individualidade enquanto tal? Acabamos de perceber
que os dois obstáculos foram considerados por Aristóteles. Este problema, aliás, nos
conduz a outro ainda mais profundo: 2) se 2.1) "apenas da essência há definição" e 2.2)
"é impossível definir o indivíduo", seria lícita a conclusão de que a essência aristotélica é
não-individual? Há mais de uma passagem favorável a tal conclusão, o que deu ensejo a
213
intermináveis querelas exegéticas. Propomos a solução a seguir, antes de prosseguirmos a
análise da aporia da definição na direção da temática do problema do motor imóvel. Mas
não consideramos tal alternativa como definitiva. Apenas que, através desta perspectiva,
muito das aparentes incongruências criteriológicas do filósofo parecem se dissolver.
O universal é a essência, mas não enquanto universal, isto é, não no sentido
ordinário de ser “aquilo que é predicado de muitos”. Por outro lado, a essência é o
universal, mas não enquanto essência. Isto é, o universal é essência, mas não enquanto
predicado, pois este é sempre passibilidade, qualidade, parte da definição. O predicado é
sempre algo atribuível a muitos e entra como componente da definição que expressa o
ser-prévio da essência, mas não pode ser, ele mesmo o ser-prévio da essência, ou seja a
essência primeira (prw¯th ou)si¿a). Vejamos mais de perto.
Sendo assim, duas essências individuais, porquanto tenham a mesma definição,
podem ser homônimas de predicados universais.
Tomemos as seguintes sentenças:
a) Sócrates é animal racional. /Animal racional é a essência de Sócrates.
b) Cálias é animal racional. / Animal racional é a essência de Cálias.
Nos dois casos, verificamos que animal racional é a essência do sujeito em
questão. Contudo, Sócrates não é o animal racional que é a essência de Cálias enquanto
essência de Cálias, nem o animal racional que é a essência de Sócrates é o animal
racional que é a essência de Cálias. Sócrates é animal racional que é essência de Cálias
apenas enquanto tomada universalmente, quer dizer, enquanto homônima de seus
homodefinidos. Isto é o que sintetizamos acima ao dizer que o universal é a essência, mas
214
não enquanto universal, assim como a essência é universal, mas não enquanto essência.
Essência e universal são identificáveis apenas por homonímia.
Enfim:
1- Este animal racional (essência) é Sócrates.
2- Sócrates é animal racional (espécie).
3- Cálias é animal racional (espécie).
4- Cálias é este animal racional (essência).
De (1) decorre (2), mas de (1), (2), (3) não decorre (4), pois “este animal racional”
não pode indicar Cálias e Sócrates simultaneamente.
Assim, quando Aristóteles diz que, em certo sentido, não há definição de essência,
significa que a essência, sob certo aspecto, é incomposta. Sócrates não é animal e, além
disso, racional. É racional e, sendo racional, é imediatamente animal, pois a diferença
última, em certo sentido, é a própria essência e traz em si a totalidade genérica. A
racionalidade já é um modo específico de ser um certo animal efetivo. A essência é
incomposta de universais tomados como partes preexistentes ao composto. A essência é
menos um composto que um processo. Trata-se do processo contínuo que vai da potência
à efetividade.
Na definição “animal racional” entenda-se “animal enquanto racional” e não
“animal combinado com racional”. Há um limite na semelhança entre a ordem das coisas
e a ordem das palavras. Embora as fórmulas definitórias sejam compostas de palavras que
preexistiam às mesmas, as coisas definidas são constituídas por um processo, e não por
composição de partes discretas, que no caso seriam universais que, previamente
215
separados e então combinados produziriam a essência. Esta possibilidade de relação entre
a essência e o universal é, pois definitivamente estranha à metafísica aristotélica.
A definição do ser-prévio do homem é animal racional, mas não enquanto animal
e racional, como se fossem realidades separadas, mas sim apenas racional, pois neste caso
o 'ser racional' pressupõe o 'ser animal', contendo-o em si, da mesma forma como as
partes superiores da alma contêm as inferiores, do mesmo modo como o retângulo
contém o triângulo, analogia proposta pelo próprio Aristóteles em De Anima. Somente
entendendo a essência como um processo de tal natureza percebemos em que sentido ela
é incomposta, o que, no caso, significa que não possui um tipo de unidade discriminável
em elementos universais77.
Cabe agora concluir nossa apreciação desta dificuldade na ontologia aristotélica,
especialmente debatida na tradição escolástica, mormente nos círculos tomistas. É o
problema das formas individuais. Trata-se de saber se o hilemorfismo do Livro VII
permite este conceito, ou se a forma segue apenas do gênero à espécie, não podendo
atingir a peculiaridade do existente singular. A noção de indivíduo material em
Aristóteles pode ser considerada um preparativo hermenêutico para a compreensão do
indivíduo imaterial, realizado pelo motor imóvel.
No livro VII da Metafísica, Aristóteles enfrenta um impasse: por um lado, o ser-
prévio deveria ser a forma, porquanto esta é, com mais razão que o composto hilemórfico,
o que é por si. Por outro lado, ao menos nas essências sensíveis, deveria ser o composto
hilemórfico. É que o ser-prévio, sendo “por si” deve ser individual, o que implica
principalmente em não poder ser predicado de muitos, pois isso seria ser por outros e não
“por si mesmo”, na singularidade do ser.
216
Aristóteles parece buscar uma forma para o ser-prévio que não seria a forma da
espécie, a qual é idêntica para Sócrates e Cálias, mas que tampouco seria uma forma do
composto, a qual não pode existir, pois a forma é algo determinado e a matéria -
constituinte do composto - é sempre algo indeterminado.
Entre a forma específica e a forma essencial haveria, pois, homonímia de analogia.
Não seriam sinônimos devido a sutil diferença entre ambas, marcada pelo fato de a forma
essencial, trazendo ou não em si a matéria próxima – própria de um único indivíduo - ser
necessariamente a efetividade própria desta última e não da matéria em geral, quer dizer,
da matéria enquanto representação não efetiva da potencialidade de qualquer indivíduo
com o qual compartilhe a forma específica. A espécie é apenas matéria e forma tomadas
universalmente, sem a consideração da efetividade, que é sempre individual.
O ponto se torna ainda mais claro se considerarmos que há homonímia de parte e
todo no que toca ao mesmo nome conferido à forma e ao composto hilemórfico.
Aristóteles afirma no Livro H que a matéria próxima e a forma são a mesma
realidade . Quando afirma que a forma é a essência, tem em vista não a forma específica
concebida pela abstração da matéria próxima, que seria uma tomada universal da forma e
da matéria do composto, mas sim a forma efetiva, a qual inclui a peculiaridade material
da essência. É que na revelação da forma efetiva de um ente, se revela também a matéria
própria da essência, pois a forma é a efetividade da matéria. Ao contrário, na pura
indicação da matéria não há referência necessária à forma, pois a efetividade formal
sempre pressupõe a potência material, embora o inverso não seja verdadeiro. A
superioridade ontológica da forma decorre principalmente de que o ser da forma abarca o
77 Para estudos ulteriores, ver David Charles (2000, pág. 371)
217
ser da matéria, constituindo, assim, uma unidade essencial e não meramente
concomitante. Haveria pura concomitância na síntese hilemórfica se adotássemos
doutrinas com a de Licofronte, que “fala que a ciência é cientificação e alma” (fhsiìn
eiånai th\n e)pisth/mhn tou= e)pi¿stasqai kaiì yuxh=j:) (1045b10), ou de outros que
definem vida como “composição ou conexão de alma e corpo” (su/nqesin hÄ
su/ndesmon yuxh=j sw¯mati to\ zh=n) (1045b11). É que Aristóteles enxerga uma
unidade que não é uma mera junção de partes extrínsecas entre si. Não é nesse sentido
que matéria e forma são partes da essência.
Assim, a forma é parte da essência, mas em outro sentido, é a essência completa,
pois o seu ser abarca o ser da matéria. A forma, porém, que é o ser completo do indivíduo,
não pode ser identificada com a espécie, que é apenas uma generalidade tomada
abstratamente dos indivíduos.
Contra a interpretação de que não existe a noção de forma individual em
Aristóteles, alega-se freqüentemente a passagem em que se afirma que Cálias e Sócrates
diferem apenas quanto à matéria, enquanto a forma é idêntica:
“O que resulta, enfim, é uma tal forma em tais carnes e ossos: Cálias e Sócrates,
por exemplo. E eles são diferentes pela matéria (ela é diversa nos diversos
indivíduos), mas são idênticos pela forma (a forma, de fato, não é secionável).”
to\ d' aÀpan hÃdh, to\ toio/nde eiådoj e)n taiÍsde taiÍj sarciì kaiì o)stoiÍj, Kalli¿aj kaiì Swkra/thj: kaiì eÀteron me\n dia\ th\n uÀlhn (e(te/ra ga/rŸ, tau)to\ de\ t%½ eiãdei (aÃtomon ga\r to\ eiådoj). Ora, não se podendo distinguir a forma de ambos, seria o mesmo que indicar sua
espécie comum, o que significaria a ausência de uma forma individual. Toda
218
consideração formal de um indivíduo seria apenas o reconhecimento de seu lugar na
ordem das espécies.
Tal raciocínio se deve, em grande parte, de um prejuízo em torno da noção de
indivíduo, acumulada ao longo do pensamento ocidental, segundo o qual todo o indivíduo
deve ser único para ser um indivíduo. O princípio dos indiscerníveis de Leibniz é a
maximização desta noção. O erro está em atribuí-lo, ponto por ponto, aos gregos, em
especial a Aristóteles.
O “indivíduo” enquanto “indivíduo” não é idêntico a seu ser, mas enquanto
essência primeira que nele está presente, pois a essência primeira é seu próprio ser. Este
algo (to/de ti) que está presente no núcleo do ente é a forma e apenas sua forma, ainda
que possa haver outra forma idêntica a ela. Embora Sócrates e Cálias sejam idênticos pela
forma, há duas formas separadas uma da outra e não uma única forma que se dividiria em
duas, seja por participação (kata\ me/qecin), seja por predicação . As formas platônicas
se dividem verticalmente nos indivíduos, que compartilham do mesmo, em um processo
plástico de modo semelhante ao modo do material se dividir. As formas aristotélicas se
reproduzem horizontalmente entre si, analogamente à impressão mecânica. O homem
gera o homem, imprimindo em sua matéria a forma que lhe é própria. Então haverá duas
idênticas, embora numericamente distintas. A ou)si¿a resultante é idêntica, mas não a
mesma. Por isso é este algo (to/de ti) e não outro. O indivíduo aristotélico, mesmo que
idêntico a outro, não é este outro. É discernível.
As formas não geram outras formas diferentes delas. Não há, de um lado, formas
perfeitas e, de outro, formas imperfeitas e inferiores geradas pelas primeiras. Para que
houvesse uma graduação de uma forma para outra inferior seria necessário que a forma
219
fosse divisível, pois haveria um mais e um menos. Deveria haver uma “matéria” da forma,
coisa absurda. Se, por geração, se entende um processo de vir-a-ser, então as formas são
ingênitas, pois são indivisíveis, o que impossibilita a graduação necessária a qualquer
processo. Cada uma passa a existir por efeito de outra forma e, em determinado momento,
já não existe mais. A forma gera outra forma por impressão simples. A gerada, por sua
vez, será idêntica à geratriz, embora não o compósito de que é constituinte.
Enfim, em Aristóteles há o múltiplo por espelhamento de cada idéia em outra,
enquanto Platão contemplava o espalhamento da idéia originária em cada ser que dela
participava.
Ora, posto que a meta última de nossa investigação é uma clarificação da unidade
do ente no motor imóvel, cabe agora – após as dificuldades que percebemos na ordem da
essência individual sensível - a pergunta: o que dizer da indefinibilidade das essências
supra-essenciais de Aristóteles? Não seriam alvo da mesma crítica lançada contra as
Idéias platônicas?
Quanto às realidades imateriais há, contudo, uma notável diferença entre a Idéia
platônica e o Motor Imóvel de Aristóteles: a primeira sempre pode ser partilhada por
outro ser pela participação (métexis), enquanto o segundo é totalmente voltado para si
mesmo. É efetividade pura, pura autoconsciência, simples e indivisível cognição de si
mesmo, um “si” que não compartilha nada com “outro” algum. A diferença, neste caso, é
absoluta.
220
UNIDADE DA ALMA
A essência é algo uno e determinado. Tal unidade e determinação significam, em
Aristóteles, ser um indivíduo. Foi isto o que vimos no capítulo anterior. A
individualidade, porém, enquanto identificação deste indivíduo entre outros, sua distinção
entre os demais, ou seja, pura relação extrínseca de diferenciação entre outros indivíduos,
não é o sentido último da escala. Deve haver algo interno na natureza individual que
torne esta estrutura mais perfeita do que a pura coletividade. O indivíduo foi tomado, de
preferência à coletividade do universal, porque concentra em si o seu ser, não o
transferindo de modo indeterminado ao outro, pois tal coisa mesmo o concomitante e as
sub-categorias o fazem, na medida em que o ser destes últimos é como que emprestado
da essência, sendo apenas qualificações desta última. Assim, devemos retomar o
princípio autológico para aplicá-lo também aqui, na etapa seguinte à essência, que na
verdade é uma especificação desta última. Com efeito, as essências podem ser
enquadradas em dois grandes sub-gêneros: a essência inanimada e a essência animada. O
que podemos dizer acerca da distinção autológica entre estas duas? Há uma diferença de
grau entre estas estruturas, quanto à intensidade da auto-relação que efetiva cada uma
delas? Veremos aqui o incremento de unidade que o ser vivo opera relativamente ao ente
inanimado é condicionado pela relação interna que se apresenta em sua estrutura. Na
verdade, a partir daqui, todos os níveis serão, de certo modo anímicos, assim como foram
ontológicos desde o primeiro nível e ousiológicos desde o segundo nível. A partir de
221
agora, todos as ulteriores unificações do ente serão vitais, mesmo o ápice da escala. A
essência mais elevada e central que pode haver no cosmos deve, portanto, ser o que, na
alma do mais elevado ser vivo é sua parte mais elevada, a inteligência, só que no mais
elevado nível de perfeição que podemos conjecturar. A inteligência em estado puro
coincide com a vida em estado puro. É por isso que o objeto máximo do desejo – um
princípio vital - coincide com o objeto máximo da inteligência, um princípio cognitivo:
“Os primeiros (inteligível e desejável) são o mesmo.” (1072a25)
(tou/twn ta\ prw½ta ta\ au)ta/.) No sentido ascendente, há uma convergência de fatores que, no âmbito inferior da
corruptibilidade, apresentam o caráter da divergência. Embora a inteligência seja vital,
somente uma essência sumamente efetiva logra experimentar tal vitalidade apartada de
qualquer outro suporte vital de nível inferior, ou seja, aqui a inteligência é, não apenas em
si mesma vital, mas por si mesma vital:
“A vida também está presente nele. Pois a efetividade da inteligência é
vida, e ele é tal efetividade. E sua efetividade é, por si mesma, eterna e a mais
excelente.” (1072b27)
kaiì zwh\ de/ ge u(pa/rxei: h( ga\r nou= e)ne/rgeia zwh/, e)keiÍnoj de\ h( e)ne/rgeia: e)ne/rgeia de\ h( kaq' au(th\n e)kei¿nou zwh\ a)ri¿sth kaiì a)i¿+dioj. A metafísica aristotélica vai procedendo, de elevação em elevação, até o limite da
possibilidade de perfeição do princípio anímico. A vitalidade deve existir, em alguma
essência, em seu estágio mais apurado e pleno. Haveria uma essência plenamente viva.
Ainda acerca do caráter privilegiado da essência animada no que toca à ontologia
aristotélica, assume posição análoga a filósofa Edith Stein, em sua obra “Ser Finito e Ser
Eterno”:
222
“A doutrina aristotélica da matéria e da forma nos parece fundada na
intuição da natureza animada. O intento de Aristóteles de conceber esta doutrina
como uma lei fundamental de tudo o que é material não foi sem perigo: o perigo
de desprezar a essência singular das simples matérias e o perigo de apagar o
limite entre os campos existenciais. [...] Enfim, o paralelismo constante entre os
produtos naturais e as obras de arte não favorecia a separação estrita e a
apreciação das formas vivas.”78
Ao mesmo tempo em que reconhece tal intuição vital originária na ontologia
aristotélica, Stein vê também um perigo no modo como o Estagirita utiliza esta analogia
para todo o domínio do ente, pois em toda analogia, há o risco de o análogo mais
eminente assumir a estrutura do menos eminente. Devemos, portanto, manter a atenção
no caráter vital da essência em geral, ainda que em seus níveis inferiores tal caráter, por
um lado, não passe de uma analogia e, por outro lado, de uma firme exigência ontológica
para as espécies mais eminentes da essência. Em outras palavras: a relação com seu
próprio ser, efetivada na essência viva, deve servir de referência para descobrirmos a
relação interna originária de todas as essências em geral, ao mesmo tempo em que torna
razoável e até esperado que determinados representantes da essencialidade detenham esta
relação de um modo estreito e verdadeiramente vital.
Na verdade, o próprio significado primeiro do termo fu/sij, que engloba em si
toda a esfera dos entes corruptíveis e até mesmo a forma dos entes em geral, está calcado
sobre a idéia de vida. E Aristóteles deixou claro que conhecia tal etimologia e sua
importância para a consecução dos sentidos latos de ‘natureza’:
“Natureza significa, num sentido, a geração das coisas que crescem
(assim que entendemos como longa a letra ‘u’ da palavra ‘fu/sij’. Noutro
78 Stein, 2002, pág. 285
223
sentido, natureza significa o princípio originário e imanente, do qual se
desenvolve o processo de crescimento da coisa que cresce.” (1014b16)
Fu/sij le/getai eÀna me\n tro/pon h( tw½n fuome/nwn ge/nesij, oiâon eiã tij e)pektei¿naj le/goi to\ u, eÀna de\ e)c ou fu/etai prw¯tou to\ fuo/menon e)nupa/rxontoj: Estes são os sentidos primeiros de ‘natureza’. Ambos tem em comum o vínculo
estreito com a ‘coisa que cresce’ (fuo/menon), ou seja o ser vivo em geral79, embora,
principalmente os vegetais, pois nestes a vitalidade se mostra tão somente pela virtude
nutritiva que condiciona o crescimento. Daí o termo passa a ser aplicado a) ao princípio
do primeiro movimento dos entes naturais, b) o princípio material originário, c) a
essência dos entes naturais e d) a forma dos entes, pelo qual se diz que são essências.
Todos estes são sentidos possíveis somente porque estão, de algum modo relacionados
com o crescimento e a vida. E a própria noção de forma essencial está implicada em toda
esta semântica, pois é co-extensiva a todos estes sentidos, inclusive ao de princípio
material, embora, aqui, de um modo menos rigoroso e enfraquecido pelo próprio
Aristóteles no livro VII da Metafísica.
O fato é que tal relação arcaica entre forma, essência, natureza e vida se efetiva ao
longo de toda a desenvolução da ontologia aristotélica. A vitalidade acompanha a
investigação acerca dos níveis superiores do ente. Os corpos celestes, por exemplo, são
seres vivos, embora não compartilhem com seus correspondentes terrestres a geração e a
corruptibilidade. Bodeüs explora bem intensamente esta peculiaridade de Aristóteles e
dos gregos em geral, em seu ‘Aristóteles e a Teologia dos Seres Vivos Imortais’80.
79 Acerca da relação fu/sij-fuw, é interessante o comentário de Hamelin (cit. por Reale, op. cit), em que afirma que ‘naturação’ seria um termo mais exato para fu/sij, para fazer par com nosos termos modernos ‘desnaturação’, ‘maturação’, entre outros, todos conectados à vida. 80 Bodeüs, 1992.
224
A propósito do tópico comentado por Edith Stein, devemos notar como se dá a
dimanação natural das diferenças que determinam os gêneros no sentido das espécies.
Aristóteles afirma que, se seguirmos as diferenças das diferenças atingiremos a essência,
pois a essência é, em certo sentido, a diferença última (Cf. Met.1038a18). Mas a
diferença é a essência ou análoga à essência? A resposta encontramos no Livro H da
Metafísica, onde lemos:
“E como nas definições o que se predica da matéria é a própria
efetividade, do mesmo modo, nas outras definições as diferenças são o que mais
corresponde à efetividade. Por exemplo, se devemos definir a soleira, diremos
que é madeira ou pedra colocada de determinado modo, e diremos que a casa é
pedras e madeira dispostas de um modo determinado (mas em alguns casos
deveremos acrescentar também o propósito); se devemos definir o gelo, diremos
que é água solidificada e condensada de determinado modo; diremos que a
melodia é determinada combinação de sons agudos e graves; e procederemos de
modo semelhante nos outros casos.” (Met. 1043a4)
kaiì w¨j e)n taiÍj ou)si¿aij to\ th=j uÀlhj kathgorou/menon au)th\ h( e)ne/rgeia, kaiì e)n toiÍj aÃlloij o(rismoiÍj ma/lista. oiâon ei¹ ou)do\n de/oi o(ri¿sasqai, cu/lon hÄ li¿qon w¨diì kei¿menon e)rou=men, kaiì oi¹ki¿an pli¿nqouj kaiì cu/la w¨diì kei¿mena (hÄ eÃti kaiì to\ ou eÀneka e)p' e)ni¿wn eÃstinŸ, ei¹ de\ kru/stallon, uÀdwr pephgo\j hÄ pepuknwme/non w¨di¿: sumfwni¿a de\ o)ce/oj kaiì bare/oj miÍcij toiadi¿: to\n au)to\n de\ tro/pon kaiì e)piì tw½n aÃllwn.
O procedimento definitório, portanto, já nos revela que a efetividade só é atingida
no sentido das diferenças, pois estas conduzem ao concreto (su/noloj), ao contrário das
semelhanças e notas comuns. Estas últimas nos deixariam, por um lado, no puro domínio
da abstração cognitiva e, por outro lado, na indeterminação material da coisa. Cabe,
225
porém, uma importante indagação: nos seres inanimados, tal diferenciação efetivadora
tem a mesma orientação?
Atentemos aqui para algumas diferenças decisivas entre a forma viva e a forma
inanimada.
A forma viva é efetivada e efetivadora; a forma inanimada é apenas efetivada.
Mesmo quando parece efetivadora, é apenas efetivadora por concomitância, quer dizer,
por outro, não por si mesma. Trata-se da efetividade de um efetivado sobre outro
efetivado, somente possível por condições que lhe são extrínsecas, alheias. A forma da
construção é, de preferência, a da mente do construtor, pois foi esta que a efetivou, e não
a forma imanente da construção, o que é o reverso do naturalmente esperado para a ousia
aristotélica que, ao contrário da de Platão, deve ser efetividade na própria coisa, quer
dizer, a própria forma imanente é a forma efetivadora. Isto já patenteia a impropriedade
do reconhecimento ousiológico de certos entes que seriam, com muito mais propriedade,
definidos como matérias ou partes materiais.
Tomemos a célebre árvore de Porfírio:
226
(figura 1)
A espécie viva é a determinação e perfeição de seu gênero; a espécie inanimada é
apenas determinação de seu gênero, mas não sua perfeição. Enquanto as diferenças que
consitituem um ente inanimado são extrísecas umas às outras, na espécie viva a diferença
é uma intensificação de seu gênero determinando-lhe atualmente no sentido de uma
227
maior autonomia, ou seja, maior capacidade de manter sua unidade interna a despeito do
indeterminado circundante. A retangularidade e a obtusidade não representam uma maior
autonomia do triângulo, mas são apenas diferenças entre outras, entre as quais alguma
necessariamente conviria a tal ou qual triângulo. E se acrescentarmos outras diferenças –
no triângulo retângulo, por exemplo – verificaremos a mesma indiferença entre as
diferenças quanto ao princípio da autarquia. Ao contrário, a diferença ‘alado’ em um ser
vivo significa uma ulterior intensificação relativamente a uma potência locomotiva
apenas terrestre. As diferenças se intensificam progressivamente umas além das outras,
não sendo indiferentes ao sentido mesmo da diferenciação. Intensificação significa:
incremento de efetividade em um mesmo ponto, no próprio interior. Isso é o que ocorre
na progressiva determinação dos gêneros vivos. Notemos que a auto-efetividade sensível
é uma diferença no interior da pura auto-efetividade em geral – ainda incipiente no nível
vegetativo, assim como a intelectualidade é uma diferença auto-efetiva ainda mais intensa,
e veremos em detalhe a natureza desta efetividade no próximo capítulo.
Ainda tomando como base a partição anímica, tão cara ao Filósofo, atentemos
para a efetividade que cada nível representa para o nível imediatamente inferior. Mais do
que isso, o superior contém em si, unificando, os inferiores realizados agora de um modo
mais simples porque mais independente da matéria, ou seja, em um grau maior de
separação (e, portanto, independência) do princípio da componibilidade por excelência. O
ente vivo mantém sua unidade de um modo mais separativo da matéria. Além disso,
quanto maior é o grau desta separação, mais perfeição podemos atribuir a tal ente.
A essência viva concentra em si as quatro causas como princípios intrínsecos.
Além da forma e matéria que são imanentes ao concreto (su/noloj), a essência viva é
228
uma completude (te/loj) em si mesma, uma plenitude (e)ntele/xeia) e sua causa motriz
é sua própria natureza, pois esta é “um princípio de movimento no próprio ser”. A
essência viva move a si mesma, e assim é a causa motriz, perfazendo a efetividade que
lhe constitui a cada instante. Atingiremos, portanto, a mesma convergência de ser e vida
tomando como instrumento hermenêutico a noção de autonomia, tão cara ao Filósofo. Em
Aristóteles, quanto mais autonomia possui um ser, em maior grau (com mais propriedade)
será uma essência. Um ser vivo goza de maior autonomia que um ser artificial, pois move
a si mesmo. E a autonomia é fundamental aqui. Quando Filósofo escreve que, em certo
sentido, há essência somente dos seres gerados por natureza, nega aos seres aritificiais o
caráter pleno da essencialidade, justo porque sua formação foi efetivada extrinsecamente
a matéria dos mesmos. E o ser vivo goza de tal caráter auto-efetivador no sentido
realmente estrito, posto que há um princípio vital operando distintamente ali, ao contrário
dos demais seres naturais. Destes últimos, podemos afirmar uma auto-efetivação apenas
no sentido de que é a própria natureza que efetiva seus próprios entes. Quanto ao ser vivo,
por outro lado, a auto-efetivação é verdadeira mesmo na imediatidade de cada indivíduo.
Ora, se o princípio de autonomia é fundamental no lugar ontológico ocupado por uma
essência, o mesmo raciocínio é válido para as formas vivas. Assim, quanto mais elevada
a vida de um ser, maior autonomia possuirá e, portanto, mais elevada será uma essência.
O grau máximo da hierarquia é o motor imóvel, porquanto o mais vivo de todos os seres.
Sua autonomia se revela principalmente em relação à matéria. Quanto mais autonomia de
movimento, maior também a autonomia relativamente à matéria. Um ser vivo sensível
troca continuamente de matéria pela nutrição, o que o torna independente desta ou
daquela matéria. Isto o torna mais autônomo que um ser inanimado, na exata proporção
229
da inseparabilidade entre o último e a matéria com a qual foi primeiramente constituído.
Contudo, o ser vivo não prescinde da matéria em geral. Já o ser vivo supremo prescinde
de todo tipo de matéria, pois o que nele seria movimento é, na verdade, seu correlato
supra-essencial – a efetividade pura.
Do reconhecimento da natureza como sentido último da essência sensível, decorre
necessariamente a determinação mais restrita da alma como essência no sentido de
natureza. Constataremos isto partindo de outras premissas estabelecidas pelo Filósofo.
A natureza é responsável pelos seres inanimados e pela geração dos seres vivos.
Ora, os primeiros já foram descartados pelo Filósofo como possíveis representantes do
sentido estrito de essência, porquanto não são nada determinado, mas substrato para
ulterior determinação, ao passo que a essência deve ser algo determinado. Logo, restam
os seres vivos. Cabe agora saber se todo o composto ou apenas sua parte formal é a
essência prima. Ora, já vimos que Aristóteles adota firmemente a segunda opção – a
forma – a qual reconhece como a causa do ser de toda a essência. Mas o que é a forma
dos seres vivos senão sua alma? As essências primas de todos os seres são, portanto, as
almas. Quanto mais desenvolvida é a alma de um ser, mais alto é seu nível ocupado na
hierarquia ontológica. A alma humana atinge o topo das almas sublunares porque possui
uma parte inteligente, para a qual o Filósofo reservou até mesmo a imortalidade. Não
haveria mesmo como ser diferente o curso tomado pelos ulteriores níveis anímicos, com
as almas dos astros - inteligentes e locomotivas – e a alma do motor imóvel – inteligência
pura.
No capítulo anterior abordamos a autarquia da essência, que significa: a essência
tem a si mesma por princípio de seu ser, ao contrário do concomitante e das demais
230
categorias, cujo ser repousa no ser da essência. Mas os entes vivos e, mais exatamente, a
alma, não é somente autárquica. É auto-efetiva. E tal diferença muda sensivelmente o
próprio modo de autarquia da alma. A autarquia dos entes auto-efetivos é a genuína
autarquia, pois contém seu próprio princípio de tal modo que se confunde com ele. Eis
um tópico importante do De Anima, saber em que sentido o corpo animado é o seu
próprio princípio, ou seja, sua alma. Enquanto a matéria inanimada, hetero-efetiva, é
efetivada por outro ente de tal modo que podemos supor inúmeras outras matérias
assumindo a mesma forma, a matéria viva, auto-efetiva, mantém uma solidariedade tal
com seu princípio que este parece 'brotar' desde dentro de sua matéria. O ente auto-
efetivo, portanto, está de posse de seu princípio de um modo ainda mais perfeito.
Contudo, há um modo ainda mais perfeito de estar de posse de seu princípio
(autarquia) e, principalmente, de efetivar o próprio princípio (auto-efetividade). Trata-se
da auto-enformação, própria da parte mais elevada da alma que, sob certo aspecto, dela se
destaca no sentido da imortalidade. Detenhamo-nos agora na esfera autológica da
inteligência.
231
UNIDADE DA INTELIGÊNCIA
A inteligência (nou=j) é a parte primeira da alma, não sendo efetividade de nenhuma
parte do corpo. Justo por isso, pode existir separada do corpo, conforme afirma o De
Anima.
Eis um trecho da obra “A Unidade da Inteligência contra os Averroístas” de
Tomás de Aquino, acerca da doutrina aristotélica da inteligência separada:
“E à medida que as formas vão sendo cada vez mais nobres vemos que
possuem capacidades que progressivamente superam cada vez mais a matéria.
Daí que a última forma, que é a alma humana, tenha a capacidade de superar
totalmente a matéria corporal. Eis a inteligência. Desta feita, a inteligência é
separada, visto não ser uma faculdade existente no corpo, mas é uma faculdade
existente na alma, enquanto a alma é a efetividade de um corpo.”81
Sem abordar aqui o uso tomista da doutrina aristotélica como um todo, pensamos
que a idéia presente no trecho acima pode servir como ponto de partida para nossa
investigação acerca da doutrina aristotélica da inteligência produtiva e de sua
possibilidade de separação, pois espelha muito exatamente o modo de resolução
encontrado pelo estagirita no sentido de tornar verossímil a imaterialidade da inteligência,
não obstante a inevitável aporia de sua inerência como integrante de uma alma apenas
material, porquanto efetividade da matéria. É que a inteligência é forma da forma,
232
efetividade da efetividade. Salta por sobre a matéria através da própria efetividade da
matéria. Emerge.
Por outro lado, a natureza de tal emergência provoca uma justa perplexidade.
Como pode a inteligência ser separada da matéria se é efetividade de uma efetividade da
matéria? Pareceria óbvio que a forma de algo material seria também material, posto que a
forma, enquanto princípio efetivo do composto, nem por isto existe independentemente
deste. Por que no caso da forma inteligente esta restrição não teria a mesma
aplicabilidade? Vejamos o que diz o Filósofo:
“Portanto, é manifesto que a alma – ou algumas partes dela, se ela por natureza
tiver partes – não é separada do corpo; pois em alguns casos a plenitude é das
partes mesmas. Não obstante, por não serem plenitude de corpo algum, nada
impede que pelo menos algumas partes sejam separadas.” (413a4)
oÀti me\n ouÅn ou)k eÃstin h( yuxh\ xwristh\ tou= sw¯matoj, hÄ me/rh tina\ au)th=j, ei¹ meristh\ pe/fuken, ou)k aÃdhlon: e)ni¿wn ga\r h( e)ntele/xeia tw½n merw½n e)stiìn au)tw½n. ou) mh\n a)ll' eÃnia/ ge ou)qe\n kwlu/ei. Aristóteles conclui que a efetividade da inteligência, embora seja efetividade da
alma - que, por sua vez, é efetividade da matéria -, não é efetividade de alguma parte
definida da alma, mas da alma como um todo, isto é, da alma enquanto efetividade em si,
e não enquanto de uma parte da alma que, por sua vez, seja efetivação de alguma parte do
corpo. Isto impede uma conexão mais estreita e comprometedora com as bases somáticas
que a mantém. Deste modo, quando Aristóteles escreve “algumas partes”, está na verdade
se referindo, embora ainda de um modo um pouco vago, à parte inteligente da alma. O
foco é a possível separação da inteligência, que deve ser investigada seriamente, isto é,
81 Tomás de Aquino, op. cit., pág. 69.
233
sem nenhum fato que possa invalidar tal possibilidade. É por isso que, cautelosamente,
Aristóteles discorre:
“Revela-se que, na maioria dos casos, a alma a nada é passível ou produz
sem o corpo, como, por exemplo, irritar-se, persistir, ter vontade e perceber em
geral; por outro lado, parece ser próprio a ela particularmente o inteligir. Não
obstante, se também isto é um tipo de imaginação ou se não pode ocorrer sem
imaginação, então nem mesmo este poderia existir sem o corpo. Enfim, se alguma
das funções e passibilidades é própria à alma, ela poderia existir separada; mas
se nada lhe é próprio, a alma não seria separável.” (403a3)
fai¿netai de\ tw½n me\n plei¿stwn ou)qe\n aÃneu tou= sw¯matoj pa/sxein ou)de\ poieiÍn, oiâon o)rgi¿zesqai, qarreiÍn, e)piqumeiÍn, oÀlwj ai¹sqa/nesqai, ma/lista d' eÃoiken i¹di¿% to\ noeiÍn: ei¹ d' e)stiì kaiì tou=to fantasi¿a tij hÄ mh\ aÃneu fantasi¿aj, ou)k e)nde/xoit' aÄn ou)de\ tou=t' aÃneu sw¯matoj eiånai. ei¹ me\n ouÅn eÃsti ti tw½n th=j yuxh=j eÃrgwn hÄ paqhma/twn iãdion, e)nde/xoit' aÄn au)th\n xwri¿zesqai: ei¹ de\ mhqe/n e)stin iãdion au)th=j, ou)k aÄn eiãh xwristh/. Está claro então que a inteligência é a única chance de que a alma seja separável,
pois seria a efetividade própria da alma, ou seja, aquela que pertence exclusivamente à
sua natureza e que, portanto, poderia sobreviver à dissolução do corpo. Mas tal coisa
depende de a intelecção se mostrar realmente independente de qualquer potência anímica
de substrato corpóreo, mesmo que de espécie tão sutil como a imaginação. Guardemos
esta exigência. Isto será crucial mais adiante, quando perceberemos que a amplitude
investigativa do Filósofo lhe revelou um impasse fundamental entre a imortalidade da
alma e sua teoria da inteligência, impasse este que só seria superado por um conceito tão
radical que livrasse parte da inteligência da fundamentação material da intelecção.
Mas ainda assim persiste a questão: de que modo o nou=j transcende a matéria,
levando-se em conta que é efetividade de sua efetividade no corpo vivo? O fato de o
234
nou=j não se identificar com nenhuma das partes anímicas não resolve totalmente o
problema, visto que nada garante a permanência da efetividade do nou=j após o
desmantelamento de todas as regiões do sujeito material de seu sujeito anímico, pois a
alma, como o próprio Aristóteles afirma, não pode sobreviver por inteiro após a
corrupção do corpo por se confundir com a própria efetividade de suas variadas partes.
A gravidade do problema força um aprofundamento da teoria da inteligência em
Aristóteles. A questão crucial se impõe: de que modo se dá a unidade separativa da
intelegência? Como é possível uma inteligência separada?
Unidade da Inteligência Separada
Eis as duas principais aporias em De Anima: Como pode a inteligência, separada
da matéria e imortal, efetivar-se na matéria? A inteligência imortal é individualizada ou
a mesma para todas os homens?
Estas duas questões mantém estreito vínculo, pela natureza simples da
inteligência, que torna cada propriedade intimamente relacionada com as outras.
Podemos resumi-la em uma única questão: qual o modo de separação da inteligência? A
resolução última parece estar longe do fim e remonta às antigas querelas escolásticas. A
sentença “a inteligência parece surgir em nós como sendo uma certa essência e não ser
corruptível” 82 (o( de\ nou=j eÃoiken e)ggi¿nesqai ou)si¿a tij ouÅsa, kaiì ou)
82 DA 408b18
235
fqei¿resqai.) sempre assombrou os intérpretes de todas as épocas, justamente devido ao
verbo “surgir” (e)ggi¿nesqai). Como uma essência imortal pode surgir em um indivíduo
mortal? Que tipo de surgimento incorruptível pode ocorrer em uma realidade corruptível?
Além disso, o que dizer do momento da Metafísica em que o Filósofo descarta a
possibilidade de duas essências em efetividade constituírem uma só essência? Neste caso
em questão, uma parte da alma – que é essência do corpo vivo – se revela como outra
essência efetiva, e ainda em maior grau, posto que imortal. Só poderemos atingir uma
aproximação mais incisiva da solução após determinadas considerações acerca da teoria
da inteligência em Aristóteles. No entanto, uma convicção não pode ser evitada: a
estrutura da inteligência, assim como sua relação com a totalidade anímica em que está
inserida são fatos ontológicos de natureza extra-ordinária, e como tal requerem um
tratamento investigativo especial, conforme o percebeu o próprio Estagirita.
Propomos a seguir uma opção hermenêutica para o problema que libere uma
possível resposta menos suscetível aos possíveis sentidos camuflados em um texto tão
conciso e cheio de lacunas.
A inteligência seria o topo de uma série de estágios cognitivos que vão desde a
pura sensação até a pura intelecção. Na verdade, a própria intelecção, independentemente
de possuir ou não um princípio efetivador separado, não é possível sem a sensação do
objeto inteligido:
“Uma vez que tampouco há, ao que parece, qualquer coisa separada e à parte
de grandezas perceptíveis, os objetos inteligíveis estão nas formas perceptíveis,
tanto os que são ditos por abstração como também todas as disposições e
afecções dos que são perceptíveis. Por isso, se nada é percebido, nada se
aprende nem se compreende, e, quando se contempla, há necessidade de se
236
contemplar ao mesmo tempo alguma imagem, pois as imagens são como que
sensações percebidas, embora desprovidas de matéria.” (De Anima, 432a3)
e)peiì de\ ou)de\ pra=gma ou)qe\n eÃsti para\ ta\ mege/qh, w¨j dokeiÍ, ta\ ai¹sqhta\ kexwrisme/non, e)n toiÍj eiãdesi toiÍj ai¹sqhtoiÍj ta\ nohta/ e)sti, ta/ te e)n a)faire/sei lego/mena kaiì oÀsa tw½n ai¹sqhtw½n eÀceij kaiì pa/qh. kaiì dia\ tou=to ouÃte mh\ ai¹sqano/menoj mhqe\n ou)qe\n aÄn ma/qoi ou)de\ cunei¿h, oÀtan te qewrv=, a)na/gkh aÀma fa/ntasma/ ti qewreiÍn: ta\ ga\r fanta/smata wÐsper ai¹sqh/mata/ e)sti, plh\n aÃneu uÀlhj.
A passagem acima é bem esclarecedora, pois, além de determinar a estreita
conexão entre o primeiro estágio cognitivo, próprio da sensação, com o mais elevado,
representado pela inteligência, também estabelece a analogia entre as sensações
(ai¹sqh/mata) e o objeto atingido pelo princípio cognitivo imediatamente superior, a
imaginação, pois esta é aquela que apresenta as imagens (fanta/smata).
A inteligência, portanto, é efetivada no instante em que o sensível adquire grau de
unidade suficientemente semelhante à unidade do inteligível. Ocorre então uma
proporção sensível-inteligível que efetiva a inteligência intemporal na esfera temporal da
alma sensível. Há vários níveis de materialidade, cada qual mais sutil que o anterior, até o
ponto em que não há mais lugar para a matéria e a temporalidade. Temos, primeiramente,
1) o composto hilemórfico bruto, que é a própria coisa material que não toca o órgão
sensório. A coisa não pode tocá-lo, pois a sensação é a aprensentação do próprio objeto,
mas de sua forma:
“Há necessidade de que sejam as próprias coisas ou as formas. Não são as
próprias coisas, é claro: pois não é a pedra que está na alma, mas sua forma.”
(431b28).
a)na/gkh d' hÄ au)ta\ hÄ ta\ eiãdh eiånai. au)ta\ me\n dh\ ouÃ: ou) ga\r o( li¿qoj e)n tv= yuxv=, a)lla\ to\ eiådoj:
237
Mas para que tal formalização seja possível, é necessário que haja algo entre a
matéria do órgão e a matéria do objeto sensível. Deve haver haver separação para que a
forma seja apresentada. Caso, contrário, nada é percebido:
“E, a respeito do som e do odor, a discussão é a mesma, pois nenhum
deles produz percepção sensível ao tocar no órgão sensível, e sim quando o
intermediário é movido pelo odor e pelo som; e pelo intermediário, por sua vez,
cada um dos órgãos sensíveis. E, quando alguém coloca sobre o órgão sensível o
próprio soante ou exalante, nenhuma percepção é produzida.” (419a25)
o( d' au)to\j lo/goj kaiì periì yo/fou kaiì o)smh=j e)stin: ou)qe\n ga\r au)tw½n a(pto/menon tou= ai¹sqhthri¿ou poieiÍ th\n aiãsqhsin, a)ll' u(po\ me\n o)smh=j kaiì yo/fou to\ metacu\ kineiÍtai, u(po\ de\ tou/tou tw½n ai¹sqhthri¿wn e(ka/teron: oÀtan d' e)p' au)to/ tij e)piqv= to\ ai¹sqhth/rion to\ yofou=n hÄ to\ oÃzon, ou)demi¿an aiãsqhsin poih/sei.
Portanto, 2) a coisa material deve tocar o intermediário (metacu/) próprio de cada
sentido, modificando-lhe. Aqui ainda não podemos nos referir a qualquer ato
cognoscitivo. O intermediário então, por força de sua própria modificação, 3) modifica o
órgão sensório propriamente dito, o que produz a sensação daquele órgão. Agora sim
temos uma primeira formalização do objeto sensível. Aristóteles fornece uma interessante
analogia para este estágio:
“No geral e em relação a toda percepção sensível, é preciso compreender
que o sentido é o receptivo das formas sensíveis sem a matéria, assim como a
cera recebe o sinal do sinete sem o ferro ou o ouro, e capta o sinal áureo ou
férreo, mas não como ouro ou ferro. E da mesma maneira ainda o sentido é
afetado pela ação de cada um: do que tem cor, sabor ou som; e não como se diz
ser cada um deles, mas na medida em que é tal coisa e segundo tal enunciado.”
(424a16)
238
Kaqo/lou de\ periì pa/shj ai¹sqh/sewj deiÍ labeiÍn oÀti h( me\n aiãsqhsi¿j e)sti to\ dektiko\n tw½n ai¹sqhtw½n ei¹dw½n aÃneu th=j uÀlhj, oiâon o( khro\j tou= daktuli¿ou aÃneu tou= sidh/rou kaiì tou= xrusou= de/xetai to\ shmeiÍon, lamba/nei de\ to\ xrusou=n hÄ to\ xalkou=n shmeiÍon, a)ll' ou)x v xruso\j hÄ xalko/j: o(moi¿wj de\ kaiì h( aiãsqhsij e(ka/stou u(po\ tou= eÃxontoj xrw½ma hÄ xumo\n hÄ yo/fon pa/sxei, a)ll' ou)x v eÀkaston e)kei¿nwn le/getai, a)ll' v toiondi¿, kaiì kata\ to\n lo/gon.
A sensação, tal qual a cera para o sinete, recebe tão somente a forma da coisa,
sem contudo preservar sua composição hilemórfica, sua constituição natural. Trata-se de
uma extração de algo contido no objeto sensível, a forma aqui significando qualquer
disposição ou qualidade que determine a natureza e identidade daquele objeto, ou seja,
algo pelo que possamos obter um enunciado (lo/goj) acerca de seu ser. No entanto, ainda
não é o caso de uma apresentação puramente formal. A matéria própria do objeto foi
suprimida, mas o processo ainda depende de sua presença efetiva a modificar, por sua vez,
a matéria do órgão sensório através da matéria de seu intermediário próprio. Todo
processo, portanto, ainda é essencialmente material.
Após a sensação, o ser vivo está preparado para outro estágio, aquele da 4)
fixação imagética da fantasi¿a (imaginação) que nada mais é que o prolongamento do
movimento iniciado pela sensação:
“A imaginação será o movimento que ocorre pela efetividade da percepção
sensível. [...] E porque perduram e são semelhantes às percepções sensíveis, os
animais fazem muitas coisas de acordo com elas...” (428b30)
h( fantasi¿a aÄn eiãh ki¿nhsij u(po\ th=j ai¹sqh/sewj th=j kat' e)ne/rgeian gignome/nh. [...] kaiì dia\ to\ e)mme/nein kaiì o(moi¿aj eiånai taiÍj ai¹sqh/sesi, polla\ kat' au)ta\j pra/ttei ta\ z%½a.
239
De fato, a semelhança entre imaginação e percepção sensível torna a imagem
(fa/ntasma) um análogo da própria sensação, como que uma sensação independente do
objeto sensível bruto:
" pois as imagens são como que sensações percebidas, embora desprovidas de
matéria.” (432a3)
ta\ ga\r fanta/smata wÐsper ai¹sqh/mata/ e)sti, plh\n aÃneu uÀlhj.
Em outras palavras: enquanto a sensação representa um incipiente estágio de
separação entre a potência sensória e a matéria, dado que a matéria bruta não pode tocar
diretamente o órgão sensível, a imaginação, por outro lado, já dispensa a presença mesma
do objeto material, algo impossível para a sensação.
A imaginação, por sua vez, precede 5) a pura imagem não individualizada daquele
dado sensível (por exemplo, do círculo em geral) até 6) seu correlato supra-sensível
captado pela inteligência (por exemplo, da idéia do círculo). O primeiro grau é do
divisível na coisa; o segundo, do divisível no intermediário. Nestes dois primeiros
estágios há uma composição de matéria e forma brutas, pois o objeto exterior é um corpo
sensível, assim como o intermediário (metacu), que é o corpo adjacente ao órgão
sensório e cuja matéria é modificada pelo composto hilemórfico do objeto exterior. Mas o
terceiro nível – o da sensação propriamente dita - já marca uma decisiva separação, a
saber, aquela entre a natureza da matéria e forma exteriores e a natureza da matéria e
forma interiores ao corpo que sente. Aqui temos o divisível em matéria e forma na
sensibilidade propriamente dita, quer dizer, a modificação do órgão sensível. A forma em
questão não é mais a de um objeto extenso tangível, mas tal como (toiondi) a apreende o
órgão sensório. A matéria aqui também não é aquela composta de elementos, tal como
240
ocorre com os objetos externos, mas apenas a própria continuidade extensiva do
composto apreendido pelo órgão sensível. Mas aqui temos ainda uma dependência da
presença efetiva do objeto externo causador da sensação, além do o composto matéria-
forma reproduzir maximamente as peculiaridades individuais do objeto externo. Trata-se
aqui, não mais de matéria e forma brutas, mas ainda assim de uma matéria e forma, desta
vez internas. O quarto estágio, aquele da imaginação (fantasi¿a) já efetiva a apreensão
de um composto hilemórfico independentemente da presença efetiva do objeto externo,
como que efetivando a partir de um processo hilemórfico exclusivo do corpo que sente.
Em razão desta interioridade sensória - cuja autonomia faz lembrar a autonomia
inteligente da parte mais elevada da alma - e que, ao mesmo tempo, (como ainda veremos
mais nitidamente) é necessária para o advento desta última na alma - o Filósofo denomina
os dois termos com o nome do estágio seguinte: agora estamos diante da matéria
inteligível, sendo que a forma que lhe é própria, embora ainda material, também é
inteligível. Mas resta ainda o quinto estágio separativo da cognição, aquele em que a
inteligência atinge um objeto indivisível, coisa que somente a pura inteligência separada
o pode fazer. Agora a unidade cognitiva do objeto não é mais parcial, não é um composto
da forma com alguma espécie de matéria, mas a pura forma inteligível do objeto.
Mas é preciso acompanhar mais de perto o conjunto de coisas que responde a
pergunta: de que modo é possível a passagem de uma unidade hilemórfica para outra
mais simples? Temos, primeiro, que entender melhor algo fundamental para qualquer
sensação em geral:
"O ver ocorre quando aquilo que é capaz de perceber é afetado por algo;
mas é impossível que o seja pela própria cor que é vista; resta assim que o seja
241
pelo intermediário (u(po\ tou= metacu). É necessário, então, que exista algo
intermediário” (De Anima, 419a15)
pa/sxontoj ga/r ti tou= ai¹sqhtikou= gi¿netai to\ o(ra=n: u(p' au)tou= me\n ouÅn tou= o(rwme/nou xrw¯matoj a)du/naton: lei¿petai dh\ u(po\ tou= metacu/, wÐst' a)nagkaiÍo/n ti eiånai metacu/:
Pode-se traduzir o trecho acima para uma linguagem cujos termos centrais sejam
o simples e o complexo. A passagem de um nível de unidade para outro mais simples se
faz mediante o oposto do simples, o complexo. Quanto mais simples a sensação que será
apreendida, mais complexo, ou seja, deverá ser o conjunto de efetivações necessárias
para atingi-lo. O corpo que sente deve, portanto, ser constituído de diversas partes que
proporcionem a devida separação entre o órgão propriamente receptor e as partes do
objeto apreendido pela sensação, de modo que cada parte do corpo que sente irá operar
uma separação determinada, uma seleção entre os aspectos materiais apreendidos e os
que são deixados para trás. Tal separação é instaurada no intermediário (metacu/) da
sensação. Assim, a complexidade do corpo que sente simplifica a complexidade do corpo
sensível por acentuar a separação. Em outras palavras: a complexidade do corpo que
sente reduz parte da complexidade do corpo sensível que poderia afetar o órgão
propriamente sensório. Tomemos o sentido do tato. Se não houvesse intermediário
(metacu/), não haveria tato, mas apenas contato, e o mesmo vale para os quatro sentidos
remanescentes. É que a sensação é a recepção do sensível, mas não enquanto matéria e
forma brutas, e sim apenas enquanto matéria e forma sutis e internas, isto é, apenas
enquanto passibilidades do órgão senciente. A separação impede que a matéria bruta da
coisa afete o sensório, permitindo apenas que sua forma seja comunicada através do
intermediário, ainda que tal forma carregue ainda certo grau de materialidade:
242
"A parte sensível e a científica da alma são em potência estes objetos:
uma, o objeto de ciência; outra, o objeto sensível. Mas há a necessidade de que
sejam ou as próprias coisas ou as formas. Não são as próprias coisas, é claro:
pois não é a pedra que está na alma, mas a sua forma”. (De Anima, 431b24)
th=j de\ yuxh=j to\ ai¹sqhtiko\n kaiì to\ e)pisthmoniko\n duna/mei tau)ta/ e)sti, to\ me\n <to\> e)pisthto\n to\ de\ <to\> ai¹sqhto/n. a)na/gkh d' hÄ au)ta\ hÄ ta\ eiãdh eiånai. au)ta\ me\n dh\ ouÃ: ou) ga\r o( li¿qoj e)n tv= yuxv=, a)lla\ to\ eiådoj:
Assim o corpo simples e inanimado apenas recebe passivamente o complexo,
reproduzindo em si sua estrutura discreta, o que é contrário à possibilidade da sensação.
Por outro lado, a estrutura complexa do corpo que sente, embora venha a sofrer a ação do
corpo sensível, não se limita meramente a reproduzir passivamente sua estrutura, mas a
reapresenta segundo um aspecto mais simples e de status ontológico superior, pois não
apreende a matéria e forma brutas, mas apenas matéria e a forma internas. A unidade
atingida é superior porque é resultado de seu ulterior grau de separação.
A forma sensível captada pelo órgão sensório depende da presença do objeto
sensível, ainda que não do contato direto com o mesmo. Assim, a separação atingida aqui
ainda necessita de outra intensificação, na qual a forma sensível subsista e possa ser
representada a despeito da ausência do objeto que a originou. A apreensão da forma na
alma, no entanto, tende a reter apenas o que há de determinante de sua natureza intrínseca,
abstraindo de detalhes próprios da matéria individual. A matéria sensível é deixada de
lado, e o que permanece é a matéria inteligível. Esta é apenas a imagem mais simples do
que há de distintivo de sua matéria sensível e de sua forma sensível, esta última já
devidamente captada pelo órgão sensório quando na presença efetiva do objeto sensível.
243
A distinção entre matéria sensível e inteligível é ilustrada pelo Filósofo no sétimo livro de
sua Metafísica:
"E existe uma matéria sensível e uma matéria inteligível; a sensível é, por
exemplo, o bronze ou a madeira ou tudo o que é suscetível de movimento; a
inteligível é, ao contrário, a que está presente nos seres sensíveis mas não
enquanto sensíveis, como os entes matemáticos." (Met. 1036a9)
uÀlh de\ h( me\n ai¹sqhth/ e)stin h( de\ nohth/, ai¹sqhth\ me\n oiâon xalko\j kaiì cu/lon kaiì oÀsh kinhth\ uÀlh, nohth\ de\ h( e)n toiÍj ai¹sqhtoiÍj u(pa/rxousa mh\ v ai¹sqhta/, oiâon ta\ maqhmatika/. Pelo trecho acima vimos que a matéria inteligível já rompeu a continuidade com a
sensação, pois "está presente nos seres sensíveis, mas não enquanto sensíveis”. Apenas
que é conveniente atentar para este outro trecho em que fica manifesto que também a
matéria sensível já passou por um grau de separação, a despeito do que poderíamos
inferir de sua identificação com a madeira e o bronze. Quando Aristóteles discute acerca
da possibilidade de abranger no enunciado (e)n t%½ lo/g%) definitório certas notas
materiais, escreve:
"E em certo sentido nem mesmo as letras da sílaba estão presentes no
enunciado (e)n t%½ lo/g%): por exemplo, estas letras particulares escritas na cera
ou estes sons emitidos no ar: também estes, na verdade, são partes da sílaba, mas
como matéria sensível." (Met. 1035a14)
eÃsti d' w¨j ou)de\ ta\ stoixeiÍa pa/nta th=j sullabh=j e)n t%½ lo/g% e)ne/stai, oiâon tadiì ta\ kh/rina hÄ ta\ e)n t%½ a)e/ri: hÃdh ga\r kaiì tau=ta me/roj th=j sullabh=j w¨j uÀlh ai¹sqhth/.
244
Ou seja, as letras gravadas na matéria bruta exterior não entram em qualquer
definição, somente a sensível, aquela apreendida pelo órgão sensório, que não se
identifica de fato com coisa material, esta última alternativa podendo ser inferida pela
mera leitura do trecho anterior a este, mas que agora se mostra apenas como a indicação
que o Filósofo fornecia acerca da reprodução dos caracteres peculiares da coisa material,
incluindo sua mobilidade. É que neste estágio cognitivo, como já vimos, se faz necessária
a presença efetiva da coisa, com tudo o que tal presença implica, incluindo, obviamente, a
mobilidade.
No entanto, ainda aqui, neste estágio mais simples da estrutura da cognição, nota-
se uma certa complexidade, pois a forma e a matéria inteligível, ainda que inseparáveis
em efetividade, são separáveis pelo enunciado (lo/goj), pois um é o enunciado que
define a forma (da esfera de madeira, por exemplo) e outro o enunciado da matéria (no
caso, da madeira). Deste modo, a unidade separativa da forma aqui, embora mais
acentuada do que a unidade relativa aos graus inferiores - ainda pode atingir outro estágio,
ainda mais perfeito porquanto advindo de separação ulterior, em que a forma resulta
cindida não somente da matéria bruta e da sensível, mas até mesmo de sua expressão
mais simples: a matéria inteligível. Agora, temos, não mais a percepção de uma forma
material, mas a intelecção da pura forma inteligível, absolutamente simples. Esta não é
mais efetividade da parte senciente da alma, mas da inteligente, que Aristóteles afirma,
mais de uma vez, ser a única dotada de separatividade do todo anímico, pois ”não é
efetividade de parte alguma do corpo”. Contudo, o livro III do De Anima oferece uma
argumentação mais precisa neste sentido, pois Aristóteles efetua ali uma apreciação dos
modos de apreensão de realidades indivisas, em seus mais variados graus de unidade, até
245
que infere a necessidade de uma parte cognoscente separada para uma certa espécie de
indivisibilidade.
O Estagirita formula primeiramente uma teoria da intelecção imanente do objeto
indivisível em geral, partindo da cognição das realidades contínuas:
"Já que o indivisível (a)diai¿reton) é de dois modos - ou em potência ou em
efetividade - nada impede a intelecção do indivisível quando se intelige o
comprimento (que não é dividido em efetividade) e isso em um tempo indivisível.
Pois o tempo tanto é divisível quanto indivisível, assim como o comprimento. E
não é possível dizer o que intelige em cada uma das metades, pois não existem
metades, se não forem divididas, exceto em potência. Mas, se intelige,
separadamente, cada uma das metades, divide simultaneamente também o tempo;
e então intelige como se fosse todo o comprimento. Se intelige, por outro lado,
como um composto de duas metades, também o faz em um tempo que abarca
ambas. Mas isso, por concomitância, e não como sendo divididos aquilo que
intelige e o tempo em que intelige, pelo contrário: como sendo indivisíveis. Mas
há nesses casos algo indivisível, mas não certamente separado, que faz o tempo e
o comprimento serem um só. E isso é similar em todo o contínuo: no tempo e no
comprimento”.(430b6)
to\ d' a)diai¿reton e)peiì dixw½j, hÄ duna/mei hÄ e)nergei¿#, ou)qe\n kwlu/ei noeiÍn to\ <diaireto\n vÂ> a)diai¿reton, <oiâon> oÀtan nov= to\ mh=koj (a)diai¿reton ga\r e)nergei¿#Ÿ, kaiì e)n xro/n% a)diaire/t%: o(moi¿wj ga\r o( xro/noj diaireto\j kaiì a)diai¿retoj t%½ mh/kei. ouÃkoun eÃstin ei¹peiÍn e)n t%½ h(mi¿sei ti¿ e)no/ei e(kate/r%: ou) ga\r eÃstin, aÄn mh\ diaireqv=, a)ll' hÄ duna/mei. xwriìj d' e(ka/teron now½n tw½n h(mi¿sewn diaireiÍ kaiì to\n xro/non aÀma, to/te d' oi¸oneiì mh/kh: ei¹ d' w¨j e)c a)mfoiÍn, kaiì e)n t%½ xro/n% t%½ e)p' a)mfoiÍn. [to\ de\ mh\ kata\ to\ poso\n a)diai¿reton a)lla\ t%½ eiãdei noeiÍ e)n a)diaire/t% xro/n% kaiì a)diaire/t% th=j yuxh=j.] kata\ sumbebhko\j de/, kaiì ou)x v e)keiÍna, diaireta\ oÁ noeiÍ kaiì e)n %Ò xro/n%, a)ll' v <e)keiÍna> a)diai¿reta: eÃnesti ga\r ka)n tou/toij ti a)diai¿reton, a)ll' iãswj ou) xwristo/n, oÁ poieiÍ eÀna to\n xro/non kaiì to\ mh=koj. kaiì tou=q' o(moi¿wj e)n aÀpanti¿ e)sti t%½ sunexeiÍ, kaiì xro/n% kaiì mh/kei.
246
Temos que focar a atenção no enunciado "aquilo que intelige" (oÁ noeiÍ), pois
assim atingiremos o que Aristóteles estabelece como "algo indivisível". Como entender a
afirmação de que há, nos casos de apreensão de um tempo e comprimento indivisíveis,
"algo indivisível, mas não certamente separado"? O fato de uma realidade indivisa ser
indivisa tanto em potência quando em efetividade, e o contínuo - como o tempo e o
movimento - ser algo não dividido em efetividade, já nos esclarece que sua divisão já
depende de algo extrínseco ao tempo e ao movimento. E que outra coisa extrínseca seria
senão a própria efetividade cognitiva de apreendê-los, que pode tomar dois tempos como
um só ou um como dois? Por outro lado, para dividir algo indivisível em potência é
preciso possuir uma indivisibilidade em maior grau que esta, o que significa: ser
indivisível em efetividade. É assim que a inteligência produtiva não pode ser dividida
nem em potência nem em efetividade. Sua efetividade é absolutamente simples. No
entanto, o Filósofo é firme ao negar a possibilidade de sua separação. O que isto significa?
Apenas o que dissemos acima, ao introduzir o tópico como aquele em que se constrói,
primeiramente, uma teoria da intelecção imanente das realidades indivisas. Aristóteles
aposta aqui na sua doutrina - já abordada na unidade correspondente - da unidade do ente
e do um. A unidade do ente decorre do próprio ser do ente, pois "o ente e o um são
conversíveis". Assim, mesmo que se trate de uma efetividade da inteligência que
determina o conteúdo do contínuo que deverá constituir a unidade indivisível, é a própria
efetividade em si, sendo um ente - quer dizer, algo que é - a responsável pela
indivisibilidade do tempo e o do movimento em questão, sem que para tal seja preciso
considerar o princípio efetivador correspondente como separado efetivamente.
247
No parágrafo seguinte Aristóteles conduz tal imanência henológica até seu
extremo, para atingir assim a compreensão de um nível que, embora ainda respeite a
conversibilidade de ente e um, o faz de um modo radicalmente diferente:
“O que é indivisível - não em quantidade, mas em forma - é passível de
intelecção em um tempo indivisível e em uma efetividade indivisível da alma. O
ponto, bem como toda a divisão e o que é indivisível dessa maneira, se mostram
do mesmo modo que a privação. E um argumento semelhante aplica-se aos
outros casos, como, por exemplo, de que maneira toma-se conhecimento do mal e
do preto; pois se toma conhecimento, de alguma maneira, pelo que é contrário.
Mas o que toma conhecimento precisa ser em potência um contrário que contém
o outro, e se há algo que não tem contrário, então isso conhece a si mesmo, é em
efetividade e separado”.(430b20).
<to\ de\ mh\ kata\ to\ poso\n a)diai¿reton a)lla\ t%½ eiãdei noeiÍ e)n a)diaire/t% xro/n% kaiì a)diaire/t% <t%> th=j yuxh=j.> h( de\ stigmh\ kaiì pa=sa diai¿resij, kaiì to\ ouÀtwj a)diai¿reton, dhlou=tai wÐsper h( ste/rhsij. kaiì oÀmoioj o( lo/goj e)piì tw½n aÃllwn, oiâon pw½j to\ kako\n gnwri¿zei hÄ to\ me/lan: t%½ e)nanti¿% ga/r pwj gnwri¿zei. deiÍ de\ duna/mei eiånai to\ gnwri¿zon kaiì (e)neiÍnai e)n au)t%½). ei¹ de/ tini mhde\n eÃstin e)nanti¿on [tw½n ai¹ti¿wn], au)to\ e(auto\ ginw¯skei kaiì e)ne/rgeia/ e)sti kaiì xwristo/n.
Agora a natureza da conversibilidade de ente e um na cognição atinge seu
extremo, pois mesmo no caso de privações, limites, contrários e outros correlatos deste
tipo, o pertencimento da unidade da inteligência à própria unidade de sua efetividade
continua valendo. Assim, nesses casos, é o correlato aquilo que permite a inteligência
conhecer um objeto, que deve ser em potência o correlato através do qual se conhece o
que é em efetividade. E o que devemos entender por "deve ser em potência o correlato”?
É que "no tocante ao que é sem matéria, o que intelige é o mesmo que o que é objeto de
intelecção” (e)piì me\n ga\r tw½n aÃneu uÀlhj to\ au)to/ e)sti to\ noou=n kaiì to\
248
noou/menon:) (429b34). A intelecção do branco é justamente a efetividade que, em
virtude da potência para a sensibilidade do preto, conhece agora a natureza do branco.
Conhecer um dos contrários já significa conhecer o outro, ainda que este não se encontre
em efetividade. E mesmo vale para o ponto, que é limite da reta, quer dizer, negação de
sua continuidade, assim como os casos semelhantes que envolvem privação. Ora, quanto
à estrutura de efetividade dessa cognição, o que podemos inferir a partir destas palavras?
Algo é certo: a inteligência, para poder conhecer uma realidade que se mostra divisível
em contrários, tem de fazer parte desta contrariedade, pois se identifica com o contrário
potencial e conhece, a partir desta identificação, o outro contrário. A inteligência, embora
indivisível, de certo modo deve se duplicar, ainda que só de certo modo. Esta é a razão de
haver referência a duas inteligências em De Anima: uma potencial e outra efetiva. De
fato, no caso acima, a inteligência deve ser em potência um dos contrários para atingir o
outro. Mas como se trata de uma efetividade indivisível apenas decorrente da natureza
mesma de um contrário, que imediatamente conduz à referência do outro, não é
necessário pressupormos uma divisão nem em potência nem em efetividade da
inteligência, mas apenas uma estrutura intelectiva auto-referente. A inteligência tem o
caráter da recursividade, de se voltar para si mesma, como que para apreender a
dualidade do objeto, mesmo que ela não se cinda de fato. Mas este caráter recursivo
imanente ainda não é o aspecto mais eminente da potência intelectiva. Continuemos
nossa investigação.
249
Unidade e Separação na Intelecção
Tomemos novamente aquela passagem do De Anima:
“Já que o indivisível é dois modos – ou em potência ou em efetividade –
nada impede que a intelecção do indivisível quando se pensa o comprimento (que
não é dividido em efetividade) e isso em um tempo indivisível. Pois o tempo é
divisível e indivisível, assim como o comprimento. E não é possível dizer o que
intelige em cada uma das metades, pois não existem metades, exceto em potência.
Mas se atinge, separadamente, cada uma das metades, divide simultaneamente
também o tempo; e então intelige como se fosse todo o comprimento. Se atinge,
por outro lado, como um composto de duas metades, também o faz em um tempo
que abarca a ambas. Mas isso por concomitância – e não como sendo divididos
aquilo que intelige e o tempo em que atinge, pelo contrário: como sendo
indivisíveis. Pois há nesses casos algo indivisível, embora não certamente
separado, que faz o tempo e o movimento sendo um só. E isso é similar em todo
contínuo: no tempo e no comprimento.”
to\ d' a)diai¿reton e)peiì dixw½j, hÄ duna/mei hÄ e)nergei¿#, ou)qe\n kwlu/ei noeiÍn to\ <diaireto\n vÂ> a)diai¿reton, <oiâon> oÀtan nov= to\ mh=koj (a)diai¿reton ga\r e)nergei¿#Ÿ, kaiì e)n xro/n% a)diaire/t%: o(moi¿wj ga\r o( xro/noj diaireto\j kaiì a)diai¿retoj t%½ mh/kei. ouÃkoun eÃstin ei¹peiÍn e)n t%½ h(mi¿sei ti¿ e)no/ei e(kate/r%: ou) ga\r eÃstin, aÄn mh\ diaireqv=, a)ll' hÄ duna/mei. xwriìj d' e(ka/teron now½n tw½n h(mi¿sewn diaireiÍ kaiì to\n xro/non aÀma, to/te d' oi¸oneiì mh/kh: ei¹ d' w¨j e)c a)mfoiÍn, kaiì e)n t%½ xro/n% t%½ e)p' a)mfoiÍn. [to\ de\ mh\ kata\ to\ poso\n a)diai¿reton a)lla\ t%½ eiãdei noeiÍ e)n a)diaire/t% xro/n% kaiì a)diaire/t% th=j yuxh=j.] kata\ sumbebhko\j de/, kaiì ou)x v e)keiÍna, diaireta\ oÁ noeiÍ kaiì e)n %Ò xro/n%, a)ll' v <e)keiÍna> a)diai¿reta: eÃnesti ga\r ka)n tou/toij ti a)diai¿reton, a)ll' iãswj ou) xwristo/n, oÁ poieiÍ eÀna to\n xro/non kaiì to\ mh=koj. kaiì tou=q' o(moi¿wj e)n aÀpanti¿ e)sti t%½ sunexeiÍ, kaiì xro/n% kaiì mh/kei.
250
Assim, a apreensão do indivisível quantitativo é, por um lado, indivisa, e, por
outro, dividida, sendo ambas resultado de efetivadores imanentes à própria efetividade
cognitiva. O que pretende Aristóteles ao dizer que “há algo indivisível, embora não
separado” é que a estrutura que dá suporte a tal intelecção é de tal natureza que não
permite divisibilidade, embora seja imanente à própria intelecção e aos seus inteligíveis.
Ora, como seria dividida a própria estrutura do efetivador, se este é condição de toda a
divisibilidade da efetividade? Se o que efetiva tal apreensão é a inteligência, e é o modo
como esta intelige o tempo e o comprimento que determina a possível divisibilidade,
então não há porque tomar a estrutura da inteligência como afetada por este processo,
pois ela é que é o agente divisor. Na verdade, a indivisibilidade da inteligência é apenas o
correlato subjetivo da própria indivisibilidade do tempo e do comprimento, embora seja
um correlato agente, pois é a unidade da inteligência que confere unidade ao objeto
inteligível. No entanto, a efetividade agente ainda não goza, aqui, de suficiente autonomia
relativamente ao restante da efetividade, para que possa reivindicar alguma espécie de
separação da mesma. É como se a estrutura indivisa da efetividade fosse apenas o aspecto
agente e formal da efetividade como um todo, estrutura essa inseparável do restante
passivo da efetividade, ou seja, dos objetos particulares de intelecção, no caso, o tempo e
o comprimento.
Há, no entanto, ainda outras intelecções cuja estrutura Aristóteles teve de
investigar: a intelecção polarizada e a intelecção formal. A primeira, relativa ao
conhecimento dos contrários, já foi descartada como possível esfera de separação do
princípio inteligente, pois sua unidade própria decorre da própria estrutura dos contrários.
Resta, então, a segunda.
251
A apreensão do indivisível formal – quer dizer, a intelecção das formas - é sempre
indivisa em si mesma e perfeita em um tempo indivisível. Por outro lado, a apreensão do
indivisível polarizado é indivisa e não separada. Ambas as intelecções têm em comum o
fato de efetivarem uma unidade separativa quanto à distinção entre o enunciado que
expressa a natureza do princípio inteligente e aquele que expressa a natureza do princípio
passível de intelecção, pois um é o passível de intelecção, enquanto o outro é o produtor
de intelecção.
Aristóteles, porém, mostra que há um salto ontológico na passagem da
inteligência que apreende os contrários e aquela que apreende as formas. A apreensão do
indivisível não polarizado é, além de indivisível, separado, pois aqui não há outro modo
de manter a indivisão a não ser fazendo a efetividade voltar sobre si mesma para perfazer
a efetividade cognitiva, o que separa esta efetividade de todo conteúdo extrínseco e
material:
“O que é indivisível – não em quantidade, mas em forma – é pensado em um
tempo indivísvel e em um ato indivisível da alma. O ponto, bem como toda divisão
e o que é indivisível dessa maneira, mostram-se do mesmo modo que a privação.
E um argumento semelhante aplica-se aos outros casos, como, por exemplo, de
que maneira toma-se conhecimento do mal ou do preto; pois toma-se
conhecimento, de alguma maneira, pelo que é contrário. Mas o que toma
conhecimento precisa ser em potência um contrário que contém o outro, e se há
algo que não tem contrário, então isso conhece a si mesmo, é efetividade e
separado.” (430b20)
<to\ de\ mh\ kata\ to\ poso\n a)diai¿reton a)lla\ t%½ eiãdei noeiÍ e)n a)diaire/t% xro/n% kaiì a)diaire/t% th=j yuxh=j.> h( de\ stigmh\ kaiì pa=sa diai¿resij, kaiì to\ ouÀtwj a)diai¿reton, dhlou=tai wÐsper h( ste/rhsij. kaiì oÀmoioj o( lo/goj e)piì tw½n aÃllwn, oiâon pw½j to\ kako\n gnwri¿zei hÄ to\ me/lan: t%½ e)nanti¿% ga/r pwj gnwri¿zei. deiÍ de\ duna/mei eiånai to\
252
gnwri¿zon kaiì e)neiÍnai e)n au)t%½. ei¹ de/ tini mhde\n eÃstin e)nanti¿on [tw½n ai¹ti¿wn], au)to\ e(auto\ ginw¯skei kaiì e)ne/rgeia/ e)sti kaiì xwristo/n.
O indivisível não polarizado é a forma da essência, pois esta – conforme nos
informa Categorias 83 – não possui contrário. A cognição da essência, portanto, não
provém da mera referência mútua dos contrários, mas de uma efetividade ainda mais una,
o que requer um efetivador cuja unidade seja da mesma natureza da unidade da essência,
que é separada. Neste ponto o Filósofo alude, simultaneamente, à separação própria da
inteligência, parte da alma que adquire a prerrogativa da independência do todo anímico
de que é a efetividade mais eminente. Enquanto as outras partes da alma são efetivações
somente da parte corpórea a que estão circunscritas, a parte inteligível da alma é
efetividade de toda alma, o que, longe de torná-la mais dependente deste todo, a torna
capaz de autonomia quanto ao ser. (DA. 3,6)
A unidade separativa da inteligência é, portanto, dedutível da unidade própria de
seu objeto, que é radicalmente diversa daquela dos objetos sensíveis. Os objetos
inteligíveis são as essências de cada um dos objetos sensíveis captados pelos órgãos
sensórios. A essência de cada coisa possui uma espécie de autarquia, ou seja, "o ter a si
mesmo por princípio". A apreensão de tal autarquia não pode advir meramente da própria
unidade imanente do objeto sensível. Ao contrário do que ocorre, por exemplo, na
apreensão de um contrário, que é conhecido já pela apreensão do outro contrário, a
essência de uma coisa, não tendo contrário e nem podendo ser dividida como as
quantidades contínuas, só pode ser apreendida por um algo uno e separado da unidade
daquele objeto. A matéria em geral, de que o objeto sensível e sua forma sensível são
83 Cat. 3b25
253
constituídos não é autárquica, pois é sempre em potência, o que a torna indefinida quanto
a um ou outro contrário. A matéria, assim, precisa de um outro princípio que a determine.
No caso, porém, da apreensão da unidade da quantidade e dos contrários, por exemplo, o
princípio unificador se confunde, de certo modo, com a matéria, pois a forma una aqui é
nada mais que a matéria em efetividade assumindo sua determinação própria. A autarquia
da essência, por outro lado, exige um princípio cognitivo também autárquico, quer dizer,
um princípio auto-referente, auto-enunciativo pela própria natureza autárquica de sua
efetividade. A inteligência auto-referente atinge seus objetos inteligíveis - isto é, as
essências - pela auto-referência que compartilha com estas; a auto-referência do objeto é
idêntica à auto-referência do sujeito, isto é, ambos são puramente formais, sem matéria.
O atingir um objeto inteligível requer a) a matéria, onde a forma inteligível existe em
potência e eternamente, e b) a inteligência, em que, b.1) por um lado, o objeto inteligível
existe em efetividade (quando a inteligência o atinge), mas não eternamente e, b.2) por
outro lado, em potência (quando a inteligência não a atinge) e não eternamente. Nos três
casos (a, b1 e b2), portanto, a forma inteligível não existe eternamente em efetividade. O
lugar da forma inteligível é a própria inteligência, que se torna, efetivamente, cada um
dos inteligíveis, pois “a ciência efetiva é idêntica a seu objeto”. Mas o que se significa,
precisamente, esta identificação? Significa que a auto-referência da inteligência se torna o
objeto auto-referente apenas porque a auto-referência do objeto é produto da auto-
referência da inteligência que se torna o próprio objeto enquanto esta auto-referência
atual. Mas isto não significa que a inteligência modifique a si mesma segundo a natureza
deste objeto, pois ela é este objeto somente enquanto, simultaneamente, é todas os outros
objetos inteligíveis, pois a auto-referência não precisa se modificar a si mesma para ser,
254
ao mesmo tempo, todas as outras auto-referências. Portanto, dizer que a) a inteligência
produziu (enquanto produtiva), b) se tornou (enquanto passível) e c) pereceu (novamente
enquanto passível) são modos diferentes, perspectivas diversas para dizer o mesmo. O
último caso é apenas uma conseqüência natural do que foi dito, pois, se nenhuma forma
subsiste eternamente em efetividade, o seu retorno para a potência (após ter sido
inteligida pela inteligência enquanto passível) pode ser descrito como um perecimento da
inteligência passível, ou seja, uma invalidação da perspectiva da inteligência enquanto
passível para aquele caso em questão.
A auto-referência enquanto tal, própria da inteligência, não pode ser destruída,
não somente por ser absolutamente indivisível, mas por não encontramos além dela
mesma a razão de sua indivisibilidade. Quanto à questão de uma individualidade imortal
da inteligência, não atingimos ainda uma resposta muito clara para tal. Teremos que
perfazer ainda algumas etapas acerca de sua teoria da intelecção. Por enquanto, uma coisa
é certa: a individualidade da inteligência não é afetada pela sua doutrina da memória
corruptível, porquanto o indivíduo, em Aristóteles, é condicionado pela auto-referência,
mais do que pelas notas intrínsecas diferenciadoras, embora estas últimas sejam, em geral,
fator decisivo. Assim, o fato de escrever que a inteligência imortal não nos oferece a
memória, em nada torna tal inteligência algo universal e comum a todos os homens. A
essência primeira é o indivíduo, e este se caracteriza por não ser predicado de coisa
alguma, de sustentar a si mesmo, mesmo quando nada podemos afirmar acerca de sua
distinção de outros indivíduos. É o tipo de auto-referência própria de uma essência o que
realmente a torna um indivíduo. É com base nesta auto-referência que as notas distintivas
fazem valer a individualidade. No entanto, ainda temos de atingir o problema da eventual
255
individualidade da inteligência imortal. Quando Aristóteles afirma que a inteligência
imortal não tem memória, o que exatamente ele pretende? Isto será decisivo para a
compreensão da natureza da unidade separativa atingível pela inteligência.
Aproximação da Solução do Problema
Submetamos o célebre trecho à reflexão:
“E a ciência efetiva é o mesmo que seu objeto, ao passo que a ciência
potencial é temporalmente anterior em cada indivíduo, embora em geral nem
mesmo quanto ao tempo seja anterior, pois não é o caso de que hora pensa, ora
não pensa. Somente isto quando é separado é propriamente o que é, e somente
isto é imortal e eterno (mas não nos lembramos, porque isto é impassível, ao
passo que a inteligência passível de ser afetada é perecível), e sem isto nada se
pensa.” (430a19)
to\ d' au)to/ e)stin h( kat' e)ne/rgeian e)pisth/mh t%½ pra/gmati: h( de\ kata\ du/namin xro/n% prote/ra e)n t%½ e(ni¿, oÀlwj de\ ou)de\ xro/n%, a)ll' ou)x o(te\ me\n noeiÍ o(te\ d' ou) noeiÍ. xwrisqeiìj d' e)stiì mo/non tou=q' oÀper e)sti¿, kaiì tou=to mo/non a)qa/naton kaiì a)i¿+dion (ou) mnhmoneu/omen de/, oÀti tou=to me\n a)paqe/j, o( de\ paqhtiko\j nou=j fqarto/jŸ: kaiì aÃneu tou/tou ou)qe\n noeiÍ.
Ora, o texto afirma que somente a inteligência produtiva, quando separada, é
imortal e divina, e não - ao contrário do suposto até agora - que toda inteligência
produtiva é imortal.
Com base nesta observação textual, suponhamos então a seguinte solução.
256
Há 1) a inteligência passível, perecível e não-separada; 2) a inteligência produtiva,
imperecível e não-separada (a que não produz a memória); e 3) a inteligência produtiva,
imperecível e separada. A inteligência humana atinge somente os níveis 1) e 2), o nível 3)
cabendo somente aos motores imóveis, que são as inteligências dos corpos celestes. A
inteligência do homem, embora individual quanto à sua efetividade, é mortal, embora não
passe por processo de corrupção, pois "a forma não se gera, mas apenas é ou não é".
Somente a partir destes sentidos poderíamos então falar de imperecibilidade da
inteligência produtiva. Em outra esfera – relativa aos motores imóveis (3) - seria
estritamente imperecível, porém inumana. Por outro lado (2), seria genuinamente humana,
porém não estritamente imperecível. Assim, ficaria afastada a possibilidade de uma
inteligência produtiva humana e imortal.
É muito cedo, porém, para adotar tal solução sem reservas. Ela poderá se mostrar
forçada ou contrariar o próprio espírito da psicologia aristotélica. É mais razoável
continuarmos aprofundando o problema da relação entre inteligência, inteligível e a
totalidade anímica que dá suporte a tal processo. Como vimos no tópico anterior, ainda
não está concluída a impossibilidade doutrinal de uma imortalidade individual em
Aristóteles. Após um aprofundamento da relação inteligência-inteligível, talvez possamos
clarificar a possibilidade de imortalidade da primeira. Para tal, será preciso verificarmos
outra possibilidade: a indepenência intelectiva de todo inteligível material.
257
Relação Inteligência-Inteligível
Examinemos o seguinte silogismo, cujas premissas decorrem do próprio texto
aristotélico, e aprofundemos todo o sentido da conclusão, com o fito de decidir acerca de
sua possível pertinência doutrinal.
Se a) quando em efetividade, a inteligência e o objeto de intelecção são o mesmo;
b) a inteligência atinge a essência ; c) a essência é separada; então d) a inteligência, em
efetividade, é uma essência separada da essência anímica de que faz parte.
A inteligência é assim entendida como uma efetividade da alma cuja forma é
separada das partes materiais que a alma efetiva, porquanto é efetividade de toda a
efetividade da alma, e não de uma efetividade específica identificada com a matéria
(como seria o caso se fosse como a visão para os olhos). Contudo, embora a inteligência
efetiva seja separada da matéria na medida em que sua simplicidade não pode ser descrita
por nada de complexo, ainda assim a inteligência pode não subsistir sem o suporte
material. Com efeito, dissolvendo-se este, também seria dissolvida a efetividade
correspondente - a alma - e do mesmo modo a efetividade da alma, a inteligência.
Por outro lado, no instante em que inteligimos um puro objeto inteligível, a
inteligência se torna o próprio objeto, e se torna separada assim como seu objeto (pois a
inteligência intelige objetos separados ou enquanto separados), pois tal efetividade já não
está ligada a nenhuma parte do corpo. A forma de tal efetividade intelectiva, neste
instante, é perfeitamente voltada para si mesma, separadamente de qualquer outra forma.
Além disso, tal separação não é apenas conceitual, quer dizer, não é apenas tomada
enquanto separada. Mas a completude da forma inteligente, que se torna em efetividade o
258
que atinge enquanto separado, não implica necessariamente a completude da separação
da própria efetividade, que pode não subsistir sem aquilo de que é efetividade, a alma.
Resta, portanto, que o imortal na inteligência humana seja a forma do momento
da intelecção, cuja forma separada de identidade sujeito-objeto é idêntica em todas as
inteligências imortais celestes. Imortal seria então a estrutura de auto-referência presente
na inteligência. Separada, portanto, é somente a forma da efetividade, que se volta para si
mesma, como que se duplicando, ainda que não exatamente. Em Ética a Nicômaco lemos
o preceito da aproximação ao limite com a imortalidade divina a partir do que há de
imortal em nós84. É inevitável uma alusão à Ética de Espinosa (“conceber sob a espécie
da eternidade”, “sentimos que somos eternos”, “a compreensão de uma necessidade,
como de uma essência, é idêntica em Deus e no Homem”).
Voltemos à análise aristotélica da natureza da efetividade inteligente:
"É pela capacidade sensível, por conseguinte, que se distingue o quente do frio,
assim como um certo enunciado da carne; mas é por outra capacidade - ou
separada, ou como a linha dobrada dispõe de si mesma quando estendida - que
se discerne o ‘ser carne’." (DA, 429b10)
t%½ me\n ouÅn ai¹sqhtik%½ to\ qermo\n kaiì to\ yuxro\n kri¿nei, kaiì wÒn lo/goj tij h( sa/rc: aÃll% de/, hÃtoi xwrist%½ hÄ w¨j h( keklasme/nh eÃxei pro\j au(th\n oÀtan e)ktaqv=, to\ sarkiì eiånai kri¿nei.
Aqui Filósofo pretende distinguir entre discernimento por a) sensação das
qualidades primárias que, em uma proporção tal que pode ser expressa por um enunciado
(lo/goj), constituem a carne e b) por intelecção do próprio ser da carne, ou seja, sua
essência, que nada mais é que sua forma inteligível.
84 Para uma apurada reflexão sofre tal exigência ética e sua relação com o problema da imortalidade em Da Alma, ver De Corte,1934, pág. 98.
259
A aporia deixada no fim do trecho diz respeito ao tipo de heterogeneidade própria
desta capacidade. Pode ser que a) esta seja separada verdadeiramente das outras
capacidades ou b) seja apenas "como que" separada, por uma inflexão de outra faculdade
sobre si mesma, assim como ocorre no exemplo fornecido, da linha que, dobrada sobre si
mesma, dispõe de si assim como outra linha o faria, embora nem por isso se tratasse
verdadeiramente de outra linha.
Agora estamos mais próximos de uma solução mais satisfatória para o problema
da separação da inteligência. Contudo, ainda resta a exigência de individualidade do
princípio cognitivo. Pois, se a inteligência é a ‘forma das formas’ e a essência das
essências, sendo a essência algo individual, evidentementemente a individuação é uma
perfeição que não pode faltar à inteligência, se quisermos ser fiéis ao espírito da doutrina
metafísica aristotélica como um todo.
Modo de Imortalidade da Inteligência
Aristóteles escreve que a inteligência produtiva, quando separada, é imortal e
eterna (a)qa/naton kaiì a)i¿+dion):
“Somente isto, quando separado, é propriamente o que é, e somente isto é imortal
e eterno (mas não nos lembramos, porque isto é impassível, ao passo que a
inteligência passível de ser afetada é perecível), e sem isto nada intelige.” (DA,
430a22)
xwrisqeiìj d' e)stiì mo/non tou=q' oÀper e)sti¿, kaiì tou=to mo/non a)qa/naton kaiì a)i¿+dion (ou) mnhmoneu/omen de/, oÀti tou=to me\n a)paqe/j, o( de\ paqhtiko\j nou=j fqarto/jŸ: kaiì aÃneu tou/tou ou)qe\n noeiÍ.
260
Destas duas notas – imortalidade e eternidade - a primeira não faz referência ao
passado, pois a imortalidade é simplesmente o ser imune à morte. Assim, somente o
presente e o futuro são necessários para a compreensão da imortalidade de algo. Por outro
lado, a segunda nota já envolve necessariamente o passado, pois a eternidade envolve
todos os tempos, quer dizer, o que é eterno existe e existirá, mas, além disso, sempre
existiu. Daí que, logo que afirma a eternidade da inteligência, Aristóteles se veja obrigado
a emitir um juízo que torne razoável o fato de não nos recordarmos do passado infinito
vivenciado em nossas existências intelectivas anteriores à presente efetividade material. E
o fato de Aristóteles utilizar a primeira pessoa do plural ao dizer "não nos lembramos"
(ou) mnhmoneu/omen) é uma boa evidência de que a imortalidade por ele concebida é de
ordem pessoal, isto é, não se trata aqui de uma inteligência universal que se introduziria
no sujeito, inteligiria por ele e seria compartilhada por todos os homens, como que por
um processo de participação (kata\ me/qecin) platônica pela qual as coisas particulares
participam das suas Idéias. Nada seria mais estranho ao espírito de Aristóteles, para quem
o verdadeiro ente, como já vimos, é de natureza individual. Se a inteligência é imortal,
deve ser enquanto indivíduo, ainda que seja difícil conceber um indivíduo sem memória.
Esta espécie sui generis de imortalidade decorre dos próprios fundamentos da psicologia
aristotélica. Logo que afirma que não nos lembramos, o Filósofo propõe, como razão
suficiente, o fato de a inteligência produtiva ser impassível85 (a)paqe/j), o que já contém
implícita a premissa que já espera do leitor dos estudos acerca da natureza da memória, a
qual envolve, necessariamente, passibilidades. Mas a inteligência passível - acrescenta - é
perecível. Então compreendemos a dupla impossibilidade da recordação do tempo
85 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
261
infinito. Por um lado, a inteligência que vivencia o tempo infinito não pode reter qualquer
lembrança. Por outro lado, a inteligência que poderia se lembrar de tudo - a passível - não
tem o poder de vivenciá-los, pois não existiu durante todo esse tempo e nem permanecerá
no ser após o tempo atual.
Ao declarar que "a ciência efetiva é o mesmo que o objeto, ao passo que a ciência
potencial é temporalmente anterior em cada indivíduo, embora em geral nem mesmo
quanto ao tempo seja anterior86" (to\ d' au)to/ e)stin h( kat' e)ne/rgeian e)pisth/mh
t%½ pra/gmati: h( de\ kata\ du/namin xro/n% prote/ra e)n t%½ e(ni¿, oÀlwj de\ ou)de\
xro/n%), Aristóteles se refere à vida do indivíduo enquanto pura inteligência, vida essa
que precede a vida no composto hilemórfico em que, posteriormente, sua pura
inteligência se colocou. Logo a seguir, acrescenta a título de conclusão que "não é o caso
de que ora intelige, ora não intelige"87 (ou)x o(te\ me\n noeiÍ o(te\ d' ou) noeiÍ.). É que a
inteligência sempre inteligiu, mesmo antes de sua introdução neste corpo físico. Assim
fica claro o único sentido segundo o qual a inteligência potencial é anterior à inteligência
produtiva. Trata-se da referência às efetivações particulares que a inteligência produtiva
efetua neste corpo físico, que pressupõem a prévia efetividade da inteligência potencial.
Mas qual a necessidade de tal pressuposição? A resposta a tal pergunta esclarece
também uma velha polêmica, acerca da unidade ou diversidade entre as duas
inteligências. Enquanto certos estudiosos aderem à idéia de que se trata realmente de dois
princípios distintos, outros já avaliam de um modo menos radical a distinção efetuada
pelo Filósofo, considerando-a como meramente conceitual. Na verdade, ambos tem razão,
cada qual em aspecto limitado do problema. Vejamos de perto isso.
262
Por um lado, as duas inteligências são realmente distintas, e a imortalidade
concedida a apenas uma delas é o fato mais marcante de tal distinção. Ocorre, porém, que
as duas estão em estreita relação. A inteligência produtiva é a causa produtora das formas
que surgem na inteligência potencial, como uma espécie de motor imóvel e em
efetividade relativamente ao seu movido. Não obstante, uma vez apreendida a forma
inteligível em sua natureza, a inteligência potencial se torna efetiva de modo idêntico à
efetividade da inteligência produtiva, pois o fato de captar a forma é a efetividade de toda
inteligência, mesmo da agente. Neste momento, fica claro que, não apenas a inteligência
potencial é idêntica a seu objeto, mas também é idêntica à inteligência produtiva. Deste
modo, podemos nos referir agora a duas inteligências em efetividade: a inteligência
potencial efetivada e a inteligência produtiva efetivadora, esta sendo pura efetividade.
Sob tal perspectiva, foquemos nosso entendimento na seguinte passagem:
"Assim, quando a inteligência se torna cada um dos objetos de ciência no sentido
em que isso se diz daquele que tem a ciência efetiva (e isso ocorre quando é
possível efetivar por si mesmo, ainda nesta circunstância a inteligência está de
certo modo em potência, embora não como antes de aprender ou descobrir; e
agora, ela mesma é capaz de inteligir a si mesma." (DA 429b4)
oÀtan d' ouÀtwj eÀkasta ge/nhtai w¨j o( e)pisth/mwn le/getai o( kat' e)ne/rgeian (tou=to de\ sumbai¿nei oÀtan du/nhtai e)nergeiÍn di' au(tou=Ÿ, eÃsti me\n kaiì to/te duna/mei pwj, ou) mh\n o(moi¿wj kaiì priìn maqeiÍn hÄ eu(reiÍn: kaiì au)to\j di' au(tou= to/te du/natai noeiÍn.
Assim compreendemos a origem da polêmica acerca da identidade das duas
inteligências aristotélicas, que sempre se resumiu na indagação: “Afinal, são dois
princípios distintos de fato ou apenas conceitualmente?” Por um lado, há momentos em
86 DA, 430a19 87 DA, (430a.22)
263
que o Filósofo parece indicar uma identidade real entre as duas, identidade essa limitada
apenas em virtude das concepções diferentes e até opostas que obtemos de cada uma,
visto que uma recebe o objeto inteligível, sendo “capaz de se tornar todas as coisas”,
enquanto a outra tem seu caráter efetivo deduzido do fato de “produzir todas as coisas”.
Em outros momentos, porém, parece mais nítida e marcada a separação efetiva entre
estes dois princípios, tal demarcação se mostrando decisiva notadamente no tocante à
corruptibilidade de uma e à imortalidade da outra.
Ora, a inteligência a que Aristóteles se refere acima, embora atinja a intelecção de
si mesma e seja efetiva, não é a inteligência produtiva separada que sobrevive à
dissolução do corpo vivo. No entanto, este princípio cognitivo possui auto-intelecção e
efetividade, duas notas que compartilha com seu correlato produtivo. Na verdade, a
inteligência potencial - não obstante sua transitoriedade e corruptibilidade, próprias de
um princípio mais receptivo do que ativo, mais potencial do que efetivo - também
adquire, em determinado momento de sua enformação, a virtude de existência efetiva e a
estrutura auto-efetiva que caracteriza a inteligência produtiva. Em poucas palavras
podemos afirmar: a inteligência potencial passa então, em certo sentido, a ser a
inteligência produtora de si mesma.
Vimos neste capítulo que a auto-efetividade, própria dos entes auto-enformativos,
é ainda mais radical daquela percebida nas essências, os entes auto-efetivos mais
primários que existem. Enquanto o ser vivo assume de uma vez por todas, desde sua
gênese, a única forma que determina toda a sua natureza, algo mais é possível com os
entes inteligentes: são dotados da faculdade de produzir a própria forma de sua
efetividade, cada determinação assumida pela sua potencialidade imanente. Ora, a forma
264
inteligente sempre está associada a uma forma inteligível, correspondente objetivo do
princípio inteligente. E tal forma se encontra, de certo modo, no próprio princípio que a
atinge, na própria inteligência, que por isso diremos ser auto-enformativa, porquanto
produz sua própria forma.
Entre este último nível e o quinto há, contudo, um pequeno parêntese a ser
considerado. É que, em determinada passagem, Aristóteles afirma - e tal coisa
investigamos neste capítulo - o fato da auto-intelecção, algo que atribuímos
preferencialmente à inteligência infinita do motor imóvel, mas que naquela passagem de
Da Alma era associado à finita inteligência humana. Na verdade, há intérpretes88 que
atribuem a passagem correspondente à própria inteligência infinita. Afirmam estes ter
havido um mal-entendido, portanto, acerca de um breve enunciado teológico em uma
obra psicológica. No capítulo a seguir tocaremos este tópico crucial, com o intuito de
explicitar tais aporias e propor uma alternativa no sentido de uma solução razoavelmente
compatível com a filosofia aristotélica.
88 Segundo Maria Cecília Gomes do Reis, há na verdade um consenso entre os comentadores acerca do caráter teológico da passagem 430b26 (Gomes dos Reis, 2006, pág. 312)
265
UNIDADE DO MOTOR IMÓVEL
Na teologia de Aristóteles, o primado henológico da forma se reflete na forma da
determinação da natureza do motor imóvel como inteligência pura.
O Livro Q da Física também conclui na existência de motores imóveis. Ali,
contudo, não se trata especificamente da essência supra-sensível que Aristóteles
estabelece no cume do que denominamos escala autológica do ente. Não há ali uma
definição do ser do motor imóvel relativamente ao puro ente, essência, alma e
inteligência, ao contrário do que ocorre no Livro L da Metafísica, onde o Filósofo não se
limita a determinar a existência da motricidade imóvel em geral, mas concentra sua
investigação em uma determinada espécie de motor imóvel, esclarecendo, inclusive, sua
real natureza como princípio efetivo do ente em geral, a primeira das essências, entidade
sumamente vivente e infinitamente inteligente. Isto significa que a natureza infinita deste
ente concentra em si todas as perfeições dos graus inferiores dos entes.
Nada disso encontramos no Livro Q da Física. Porém, o que de mais importante
há neste último diz respeito à própria gênese da idéia de um motor imóvel, que
Aristóteles procura em outra idéia motriz: a auto-mobilidade.
É no interior do auto-motor que o Filósofo atinge a necessidade do motor imóvel.
Esta é a nova perspectiva investigativa definida por Aristóteles:
“Temos de partir agora de outro princípio e examinar isto: se algo move a si
mesmo, como e de que maneira o faz?
266
Pois bem, todo o movente tem que ser divisível em partes sempre divisíveis,
porque, como foi mostrado em nossas considerações gerais sobre a natureza,
todo movente por si é contínuo. É impossível, então, que o que move a si mesmo
mova a si mesmo em sua integridade; porque, se assim fosse, ao ser
especificamente uno e indivisível seria deslocado em sua totalidade e deslocaria
com o mesmo deslocamento, e seria alterado e alteraria, e portanto ensinaria e
ao mesmo tempo receberia ensinamento, curaria e seria curado com a própria
cura.”
wÐste tou=to skepte/on labou=sin aÃllhn a)rxh/n, eiã ti kineiÍ au)to\ au(to/, pw½j kineiÍ kaiì ti¿na tro/pon. a)nagkaiÍon dh\ to\ kinou/menon aÀpan eiånai diaireto\n ei¹j a)eiì diaireta/: tou=to ga\r de/deiktai pro/teron e)n toiÍj kaqo/lou toiÍj periì fu/sewj, oÀti pa=n to\ kaq' au(to\ kinou/menon sunexe/j. a)du/naton dh\ to\ au)to\ au(to\ kinou=n pa/ntv kineiÍn au)to\ au(to/: fe/roito ga\r aÄn oÀlon kaiì fe/roi th\n au)th\n fora/n, eÁn oÄn kaiì aÃtomon t%½ eiãdei, kaiì a)lloioiÍto kaiì a)lloioiÍ, wÐste dida/skoi aÄn kaiì manqa/noi aÀma, kaiì u(gia/zoi kaiì u(gia/zoito th\n au)th\n u(gi¿eian. É, pois, a relação do movente consigo mesmo o foco da reflexão acima. A
primeira hipótese, de que o auto-movido mova a si mesmo em sua totalidade, é logo
descartada. Se tal fosse o caso, seria o mesmo que dizer que cada parte do auto-movido
participa do mover e do ser movido simultaneamente e no mesmo aspecto, seja qual for
este aspecto. É que, se a totalidade é auto-movida, então cada parte detém a potência do
auto-movimento, o que significa ter em si os dois caracteres de um auto-movido, quais
sejam, o de mover e o de ser movido. Ora, isto conduz a inúmeros absurdos, alguns dos
quais indicados acima pelo Filósofo: a mesma parte que aquece (ou seja, que move a
temperatura) também será aquecida segundo o próprio aspecto e instante em que aquece.
Haveria uma contradição do movente consigo mesmo em cada instância de seu ser e sob
o mesmo aspecto. O princípio de não-contradição, aqui implícito na argumentação,
determina “o mesmo não pode, ao mesmo tempo, estar presente e não estar presente no
267
mesmo e segundo o mesmo”. Ora, neste caso, o ser movido e o ser motor estariam
presentes, ao mesmo tempo, em cada parte do auto-movente e segundo o mesmo aspecto,
ou seja, segundo o mesmo tipo de movimento.
Mas o Filósofo logo descarta a necessidade de tal conclusão:
Além disso, não é necessário que o motor seja movido senão por si mesmo; logo,
a outra parte pode causar um movimento recíproco, mas só por concomitância.
Se é assim, admitamos a possibilidade de que não mova: há então, de um lado,
um movente e, de outro lado, outra que é um motor imóvel. Ademais, não é
necessário que o motor seja reciprocamente movido; mas se é necessário que
haja sempre movimento, então ou algo move, sendo imóvel, ou algo é movente
por si mesmo. Ainda assim, o que move seria movido com o mesmo movimento
com que move, e assim o que aquece seria aquecido.
Ora, o que primeiramente move a si mesmo não pode ter uma ou mais partes que
se movam cada uma a si mesma. Porque se o todo é movido por si mesmo, ou
será movido por alguma de suas partes, ou o todo será movido pelo todo. Se fosse
movido por alguma parte sua movida por si mesma, então esta parte seria o
motor primeiro que move a si mesmo (já que, se estivesse separada do todo, esta
parte moveria a si mesma, enquanto que o todo não poderia fazê-lo jamais). E se
o todo fosse movido pelo todo, então cada uma de suas partes moveria a si
mesma só por concomitância; e, portanto, se não se movessem necessariamente a
si mesmas, poderíamos então tomá-las como não movidas por si mesmas. Logo,
no todo uma parte moverá permanecendo imóvel e a outra será movida, pois só
assim é possível que algo seja auto-móvel (ti au)toki¿nhton eiånai). Em quinto
lugar, se é o todo o que move a si mesmo, terá que haver uma parte que mova e
outra que seja movida. Assim, o todo AB seria movido por si mesmo e também
pela parte A.
eÃti ou)k a)na/gkh to\ kinou=n kineiÍsqai ei¹ mh\ u(f' au(tou=: kata\ sumbebhko\j aÃra a)ntikineiÍ qa/teron. eÃlabon toi¿nun e)nde/xesqai mh\ kineiÍn: eÃstin aÃra to\ me\n kinou/menon to\ de\ kinou=n a)ki¿nhton. eÃti ou)k
268
a)na/gkh to\ kinou=n a)ntikineiÍsqai, a)ll' hÄ a)ki¿nhto/n ge/ ti kineiÍn a)na/gkh hÄ au)to\ u(f' au(tou= kinou/menon, eiãper a)na/gkh a)eiì ki¿nhsin eiånai. eÃti hÁn kineiÍ ki¿nhsin, kinoiÍt' aÃn, wÐste to\ qermaiÍnon qermai¿netai. a)lla\ mh\n ou)de\ tou= prw¯twj au)to\ au(to\ kinou=ntoj ouÃte eÁn mo/rion ouÃte plei¿w kinh/sei au)to\ au(to\ eÀkaston. to\ ga\r oÀlon ei¹ kineiÍtai au)to\ u(f' au(tou=, hÃtoi u(po\ tw½n au)tou= tino\j kinh/setai hÄ oÀlon u(f' oÀlou. ei¹ me\n ouÅn t%½ kineiÍsqai¿ ti mo/rion au)to\ u(f' au(tou=, tou=t' aÄn eiãh to\ prw½ton au)to\ au(to\ kinou=n (xwrisqe\n ga\r tou=to me\n kinh/sei au)to\ au(to/, to\ de\ oÀlon ou)ke/tiŸ: ei¹ de\ oÀlon u(f' oÀlou kineiÍtai, kata\ sumbebhko\j aÄn tau=ta kinoiÍ au)ta\ e(auta/. wÐste ei¹ mh\ a)nagkaiÍon, ei¹lh/fqw mh\ kinou/Mena u(f' au(tw½n. th=j oÀlhj aÃra to\ me\n kinh/sei a)ki¿nhton oÄn to\ de\ kinhqh/setai: mo/nwj ga\r ouÀtwj oiâo/n te/ ti au)toki¿nhton eiånai. eÃti eiãper h( oÀlh au)th\ au(th\n kineiÍ, to\ me\n kinh/sei au)th=j, to\ de\ kinh/setai. h( aÃra AB u(f' au(th=j te kinhqh/setai kaiì u(po\ th=j A. Aristóteles decide conduzir o foco na estrutura interna do próprio auto-movente.
Dentro do que move a si mesmo deverá haver algo que não mova a si mesmo. A relação
interna do movente repousa na existência de um ente de natureza oposta à do próprio
movente.
As duas alternativas fornecidas pelo Filósofo tem um claro significado: se o
movimento é necessário e, portanto, eterno, então deve ser uma realidade que exista por
si mesma, pois o que existe por outro pode deixar de ser caso este outro deixe de ser.
Sendo, assim, além dos movimentos efetivados por entes que são, por sua vez, efetivados
por outros, deve haver um termo motriz que efetive o movimento por si mesmo, para que
toda série cinética detenha genuína necessidade. Ora, tal autonomia motriz só é possível
de dois modos: operada por um termo que move a si mesmo ou por um termo que move
os demais móveis sem, contudo, mover a si mesmo. Esta última alternativa nem precisou
269
ser apreciada, pois é a conclusão mesma que o Filósofo almeja atingir. Seu intento, pois,
é conduzir a primeira delas à segunda, ou seja, o auto-móvel ao imóvel.
Quando o Filósofo determina que aquilo que move a si mesmo não pode ter uma
ou mais partes que se movam a si mesmas, isto significa: em última instância, o processo
divisor deve encontrar seu termo. A auto-mobilidade é efetivada a partir de alguma
instância interna, alguma parte de si mesma que não se move a si mesmo, mas apenas
move. Aqui ocorre um fato crucial. É o momento da henologia separativa de Aristóteles
em que ocorre a última separação: aquela entre o motor e o movido. Se em todos os
demais âmbitos o motor que move também é movido por outro, sendo, portanto, quase
tão movido quanto aquilo que move, neste caso tal coisa não é necessária e nem mesmo
possível.
Agora estamos diante de outro grau ontológico e seu caráter autológico também
deve ser investigado, para que compreendamos a espécie de relação do ente consigo
mesmo que reina aqui.
Voltemos primeiro à distinção já efetuada acima entre a auto-relação móvel e
imóvel.
O motor sensível recebe um movimento recíproco do seu movido, pois ambos
devem estar em contato. O motor inteligível, por outro lado, não recebe um movimento
recíproco do seu movido, visto que possui natureza completamente diferente do movido.
Não possui matéria, pelo que não há possibilidade do corpo material do movido agir
sobre ele. Assim, mesmo considerando que este motor é uma essência que atua sobre si
mesma, tal atuação, ao contrário da atuação do motor sensível, não se efetiva por alguma
270
parte ativa que, separada da passiva, a efetive. Não há possibilidade de auto-divisão no
motor imóvel.
A autologia do motor sensível, isto é, seu caráter de auto-movimento, é possível
tão somente através da divisibilidade de sua natureza. É que um corpo movente, por
natureza extenso e divisível, ao agir sobre si mesmo, não poderá fazê-lo sem que
determine intrinsecamente a parte que moverá e a parte que será movida. Em outras
palavras: para que mova a si mesmo terá que ser divisível efetivamente. Assim, a relação
do móvel sensível consigo mesmo, possível somente como auto-movimento, promove
uma divisão do móvel consigo mesmo, uma heterologia no instante mesmo de tal
autologia.
A autologia do motor inteligível é bem diferente. Ao contrário do motor sensível,
sua natureza não é divisível em partes, pois é simplesmente formal. Ora, a forma é
indivisível. E o fato de ser simplesmente formal significa que não há outro modo de
relação com seu próprio ser além da pura intelecção de sua própria forma. Este ato
cognitivo, pois, não pode ser divisível em partes, pois “tudo o que não tem matéria não
partes”. Enquanto a auto-relação do motor móvel implica uma divisão em sua natureza no
sentido de uma determinação da parte superior motora e da inferior movida, tal dicotomia
não se acha presente no motor imóvel, pelo caráter puramente inteligente de que é
constituído, perfeição essa que uma inteligência finita somente em alguns instantes pode
admitir:
“E assim como a inteligência humana – pelo menos a inteligência que não
possui os compostos em algum tempo (pois ela não possui seu bem aqui ou ali,
mas em algo total possui o excelente, o que é algo diferente) – desse mesmo modo
a intelecção possui a si mesma eternamente.”(1075a7)
271
wÐsper o( a)nqrw¯pinoj nou=j hÄ oÀ ge tw½n sunqe/twn eÃxei eÃn tini xro/n% (ou) ga\r eÃxei to\ euÅ e)n t%diì hÄ e)n t%di¿, a)ll' e)n oÀl% tiniì to\ aÃriston, oÄn aÃllo tiŸ ouÀtwj d' eÃxei au)th\ au(th=j h( no/hsij to\n aÀpanta ai¹w½na;
No nível de pura efetividade do motor imóvel, a relação inteligência-inteligido
atinge tal grau de perfeição que pode se consuma como autologia perfeita, pois a
inteligência, sendo pura forma auto-enformadora e, portanto, absolutamente indivisível,
não cinde seu ser em dois ao flexionar sobre si. O objeto que atinge em si na verdade se
confunde com a mesma:
Portanto, não sendo diferentes o inteligido e a inteligência, nas coisas que
não tem matéria serão o mesmo, e a intelecção será uma só com o
inteligido.”(1075a1)
ou)x e(te/rou ouÅn oÃntoj tou= nooume/nou kaiì tou= nou=, oÀsa mh\ uÀlhn eÃxei, to\ au)to\ eÃstai, kaiì h( no/hsij t%½ nooume/n% mi¿a.
O motor imóvel, portanto, é transparência absoluta de sujeito e objeto, identidade
total, porém não absoluta mesmidade, embora na seja uma diversidade. Vejamos de perto
o que isso significa.
Embora inteligindo a si mesma, não há efetiva divisão na essência supra-sensível.
Se houvesse sucessão na efetividade de autocognição, haveria um momento anterior
consistindo na ignorância de si mesmo seguido de um momento posterior no qual se daria
a reflexão sobre si produtora do conhecimento da parte até então ignorada de si. Neste
caso, haveria um processo de divisão no interior de si, pelo que poderíamos falar em
efetiva dualidade.
Mas o que Aristóteles sustenta é um estado eterno de autocontemplação, que seria
a própria essência do motor imóvel. Consistindo somente neste estado reflexivo, não há
272
divisão essencial provocada pela reflexão. A coisa não se dá como se houvesse uma
essência que preexistisse à efetividade reflexiva, pois a reflexão é sua própria essência. O
passível e o agente cognitivos são apenas perspectivas intrínsecas e coexistentes na
mesma instância ontológica, não representando, pois, qualquer cisão interna. Sujeito e
objeto de inteligência são sentidos correlativos do ser, quer dizer, são mutuamente
pressupostos, o que significa também que garantem a unidade um do outro e a unidade do
todo. Tudo se mantém como se o todo supra-sensível fosse um circuito fechado em si
mesmo desde sempre e para sempre, sem qualquer possibilidade de entrada ou saída,
como as mônadas de Leibniz, que não tem portas ou janelas. Não se trata aqui da
dualidade em que cada termo interceptaria seu par, cindindo-o duplamente, em um
processo infinito. É o caso de uma dualidade sem cisão, porque não surge em dado
momento de um substrato anterior, mas pertence eternamente ao mesmo e ao um. É uma
unidade mantida pela flexão para uma dualidade que não se efetiva de fato, não subiste
como uma propriedade de dois elementos que formariam um par de termos, mas é apenas
a expressão de um modo de efetivação sobre si. No caso, tal efetivação é a intelecção
mesma de sua natureza.
Na estrutura cognitiva do motor imóvel, o inteligível (noou/menon) tem a mesma
natureza do inteligente. Portanto, não recai na mera passividade. O passivo é, com a
mesma força e direito, ativo, o que não implica real contradição, pois não se dá “o mesmo
e não o mesmo segundo o mesmo”. Cada perspectiva a partir da qual tomamos a
atividade não é contrária a si mesma, apenas à sua correlata. Trata-se de uma quase-
dualidade em que cada termo pode ser tomado tanto como inteligível quanto como
inteligente, embora se trate de um mesmo e único ser auto-inteligente.
273
A essência suprema possui estrutura essencial análoga a da superesfera que move.
Embora inextensa, é como um círculo perfeito, um circuito de densidade infinita, quer
dizer, absolutamente fechado e sem qualquer desvio possível.
Eis a ironia. Na cosmologia metafísica de Aristóteles, a máxima unidade do ser,
aquela que exclui qualquer dualidade matéria-forma, somente é possível através de uma
quase duplicação da forma. Para se ver livre da matéria, a forma deve flexionar sobre si
mesma, para que toda a intensidade de sua efetividade própria não escorra para fora de si
em direção ao outro, ao múltiplo, ao movimento e, portanto, à potência da matéria. Sua
unidade autológica é de tal natureza que deve excluir definitivamente qualquer
heterologia, qualquer relação como um ente além de si mesmo, ainda que, para isso,
efetive uma quase heterologia em sua própria estrutura indivisível.
Outra aporia surge ao focarmos a auto-intelecção do ponto de vista da
essencialidade. Neste caso, perceberemos que se trata aqui de uma espécie de essência
tão diversa das outras que o próprio nome em comum não permite traçar muitos paralelos.
O motor imóvel é intelecção de sua própria essência. Esta, por sua vez, é intelecção de si
mesma, pois o “ser e cada um são o mesmo”. Não há, então, um objeto no sentido estrito,
pois que as duas inteligências – a inteligente e a inteligida – embora sejam realmente dois
e não um, tampouco são instâncias colocadas lado a lado, mutuamente independentes,
que, por acaso, inteligem uma a outra. A inteligência inteligente provém da inteligida,
somente existindo porque esta existe, o mesmo se podendo dizer da segunda
relativamente à primeira. Podemos concluir, então, que não haveria uma distinção entre
um motor imóvel de outro já que na pura intelecção há pura identidade? Eis uma
perplexidade com que nos deparamos. Uma das possibilidades de resolução da separação
274
essencial dos motores imóveis é sugerida por Reale, que aponta a série de localizações
concêntricas das respectivas esferas movidas pelos motores imóveis como sinal distintivo
entre eles. Há uma passagem no livro D da Física89 que discorre acerca dos aspectos
concomitante e essencial e do movimento. O motor imóvel da esfera das estrelas fixas
seria, assim, localizado apenas por concomitância, pois em sentido estrito não estaria em
lugar algum, e da mesma forma relativamente ao seu movimento, apenas relativo aos
movimentos das partes contidas. No entanto, tal alternativa não explica a diferença entre
os motores imóveis “subalternos”, pois todos eles são localizados nos dois sentidos de
“lugar”. Além disso, a explicação de Reale é insuficiente por apontar apenas o sinal da
distinção, e não também o que distingue as variadas intelecções das inteligências que se
inteligem.
O fato de as esferas serem concêntricas pode elucidar um pouco mais este tópico.
Cada essência imóvel move o próprio lugar em que se encontra a esfera do motor imóvel
posterior. Deste modo, o movimento concomitante do motor imóvel posterior é
determinado pelo motor imóvel anterior, sendo esta, provavelmente, a principal razão de
sua anterioridade.
A única constatação segura quanto à relação anterior-posterior é a prioridade do
motor imóvel do universo relativamente aos demais. Muito já se especulou acerca do
politeísmo ou monoteísmo de Aristóteles, e aqui vimos o aspecto da teologia que mais
dúvidas insere no exegeta. De nossa parte, preferimos uma solução que nos parece a mais
lúcida e provável. Aristóteles sustenta uma teologia intermediária entre o puro politeísmo
e o monoteísmo não só porque é politeísta sem ser antropomórfico – como bem assinalou
89 Física, 212b12
275
Philip Merlan90 – mas também por ser um politeísmo centralista, isto é, vários deuses
sendo governados por um deus central, como se fora um Zeus entre os Olímpicos.
Mas voltemos ao problema da autologia intelectiva da essência imóvel,
brevemente interrompida para buscar uma solução para a individuação dos motores
imóveis, problema que provavelmente ficará para sempre sem resposta, em virtude da
grande lacuna que representa na totalidade dos textos que nos restam de Aristóteles. Será
mais proveitoso nos concentrarmos na possibilidade e necessidade desta estrutura
intelectiva, tópico que já possui suas próprias dificuldades.
A auto-intelecção do motor imóvel impede que haja algo superior ao que já foi
admitido como a instância suprema. Se inteligisse outro ente, este seria anterior à
essência inteligente imóvel, que é absurdo, pois haveria passagem de uma instância
inferior potencial para outra superior efetiva, impossível em uma realidade imóvel e
perfeita:
“Em primeiro lugar, se não é intelecção (no/hsi¿j) senão potencial, é claro que a
continuidade da intelecção seria fatigante. Ademais, é evidente que alguma outra
coisa seria mais digna de honra (timiw¯teron) do que a inteligência, a saber, o
inteligível.” (1074b30)
prw½ton me\n ouÅn ei¹ mh\ no/hsi¿j e)stin a)lla\ du/namij, euÃlogon e)pi¿ponon eiånai to\ sunexe\j au)t%½ th=j noh/sewj: eÃpeita dh=lon oÀti aÃllo ti aÄn eiãh to\ timiw¯teron hÄ o( nou=j, to\ noou/menon.
Isto significa que, na estrutura supra-essencial, o inteligir prescinde do objeto de
intelecção, ao menos enquanto de natureza diferente da própria efetividade de atingir. A
efetividade cognitiva máxima não sai de si em direção a outra coisa que não seja a
90 Merlan, 1946, pág. 55
276
efetividade mesma. É fechada em si mesma, como o ser parmenídico. A essência perfeita
é ‘inteligir isto mesmo que intelige’, ou seja, sua “intelecção é intelecção de intelecção”
(no/hsij noh/sewj no/hsij). A função da estrutura autológica da sentença é acentuar o
aspecto ativo e subjetivo – isto é, próprio de um sujeito - da inteligência. O inteligir
(noeiÍn) e o sujeito que intelige são a essência desta efetividade, e não simplesmente uma
intelecção (no/hsij) entre outras intelecções, pois uma intelecção pode ser atribuída tanto
ao objeto passível de intelecção quanto ao sujeito inteligente. O motor imóvel deve ser
em efetividade, entrar na estrutura de intelecção enquanto sujeito ativamente inteligente
sem oferecer a possibilidade para um inteligível preexistente ao efeito intelectivo, ainda
que, para tal, tenha que flexionar sobre sua própria natureza inteligente.
Agora que determinamos a estrutura sui generis do motor imóvel, podemos
clarificar mais satisfatoriamente o tópico histórico-filosófico da relação entre a doutrina
de Aristóteles e seu mestre Platão. O objetivo aqui não é tanto aprofundar a doutrina de
Platão, mas sim o modo como Aristóteles entendeu seu sentido último e possibilidade de
superação. A derradeira meta que Aristóteles tem em mira ao conceber a radicalidade
henológica da essência imóvel – como ápice da escala autológica do ente – é a superação
de seu análogo platônico: a essência ideal das Formas em si, pois somente assim haverá a
prova da anterioridade da efetividade sobre a potência. As Idéias, ainda que existam
efetivamente, detém uma efetividade que pouco importa para a explicação dos efeitos que
mantém todas as outras essências. Isto é o que pretende o Filósofo ao retirá-las da
causalidade dos entes, pois tudo o que é efetivo de algum modo deve ser causa de algo.
Mas as Idéias não detém, segundo o Estagirita, tal faculdade:
277
“E mesmo que existissem as Idéias e os Números, não seriam causa de
nada; ou, pelo menos, não seriam causa do movimento.” (1075b27)
ei¹ d' eÃstai ta\ eiãdh: hÄ <oi¸> a)riqmoi¿, ou)deno\j aiãtia: ei¹ de\ mh/, ouÃti kinh/sew¯j ge.
O motor imóvel se apresenta, portanto – conforme também o notou Philip
Merlan91 - como alternativa aristotélica ao lugar ontológico outrora preenchido pelas
Idéias e Números de Platão. O derradeiro princípio efetivo do ente não é a Idéia, e sim o
Motor Imóvel. Aspectos cruciais da crítica aristotélica à realidade das Idéias, como
efetividade e unidade da definição, são agora esclarecidos de modo mais preciso, a luz
das considerações anteriores.
Primeiramente, detenhamo-nos na pura reflexão acerca da relação entre a Idéia
inteligível e o ideado sensível, levando ao extremo o que há de primordial nessa doutrina.
Para tal, será útil uma simples imagem.
Tomemos uma lâmina de bronze de forma circular. Tracemos todos os meridianos,
até que se encontrem em um só ponto, o chamado baricentro, centro de gravidade da
lâmina. Diretamente com o dedo ou mediado por algum objeto pontiagudo procuramos
então equilibrar a lâmina a partir de seu baricentro. No momento em que o conseguimos,
podemos dizer: apreendemos todo o peso da lâmina em um único ponto, quer dizer, não
precisamos tocar cada uma de suas partes para sentir todo o efeito gravitacional de sua
matéria própria. Tomemos agora outro dedo e, simultaneamente, equilibremos outra
lâmina de bronze, bem semelhante à primeira, só de formato quadrangular. É certo que,
ainda que de olhos fechados, saberemos distinguir uma da outra, simplesmente pelo
modo como cada uma se mantém equilibrada no respectivo dedo, pela maneira como
278
dispõe todo o seu peso em seu baricentro, ainda que tenham o mesmo peso. Imaginemos
agora os mesmo objetos, só que abstraídos de sua matéria. Apenas as sua formas ocorrem
à mente, e supomos que fosse possível que, no lugar do dedo que equilibra a realidade
física da lâmina, estivesse a própria mente que, concentrada em um único ponto,
apreendesse a realidade total daquela forma circular em uma efetividade indivisível e
inextensa de cognição, isto é, dispensando a visualização dos lados ou de propriedades
geométricas deduzidas daquela forma geométrica. Supomos então que tal visada
intelectiva seria tão bem sucedida que saberíamos, em um único instante, distinguir um
polígono de outro, assim como havíamos feito quanto considerados não somente pela
geometria, mas enquanto entidades físicas. Seria como se tivéssemos atingido um
baricentro, só que de ordem ontológica, e não mais ôntica. Eis uma boa imagem para uma
conseqüência a que é levada a suposição de que há, fundamentando as coisas sensíveis e
extensas, realidades não-sensíveis e inextensas. Segundo o parecer de Aristóteles 92 ,
alguns platônicos assumiram explicitamente tal doutrina:
“Ora, dado que esta (a separação da matéria) parece possível, mas não é
claro quando é possível, alguns filósofos levantaram o problema também a
propósito do círculo e do triângulo, considerando errado definir essas figuras
por meio de linhas e do contínuo, e sustentando que também elas devem ser
consideradas do mesmo modo que a carne e o osso do homem, o bronze e a pedra
de estátua. Por isso eles reduzem tudo aos números, e dizem que a noção de linha
se reduz à da díade. Alguns dos filósofos defensores das Idéias afirmam que a
díade é a linha em si: outros, ao contrário, afirmam que a díade é a Forma da
linha, porque em alguns casos a Forma e aquilo de que a Forma é forma são o
91 Merlan, 1956, pág. 30 92 Não é nosso propósito aqui adentrar o problema da filosofia platônica em si, mas apenas focalizar o modo como a entendeu Aristóteles e sua crítica à Platão e seus seguidores, crítica essa a partir da qual construiu sua própria doutrina. A polêmica acerca da possibilidade de Aristóteles não ter compreendido corretamente seu mestre, embora de importância filosófica inegável, ultrapassa o interesse deste trabalho.
279
mesmo, como, por exemplo, no caso da díade e da Forma da díade, enquanto, no
caso da linha não são.” (1036b8)
e)peiì de\ tou=to dokeiÍ me\n e)nde/xesqai aÃdhlon de\ po/te, a)porou=si¿ tinej hÃdh kaiì e)piì tou= ku/klou kaiì tou= trigw¯nou w¨j ou) prosh=kon grammaiÍj o(ri¿zesqai kaiì t%½ sunexeiÍ, a)lla\ pa/nta kaiì tau=ta o(moi¿wj le/gesqai w¨saneiì sa/rkej kaiì o)sta= tou= a)nqrw¯pou kaiì xalko\j kaiì li¿qoj tou= a)n-dria/ntoj: kaiì a)na/gousi pa/nta ei¹j tou\j a)riqmou/j, kaiì grammh=j to\n lo/gon to\n tw½n du/o eiånai¿ fasin. kaiì tw½n ta\j i¹de/aj lego/ntwn oi¸ me\n au)togrammh\n th\n dua/da, oi¸ de\ to\ eiådoj th=j grammh=j, eÃnia me\n ga\r eiånai to\ au)to\ to\ eiådoj kaiì ou to\ eiådoj (oiâon dua/da kaiì to\ eiådoj dua/dojŸ, e)piì grammh=j de\ ou)ke/ti.
Assim, cairíamos em um estrahnho caso de fundamentação ontológica, em que a
natureza inextensa do fundamento seria oposta à natureza extensa do fundamentado.
Aristóteles, por seu turno, não crê na possibilidade de um correlato inextenso do extenso
individual - isto é, que sua forma (eiådoj) - possa subsistir separadamente do próprio
indivíduo. É que a forma é o ser-prévio da coisa. Ora, o ser-prévio é idêntico à própria
coisa que o detém. A noção de uma unidade circular inextensa era por demais bizarra
para o Estagirita:
“Ora, dado que esta (a separação da matéria) parece possível, mas que não é
claro quando é possível, alguns filósofos levantaram o problema também a
propósito do círculo e do triângulo, considerando errado definir essas figuras
por meio de linhas e do contínuo, e sustentanto que também elas devem ser
consideradas do mesmo modo que a carne e os ossos do homem, o bronze e a
estátua. Por isso eles reduzem tudo aos números, e dizem que o enunciado da
linha se reduz à da díade. Alguns dos filósofos defensores das Idéias afirmam que
a díade é a linha em si: outros, ao contrário, afirmam que a díade é a forma da
linha, porque em alguns casos existe identidade entre forma e aquilo de que a
forma é forma como, por exemplo, no caso da díade e da forma da díade,
280
enquanto, no caso, da linha não existe. Mas então, segue-se que a forma de
muitas coisas, que parecem claramente ter formas diversas, é única (nessa
conseqüência já tinham incorrido os pitagóricos). E segue-se também que se pode
afirmar uma única forma como a forma de todas as formas e negar que as outras
seja formas; mas, desse modo, todas as coisas se reduziriam ao um.” (1036b8)
e)peiì de\ tou=to dokeiÍ me\n e)nde/xesqai aÃdhlon de\ po/te, a)porou=si¿ tinej hÃdh kaiì e)piì tou= ku/klou kaiì tou= trigw¯nou w¨j ou) prosh=kon grammaiÍj o(ri¿zesqai kaiì t%½ sunexeiÍ, a)lla\ pa/nta kaiì tau=ta o(moi¿wj le/gesqai w¨saneiì sa/rkej kaiì o)sta= tou= a)nqrw¯pou kaiì xalko\j kaiì li¿qoj tou= a)ndria/ntoj: kaiì a)na/gousi pa/nta ei¹j tou\j a)riqmou/j, kaiì grammh=j to\n lo/gon to\n tw½n du/o eiånai¿ fasin. kaiì tw½n ta\j i¹de/aj lego/ntwn oi¸ me\n au)togrammh\n th\n dua/da, oi¸ de\ to\ eiådoj th=j grammh=j, eÃnia me\n ga\r eiånai to\ au)to\ to\ eiådoj kaiì ou to\ eiådoj (oiâon dua/da kaiì to\ eiådoj dua/dojŸ, e)piì grammh=j de\ ou)ke/ti. sumbai¿nei dh\ eÀn te pollw½n eiådoj eiånai wÒn to\ eiådoj fai¿netai eÀteron (oÀper kaiì toiÍj Puqagorei¿oij sune/bainenŸ, kaiì e)nde/xetai eÁn pa/ntwn poieiÍn au)to\ eiådoj, ta\ d' aÃlla mh\ eiãdh: kai¿toi ouÀtwj eÁn pa/nta eÃstai.
Aristóteles leva, assim, até às últimas conseqüências o método filosófico de
redução de cada estrutura sensível a uma realidade mais simples que lhe corresponda. Ora,
se é possível afirmar a identidade entre a linha e a díade em razão da mera possibilidade
de construção da primeira a partir da segunda, nada há que impeça a redução de todas as
coisas à forma do um, pois o um é necessário à realidade de todas as coisas. Ocorre,
porém, que, no que tange às realidades sensíveis, não é possível reduzir tudo às estruturas
inextensas, isto é, às formas puras e sem matéria. O extenso é integrante necessário da
realidade sensível, mesmo quando não se trata de um sensível bruto, mas apenas
enquanto objeto de intelecção, como é o caso dos círculos e triângulos matemáticos, que
podem ser divididos, mas apenas na inteligência e imaginação. A unidade de todas estas
281
coisas é sempre uma unidade extensa, embora sua condição inextensa, a forma pura,
possa ser perfeitamente enunciada e compreendida na forma de uma definição.
A unidade da figura, o fato da figura ser “uma” é inseparável da própria figura,
justo porque é a esta que se refere. Logo, se a figura é sempre algo material, mesmo
quando meramente quanto à sua matéria inteligível, então a própria unidade da figura é
inconcebível sem alguma referência à própria materialidade, embora não haja relação de
identidade entre as duas noções. É daí a noção aristotélica de matéria inteligível. O
círculo inteligível não possui aquela matéria de bronze, e nem mesmo partes efetivas,
mas possui uma extensividade e um contínuo de partes potenciais. O baricentro cognitivo
e ontológico da coisa não existe sem a própria coisa, pois a unidade da coisa decorre de
seu próprio ser, sendo “o mesmo cada um e seu ser”. Deste modo se torna claro o sentido
deste passagem do Livro VII:
“De fato, o ser do círculo e o círculo são o mesmo, assim com a alma e o ser da
alma. Quanto ao concreto como, por exemplo, este círculo ou um círculo
particular, seja ele sensível ou inteligível, (por círculo inteligível entendo, por
exemplo, os círculos matemáticos, e por círculo sensível entendo, por exemplo, os
círculos de bronze e madeira), deste não há definição, mas é conhecido somente
por sensação ou intelecção. ” (1036a1)
to\ ga\r ku/kl% eiånai kaiì ku/kloj kaiì yuxv= eiånai kaiì yuxh\ tau)to/. tou= de\ suno/lou hÃdh, oiâon ku/klou toudiì kaiì tw½n kaq' eÀkasta/ tinoj hÄ ai¹sqhtou= hÄ nohtou= (le/gw de\ nohtou\j me\n oiâon tou\j maqhmatikou/j, ai¹sqhtou\j de\ oiâon tou\j xalkou=j kaiì tou\j culi¿nouj) tou/twn de\ ou)k eÃstin o(rismo/j, a)lla\ meta\ noh/sewj hÄ ai¹sqh/sewj gnwri¿zontai.
Quando se trata dos entes que possuem um correspondente sensível, é muito
difícil separar de fato a sensibilidade primitiva do inteligível apreendido pelo ato
282
abstrativo da cognição. Somente quando o próprio ser do ente a ser considerado prescinde
da matéria para ser concebido, é que podemos então discorrer sobre sua possibilidade – e
mesmo a necessidade – de separação relativamente ao sensível em geral. A inteligência é
um ente de tal natureza. A efetividade que lhe é própria já a distingue da matéria. Não
fosse assim, não haveria a possibilidade de seu conceito, pois a matéria não poderia
inteligir a si mesma. O inteligir se distingue, justo enquanto atingir, do objeto de
intelecção, na exata medida em que se insere como seu correlativo no efeito da intelecção.
O inteligir, portanto, é a única forma-idéia que pode ser atingida como separada do
sensível, visto que o próprio ente já deve assim ser considerado. Somente a forma supra-
sensível do motor imóvel permitiria falar em “baricentro” subsistente. A Inteligência
Ativa do Da Alma e o Motor Imóvel – inteligência da inteligência - realizam
definitivamente essa possibilidade doutrinal em Aristóteles.
Aristóteles critica as Idéias de Platão por considerá-las inúteis para explicar o
movimento e a geração dos seres:
“Se houver algo motriz e produtivo, mas que na seja efetivo, não haverá
movimento. De fato, é possível que o potencial não se torne efetivo. Portanto, não
teremos nenhuma vantagem se introduzirmos essências eternas, como fazem os
defensores da teoria das formas, se não está presente nelas um princípio capaz de
produzir a transição; portanto, não é suficiente esse tipo de essência, nem a outra
que eles introduzem além das Idéias; se essas essências não forem efetivas, não
existirá movimento.” (1071b11)
¹Alla\ mh\n ei¹ eÃsti kinhtiko\n hÄ poihtiko/n, mh\ e)nergou=n de/ ti, ou)k eÃstai ki¿nhsij: e)nde/xetai ga\r to\ du/namin eÃxon mh\ e)nergeiÍn. ou)qe\n aÃra oÃfeloj ou)d' e)a\n ou)si¿aj poih/swmen a)i+di¿ouj, wÐsper oi¸ ta\ eiãdh, ei¹ mh/ tij duname/nh e)ne/stai a)rxh\ metaba/llein: ou) toi¿nun ou)d' auÀth
283
i¸kanh/, ou)d' aÃllh ou)si¿a para\ ta\ eiãdh: ei¹ ga\r mh\ e)nergh/sei, ou)k eÃstai ki¿nhsij.
O Filósofo acusa também de obscura o noção de um “participar” (mete/xein) das
Idéias pelos seres, não se compreendendo o modus operandi desse processo. Em um
primeiro momento, se levado ao extremo, o rigor de Aristóteles poderia colocá-lo diante
de problemas semelhantes. Pareceria que o “desejo” pelo motor imóvel, noção funcional
e heuristicamente análoga a de participação, dispõe de tão escassas determinações
intrínsecas quanto seu correlato platônico. Contudo, são dois os motivos que realmente
decidem a favor de seu emprego por Aristóteles: a) o conceito de desejo, ao contrário do
de participação, não torna necessário uma essencialização dos universais; b) desejo
implica impulso de movimento em um ser, ponto fulcral da física e metafísica
aristotélicas. O Filósofo sempre esteve convicto de que a filosofia genuinamente
explicativa da natureza deve, necessariamente, tornar racional o movimento.
Analisemos o problema mais de perto. O motor imóvel não suscita desejo em
todos os seres. O motor imóvel é responsável (aiãtion) apenas pelo ser do primeiro
movido, a primeira esfera. Todos os demais movimentos ocorrem por contato, pela
“impressão” da forma do motor na matéria do movido. Em ambos os casos não há
causação por um universal, sendo sempre um indivíduo o prévio portador do ser móvel
de outro indivíduo. Além disso, há sempre uma relação direta e intransferível entre motor
e movido, pois no contato não há distância alguma entre ambos – visto que esta é a noção
pressuposta pelo contato – assim como entre o motor imóvel e o primeiro movido,
porquanto não pode haver distância entre uma essência extensa e uma essência inextensa.
284
Quanto às Idéias, a situação é bem diferente. A relação entre Idéia e “ideado”,
embora direta, não é exclusiva e intransferível. Cada Idéia é causa de todos os ideados
que dela participam, atuando, pois, como um universal, sendo atribuído (predicado) de
muitos seres. Além disso, embora possa estar implícita, na doutrina de Platão, a plena
efetividade das Idéias, isto não foi nitidamente esclarecido, deixando em aberto o modo
de realidade destas, embora determinando sua completa perfeição e auto-suficiência.
Caberia, portanto, a pergunta: as Idéias de Platão são potências efetivadoras ou
efetividades puras? Contudo, a possibilidade de uma resposta satisfatória a tal pergunta
depende de um aprofundamento radical da filosofia de Platão, coisa que foge ao nosso
escopo, embora de importância metafísica inegável. Voltemos a Aristóteles.
É preciso distinguir entre a noção de universal, tal como até Aristóteles fora
empregado no vocabulário filosófico, e a transformação que vemos ser operada neste
conceito no Livro VI da Metafísica. É notável que ali Aristóteles afirme dois modos de
universalidade. Além daquilo que é predicado de muitos, há também o universal na
acepção do que há de mais elevado em uma hierarquia de seres e que, em virtude desta
anterioridade, determina sua natureza e e o sentido mesmo da hierarquia de que todos
fazem parte. Neste sentido Aristóteles havia afirmado a universalidade da filosofia
primeira:
“Se não há outra essência além daquelas constituídas pela natureza, a física será
a ciência primeira. Se, ao contrário, existe uma essência imóvel, a ciência desta
será anterior e será filosofia primeira, e desse modo, ou seja, enquanto primeira,
ela será universal.” (Met. 1026a28)
285
ei¹ me\n ouÅn mh\ eÃsti tij e(te/ra ou)si¿a para\ ta\j fu/sei sunesthkui¿aj, h( fusikh\ aÄn eiãh prw¯th e)pisth/mh: ei¹ d' eÃsti tij ou)si¿a a)ki¿nhtoj, auÀth prote/ra kaiì filosofi¿a prw¯th, kaiì kaqo/lou ouÀtwj oÀti prw¯th:
É sob este aspecto que podemos considerar o motor imóvel como universal. Este
modo de universalidade tem algo em comum com o primeiro. O que há de comum é justo
o que podemos tomar como a idéia originária de universalidade: a centralidade de
referência. De fato, aquilo que é predicado de muitos é sempre referido em cada
efetividade de identificação dos respectivos sujeitos. De modo análogo, o topo de um
sistema hierárquico é ponto de referência para os demais integrantes da série, justo em
relação ao critério que serve de base para o reconhecimento da série. Ora, o grau de
autonomia relativamente à matéria é fundamental na divisão da scala naturae aristotélica.
Então é justo aí que residirá a centralidade cósmica do motor imóvel e sua conseqüente
universalidade. Há um princípio que se aplica à totalidade das essências e, portanto, afeta
a completa esfera dos entes. Seu enunciado poderia ser: Quanto mais próximo do estado
de completa autologia da essência imóvel - sumamente realizada pela sua natureza
imaterial – mais elevado será o nível ontológico de uma essência.
Outra aparente incongruência no tratamento dispensado às Idéias e ao Motor
Imóvel repousa no critério da definibilidade.
Aristóteles denuncia a indefinibilidade das Idéias platônicas, assim como a dos
indivíduos em geral. As Idéias, enquanto realidades individuais, não podem ser expressas
por noções comuns. No entanto, o motor imóvel, sendo também um indivíduo, cai na
mesma esfera de indefinibilidade, embora o Filósofo em momento algum tenha percebido
algum problema nisso. Justo quanto a este ponto, há uma crítica que se faz relativamente
a uma suposta incongruência no próprio interior da metafísica aristotélica no propósito de
286
uma culminação teológica. Embora totalmente válida, há que se respeitar, primeiramente,
as exigências mesmas que o Filósofo se faz enquanto buscador desta ciência.
Por que Aristóteles exige das Idéias o mesmo tratamento epistemológico
dispensado aos indivíduos sensíveis, embora não faça o mesmo com o motor imóvel?
Identificar aqui um puro recurso sofístico seria desconsiderar um intelecto assaz rigoroso
e transparente como o de Aristóteles.
Em sua Ética a Nicômaco poderemos iniciar uma tentativa de resposta mais
satisfatória. Ali o Filósofo declara maia uma vez sua discordância radical quanto ao
método de buscar os princípios das coisas “duplicando” as próprias coisas em uma esfera
de entidades eternas:
“Igualmente o bem não será mais” bem “pelo fato de ser eterno, da mesma
maneira como aquilo que dura mais não é mais branco do que aquilo que perece
no espaço de um dia.” (EN 1096b.5)
a)lla\ mh\n ou)de\ t%½ a)i¿dion eiånai ma=llon a)gaqo\n eÃstai, eiãper mhde\ leuko/teron to\ poluxro/nion tou= e)fhme/rou.
A ironia de Aristóteles repousa em explicitar que a noção de um branco em si, o
branco absoluto, quer dizer, sua Idéia, detém um caráter tão quanto o branco sensível,
ainda que a duração deste último seja irrisória se comparada à eternidade do que seria sua
Idéia. Aristóteles não discorda quanto à necessidade de aceitar determinadas realidades
imateriais ao lado das materiais. Apenas percebe a insuficiência em buscar princípios a
maneira de semelhanças com as coisas sensíveis. As Idéias seriam, de certa forma,
sensíveis. É o que lemos no Livro B da Metafísica:
“Entre os muitos absurdos dessa doutrina, o maior consiste em afirmar, por um
lado, que existem outras coisas além daquelas deste mundo e afirmar, por outro
287
lado, que são iguais às sensíveis, com a única diferença de que umas são eternas
e outras corruptíveis. Eles afirmam, de fato, que existe um “homem em si”, um
“cavalo em si”, uma “saúde em si”, sem acrescentar nada além, comportando-se,
aproximadamente, como os que afirmam a existência de deuses, mas fazendo-os
humanos.” (997b10)
pollaxv= de\ e)xo/ntwn duskoli¿an, ou)qeno\j hÂtton aÃtopon to\ fa/nai me\n eiånai¿ tinaj fu/seij para\ ta\j e)n t%½ ou)ran%½, tau/taj de\ ta\j au)ta\j fa/nai toiÍj ai¹sqhtoiÍj plh\n oÀti ta\ me\n a)i¿+dia ta\ de\ fqarta/. au)to\ ga\r aÃnqrwpo/n fasin eiånai kaiì iàppon kaiì u(gi¿eian, aÃllo d' ou)de/n, paraplh/sion poiou=ntej toiÍj qeou\j me\n eiånai fa/skousin a)nqrwpoeideiÍj de/:
Não deve estranhar, portanto, que padeçam das mesmas insuficiências
epistemológicas das coisas sensíveis. Se para estas últimas a indefinibilidade é sinal de
inadequação de suas existências com seu conceito, da mesma forma serão imperfeitas as
Idéias, na exata medida em que são indefiníveis.
O ser da Idéia é tomado como algo inevitavelmente referente a algo fora de si, à
totalidade das coisas das quais é a unidade, o “comum” que a todas abarca. As coisas são
expressões das Idéias. Expressam, de modo limitado, o seu ser. As Idéias, por seu turno,
diante da mente filosófica, surgem como expressões últimas e acabadas das coisas. Há,
portanto, uma relação de reciprocidade entre coisa e Idéia que atinge a própria estrutura
de ambas, ainda que a palavra final seja sempre: “as Idéias são auto-suficientes”. No
entanto, a despeito desta reciprocidade, a coisa não pode ser definida pela Idéia e a Idéia
não pode ser definida pela coisa. Embora uma seja expressão da outra, não podem ser
apreendidas pela mais exata das expressões: o enunciado (lo/goj) da definição. Eis a
incongruência doutrinária que o Filósofo aponta neste sistema de descrição da realidade.
288
Por outro lado, o motor imóvel, desde o princípio, não precisa ser expresso. Segue
a razão desta prerrogativa.
O motor imóvel, assim como a Idéia, é uma realidade supra-sensível. É supra-
sensível, porém, não somente pela imutabilidade, mas pela própria estrutura ontológica,
que escapa a qualquer semelhança imagética com o sensível. Enquanto o branco em si é
tão branco quanto o branco sensível, entre a “inteligência da inteligência” e a inteligência
humana não há termo de comparação fora a mera identificação de ambos como
faculdades cognitivas, justo o que permite a fraca homonímia. A inteligência infinita
apreende seu objeto de uma só vez, quer dizer, sem percorrer suas distintas partes,
porquanto estas não existem na simplicidade de seu objeto. Além disso, algo também sem
correlato sensível é próprio de uma inteligência supra-sensível: coincide totalmente com
o seu objeto, pois “nas coisas que não têm matéria inteligência e o objeto de intelecção
são o mesmo”. Não poder ser expresso em uma definição não é algo que ocorra ao motor
imóvel por mera concomitância. Isto pertence à sua própria constituição ontológica, cuja
natureza mal pode ser inteligida, pois toda a inteligência humana é finita. Ora, a distância
entre o finito e o infinito é sempre infinita, não importa o quanto o finito é expandido em
seu horizonte.
Além disso, embora indefinível, o motor imóvel é a essência que mais se
aproxima do que poderia ser sua própria definição, a saber, a fornecida no livro L, de
“inteligência da inteligência”. Enquanto as essências sensíveis se distinguem umas das
outras através da matéria – realidade estranha à forma expressa na definição e que além
disso impede a permanência temporal do ente definido – a essência supra-sensível só
pode se distinguir de outra do mesmo gênero por alguma nota intra-definitória, isto é, por
289
algo já implícito na definição comum – a inteligência da inteligência – ainda que
atualizada de um modo diverso em ambas. Que nota seria essa, que diferença haveria
entre uma auto-intelecção e outra, que distingue os motores imóveis entre si é coisa não
tratada por Aristóteles, ao menos não explicitamente. O máximo que podemos fazer é
efetuar conjecturas razoáveis a partir de outras tematizações do Filósofo.
Com o fito de arrematar a idéia da unidade autológica como superior àquela da
inteligência e, portanto, à totalidade dos entes, temos de retomar aqui a reflexão acerca da
natureza da estrutura da auto-intelecção infinita para determinar a distinção entre esta e
outra auto-intelecção que passa muitas vezes passa desapercebida no âmbito da filosofia
aristotélica: a auto-intelecção humana. É que muitos vêem, na passagem do De Anima
em que ela é expressa, apenas uma referência deslocada àquela auto-referência já
conhecida do motor imóvel.
Naquela passagem do De Anima acerca da auto-intelecção, cujas dificuldades
mencionamos brevemente no capítulo anterior, ficou claro que o problema da inteligência
em Aristóteles é passível de duas perspectivas, uma das quais relativa ao processo de
cognição em geral, enquanto a outra tem por função tornar verossímil a imortalidade do
princípio cognitivo da alma. Ora, tal possibilidade estava seriamente ameaçada desde que
se reconheceu a impossibilidade de a inteligência inteligir sem imagens. Restava somente
a auto-intelecção como única operação totalmente não-sensível da inteligência e, portanto,
podendo ser imortal.
A essência da inteligência finita, portanto, compartilha com a essência da
inteligência infinita a autologia cognitiva. Qual seria, então, a distinção abismal que deve
separar uma essência finita de outra infinita? A resposta pode ser encontrada na própria
290
estrutura da infinitude imóvel tal como pensada por Aristóteles, que nada tem a ver com a
infinitude própria da quantificação indefinida. A autologia da essência finita não se
mantém pura, não se completa em si mesma, estando sempre associada a uma certa
heterologia. Há sempre um ente extrínseco à inteligência que deve ser pensado, ainda que
a auto-referência cognitiva, como vimos, seja sempre anterior à cognição dos inteligíveis.
E embora os objetos inteligíveis sejam, de certa forma, produzidos na própria inteligência,
não devemos tomar tal produção93 (poi¿esij) em sentido absoluto. De fato, o ser de cada
objeto pode, sempre, ser distinguido do ser da inteligência:
“Pois o ser da intelecção e o ser do inteligível não são o mesmo.” (1074b38)
ou)de\ ga\r tau)to\ to\ eiånai noh/sei kaiì nooume/n%. Não se trata, pois, de uma pura autologia, pois de certo modo também a
inteligência sai de si em direção ao ser do inteligível, ainda que todo o efeito retorne à
inteligência como sua condição. Além disso, tal condição não é suficiente, pelo fato de
cada 'produção interna' de um inteligível pressupor sempre um certo estímulo sensível
externo, uma certa imagem, sem a qual o correlato não-sensível não tem razão para surgir
na inteligência. Sendo assim, a auto-inteligência finita não atinge seu télos de modo
completo e auto-suficiente e, como o próprio télos significa completude, sob este aspecto
ela nem mesmo o atinge ou o faz de modo sempre provisório. Não há, pois genuína
autotelia aqui.
Devemos, portanto, estabelecer a autotelia como o princípio genuinamente
distintivo entre o quarto e o quinto nível, entre as duas espécies de auto-inteligência.
93 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
291
A auto-inteligência finita, ainda que possa atingir a si mesma, não tem por
completude esta intelecção, mas deve remeter aos outros objetos inteligíveis. Sua auto-
referência é real e efetiva, mas não é completa. Sua completude reside fora si, pois só
haverá verdadeira cognição em presença de algo diverso de si. Aqui há, pois, heterologia.
O motor imóvel, ao contrário, completa de modo auto-suficiente sua cognição própria,
pois concentra em si toda a plenitude possível e, por isso, não tem necessidade de um
cógnito extrínseco que garanta a perfeição deste efeito. É por isso que o motor imóvel
não intelige nada fora de si pois tal coisa seria antes uma imperfeição do que uma
perfeição. Se dependesse de algo fora de si, estaria sempre na dependência do advento
deste algo, sempre em potência para ele, o que contradiz sua já estabelecida pureza
efetiva:
“Em primeiro lugar, se não é inteligência efetiva, mas potencial, logicamente a
continuidade da intelecção seria extenuante para ela. Ademais, é evidente que
alguma outra coisa seria mais digna de honra do que a inteligência, a saber, o
inteligível. De fato, o inteligir e a intelecção pertencem a quem intelige a coisa
mais indigna: de modo que, se isso deve ser evitado (de fato, é melhor não ver
certas coisas do que vê-las), o que há de mais excelente não pode ser a intelecção.
Portanto, se a inteligência é o que há de mais excelente, então intelige a si mesma,
e sua intelecção é intelecção da intelecção.” (1074b30)
prw½ton me\n ouÅn ei¹ mh\ no/hsi¿j e)stin a)lla\ du/namij, euÃlogon e)pi¿ponon eiånai to\ sunexe\j au)t%½ th=j noh/sewj: eÃpeita dh=lon oÀti aÃllo ti aÄn eiãh to\ timiw¯teron hÄ o( nou=j, to\ noou/menon. kaiì ga\r to\ noeiÍn kaiì h( no/hsij u(pa/rcei kaiì to\ xei¿riston noou=nti, wÐst' ei¹ feukto\n tou=to (kaiì ga\r mh\ o(ra=n eÃnia kreiÍtton hÄ o(ra=nŸ, ou)k aÄn eiãh to\ aÃriston h( no/hsij. au(to\n aÃra noeiÍ, eiãper e)stiì to\ kra/tiston, kaiì eÃstin h( no/hsij noh/sewj no/hsij. Cabe, porém, a pergunta: a distinção entre a inteligência e o inteligível se aplica à
natureza da auto-ciência do motor imóvel? Se este for o caso, ainda estaremos diante de
292
uma autologia imperfeita, um último resquício de heterologia. A mesma indagação foi
feita pelo Filósofo:
“Todavia, parece que a ciência, a sensação, a opinião e o raciocínio têm
sempre por objeto algo diferente de si, e só de modo inefetivo têm a si mesmos
por objeto. Além disso, se uma coisa é inteligir e outra o ser inteligido, de qual
dos dois deriva para a inteligência sua excelência? De fato, o ser do inteligir e o
ser do inteligível não são o mesmo.” (1074b35)
fai¿netai d' a)eiì aÃllou h( e)pisth/mh kaiì h( aiãsqhsij kaiì h( do/ca kaiì h( dia/noia, au(th=j d' e)n pare/rg%. eÃti ei¹ aÃllo to\ noeiÍn kaiì to\ noeiÍsqai, kata\ po/teron au)t%½ to\ euÅ u(pa/rxei; ou)de\ ga\r tau)to\ to\ eiånai noh/sei kaiì nooume/n%. Tal coisa não pode ocorrer, posto que aqui deve residir a plena auto-enunciação
do ente, sem qualquer indício de dependência de outro ente extrínseco. Todavia, não pode
haver uma exceção a tal regra, pois se trata de uma distinção evidente por si mesma,
como aquela entre correlatos. A natureza única desta intelecção deve, portanto,
condicionar uma nova possibilidade cognitiva, que não invalide tal regra, mas que
tampouco esteja no âmbito de sua aplicação:
“Na realidade, em alguns casos, a própria ciência constitui o objeto: nas ciências
produtivas, por exemplo, o objeto é a essência imaterial e o ser-prévio, e nas
ciências teoréticas o objeto é o próprio enunciado e intelecção da coisa. Portanto,
não sendo diferentes o ser do inteligir e o do inteligível, nas coisas imateriais
serão o mesmo, e a inteligência e o inteligível serão um só.” (1075b38)
hÄ e)p' e)ni¿wn h( e)pisth/mh to\ pra=gma, e)piì me\n tw½n poihtikw½n aÃneu uÀlhj h( ou)si¿a kaiì to\ ti¿ hÅn eiånai, e)piì de\ tw½n qewrhtikw½n o( lo/goj to\ pra=gma kaiì h( no/hsij; ou)x e(te/rou ouÅn oÃntoj tou= nooume/nou kaiì tou= nou=, oÀsa mh\ uÀlhn eÃxei, to\ au)to\ eÃstai, kaiì h( no/hsij t%½ nooume/n% mi¿a.
293
Agora podemos obter um esclarecimento acerca da relação inteligência-inteligível
no motor imóvel. Aqui também vale o princípio da distinção do ser de cada um dos
termos. Contudo, não há aqui espaço para uma aplicação significativa. Isto porque o ente
inteligível e o ente inteligente são um só. O elemento que intelige é isto mesmo que é
inteligido. Na verdade, trata-se, preferencialmente, de um único inteligente, se adotamos
a perspectiva da totalidade essencial do motor imóvel. Somente sob a perspectiva da
autologia cognitiva, que força o direcionamento da inteligência para dentro de si mesma,
como que se duplicando em dois inteligíveis, é que surgem, de certo modo, dois entes que
se inteligem, que na verdade são um só e são menos inteligíveis que inteligentes. É que só
podemos falar de “ser inteligível” porque há um ser auto-inteligente e não porque haja
realmente um objeto cuja natureza seja “ser inteligível”. O inteligir é a condição de
possibilidade do objeto de intelecção, e não o contrário. É assim que podemos
compreender de um modo mais pleno outra distinção que, de outro modo, seria inefetiva:
aquela entre a coincidência inteligência-inteligível finita e a infinita. De fato, esta
coincidência já havia sido atribuída à própria inteligência humana, no De Anima. Ocorre
apenas que, neste caso, como vimos acima tal coincidência não é a efetivação de uma
autologia pura. A identidade inteligência-inteligível na imaterialidade da inteligência
finita não se basta a si mesma, sendo sempre resultado de um processo de refinamento, de
separação que vai desde o sensível bruto até o puro inteligível, que portanto só foi
atingido porque, primeiramente, houve um sensível primeiro. E a referida dependência
vale mesmo quando se trata da própria auto-cognição da inteligência humana, que em
nenhum momento é descrito em um âmbito totalmente apartado das outras cognições. O
294
mais próximo deste isolamento é a constatação de que a inteligência é imortal e anterior à
vida atual do indivíduo, mas nenhuma garantia é dada acerca da real possibilidade de
uma auto-cognição independente de qualquer vínculo com a sensibilidade, ou seja, no
interior de uma estrutura heterológica. É como se a inteligência finita só tivesse ciência
de seu próprio ser inteligível após a intelecção dos outros inteligíveis.
A inteligência infinita, por seu turno, assume integralmente a condição de sua
estrutura, de modo que é a única a se identificar totalmente com seu próprio ser. Sua
auto-cognição é eterna sob todos os aspectos da eternidade. Além da sepração da matéria
prórpria de toda essência auto-ciente, não é o extremo natural de qualquer processo de
refinamento cognitivo. Ao contrário da inteligência finita, apreende a si mesma em um
momento indivisível e em todo o seu ser. Tal momento, além de ser abarcar todos os
outros por ser eterno, é o suporte de todos os momentos, pois decorre de uma perfeição
que produz, teleologicamente, a todos os eles. Com efeito, cada momento finito e
transitório, possui, em sua efetivação, algo da infinitude do momento auto-ciente do
motor imóvel. Aqui entramos em outra esfera da teologia aristotélica. Até agora
aprendemos a essêcia do motor imóvel partindo da necessidade da escala autológica de
que o nível seguinte contenha, de um modo mais pleno, tudo o que há no nível anterior.
Em razão deste fato ontológico, submetemos o motor imóvel a reflexões de ordem
psicológica e gnosiológica, para que pudéssemos perceber o exato modo de superação da
estrutura anímica e, principalmente, intelectiva efetivada pelo motor imóvel
relativamente ao representante imediatamente inferior: a inteligência finita. Por isso o Da
Alma foi tão importante neste exame, pois ali ficou clara o limite cognitivo desta espécie
de inteligência, assim como a possibilidade e a conseqüente necessidade (segundo o
295
princípio de plenitude) de buscarmos uma esfera ôntica em que tal limite fosse transposto.
Este limite, pelo que concluímos, é de ordem cinética e cronológica. A auto-ciência da
essência supra-sensível é a máxima possível, mas auto-ciência não é, como vimos, seu
traço distintivo. Esta espécie de auto-ciência só demonstra sua perfeição suprema na
medida em que é eterna e imóvel. Não é a toa que, em Aristóteles, a referência mais usual
a este ente não é ‘auto-inteligência’ e sim ‘motor imóvel’. Ora, se a física trata de tudo o
que se move, a superação efetivada pelo motor imóvel é uma superação de toda a ciência
física.
Então, posto que a reflexão agora é de ordem cinético-temporal, voltemos aquele
‘algo’ que cada momento finito carrega do momento inteligível do motor imóvel. Este
algo é justamente o caráter infindável de cada momento, que torna cada momento
presente uma certeza da ulterior presença de outro momento. Esta é justamente a prova
cronológica da infinitude do movimento:
“Mas é impossível que o movimento se gere ou se corrompa, porque ele sempre
foi, e também não é possível que se gere ou se corrompa o tempo, porque não
poderia haver o antes e o depois se não existisse o tempo. Portanto, o movimento
é contínuo, assim como o tempo: de fato, o tempo ou é a mesma coisa que o
movimento ou uma passibilidade do movimento.” (1071b6)
a)ll' a)du/naton ki¿nhsin hÄ gene/sqai hÄ fqarh=nai (a)eiì ga\r hÅnŸ, ou)de\ xro/non. ou) ga\r oiâo/n te to\ pro/teron kaiì uÀsteron eiånai mh\ oÃntoj xro/nou: kaiì h( ki¿nhsij aÃra ouÀtw sunexh\j wÐsper kaiì o( xronoj: hÄ ga\r to\ au)to\ hÄ kinh/sew¯j ti pa/qoj.)
A prova acima está implícita, já supondo uma prévia leitura de um trecho da
Física em que a conexão agora-antes-depois é explicitada. O que devemos guardar destas
palavras do livro L é que o movimento e o tempo estão implicados um no outro, pois o
296
tempo é uma passibilidade numérica do movimento, ou seja, decorre de cada movimento
ser passível de ser numerado relativamente a outros movimentos. O tempo, então, é o
próprio movimento, porém numerado. É por isso que o Filósofo não faz distinção entre o
tempo ser o próprio movimento ou uma passibilidade (pa/qoj) deste. Como ficou claro,
trata-se de duas afirmações equivalentes. E tal indissociabilidade entre tempo e
movimento possibilita demonstrações de propriedades de um a partir do exame da
natureza do outro. Em sua Física, Aristóteles apresenta a prova que, na passagem acima,
ficou implícita, a saber, a infitude do tempo a partir da constituição anterior-posterior de
todo agora:
“Posto que o agora é a consumação e o princípio do tempo, mas não do
mesmo tempo, mas sim consumação do que passou e princípio do que virá, segue
que, assim como no círculo o convexo e o côncavo estão, em certo sentido, no
mesmo, assim também o tempo está sempre em princípio e em consumação, e por
isso parece sempre distinto, pois o agora não é o princípio e a consumação do
mesmo. Com efeito, se assim fosse, seria dois opostos ao mesmo tempo e segundo
o mesmo. Logo, segue também que o tempo não se consumirá, pois está sempre
no princípio.” (222b)
e)peiì de\ to\ nu=n teleuth\ kaiì a)rxh\ xro/nou, a)ll' ou) tou= au)tou=, a)lla\ tou= me\n parh/kontoj teleuth/, a)rxh\ de\ tou= me/llontoj, eÃxoi aÄn wÐsper o( ku/kloj e)n t%½ au)t%½ pwj to\ kurto\n kaiì to\ koiÍlon, ouÀtwj kaiì o( xronoj a)eiì e)n a)rxv= kaiì teleutv=. kaiì dia\ tou=to dokeiÍ a)eiì eÀteroj: ou) ga\r tou= au)tou= a)rxh\ kaiì teleuth\ to\ nu=n: aÀma ga\r aÄn kaiì kata\ to\ au)to\ ta)nanti¿a aÄn eiãh. kaiì ou)x u(polei¿yei dh/: ai¹eiì ga\r e)n a)rxv=.
Assim, a lição que podemos apreender da natureza do agora é que o tempo está
sempre começando. Cada agora, embora seja sempre terminal, é sempre a gênese de um
novo começo, ou melhor, ele mesmo é este começo juntamente com seu caráter terminal
297
relativamente ao agora passado. Assim, esta constatação do auto-principiar perpétuo do
agora deve ser transferido para a concepção do tempo e do movimento em geral:
“Além disso, como poderia haver um antes e um depois se não existisse o tempo?
E mais: como poderia existir o tempo se não existisse o movimento? Pois, se o
tempo é o número do movimento e, além disso, de um certo movimento, e posto
que o tempo existe sempre, então é necessário que o movimento seja eterno. [...]
Pois se o tempo não pode existir nem ser passível de intelecção sem o agora, e se
o agora é um certo meio, tendo de uma só vez um princípio e uma consumação, o
princípio do tempo futuro e a consumação do tempo passado, então o tempo tem
que exisitir sempre. Com efeito, o extremo do último tempo que podemos tomar
tem que ser algum agora (pois no tempo não podemos captar nada fora do agora.
Conseqüentemente, posto que o agora é, de uma só vez, princípio e consumação,
tem que haver necessariamente um tempo em ambas as direções. Mas se é assim
para o tempo, é evidente que também tem que sê-lo para o movimento, posto que
o tempo é uma passibilidade do movimento. ” (251b12-251b29)
pro\j de\ tou/toij to\ pro/teron kaiì uÀsteron pw½j eÃstai xro/nou mh\ oÃntoj; hÄ xro/noj mh\ ouÃshj kinh/sewj; ei¹ dh/ e)stin o( xro/noj kinh/sewj a)riqmo\j hÄ ki¿nhsi¿j tij, eiãper a)eiì xro/noj eÃstin, a)na/gkh kaiì ki¿nhsin a)i¿+dion eiånai.[...] ei¹ ouÅn a)du/nato/n e)stin kaiì eiånai kaiì noh=sai xro/non aÃneu tou= nu=n, to\ de\ nu=n e)sti meso/thj tij, kaiì a)rxh\n kaiì teleuth\n eÃxon aÀma, a)rxh\n me\n tou= e)some/nou xro/nou, teleuth\n de\ tou= parelqo/ntoj, a)na/gkh a)eiì eiånai xro/non. to\ ga\r eÃsxaton tou= teleutai¿ou lhfqe/ntoj xro/nou eÃn tini tw½n nu=n eÃstai (ou)de\n ga\r eÃsti labeiÍn e)n t%½ xro/n% para\ to\ nu=nŸ, wÐst' e)pei¿ e)stin a)rxh/ te kaiì teleuth\ to\ nu=n, a)na/gkh au)tou= e)p' a)mfo/tera eiånai a)eiì xro/non. a)lla\ mh\n eiã ge xro/non, fanero\n oÀti a)na/gkh eiånai kaiì ki¿nhsin, eiãper o( xro/noj pa/qoj ti kinh/sewj.
Na passagem 1071b6 da Metafísica, ficou claro que o antes e o depois não podem
existir sem o tempo. Nestas duas passagens da Física, percebemos que todo agora é
simultaneamente, um antes e um depois, o que torna infinito o tempo e o movimento,
pois o primeiro e o último agora que pudéssemos supor deveria conter, na própria
298
suposição, a estrutura anterior-posterior que anularia a própria suposição de que são o
primeiro e o último agora. Além disso, a última passagem estabelece uma verdade
complementar àquela acerca da natureza temporal de todo antes e depois. Agora vimos
que, além de todo tempo pressupor um antes e um depois, todo antes e depois também
pressupõe o tempo. Deste modo, é descartada a possibilidade de que a infinitude da série
anterior-posterior não implique também uma infinitude da série temporal.
A infinitude das séries relativas ao movimento, tempo e agora são perspectivas de
um mesmo fato ontológico: a infinitude da transição em geral, própria do âmbito sensível
do universo. O que fica mais evidente nesta infinitude é seu caráter eminentemente
heterológico, isto é, o fato de cada instância ôntica da série sempre enunciar, no próprio
momento de sua efetivação, algo além de si mesmo. Um movimento sempre enuncia
outro movimento ou sua própria negação, o repouso, assim como o lapso de tempo que o
numera. Do mesmo modo, se formos mais avante neste exame, para atingirmos a
instância não-temporal do tempo, isto é, o agora, encontraremos a mesma heterologia, a
mais fundamental de todas, porquanto a que revela mais nitidamente o caráter sempre
fragmentador de toda e qualquer transição, que é sempre um sair de si mesmo. Com
efeito, até o mais infinitésimo agora apercebido revela, em sua estrutura constituinte, a
antítese anterior-posterior que leva ao advento e enunciação de outro agora.
Embora a estrutura do agora, por si mesma, revele a potência reprodutiva infinita
do tempo, sabemos que a verdade deste fato se deve aquilo de que o tempo é a
passibilidade numérica: o movimento. É por este ser infinitamente passível de reprodução
que há um tempo infinito. O movimento circular das esferas é perpétuo, e isto decorre da
necessidade com que efetua a continuidade seu movimento. Mas tal necessidade decorre
299
apenas da impossibilidade de tal movimento, por si mesmo, implicar sua neutralização,
pois na circunferência não há começo nem fim. É por isso que o movimento também não
tem em si mesmo a causa de seu caráter infinito, pois cada movimento pode ou não ser,
ou seja, é sempre potencial até o momento de sua efetivação, e uma soma infinita de
movimentos potenciais não fornece uma certeza de eternidade. E até o movimento das
esferas poderia não ser, caso não houvesse nada além de esferas movendo esferas. A
causa, portanto, deve ser buscada em uma instância superior ao movimento. Desta vez,
contudo, não será em algo de que o movimento é passibilidade, pois se trata, aqui, do
próprio existir e estar presente da coisa. Trata-se de encontrar uma possibilidade de ser
que seja sempre efetiva, porquanto pura efetividade. Uma efetividade causa de sua
própria efetividade. Neste caso, a própria noção de causalidade é afetada e perde parte de
sua significação, pois equivale também a dizer que a efetividade pura não tem causa além
si somente porque não tem causa alguma, nem em si mesma. A pura efetividade é puro
efeito. Certamente não será puro efeito como se houvesse um puro vazio de onde é
lançado tal efeito, que nada teria o que o preceder. Tal imagem é precária, visto que não
há antes ou depois no motor imóvel. Portanto, é o caso, sobretudo, de um efeito que
mantém relaçâo com seu próprio ser, isto é, com sua própria efetividade, que consiste em
intelecção. Ora, se o movimento é o estar presente da coisa, o que diremos dos dois
últimos estágios dinâmicos - a esfera sempre móvel e a inteligência imóvel? O móvel
eterno, sendo algo que jamais deixa de estar presente, era o penúltimo estágio desta
escala de progressão presentificadora. A imobilidade que a ultrapassa é o estar para
sempre e integralmente presente a si mesmo. A auto-intelecção do motor imóvel não é
mais do que esta presença absoluta a si mesmo. A própria significação do termo
300
intelecção perde muito de seu conteúdo semântico usual ao ser aplicado ao motor imóvel,
e não devido a um enfraquecimento de sua virtude cognitiva, mas sim pelo contrário:
aqui a potência cognitiva atinge um grau infinito, que dificulta ao extremo o nexo
analógico e genérico com a inteligência finita, a qual é, contudo, a origem primeira de
toda a noção de intelecção. E o próprio Filósofo esbarra nestas dificulades quando
procura descrever o modus operandi de auto-ciência suprema. Como podemos entender
uma intelecção de si que não contenha partes e não ocupe tempo algum? Agora que
saímos totalmente da esfera do transitório, a própria noção de intelecção se torna
problemática, pois tal faculdade, mesmo que seja essencialmente simples
(principalemente para o caso de apreensão de realidades incompostas), sempre pressupôe
alguma espécie de unificação, de apreensão de uma unidade na multiplicidade a qual
acaba envolvendo, de um modo ou de outro, partes espaciais ou temporais. Contudo, a
espécie de cognição de que se trata aqui surpreende por sua simplicidade indissolúvel
exigida por uma efetividade absolutamente imóvel.
Daí que a inteligência imóvel não seja uma espécie de raciocínio, e mesmo a idéia
de uma pura intuição de algo, a aprensão direta de uma realidade em sua estrutura
simples e imediata (como a idéia indivisível do círculo) é uma analogia insuficiente no
sentido de exprimir sua perfeição cognitiva. É por isso que, como vimos acima, trata-se
de um modo autológico de uma perfeição que Aristóteles atribui à efetividade, mas que,
no movimento, se encontra no modo heterológico: o estar presente. O motor imóvel é
presença a si mesmo, e esta é sua marca distintiva – nem mesmo em grau inferior - pois
não há outro ser que detenha esta perfeição autológica.
301
O movimento, portanto, foi o caminho buscado pelo Estagirita para atingir o
imóvel, e de um modo totalmente insuspeito, posto que radicalização do próprio
movimento em sua natureza presentificadora. Ora, em todo este trabalho vimos que a
unidade em Aristóteles é, simultaneamente, autológica e separativa. Detenhamos, então,
mais um pouco nesta questão de modo a perceber a separação absoluta que tal autologia
imóvel efetiva relativamente ao móvel.
Aristóteles atinge o imóvel no próprio móvel, a eternidade na mais alta expressão
do tempo. O tempo expressa o passageiro e o corruptível, mas a verdade mais alta
expressa pelo tempo é sua própria negação. O movimento tende à sua própria
neutralização. Sua afecção mais fundamental, o tempo, enuncia o intemporal como sua
necessidade instauradora. Tal exigência se impõe tanto a) em cada uma de suas infinitas
partes como b) em toda a sua totalidade infinita, além encontrar expressão completa e
acabada fora do próprio tempo. Com efeito, em cada instante de tempo, o movimento
universal revela sua continuidade eterna, pois o agora sempre pressupõe um antes e um
depois, que são simultaneamente, outros agoras, e assim inifinitamente, pelo que a
própria totalidade do tempo jamais se cumprirá. Mas o terceiro modo de imposição é o
mais radical, pois se mostra evidente pela constatação de que tal propriedade
infinitamente reprodutiva do tempo deve pressupor um infinito pró- temporal plenamente
efetivo, um imóvel infinito produtor de toda mobilidade: um motor imóvel.
Assim, se em Platão, o eterno tem uma estrutura móvel e não produz movimento,
em Aristóteles, o inverso é que deve ocorrer. Com efeito, as Idéias devem ser correlatas
de coisas sensíveis e móveis. Ainda que as Idéias, por princípio, não possam ter
mobilidade, o único modo de apreendê-las é através do movimento. Não é a toa que
302
Platão tenha se utilizado tanto de cosmogonias em sua metafísica, entre as quais a célebre
criação demiúrgica do Timeu. O imóvel carrega sempre, no Platonismo, a semelhança
com o móvel correspondente e a própria imobilidade por excelência – eternidade – possui
uma expressão não-eterna, pois o “o tempo é a imagem móvel da eternidade”.
Aristóteles, por seu turno, entende que, se a essência imóvel – não importa que
natureza a esta atribuamos – deve ser princípio efetivo de movimento, deve ser
totalmente separada de qualquer mobilidade. A essência imóvel não deve compartilhar
qualquer nota com a matéria, principalmente a contrariedade intrínseca de tudo o que é
sensível, pois os contrários são sempre sinal de mobilidade. É por isso que o motor
imóvel é pura autologia, uma estrutura completamente fechada em si mesma, sem
semelhança com nada de sensível, ao contrário do que teríamos se o supuséssemos como
sendo o ‘movimento em si’ ou o ‘círculo em si’. Com efeito, para que um termo
realmente se diferencie estruturalmente de outro, não basta que seja em si, mas que seja
para si mesmo e somente para si.
Sendo pura autologia, o motor imóvel deve se manter puro de qualquer
mobilidade, mas não como se fosse um anti-movimento, uma antítese da transição em
geral. O imóvel surge, em Aristóteles, não como negação neutralizante do móvel, mas
como negação a partir da maximização de seu caráter positivo ao infinito. É por isso que
a efetividade, que, no Livro Q da Metafísica, Aristóteles atribui de um modo especial ao
movimento, encontra, no entanto, expressão plena e acabada no imóvel. Assim, se
adotássemos a terminologia de Hegel, diríamos que o imóvel efetivo não é a antítese do
movimento, mas sim a síntese suplantadora do movimento e da antitética imobilidade
inefetiva.
303
É que o móvel, em Aristóteles, não pode ser reduzido ao imóvel puro. Na verdade,
não há qualquer princípio mais simples com o qual poderíamos apreender a natureza do
movimento. Isto leva o Filósofo a combater os que assim procedem em suas
investigações:
“Com efeito, não é possível incluir o movimento em outro gênero de
coisas. Isto é evidente inclusive pelo que dizem alguns daqueles filósofos que o
definem como alteridade, desigualdade e não-ente: ora, não é necessário que
nenhuma destas coisas se mova, e também o movimento não deriva dessas coisas
nem de seus contrários.” (1066a9)
ouÃte ga\r e)n aÃll% tij ge/nei du/nait' aÄn qeiÍnai au)th/n: dh=lon d' e)c wÒn le/gousin: oi¸ me\n ga\r e(tero/thta kaiì a)niso/thta kaiì to\ mh\ oÃn, wÒn ou)de\n a)na/gkh kineiÍsqai, a)ll' ou)d' h( metabolh\ ouÃt' ei¹j tau=ta ouÃt' e)k tou/twn ma=llon hÄ tw½n a)ntikeime/nwn.
Se não podemos decompor o ser do movimento em algo mais simples, a partir do
qual explicar sua natureza, é porque o movimento é a única expressão sensível de algo
que ultrapassa o âmbito sensível: a efetividade. Esta não pode ser reduzida a nada, sendo,
na verdade, um dos princípios explicativos de todas as coisas:
“E ainda, em outro sentido, os princípios são analogicamente os mesmos: quer
dizer, segundo a efetividade e a potência” (1071a5)
eÃti d' aÃllon tro/pon t%½ a)na/logon a)rxaiì ai¸ au)tai¿, oiâon e)ne/rgeia kaiì du/namij:
Na verdade, a efetividade é princípio de todas as coisas que são de fato, isto que é,
que gozam de existência autônoma. Voltando ao Livro Q da Metafísica, percebemos
assim porque a efetividade é aplicada especialmente ao movimento:
“O termo efetividade, que se liga estreitamente ao termo plenitude, mesmo que se
estenda a outros casos, deriva, sobretudo dos movimentos: parece que a
304
efetividade é, principalmente, o movimento. Por essa razão não se atribui o
movimento às coisas que não existem, mas se lhes atribui outros predicados: por
exemplo, pode-se que as coisas que não existem são pensáveis ou desejáveis, mas
não que estão em movimento. E isso porque, mesmo não sendo efetivas, neste
caso serão.” (1047a30)
e)lh/luqe d' h( e)ne/rgeia touÃnoma, h( pro\j th\n e)ntele/xeian suntiqeme/nh, kaiì e)piì ta\ aÃlla e)k tw½n kinh/sewn ma/lista: dokeiÍ ga\r h( e)ne/rgeia ma/lista h( ki¿nhsij eiånai, dio\ kaiì toiÍj mh\ ouÅsin ou)k a)podido/asi to\ kineiÍsqai, aÃllaj de/ tinaj kathgori¿aj, oiâon dianohta\ kaiì e)piqumhta\ eiånai ta\ mh\ oÃnta, kinou/mena de\ ouÃ, tou=to de\ oÀti ou)k oÃnta e)nergei¿# eÃsontai e)nergei¿#.
Fica claro, pela passagem acima, o estreito vínculo entre efetividade, movimento
e ser. A efetividade confere ser a um ente e é de tal modo conectada com o movimento,
que basta que algo se mova para que, ao mesmo tempo, seja de algum modo. É por isso
que seria paradoxal atribuir movimento a algo que não está é. E mesmo que seja fato que
movimento e efetividade não são o mesmo, e que o ser do movimento não seja pura
efetividade, mas também potência, não há como compreender o ser do movimento como
uma mera soma estática de potência e efetividade. O fato é que o movimento é um modo
fundamental e genuíno de efetividade, não sendo um complexo resultante de efetividade
e algum outro princípio, mesmo a potência. Não há, pois, como analisar a natureza do
movimento em outras mais simples e explicativas.
Ora, se a efetividade do movimento não pode ser analisada em nada anterior
segundo a simplicidade, deve poder comprendida ao menos a partir de uma instância
anterior segundo outro fator. Este fator é justamente a intensificação extrema da própria
natureza universal da efetividade: o estar presente (to\ u(pa/rxein). Aristóteles já havia
estabelecido a presença como nota essencial de toda e qualquer efetividade:
305
“A efetividade (e)ne/rgeia) é a coisa (to\ pra=gma) estar presente
(hypárchein), mas não enquanto se diz estar em potência (duna/mei).” (1048a32)
eÃsti dh\ e)ne/rgeia to\ u(pa/rxein to\ pra=gma mh\ ouÀtwj wÐsper le/gomen duna/mei:
Daí que o próprio imóvel deve, de certo modo, antecipar o móvel, conter em grau
autológico sua mais alta expressão funcional: a presença. O caráter meta-cinético do
imóvel - isto é - sua ultrapassagem, seu estar além do móvel- não decorre de se tratar de
um anti-movimento, como o fora em Platão. O motor imóvel é meta-movimento porque é
supra-movimento, está além de sua esfera porque, e somente porque, demonstra superar
ao infinito sua natureza essencial.
Assim, o movimento é universal porque não há como anular aquilo que faz dele
algo efetivo: seu caráter presentificador. Cada nova presença, ao se consumir, dá origem
a outra presença. E a análise do agora mostrou que o presente, em si mesmo, sempre
pressupõe, além de um passado prévio, um novo começo. Este fato interdita a
possibilidade de geração ou destruição do tempo, alternativas já vislumbradas por
filósofos anteriores, como Platão, por exemplo. Por outro lado, a mesma presença que faz
do movimento algo inegável, universal e eterno, também revela, pelo modo como se
apresenta neste âmbito, a necessidade de buscar outra instância que a supere e explique.
Pois a presença móvel está sempre ultrapassando a si mesma, sempre encontra em outro
ser a razão de seu advento. Jamais é presença a si mesma, mas sempre presença a outro.
Esta é a heterologia fundamental, porquanto origem de todas as outras e presente mesmo
em uma estrutura altamente autológica como a inteligência finita. O motor imóvel, como
inteligênicia infinita de si, é justamente a instância que supera e explica o movimento,
306
pois, sendo presença a si mesmo, não sai de si, seu ser não sofre transição alguma, pois
todo ele está concentrado em si mesmo.
307
CONCLUSÃO
308
Vimos como a estrutura mesma do livro L da Metafísica suscita as mais delicadas
controvérsias, principalmente pelas dificuldades relativas à própria ordem com que
devemos considerar os capítulos. Com efeito, da solução deste problema depende a
interpretação mesma do itinerário argumentativo do Filósofo. O conhecimento da exata
posição do capítulo nove, relativamente aos demais, não possui pouca importância; antes,
será decisivo no que concerne à conclusão de Aristóteles quanto à pluralidade dos
motores imóveis. Já nos referimos à similaridade entre as questões abordadas neste
capítulo e aquelas que fazem parte do sétimo. Como este último apresenta tais questões
de forma mais desenvolvida, preferimos considerar o nono capítulo uma introdução ao
mesmo, ao contrário do que propõe Reale e Jaeger, que mantêm sua posição cronológica,
o que o segundo aceita como divergente apenas quanto ao capítulo oitavo, cuja redação
seria posterior à de todos os demais, referente a uma fase em que o Filósofo concluiria na
total incompatibilidade entre esta doutrina do primeiro motor e aquela que mantém
definitivamente, isto é, a pluralidade dos motores imóveis.
Tornou-se bem nítida a incongruência da referida convicção na incompatibilidade
entre estas duas doutrinas. Como sabemos, esta tendência é impulsionada sobretudo por
Jaeger, e tem o claro propósito de servir de apoio a uma concepção fragmentária do livro
L, visto assim como uma estratificação composta de escritos pertencentes a períodos bem
diversos do pensamento do Estagirita. São três os processos através dos quais estes
fragmentos teriam sido reunidos com alguma coerência. O primeiro é de responsabilidade
do próprio autor da Metafísica, no âmbito de uma reorganização e autocrítica de seus
escritos, quando certas posições seriam revistas e, então, rechaçadas. O passo 1074a33
teria sido enxertado a partir deste processo. Os sucessores de Aristóteles no Liceu
309
também efetuaram diversas retificações na obra do mestre, e numerosos acréscimos,
visando a superação de contradições e insuficiências teóricas levantadas no interior dos
círculos de discussões. O terceiro processo pelo qual passariam os textos seria de
responsabilidade dos copistas medievais, que não possuíam qualquer restrição quanto a
justapor interpretações pessoais e sentenças colhidas dos próprios manuscritos, o que
teria ocasionado sérias modificações no texto original, chegando mesmo a ser atingida
uma completa mudança de significado em inúmeras passagens.
Procuramos destacar a importância da polêmica acerca da teoria correspondente à
última fase do pensamento de Aristóteles. Sabemos que Jaeger sustentava a maturidade
de uma doutrina na qual o Filósofo teria abandonado por completo a exigência platônica
da imaterialidade dos mais elevados princípios do cosmos. Os princípios supremos, quer
dizer, aqueles mais cognoscíveis em si mesmos , seriam próprios unicamente das
essências imateriais, o que conduziria, inevitavelmente, a uma ontologia dos seres
sensíveis como derradeira concepção do Estagirita acerca da natureza da ciência primeira.
É evidente que, mantida esta interpretação, fica descartada qualquer identificação da
suprema ciência com a teologia, o livro L sendo encarado, doravante, como obra
referente à juventude de Aristóteles, ainda decisivamente influenciado pelos fundamentos
teóricos de seu mestre.
Quanto à referida tese de Jaeger, é bem significativa a postura adotada por Patzig,
na medida em que procura enfraquecer determinadas interpretações acerca do sentido
atribuído por Aristóteles ao termo teologia, quando o identifica com a ciência mais
elevada. A simples menção de um trecho do livro I em que Aristóteles afirma que o sábio
“possui certo conhecimento de tudo” (982a23) é suficiente - sustenta Patzig - para
310
invalidar por completo uma leitura do livro L como escrito de mocidade. Com efeito, se
o Filósofo atribui a Primeira Filosofia ao sophós, e o considera um indivíduo que possui
certo conhecimento de todas as coisas, não há modo de confinar seu âmbito investigativo
ao estudo, quer da essência de Deus, quer dos seres sensíveis. Daí entendemos também,
conforme já destacamos, que a postura contraditória que teria adotado Patzig em seu
ataque a Natorp, é apenas aparente. É que o último é criticado por ter identificado a
ciência primeira e a teologia, o que mesmo Patzig o faz, porém sem determinar para o
conhecimento da natureza de Deus uma significação não-filosófica, quer dizer, isolada de
toda a investigação sobre os princípios universais, em harmonia com a qual a doutrina do
primeiro motor realmente parece se desenvolver ao longo do livro L.
Seria desnecessário salientar a importância destas discussões no que tange a uma
determinação mais sólida do lugar do livro L no Corpus Aristotelicum. Preferimos,
porém, ao contrário dos referidos autores, empreender outro percurso em vista do mesmo
esclarecimento. Trata-se, na verdade, de retomar alguns dos principais conceitos e
doutrinas de Aristóteles a partir de sua gênese - quer dizer, nos trechos em que são
estabelecidos definitivamente pelo Filósofo - até os momentos em que os mesmos
nitidamente se apresentam em seu pleno estado de desenvolvimento. Percebemos assim
que estes momentos coincidem com aqueles em que, não somente se torna manifesta a
convicção da existência de uma essência motriz imaterial, como também a própria
natureza de tal essência mostra-se como o verdadeiro ápice da maturação filosófica destes
conceitos e doutrinas, representando, em última instância, o princípio de cognoscibilidade
dos mesmos. Desta forma, acreditamos que a polêmica acerca do posicionamento do livro
L no interior da Metafísica de Aristóteles aproxima-se do fim, mesmo porque este é o
311
lugar em que a doutrina do primeiro motor assume maior relevo em todos os seus
inúmeros desdobramentos.
Restam, assim, duas únicas decisões a serem tomadas, a primeira das quais
consideravelmente inviável: a) tomar a doutrina do primeiro motor - e, por isso, a maior
parte do livro L - como fruto de um momento ainda “platônico” da vida filosófica de
Aristóteles, o que nos obrigaria não somente a assumir postura extremamente cética no
tocante às passagens de outros livros do Estagirita em que tal doutrina é referida, mas
igualmente no que se refere a qualquer tentativa de interpretação da filosofia aristotélica
que preconize alguma progressão argumentativa extensa, já que esta - da mesma forma
como ocorreria com outros trechos que tratam da referida doutrina - pode ter sido
construída a partir de enxertos posteriores autorais ou efetuados por outrem; b) admitir,
por força dos sinais e evidências, a plena maturidade intelectual do livro L e de sua
célebre teoria, aquela em que se mantém a existência de certas essências imateriais
motrizes de todo o universo e que confere certo “grau de veracidade” às opiniões dos
antigos, de que os astros são deuses e o divino abarca toda a natureza. A função da
primeira deste trabalho é, na verdade, uma justificação desta última decisão.
No entanto, a tese da maturidade intelectual do Livro L da Metafísica atingiria
um grau ulterior de justificação com a constatação de que os vários momentos da
ontologia Aristóteles remetem, segundo sua própria dinâmica investigativa, à doutrina
teológica do Livro L. Este é o escopo da segunda parte deste estudo. Ali empreendemos
uma investigação acerca dos graus do ente, quando percebemos, primeiramente, que tal
graduação pode ser medida pelo grau de unidade que cada nível do ente apresenta. Não
tivemos o propósito, contudo, de estabelecer uma espécie de hierarquia do um sobre o
312
ente, empresa que seria bem ingênua, pois esbarraria em entraves textuais invencíveis: o
prório filósofo descarta a possibilidade de uma relação de anterioridade envolvendo o
ente e o um.
O que perseguimos realmente foi a natureza mesma da escala ontógica na
doutrina de Aristóteles e, primeiramente, a noção de uma unidade gradual do ente foi
crucial para isto. Mas esta não foi a única noção decisiva. Ao lado do um, esbarramos
também com as idéias de separado e o mesmo, que sempre perseguiram o Filósofo ao
longo de seus textos metafísicos. Isto não foi um fenômeno fortuito. Ocorre que a
unidade do ente, em Aristóteles, não é participativa, como a de Platão, mas separativa,
conforme o notou Aubenque. O ente se faz um apartando-se, distinguindo do outro
possível, o ente circundante. E tal separação envolve um retorno, desde o outro (em que o
um participante de Platão estava enredado) para si mesmo, como que em direção a uma
estrutura auto-relativa do ente, de ratificação de seus próprios limites. E tanto a separação
quando a simultânea autologia admitem graus. Daí que também o ente e o um formem
uma grande escala, da qual podemos destacar cinco níveis principais:
1- Ente x não-ente
A natureza deste nível é manifesta simplesmente pela enunciação do “mais seguro
dos axiomas”, o princípio de não-contradição. Trata-se de um princípio que define o nível
mais geral do ente, aquele partilhado por tudo aquilo que é, mesmo daquelas instâncias
que são apenas concomitantemente, como o ‘ser branco’ de um homem ou as privações,
que são apenas na medida em que são enunciadas. Todas estas instâncias devem respeitar
uma certa relação consigo mesmas, de jamais não serem no instante mesmo em que são.
A instantaneidade deste princípio é algo que não deve ser visto como periférico aqui, mas,
313
ao contrário, é toda a essência do princípio. É que tudo o que é deve ao menos ser por um
instante e ser objeto de uma intelecção, a qual necessita ao menos de um instante
infinitesimal para ser efetivada. Daí que o princípio geral de todo o ente seja,
simultaneamente, um princípio geral de todo instante. Mas aqui reside justamente o sinal
mais evidente do caráter insuficiente do axioma para fazer-nos atingir a esfera mais
nuclear do ente, que dá sustentação a todas as outras. Tal esfera deve poder manter sua
unidade ontológica por si mesma e por mais de um instante, porquanto goza de uma auto-
relação menos vazia, consistente o bastante para se manter mais determinadamente
separada do ente alheio, que para ela vale como não-ente. A esfera nuclear do ente deve
ser autárquica. Somente assim a separação ente x não-ente estará consolidada, ainda que
não plenamente efetivada.
2- Essência x não-essência
Separação entre o que é por si e o que é por outro que é por si. Eis a distinção
entre a essência e o concomitante. Este não pode ser separadamente, mas somente
agregado à essência separada e autônoma. O concomitante, portanto, não é em sentido
absoluto, pois, ainda que não fosse, a essência seria. Podendo não ser sem afetar com isso
a natureza do que é em sentido primeiro, o concomitante não tem uma fronteira definida
que o apartasse do não-ser, este sendo, na verdade, sua possibilidade instauradora.
2,1- Essência composta x essência primeira
Separação ainda mais nítida entre ente e não-ente, pois a essência, embora possa
ser gerada ou corrompida enquanto composto, não passa por processo de geração ou
corrupção enquanto essência primeira, ou seja, enquanto forma. É que a forma passa do
ser ao não-ser instantaneamente, o que significa: não há uma continuidade desde o ser até
314
o não-ser da essência primeira, de modo que pudéssemos ver aí um certo comércio entre
os termos extremos. Há uma fronteira nítida entre afirmação e negação da forma
essencial
3- Animado x inanimado
O animado move a si mesmo por si mesmo. Ora, nos entes sensíveis, o
movimento é o que leva ao ser, pois a efetividade da forma do ente se deve ao princípio
motor, que conduz a matéria à sua formação. Assim, sendo a causa de seu próprio
movimento, o animado é efetivamente causa de seu ser, e de um modo mais completo
que a essência inanimada o é de seu ser. Segue daí que a separação entre animado e
inanimado incrementa uma separação ainda maior entre o ser por si e o ser por outro e,
por conseguinte, entre ser e não-ser, conforme já vimos quando determinanos o ser do
concomitante como inseparável da possibilidade do não-ser.
4- Inteligência x objeto de intelecção
A essência animada, considerada em sua ação de mover a si mesma, não é
separada totalmente do a essência inanimada, quer dizer, do corpo. Com efeito, ao mover
a si mesma, uma parte move e outra é movida, sendo a primeira a forma animada
enquanto tal, e a segunda a matéria enformada. Mas o fato é que Aristóteles, em De
Anima, ratifica a impossibilidade da alma motriz permanecer mesmo após a corrupção do
corpo movido, pois o enunciado (lógos) que define o ser-prévio (to ti en einai) da alma é
o enunciado efetivo do corpo, o que força a presença das partes do corpo para que sua
alma própria exista de fato.
A parte inteligente da alma, no entanto, entra em outra esfera separativa.
Enquanto o restante da alma é apenas uma efetividade do corpo, aqui a efetividade não se
315
aplica mais à corporeidade, ainda que a ela se refira por intermédio do todo anímico de
que constitui uma parte. A inteligência é separada essencial e existencialmente do corpo,
e não apenas essencialmente, como o restante da alma. Esta se distingue da pura matéria
porque sua noção implica atividade, enquanto a noção da matéria envolve, na qualidade
de hypokeímenon, o ser passivo relativamente ao princípio motor enformativo. Mas a
existência da alma, como vimos, não faz sentido sem o correlato corpóreo, pois nada
mais é que sua efetividade própria: "se o olho fosse um animal, a visão seria sua alma"
(ei¹ ga\r hÅn o( o)fqalmo\j z%½on, yuxh\ aÄn hÅn au)tou= h( oÃyij)94. Algo distinto ocorre
com a inteligência, a qual o Filósofo concede a prerrogativa decisiva da auto-subsistência
relativamente ao corpo ao qual se refere, posto que sobrevive à corrupção de toda a sua
estrutura. A inteligência não é efetividade de parte alguma do corpo, mas da própria alma
como um todo, pelo que toda a sua desintegração não afetará de modo algum sua
subsistência.
5- Motor x movido
No entanto, a inteligência, ainda que subsista além da dissolução da essência
sensível, ainda se encontra intimamente associada à totalidade de sua estrutura e às
passibilidades que lhe dizem respeito. É que, embora não seja efetividade do corpo, a
inteligência é efetividade da efetividade do corpo, pois é efetividade da alma como um
todo, que por sua vez, é efetividade do corpo. Sendo uma super-efetividade, adquire a
prerrogativa da independência relativamente a cada parte efetiva do corpo, mas não está
isenta de referência existencial à estrutura tomada como um todo. Embora não seja
afetada por transição no tocante à essência, a locomoção do corpo envolve, de certo modo
94 DA 412b18.
316
ou por concomitância, a locomoção da inteligência, na medida em que, se é verdade que a
alma move a si mesma por concomitância - pois move por si mesma o corpo em que se
encontra - então será verdade que sua parte mais excelsa está sujeita também ao mesmo
movimento concomitante, pois a parte segue o todo.
A identidade do ente consigo mesmo encontra na inteligência expressão nítida e
elevadíssima relativamente a quase totalidade dos entes. Contudo, é possível imaginar
outra essência ainda mais apartada do devir, porquanto mais una com seu próprio ser. Se
a inteligência, embora permaneça após a destruição do suporte material, ainda se encontra,
de certo modo, sujeita ao movimento, então sua auto-referência e, simultaneamente,
diferença dos demais entes não é completa. A separação não se instaurou plenamente.
Assim, é possível imaginar outra essência com ulterior grau de autonomia relativamente
ao fluxo universal, que se mantenha imóvel sob qualquer ponto de vista metafísico. De
fato, o motor imóvel, que na verdade é outra inteligência - e de espécie infinitamente
diversa - cumpre plenamente o requisito a que deve esta denominação, pois é
absolutamente imóvel. E não é por acaso que tal expressão é usada por Aristóteles na
maior parte das vezes. Com efeito, a causa da unidade desta espécie sui generis de
inteligência pairar acima da unidade ontológica das demais essências não é,
evidentemente, a própria natureza da inteligência em geral, mas a natureza peculiar que
lhe convém e que lhe permite dispensar qualquer referência à transitoriedade circundante.
Daí que, em lugar de se referir a tal realidade como inteligência suprema ou perfeita - o
que seria mais do que exato - Aristóteles prefere a denominação "motor imóvel". É que a
imobilidade é a causa mais próxima e determinada de sua perfeição, pelo que tal
referência permite que compreendamos mais diretamente o sentido último de tudo o que
317
de verdadeiro podemos afirmar sobre sua natureza, inclusive a mais fundamental segundo
a filosofia primeira, a saber, ser o grau último da auto-identidade do ente. Ora, a escala
autológica principia com a pura separatividade entre ente e não-ente, pela qual o ente
assume sua posição auto-afirmativa relativamente à possibilidade do não-ente. A essência
vem a seguir, como primeiro grau de determinação efetiva de tal posição, pois é
efetividade e indivíduo, e não apenas pura universalidade idêntica a si mesma pela mera
indiferenciação interna, ou seja, pura potência ontológica de ser idêntica a si tão somente
porque, simultaneamente, impotência efetiva de não-ser. Na verdade, a efetividade
individualizante, que torna qualquer algo em 'este algo', envolve superiormente o mesmo
(tò autó) no ente. O puro ente em geral era, por um lado, puro devir, pois nada aqui
subsiste por si mesmo, mas é sempre na referência ao que efetivamente subsiste por si.
Mas a auto-subsistência, a autarquia do ente é apenas o terceiro grau da escala. É possível
uma intensidade superior de relação do ente consigo mesmo que significa,
simultaneamente, a separação mais definida do meio circundante. Este nível é realizado
pela alma e a essência viva em geral. A estrutura da vida permite que o ente efetive sua
separação do não-ente a partir de uma espécie mais perfeita de auto-relação consigo, em
que não somente tem seu princípio de subsistência em si mesmo, mas também efetive em
si mesmo este princípio, ou melhor, seja ele mesmo este princípio no momento em que
condiciona a efetividade que lhe é própria: o movimento. Além deste estágio, somente
poderíamos tocar um último estágio ou mais de um que, de certo modo, mantenham certo
grau de indissociabilidade, pois se trata agora do ápice do ente, em que a perfeição e
independência da matéria é tão segura e determinada que dificultam sobremaneira uma
distinção ulterior. Foi o que vimos nos capítulos dedicados à inteligência humana e ao
318
motor imóvel. Determinadas passagens do De Anima foram até tomadas como pré-
teológicas. Trata-se da possibilidade de auto-intelecção da inteligência humana, coisa que
se pensava exclusiva do motor imóvel, mas que acabou se mostrando a única saída para a
demosntração de um suposição inicial do De Anima: a imortalidade da inteligência.
No entanto, o gênio discriminativo de Aristóteles o permite avançar mesmo em
terrenos outrora envolvidos em total homogeneidade. Todo o nosso estudo pretendeu
acompanhar maximanente esta característica de seu pensamento e, no caso da suma
distinção, aquela entre as duas inteligências, o critério autológico também foi aplicado.
Vimos que todas as radicais diferenças entre as duas potências cognitivas podem ser
resumidas em apenas uma: a infinita relação consigo mesmo, presente na estrutura supra-
essencial e jamais possível na humana. Todas as etapas autológicas do ente são como
setas que apontam para este infinito.
319
VOCABULÁRIO DE TRADUÇÃO
320
Acaso (au)to/matoj)
Aristóteles fornece uma etimologia para au)to/matoj, em sua Física 95 , que
diverge daquela comumente conhecida e apoiada por Bailly. Segundo o Filosofo,
au)to/matoj está ligado a máten, que significa ‘em vão’, pelo que poderíamos deduzir
que o termo completo significa “uma ocorrência da própria coisa, sem propósito”, isto é,
a ocorrência da mesma coisa que se verificava conforme a um propósito, só que desta vez
sem qualquer propósito. Isto vai de encontro à tradição de enxergar au)to/matoj como
‘aquilo que se move a si mesmo”. E Aristóteles é coerente com sua etimologia, pois opõe
natureza (fu/sij) e automatismo (au)to/matoj) e define a primeira como o ‘o princípio
de movimento que reside no próprio ser’, enquanto que em sua Física afirma que a causa
do au)to/matoj reside fora dele96.
Se optarmos pela etimologia aristotélica, portanto, tomaremos o au)to/matoj
como um evento que, de alguma forma, se aproxima e simula outro evento, este sim de
natureza teleológica. Aqui o mesmo (au)to/), longe de ter o poder de mover a si mesmo,
apenas ocorre a partir de algo extrínseco à sua estrutura. Trata-se, assim, de um nível
autológico muito pobre, e com razão o Filósofo o distingue fortemente do
automovimento da natureza.
Echandía97, seguindo Ross98, não aceita a etimologia aristotélica, que faz derivar o
sufixo matoj de maten. Como alternativa, afirma que tanto o matoj de au)to/matoj
como maten derivam de maíomai, que significa ‘desejar vivamente’, ‘buscar
95 Física B, 197b20 96 Física B 197b35
321
ardentemente’. Isto explicaria em parte a tradição que toma au)to/matoj como
significando ‘o que se move a si mesmo’, pois nesse caso o sentido originário ‘buscar por
si mesmo’ não estaria muito longínquo. No entanto, segundo Bailly99 e Chantraine100,
maten não provém de maíomai, mas de mataw, que significa ´ser vão, sem efeito,
inútil´. Ao menos quanto a isso Aristóteles não estava errado, contrariamente o que supôs
Echandía. Porém o mais importante aqui é que o Filósofo realmente usava o termo
au)to/matoj para expressar uma causalidade casual, ou melhor, uma negação da
causalidade (principalmente a causalidade natural), muito mais do que uma auto-
causalidade. Daí que preferimos traduzi-lo por acaso, porquanto a idéia expressa por autó
neste termo não foi pensado no sentido que possui em qualquer termo moderno em que
tal vocábulo entre como sufixo, não envolve a reflexividade própria de automovimento
ou autotelia, só para citar dois exemplos. A noção de au)toj aqui é bem mais afim da de
oÀmoioj (semelhante, igual), pois, como vimos, se trata do ‘o mesmo sem razão’, o que de
certa forma é dizer que não é exatamente o mesmo. Os animais gerados por au)to/matoj
não são os mesmos que os outros. Há algo diferente neles. Isto ficará mais claro no
parágrafo seguinte.
Mas por que este termo está constantemente associado à idéia de automovimento?
Há mais de uma razão para isso. Em primeiro lugar, o que não tem causa interna alguma
pode ser dito, em certo aspecto, como sendo causado por si mesmo. É que a soma de
todos as causas concomitantes que o efetivaram permanceceu fora do alcance da
97 Echandía, 1995, pág. 156 98 Ross, Aristotle’s Phisics, 1936, pág. 523, cit. por Echandía 99 Bailly, 1963, pág. 1230 100 Chantraine,1968, pág. 672
322
teleologia natural, como que apartando-se da mesma. Assim, se tomarmos o fortuito
como que significando a totalidade das causas e o efeito final, então o fortuito causa a si
mesmo, de um modo análogo ao que faria um produto natural. Porém, se por fortuito
entendemos somente o efeito final, então é evidente que não terá causa alguma em si
mesmo, pois é justamente a privação da auto-causalidade própria da natureza. O mesmo
raciocínio o próprio Filósofo aplicou também ao caso das séries heteromovidas cujo
termo final é automovido. Neste caso, cada vez que tomamos o próprio automovido
juntamente com outros heteromovidos, pode-se tomar o todo resultante como automovido
relativaemente aos demais heteromovidos não integrantes da série.
A partir de algo (eÃk tinoj)
Anterior (pro/teroj)
Atividade (pra=cij)
Este termo em geral é usado para traduzir e)ne/rgeia. No entanto, decidimos
traduzir este último como efetividade, e as razões para tal expressamos no respectivo
lugar. Atividade é justo o que mais parece indicado na ocorrência de pra=cij, como
aquela espécie de efetividade que se esgota em si mesma, ainda que seja possível certo
uso ampliativo para efetividades que tendem a um efeito (eÃrgon) além de si mesmas,
como o próprio Aristóteles já notara criticamente:
“Dado que das atividades que têm um limite nenhuma é uma completude, mas
todas se aproximam da completude como, por exemplo, o emagrecimento tem por
completude a magreza; e, dado que os corpos, quando emagrecem, estão em
movimento em direção à completude, ou seja, não são aquilo em vista do que
323
ocorre o movimento, segue-se que estas não são atividades, pelo menos não são
atividades perfeitas, justamente porque não são completudes. Ao contrário, o
movimento no qual já está contida a completude é uma atividade. Por exemplo,
no mesmo instante alguém vê e viu, conhece e conheceu, pensa e pensou,
enquanto não pode estar aprendendo e ter aprendido, nem estar se curando e ter-
se curado.” (1048b18)
¹Epeiì de\ tw½n pra/cewn wÒn eÃsti pe/raj ou)demi¿a te/loj a)lla\ tw½n periì to\ te/loj, oiâon to\ i¹sxnai¿nein hÄ i¹sxnasi¿a [au)to/], au)ta\ de\ oÀtan i¹sxnai¿nv ouÀtwj e)stiìn e)n kinh/sei, mh\ u(pa/rxonta wÒn eÀneka h( ki¿nhsij, ou)k eÃsti tau=ta pra=cij hÄ ou) telei¿a ge (ou) ga\r te/lojŸ: a)ll' e)kei¿nh <vÂ> e)nupa/rxei to\ te/loj kaiì [h(] pra=cij. oiâon o(r#= aÀma <kaiì e(w¯rake,> kaiì froneiÍ <kaiì pefro/nhke,> kaiì noeiÍ kaiì neno/hken, a)ll' ou) manqa/nei kaiì memaqhken ou)d' u(gia/zetai kaiì u(gi¿astai: A atividade, portanto, não requer algo além de si mesma para ser completa, e é
nisto que se distingue de movimentos que tendem a atingir sua própria dissolução para
atingirem sua completude e razão de ser, como é o caso do processo de cura, que não é
produzido com o propósito de continuidade ilimitada, mas visando o termo mais próximo
possível.
Causa (aiãtioj)
Completo (te/leioj)
Ver Completude (te/loj).
Completude (te/loj)
A tradução convencional "fim" é satisfatória em quase todos os casos. Ocorre
apenas que pretendemos explicitar o caráter de perfectibilidade envolvido em suas
diversas aplicações. Pois te/loj não significa somente uma meta, um propósito, mas uma
natureza determinada a ser atingida, embora seu uso possa ser estendido ao termo das
324
ações e dos movimentos. E aqui justamente fica mais nítido o caráter limitado da adoção
de "fim". Com efeito, em algumas passagens Aristóteles que o movimento (kínhsij) é
uma efetividade (energeia) incompleta (atelhj), coisa que seria difícil exprimir com o
termo "fim", ainda que tal vocábulo também carregue a idéia de meta. Neste caso, não se
trata apenas de transmitir tal idéia, pois um movimento pode ser acompanhado de uma
meta sem, com isso, invalidar a afirmação do Filósofo de que todo movimento é uma
efetividade incompleta. Não basta, pois, haver um escopo para que haja de completude. É
preciso que haja possibilidade de acabamento de algo definido. Isto não significa,
contudo, que não possa haver completude a partir do movimento. Apenas não será o
próprio movimento o que diremos completo, mas o produto ou resultado simultâneo ao
seu termo último.
Composto (su/nqetoj)
Concreto (su/noloj)
Aristóteles usa, inúmeras vezes, este termo em contraposição à forma tomada
abstratamente, quer dizer, apartada de sua condição de imersão na matéria. Cremos que a
oposição usual que fazemos entre abstrato e concreto é bem próxima daquela entre forma
e concreto aristotélicos. O prefixo “com” traduz quase que exatamente o correspondente
grego su/n, ao transmitir a idéia de concomitância e conjunção. Mas é a união de su/n
com oloj que torna este último mais identificável com a idéia de crescimento do que a
noção de integridade, embora esta também entre na compreensão da coisa, ainda que de
um modo mais genérico. Com efeito, su/noloj não é somente o que é total, mas o que é
325
total juntamente com outra coisa. Esta necessidade de um outro termo, aliado ao fato de
Aristóteles usar este termo para se referir às essências que sofrem alguma espécie de
transição ou mudança, é que torna o su/noloj bem mais um concreto – isto é,
desenvolvido por agregação – do que simplesmente completo. O concreto é um completo
dinâmico. Sua forma passa da potência (du/namij) à efetividade (e)ne/rgeia) porque é
uma forma inserida no princípio potencial por excelência – a matéria, com a qual efetua
sua desenvolução.
Concomitante (sumbebhko/j)
A tradução que se tornou clássica – acidente - já se trata de uma interpretação
calcada no aspecto quase sempre fortuito de sumbebhko/j no Corpus, porém não
satisfaz quando o Filósofo trata do sumbebhko/j por si (kaq' au(to) e eterno (a)i¿+dioj),
como o caráter par ou o ímpar dos números.
Concomitante deixa mais claro o caráter dinâmico da palavra, já indicada em sua
etimologia, e que é muito útil no sentido da compreensão do livro G e do princípio de
não-contradição. Procuramos estabelecer o caráter vago da unidade do ente enquanto
puramente não contraditório, em parte porque até o concomitante, em si mesmo, é não
contraditório, mesmo quando passageiro, pois o princípio de não-contradição estipula
uma exigência para todo o movimento sem contudo limitar sua natureza instável e
fragmentária.
Contraditório (a)nti¿fasij)
Contrário (enanti¿oj)
Dessemelhante (a)no/moioj)
326
Diferente (dia/foroj)
Disposição (dia/qesij)
Diverso (eÀteroj)
Efeito (eÃrgon)
Efetividade (e)ne/rgeia)
Quando Aristóteles utiliza o termo e)ne/rgeia para afirmar que determinado qual
(poi@oj) está presente de fato, dificilmente seria inteligível a tradução “tal qualidade
existe ativamente ou de modo atuante, como deveríamos fazer se optássemos por
atividade ou ato como formas válidas para traduzir e)ne/rgeia. Na verdade, a qualidade
está presente passivamente em um ente, como resultado natural de determinado processo.
Para salvar tais opções, teríamos que lançar mão de ‘ativada’ ou ‘atuada’ para distinguir
dos modos ativos dos respectivos verbos, o que seria algo sobremaneira forçado. Tais
dificuldades podem ser evitadas se e)ne/rgeia for tomada, no português, como
efetividade, pois os adjetivos possíveis para este termo se aplicam a elementos ativos com
a mesma naturalidade observada para os elementos passivos. Uma qualidade pode estar
presentemente efetiva da mesma forma que um princípio motor.
Elemento (stoixeiÍon) Engenho (te/xnh)
A maior parte dos tradutores emprega ‘arte’ para as ocorrências de te/xnh.
Alguns, mais raramente, adotam técnica. A primeira alternativa detém o favor do largo
uso e da capacidade quase ilimitada de ‘arte’ para esferas tão díspares quando ‘obra de
327
arte’ e ‘arte médica’. O segundo caso se vale principalmente da derivação etimológica e
da compatibilidade com praticamente todos os usos de que se vale Aristóteles.
No entanto, preferimos outro termo, engenho, que alia vantagens das duas opções
anteriores. Engenho, tal qual técnica, transmite com bastante precisão o caráter metódico
do termo grego – bem explícito em ‘técnica’ - assim como uma certa produção (poiésis)
necessariamente visada pelo detentor do método, ou seja, a criação, a criatividade, tão
evocados na ocorrência de ‘arte’. Além disso, te/xnh deriva de tiktw, que significa
‘engendrar, criar, dar a luz’, pelo que está aparentado a te/knon – criança, rebento. E
engenho também carrega a mesma família semântica, pois conota a capacidade de
engendrar, de fazer algo vir à existência. Daí que te/xnh esteja tão presente em passagens
em que Aristóteles aborda a natureza (fu/sij) como princípio de geração dos entes, pois
aparece como outro princípio intra-genérico da poder generativo em geral, ao lado das
respectivas privações de ambos os princípios: o acaso (au)to/matoj) e a fortuna (tu/xh).
Ente (to\ oÄn)
Em nossos estudos, procuramos distinguir ao máximo as ocorrências de ente (to\
oÄn) e ser (to\ eiånai), ainda que tal coisa se revele, certos casos, algo bastante difícil
devido a algum contexto que torne, naquele caso, as duas noções equivalentes. Tomamos
ente como o que aquilo ao qual o ser se aplica, sejam quais forem os sentidos atribuídos
ao ser, cuja analogia em Aristóteles é célebre. O fato é que grande parte da possibilidade
de equivalência destes dois termos se deve justamente a tal aplicabilidade universal do
ser ao ente e vice-versa, pois um é um particípio do outro. Assim, para cada sentido do
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ente haverá um sentido do ser que se lhe aplica e para cada sentido do ser haverá ente que
a qual este se aplica.
Enunciado (lo/goj)
Talvez este seja o vocábulo grego mais difícil de se traduzir. Só para citar alguns
dos variados usos adotados, encontraremos pensamento, razão, discurso, relação,
proporção, proposição, enunciado, argumento como possíveis ocorrências em muitas
versões das obras de Aristóteles e de filosofia em grega em geral.
Sabemos que tal profusão literária relativamente ao termo lo/goj não se deve
nem ao acaso nem ao capricho dos tradutores ao longo de milhares de anos de estudos do
Corpus, mas somente foi possível devido à própria flexibilidade quase ilimitada do termo
grego, que permitia seu uso quase que para qualquer área ou situação cognitiva. Mas
devemos questionar, primeiramente: há um paralelo relativamente à nossa realidade
lingüística que permite uma tal gama de acepções? Se for o caso, estaremos mais
próximos de compreender o fenômeno grego do lo/goj e estabelecer uma ponte mais
natural e segura com a língua portuguesa.
Quando dizemos, por exemplo, que alguém possui o dom da palavra, ou que
fulano tomou a palavra de beltrano, não estamos, obviamente, nos referindo à palavra no
sentido mais estrito do termo, segundo o qual ‘gato’ é uma palavra. Mas tampouco
fugimos totalmente desta acepção mais estrita, sendo esta como que o uso-base para os
ulteriores. Assim, tomar a palavra de alguém seria equivalente a retirar desta pessoa a
oportunidade do discurso. Ora, se tal deslocamento de sentido é possível ao português,
não deveríamos nos surpreender que o mesmo ocorresse na comunicação grega. O uso de
um mesmo vocábulo para mais de uma significação não deve ser visto como algo que
329
sempre empobrece a comunicação ou que, por outro lado, pode torná-la excessivamente
ambígua. Respeitados certos limites, o alargamento de sentido pode facilitar a descoberta
de nexos imprevistos e fundamentais dos objetos de uma investigação. Seria muito
vantajoso, portanto, se pudéssemos, partindo do sentido mais estrito de lo/goj, aplicá-lo
do mesmo modo a contextos em que tal significação foi devidamente alargada.
Vejamos alguns casos possíveis de flexibilização de sentido para o termo
enunciado traduzindo lo/goj. Freqüentemente fórmula e proposição são usados para
traduzir lo/goj, embora sejam bem mais complexos e precisos que a maioria dos usos
desta palavra pode permitir. ‘Relação’ também é outra ocorrência freqüente, não obstante
o correspondente grego ‘pro/j ti’ ocupar um lugar tão sensível na metafísica aristotélica.
Vejamos a própria definição que Aristóteles oferece em seu Organon:
“O enunciado é um som significativo, cujas partes significam algo
separadamente, mas como fala, e não como afirmação. Digo, por exemplo, que
‘homem’ significa algo, mas não significa que é ou que não é. [...] Todo
enunciado é significativo, mas não como instrumento, e sim – como dissemos -
por composição.” (De Interpretatione,16b26)
Lo/goj de/ e)sti fwnh\ shmantikh/, hÂj tw½n merw½n ti shmantiko/n e)sti kexwrisme/non, w¨j fa/sij a)ll' ou)x w¨j kata/fasij. le/gw de/, oiâon aÃnqrwpoj shmai¿nei ti, a)ll' ou)x oÀti eÃstin hÄ ou)k eÃstin. [...] eÃsti de\ lo/goj aÀpaj me\n shmantiko/j, ou)x w¨j oÃrganon de/, a)ll' wÐsper eiãrhtai kata\ sunqh/khn: É que o modo de o puro nome significar, isto é, ser o signo de algo além dele, é
pela estrutura representativa da composição, que o põe de antemão com um certo ente, e
não como um instrumento, ou seja, pela estrutura representativa de um estado de coisas.
A noção de instrumento evoca imediatamente a idéia de uma coordenação, pois o
330
instrumento deve estar orientado para uma função específica e divisível em partes. O
enunciado, sendo composto de mais de um nome, os liga de modo a representar uma
ligação correspondente entre os entes enunciados. O puro nome, ao contrário, representa
apenas um único ente. Portanto, não há função ulterior na qual entre o nome, senão a
própria função sintética de substituir a própria presença do ente na imaginação. Enquanto
o nome 'animal' tem por função representar um ente ou gênero de entes, o enunciado
'animal racional' representa, além dos entes, a relação entre os entes, a saber, entre o ente
animal e o ente raciional, que no caso estão em relação de gênero e diferença específica.
No primeiro, pois, há uma pura convenção, que se estabelece representando o nome
animal juntamente com a representação do ente ou gênero de entes correspondente.
Trata-se, portanto, de uma simples composição representativa. Por outro lado, no
enunciado 'animal racional', há uma articulação nominal que representa uma articulação
interna no próprio ente enunciado. Cada parte do enunciado é assim introduzido não
meramente por uma convenção (embora tal propriedade seja uma condição necessária),
mas como um instrumento para a outra parte. 'Animal' entra no enunciado como um
suporte para a determinação do nome 'racional', ao passo que este último não vale mais
apenas como um ente lingüístico destinado a substituir a ausência de um certo ente. Na
verdade, a eficácia semântica de 'racional' é baseada justamente em sua articulação com o
nome 'animal' de modo a valer como uma determinação deste ente. Assim, mais do que
um ente, 'racional' é um modo articulativo de 'animal', um instrumento para a
determinação deste último, concomitante à articulação interna do ente enunciado.
Podemos questionar então como a semântica de enunciação pode ser usada para
significar fórmula, proposição e relação. ‘Enunciado’ pode significar todos os outros por
331
especificação/generalização ou objetivação/subjetivação. Por exemplo, podemos nos
referir a) a uma relação através de um enunciado que a determine cognitivamente; b) a
uma proposição ou fórmula pelo ato enunciativo que as torna conhecidas, de modo todas
as fórmulas ou proposições são espécies de enunciados; c) à faculdade racional evocando
ao enunciado como condição própria de todo raciocínio; d) a um discurso ou doutrina
apelando para a unidade fundamental pela qual são distinguidos, como o faz Aristóteles -
no livro G da Metafísica - quando cita a doutrina de Protágoras utilizando a expressão
"enunciado de Protágoras", pois no caso se tratava apenas de um aspecto muito específico
de sua doutrina, podendo ser abreviado em um simples enunciado.
Em suma, se lo/goj é um termo aplicável a quase tudo, isto não se deve
necessariamente ao fato de ser um termo em si mesmo carente de uma semântica
específica, de modo a permitir, com tal vazio, a absorção de todos os significados. Se tal
apropriação ocorre, depende menos do termo em si do que da esfera específica a qual se
refere, esfera essa que, não obstante sua especificidade, é onipresente na esfera geral de
efetividade humana: a linguagem. Daí nossa opção por esta tradução. É que, para que o
lo/goj, de certo modo, se aplique a todo o ser, não há necessidade de que seja algo mais
do que um enunciado.
Essência (ou)si¿a)
Estar presente (u(pa/rxein)
Estrutura (morfh)
Extremo (eÃsxatoj)
Falso (yeu=doj)
332
Fortuna (tu/xh)
Tu/xh provém de tu/gxanw, que significa "eu encontro, eu topo com". Não
significa simplesmente contato entre dois entes, mas um encontro, ou seja, um contato em
que ao menos um dos contatados tem ciência de que está em contato e a possibilidade de
que tal contato pudesse, em outra circunstância, ser objeto de escolha por parte deste
contatado. Em outras palavras, o encontro é um contato que pode ser útil ou prejudicial,
bom ou mau. Isto explica outros integrantes da família tu/xh, como eutu/xia e
distu/xia, como significantes de um acontecimento casual bom ou mau. Nem todo o
acontecimento casual é bom ou mau. Muitos deles apenas ocorrem, pois em nada afetam
nossa escolha, não sendo contrários ou favoráveis a ela. É assim, por exemplo, a chuva
que cai pela manhã, se em nada interfere, positiva ou negativamente, em algum de nossos
planos. Neste caso, diremos apenas que a chuva foi obra do acaso (au)to/matoj). Se, no
entanto, a chuva é útil ou nociva a alguma nova espécie de erva que acabamos de semear,
agora estaremos diante de outro tipo de acaso. É o acaso da fortuna (tu/xh), que será
afortunada (eutu/xia) ou desafortunada (distu/xia), conforme favoreça ou desfavoreça
nossa semeadura. Portanto, o acaso não é algo diverso da tu/xh, mas apenas seu gênero,
pois toda tu/xh é obra do acaso, embora nem todo acaso seja tu/xh. Além disso, como
ficou claro pelo exemplo, o mesmo evento que, em determinada circunstância, foi apenas
casual e fora de toda atribuição axiológica, em outra conjuntura afeta diretamente nossos
propósitos, na medida em que, não apenas favorece ou prejudicar certas escolhas, mas até
mesmo dispensa o último elo da série de propósitos, seja porque completa a última das
condições necessárias para a consecução do objeto escolhido, seja porque a inviabiliza ou
333
impossibilita. É por isso que Aristóteles define a tu/xh como a privação da escolha, ao
passo que reserva a generalidade do acaso para os eventos onde a natureza - e não a
escolha - se vê privada de seu poder de ação. A tu/xh é privação da escolha, mas remete
necessariamente a ela, pois é aquilo cuja presença ou ausência poderia ser objeto de
escolha. Não devemos, no entanto, pensar que o acaso esteja fora do âmbito da tu/xh.
Apenas se trata de um recurso terminológico do Filósofo, ao utilizar o termo mais
genérico – e, portanto, carentes de especificação - para os fatos carentes de uma
atribuição de valor, como é o caso dos fatos gerados pela natureza (fu/sij). Contudo,
como dissemos, toda tu/xh é casual e, portanto, também gerada, em grande parte, pela
natureza, além de o componente subjetivo referido pela tu/xh - a escolha - também
decorrer da natureza, neste caso, a humana.
Gênero (ge/noj)
Idêntico (tau)toj)
Impassível (a)paqe/j)
Ver passibilidade.
Inteligência (nou=j)
Inteligir (noeiÍ.)
Infelizmente, não existe em português o verbo correspondente à intelecção e
inteligência. O mais aparentado “intelectualizar” está ainda muito distante da idéia de
noeiÍ., e “pensar” não faz referência direta a algo como o nou=j, sendo mais associado a
processos discursivos. Foi preciso um neologismo que aludisse diretamente a seus
334
cognatos, de modo a caracterizar a peculiaridade do ato de apreensão da inteligência
(nou=j). Esta opção foi empregada também por Maria Cecília Gomes dos Reis em sua
tradução de Da Alma, citada na bibliografia.
Intermediário (metacu/)
Limite (pe/raj)
Móvel (ki¿nhtoj)
Motor (ki¿nou@n)
Movente (kinou/menoj)
Movimento (ki¿nhsij)
Mutilado (koloboj/)
Natureza (fu/sij)
Necessário (anagkaiÍoj)
Oposto (antikei¿menoj)
O que é (to\ ti¿ e)stin)
Mantivemos o particípio grego na tradução de to\ oÄn, como o intuito de que, na
ocorrência de , não fosse preciso marcar a diferença entre ambos de um modo
excessivamente artificial, como algumas traduções, que apelam para ‘aquilo que é’, ou
que identificam precipitadamente to\ ti¿ e)stin ao to\ ti¿ hÅn eiånai, traduzindo ambos
por qüididade. O fato é que o fator cronológico é fundamental na metafísica aristotélica, e
pensamos que tal coisa explica muito de sua sutil terminologia. Assim, em um enunciado
como ‘o homem é branco’, tanto branco homem como branco ocorrem ‘sendo’, isto é,
335
são ‘sendos’, entes. Mas o homem é que é realmente é, enquanto o branco é apenas
‘sendo’ com o homem. Do homem, podemos dizer que é, pois é algo. Do branco, embora
também seja, não dizemos nada diretamente dele, mas simplesmente ao dizer que homem
é branco, tornamos verdadeiro o enunciado ‘é branco’. A rigor, o branco não é, mas sim
que o homem, que significa algo que é, é referido neste enunciado como ‘sendo’ branco.
Pensamos assim que com o particípio to\ oÄn, Aristóteles dispense justamente qualquer
determinação lógica, gramatical ou metafísica para a instância do ser em questão. Trata-
se ali de qualquer estrutura participante de uma enunciação do ser (eiånai), não
importando seu lugar no enunciado ou na própria constituição do mundo. Já com o
presente to\ ti¿ e)stin há uma primeira tentativa de aproximação como o sentido nuclear
do ser, identificado, entre outros escritos, em Z como essência (ou)si¿a) e ser-prévio (to\
ti¿ hÅn eiånai) de cada coisa. Vale lembrar que tal recurso possibilita outra aproximação
com a estrutura genuína da essência: seu caráter efetivo, verdadeiramente presente de sua
determinação própria, que contrasta como o ser da matéria que, embora ainda mais
subjacente que a forma, perde o estatuto de essência por representar, em si mesmo,
apenas um estado latente da essência, nenhuma determinação presente, mas apenas
possível, isto é, passada ou futura.
“O para o qual” (to\ ou eÀneka)
Parte (me/roj)
Passibilidade (pa/qoj)
O termo paixão, do escolástico passio, parece ter sofrido algum desgaste. Sua
definição estritamente filosófica caiu praticamente no esquecimento. Por outro lado, seu
336
significado vulgar é demasiadamente psicológico e contrastante com a pretensão do
Filósofo, ao contrário do que ocorre com termos como potência, cujo significado usual,
ainda que não coincida exatamente com a noção de dynamis, está suficientemente
próximo de modo a ser incorporado ao texto, elaborado metafisicamente e atingirmos o
sentido desta noção sem maiores equívocos.
Outra alternativa de tradução é o termo passividade. A seu favor temos aqui a
percepção direta da correlação pa/sxein-poieiÍn, cuja atividade cabe ao segundo termo.
No entanto, primeiramente devemos ter em mente que atividade, embora muito utilizada,
não é uma opção muito satisfatória para poi¿esij, que preferimos reservar para o termo
pra=cij. Em segundo lugar, passividade nos parece um termo indeterminado demais para
o pa/qoj tal como entendia Aristóteles. Não se trata meramente de um estado ou
disposição geral para sofrer uma ação de outro ser, mas uma recepção específica de
determinado efeito ou qualidade. Mais do que um “ser passivo”, pa/qoj evoca um “ser
passível de”, pois cada pa/qoj é relativo apenas àquilo de que é pa/qoj. Daí nossa opção
por “passibilidade”.
Quanto à afecção, valem quase as mesmas observações referentes ao termo paixão,
particularmente em sua forma adjetivada “afetivo”, que teríamos de aplicar ao nos
depararmos com o nou=j paqhtiko\j, agora “inteligência afetiva”, resultado altamente
insuficiente para significar a gama de notas característica deste conceito. A afetividade é
apenas um dos atributos deste aspecto da inteligência – denominada mais freqüentemente
nous dynaton - que é capaz da memória e da imaginação (fantasi¿a), ao contrário da
337
inteligência produtiva, que detém uma simplicidade incompatível com qualquer destas
formas de recepção material.
Pelo que (kaq' oÁ)
Plenitude (e)ntele/xeia)
No Livro Theta da Metafísica, Aristóteles fornece uma definição precisa de
efetividade:
“A efetividade (e)ne/rgeia) é a coisa (to\ pra=gma) estar presente
(hypárchein), mas não enquanto se diz estar em potência (duna/mei).” (1048a32)
eÃsti dh\ e)ne/rgeia to\ u(pa/rxein to\ pra=gma mh\ ouÀtwj wÐsper le/gomen duna/mei:
E no mesmo livro, há também um interessante comentário acerca da afinidade
etimológica entre esta palavra e outras igualmente caras em sua terminologia, entre as
quais o termo “e)ntele/xeia”:
"O termo efetividade (e)ne/rgeia), que se liga estreitamente ao termo
plenitude (e)ntele/xeia), mesmo que se estenda a outros casos, provém
sobretudo dos movimentos: parece que a efetividade é, sobretudo, movimento."
(Met. Q, 1047a30)
e)lh/luqe d' h( e)ne/rgeia touÃnoma, h( pro\j th\n e)ntele/xeian suntiqeme/nh, kaiì e)piì ta\ aÃlla e)k tw½n kinh/sewn ma/lista:
"Pois a completude (te/loj) é o efeito (eÃrgon), e a efetividade (e)ne/rgeia) é o
efeito (eÃrgon), por isso também o nome efetividade faz referência ao efeito e concorre
para a plenitude (e)ntele/xeia).” (1050a21)
to\ ga\r eÃrgon te/loj, h( de\ e)ne/rgeia to\ eÃrgon, dio\ kaiì touÃnoma e)ne/rgeia le/getai kata\ to\ eÃrgon kaiì suntei¿nei pro\j th\n e)ntele/xeian.
338
A passagem acima deu margem a uma opinião acerca da origem deste termo,
e)ntele/xeia, partilhada, entre outros, por Reale. Segundo tal visão, este termo seria uma
forma abreviada de e)ne/rgeia teleia. No entanto, há outra opção para a gênese de
e)ntele/xeia.
Ora, se o efeito (eÃrgon) é uma completude (te/loj), e o efeito enquanto tal tem
que ser o que “está feito”, ele deve ser efetivado, deve estar em efetividade (e)ne/rgeia).
É por isso que o nome efetividade faz referência ao efeito e está ligado à plenitude
(e)ntele/xeia), pois esta é o ter (exein) completado (entelhj) um efeito. "Estar feito",
“efetivado” é como uma fusão de "pleno" e "ter, possuir", soando também algo como "ter
completado” (entelhj exo), cuja substantivação forneceria “entelécheia”. Assim, ao
contrário do que pensaram aqueles que viram em "e)ntele/xeia" uma abreviação de
e)ne/rgeia teleia, parece-nos que o termo e)ntele/xeia o termo que traz, ao ser
evocado, outros dois termos: pleno e posse101 (eÀcij). Coisa semelhante ocorre já com
outro termo tornado conceito-chave na Física de Aristóteles, o de continuidade
(sune/xeia), forma substantivada de “sune/xw”, que, por sua vez é uma síntese de sun
e e/xw, significando “ter junto”, “manter unido”. Outra construção semelhante é
“associação” (sunte/leia), que próvem de suntele/w, junção de sun e tele/w, isto é,
“cumprir ou completar junto”.
Por si (kaq' au(to)
Posse (eÀcij)
101 Termo incluído no vocabulário de tradução, em apêndice.
339
Em geral este termo é traduzido como “disposição”. No entanto, esta opção traduz
muito fielmente – quase literalmente - outro termo caro ao Filósofo: dia/qesij. Este
ocupa, no livro D da Metafísica – espécie de dicionário metafísico – a posição
imediatamente anterior à eÀcij na ordem de definições. Além disso, eÀcij está
etimologicamente ligado a exw (tenho, possuo; ser dono de), que também é outra
palavra definida neste mesmo livro, sendo uma de suas definições justamente “possuir”,
cuja forma substantivada “posse” pensamos traduzir satisfatoriamente o correspondente
eÀcij tal como apresentado no mesmo livro. Com efeito, ali esta palavra corresponde a
um estado de efetividade (e)ne/rgeia), seja quanto ao movimento (ki¿nhsij) ou à
atividade (pra=cij) em algo ou sob algo. Ao mesmo tempo se refere a tal efetividade e à
relação de subordinação aí envolvida, em que um termo atua possuindo e outro se
submete à posse. É desta forma que entendemos melhor uma importante passagem do De
Anima.
Possuir (eÃxein)
Ver Posse (eÀcij)
Posterior (uÀsteroj)
Potência (du/namij)
Princípio (arxh\) Produção (poi¿esij)
Poi¿esij não é apenas o agir sobre algo, mas também a determinação de uma
nova estrutura sobre o objeto da atividade, estando mais próximo de uma criação, embora
340
de natureza menos radical e abrupta do que pode sugerir esta último termo. Daí que
produção pareça mais apropriado no sentido de transmitir a idéia conotada pelo vocábulo
grego.
Privação (ste/rhsij)
Qual (poi@oj)
Quanto (posoj)
Relativo (pro/j ti)
Semelhante (oÀmoioj) Ser-prévio (to\ ti¿ hÅn eiånai)
Tomemos os seguintes trechos do Livro Z da Metafísica:
A) O ente é dito de muitos modos. [...]De fato, o ente significa, de um lado, ‘o que é’ e
algo determinado, de outro, ‘o qual’, ‘o quanto’ e cada uma das outras categorias. (Z
1028a)
To\ oÄn le/getai pollaxw½j, kaqa/per dieilo/meqa pro/teron e)n toiÍj periì tou= posaxw½j: shmai¿nei ga\r to\ me\n ti¿ e)sti kaiì to/de ti, to\ de\ poio\n hÄ poso\n hÄ tw½n aÃllwn eÀkaston tw½n ouÀtw kathgoroume/nwn. B) “O ser-prévio de cada coisa é o que é dito por ela mesma. Pois teu ser não é o ser
músico, porquanto não és músico por ti mesmo.” (Z 1029b13)
oÀti e)stiì to\ ti¿ hÅn eiånai e(ka/stou oÁ le/getai kaq' au(to/. ou) ga/r e)sti to\ soiì eiånai to\ mousik%½ eiånai: ou) ga\r kata\ sauto\n eiå mousiko/j. C) "Mas nem tudo que é por si é o ser-prévio. Por exemplo, não é ser-prévio algo que é
por si do modo como uma superfície é branca" (Z 1029b18).
ou)de\ dh\ tou=to pa=n: ou) ga\r to\ ouÀtwj kaq' au(to\ w¨j e)pifanei¿# leuko/n.
O ente, em sentido primeiro, é algo determinado que é, ou seja, algo que possui
ser determinado (A). “O ser-prévio” é o ente que de fato se revelou como ente justo
341
porque é ser por si mesmo (B). A dupla ocorrência do verbo decorre da auto-referência da
efetividade do ser, representada pela expressão “to\ ti¿ hÅn eiånai”, ao mesmo tempo em
que tal referencialidade é também cognoscitiva, e a cognoscibilidade do ente é sempre
posterior à sua realidade. A verdade do conhecimento é determinada pela verdade da
coisa, e não o contrário. Ou melhor: o ser do conhecimento é determinado pelo ser da
coisa, e a própria verdade no sentido estrito – que pressupõe a relação sujeito-objeto – é
posterior ao ser da coisa. É por isso que em Categorias, lemos:
“Obtemos conhecimento comumente de coisas que já existem, pois em
pouquíssimos casos ou em caso algum pode o nosso conhecimento ter vindo a ser
juntamente com o próprio objeto que lhe é peculiar. No caso de ser o objeto do
conhecimento (tò epistetón) suprimido, o próprio conhecimento é anulado. O
inverso disto não é verdadeiro. Se o objeto não mais existir, não poderá mais
haver nenhum conhecimento, nada havendo agora para conhecer. Se, entretanto,
deste ou daquele objeto nenhum conhecimento foi ainda adquirido, é possível que
esse objeto, ele mesmo, exista. Tome-se o exemplo da quadratura do círculo, se
podemos a isto chamar de um tal objeto. Embora ela exista como objeto, o
conhecimento ainda não existe. Se todos os animais deixassem de existir, não
haveria então conhecimento algum, não obstante pudesse haver, neste caso,
ainda uma multiplicidade de objetos de conhecimento.” (7b25)
w¨j ga\r e)piì to\ polu\ prou+parxo/ntwn tw½n pragma/twn ta\j e)pisth/maj lamba/nomen: e)p' o)li¿gwn ga\r hÄ e)p' ou)deno\j iãdoi tij aÄn aÀma t%½ e)pistht%½ th\n e)pisth/mhn gignome/nhn. eÃti to\ me\n e)pisthto\n a)naireqe\n sunanaireiÍ th\n e)pisth/mhn, h( de\ e)pisth/mh to\ e)pisthto\n ou) sunanaireiÍ: e)pisthtou= ga\r mh\ oÃntoj ou)k eÃstin e)pisth/mh, ou)-deno\j ga\r eÃti eÃstai e)pisth/mh, e)pisth/mhj de\ mh\ ouÃshj ou)de\n kwlu/ei e)pisthto\n eiånai: oiâon kaiì o( tou= ku/klou tetragwnismo\j eiãge eÃstin e)pisthto/n, e)pisth/mh me\n au)tou= ou)k eÃstin ou)de/pw, au)to\ de\ to\ e)pisthto\n eÃstin. eÃti z%¯ou me\n a)naireqe/ntoj ou)k eÃstin e)pisth/mh, tw½n d' e)pisthtw½n polla\ e)nde/xetai eiånai.
342
No entanto, a anterioridade relativamente à efetividade cognitiva não é suficiente
para que um ente seja o ente em sentido primeiro, o ser-prévio. Como o Filósofo já
expressou acima, este é um caráter comum a todo cógnito, à totalidade dos entes
cognoscíveis. É preciso também que o ente seja anterior relativamente a outros entes com
os quais está associado. Em outras palavras, o ente primeiro já existia antes do advento
dos outros entes, o que vale como evidência suficiente de sua independência
relativamente aos mesmos. O exemplo fornecido por Aristóteles ilustra bem esta
exigência na sentença (B):
"Teu ser-prévio, de fato, não é o ser músico, porque não és músico por ti
mesmo. Teu ser-prévio, portanto, é só aquilo que és por ti mesmo." (1029b15)
ou) ga/r e)sti to\ soiì eiånai to\ mousik%½ eiånai: ou) ga\r kata\ sauto\n eiå mousiko/j. oÁ aÃra kata\ sauto/n.
Ora, aqui fica claro que “o ser dito por si" (oÁ le/getai kaq' au(to) está
claramente vinculado a uma temporalidade auto-instauradora, ao um passado que
evidencia a independência do ser-prévio. Não se trata somente de um "ser por si" no
sentido de que tal homem se tornou músico partindo de suas próprias condições, por sua
própria vontade, pois nesse caso o "ser músico" faria parte de seu ser-prévio.
Daí que o verbo esteja no imperfeito. O fato de não ter sido utilizado o perfeito
enfraquece também a tese de Aubenque de que Aristóteles apontasse um déficit temporal
constante na determinação cognitiva do ente. O to\ ti¿ hÅn eiånai é algo que era, mas que
deve continuar sendo no momento em que é conhecido, ainda que não permaneça para
sempre nos entes sensíveis e corruptíveis. O músico não deixa de ser homem no instante
em que reconhecemos o "ser homem" como o ser-prévio, isto é, o ser que "já era" antes
343
do "ser músico". O tempo verbal passado tem aqui um significado ontológico positivo, de
auto-existência, auto-efetividade, e não o contrário, como se fosse algo já inefetivo no
momento em que é objeto de intelecção. Traduções razoáveis de to\ ti¿ hÅn eiånai seriam
“ser-prévio”, “auto-ser”, “ser por si” ou simplesmente “ser” no sentido da frase “todo o
meu ser se retesou sobre mim” da obra “O Estrangeiro” de Camus. Neste caso, é evidente
que o ser retesado é o ser-prévio, aquele inalienável, que se faz por si mesmo. No entanto,
o verbo “ser”, isolado, não trasmite a significação estrita de to\ ti¿ hÅn eiånai, pois nem
todo ser é to\ ti¿ hÅn eiånai. O “ser branco” não é um ser-prévio, pois deve ser, ele
mesmo, precedido pelo ser-prévio da essência branca. A propósito da noção de “por si”,
convém notar que o Filósofo freqüentemente estabelece o nexo íntimo entre esta noção e
a de to\ ti¿ hÅn eiånai, inclusive nos próprios momentos em que as define. Penso que
Aristóteles só não cunhou a expressão “ser por si” no lugar de “to\ ti¿ hÅn eiånai” porque
assim se perderia a dupla função semântica – ontológica e gnosiológica – que a
recorrência do verbo ser tão bem poderia cumprir. O ser-prévio é o referido pelo
enunciado (lo/goj) que decorre apenas da cognição da coisa, quer dizer, da própria coisa
por si mesma, separada de tudo o que apenas se lhe agrega, sendo esta a função
gnosiológica de que falamos agora. Mas tal função só tem lugar a partir da função
ontológica de to\ ti¿ hÅn eiånai, que é a de ser, além de uma fórmula expressa, a própria
natureza formal homônima da coisa. Acima discutimos esta relação homonímica mantida
entre a forma universal e a forma essencial quando também sintetizamos a solução na
sentença "o universal é essência mas não enquanto universal, assim como a essência é
universal mas não enquanto essência". Ora, o ser-prévio é por si o enunciado (lo/goj) da
344
coisa somente porque é a forma essencial da coisa. É o ser da fórmula apenas porque já
era o ser da coisa, previamente à efetividade de formulação. Daí que a tradução literal de
to\ ti¿ hÅn eiånai seja algo em torno de "o que era o ser" ou "o ser que era". Como
dissemos, o tempo imperfeito aqui não deve ser entendido como a instância de um ser já
não efetivo no momento em que é objeto de intelecção e formulado, como se tal pretérito
fosse a razão profunda de todo o problema da definição em Aristóteles. Esta havia sido a
empresa de Aubenque. Na verdade, o pretérito revela-nos mais a anterioridade
cronológica e ontológica da efetividade do ser-prévio do que sua inefetividade em
referência à tomada cognitiva da fórmula definitória. O problema da definibilidade em
Aristóteles tem a ver, antes, com a noção de indivíduo e unidade separativa, cuja máxima
expressão repousa na natureza do motor imóvel.
Sujeito (u(pokei¿menoj)
Há várias traduções possíveis para u(pokei¿menoj. Uma delas é a) sujeito, adotada
nesta tese. Outras são b) substrato, c)hipóstase e d) substância. Todas estas são versões
praticamente literais do original grego, cujo prefixo u(po significa “estar sob” e o sufixo
kei¿menon conota “aquilo que permanece, que se mantém”. Assim, o termo completo
possui um significado próximo a “aquilo que se mantém, que permanece sob algo”.
Ocorre que, semelhantemente a vários outros termos aristotélicos, u(pokei¿menoj
é passível tanto de um uso lógico quanto ontológico. Tanto pode significar o elemento
que fundamenta o ato predicativo, o qual se efetiva “sobre” tal fundamento, isto é, como
que apontando para ele desde uma perspectiva superior de abstração. Acerca desta
superveniência predicativa, não deve passar desapercebido o fato da palavra grega para
345
predicado – kathgori¿a – ter como prefixo kaq', que evoca a idéia de um movimento
de cima para baixo e o sufixo goría, correspondente ao dizer público, reconhecido. Os
predicados são atribuídos a um elemento que deve apoiar a conveniência de todos eles,
isto é, fundamentar estas atribuições, como se estivesse abaixo deles, sustentando-os.
Mas tal sustentação deve começar na própria coisa, caso contrário o dizer público acerca
do que é sustentado não faria sentido. Em outras palavras: a atribuição seria falsa ou,
ainda, vã. O elemento que dá suporte aos predicados deve ser ontológico antes de ser
lógico-gramatical, embora envolva também este último enquanto corolário subjetivo.
Diante dessa dupla necessidade, decidimos por sujeito por ser um termo que, no
português, carrega ambas as possibilidades semânticas, além de cada, quando focada em
determinado discurso, não excluir por si mesma a outra, exatamente como parecia ocorrer
com o termo grego.
Total (oÀloj)
Transição (metabolh/)
Um (eÁn)
346
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