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CLEIA DA ROCHA A OBSCENA SENHORA A: A DE ABSURDO Londrina 2012

hilda Hilst

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magnifico tratado sobre a grande escritora campinense e sua grande e maravillhosa lírica brasileira. conseiderada a pérola da literatura descoberta pelos norteamericanos no século XXI.

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  • CLEIA DA ROCHA

    A OBSCENA SENHORA A: A DE ABSURDO

    Londrina

    2012

  • CLEIA DA ROCHA

    A OBSCENA SENHORA A: A DE ABSURDO

    Dissertao apresentada ao programa de Ps Graduao em Letras da Universidade Estadual de Londrina, como requisito Parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Estudos literrios.

    Orientador: Prof. Dr. Volnei Edson dos Santos

    Londrina 2012

  • Catalogao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    R672o Rocha, Cleia da.

    A obscena senhora A : A de absurdo / Cleia da Rocha. Londrina, 2012. 157 f. Orientador: Volnei Edson dos Santos.

    Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Centro de Letras e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Letras, 2012.

    Inclui bibliografia. 1. Hilst, Hilda, 1930-2004 Crtica e interpretao Teses. 2. Fico

    brasileira Histria e crtica Teses. 3. Literatura Filosofia Teses. 4. Metafsica na literatura Teses. 5. Linguagem Filosofia Teses. I. Santos, Volnei Edson dos. II. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Letras. III. Ttulo.

    CDU 82.09

  • CLEIA DA ROCHA

    A OBSCENA SENHORA A: A DE ABSURDO

    Dissertao apresentada ao programa de Ps- Graduao em Letras Estudos Literrios da Universidade Estadual de Londrina, como requisito Parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________Prof. Dr. Volnei Edson dos Santos

    UEL Londrina - PR

    ______________________________________ Prof. Dr. Gabriel Giannatasio

    UEL Londrina - PR ______________________________________

    Profa. Dra. Marta Dantas UEL Londrina - PR

    ______________________________________ Prof. Dr. Jos Fernandes Weber

    UEL Londrina - PR ______________________________________

    Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon UEL Londrina - PR

    Londrina, 31 de agosto de 2012.

  • Se consegui enxergar mais longe e por que estava sobre braos de gigante. (Isaac Newton)

    A todos que perto ou longe nunca deixaram de me apoiar.

  • AGRADECIMENTOS

    A meu orientador, Prof. Dr. Volnei Edson dos Santos, pela pacincia e segurana que sempre me transmitiu desde nosso primeiro contato. Suas orientaes guiaram minha pesquisa e me mostraram perspectivas nunca antes pensadas, mas totalmente imprescindveis, para que eu chegasse at aqui.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao de Letras da UEL,

    pelos ensinamentos ao longo dos dois anos de incurso pelo programa de Estudos Literrios.

    Aos meus amigos, Srgio, Ricardo, Willian e Lus que percorreram

    juntos este caminho, alguns falando e ajudando diretamente na construo de meu objeto de pesquisa, outros ouvindo pacientemente as numerosas comunicaes sobre Hilda Hilst que fiz ao longo destes dois anos, tentando iluminar o caminho rumo a esta dissertao.

    A minha amiga, Sandra, que sem entender nada de Filosofia e Hilda

    Hilst, tentou organizar minhas ideias sempre confusas e torn-las minimamente legveis.

    A minha famlia, pela pacincia e tolerncia em todos os momentos. A meu marido, pelo o apoio e pelo carinho.

    Ao CNPQ, por ter me proporcionado a oportunidade de me dedicar

    exclusivamente a este trabalho.

  • ROCHA, Cleia da. A obscena senhora A: A de absurdo. 2012. 157 f. Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.

    RESUMO

    Este trabalho pretende fazer um estudo da obra A obscena senhora D, de Hilda Hilst, focando na relao do sujeito fragmentado consigo mesmo e com suas categorias de insero no mundo, concebido por ns como: o outro, Deus, o tempo, a morte e a linguagem. Para tratar destas questes do sujeito que se colocam como questes ontolgicas, metafsicas e estticas, recorreremos s teorias de Aristteles, Heidegger e Albert Camus. Em nossa concepo a fragmentao do sujeito origina-se de uma perda da referncia transcendente, e consequentemente do afloramento da conscincia de imanncia e desamparo que provm de tal constatao. A derrelio na estrutura do eu, se propaga como uma manifestao absurda sobre as demais relaes humanas e tem na linguagem potica sua ltima parada e possibilidade de salvamento do eu, ainda que momentaneamente. Palavras-chave: Hilda Hilst. Literatura. Filosofia.

  • ROCHA, Cleia da. L obscene madame A: A dabsurde. 2012. 157p . Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.

    RSUM

    Avec ce travail de recherche on propose une tude sur loeuvre A obscena senhora D de Hilda Hilst et plus specifiquement, sur la relation qui fait le sujet fragment avec soi-mme e avec ses categories dinsertion dans de monde, cest--dire avec lautre, avec Dieu, le temps, la mort et le langage. Pour rpondre cela qui se transforme la fin en questions dordre ontologique, mtaphysique et esthtiques nous nous ferons lusage de quelques penses dArtistote, Heidegger et Albert Camus. Selon notre point de vue, cette fragmentation du sujet a son origine dans la perte dun point de repre par rapport la transcendence et par consquent en arrivant une conscience de totale immanence et de dlaissement de soi. Ainsi la drliction de la conscience mme de lindividu se rpand telle quelle une manifestation absurde sur les autres rapports de lexistence humane et en trouve sa dernire demeure et possibilit de rfuge, bien que de une manire fugace dans le langage potique. Mots-cl: Hilda Hilst. Litterature. Philosophie

  • ROCHA, Cleia da. The obscene lady A: A of absurd. 2012. 157 f. Dissertao (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.

    ABSTRACT

    This work intends to study the novella A obscena senhora D, by Hilda Hilst, focusing on the relation stablished by the fragmented subject with himself and with his categories of insertion in the world, conceived by ourselves as: the other, God, time, death and language. To deal with these questions of the subject, that are given as ontological, metaphysical and aesthetic questions, we have recurred to Aristotle, Heidegger and Albert Camuss theories. In our conception, the subjects fragmentation arises from a lost of transcendental reference, and consequently from the outbreak of the consciousness of imanence and abandonment that comes from such perception. The derrelition in the selfs structure propagates as an absurd manifestation above all the other human relations, and in poetic language it finds its last stop and a possibility of salvation for the self, even if only for a moment.

    Keywords: Hilda Hilst. Literature. Philosophy.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ...............................................................................................9

    2 REPERCUSSES CRTICAS OBRA DE HILDA HIST..............................16

    3 HILDA HILST: UMA ESCRITA ENTRE FRONTEIRAS .................................31 3.1 REINTRODUO ................................................................................................37

    4 AS OBSESSES METAFSICAS HILSTIANAS ........................................40 4.1 EPTETOS METAFRICOS-FILOSFICOS EM A OBSCENA SENHORA D. ...................45

    4.1.1 Aristteles e a Absurda Hill...........................................................................47

    4.1.2 D de Derrelio: Hill e Heidegger .................................................................59

    5 A OBSCENA SENHORA A: UM MODO DE VIVNCIA ABSURDA.................72 5.1 TU NO TE MOVES DE TI: ALTERIDADE ABSURDA ...............................................82

    5.2 TRONO VAZIO: IMPOSSIBILIDADE DE TRANSCENDNCIA ........................................97

    5.3 O TEMPO: ESTA COISA QUE NO EXISTE MAS CRUA, VIVA............................116

    5.4 PARA PODER MORRER: A MORTE NO TERRITRIO DO ABSURDO........................125

    5.5 DEVANEIOS POTICOS: UMA LINGUAGEM NO VO DO SER ...................................135

    CONCLUSO ...........................................................................................................149

    REFERNCIAS.........................................................................................................152

  • 9

    1 INTRODUO

    O objetivo de nossa dissertao apontar como ocorre a crise do

    sujeito na obra A obscena senhora D, de Hilda Hilst. Tomando para isso de uma

    abordagem que relaciona o universo ficcional desta obra a alguns dos conceitos da

    metafsica ocidental (trabalhados por Aristteles e Heidegger) acerca da

    impossibilidade de apreenso da essncia dos sujeitos. Alm disso, visa tambm

    mostrar como se d a vivncia absurda deste sujeito que, ao desconstruir suas

    categorias de auto concepo passa a viver um conflito existencial, modo muito bem

    apontado na obra O mito de Ssifo, de Albert Camus.

    A escolha por nomes como o de Aristteles (talvez mais de um

    Aristteles visto sob a influncia de Heidegger) e Heidegger est ancorada

    inicialmente nos elementos formais da prpria obra, j que partimos da considerao

    de que os eptetos Hill e D (D de Derrelio) usados para denominar a personagem

    principal desta obra guardam uma referncia aos termos hyl e derrelio, usados

    comumente pelos respectivos filsofos supracitados.

    A relao com o autor Albert Camus parte de uma referncia no to

    direta quanto relao anterior. Ela se acrescenta com base no contedo

    aparentemente absurdo do texto hilstiano. A expresso deste absurdo, to cara a

    Camus, dada, em nossa concepo, por meio da limitao do alcance racional do

    sujeito (personagem) em contraposio complexa irracionalidade do mundo,

    aflorada aps a conscincia da derrelio.

    O que tentamos entender em que medida a crise deste sujeito,

    exaurido de sua concepo transcendental, se reflete nos modos como o homem

    apreende e busca relacionar-se com o mundo, com o outro, com Deus, com o

    tempo, com a morte e com a prpria linguagem.

    Desta forma, buscaremos inicialmente a compreenso de como se

    d a representao do sujeito, visto aqui como homem (categoria supervalorizada) e

    como este sujeito entra em crise ao no conseguir mais uma representao que o

    relacione a uma essncia suprassensvel, anteriormente dada em nossa sociedade,

    principalmente por meio da genealogia divina.

    Embora o modo de representao da condio humana tenha

    variado no decorrer do tempo, ela guarda uma profunda relao com as categorias

    apresentadas por Aristteles, na antiguidade grega: o homem aquele que preso a

  • 10

    uma forma perecvel e mutvel faz parte de uma matria incognoscvel e eterna,

    chamada posteriormente por outros pensadores de essncia humana, por exemplo.

    O homem no decorrer de sua histria tem se pensado como manifestao de uma

    essncia originada de um ato puro e imutvel. Aristteles chamou esta essncia de

    primeiro movimento, os religiosos, de Deus.

    Este arqutipo de ser humano derivado da concepo aristotlica

    corrobora a escolha pelo termo metafsica, para explicar justamente as relaes

    desta paradoxal composio do humano. O termo, embora tenha outro modo de

    leitura, conforme enfatiza Heidegger, foi empregado pela filosofia e pelo senso

    comum, como a forma de pensamento que relaciona categorias para alm da fsica.

    Assim, quando se fala em metafsica, sempre pensamos em questes relacionadas

    condio humana em sua esfera suprassensvel (como Deus, a imortalidade, etc.),

    ou seja, para alm do cotidiano explicvel. Retoma-se, assim, nossa prpria

    concepo do que seja o humano, como aquele que sendo fsico e, portanto, mortal

    e limitado, s se completa na sua relao com o suprassensvel, ou seja, em funo

    de seu destino eterno, de sua imortalidade.

    A questo para ns pensarmos como este sujeito, desprovido da

    possibilidade de ligao com o transcendente, consciente de seu abandono e

    desamparo, assume-se como conscincia fragmentada e absurda.

    Por questes metodolgicas, o primeiro captulo de nossa anlise

    apontar os momentos mais marcantes da trajetria de Hilda Hilst e sua difcil

    relao com a crtica literria brasileira. Pretendemos, na medida do possvel,

    apontar as possveis razes para a ausncia de uma crtica acadmica relevante

    acerca da obra de Hilst at a dcada de 90. Veremos que a obra de Hilst convive

    com quatro momentos marcantes da crtica literria no Brasil: a crtica do rodap; a

    crtica estruturalista; a crtica sociolgica e a crtica ps-estruturalista. Sendo que sua

    obra receber a ateno da primeira e da ltima dessas correntes. Desta forma,

    podemos dizer que h com relao obra de Hilst, uma lacuna crtica no que diz

    respeito aos trabalhos da crtica de vertente estruturalista e sociolgica.

    No segundo captulo, Hilda Hilst: uma escrita entre fronteiras,

    apresentamos a natureza interdiscursiva do trabalho literrio de Hilda Hilst, bem

    como a possvel relao que a obra e a prpria autora desenvolve com o discurso

    filosfico. Esta escrita feita entre fronteiras uma das marcas autorais da escritora

    campinense, sendo esta, segundo alguns crticos, a razo da sua escrita hermtica.

  • 11

    Em nosso captulo intitulado Obsesses metafsicas hilstianas,

    buscamos pensar o possvel dilogo que a obra de Hilda Hilst estabelece com

    alguns discursos filosficos. Em nossa concepo, este modo de anlise

    influenciado pela prpria estrutura do texto hilstiano, rico em proposies metafsicas

    e que encontram no campo da Filosofia um terreno frtil para suas discusses. Em

    Hilda Hilst, a razo especulativa mostra seus limites, pois as indagaes metafsicas

    no encontram as respostas na tradio do pensamento conceitual, mas sim no

    terreno das divagaes potica-existenciais do eu absurdo.

    Em A obscena senhora D, temos uma personagem que no cessa

    de tentar entender as questes-limites de sua condio humana. Mas segundo

    Cavalcanti (2010, p.192), toda a srie de perguntas que a personagem faz pode ser

    resumida na questo essencial: Quem Hill?. Nesta obra, a tentativa de

    responder esta angustiante dvida do sujeito se efetiva por meio do dilogo com a

    filosofia de Aristteles e Heidegger. Por meio dos eptetos Hill e Senhora D, Hilst

    estabelece uma possvel ligao com o discurso filosfico, relacionando os nomes

    da personagem central, respectivamente aos termos hyl (Aristteles) e derrelio

    (Heidegger).

    A personagem Hill em dado momento da narrativa assume a

    nomeao de Senhora D. Esta mudana no nome representa a prpria

    transformao que ocorre no interior deste sujeito, pois se o indivduo enquanto Hill

    guarda ainda uma esperana de transcendncia, representada pela crena em um

    Deus poderoso e numa alma imortal, ao assumir-se como derrelio ele abdica de

    qualquer certeza transcendente.

    Hill, durante um grande perodo de sua vida, compartilha da viso

    metafsica dos demais sujeitos: ela acredita que possvel chegar matria

    essencial da vida. Em dado momento, no entanto, a personagem perscrutando

    racionalmente sua condio conscientiza-se da falncia das explicaes metafsicas

    em dar sentido para a sua existncia.

    Hill, que desde sempre fora um sujeito angustiado, ao tornar-se

    consciente de que a esperana em um Deus ou numa alma imortal trata-se de uma

    construo do prprio sujeito humano - amedrontado diante de sua eterna condio

    de abandono e desamparo no mundo assume, ento, sua condio de abandono

    (derrelio), metaforicamente colocada sobre o D de Senhora D, nome pelo qual seu

    marido passa a cham-la.

  • 12

    Assumir-se como sujeito da derrelio1(geworfenheit) tornar-se

    consciente da impossibilidade de qualquer unidade. Assim, todas as categorias com

    as quais o sujeito se relaciona, assumem tambm a condio de realidade

    estilhaada. Para Hill, constatar a derrelio (desamparo) de sua vida assumir-se

    como um estranho diante de si, do outro e das demais categorias que compem o

    universo humano.

    No captulo, A obscena senhora A: um modo de vivncia absurda,

    apontamos as consequncias imediatas da derrelio na vida do sujeito Hill. Para

    este sujeito, tudo que at a conscientizao do desamparo era visto como realidade

    autntica assume agora o carter de encenao. O mundo um cenrio que

    desaba. Este divrcio com o mundo, efetivado pela personagem, condiz com os

    apontamentos acerca do absurdo, feitos por Albert Camus, em O mito de Ssifo.

    A postura que o sujeito da derrelio assume diante da vida refora

    uma singularidade e um estranhamento do eu, que no podendo se explicar

    racionalmente, assume-se como o sujeito absurdo.

    O sujeito absurdo se difere da maioria dos homens, chamados

    sujeitos cotidianos2. Enquanto os homens cotidianos esto empenhados em tarefas

    do dia a dia, como o trabalho, a educao dos filhos, o sucesso financeiro e

    amoroso, e esto crentes de que a explicao para tudo se coloca na figura de um

    Deus, de um filsofo existencialista ou da fsica quntica; o homem absurdo, por

    sua vez, no acredita que se possa chegar verdade por nenhum meio, sendo

    mesmo, desnecessrio este empenho para a posteridade. Ele no projeta sua

    esperana nem na manh seguinte, nem em outra vida. Este sujeito s conhece a

    1 A palavra Geworfenheit de origem alem, como veremos mais adiante pode ser traduzida como

    estar-lanado, desamparo, abandono e derrelio. Tendo em vista o dilogo entre a obra de Hilst e de Heidegger optamos frequentemente por traduzir esta palavra como derrelio. Assim, a expresso sujeito da derrelio que ser amplamente usado neste trabalho, deve ser lida como a condio de abandono que habita o interior do homem desde que ele vem ao mundo. Ao afirmarmos que o homem sujeito da derrelio no queremos dizer que ele desampara, mas sim, que ele por meio da conscincia de sua condio assume o desamparo dado pelo mundo.

    2 Muitas vezes no decorrer deste trabalho recorreremos s expresses sujeitos absurdos e sujeitos cotidianos para diferenciar, respectivamente, o homem que assume a irracionalidade do mundo e o homem que continua preso aos conceitos da tradio. Tais expresses, ainda que modificadas, so oriundas das definies feitas por Camus, em O mito de Ssifo, visando esta mesma diferenciao. O autor argelino usa frequentemente as expresses: homem absurdo, heri absurdo contrapondo-as expresso homem cotidiano: Ele diz: Antes de encontrar o absurdo o homem cotidiano vive com metas, uma preocupao com o futuro ou a justificao (no importa em relao a quem ou a qu), [...] o homem absurdo compreende que estava ligado at aqui ao postulado de liberdade em cuja iluso vivia. Em certo sentido, isto era uma trava. Na medida em que imaginava uma meta para sua vida, ele se conformava com as exigncias da meta a ser atingida e se tornava escravo de sua liberdade. (CAMUS, 2009, p.68-69).

  • 13

    verdade de seu corpo e das emoes mais efmeras, e no tem nenhuma pretenso

    que no seja a manuteno de sua vida sem a vaidade do eterno.

    Como esclarece Albert Camus, a conscincia absurda surge

    inevitavelmente da experincia cotidiana, no entanto a partir do momento em que se

    d conta da iluso que o cerca, este homem absurdo se afasta do outro. Na medida

    em que os muros do absurdo desabam, constri-se tambm uma fronteira entre

    este sujeito consciente e os demais sujeitos. O heri absurdo torna-se um estranho,

    vivendo como um estrangeiro na realidade social da maioria. Um homem que sequer

    conhece a si mesmo no pode ter interesse em conhecer o outro.

    Desta forma, o homem absurdo se d conta de que um ser

    limitado a sua prpria conscincia e, neste sentido, totalmente verdadeira a frase

    do personagem Axelrod: mesmo que o trem se mova, tu no te moves de ti.

    Por sua condio absurda, a Senhora D isola-se do contato com o

    outro, afasta-se primeiro do marido, depois dos amigos e vizinhos. Isolada em seu

    vo de escada, acolhe apenas duplos - objetos e seres duplicados - que

    representam sua natureza perecvel, destituda de qualquer transcendncia e

    unidade. Ela habita sua masmorra-ninho, com seus peixes de papel, frutos secos e

    finalmente com a Senhora P, seres que tm existncias, mas desconhecem a

    procura pela essncia, que tanto atormenta o ser humano. A negao de qualquer transcendncia, exigida pela absurda

    Senhora D, desenvolve-se tambm na sua relao com Deus. Observamos que na

    narrao, a figura divina antes3 visualizada como um Deus transcendente, que

    possibilitaria vencer a finitude do sujeito por meio da f, transforma-se num demiurgo

    imperfeito e, s vezes, tirano composto da mesma matria perecvel que o humano.

    Para Hill, o Deus cristo puro e justo quando sondado

    racionalmente se mostra ausente, apenas um reflexo da vontade humana por luz no

    poo escuro da existncia. Assim, a personagem o substituiu por um Deus que

    tambm criao humana, mas que mais condizente com a condio do sujeito.

    3 Em uma obra como A obscena senhora D, em que a narrao est longe de ser descrita como

    linear, parece contraditrio usarmos as expresses antes e depois. Embora os fatos no estejam dispostos linearmente, possvel tentar refazer o percurso da personagem. E em se tratando de apresentar a conscientizao do desamparo e a assuno do absurdo preciso apontar que h um antes, marcado pela vivncia cotidiana da personagem e um depois, momento de ruptura total em que Hill decide ir morar no vo escada. Ela mesma diz: Agora que Ehud morreu vai ser difcil viver no vo da escada, h um ano atrs quando ele ainda vivia, quando tomei este lugar na casa, algumas palavras ainda, ele subindo as escadas Senhora D, definitivo isso de morar no vo da escada? (HILST, 2001, p. 18)

  • 14

    Uma divindade chamada de Menino-porco: menino, porque est repleto de

    ignorncia, e porco porque est jogado no meio da imundcie e dos dejetos do

    mundo. Neste sentido, o Deus de Hill absurdo porque nega o eterno e assume-se

    como criao humana.

    A conscincia absurda incide, invariavelmente, sobre outras duas

    categorias da condio humana, a saber, sua relao com o tempo e com a morte.

    Ao repensar sua vida como construo, o homem da derrelio se d conta que, em

    toda sua formao, esteve ligado ao tempo duplamente: ele forma o tempo, e o

    tempo lhe forma. Para que pudesse se conhecer de fato seria necessrio

    desvincular-se totalmente do tempo. O que impossvel, pois o homem s se

    separa do tempo estando morto. Alm desta condio ontolgica, o tempo surge para o homem

    duplamente como simulacro: o homem cotidiano acredita poder dominar o tempo,

    por isso vive uma vida que sempre projeto do devir cotidiano. Por outro lado, se

    faltar o tempo necessrio para suas realizaes materiais, h o tempo eterno, dado

    pela possibilidade da alma imortal, vivendo no reino de Deus, ou reencarnado para

    um novo ciclo. O homem absurdo se recusa tanto ao tempo das obrigaes

    materiais, quanto ao tempo da vida eterna. Para ele, o tempo s existe como

    experincia do corpo no agora. Por isso a personagem de Hilst conclama a vivncia

    pessoal do tempo.

    Esta convico do tempo como negao do eterno leva o homem

    absurdo a uma diferente concepo da morte, sendo que esta se coloca para ele

    como a nica possibilidade de atingir a completude, no como eu individual (j que

    ele no pode vivenciar a sua morte), mas como completude da existncia humana

    (fechamento do ciclo do existir). Hill afirma na narrativa: morta que estarei inteira.

    Isto no quer dizer que Hill enquanto sujeito absurdo anseie pela morte, pelo

    contrrio, sua condio absurda demonstra um enorme apego ao corpo e a suas

    emoes primrias. Ela contempla a morte como uma continuao irracional do que

    foi a vida. No h esperana na morte, pois nenhum Deus estar l apontando um

    cu eterno. Tambm no h temor na morte, j que sem o juzo divino no h

    condenao ou castigo. Neste sentido, a morte recoberta com a mesma

    indiferena que o sujeito aplicou vida. Em sua conscincia absurda, o corpo se

    recusa ao aniquilamento, no entanto, no deixa de contemplar a morte com olhos

    plcidos.

  • 15

    Como ltima parada deste sujeito absurdo, chegamos linguagem.

    Em A obscena senhora D, o universo multifacetado, desprovido de unidade que

    acomete o sujeito, est configurado na linguagem. A falta de lgica do mundo de

    Hill repercute na fragmentao da narrativa, no fluxo inconstante do narrador, na

    confuso temporal em que passado, presente e futuro se articulam, no mais na

    exatido de um tempo cronolgico, mas no eterno agora da dvida existencial da

    personagem. A linguagem, por um lado, se reveste da revolta absurda: no contato

    com o outro e com Deus, o discurso incorre em xingamentos e blasfmias,

    mostrando a pouca importncia que o outro e o divino assumem para a personagem;

    por outro lado, a personagem reveste suas lembranas e seus questionamentos

    mais ntimos de lirismo, como a mostrar que o sujeito absurdo no um ser

    insensvel beleza do mundo.

    Num universo privado de respostas, a Senhora D efetiva o dilogo

    consigo mesma, por meio do apelo potico, mostrando, como apontou Heidegger,

    que poesia e pensamento no esto to separados como querem alguns filsofos, e

    que se h ainda um lugar em que o homem pode vislumbrar sua essncia, este

    espao sua linguagem potica, a eterna morada do ser.

  • 16

    2 REPERCUSSES CRTICAS OBRA DE HILDA HILST

    Hilda Hilst escreveu seu primeiro livro em 1950 e durante mais de 40

    anos produziu uma obra numerosa, um nmero total de 32 livros espalhados em

    gneros como poema, conto, crnica, novela, romance e teatro. Toda essa ampla

    produo no lhe garantiu, no entanto, a simpatia do grande pblico e o aval da

    crtica literria acadmica, haja vista que a autora esteve esquecida por esses dois

    meios durante muito tempo, o que s mudou recentemente.

    Hilda Hilst reclamava constantemente, nas entrevistas para a

    imprensa, da falta de interesse da crtica por suas obras. Segundo Edson Duarte da

    Costa (2010, p. 2), a autora exagerava em suas reclamaes, principalmente nos

    ltimos anos, tendo em vista, que a obra de Hilst vinha recebendo a ateno de

    consagrados crticos neste perodo (a partir da dcada de 90). Ele mesmo afirma,

    porm que tomada no percurso geral faltou visibilidade crtica obra de Hilda Hilst.

    Edson Duarte da Costa (2010) aponta que em sua pesquisa inicial

    no acervo documental da autora encontrou 625 textos publicados em peridicos

    brasileiros e estrangeiros sobre a obra de Hilst. Segundo ele: Este enorme nmero

    de textos, no entanto, no possibilita um enquadramento mais claro da obra hilstiana

    na literatura brasileira contempornea (COSTA, 2010, p. 2).

    Em nossa pesquisa no mesmo acervo, observamos que a maioria

    dos trabalhos publicados sobre a obra de Hilda Hilst est vinculada chamada

    crtica do rodap, corrente que detinha grande prestgio na dcada de 50, quando

    Hilda publica seus primeiros ttulos. Entre os anos 60 e 70, ocorre uma efetiva

    diminuio dos trabalhos sobre a obra da autora campinense. Este perodo

    marcado no Brasil pelo domnio da chamada crtica acadmica, representada pela

    nova crtica e pela crtica sociolgica. Muitos crticos consideram que a

    incompatibilidade entre o projeto destas duas vertentes e a proposta literria de

    Hilda Hilst explica a lacuna crtica nestas duas dcadas.

    A partir da dcada de 80, nota-se um aumento ainda tmido de

    pesquisas sobre a obra da autora. E esta justamente a dcada em que se verifica

    a produo das obras mais importantes e maduras de Hilst. A partir da dcada de

    90, nota-se um progressivo interesse pela obra hilstiana, justamente no momento

    em que a crtica acadmica cristaliza a multiplicidade dos discursos, decorrentes,

    entre outras, das proposies derridianas.

  • 17

    Refletindo acerca da crtica sobre a obra de Hilst, somos levados a

    pensar como Edson da Costa (2010) e Alcir Pcora (2010), que esta lenta

    consagrao junto crtica acadmica deveu-se divergncia entre a proposta

    literria de Hilst e os valores buscados pela crtica acadmica, tanto pela proposta

    estruturalista inicial da nova crtica quanto pela proposta dialtica da critica

    sociolgica.

    O fato que durante muito tempo a obra de Hilda Hilst foi

    amplamente vista como uma extenso do mito pessoal que se formava em torno da

    autora, ou ento por abordagens que caracterizavam sua obra, ora como

    abordagens imersas em superficialidade, ora como tbua etrusca destinada a um

    seleto grupo de leitores. Faltando a ela o empenho de pesquisas mais extensas e

    profundas, com as quais autores do mesmo perodo foram brindados.

    Hilda escreveu seu primeiro livro Pressgio em 1950, e tendo

    publicado durante quase 50 anos sempre manteve uma relao controversa com a

    crtica. A campinense respondia com severas crticas a aparente apatia dada sua

    obra, principalmente pela vertente acadmica. No poupava os academicistas e os

    profissionais do meio editorial do deboche nas entrevistas e em suas obras criou

    uma srie de personagens para criticar por meio da caricatura tais literatos.

    Nos ltimos anos de sua vida, Hilst v suas obras recebendo o

    interesse das instituies acadmicas com o qual sempre sonhou. A UNICAMP, por

    exemplo, adquire seu acervo literrio. O mercado editorial, por sua vez, reconhece o

    valor do conjunto de sua obra. Em 2001, ela assina contrato com a Editora Globo

    para a reedio de suas obras completas, que foram prefaciadas pelo renomado

    crtico Alcir Pcora. Mas parece que para Hilda Hilst o to buscado reconhecimento

    vem tarde. Em entrevista a uma revista de circulao nacional, ela afirma

    desoladamente: quando vem to tarde como veio, a gente no sente muita alegria

    mais. (DESTRI; DINIZ, 2010, p. 55).

    Enquanto produzia sua numerosa obra Hilda Hilst conviveu com

    diversos momentos da crtica literria brasileira. A autora viu nascer a crtica

    acadmica, acompanhou seu fortalecimento e suas mudanas. O incio da

    produo da autora se d na dcada de 50, um momento de grande efervescncia

    literria no Brasil. Segundo Flora Sssekind:

  • 18

    Os anos 40 e 50 esto marcados no Brasil pelo triunfo da crtica de Rodap. O que significa dizer: por uma crtica ligada fundamentalmente no-especializao da maior parte dos que se dedicam a ela, na sua quase totalidade bacharis; ao meio em que exercida, isto , o jornal - o que lhe traz, quando nada, trs caractersticas formais bem ntidas: a oscilao entre crnica e o noticirio puro e simples, o cultivo da eloqncia, j que se tratava de convencer rpido leitores e antagonistas, e a adaptao s exigncias (entretenimento, redundncia e leitura fcil) e ao ritmo industrial da imprensa -; a uma publicidade, uma difuso bastante grande (o que explica, de um lado, a quantidade de polmicas e, de outro, o fato de alguns crticos se julgarem os verdadeiros diretores da conscincia de seu pblico, como costumava dizer lvaro Lins) e, por fim, a um dilogo estreito com, mercado, com o movimento editorial contemporneo. (SSSEKIND, 1993, p.15).

    Esta crtica de vis impressionista passa a ser combatida a partir da

    dcada de 40 por um grupo de crticos ligados ao meio acadmico, entre eles,

    destaca-se a figura de Afrnio Coutinho. Autor de uma campanha contra a crtica de

    rodap, ele foi o grande defensor da crtica acadmica. Inspirado no modelo

    estruturalista e no New Criticism, Afrnio Coutinho procurou atribuir ao papel da

    crtica uma valorao mais prxima do cientfico, longe dos arroubos do

    pessoalismo e biografismos comuns na crtica praticada por intelectuais da

    poca, como lvaro Lins, por exemplo.

    Outro importante representante da crtica acadmica foi Antonio

    Candido que, ao contrrio de Afrnio Coutinho, no acreditava ser a especializao

    acadmica um aspecto fundamental para a crtica literria, mas sim sua insero

    dentro de um projeto maior, que seria a sociedade e a cultura brasileira. Embora

    dissidentes em muitos aspectos, a crtica destes dois autores ser determinante

    para a histria da crtica literria acadmica aps 1950. Segundo Flora Sssekind,

    por meio desta nova crtica:

    Ampliam se, pois as reas de domnio e o prestgio do crtico universitrio. Da o interesse em examinar as opes intelectuais de duas figuras verdadeiramente paradigmticas no campo dos estudos literrios no Brasil: Afrnio e Antonio Candido. Ou melhor: A crtica que se quer apenas esttica do primeiro e o jogo dialtico, a metodologia dos contrrios do segundo. Duas linhas de fora que marcariam o pensamento crtico brasileiro subseqente. Seja na busca incessante de atualizao metodolgica, seja na tentativa de constituio de uma perspectiva crtico-dialtica da anlise literria. (SSSEKIND, 1993, p.14).

  • 19

    No entanto, se na teoria se promulgava o nascimento de uma nova

    crtica que combatia o impressionismo e o autodidatismo, podemos notar que a

    crtica obra inicial de Hilst foi feita longe dos parmetros de Coutinho, de Candido,

    enfim, desta crtica acadmica. Embora a crtica de rodap perdesse espao

    continuamente, a anlise da obra hilstiana realizada neste perodo, ainda est

    associada ao tratamento anedtico-biogrfico em geral concedido literatura na

    imprensa (SSSEKIND, 1993, p.17), pelos intelectuais das letras.

    Os primeiros livros de Hilst so recebidos, ora de forma elogiosa por

    intelectuais amigos que apontam para uma obra potica em amadurecimento

    (COSTA, 2010, p. 9), ora de forma negativa por intelectuais que atribuem ao texto as

    marcas da superficialidade que julgam visualizar na personalidade de Hilst. Um bom

    exemplo desta ltima crtica apontado por Luisa Destri e Cristiano Diniz. Segundo

    eles, na ocasio do lanamento do terceiro livro de Hilda Hilst, Balada do festival, foi

    publicada uma crtica no jornal O Estado de So Paulo que tratava o livro no como

    um projeto literrio, mas sim como arroubos juvenis de uma moa elitista e ftil:

    A moa elegante, loura, que acende um cigarro, sorri e pede um cocktail, tem todo aspecto de um precioso ornamento de crnica mundana. Vai falar do ltimo espetculo, da ltima fita, do ltimo escndalo, do ltimo Festival de Cinema. Vai contar a sua ltima faanha no tnis, ou seu ltimo encontro na boite e seu ltimo passeio de automvel pela praia. Oh! Frvola Juventude! A voz imprevistamente grave diz coisas imprevistamente tristes! (apud DESTRI; DINIZ, 2010, p. 35).

    A mesma postura pessoalista mantida com relao a outro livro

    da autora, Roteiro do Silncio. Segundo os pesquisadores Luisa Destri e

    Cristiano Diniz, o crtico Luis Martins ao analisar o posicionamento do eu lrico

    hilstiano, fala: s no gostei, francamente, foi da passagem de um poema, alis

    excelente, em que Hilda Hilst declara que queria ser boi. Ah! No, Hilda! Por favor!

    Voc est muito bem assim mesmo, como mulher. (MARTINS apud DESTRI; DINIZ,

    2010, p. 35). A crtica a princpio elogiosa e at contendo certo bom humor no

    deixa, no entanto, de praticar o biografismo. O crtico esquece-se de que quem fala

    o eu-lrico e no a bela mulher Hilda Hilst.

    Esta abordagem crtica era comum at mesmo entre autoras que,

    como Hilda Hilst, sentiam o peso de serem mulheres e escritoras numa sociedade

    patriarcal. A prpria Lygia Fagundes Telles, escritora e companheira de Hilda Hilst

  • 20

    na escola de Direito do Largo de So Francisco, ao falar sobre a obra de Hilst na

    Folha da Manh, antes de tecer uma crtica ao texto, prende-se descrio da

    beleza da autora: Ela [Hilda] no quer que se fale nela, no seu ar vago e doce, nos

    seus gestos espaados e mansos, no seu todo de canarinho belga. (TELLES apud

    DESTRI; DINIZ, 2010, p. 35). Ou seja, parece que nos primeiros anos a obra de Hilst

    ainda padecia sob as vises da crtica autobiogrfica. Uma crtica to presa a uma

    tradio clssica que, em se tratando de uma obra que j mostrava suas

    singularidades, tinha que se contentar com o exame da mulher Hilda Hilst.

    Segundo Edson Costa (2010, p. 8), Muitas destas matrias

    jornalsticas citadas so assinadas por crticos conhecidos. Basta lembrarmos que

    os primeiros livros de Hilda Hilst foram tratados de forma elogiosa por autores como

    Sergio Buarque de Holanda, Sergio Milliet, Jorge de Sena, entre outros, que

    souberam demarcar seus valores formais. No entanto, estas crticas tratavam-se na

    maioria das vezes de apenas notas, tmidas resenhas e poucos textos mais

    ensasticos (COSTA, 2010, p. 8). Havia ainda as crticas negativas, que viam a obra

    como reflexo de um sentimentalismo, sem apuro formal, exemplo da feita por Lygia

    Fagundes Telles na Folha da Manh, em 1959.

    Ao pesquisar o trabalho crtico desenvolvido em torno da obra de

    Hilst nos anos 60, notamos que a maioria das anlises se resumiu a notas ou

    abordagens superficiais efetivadas nos jornais de circulao da poca, como os

    enfocados por Edson da Costa (2010, p. 8), em sua pesquisa, ou seja, embora estas

    crticas fossem feitas por intelectuais e escritores, representavam uma crtica feita

    fora das instituies acadmicas. Logo, nos parece que a repercusso da obra da

    autora para a crtica acadmica nascente de ento foi nula.

    Entre 1960 e 1966, Hilda Hilst publica os livros Trova de amor para

    um amado senhor, Ode fragmentria, Sete cantos do poeta para o anjo. Embora o

    ltimo livro tenha sido agraciado com o prmio PEN de So Paulo, o conjunto da

    obra de Hilda Hilst ainda sofre com o desinteresse da crtica acadmica nesta

    dcada.

    Na dcada de 60, enquanto a autora insiste em formas lricas

    arcaicas (baladas, cantares) pouco conhecidas no territrio brasileiro, a crtica

    acadmica tenta reconstruir um sistema literrio nacional, enfocado nos aspectos

    de continuidade e tradio. J em 1957, Formao da literatura brasileira, de

    Antonio Candido, busca estabelecer as bases do que seria uma tendncia nacional

  • 21

    da crtica, transformada mais tarde numa abordagem, ora sociolgica, ora dialtica,

    que se perpetuaria e faria muitos discpulos.

    Em via de regra, podemos afirmar que a obra nascente de Hilst

    conviveu com trs tendncias crticas: a crtica do rodap; a nova crtica e a crtica

    sociolgica. Sendo que, por motivos que s podemos sugerir, esta obra permaneceu

    um objeto estranho s duas ltimas esferas. Opinio compartilhada por Edson

    Costa, que afirma que embora a autora tenha tido uma grande repercusso,

    principalmente na crtica da imprensa, O que a escritora no teve foi uma crtica

    acadmica regular. Nenhum crtico acadmico, nestes anos todos [1960-1990] se

    debruou sobre sua obra e escreveu textos de maior alcance sobre ela. (COSTA,

    2010, p. 5).

    difcil explicar por que a obra de Hilst foi praticamente ignorada por

    estas correntes da crtica que por muitos anos resumiram a prpria concepo de

    crtica nacional. Ao pensar na nova crtica, aquela praticada por Afrnio Coutinho,

    podemos presumir que talvez a ela coubesse o papel de dar a obra hilstiana o seu

    valor intrnseco, ou seja, notar a elaborao formal que ela naturalmente possui, e

    que a crtica de hoje tem visto. No entanto, talvez uma das dificuldades que este

    modelo crtico enfrentou foi o carter interdiscursivo da obra de Hilst. O texto

    hilstiano costumeiramente se apropria dos discursos de outros campos do

    conhecimento. Das pginas dos livros de Hilst saltam nomes como Plotino, Freud,

    Marx, Lou Salom, Tausk, J, Lzaro, etc.. A intertextualidade com a filosofia,

    psicanlise, sociologia, tornaria uma anlise no condicionada por influncias

    extraliterrias (COUTINHO apud SSSEKIND, 1993, p. 22), simplista demais. Hilda

    Hilst no um dos autores escolhidos de Coutinho para compor seus primeiros

    compndios e nos volumes mais atualizados de A Literatura no Brasil, a autora

    citada apenas superficialmente.

    Opondo-se ao projeto de Afrnio Coutinho, encontramos Antonio

    Candido, que num primeiro momento buscou efetivar a histria de um sistema de

    literatura autenticamente nacional, e posteriormente, por meio de sua proposio

    dialtica buscou conciliar o intrnseco e o extrnseco na anlise da obra literria. A

    teoria crtica de Antonio Candido, embora detenha-se no papel do texto enquanto

    projeto que pode ser visto sobre uma hermenutica, atribui tambm, uma enorme

    importncia s questes externas, que o autor acreditava extremamente

    determinantes do sentido da obra. Candido v a obra como depositria de um

  • 22

    conjunto de bens simblicos vinculados a um projeto de literatura nacional,

    baseados no enquadramento dentro de uma tradio precedente. A obra de Hilda

    Hilst no converge em ponto algum para um projeto anterior de literatura nacional.

    Por suas mltiplas referncias externas, a obra da campinense no se pode filiar aos

    ideais buscados pela crtica de ento.

    Para explicar este divrcio entre a produo de Hilda Hilst e a crtica

    dialtica, podemos pensar na polmica sobre a retirada de Gregrio de Matos do

    cnone literrio nacional. Antonio Candido por questes de uma ortodoxia

    metodolgica retira Gregrio de Matos, nosso maior poeta barroco, do projeto

    nacional de literatura, expresso em Formao da literatura no Brasil. Tal

    procedimento nos autoriza a pensar que a indiferena crtica obra de Hilda Hilst

    bastante justificada, levando em conta que a autora campinense, assim como o

    poeta barroco no pode ser integrada a um sistema de obras ligadas por um

    denominador comum, que permitem reconhecer notas dominantes de uma fase.

    (CANDIDO, 1981, p. 23). Segundo Costa (2010, p. 5), esta seria uma das razes

    pela qual a obra hilstiana foi afastada do interesse acadmico, dominado por esta

    vertente da crtica. Faltaria uma adequao desta autora a um projeto de literatura

    nacional, e segundo o prprio Candido, a respeito de sua concepo crtica, o eixo

    do trabalho interpretativo descobrir a coerncia das produes literrias, seja a

    interna, das obras, seja a externa, de uma fase, corrente ou grupo. (CANDIDO,

    1981, p. 38).

    O silncio crtico dado ao gnero lrico, no qual a autora iniciou sua

    produo tambm pode ser aplicado obra teatral, desenvolvida a partir de 1967.

    Entre os anos de 1967 e 1969, a autora escreve nove peas de teatro. Com exceo

    da pea O verdugo, que foi publicada aps receber o prmio Anchieta, o restante de

    sua produo teatral permaneceu indita at 2002, quando saem em obra completa

    pela Editora Globo. Deste modo, assim como a poesia de Hilda Hilst, seu teatro

    passou despercebido pela crtica at bem recentemente. Uma das razes

    amplamente difundidas pelos crticos que suas peas ignoram os aspectos da

    tradio teatral brasileira, marcadamente um teatro com nfase na ao. O texto

    hilstiano traz para o palco personagens lricos e densos, que se sentem mais

    confortveis refletindo e poetizando do que agindo.

    Em 1969, aps incursionar pelo teatro, Hilda volta a escrever poesia

    e tambm d seus primeiros passos pela fico com o conto Unicrnio. No ano

  • 23

    seguinte publica a obra narrativa Fluxo-floema, mostrando desde ento a

    profundidade metafsica de sua fico j antecipada no gnero lrico e o trabalho

    formal inovador tendo como base a linguagem fragmentada que ser a marca de

    suas obras posteriores. Esta obra aponta para o amadurecimento da autora.

    Segundo Edson da Costa:

    A recepo de Fluxo-floema assenta o reconhecimento da importncia da obra da escritora. A partir de ento, aparecerem alguns textos fundamentais para o entendimento do trabalho de Hilst e tambm um excesso de textos, publicados em jornais e revistas, que alm de se restringirem mera repetio superficial de opinies alheias, reforam o mito da escritora genial e incompreendida, revestindo, muitas vezes, a obra da autora com uma aura de impenetrabilidade, como se ela fosse s para iniciados. (COSTA, 2010, p.1).

    Conforme aponta Costa, a partir da publicao de Fluxo-floema

    que Hilda Hilst conquistar a simpatia de alguns crticos, que atestaro a qualidade

    de seu trabalho. No entanto, a maioria dos trabalhos segue repetindo os mitos e os

    estigmas atribudos sua obra nos anos anteriores.

    A partir de Fluxo-floema, Hilda se dedica tanto escrita ficcional,

    quanto lrica, publicando em 1970 as obras ficcionais Qads, Fices, Tu no te

    moves de ti; em poesia publica Jbilo noviciado e paixo, Da morte. Odes mnimas.

    A partir da dcada de 70, lentamente a obra de Hilda Hilst passa a ser objeto de

    interesse de um pequeno nmero de crticos, que realizam artigos ou resenhas mais

    aprofundadas sobre os aspectos de sua obra.

    No entanto, para a maioria da crtica, principalmente aquela parte da

    crtica acadmica que produz suas teses e dissertaes, ou para os crticos literrios

    de renome nacional, autores dos tratados e manuais literrios, ela continua um

    objeto tabu. Obviamente que h boas excees como a que deve ser feita a Anatol

    Rosenfeld que, ao prefaciar a obra Fluxo-Floema, j chama ateno para as

    qualidades literrias de Hilda Hilst, condensadas sobre a forma narrativa:

    apenas por convenincia que os textos do presente volume foram chamados de "fico" ou "prosa narrativa". Para Hegel o gnero pico-narrativo o mais objetivo. A ele se contrape, dialeticamente, a anttese subjetiva do gnero lrico, sendo o dramtico a sntese, visto reunir, segundo Hegel, a objetividade pica e a subjetividade lrica. Semelhante diferenciao perde o sentido em face dos textos em prosa de Hilda Hilst, j que neles todos os gneros se fundem.

  • 24

    Eles so picos no seu fluxo narrativo que s vezes parece ter a objetividade de um protocolo, de um registro de fala jorrando, associativa, e transcrita do gravador; mas so, ao mesmo tempo, nas cinco partes Fluxo, Osmo, O Unicrnio, Lzaro e Floema manifestao subjetiva, expressiva, torturada, amorosa, venenosa, cida, humorstica e licenciosa de um Eu lrico que extravasa avassaladoramente os seus "adentros", clamando com "garganta agnica", do "limbo do lamento", tateando e sangrando, em busca de transcendncia transfigurao. (ROSENFELD apud HILST, 1970, p.16).

    Devem ainda ser lembrados os crticos como Renata Pallotini, Lo

    Gilson Ribeiro e Nelly Novaes Coelho que tambm escrevem sobre sua obra.

    Podemos dizer que de certa maneira esses crticos so os pioneiros ao trazer a

    crtica de Hilst, at ento feita, sobretudo, nos jornais e de forma displicente, para o

    territrio do consagrado mundo acadmico, do qual eles participam.

    Aps 1980, Hilda Hilst alterna a sua produo entre a prosa e a

    poesia. Seus textos em prosa continuam trazendo a marca da inovao formal, a

    mistura dos gneros e as indagaes metafsicas, que j estavam presentes em

    Fluxo-floema. Se sua prosa extremamente moderna, por outro lado, os motivos de

    sua poesia so relacionados tradio de uma lrica medieval. No teatro, alm de O

    Verdugo, As aves da noite e O rato no muro tambm so encenados. Devido

    carga dramtica, outros textos em prosa so adaptados para o teatro. No ano de

    1982, a autora passa a participar do programa artista residente da Unicamp e lana

    A obscena senhora D, nosso objeto de anlise nesta dissertao. Nesta dcada, a

    autora recebe vrios prmios nacionais, incluindo o Jabuti. Esta premiao, que no

    resultar na consagrao perante os leitores, mostra, no entanto, que a autora

    conquistou o reconhecimento de pelo menos uma parte da crtica literria.

    Entre as razes para a mudana desta postura em relao obra

    hilstiana, podemos apontar o enfraquecimento da crtica de vis social, ou at

    mesmo dialtica que imperava na academia. Nomes como Antonio Candido, Alfredo

    Bosi, Roberto Schwarz, continuam sendo referncias em termos de crtica, no

    entanto, a eles se soma a viso dos herdeiros do desconstrucionismo derridiano

    como, por exemplo, Haroldo de Campos, Silviano Santiago, Costa Lima. Embora

    estes autores no estejam necessariamente preocupados com a particularidade da

    obra de Hilda Hilst, eles so os formadores de opinio no meio acadmico, e sero

    eles que, por meio de um projeto de ruptura com a tradio histrica literria,

  • 25

    permitiro que autores sem ptria e sem data possam ser revistos e constituir um

    novo cnone nacional.

    Na dcada de 90, com a publicao de O Caderno Rosa de Lory

    Lamb, a autora d incio a sua obra obscena, na qual se ajuntam Contos d escrnio,

    Textos grotescos, Cartas de um sedutor e Buflicas. A publicao destas obras

    divide a crtica que se formava em torno da obra da autora. Alguns se calam, outros

    acreditam que a qualidade da obra de Hilst est ameaada por estas publicaes.

    H ainda aqueles que acreditam que tais publicaes no afetam em nada o valor

    da obra de Hilst, pelo contrrio, a autora Eliane Robert Moraes, por exemplo,

    destaca nesta tetralogia a desconstruo da histria moral que aproximaria Hilda

    Hilst de outros autores da literatura maldita.

    Posteriormente dcada de 90, Hilda segue produzindo suas

    fices e poesias sem o recurso da obscenidade explcita, mostrando que a

    incurso pelo erotismo no contaminou sua produo literria. O nmero de

    trabalhos que se debruam sobre a obra de Hilst continua crescendo, mostrando

    que a polmica em torno das obras erticas longe de prejudicar sua aceitao junto

    crtica acadmica, parece ter contribudo para que mais olhares tomassem sua

    obra como objeto de anlise.

    Podemos pensar que a mudana da crtica com relao obra de

    Hilst no se deve somente ao amadurecimento da obra da autora, mas a prpria

    mudana nos paradigmas de anlise crtica. A autora inicia sua produo num

    momento em que a crtica transitava entre um pessoalismo, baseado no gosto

    clssico, e a insurgncia da crtica acadmica, delineada de um lado pela nova

    crtica, de outro pela crtica sociolgica. Sendo que a ltima dominou o cenrio

    nacional por muitos anos, e seu projeto de anlise opunha-se claramente

    manifestao esttica empregada por Hilst. Isso explica em certa medida o

    desinteresse da crtica pela obra da autora at a dcada de 90.

    Segundo Cavalcanti (2010, p. 166), a anlise da recepo da obra

    hilstiana permite que se estabeleam as bases de um novo paradigma no s da

    crtica como da prpria literatura brasileira:

  • 26

    O estudo da narrativa hilstiana ajuda a compreender o processo desencadeado por transformaes na literatura brasileira a partir das dcadas de 70 e 80 do sculo passado. Os paradigmas literrios propostos a partir de ento trouxeram um profundo questionamento do cnone. O discurso coeso e universalizante foi deslocado por outro, plural e descentralizado, situado historicamente e consciente das diferenas como valor. A escrita das dcadas finais do sculo XX se enriqueceu com o processo de reflexo terica desse perodo, fruto do Desconstrutivismo, da Nova Histria, dos Estudos Culturais e Ps-Coloniais, do Multiculturalismo e de tantos outros movimentos tericos desse perodo. A proposio mais radical do pensamento finissecular foi a tentativa de desconstruo do sujeito, cujo pretenso universalismo passou a ser percebido como mscara do eurocentrismo, extenso a outras literaturas de reflexes desenvolvidas por parmetros institudos a partir do cnone europeu. Tanto a arte quanto a filosofia desmistificaram a supervalorizao de um sistema de dominao e a identidade entre ele e universalismo, ao mesmo tempo em que denunciavam a proposta de apolitizao contida em seus termos.

    Este processo de reviso do cnone de que fala Cavalcanti inicia-se

    a partir da dcada de 70, quando comeam a serem traduzidos no Brasil, textos

    como os do filsofo francs Jaques Derrida, que retomam alguns aspectos da teoria

    estruturalista, mas longe do aspecto cientificista desta corrente anterior. Segundo

    Jonathan Culler (1999, p. 122), a desconstruo mais simplesmente definida

    como uma crtica das oposies hierrquicas que estruturaram o pensamento

    ocidental [...]. Deste modo, os estudos derridianos possibilitam o questionamento

    dos discursos tradicionais da historiografia literria. Acerca da importncia do

    pensador para a crtica literria brasileira, Eneida Maria de Souza salienta que:

    Resta ainda assinalar que as leituras de natureza estruturalista feitas pelos tericos da dcada de 1970 no Brasil - e cito principalmente Affonso Romano de SantAnna, Costa Lima, Silviano Santiago e Haroldo de Campos - provocaram a diferena de abordagem dos textos nacionais, da releitura do modernismo brasileiro, da reviso da historiografia literria, da revoluo na anlise da linguagem da poesia e da narrativa, posio esta que se desvincula do pensamento uspiano, por muito tempo centrado na crtica sociolgica e na criao de uma tradio nacionalista e fundacional de cultura. (SOUZA, 2010, p. 16).

    O desconstrucionismo alm da prpria definio de nacionalidade

    permitiu que a crtica repensasse a prpria definio de histria. Assim, a literatura

    que estava at ento submetida ao panorama tradicional da diacronia, pode ser vista

    sob a perspectiva de um estudo sincrnico, conforme enfoca Haroldo de Campos

    (1969, p. 214), "A potica sincrnica procura agir crtica e retificadoramente sobre as

  • 27

    coisas julgadas da potica diacrnica." Ou seja, o crtico pensa num aporte dialtico

    para a arte, que no preconize somente a abordagem histrica, mas sim uma

    abordagem esttico-criativa. Assim, valores como continuidade e tradio

    passam a ser revistos.

    Esta nova abordagem crtica favoreceu a obra de Hilst, primeiro

    porque sua poesia trabalha com um contedo de aporte sincrnico, pois embora

    pratique modelos medievais como os cantares, as baladas, a poesia satrica, ela o

    faz num presente, que opera no por uma linearidade, mas por saltos. Acerca disto

    Alcir Pcora nos fala:

    Essa imitao antiga jamais se pratica com purismo arqueolgico, mas, bem ao contrrio, se submete mediao de fenmenos literrios decisivos do sculo XX: a imagtica sublime de Rilke, o fluxo de conscincia de Joyce, a cena minimalista de Beckett, o sensacionismo de Pessoa, apenas para referir a quadra de escritores internacionais mais facilmente reconhecvel por seus escritos, ao lado de Becker e Bataille. (PCORA, 2010, p.11).

    A obra de Hilda Hilst resulta num processo de desconstruo, pois

    ao mesmo tempo em que dialoga com uma tradio literria, recuperando autores,

    desconstri-os por inseri-los num construto formal totalmente inovador, brindando

    assim seus textos com aportes sincrnicos. Deste modo, parece que a obra de Hilst

    se aproxima mais de um projeto de operao sincrnica, ao modo de Haroldo de

    Campos, do que uma vontade de insero dentro de uma tradio nacional, ao estilo

    de Formao da literatura brasileira de Candido. Conforme Pcora (2010, p. 9), a

    distncia que sua obra mantm dos valores modernistas predominantes no Brasil, e

    ainda mais em So Paulo, sobretudo no que toca questo do contedo nacional

    da literatura, que simplesmente no se pe para ela foi uma das razes da no

    valorao da obra hilstiana dentro do cenrio nacional, at um momento recente.

    Ao se repensar a juno histrica do texto, pensa-se tambm em

    seu papel de mimeses. Deste modo, muito mais que um texto que descreva o

    mundo, as obras devem inovar e repensar o prprio papel do fazer literrio,

    enquanto construo que desconstri o mundo. Desta forma, outro aspecto da obra

    de Hilda Hilst que pode ser contemplado por esta crtica herdeira do

    desconstrucionismo a dimenso metalingustica de sua obra. Segundo Pcora

    (2010, p. 12), o fluxo em Hilda surpreendentemente dialgico, ou mesmo teatral,

  • 28

    sem deixar de se referir ao prprio texto que est produzindo, isto , de denunciar-se

    como linguagem e como linguagem sobre linguagem.

    Outras teorias derivadas de outros campos do conhecimento, que

    chegam ao Brasil aps a dcada de 70, tambm possibilitam a descoberta da obra

    hilstiana pelo seu vis mais evidente, que a intertextualidade de discursos. Entre

    elas podemos citar a psicanlise lacaniana, a antropologia, a filosofia, a semiologia,

    anlise do discurso, os estudos culturais (crtica feminista), embora estas teorias

    demorem a fazer escola no Brasil, devido ao momento histrico e poltico pelo qual o

    pas passava. Aps a abertura poltica, elas apontam como consequncia imediata a

    valorizao de literaturas mpares como as de Hilda Hilst, textos que no podiam ser

    filiados noo cannica e por isso mesmo, no podiam ser tidos como objetos de

    uma crtica mais ortodoxa como a acadmica, segundo Cavalcanti:

    O esvaziamento de referncias importantes, como nao e identidade, ajudou a corroer a viso tradicional. Os grupos minoritrios, de carter tnico ou social, conseguiram romper a muralha criada por uma leitura de mundo que refletia no a riqueza de vozes da humanidade, mas a hegemonia de uma voz: a das formas imperiais do poder nas quais se podia ver a construo de diversos modelos culturais: pai, marido, deus, linguagem, literatura, entre tantos outros. A ao de grupos excludos dos cdigos at ento vigentes acabou por pulverizar qualquer tendncia ideolgica dominante. Por outro lado, o questionamento atingiu camadas internas da literatura: a noo de autoria, os processos de leitura e circulao de textos, os paradigmas da crtica, o pblico, a axiologia esttica, as fronteiras entre os gneros, os critrios de formao do cnone etc. (CAVALCANTI, 2010, p.166-167).

    Este novo domnio crtico no se fez sem conflito para uma vertente

    mais tradicional da crtica, e at por alguns daqueles que proclamavam a validade

    do discurso desconstrucionista. Segundo Souza (2002, p. 68), muitos crticos

    consideram que preciso um controle interdisciplinaridade desenfreada que

    coloca em risco a manuteno da identidade das disciplinas e a prioridade do

    discurso literrio. Para Souza esta crtica ignora os atuais processos de valorizao

    literria e cultural, nos quais so inseridos critrios que ultrapassam o campo

    particular de cada discurso (SOUZA, 2002, p. 70).

    Leyla Perrone-Moiss (1993, p. 29), pensando sobre o papel da

    crtica na modernidade, afirma que sobraram a ela dois caminhos: um o da crtica

    cientfica proveniente da semiologia, aquela que descreve os textos; a outra da

  • 29

    escritura, que prope no apenas decifrar, mas ler por meio de um novo ciframento.

    Perrone-Moiss continua e mostra que, apesar destas abordagens serem as que

    melhor definem a crtica, h ainda um terceiro discurso, mas que no chega a se

    constituir um caminho:

    Entre esses dois polos, situam-se os discursos ancorados nas cincias humanas. Esses discursos utilizam a linguagem como instrumento de conhecimento e, como tal, no pertencem mais a uma rea especificamente literria, tendendo a ser anexados s diferentes cincias sobre as quais se apoiam, como aplicaes dessas cincias a um domnio particular da atividade humana. (PERRONE-MOISS, 1993, p. 29).

    A posio de Leila Perrone-Moiss representa o pensamento de

    uma das correntes da crtica atual; aquela que v nas contribuies das outras

    cincias humanas no s uma positividade, mas tambm um risco para o objeto

    literrio, caso esses discursos se orientem para um certo saber situado para alm

    do texto (PERRONE-MOISS, 1993, p. 29).

    Esta obrigao imposta por esta corrente crtica de dosar literrio X

    no-literrio, atormenta, muitas vezes, aquele que pretende efetivar uma crtica

    comparativa, como o nosso caso: como falar de niilismo, sem falar de filosofia, ou

    como falar de Lacan, ignorando a psicanlise? E, em que medida possvel fazer

    crtica literria pura ao analisar uma obra como a de Hilst que flerta com outros

    campos do conhecimento? O fato que a obra de Hilst, assim como uma srie de

    obras da dita contemporaneidade, traz em seu interior este apelo interdiscursivo,

    dado claramente pelo recurso da intertextualidade. certamente por esta razo, que

    muitos pesquisadores, guiados pelo prprio texto hilstiano acabam optando por uma

    anlise que reflete sobre este seu carter de dilogo, fato atestado por inmeras

    dissertaes e teses apresentadas sobre a autora. A maioria delas busca efetivar

    este percurso intertextual referenciando suas leituras das obras da autora, por meio

    da psicanlise, da antropologia, da semiologia, da anlise do discurso e da filosofia.

    Essas novas abordagens explicam, como j dissemos, o aumento na

    demanda de interessados pela obra hilstiana, verificado a partir da dcada de 90.

    Contrapondo aos parcos trabalhos consistentes da dcada de 60, 70 e 80 sobre a

    autora, hoje se verifica um grande nmero de teses e dissertaes, abordando no

    mais a mulher Hilda, mas a obra em seus diversos aspectos.

  • 30

    Alcir Pcora afirma que neste momento, por exemplo, segundo o

    levantamento de Cristiano Diniz j so 46 as dissertaes de mestrado

    apresentadas sobre ela, inclusive uma na Corua (PCORA, 2010, p. 8). Em

    recente consulta ao banco de teses da CAPES, constatamos que atualmente 52 o

    total de trabalhos acadmicos j finalizados, observamos tambm um crescimento

    gradual a partir do ano 2000.

    De certa forma, podemos afirmar que a crtica acadmica hilstiana

    d seus primeiros passos se comparada de autores (Clarice Lispector e Lygia

    Fagundes Telles, por exemplo, publicam sua obra apenas 7 anos antes de Hilda

    Hilst) que iniciaram sua produo quase no mesmo perodo que Hilda Hilst. Prova

    disto que a maioria dos trabalhos sobre a autora, ainda se encontram em suportes

    como a internet e peridicos extremamente importantes para os pesquisadores, mas

    ainda sem o reconhecimento tradicional do livro. Segundo Snia Purceno:

    Por ora, no que diz respeito a livros, so pouqussimos os dedicados exclusivamente obra profcua de Hilda Hilst. As fontes para abord-la, entretanto, no so poucas. Um dos maiores entraves para o pesquisador justamente selecionar e agrupar matrias jornalsticas, ensaios e trabalhos acadmicos consistentes, entre os tantos que se encontram dispersos pelo Brasil, a respeito de diferentes aspectos de sua obra. (PURCENO, 2010, p. 107).

  • 31

    3 HILDA HILST: UMA ESCRITA ENTRE FRONTEIRAS

    Como dissemos, a obra de Hilst rica tanto na dinmica entre os

    gneros, quanto no trnsito entre os discursos. A densidade metafsica dos temas

    abordados pela obra da autora campinense, variadas vezes tem suscitado nos

    crticos a tentao de descobrir ali um vis filosfico mesclado criao literria.

    Os textos de Hilda Hilst tocam de uma forma catica e

    devastadora, no mago de questes recorrentes da experincia humana, como a

    mostrar que nada est de fato resolvido. A autora no busca responder as

    aspiraes dos leitores, busca antes resolver seus prprios questionamentos. Ela

    no pode expressar suas dvidas em linguagem coerente, porque no h coerncia

    na busca do incognoscvel. Isso, durante muito tempo, contribuiu para que os seus

    textos fossem considerados tbuas etruscas. Alguns crticos consideram que a

    escolha por temas metafsicos somados erudio o que d obra de Hilst sua

    dimenso enigmtica. Lo Gilson Ribeiro, na apresentao de Fices (1977, p.

    IX), afirma justamente este carter hermtico da obra de Hilst:

    Hilda Hilst carrega involuntariamente um estigma: o de nunca talvez vir a ser popular, agradvel, acessvel. Ela que ambiciona tanto ser discutida, focalizada, continuar por uma espcie de condenao intrnseca incompreensvel para a maioria. Porque ela em portugus retratou um Malone agonizante no atoleiro da dvida e das dimenses diminutas de quem no tem antenas para captar o que h ou no h depois da Morte. E porque ela escreveu, em portugus, o equivalente a um Finnegan's Wake de Joyce ou seja: escreveu um absurdo palimpsesto mesopotmico. E poucos tero a imaginao recriadora, a profundeza de propsitos e o mesmo af mstico que ela para embrenhar-se nessa "selva oscura" da alma e do humano estar no mundo.

    Ribeiro compara a linguagem de Hilst a de Beckett e de Joyce,

    autores tambm tidos como difceis. Na mesma apresentao (1977, p. XI), o

    crtico ressalta a influncia kierkegaardiana e afirma a prospeco filosfica sobre o

    Tempo, a Morte, o Amor, o Medo, o Horror, a Busca, vista na obra de Hilst, e que

    segundo ele, s lhe acrescentam em valor. Ele finaliza sua anlise mostrando seu

    positivismo no futuro: O espanto diante da criao de Hilda Hilst crescer medida

    que as geraes futuras consigam apreender a grandeza imune ao efmero desta

    vivncia escrita, deste arame esticado sobre o abismo da prosa resplandecente

  • 32

    deste maior escritor vivo em lngua portuguesa. (RIBEIRO apud HILST, 1977, p.

    XII).

    Hilda Hilst afirmava, constantemente, em suas entrevistas ser uma

    leitora de obras filosficas e fazia questo de mostrar que detinha o domnio de tais

    discursos em suas obras. Quando era perguntada sobre o seu cnone de formao

    sempre acrescentava a gama de seus escritores preferidos, vrios filsofos clssicos

    e modernos. Em uma entrevista ao ser questionada sobre suas preferenciais de

    leitura, a autora afirma:

    O que e quem a senhora tem relido? Os assuntos variam. Vo do sobrenatural fsica quntica, que absolutamente sobrenatural! Tenho certeza de que a matria da alma ainda ser explicada pela fsica quntica. Leio Joyce, Bataille, dicionrios do sobrenatural, agora comecei a ler o Tratado do Desespero, de Kierkegaard. (HILST apud REVISTA E, 2002).

    Em outra entrevista, concedida jornalista Melissa Croceti (2010),

    ao ser perguntada sobre suas preferncias contemporneas, Hilda enumera

    escritores e filsofos-escritores:

    Quais so as suas referncias em relao literatura contempornea? E quais so as suas crticas a ela? Drummond, Guimares, Becket, Bataille, Camus, Kafka, Joyce, Simone e Sartre, Ernest Becker e tantos outros que devo ter esquecido muitos. [...] atualmente leio muitas biografia, filosofia e fsica. Fao principalmente reeleituras.

    Na matria da revista Cult de 1998, ao usar a palavra coisa, Hilda

    Hilst imediatamente se policia com relao a este uso, recorrendo ao filsofo

    Heidegger: Se bem que depois que eu li Heidegger, e releio sempre, no consigo

    mais falar "coisa". Heidegger escreveu um livro enorme s para falar o que uma

    coisa. Mas esse tipo de conversa voc no pode pr na revista.

    Os textos de Hilst, por sua vez, sempre estabelecem possveis

    ligaes com o discurso filosfico. Por meio da intertextualidade, eles suscitam no

    leitor a curiosidade pelas ideias de variados pensadores, com os quais a autora

    parece se relacionar de forma ntima. Isto, sem dvida, contribui para que os crticos

    busquem em seus textos a marca deste trnsito pelo terreno filosfico.

  • 33

    Comumente saltam as pginas de seus livros nomes e ideias de

    diversos pensadores, conforme poderemos observar a seguir.

    Em uma crnica tratando de assuntos polticos a autora diz: Tem

    sido mais fcil compreender Heidegger, Wittgenstein, snscrito, copta, do que

    compreender explicaes de ministros e quejandos. (HILST, 1998, p.41). Este um

    procedimento muito comum em suas crnicas. Hilda Hilst, frequentemente, entre um

    comentrio cotidiano e outro, brindava o leitor com o nome ou a ideia de algum

    filsofo. Presumindo o desconhecimento de seu pblico, colocava ao lado do nome

    a palavra informe-se e abaixo uma referncia sobre o autor, semelhante ao recurso

    usado em enciclopdias.

    Das pginas do livro Kadosh surge o nome do filsofo clssico

    Plotino: Sobre o leito um punhal. Sobre o leito os textos de Plotino. (HILST, 2001,

    p.41). E o leitor, que conhecendo um pouco das ideias deste pensador, no se

    demorar a identificar a influncia de seu pensamento no discurso da personagem

    acerca do tempo. Em cartas de um sedutor, o prprio ttulo identifica a relao com a

    filosofia de Kierkegaard. E se resta alguma dvida, de que reside ali uma influncia

    do Dirio de um sedutor, ela sanada pelo personagem central Stamatius que

    confirma a descoberta do leitor dizendo: Tenho meia dzia daquela obra-prima A

    morte de Ivan Ilitch e a obra completa de Kierkegaard (HILST, 2002, p. 16).

    Stamatius mostra explicitamente o valor que a obra de Kierkegaard apresenta para

    sua vida, destacando-a ao lado do que considera uma obra-prima. Para Cavalcanti

    (2010, p.96), no h dvida: Hilda constri uma pardia do Dirio de um sedutor.

    Se algumas vezes as referncias so pontuais e ligam diretamente

    filsofo e tema, outras vezes, as marcas do discurso filosfico surgem por meio da

    intertextualidade indireta. Por exemplo, a influncia do discurso batailliano na obra

    de Hilst no pode ser apontada de forma to direta quanto de Kierkegaard e

    Plotino, embora as figuras obsessivas do Deus-porco e do olho permitam a ligao

    com pensador francs. Em A obscena senhora D, os eptetos Hill e D permitem a

    correlao ao discurso de Aristteles e Heidegger. Tambm as ideias de Camus,

    acerca do homem absurdo, se refletem na postura da personagem central, no

    entanto, o texto no mostra claramente as marcas desta influncia.

    Nos textos lricos de Hilst, o discurso apropriado da filosofia se

    mostra tanto explicitamente, como implicitamente. Em alguns casos, a roupagem

    lrica no permite a certeza de sua origem; em outros casos, a referncia fica

  • 34

    evidente, como no caso do poema Tempo-morte (nmero 4), Da morte. Odes

    mnimas, em que o eu-lrico diz: Tempo-morte/ procurar-te/ estar montado sobre

    um Leopardo/ E tentar ca-lo. (HILST, 2003b, p.74). A imagem, imediatamente,

    remete o leitor mais atento metfora de Nietzsche.

    Essas mltiplas referncias filosficas, dadas pela densidade do

    texto hilstiano, muitas vezes se colocam como encruzilhada para o pesquisador,

    vido por escolher um entre os muitos caminhos desta literatura de fronteira. Gisele

    do Rocio Borges (2008, p.10), por exemplo, afirma esta qualidade da obra de Hilst e

    tambm faz suas escolhas:

    As obras de Hilst remetem o leitor atento a uma vasta gama de vertentes do pensamento filosfico, ainda que indiretamente abordadas, notadamente as de Friedriech Nietzsche, em especial no que tange morte de deus e suas conseqncias ps-modernidade. Theodor Adorno e Alexander Lowen tambm encontram-se presentes na literatura hilstiana, no contexto da interdio sexual e as limitaes do indivduo da originadas.

    Esta relao entre a obra de Hilst e o discurso filosfico parece ser

    to evidente, que chega a convencer a prpria Hilda Hilst, onde numa entrevista, ao

    ser questionada por que nunca pensou em escrever filosofia, no hesita em

    responder: "Eu escrevo filosofia em todos os meus livros. Com fundo narrativo ou

    no, filosofia pura." (apud CULT, 1998).

    Como j dissemos, esta mltipla possibilidade de leitura da obra de

    Hilst pelo seu vis interdiscursivo, tem se mostrado muito tentadora, principalmente,

    aps a dcada de 90. Em recente pesquisa, realizada em sites de busca como o

    Google acadmico e no banco de dados da CAPES, encontramos uma srie de

    trabalhos que efetuam um dilogo entre a obra de Hilst e outros autores, tanto

    literrios quanto de outras reas do conhecimento. Em sua maior parte, eles buscam

    estabelecer uma relao temtica entre Hilst e nomes como Beckett, Bataille, Lacan,

    Blanchot, Foucault, Kierkegaard.

    No que se refere ao dilogo com a filosofia, embora muitos trabalhos

    apontem o carter filosfico do texto hilstiano, ainda so poucos os trabalhos que se

    debruam especificamente sobre esta relao. Rosanne Bezerra Arajo (2009, p.19)

    aponta que no estudo da obra de Hilst, em relao filosofia, foi constatada uma

    lacuna.

  • 35

    Em nossa pesquisa, observamos que, embora muitos trabalhos

    (artigos em sua maioria) apontem que trataro dos temas metafsicos e ontolgicos

    da obra hilstiana, poucos de fato levam adiante tal propsito. Entre os trabalhos que

    parecem ter alcanado sucesso na tentativa de estabelecer os domnios destas

    fronteiras discursivas (filosofia-literatura), destacamos aqui trs produes de grande

    flego, sendo respectivamente duas teses e uma dissertao.

    O primeiro trabalho destacado trata-se da tese de doutorado de

    Rosanne Bezerra de Arajo (UFPE), intitulado Niilismo herico em Samuel Beckett e

    Hilda Hilst: Fim e recomeo da narrativa. Este trabalho foi apresentado em 2008 e

    consta do banco de dados CAPES. Nele, a autora busca fazer uma aproximao

    entre a obra de Hilda Hilst, de Friedrich Nietzsche e de Samuel Beckett pelo vis do

    que a autora denomina niilismo herico. Segundo Arajo, o chamado niilismo

    herico na obra destes trs autores pode ser:

    [...] evidenciado na resistncia contra a morte e o fim do texto literrio. Atravs da anlise do enredo, dos narradores e da linguagem dessas narrativas, possvel descobrir uma centelha de esperana para os personagens, imersos em desespero e perdidos na torrente niilista de seus pensamentos. O niilismo herico pode ser observado na persistncia e permanncia da linguagem. Embora o narrador produza um discurso problemtico e fragmentado, ele persiste nos seus pensamentos. Sabe que haver um fim, mas, mesmo assim, segue tentando, sem cessar de falar. (ARAJO, 2009, p. 6).

    Ainda que destaque que sua anlise ser feita do ponto de vista do

    literrio e no visando incorporar a obra de Hilst e Beckett chamada filosofia

    niilista, Arajo tem como discurso de base para sua anlise a filosofia niilista de

    Nietzsche. Pensando nesta relao, a autora mesma caracteriza o vis

    interdiscursivo de seu trabalho, segundo ela:

    A ateno voltada para como a forma literria e seu contedo esto ligados realidade e como os textos so afetados esteticamente. Com relao ao niilismo, Nietzsche o autor mais relevante para o desenvolvimento desta tese, que busca estabelecer um elo entre a decadncia filosfica e a decadncia literria. (ARAJO, 2009, p. 6).

    O segundo trabalho trata-se da tese de Jos Antnio Cavalcanti

    (UFRJ), intitulado Deslimites da prosa ficcional em Hilda Hilst: uma leitura de Fluxo,

    Estar sendo. Ter sido, Tu no te moves de ti e A obscena senhora D, defendida em

  • 36

    2010. Em seu trabalho, o autor chama a ateno para a proximidade do pensamento

    de Hilst e de Heidegger, do que ambos tm de nfase no potico como forma

    inaugural de linguagem e luta contra o apagamento do ser. Ainda que Cavalcanti

    eleja outros autores, como por exemplo, o tambm filsofo, Giorgio Agamben, sua

    dvida para com as teorias de Heidegger so claras, como quando fala das

    caractersticas da criao esttica:

    A criao o hiato entre o nada e o criado, entre o no existir e o vir- ao-mundo. Aquilo que gerado j no est no momento da prpria gerao, apesar de carreg-lo para sempre sob a forma do esquecimento. Na fenda criadora vige a inapreensibilidade da existncia, fluxo contnuo e simultneo de vida e morte. (CAVALCANTI, 2010, p.17).

    Alm das terminologias heideggerianas adotadas na construo de

    suas ideias, Cavalcanti no decorrer de todo o percurso de sua anlise manter como

    farol as ideias de Heidegger, pois segundo o pesquisador: Heidegger concede

    grande relevncia poesia no processo de desocultao da verdade, entendida

    como um acontecimento que se d mediante um processo radicado na poeticidade,

    [...] (CAVALCANTI, 2010, p. 20).

    O terceiro trabalho, o mais recente entre todos, marca o encontro

    entre o pensamento de Hilst, de Kierkegaard e de Camus. Trata-se da dissertao

    de mestrado de Willian Andr (UEL), intitulada, Kierkegaard. Camus. Hilst: no

    labirinto da angstia, defendida em 2012. Neste trabalho o autor, semelhante a

    Cavalcanti, se detm no papel da conscincia potica na obra de Hilda Hilst,

    vinculando-a ao pensamento sobre o esttico de Kierkegaard e ao absurdo de

    Camus. O autor aponta como a angstia e o absurdo se equivalem, e em que

    medida o sentimento lrico uma necessidade resultante do confronto entre o

    homem e o mundo absurdo e angustiante. Ainda que o autor busque eliminar as

    fronteiras entre a filosofia e a literatura, trazendo baila um Kierkegaard poeta, no

    podemos nos esquecer de que Kierkegaard, assim como Nietzsche e Heidegger,

    est fixado pela tradio no territrio da filosofia. O que garante mais uma vez o

    carter interdiscursivo ao trabalho de pesquisador.

    A apresentao destes trabalhos, todos recentes, nos permitem

    duas concluses. A primeira que a abordagem da obra de Hilst por meio da

    aproximao destes dois campos do conhecimento: a Filosofia e a Literatura, ou o

  • 37

    que tradicionalmente se definiu como discurso peculiar a estes campos do

    pensamento, um empreendimento recente. Segundo, que afora estes trabalhos

    apontados, certamente outros acabam de ser concludos, ou esto a caminho da

    concluso, vindo em breve a estarem disponveis para consulta. Aumentando as

    pesquisas de grande flego sobre o assunto, que no momento so poucas,

    conforme j enfocamos.

    Como contribuio nossa pesquisa o que os trs trabalhos acima

    citados nos permitem, de forma geral, repensar as fronteiras entre o objeto literrio

    e a prpria construo ontolgica dos sujeitos, pensada tradicionalmente pelo

    discurso filosfico; e de forma especfica, em que medida a dvida existencial do

    homem repercute na sua linguagem potica. Ou ainda, em que medida esta

    linguagem se configura para o homem um universo de salvao do aniquilamento

    total do ser.

    3.1 REINTRODUO

    Como vimos, neste territrio de fronteiras discursivas exposto pela

    obra de Hilst, cada pesquisador escolhe sua trilha. Da mesma forma, somos

    tentados a descobrir por entre os mltiplos caminhos que a obra indica aquele que

    melhor atende nossas prprias expectativas. Pois consideramos que, embora a obra

    indique muitos caminhos, a anlise crtica sempre uma escolha baseada em nossa

    prpria experincia.

    Assim, somos levados a enxergar na obra de Hilst uma relao com

    o pensamento de Aristteles, Heidegger e Camus. Esclarecendo que pautaremos

    nossa anlise sempre a partir da linguagem hilstiana. Assumindo-a como ponte

    entre a experincia literria e a experincia filosfica. Usando a metfora do espao

    entre fronteiras, podemos dizer que nos posicionaremos estrategicamente no

    territrio da literatura, olhando para o territrio filosfico deste ponto, que

    certamente nosso ponto de segurana.

    partindo da hiptese da linguagem como possibilidade inaugural

    de encontro do ser, que nossa anlise se configurar. Queremos demonstrar que

    quando o homem moderno, marcado pelo excesso de racionalidade, repensa sua

    existncia em termos de origem e funo, se depara com o silncio e o vazio. Se

    antes havia esperana para este homem por meio da religio ou da viso positivista

  • 38

    da cincia, o presente se apresenta como o lugar de fracasso de ambas as

    possibilidades. Deus est morto, e a cincia presa em sua prpria racionalidade

    limitadora. A filosofia se coloca como uma possibilidade, mas no seu determinismo

    existencialista aponta para a mesma falncia que a religio e a cincia. Assim se

    clarifica que o pensamento no pode estar sob a tutela do utilitarismo humano.

    Este homem moderno, e aqui tomamos moderno como aquele que

    deriva do conturbado sculo XX, encontra-se num mundo escuro, preso a uma

    linguagem que no responde as suas dvidas, mas que o nico caminho de

    chegar a algum lugar. Logo, est nesta capacidade mltipla da linguagem sua nica

    possibilidade de retomar seu lugar inaugural de sujeito, no mais como indivduo

    uno e centralizado, mas como reverberaes mltiplas, recordaes de um sujeito

    proteico. Por isso que a linguagem agora assume um papel esttico e no mais

    utilitrio; no h possibilidade de comunicao entre os sujeitos, seno pelo que eles

    tm de silncio e vazio. E segundo Heidegger, a linguagem que melhor explora o

    silncio do sujeito inaugural a poesia, ainda que no sirva do mesmo modo

    especulao da essncia das coisas, tradicionalmente atribuda ao pensamento.

    Assim, o sujeito da narrativa de Hilst um sujeito vacilante entre a razo e a poesia.

    Ele desponta como um representante do caos moderno, um homem absurdo, que

    no consegue estabelecer contato nem com a realidade imanente, representada

    pelos demais indivduos em sociedade, nem com a transcendncia representada

    pela figura clssica da deidade e seu ideal de vida eterna. Para este homem surge

    uma realidade que a maioria ignora. A vida s adquire seu significado pelo que ela

    tem de subjetiva. A morte e o tempo cclico no se colocam para este sujeito. Vida e

    tempo so o sentir e o tocar, afora isso, somente o universo da linguagem se coloca

    ainda como um sentido simblico, ltima possibilidade de transcender alm da

    realidade material.

    Nosso trabalho, enfocando a questo do sujeito desnorteado e

    absurdo da obra hilstiana em questo, contemplar inicialmente uma possvel

    relao a ser feita com alguns dos conceitos oriundos da filosofia aristotlica e

    heideggeriana, para depois adentrar no conceito do absurdo, trabalhado por Albert

    Camus em O mito de Ssifo, e que em nossa concepo transparece na obra A

    obscena senhora D. Tambm nos utilizaremos de outros arcabouos tericos, alm

    dos citados, tanto da Crtica Literria, quanto da Filosofia.

  • 39

    Com o objetivo de efetivar este estudo comparativo, como j nos

    referimos, logo acima, escolhemos a obra A obscena senhora D, de Hilda Hilst,

    escrita em 1982. Este livro serve como um rizoma4 da obra geral de Hilda Hilst, j

    que ali esto concentradas as caractersticas peculiares de outros livros como:

    Fices, Tu no te moves de ti, Kadosh, Estar sendo ter sido. Por algumas vezes

    faremos referncias a estas obras de forma a mostrar este processo de repetio

    que ocorre n A obscena senhora D e que estruturam a prosa hilstiana. Nosso

    estudo, por opo metodolgica, no contemplar nenhuma meno direta poesia

    e ao teatro hilstiano.

    4 A ideia de rizoma apresentada por Deleuze e Guatari na introduo de Mil Plats (Capitalismo e

    Esquizofrenia), 1995. Refere-se a uma concepo paradigmtica do pensamento atual. Com relao ao objeto literrio tal definio aplicada a um texto que espalha referncias a outros textos; que envolve o texto num descentramento e multiplicidade, colocando-o como intermezzo de toda construo literria.

  • 40

    4 AS OBSESSES METAFSICAS HILSTIANAS

    Como j apontamos anteriormente, muitos estudos acerca da obra

    de Hilda Hilst no cansam de buscar uma aproximao com o universo do

    pensamento filosfico. A isso se devem dois fatores: o primeiro de origem externa

    ao texto e refere-se condio da autora enquanto leitora de filosofia. Esta forma de

    anlise encontra-se normalmente disseminada na abordagem geneticista que busca

    encontrar na obra de Hilst uma correlao direta com a leitura dos muitos filsofos

    por ela empreendida. O segundo fator diz respeito ao prprio texto hilstiano que no

    cessa de propor indagaes metafsicas, dialogando com os mais diversos campos

    do conhecimento, sendo um dos mais notveis a filosofia. Segundo salienta

    Cavalcanti:

    Hilda Hilst no considera nenhum territrio como espao intransponvel, razo pela qual invade todas as formas discursivas, da pornografia ao drama, da poesia filosofia. Talvez em um grau mais intenso do que em outros autores da literatura brasileira, ela parece atravessar sem culpa e sem preocupaes as fronteiras montadas por sculos de cultura entre poesia e filosofia. (CAVALCANTI, 2010, p. 27).

    Este dilogo hilstiano com o campo filosfico ocorre algumas vezes

    de forma direta, mas na maioria das vezes, a intertextualidade subjetiva e

    internalizada no objeto literrio em si, no havendo referncia direta abordagem

    filosfica com a qual o texto dialoga. Desta forma o pesquisador que buscar fazer

    ligaes diretas do texto hilstiano com a filosofia pode facilmente sentir-se em

    dificuldade para atingir seus objetivos.

    O fato que os escritos de Hilda Hilst empreendem uma

    ressignificao dos termos filosficos em prol de seu aproveitamento literrio. Por

    seus textos vemos circular muito do pensamento filosfico ocidental, mas no mais

    como conceitos puros de filosofia, mas sim conceitos mesclados a outras reas do

    pensamento e transformados em anseios e divagaes dos personagens. Ao pensar

    esta relao com o pensamento filosfico, que se extrai da obra hilstiana, nosso

    objetivo, portanto apontar que valor esta correspondncia assume sobre a forma

    de uma fico moderna.

  • 41

    A fico hilstiana, embora sempre surpreenda por suas inovaes

    estticas e formais a cada novo ttulo, redunda ao propor um pano de fundo

    ancorado em questes transcendentes, como Deus, o tempo, a morte, a essncia do

    ser. Tanto na fico quanto nas demais obras, estas questes assumem o carter

    de verdadeiras obsesses metafsicas, pois esto sempre sendo recuperadas

    pelos personagens e eu-lricos dos diversos livros da autora. Para explicar em que

    sentido estamos chamando as indagaes hilstianas de obsesses metafsicas,

    preciso esclarecer o que entendemos pelo termo metafsica.

    A metafsica inicialmente trata-se de uma disciplina fundamental da

    filosofia destinada ao estudo de objetos transcendentes da realidade humana, o que

    significa dizer que estariam sob sua tutela questes que escapariam possibilidade

    de apreenso emprica, como a existncia de Deus, para onde vo os mortos, entre

    outros.

    Segundo Heidegger (2006, p.47) o term