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Hilda Hilst: a poesia no ato de se recontar Johnny dos Santos Lima- UFGD 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Comunicação Artes e Letras, da Universidade Federal da Grande Dourados. Bolsista CAPES/CNPq. ([email protected]) Resumo: A poesia é a base deste trabalho, pois marca o início da escrita de Hilda Hilst. A autora se denomina “poeta”, com o emprego masculino da palavra. É pautado nesta afirmação que objetivamos explorar, além da obra, aspectos biográficos de Hilda Hilst pela voz da própria autora. Pretende-se verificar como a literata utiliza o fazer poético dentro de outros gêneros literários como a dramaturgia e a ficção, campos percorridos durante sua carreira na ânsia de ser lida e aclamada pelo público. A apropriação da escrita hilstiana pelos três gêneros que compõem a literatura consolida o caráter hibrido de sua obra. Essa investigação vem auxiliar e despertar interesse de novos leitores O método de pesquisa foi de caráter bibliográfico compostas por estudiosos da autora, entrevistas e teóricos que conceituam a poesia na modernidade como Pécora (2010), Destri e Diniz (2010), Dias (2010) e Paz (1972). Em síntese, a escritora passa por todos os gêneros da literatura: lírico, épico e dramático, sendo o primeiro deles a base de sustentação para toda sua obra, além de existir uma apropriação das formas de escrita dramatúrgicas que permaneceram também em sua ficção. Palavras-chave: Hilda Hilst, Poesia, Literatura. Abstract: Poetry is the basis of this work, as it marks the beginning of the writing of Hilda Hilst. The author is called "poet", with the masculine use of the word. It is based on this statement that we intend to explore, besides the work, biographical aspects of Hilda Hilst by the voice of the author herself. It is intended to verify how the literata uses the poetic make in other literary genres such as dramaturgy and fiction, fields of which the writer went during her career in the eagerness to be read and acclaimed by the public. The appropriation of the Hilstian script by the three genres that compose the literature consolidates the hybrid character of his work. This research helps and arouses the interest of new readers for his work, apparently little explored by the public in general. The research methods used were bibliographical references composed by the author's authors, interviews and theorists who conceptualize poetry in modernity as Pécora (2010), Destri and Diniz (2010), Dias (2010) and Paz (1972). The research that sought to verify the work and life of Hilda Hilst by means of its voice demonstrates an approach of the hilostian poetic make to the concepts of modern poetry of Otavio Paz. In summary, the writer goes through all the genres of literature: lyrical, epic and dramatic, being the first one of them, the base of sustentation for all his work, besides being an appropriation of the forms of writing dramaturgicas that also remained in his fiction. Keywords: Hilda Hilst, Poetry, Literature. Introdução Não se trata, neste trabalho, de apresentar conceitos teóricos sobre a biografia, mas demonstrar representações de si feitas por Hilda Hilst principalmente em sua produção teatral.

Hilda Hilst: a poesia no ato de se recontar Johnny dos ... · Não se trata, neste trabalho, de apresentar conceitos teóricos sobre a biografia, mas demonstrar representações de

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Hilda Hilst: a poesia no ato de se recontar

Johnny dos Santos Lima- UFGD 1Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras

da Faculdade de Comunicação Artes e Letras,

da Universidade Federal da Grande Dourados.

Bolsista CAPES/CNPq. ([email protected])

Resumo: A poesia é a base deste trabalho, pois marca o início da escrita de Hilda Hilst. A

autora se denomina “poeta”, com o emprego masculino da palavra. É pautado nesta afirmação

que objetivamos explorar, além da obra, aspectos biográficos de Hilda Hilst pela voz da própria

autora. Pretende-se verificar como a literata utiliza o fazer poético dentro de outros gêneros

literários como a dramaturgia e a ficção, campos percorridos durante sua carreira na ânsia de

ser lida e aclamada pelo público. A apropriação da escrita hilstiana pelos três gêneros que

compõem a literatura consolida o caráter hibrido de sua obra. Essa investigação vem auxiliar e

despertar interesse de novos leitores O método de pesquisa foi de caráter bibliográfico

compostas por estudiosos da autora, entrevistas e teóricos que conceituam a poesia na

modernidade como Pécora (2010), Destri e Diniz (2010), Dias (2010) e Paz (1972). Em síntese,

a escritora passa por todos os gêneros da literatura: lírico, épico e dramático, sendo o primeiro

deles a base de sustentação para toda sua obra, além de existir uma apropriação das formas de

escrita dramatúrgicas que permaneceram também em sua ficção.

Palavras-chave: Hilda Hilst, Poesia, Literatura.

Abstract: Poetry is the basis of this work, as it marks the beginning of the writing of Hilda

Hilst. The author is called "poet", with the masculine use of the word. It is based on this

statement that we intend to explore, besides the work, biographical aspects of Hilda Hilst by

the voice of the author herself. It is intended to verify how the literata uses the poetic make in

other literary genres such as dramaturgy and fiction, fields of which the writer went during her

career in the eagerness to be read and acclaimed by the public. The appropriation of the Hilstian

script by the three genres that compose the literature consolidates the hybrid character of his

work. This research helps and arouses the interest of new readers for his work, apparently little

explored by the public in general. The research methods used were bibliographical references

composed by the author's authors, interviews and theorists who conceptualize poetry in

modernity as Pécora (2010), Destri and Diniz (2010), Dias (2010) and Paz (1972). The research

that sought to verify the work and life of Hilda Hilst by means of its voice demonstrates an

approach of the hilostian poetic make to the concepts of modern poetry of Otavio Paz. In

summary, the writer goes through all the genres of literature: lyrical, epic and dramatic, being

the first one of them, the base of sustentation for all his work, besides being an appropriation

of the forms of writing dramaturgicas that also remained in his fiction.

Keywords: Hilda Hilst, Poetry, Literature.

Introdução

Não se trata, neste trabalho, de apresentar conceitos teóricos sobre a biografia, mas

demonstrar representações de si feitas por Hilda Hilst principalmente em sua produção teatral.

Os estudos dramatúrgicos não apontam nenhuma teoria da escrita de si especifica para o teatro1,

o que podemos fazer são algumas aproximações, uma vez que também a dramaturgia de Hilda

Hilst não é autobiográfica nem biográfica, porque não fala claramente sobre sua vida e obra.

Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu em 21 de abril de 19302, na cidade de Jaú, interior

de São Paulo, filha de Benedita Vaz Cardoso, imigrante Portuguesa, e do poeta, escritor e

fazendeiro de café Apolônio de Almeida Prado Hilst. Em 1937, ingressa no Colégio Santa

Marcelina, em São Paulo capital, como aluna interna, onde cursou o primário e o antigo

“ginásio”. Estudou na escola secundária no Instituto Presbiteriano Mackenzie, e, em 1948,

entra na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP).

Publica seu primeiro livro de poesia, Presságio, em 1950, quando ainda cursava Direito, aos

20 anos. A partir daí, sua poesia ganha forma e escreve outros livros. Com a morte do pai, em

1966, muda-se para a Casa do Sol, em Campinas (SP), frequentada por artistas de diferentes

áreas. No ano seguinte, começa a escrever suas peças teatrais. As primeiras foram A Empresa

e O Rato no Muro, concluindo-as no fim de 67 e publica também mais um livro: Poesia. Casa-

se com Dante Casarini, em setembro de 1968, ano em que escreve O Visitante, Auto da barca

de Camiri, O Novo Sistema e inicia As Aves da Noite, no litoral de São Paulo. Lá constrói a

Casa da Lua para passar algumas temporadas. A morte do patriarca e O verdugo foram escritas

em 1969, à segunda recebeu Prêmio Anchieta no mesmo ano. Depois disso Hilda Hilst não

voltará a escrever teatro, sua dedicação será para os textos ficcionais e retomará a escrita

poética após uma pausa de sete anos (1967-1974). A escritora faleceu no Hospital das Clínicas

em São Paulo no dia 04 de fevereiro de 2004.

As entrevistas cedidas por Hilst, que se encontram no livro: Fico besta quando me

entendem (2013), permitem perceber uma aproximação significativa de sua vida, representada

em seus textos teatrais por um espaço biográfico da escrita, termo sugerido por Leonor Arfuch

(2010) para dar conta das novas abordagens da escrita de si, que se sobrepõem a ideia do pacto

autobiográfico defendido por Lejeune. Porque “não é tanto o ‘conteúdo’ do relato por si mesmo

1“Formalmente, ainda não está definido o que seria uma autobiografia no teatro. Tendo em vista que a condição

primeira para uma peça receber essa chancela seria a coincidência entre o nome do autor e do personagem

principal, temos que admitir que são raros os espetáculos que se incluem nessa categoria. Mesmo sem descartar a

existência de um texto dramático que cumpra tal exigência, podemos falar apenas de tentativas autobiográficas

ou mesmo de peças de inspiração autobiográfica presumida, em função de forte semelhança entre a trama

encenada e a vida do autor (TOLEDO, 2008, p.17)”. 2 Sobre a data de seu nascimento, é curioso lembrar que Hilst nasceu no dia em que morre Tiradentes, além disso,

segundo ela, foi concebida no dia da queda da Bastilha, 14 de julho: “São datas importantes demais. Tenho medo

do que pode me acontecer” (HILST, 2013, p.226).

- a coleção de acontecimentos, momentos, atitudes -, mas precisamente as estratégias -

ficcionais - de autorrepresentação que importa” (ARFUCH, 2010, p.75). Por meio deste olhar,

é importante ressaltar que Hilda Hilst escreve teatro no período em que o pais está regido pelos

militares e sua dramaturgia aparece representada por estratégias de escrita, como as metáforas

e analogias, já que a repressão tratava de calar a voz do povo:

A “escrita de si” impõe-se como necessidade de ressignificação do passado

pessoal, mas também coletivo, de outra perspectiva, já que se inscreve num

momento dramático da história brasileira, o período de ditadura militar, e

prossegue nas décadas seguintes de reconstrução democrática (RAGO, 2013,

p.57).

Hilst, além de falar de si, em muitos momentos representa a sociedade brasileira dos

anos de 1960, aponta seus costumes, o comportamento social e reescreve a história de si dentro

da história coletiva do país. A dramaturga utiliza de lembranças e influências de suas

experiências para recriar os acontecimentos de sua vida no texto teatral3, que, nas palavras de

Arfuch, “coloca em cena mais do que a lembrança de um tempo vivido, o mecanismo fascinante

da escrita, a produção incansável de intertextualidade” (p.136). A dramaturga faz uso de

recursos ficcionais de autorrepresentação, a intertextualidade de Hilda Hilst vai além de textos

referencias, mas é uma mescla de sua própria vida. A autora assume, em algumas entrevistas,

que empresta um pouco de si para seus personagens:

Eu acho que o escritor quase sempre está inteiro naquilo que escreve.

Existem, claro, momentos que não fazem parte de sua vida, mas acredito que

o escritor está totalizado naquilo que escreve e, penso, isso não é só uma coisa

minha. Você vai desdobrando possíveis personalidades suas, as

personalidades tem tudo a ver com uma parte do escritor que foi levada a um

extremo de maldade, ou de beleza, ou de perfeição (HILST, 2013, p.149).

A fala de Hilda Hilst vai ao encontro com esse espaço biográfico em que se configuram

suas obras. São os detalhes que constroem o “eu” da escrita de si hilstiana na dramaturgia, dos

quais pretendemos mostrar neste trabalho.

3 Hilda Hilst escreve de si não só porque ao ler seu teatro encontramos aspectos biográficos, que ela empresta para

as personagens, mas também, porque “escrever-se é, portanto, um modo de transformar o vivido em experiência,

marcando sua própria temporalidade e afirmando sua diferença na atualidade” (RAGO, 2013, p.56). Entendemos

“escrever-se” como alguém que se coloca na obra dentro desse espaço biográfico, que não precisa ser

necessariamente assumido pelo autor.

O escritor está sempre falando de si mesmo4

Antes de se dedicar à escrita de textos para o teatro, Hilst iniciou sua carreia de escritora

pela poesia e já demonstrava o seu “eu” na forma lírica da escrita. Segundo Cintra:

Toda obra lírica é, em sua essência, uma fala de si. Em gradações múltiplas,

por razões históricas ou por objetivos específicos, a lírica é a manifestação

literária mais proeminente do eu, o espaço privilegiado da expressão do

sujeito em seu âmbito mais pleno (CINTRA, 2015, p.155).

A afirmação de Cintra se aproxima também de definições de T.S Eliot a respeito do

papel e da função do poeta em Tradição e Talento Individual (1989), que resgata aspectos já

vistos por Aristóteles em Póetica (2008), ao afirmar que a lírica é a manifestação mais

proeminente do eu dentro da literatura. A lírica seria a representação do eu, no sentido de

criação de imagem, que estabelece uma realidade, então, o poeta “cria realidades que possuem

verdade: a de sua própria existência” (PAZ, 1976, p.45). Logo, ao representar uma realidade

que parte de sua existência o poeta escreve de si.

Hilda Hilst imprimirá o “eu” de si em toda sua obra a partir da poesia, a título de

exemplificação trazemos o poema VI de Ode descontínua e remota para flauta e oboé: de

Ariana para Dionísio5, que está reunida em Da Poesia (2017):

Três luas, Dionísio, não te vejo.

Três luas percorro a Casa, a minha,

E entre o pátio e a figueira

Converso e passeio com meus cães

E fingindo altivez digo à minha estrela

Essa que é inteira prata, dez mil sóis

Sirius pressaga

Que Ariana pode estar sozinha

Sem Dionísio, sem riqueza ou fama

4 Referente à fala de Hilda Hilst em entrevista: “[...] É bem verdade que o escritor está sempre falando de si

mesmo, porque é somente através de nós que podemos nos aproximar dos outros. Desnudando-nos, procuramos

fazer com que os outros se incorporem ano nosso espaço de sedução. Estendemos as teias e desejamos que o outro

faça parte delas, não para devorá-lo, mas para que sinta perplexidade e faça a pergunta, para que tome

conhecimento da possível qualidade do nosso fio-sedução; caminhe conosco, num veículo que pode ser afetivo-

odioso” (HILST, 2013, p.34). 5 Os poemas reunidos neste capítulo do livro foram musicados por Zeca Baleiro em 2003, com aval da própria

Hilda Hilst e é interpretado por vozes grandes nomes da MPB, todas mulheres: Rita Ribeiro, Verônica Sabino,

Maria Bethânia, Jussara Silveira, Ângela Ro Ro, Ná Ozzetti, Zélia Duncan, Olívia Byington, Mônica Salmaso e

Ângela Maria.

Porque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama

Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás.

(HISLT, 2017, p.259 – grifo nosso).

Hilda Hilst possuía grande admiração pelo pai e contou durante algumas entrevistas que

Apolônio teria a confundido com a mãe e pedido a ela três noites de amor, enquanto estava em

tratamento da esquizofrenia em um sanatório em São Paulo. Parece-nos que o poema retoma

este acontecimento indagando a ausência de Dionísio. A relação com o pai se tornará comum

em suas obras de ficção e é apresentada também no texto teatral6. A Casa do Sol, chamada

assim por Hilda Hilst, local em que morava em uma fazenda no interior de Campinas, esteve

sempre rodeada por cães que a autora resgatava da rua ou que apareciam por lá. Em fotografias

e relatos de amigos, Hilst é descrita ou vista em volta dos cachorros. A figueira é o elemento

símbolo da Casa do Sol, onde, segundo a própria Hilda, além dos encontros festivos em volta

da árvore, aconteciam coisas místicas. A solidão é uma das marcas registradas em sua obra,

presente nos versos e na ficção, retomada no poema ao lado da ausência da fama e da riqueza.

Sabe-se que Hilda Hilst reivindicou durante toda sua vida a ausência da crítica para seus livros

e que eles nunca ganharam o gosto popular e isso fazia com que a escritora tivesse uma

sensação de impopularidade. Os livros, durante o período em que Hilda Hilst esteve viva,

tiveram pouca tiragem e com isso ela não ganhava muito dinheiro, sobrevivia da herança dos

pais e, ao fim de sua vida, enfrentou problemas financeiros. Esta análise do poema recupera

muitos aspectos biográficos da vida de Hilda Hilst, já que:

É que a possibilidade de derivar em algum tipo de narrativa pessoal, mesmo

nos intercâmbios mais formais, parece estar sempre presente, animada pela

dinâmica mesma da relação intersubjetiva, por essa ideia de acontecimento,

algo que se produz aqui e agora, no momento da enunciação, e que, como

ancoragem na temporalidade, guarda relação com a existência (ARFUCH,

2010, p.163).

A marca de narrativa pessoal sugerida por Arfuch é ainda mais evidente na ficção de

Hilda Hilst, que resgata todos os temas já abordados em suas poesias e até mesmo em seus

6 “O ocorrido se tornaria bastante produtivo do ponto de vista literário – a figura do pai e as relações incestuosas

são recorrentes na obra hilstiana, tendo sido o episódio das três noites recriado em Kodosh (1973)” (DESTRI;

DINIZ, 2010, p. 51).

textos teatrais ligados por uma relação intersubjetiva. Entre os livros ficcionais, o destaque

para um espaço biográfico está em A obscena senhora D.. Hilst chegou a afirmar: “eu noto que

a personagem principal [Hillé] tem muito a ver com a minha pessoa” (HILST, 2013, p.149).

Alguns críticos dizem que Hillé é o alter ego de Hilda Hilst por diversas semelhanças com a

autora: a personagem tem 60 anos de idade, o texto é escrito em primeira pessoa (assim como

toda sua ficção), o nome da personagem possui semelhança com o nome da autora7. No trecho

a seguir, podemos notar novamente a alusão ao pai:

[...] amei alguém que se parecia contigo, minha filha, toca-me, talvez me

lembre, tinha um nome longo is e ás e es, mas isso não importa, cola-se àquele

rosto um outro rosto, nítidas dissimetrias, esse alguém me conhece nos meus

mínimos, esse alguém dois, essa mulher duas, Ehud, faça com que ela se deite

aqui comigo, essa tua mulher minha filha. (HILST, 2001, p.70).

A mãe de Hilda Hilst chama-se Bedelcida Vaz Cardoso, um nome longo com “is” e

“as” e “es”, referente ao sobrenome Vaz. A passagem parece um devaneio de múltiplas vozes

que tomam conta da narrativa, remetendo a uma loucura, da qual também aparece antes deste

momento no texto. Todas parecem passagens da vida de Hilda Hilst transfiguradas em ficção,

por isso não é biográfico, porém passeia por este espaço. Antes de entramos na dramaturgia

da autora é preciso resaltar que a poesia está presente em quase todo o seu fazer teatral. Hilda

Hilst lida com a força da palavra poética ao mesmo tempo em que aprende a trabalhar com a

prosa dramática, isso faz com que seus textos teatrais tenham forte influência lírica. Marca que

parece ser à base de sustentação de toda sua carreia, seja como cronista, poeta8, ficcionista ou

dramaturga. Por isso é possível reconhecer um hibridismo na prosa teatral e ficcional de Hilda

Hilst, que parece ter aprendido muito bem a ideia de antropofagismo dos modernistas. Seus

textos são hibridados e tornam-se uma mescla dos gêneros que ela escreveu em sua carreira:

lírico, épico e dramático.

Traços biográficos na dramaturgia poética de Hilda Hilst

7 Hilda Hilst usará vários nomes de personagens iniciados com H, “como, por exemplo, os Hamat, Hiram, Hakan,

Herot, Hemin etc. [...] São flexões de Hilda, como também Hilde ou Hillé...” (PECORA, 2010, p.14). 8 “A autora toda a vida se afirmou como poeta. Alegava que o termo poetisa referia-se a moças prendadas que

escreviam versos para ocupar o tempo” (DIAS, 2010, p.31).

Para falarmos de teatro e vida de Hilda Hilst começamos com o agente mais

questionado em suas obras: Deus. No teatro hilstiano, Deus não é uma figura inocente diante

das barbáries do mundo: “Carcereiro (Interrompendo gritando): Deus não é inocente.

Maximilian (Pausa. Sôfrego, para a Mulher) E depois? E depois?” (HILST, 2008, p.263).

As aves da noite é uma peça inspirada na história do Padre Maximilian Kolbe,

prisioneiro em Auschwitz, que se ofereceu para ficar no lugar de outro homem que teria entrado

em pânico ao ser sorteado para morrer no Porão da Fome. A cela é hoje um monumento e,

posteriormente, o Padre Maximilian kolbe recebeu a beatificação em Roma. Embora a peça

tenha referência biográfica da vida de um padre, seu enredo é a exploração do que poderia ter

ocorrido dentro da cela até que todos chegassem à morte. Hilda Hilst apenas se apropria do

acontecimento histórico para colocar seus questionamentos a Deus, sendo um de seus textos

teatrais que tem maior carga poética. As personagens não possuem nomes, são apenas tipos e

são em boa parte a autorrepresentação da própria autora. Talvez seja a peça que mais evidência

e coloca Deus em uma posição de culpado abertamente, livre das entrelinhas que seus outros

textos presumem:

SS: Um poeta? Muito bonito... Hans, leva prá fora, leva prá fora o porco

poeta. (Todos se aproximam muito do Poeta) Para trás, para trás. (O ajudante

afasta todos com violência) Vamos, todos cantando, cantando, la, la, ra, la...

Não querem mais cantar? Pena, pena. (Hans começa a arrastar o corpo do

Poeta para fora) Então um poeta... muito bonito... nós também temos grandes

poetas... espera um pouco Hans. (Começa a dizer lentamente)Sobre todos os

cimos /O repouso.

Sobre todos os cumes /Apenas leve sopro./Continua comigo Hans. (Os dois

juntos) /Calam os pássaros na mata/Espera, pois, e em breve /Também

descansarás. (Vão saindo, o SS dá risadas discretas e Hans só sorri) Muito

bonito... muito bonito... (Pausa longa)

Carcereiro (Para Maximilian. Tom ferido): Olha, toca em mim, toca em

você... Você acha que deus tem alguma coisa a ver com a gente? com tudo

isso que vai apodrecer? E se Ele tem alguma coisa a ver com a gente, Ele não

é inocente, Ele sabe. (Exaltado) De qualquer jeito ele não é inocente. Perto

de nós, muito longe de nós (HILST, 2008, p.273).

Deus é posto à prova. A poesia perde a credibilidade, pois até os SSs9 podem fazer

poesia. Sugerindo a questão, também levantada por Octavio Paz (1976): qualquer um pode

fazer poesia? Na peça, o Poeta é o primeiro a morrer. Quando Hilda Hilst deixa de escrever

poesia e se dedica ao teatro, não mata a poeta que existe dentro de si porque seu teatro também

é lírico. Porém, quando assumiu a literatura erótica, a crítica levantou essa hipótese, como se a

9 Soldados da organização paramilitar ligada ao comando Nazista, à chamada Schutzstaffel.

poeta estivesse morta. No momento em que a autora se dedica à escrita teatral, estabelece uma

relação de morte consigo mesma, nos remetendo à resposta do questionamento: Não é todo

mundo que pode fazer poesia. Entretanto, Hilda Hilst, acreditava que sua poesia era muito boa,

contudo, não ser lida lhe causava a sensação de estar morta. Como poeta, e durante toda sua

carreira, dedicou-se a acertar as contas com Deus, ao colocá-lo como culpado pelo “mal do

mundo”. Desafiá-lo, na escrita, era a busca por respostas10.

Hilda Hilst utiliza das lembranças da infância para dar voz às personagens, recriando

na ficção, um pouco de sua memória:

Mulher (Como uma confissão): Padre, eu quero dizer que... quando eu sinto

tanta alegria de não estar ali daquele jeito, o senhor entende? Eu consigo sentir

tanta alegria... é quase igual... quando eu era criança, a visita para os mortos

era um passeio lindo para mim, lindo. Eu nunca ficava triste quando visitava

os mortos, eu me dizia: eles não sentem mais nada, e eu estou aqui respirando

e dentro de mim havia um frescor, eu respirava várias vezes, sempre

repetindo: eu estou viva, eu estou viva... e tudo em volta de mim era

vida...apesar dos mortos. Eu olhava para o céu e de vez em quando passava

um bando de passarinhos e eu me lembro que um dia... quando eu era ainda

tão pequena... eu fiquei tão contente de estar ali, perto dos mortos, todavia

viva, fiquei tão contente de estar viva... eu era tão pequena...sabe o que eu

fiz? Eu levantei o meu vestidinho e comecei a rodar a rodar a rodar, até que

minha mãe pensou que algum espírito tinha me possuído, imagine... ela

chegou a pensar isso... um espírito.

Carcereiro (Interrompendo com desprezo): O espírito de quem?

Mulher: ... E eu continuava a rodar de alegria. E via o céu azul e os olhos da

minha mãe, escuros enormes...o céu azul e os olhos escuros... (A Mulher

parece ter se esquecido que está ali. Está contente) Que alegria de estar viva!

(O Carcereiro olha fixamente para a Mulher) Não me olhe assim. Você

parece o demônio (HILST, 2008, p.281).

A mulher conta sua relação com os mortos na infância e como a mãe reagiu. Hilda Hilst

reconheceu, por diversas vezes, que via anjos quando criança11 e já na vida adulta recebia a

visita de pessoas mortas, o que influenciou suas pesquisas radiofônicas com os colegas físicos.

A mulher de As aves da noite também se assemelha à Hilda Hilst:

Estudante: Você tem mulher?

Joalheiro: Tinha. Agora não sei mais.

Estudante: E os filhos?

10 “E eu desafiei-O muitas vezes em meus livros como uma blasfêmia, para ver se de repente dava um furor Nele

e Ele dizia: Está bem, eu estou aqui, ou seja o que for, surgisse qualquer luz impressionante, qualquer explicação

de algum ato mínimo da minha vida. Pois eu não compreendo mesmo nada”(HILST, 2013, p.91). 11 “Eu era menina, tinha uns sete anos, e um dia, dormindo com a minha mãe, abri os olhos e vi um anjo. Cutuquei

minha mãe e falei: Mãe, um anjo. E o anjo fez um sinal assim, para eu ficar quieta” (HILST, 2013, p. 205).

Joalheiro: Ela dizia que uma alma masculina tinha entrado no seu corpo.

Estudante: Sua mulher dizia isso?

Joalheiro: E quando uma alma masculina entra no corpo de uma mulher... ela

nunca tem filhos, você sabia? (HILST, 2008, p.289).

Os personagens de Hilda Hilst passeiam pela loucura causada pela dor e solidão,

inspirado em seu desejo de compreender a loucura do pai. Ela afirmou que não teve filhos por

medo de nascerem com esquizofrenia, já que médicos disseram ser uma possibilidade. Como

vemos, as referências biográficas se constituem nos detalhes. Hilst, enquanto mulher declarou

escrever como homem, não no sentido técnico, porém na forma de observar o mundo e

transportá-lo para o papel. Ela “possuía uma alma masculina”, como a mulher do joelheiro

representada em sua dramaturgia.

O verdugo trabalha com os dilemas de um homem, o Verdugo, que se encontra

desconsertado após ter visto os olhos do Homem e se encontrado através deles. Para ele o

Homem possui uma boa alma e ele não quer executa-lo. A Mulher e a Filha querem que o

Verdugo mate o homem, porque a justiça irá pagar bem pelo serviço e a filha poderá se casar.

O Filho é o único que fica ao lado do pai e acredita que o Homem é inocente. Ele é culpado de

“agitar as gentes, de falar demais”. Como o Verdugo não quer executar o serviço, sua esposa

se oferece para matar o Homem. No início os juízes ficam resistentes, mas, com a popularidade

do homem crescendo, decidem permitir que a mulher se disfarçasse de verdugo e faça o

trabalho. Filho e Verdugo acabam presos para que a mulher possa cumprir a tarefa, mas, no

desenrolar da história, conseguem escapar e vão até a praça onde aconteceria a execução do

Homem. A população fica confusa, começa a defender o Homem, mas quando sabem que teria

dinheiro envolvido em sua morte, mudam de ideia. Os juízes prometem dividir o dinheiro com

a população, o Verdugo tenta impedir a morte do Homem, mas acaba morto junto com ele.

A representação da mulher em O verdugo é extremamente forte, demonstra uma

personagem feminina à frente de seu tempo, assim como Hilda Hilst era vista pela sociedade

paulista na juventude. A personagem decide que se o marido não fizer o serviço, ela o fará, em

outras palavras, toma partido da situação. Ela acredita que apenas irá cumprir as ordens da lei:

“Mulher: Matar o homem... Que jeito de falar. Eu quero que as Excelências saibam que eu

posso cumprir a lei” (HILST, 2008, p.385). Vemos aqui, semelhança com o protagonismo

feminino de Hilda Hilst, por meio das tomadas de decisões. Um bom exemplo é quando decide

ir para a Casa do Sol com o intuito de se dedicar à literatura, já que em meio à sociedade

paulista, ficaria muito difícil ter tempo e tranquilidade para a escrita.

A lei é mostrada como corrupta, engana o povo e cumpre ordens de interesses

superiores, mostrando a hierarquia das relações humanas. O capitalismo é apresentado, vale

tudo por dinheiro, até mesmo matar. A mulher é inferiorizada em várias passagens; os homens

podem tudo, um alerta para a diferença dos direitos entre homens e mulheres. A destituição do

poder é apresentada quando qualquer um pode matar, semelhante a As Aves da noite, em que

qualquer um poderia ser poeta:

Verdugo (Ainda sem acreditar): Eu é que sou o verdugo, mulher.

Mulher: Qualquer um pode ser verdugo.

Verdugo (Lentamente): Fique quieta.

Mulher (Para os juízes): Os senhores não me deixam fazer o

serviço? (Os juízes abaixam as cabeças. Pausa longa)

Mulher (Para o verdugo): Claro, homem eles deixam.

(Os juízes continuam calados)

Verdugo (Para os juízes): Os senhores vão dar consentimento? A lei não

permite. Os senhores sabem que a lei não permite.

(Silêncio um pouco esticado)

Filho (Em tensão): Isso está certo. O pai tem razão. Não é permitido.

Filha (Desesperada, para o irmão): Você quer estragar a nossa vida? Sai

daqui.

Juiz jovem: Deixa, ele pode ficar. (Aproxima-se do jovem) Olha, moço, você

vai entender. (Para o verdugo) O senhor também. Não temos muito tempo

para explicar... mas...de uma certa forma também cumprimos ordens. Há

gente mais importante do que nós. Devemos dar atenção a certa gente

(HILST, 2008, p.387- grifo nosso).

No trecho acima, percebemos traços biográficos da personalidade que Hilda Hilst

apresenta em suas entrevistas. O descontentamento com a sua escrita que é vista, ao menos por

ela, como menor, por ser mulher, por escrever em português. Hilst alegou que, ao começar a

escrita de ficção erótica, não possuía leitores, também por ser mulher, enquanto outros autores

eróticos estavam no auge das vendas. Mesmo que a relação não esteja explícita, não deixamos

de refletir a respeito das marcas que Hilda Hilst transfere para as personagens, tornando-se

também uma forma de revelar sua visão de mundo e seus pensamentos: porque afirmou que

tudo o que desejou falar, escreveu.

Viver em um ambiente como o centro paulista, em que o supérfluo está instaurado, foi

um marco para Hilda Hilst. Transitar na noite e nos grupos de alta classe fez com que a autora

representasse a sociedade do consumo que marcava a época:

Verdugo (Para a filha): Esse dinheiro vai queimar a tua carne.

Filha (Tom suplicante): Pai, o homem já morreu. Não somos nós que vamos

matá-lo. Ele já está morto. Só falta a terra em cima do cara.

Verdugo: Está vivo. Vivo igual a mim.

Filha (Suplicante, amorosa): O senhor não vai agüentar muito tempo fazendo

o serviço. (Aproxima-se do pai) Não vai agüentar. O senhor é... bom demais...

e os outros pisam em nós quando não se tem dinheiro. (Tom entre choroso e

contente) Nós vamos ter coisas, vamos ter coisas.

Verdugo (Enojado): Que coisas?

Filha: Uma casa melhor, roupas.

Verdugo (Enojado, voz crescente): Uma casa? Esta não é uma casa? O que

eu tenho no corpo não é roupa? O que você veste não é roupa? O que você

come não é comida?

Filha (Com ódio): Não. É lixo. É lixo.

Noivo: A gente quer melhorar. A gente é jovem (HILST, 2008, p.398).

O desejo de possuir é característica da sociedade moderna, como observa Bauman em

Modernidade Líquida (2001). O “querer ter” é representado como desnecessário, é o ser

humano que está sempre descontente com o que tem. A peça de Hilda Hilst remete à

representação do religioso: Judas trai Jesus por algumas moedas e depois se arrepende do que

fez; a peça também gira em torno dessa representação. As mulheres querem o dinheiro, para

isso prendem o Filho e o Verdugo. Ao final, o marido acaba entregue aos juízes e é morto pela

população. Elas se arrependem do que fizeram, no entanto já é tarde, o filho, que escapa da

morte pelo povo, segue em frente com os coiotes, da mesma forma que fizeram os apóstolos

de Jesus após a sua morte. Hilda Hilst levanta mais questionamentos em seus textos teatrais do

que traz respostas.

A Mulher de As aves da noite sentia-se culpada por estar mostrando a contradição das

ações do ser humano diante das situações limites. Já o Verdugo se sente comovido com tudo

que é vivo e que não era:

Verdugo (Muito comovido): No começo eu pensei que fosse só a emoção de

estar vivo, você compreende? Eu pensava: (Tranqüiliza-se um pouco) É, eu

me comovo com a vida, com tudo o que está vivo, é isso. (Emociona-se

novamente) Mas depois essa coisa foi crescendo e até uma casa, uma parede

meio gasta me comovia... e até...

Filho: Até o que, pai? (Pausa)

Verdugo: Um osso, meu filho. Um osso me comovia. (Lentamente. Em voz

baixa) Não só a vida. A morte, a cinza das coisas, o vazio me comovia.

Filho: Meu Deus, pai. (Rumores lá fora)

Verdugo: É como eu sou, você compreende? Eu tentei... (Rumores mais altos

lá fora. Desesperado) Nós precisamos sair daqui (HILST, 2008, p.404).

Este recorte é retomado por Hilda Hilst em uma entrevista cedida em 1975 para

Delmiro Gonçalves na Folha de São Paulo12, para lembrar a sua sensibilidade, a fragilidade

enquanto escritora e a sua maneira de representar o mundo:

Em minha peça O verdugo, uma personagem diz que tudo a comovia; um

osso, as cinzas das coisas, um canto na parede, tudo era motivo de comoção,

para a pergunta, a pergunta nunca respondida inteiramente. Também o ato de

escrever para mim revela às vezes a insegurança, pois o escritor é um ser

frágil, inseguro, ansioso, que procura respostas para todos os mistérios da vida

(HILST, 2013, p.29).

Hilda Hilst buscou representar a mulher nessa peça de duas maneiras:

Cidadão 5: Mulher não pode ser verdugo.

(Frase solta: “A minha bem que podia” - Algum riso - Rumores)

Juiz velho: Esperem, nós queremos ser honestos com vocês. (Risos mais

audíveis) Escutem, se nós não cumprirmos a lei agora, amanhã vocês é que

serão mortos.

(Frases: “Nós?” - “Mortos?” - “Por quê?”)

Verdugo (Exaltado): É mentira, é mentira.

Cidadão 5 (Para os juízes): Por que a mulher está aí?

(Frases dos cidadãos: “É isso mesmo” - “Isso não pode” - “Por que,

hein?”) (HILST, 2008, p.410).

Primeiro, pelo empoderamento feminino, representado por uma mulher ousada e que

toma atitudes, que não se detém diante do que deve ser feito para garantir seus interesses.

Depois, apresenta uma sociedade patriarcal que despreza esse tipo de mulher, colocando

imposições sociais como o que uma mulher deve ou não fazer. Aqui está clara a menção a

comportamentos binários de distinção de gênero herdados de um passado que ainda se faz

presente. Mais uma vez, temos a comprovação da atemporalidade de sua escrita, que em

determinados momentos, apesar de todo o lirismo transposto da poesia para a dramaturgia, nos

parece tão atual. Notamos também que a opressão e a ameaça à população nos remetem ao

estado de exceção que viviam os brasileiros dos anos 60.

A peça O visitante é a que mais se difere de todas as outras, porque não discute

exatamente sobre a repressão como é possível perceber em outros textos teatrais de Hilst,

todavia apresentam concepções da traição e da beleza, heranças do patriarcado de uma mulher

que vivia rodeada de artistas e intelectuais da cidade de São Paulo. Hilda Hilst era uma mulher

muito desejada na juventude, sempre elogiada por sua beleza; seu pai também é referido como

12 No livro de entrevistas que Cristiano Destri organizou em 2013: Fico besta quando me entendem.

um homem muito bonito. No texto teatral, Ana e o Homem são descritos como personagens

que representem a beleza. Não convém entrar em uma definição do belo, mas podemos dizer

que, para a autora, o belo do homem e da mulher se relacionam com o que a sociedade aceita

como bonito ou feio.

O enredo faz relação com moralismos sociais como a traição, porque Ana está,

“milagrosamente”, grávida, em uma casa em que divide apenas com sua filha Maria e marido

dela (o Homem). Recebem uma visita de outro homem, o Meia – Verdade, o nome da

personagem é uma analogia a própria história da peça porque Maria desconfia da traição do

marido com a Mãe, até que Meia- Verdade chega para uma visita, um desconhecido que o

Homem encontrou no caminho e convidou à sua casa. No meio do conflito entre Ana e Maria,

Meia-Verdade tenta defender Ana e Maria passa a acreditar que o filho que Ana espera é dele

e não de seu Marido, o texto não deixa claro se Ana traiu ou não Maria com o Homem, então

temos a meia- verdade.

Parece-nos que em O visitante também se faz, novamente, a referência a história do pai

com a autora, entretanto numa versão invertida, porque na peça é a mãe que trai a filha. Essa

inversão também aparece em O Verdugo, ao apresentar um filho que, segundo a mãe, tem os

mesmos pensamentos do pai13, assim como Hilst. Talvez, tal alteração, tenha ocorrido pelo fato

da autora se identificar como um escritor, ou por declarar um tipo de preconceito contra a

escrita das mulheres14. Em todas as peças anteriores, o amor é apontado como a solução para

o mundo. Nesta, o amor encontra-se em crise, pois se relaciona não mais com as atitudes do

homem e do mundo, mas sim com o desejo da carne, do corpo. O que para Oliveira (2013) é a

primeira aparição do erotismo de Hilda Hilst antes de seus escritos, também o autor relaciona

a peça com Matamoros [Da Fantasia], primeira novela de Tu não te moves de ti (1991), escrita

posteriormente por Hilda Hilst; uma releitura da peça.

A dramaturga representa a gravidez de Ana com certo tom milagroso, indicado pelas

luzes que sugere a rubrica. Esta composição também pode ser correlacionada à sua infância,

em que dizia que queria ser santa15. Mesmo que esta não seja uma peça que trate exatamente

13 Hilda Hilst disse, em entrevistas e documentários, que a Mãe sempre lhe dizia que ela era como o pai,

referindo-se não aos aspectos físicos, mas de personalidade. 14 “Eu tenho uma certa diferença com as mulheres, porque sinto que elas não são profundas. Eu tenho um

preconceito mesmo em relação à mulher. Nunca conheci mulheres muito excepcionais como, por exemplo, Edith

Stein. Ela era uma mulher deslumbrante e uma santa também” (HILST, 2013, p.197). 15 “Quando eu tinha oito anos, minha maior vontade era ser santa. Eu estudava em um colégio de freiras, rezava

demais, vivia na capela. Sabia de cor a vida das santas. Eu ouvia a história daquela Santa Margarida, que bebia a

da censura, da repressão, do caráter humanitário que ela trabalha em outros textos, ainda assim,

mantém a ideia do aprisionamento humano, lida com o desejo, a traição, o milagre, a beleza

que é aceita pela sociedade, e, como afirma Oliveira (2013), é uma peça que retrata a quebra

da moral e dos bons costumes.

Considerações finais

Podemos notar que falta ainda uma teoria de si que dê conta do texto teatral, mas

consideramos que há espaços biográficos em todos os gêneros escritos por Hilda Hilst

representados por meio de sua marca poética. Definimos seu teatro como lírico para mostrar

que a autora está sempre se recontando por meio da poesia. Buscamos dar ênfase em sua

dramaturgia, por ser ainda um gênero pouco explorado dentro das obras estudadas de Hilda

Hilst. De modo geral, o teatro autobiográfico não é frequente nos estudos da dramaturgia.

Hoje, existem alguns musicais que trabalham com a biografia de artistas, principalmente de

músicos e alguns espetáculos inspirados na vida dos atores.

Hilda Hilst representa em sua dramaturgia uma escrita de si que fala da busca por

respostas de Deus, sempre levantando questionamentos que a própria autora assumiu durante

toda a sua vida e em toda sua produção literária. Nos textos teatrais também aparecem

questionamentos como a função e profissão do poeta, como notamos em As Aves da Noite.

Essa relação é vista como um conflito existencial de Hilda Hilst com a poesia, porque se

ausenta do fazer poético e se aventura pelo teatro e pela ficção.

O resgate das memórias de infância, com suas experiências com o divino, são traços

que aparecem em uma personagem mulher que estava relembrando, resgatando sua memória.

A loucura é o tema mais presente em suas obras, que no teatro aparece como um levantamento

crítico da capacidade do ser humano em compreender a si mesmo, retomando um pouco da

escrita de si. As mulheres do teatro hilstiano são personagens fortes que buscam o

enfrentamento social, que assumem posições masculinas na sociedade. Hilda Hilst dizia que

sua escolha por ser escritora deu-se não só porque o pai era poeta, mas porque queria provar

para ele que era brilhante, depois de saber que ele havia reprovado seu nascimento, ao ser

informado de que a criança não era um homem. Vemos aí que a autora se coloca no lugar do

água dos leprosos, e ficava impressionadíssima. Vomita todas as vezes que as freiras falavam disso. Elas diziam:

Não é para vomitar! Eu queria demais ser santa” (HILST, 2013, p.197).

pai, uma escritora que prefere ser chamada de poeta, uma mulher que decide escrever, atitude,

até então, consagrada por um cânone masculino.

Hilda também questiona a superficialidade dos grandes centros, um dos motivos para

abandonar São Paulo e morar no interior. Contudo, a autora deixa a escrita de si ao recontar-se

com nuances poéticas em toda a sua obra. Faz parte de uma história coletiva, pois resgata os

valores e costumes religiosos, ideológicos, binários e moralistas vividos durante o regime da

ditadura militar brasileira, e ainda assim consegue deixar a atemporalidade na escrita teatral

nos remetendo a atualidade. Em suma, seus textos teatrais apresentados neste trabalho

representam a si e ao momento histórico do Brasil na década de 1960, reafirmando um

hibridismo poético que marca toda sua obra, sem deixar de passar também por um espaço

biográfico, isto é, é sempre a poesia no ato de recontar-se.

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