HISTÓRIAS DE SANGUE E DOR

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ARUAN ANTONIO DOS PASSOS

HISTRIAS DE SANGUE E DOR Crimes passionais no Sudoeste do Paran (1909-1939)

CURITIBA 2009

ARUAN ANTONIO DOS PASSOS

HISTRIAS DE SANGUE E DOR Crimes passionais no Sudoeste do Paran (1909-1939)

Dissertao apresentada ao curso de Curso de Ps-Graduao em Histria, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paran, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Histria. Orientadora: Prof. Dra. Marion Brepohl

de Magalhes.

CURITIBA 2009

Para Suzana.

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Suzana e Antonio Sergio; Ao meu av Joo Maria dos Passos (in memoriam); Aline, pelo amor de todo dia; Aos exemplos intelectuais que influenciaram sobremaneira a minha formao, professores doutores: Carlos Lima, Helenice Rodrigues da Silva, Nilceu Jacob Deitos, Marion Brepohl de Magalhes Dias, Judite Maria Barboza Trindade, e Antonio Paulo Benatti; Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Paran: Euclides Marchi, Jos Roberto Braga Portela, Renata Senna Garraffoni, Andra Dor, Maria Luiza Andreazza e Sergio Odilon Nadalin; Aos meus grandes amigos: Luiz Felipe, Rosa, Alexandro, Marcos Timinski, Daniel Trevisan e Marcos Luis Ehrardt; Ao Setor de Documentao Paranaense da Biblioteca Pblica do Paran. Ao Memorial do Ministrio Pblico do Estado do Paran nas pessoas de Liana Overcenko de Lara (in memoriam), Dr. Nilton Marcos Carias de Oliveira e Dr. Rui Pinto. Ao Frum da Comarca de Clevelndia na pessoa do Dr. Macieo Caetano pelo acesso documentao. Aos professores que fizeram parte da banca de defesa, Dr. Rafael Augustus Sga e Dr. Pedro Rodolfo Bod, alm da professora Dra. Renata Senna Gararraffoni que esteve presente na banca de qualificao, agradeo pelas crticas e sugestes; A Maria Cristina da secretaria do PPGHIS; Gostaria ainda de registrar um agradecimento especial a Dra. Marion Brapohl de Magalhes que orientou este trabalho de modo sempre atento e critico; Ao CNPq pela bolsa de pesquisa; A todos minha gratido sincera.

Na violncia, esquecemos quem somos.Mary McCarthy.

SUMRIO Lista de tabelas............................................................................................................. viii Resumo.......................................................................................................................... xix Abstract......................................................................................................................... x Introduo.................................................................................................................... 11 Captulo 1. O SUDOESTE DO PARAN NO INCIO DO SCULO XX................ 26 1.1. O mito do vazio demogrfico................................................................................. 26 1.2. Foragidos, bandidos e criminosos: estigmas da populao local............................36 Captulo 2. O INCIO DO FUNCIONAMENTO DO PODER JUDICIRIO: DA FRAGILIDADE AO DESCASO.................................................................................. 51 2.1. Fragilidades da justia e da lei................................................................................ 51 2.2. Fragilidades e descaso: um exemplo de linchamento............................................. 62 2.3. Para alm da fragilidade e do descaso: uma condenao, uma pena cumprida..... 79 Captulo 3. HISTRIAS DE SANGUE E DOR: VIOLNCIAS NO ESPAO COLONIAL................................................................................................................... 87 3.1. A honra ferida: crimes sexuais e Adultrio............................................................ 87 3.1.1. Assdio Sexual: questes em torno do assdio e da desigualdade nas relaes de gnero............................................................................................................................. 95 3.2. A vida por fio: homicdios, agresses, e desordem............................................... 102 3.3. A justia que funciona: roubo e crime contra a propriedade................................. 125 Consideraes Finais.................................................................................................. 128 Fontes........................................................................................................................... 133 Referncias.................................................................................................................. 133 Anexos I Processo-crime por nome do ru, data e crime..................................... 138 Anexos II Distribuies dos crimes em relao ao total de processos (%)......... 139

Lista de Tabelas

Tabela 1 Profisso dos acusados%....................................................................29 Tabela 2 Nacionalidade dos envolvidos em %..................................................46 Tabela 3 Naturalidade %...................................................................................49 Tabela 4 Mdia de idade dos acusados %.........................................................54 Tabela 5 Relao de armas usadas nos crimes em %........................................80 Tabela 6 Concluso dos processos em %........................................................102 Tabela 7 Locais dos crimes em %...................................................................103 Tabela 8 - Presena do lcool no crime em %....................................................111

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RESUMOO presente estudo tem como objetivo uma escrita da histria do modo com que os habitantes da regio Sudoeste do Paran se confrontaram e foram tratados por um segmento do servio pblico, nesse caso, o judicirio, tendo em vista seus conflitos e seus reclames por justia. Dessa forma, atravs das figuraes desses pequenos agricultores no poder judicirio visualizamos os diversos atos de violncia em que estiveram envolvidos. Assim busca-se considerar os exerccios de poder envolvidos em torno do estabelecimento do direito de punir em uma sociedade em nascimento. O corpus documental utilizado constituiu-se de processos criminais executados pela Comarca de Clevelndia, interior do Paran, entre 1909 e 1939. O referencial terico fundamentou-se nas reflexes de Michel Foucault sobre o controle social envolvendo aspectos como a governamentalidade, a disciplina, o direito e a punio. Nas narraes extradas de processos-crime buscou-se compreender os fragmentos de vidas ali presentes e do modo como se confrontaram com o aparelho judicirio. Assim sendo buscamos analisar e compreender as diversas formas com que os homens atravs de seus atos agiram de forma violenta e em que medida essa violncia pode ser compreendida como o momento, muitas vezes, decisivo de relaes intersubjetivas de uma determinada organizao social. Dessa maneira, a relao entre uma aparelhagem judiciria que estava se organizando e uma violncia que se constitua em uma rede de relaes sociais, revelaram a produo dos estigmas sociais e da criminalizao efetivada por um sistema judicirio frgil em sua estrutura e displicente em relao aos reclames dos pequenos agricultores pobres que habitavam a regio.

Palavras-chave: violncia, poder, justia, crime, Sudoeste do Paran.

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ABSTRACT

This study aims at writing the history of a way that the inhabitants of the Southwest region of Paran was confronted and were treated by a segment of the public service, in this case, the judiciary, in view their conflict and their claims for justice. Thus, through the figurations of small farmers in the judiciary we visualize the various acts of violence that were involved. So try to consider the exercise of power involved around the establishment of the right to punish in a society at birth. The document corpus used consisted of criminal proceedings undertaken by the District of Clevelndia, inland of Paran, between 1909 and 1939. The theoretical framework was based on ideas of Michel Foucault on the social control involving issues such as government, the discipline, the law and punishment. In the narration from the criminal proceedings sought to understand the fragments of lives there present and the way it faced the judiciary. Thus we seek to explore and understand the various ways in which men by their actions in a violent act and the extent to which this violence can be understood as the time, often decisive inter-relations of a social organization. Thus, the relationship between a judicial apparatus that was organized and the violence that is a network of social relations, revealed the production of social stigma and criminality carried out by a weak judicial system in its structure and displeasing for claims of small poor farmers who inhabited the region.

Keywords: violence, power, justice, crime, south-west of Paran.

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INTRODUO

Cada sociedade nasce, aos seus olhos, no momento em que se faz a narrativa da sua violncia.

Jean-Pierre Faye. Violncia.

Na concepo de Jean-Pierre Faye narrar violncia do passado tem a funo de estruturar os mitos de fundao responsveis pela explicao da origem de nascimento do grupo, servindo de legitimao ideolgica e de explicao inicial. Do xodo bblico do povo hebraico, passando pelos egpcios, gregos, at a inflexo sofrida a partir do sculo XVIII onde ocorreu um deslocamento do lugar da violncia que passa a legitimar-se atravs do direito de conquista, a violncia tem um lugar na vida e na narrao da evoluo dos grupos, povos e civilizaes 1. Antes de Faye, Michel de Certeau j havia realizado constatao semelhante. Segundo Certeau a relao entre um passado de violncia ou uma violncia originria mantm uma ligao entre um passado imemorvel e uma funo no presente, muitas vezes, relacionada ao trabalho do historiador. Assim: um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, ressurgncia e denegao da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prtica presente 2. Analisar os modos com que as pessoas se confrontaram com o direito de punir do aparelho policial-judicirio e seus atos de violncia constitui o objetivo principal deste trabalho. Construir uma narrao que possa de alguma forma moldar um passado pouco contextualizado, como adverte Hannah Arendt, a tarefa primordial do historiador:FAYE, Jean-Pierre. Violncia. In: Enciclopdia Einaudi. Vol.22: Poltica Tolerncia/Intolerncia. Turim: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996, p.259. 2 CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2006, p.571

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Tanto quanto seja possvel algum domnio do passado, ele consiste em relatar o que aconteceu; mas essa narrao, que molda a histria, tampouco resolve qualquer problema e no alivia nenhum sofrimento; ela no domina nada de uma vez por todas. Ao invs disso, enquanto o sentido dos acontecimentos permanece vivo e esse sentido pode persistir por longussimos perodos de tempo -, o domnio do passado pode assumir a forma da narrao sempre repetida. O poeta, num sentido muito geral, e o historiador, num sentido muito especfico, tem a tarefa de acionar esse processo e envolver-nos nele3.

Assim, o presente estudo tem como objetivo uma escrita da histria do modo com que os habitantes da regio Sudoeste do Paran, no incio do sculo XX, se confrontaram e foram tratados por um segmento do servio pblico, nesse caso, o judicirio, tendo em vista seus conflitos e seus reclames por justia. Dessa forma, atravs das figuraes desses pequenos agricultores no poder judicirio visualizamos os diversos atos de violncia em que foram participantes. Ou seja, buscamos analisar os exerccios de poder envolvidos em torno do estabelecimento do direito de punir em uma sociedade em pleno nascimento. Assim optamos por uma abordagem que pode ser considerada microssociolgica. Como define Wnia Pasinato Izumino, em importante estudo sobre o papel do judicirio frente aos conflitos de gnero, numa leitura microssociolgica o que se coloca no so mais as regras, mas desvenda-se o mundo das normas. Fala-se do cotidiano das pessoas, suas paixes, seus vcios e suas virtudes. Os envolvidos tm sua privacidade vasculhada, detalhada, exposta para que se justifiquem atos e comportamentos4. Essa opo pela anlise microssociolgica reafirmada em virtude do carter fragmentrio da documentao aqui utilizada: os processos-crime. Para a

Histria os processos revelam tenses e conflitos que desvelam aspectos teis na compreenso da ao e da constituio social dos homens e das sociedades no tempo. Deste modo, a documentao que utilizamos nesse intento foram3

ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. So Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.30. 4 IZUMINO, Wnia Pasinato. Justia e Violncia contra a mulher. O papel do sistema judicirio na soluo dos conflitos de Gnero. So Paulo: Annablme/Fapesp, 1998, p.53.

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processos criminais executados pela Comarca de Clevelndia, interior do Paran, entre 1909 e 1939. Para tanto, analisamos 38 processos crime executados pela Comarca de Clevelndia entre 1909 e 1939, do mais antigo que encontramos at o limiar da intensificao das levas populacionais com objetivo de povoar e colonizar o territrio, ou pelo menos, de sistematizar a ocupao. Do ponto de vista metodolgico cabe destacar as opes que assumimos neste trabalho. Optamos ainda por conservar o mais fiel possvel a linguagem encontrada nos processo, conservando mesmo os erros eventualmente encontrados. A notao de referncias dos processos foi simplificada, tendo em vista que para o acesso na Comarca de Clevelndia a esses processos, apenas necessrio o nome do ru e a data de incio do processo. Quando no foi possvel transcrever alguma palavra, termo ou nome devido a problemas de grafia ou por ser ilegvel utilizamos dos parnteses (...). Toda a documentao que utilizamos est localizada no Frum da Comarca de Clevelndia. Esses documentos no se encontravam at o momento da redao deste trabalho catalogados, mas apenas listados pelo ano de incio e nome dos envolvidos. Cabe ainda ressaltar que todas as tabelas e a tipologia de crimes que traamos foram construdas a partir os dados retirados dos processos criminais. Logo esses dados so relativos e no absolutos em relao a populao local. Optamos por no realizar essa relao devido a fragilidades dos dados totais da populao que viveria na regio neste contexto especfico. Assim as tabelas que se referem ao uso do lcool, idade e nacionalidade foram construdas a partir das categorias encontradas no discurso jurdico dos processos-crime da poca. Mas para compreender o lugar da violncia no Sudoeste do Paran foi necessria alm de uma metodologia que tornasse possvel um cruzamento de dados e informaes uma crtica da historiografia e dos principais trabalhos historiogrficos sobre a regio, j que pensamos a regio enquanto construo simblico-ideolgica de um espao singular dotado de historicidade 5. Da parte da historiografia do Sudoeste do Paran, a maioria dos estudos se caracterizada pela5

BENATTI, Antonio Paulo. O centro e as margens: prostituio e vida bomia em Londrina (1930-1960). 2.ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p.11.

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abordagem de aspectos da sua ocupao e colonizao. Sobre o perodo anterior, temos o trabalho pioneiro de Roberto Lobato Corra, O sudoeste paranaense antes da colonizao, publicado em 1970 na Revista Brasileira de Geografia 6, figurando como o nico trabalho acadmico sobre a regio daquele perodo. Nele, Roberto Corra se vale de estatsticas, dados cadastrais e depoimentos orais, uma documentao hoje difcil de ser localizada. A estrutura do artigo marcada pela noo de ciclos econmicos, de extenso do territrio e de vazio demogrfico, culminando com a afirmao sobre a importncia dos movimentos migratrios na interiorizao do caboclo e na formao dos primeiros ncleos populacionais. Em sntese, a preocupao central do artigo em questo pintar um quadro contextual geral sobre a agricultura de subsistncia familiar, o lugar do luso-brasileiro e a formao dos primeiros ncleos populacionais. Na contramo de uma anlise do papel do colonizador no progresso regional encontramos o trabalho mais recente de Protasio Paulo Langer, em artigo publicado em 2007. No artigo o autor realiza uma crtica contundente s construes historiogrficas que realizaram o encobrimento da presena indgena na histria do Sudoeste do Paran, quando a temtica indgena fora subordinada aos valores picos e ufanistas construdos em torno dos migrantes colonizadores7. De resto, a ateno ao Sudoeste antes da colonizao se resume at ento ao breve artigo de Roberto Corra e, ainda assim, sem a preocupao de mapear o lugar e o papel dos povos originais nesse espao. Alm da perspectiva proposta por Roberto Corra a grande maioria dos estudos realizados se preocupa mais com as conseqncias da ocupao e colonizao e os efeitos resultantes dessa ocupao. Dentre os principais que seguiram por esse caminho, destaca-se o trabalho de Rui Wachowicz, Paran, Sudoeste: ocupao e colonizao, que aborda a formao da sociedade sudoestina desde a sua ocupao indgena at o6

CORRA, Lobato Roberto. O sudoeste paranaense antes da colonizao. Revista Brasileira de Geografia. Ano 32, n.01, 1970, p.88. 7 LANGER, Protasio Paulo. Conhecimento e encobrimento: o discurso historiogrfico sobre a colonizao eurobrasileira e as alteridades tnicas no Sudoeste do Paran. Revista Dilogos, DHI/PPH/UEM, v.11, n.3, 2007, p.75.

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levante dos posseiros de 1957, alm de dissertar sobre a constituio demogrfica populacional da regio. Wachowicz aborda a questo territorial e sua relao com a formao da sociedade do Sudoeste paranaense, com destaque para os caboclos, conferindo, todavia maior nfase para o papel do migrante teuto e talo gacho para a formao daquela sociedade. Estudos com um carter mais analtico podem ser exemplificados com os trabalhos de Maria Cristina Colnaghi8 e Hermgenes Lazier9. De um modo geral, tanto um trabalho quanto outro se volta para a questo da ocupao do territrio e os conflitos resultantes dessa ocupao desordenada e da disputa pela terra. Mais especificamente, o trabalho de Colnaghi se dedica pelo Levante dos Colonos de 1957, realizando uma anlise do acontecimento, sua relao com a terra e a violncia, o papel das companhias e do governo do Estado. J Hermgenes Lazier, sem negligenciar a disputa pela terra, centraliza suas consideraes na constituio demogrfica e social da populao que ocupou as terras do Sudoeste paranaense, sem se descuidar ainda de aspectos econmicos e polticos da organizao social dessa populao nesse territrio e de sua movimentao migratria. Outro estudo que merece destaque foi realizado por Rubem Murilo Leo Rego10, que analisa a disputa pela terra pelo vis dos movimentos sociais no campo. O autor considera essa luta pela terra como parte de uma expanso capitalista no campo, entendendo que o Levante dos Posseiros de 1957 teria sido uma forma de resistncia e contestao dessa ordem econmica imposta, uma manifestao da luta de classes, ou seja, os posseiros e colonos sofrendo uma expropriao por parte do capital em expanso. A violncia seria, dessa forma, a ao extrema resultante do conflito de interesses sobre esse objeto to importante para ambos os lados: colonos e capital.8

COLNAGHI, Maria Cristina. Colonos e Poder: a luta pela terra no Sudoeste do Paran. Curitiba/Universidade Federal do Paran (Dissertao de Mestrado): 1984. 9 LAZIER, Hermgenes. A estrutura agrria no Sudoeste do Paran. Curitiba/Universidade Federal do Paran (Dissertao de Mestrado): 1984. 10 REGO, Rubem Murilo Leo. Terra da violncia: estudo sobre a luta pela terra no Sudoeste do Paran. So Paulo: Universidade de So Paulo (Dissertao de Mestrado): 1979.

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inegvel que h uma violncia intimamente relacionada com as disputas pela terra na regio. Mas, esses estudos no do conta do lugar da violncia antes da colonizao, no apenas porque no se propuseram a realizar essa anlise, mas porque o que est em jogo certa concepo de progresso e evoluo social. Justamente porque, a disputa pela terra acaba por ofuscar outros fatores e outros elementos na prtica da violncia na regio e tudo que isso possa carregar consigo, do cotidiano revolta diante das injustias na colnia, ou apenas da exploso da violncia por diversas razes, tais como estupros, brigas, desordem, embriaguez, homicdios diversos. Tendo em vista estas constataes, partimos do princpio de que, se, por um lado, o estabelecimento do poder judicirio no Sudoeste do Paran configurase como parte integrante da estatizao e aparelhagem de um sistema de controle e dominao poltica na regio, por outro, ela conviveu com as dificuldades impostas por uma organizao social que se desenvolveu sobre os pressupostos do descaso e da desorganizao desse mesmo projeto. Assim, um esforo maior por parte do governo s se concretizou a partir do momento em que a disputa pelas terras da regio assumiu propores de extrema violncia. Sabemos que o julgar, processar e aplicar a pena em sociedade se estabelece atravs de um rgo e um sistema prprios de

produo/investigao/verificao de verdade e de punio de excessos, infraes e imposturas11. Trata-se do aparelho jurdico, que aqui foi percebido atravs de seu principal dispositivo de ao: o processo judicial.

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Michel Foucault ressalta que a partir do sculo XVIII e das reformas penais ocorridas na Europa diversas mudanas tericas sobre o regime do gerenciamento das penas fizeram com a estrutura de funcionamento da justia assumisse grande parte de seus elementos atuais. Nesse sentido a punio passa a se concentrar agora na representao da pena e no mais a sua aplicao aos corpos dos criminosos. Para que a conscincia do indivduo seja cristalizada por uma justia invisvel, mas onipresente e onipotente (bem ao gosto do universo penal kafkiano) donde o julgamento necessita uma racionalizao seguindo um senso comum. Abandono, ento das penas legais; rejeio da tortura, necessidade de uma demonstrao completa para fazer uma verdade justa, retirada de qualquer correlao entre os graus da suspeita e os da pena. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 29.ed. Petrpolis: Vozes, 2004, p.82.

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Para tanto, o aparato terico que nos orientou concernentemente a discusso da amplitude do tema e da problemtica foram as reflexes de Michel Foucault sobre o controle social envolvendo aspectos como a

governamentalidade, a disciplina, o direito e a punio. Justamente porque se trata do estabelecimento de dispositivos (jurdicos e policiais) e estratgias (processo penal, priso, intimao, depoimento etc.) que se encontram consoantes aos problemas do governar e representam o poder estatal nesta tarefa j que a organizao municipal ainda no exista. Mesmo diante dos problemas que esses dispositivos encontraram para se estabelecer no se pode subestimar seus efeitos de poder:

O poder, portanto, institucionaliza a verdade. Ou, ao menos, ele institucionaliza a busca da verdade ao institucionalizar seus mecanismos de confisso e inquirio. A verdade se profissionaliza, pois, afinal, no seio daquela relao triangular a verdade a norma: nesse sentido, e antes de mais nada, so os discursos verdadeiros que julgam, condenam, classificam, obrigam, coagem... trazendo sempre consigo efeitos especficos de poder 12.

Dessa forma essa implantao, de um sistema de dominao em que as condies foram sendo gradualmente modificadas conforme as migraes se intensificavam, pode ser compreendida atravs da noo de governamentalidade formulada por Michel Foucault que a define como:

O conjunto constitudo pelas instituies, procedimentos, anlises e reflexes, clculos e tticas que permitem exercer esta forma bastante especfica e complexa de poder, que tem por alvo a populao, por forma principal de saber a economia poltica e por instrumentos tcnicos essenciais os dispositivos de segurana 13.

Essa forma especfica que passou a constituir e ser chamada de governo no Ocidente com maior nfase a partir do sculo XVIII criou consigo uma srie de aparelhos e um conjunto de saberes. Dessa forma, a governamentalidade12

POGREBINSCHI, Thamy. Foucault, para alm do poder disciplinar e do biopoder. In: Revista Lua Nova, n 63, 2004, p.186. 13 FOUCAULT, Michel. A governamentalidade. In: Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p.291-292.

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garante ao Estado toda a sua capacidade de governar. Dessa maneira: Este Estado e governo que tem essencialmente como alvo a populao e utiliza a instrumentalizao do saber econmico, corresponderia a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurana 14. Assim, a governamentalidade pode ser traduzida como o conjunto de tcnicas, procedimentos e estratgias destinadas a governar, controlar, disciplinar, ou mesmo criminalizar a populao, mas tambm, como demonstra Claudine Haroche, o governo de si mesmo 15, da a relao que se estabelece entre o governo e os modos de subjetividade e subjetivao seccionados pelo processo de criminalizao. Com efeito, esse processo de criminalizao realizado no Sudoeste do incio do sculo passado pelo aparelho judicirio. Assim, corroboramos com Mariza Corra quando afirma que: ao mesmo tempo em que nega

ideologicamente a existncia das desigualdades sociais, o sistema jurdico as confirma em termos simblicos 16. Dessa forma, juntamente com a criminalizao o sistema judicirio realiza a produo de estigmas, esteretiposatravs do seu modo de funcionamento e organizao burocrtica. As narraes extradas de processos-crime do incio do sculo executado na Comarca de Clevelndia no interior do Paran contm fragmentos de vidas que de algum modo confrontaram-se com um poder ou por outro lado, exigiram que esse poder lhe socorresse ou ainda lhe beneficiasse de algum infortnio. Trata-se de seu encontro ou confronto com o aparelho judicirio, ou com a justia. Assim, tudo aqui foi observado atravs de um olho do poder; dessa forma que o processo crime pertence ao domnio de uma prtica de poder discursiva, tpica do poder judicirio. A noo de verdade jurdica aqui utilizada na conceituao de Michel Foucault:

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FOUCAULT, Michel. A governamentalidade, p.293. HAROCHE, Claudine. Da palavra ao gesto. Campinas: Papirus, 1998, p.36-37. CORRA, Mariza. Os crimes da paixo. So Paulo: Brasiliense, 1981, p.83.

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As prticas judicirias (...) me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relaes entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas 17.

justamente em torno das relaes diversas existentes no processo jurdico para a autenticao de uma verdade em torno de um acontecimento, que se configura geralmente como uma fratura no campo social (atos de violncia), que buscamos analisar os processos-crime. Temos que o processo e sua relao com a verdade estabelecem uma contradio entre a finalidade do processo (averiguar a verdade do crime) e os diversos atores que o envolvem:

Na sua materialidade, o processo penal como documento diz respeito a dois acontecimentos diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um outro que se instaura a partir da atuao do aparelho repressivo. Este ltimo tem como objetivo de estabelecer a verdade da qual resultar a punio ou absolvio de algum. Entretanto, a relao entre o processo penal, entendido como atividade do aparelho policial-judicirio e dos diferentes atores, e o fato considerado delituoso no linear, nem pode ser compreendida por meio de critrios de verdade18.

O processo em todo o seu decorrer passa a construir uma verdade atravs de diversas regras e procedimentos tcnicos. Regras, procedimentos e tcnicas dominadas por especialistas e no acessveis aos homens comuns, segundo Foucault: trata-se de determinar as condies de seu funcionamento, de impor aos indivduos que os pronunciam certo nmero de regras e assim de no permitir que todo mundo tenha acesso a eles.19

O papel do inqurito tambm assume

essa forma de estratgia e ao de um poder ordenado por um saber manipulado por um corpo burocrtico especializado: O inqurito precisamente uma forma poltica, uma forma de gesto, de exerccio do poder que, por meio da instituio judiciria, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autenticar a verdade,

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FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurdicas. 3.ed. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002, p.11. 18 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em So Paulo (1880-1924). So Paulo: Brasiliense, 1984, p.21. 19 FOUCAULT, M. A Ordem do discurso. 12.ed.So Paulo: Edies Loyola, 2005, p. 36-37.

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de adquirir coisas que vo ser consideradas e de as transmitir. O inqurito uma forma de saber-poder20. Trata-se aqui de buscar a superao dessa dicotomia atravs da percepo dos sujeitos presentes no discurso jurdico levando em considerao os procedimentos de controle e sujeio dos discursos atravs da imanncia dos efeitos de sentido capazes de desvela aos nossos olhos esses sujeitos infames, comuns, que se confrontaram com esse poder 21. Do modo com que tiveram de se localizar diante dos feixes de poder e das linhas de fuga que criaram em nome de suas expectativas e objetivos, em relao aos seus crimes ou as dores que lhe foram impressas por vezes de modo irreversvel22. Trata-se da vida desses homens comuns que se confrontam com o poder e que resultou no pouco de informao que encontramos sobre suas vidas. Foucault num pequeno texto intitulado A vida dos homens infames23 analisa o lugar dos homens ordinrios e suas vidas obscuras para compreender as relaes de poder e os efeitos de poder produzidos por esses sujeitos, onde se percebe a a perspectiva da anlise micropoltica consagrada em Vigiar e Punir (1975). Tambm os sujeitos que encontramos nos processos se mostram sem fama e suas vidas relegadas a um futuro obscuro; simplesmente desconhecida era a sua existncia e mesmo do seu confronto com o poder jurdico do qual foram protagonistas. Nas palavras de Foucault a vida desses sujeitos comuns constitui uma antologia de existncias: Vidas de algumas linhas ou de algumas pginas, desditas e aventuras sem numero, recolhidas numa mo-cheia de palavras. Vidas breves, achadas a esmo em livros e documentos24.

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FOUCAULT, M. A Ordem do discurso, p.78. Infames num sentido literal: sem fama. FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: O que um autor? 3.ed. Vega/ Passagens, 1992, p. 97. 22 Consideramos aqui que para Foucault o discurso prtica e as prticas discursivas podem engendrar domnio de saber que so discursivos ou no-discursivos. discursivo quando se refere ao que o indivduo fala e, no-discursivo quando se refere ao que o indivduo faz. In: MARTINS, E. Processos-crime: uma leitura foucaultiana. Anais Eletrnicos da XXII Semana de Histria. Unesp/Assis, 19 a 22 de outubro de 2004. 23 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: O que um autor? 3.ed. Porto: Vega, Passagens, 1992. 24 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames... p.89.

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Analisando as chamadas lettres de cachet25 - entre 1660 e 1760 Foucault se interessa pelas singularidades que fizeram com que esses sujeitos se confrontassem com o poder, que tiveram de lhes prestar satisfao, que tiveram o destino de suas vidas submetido a esse jogo de poder. Por sua vez, como demonstra Carlo Ginzburg em seu O Queijo e os Vermes, um indivduo medocre pode ser entendido como se fosse um microcosmo de um estrato social inteiro num determinado perodo histrico 26. Trata-se de indivduos que em sua aparente normalidade tiveram de se confrontar com os poderes constitudos. O que Foucault procura demonstrar a forma com que o poder oficial e os diversos poderes difundidos por todo o tecido social se relacionam mutuamente atravs desses confrontos. atravs das vidas infames que em determinado momento so capturadas pelo poder, que podemos perceber o instante exato da presena do poder, de sua disputa, de sua tenso. Nas palavras de Foucault:Para que algo delas chegasse at nos, foi, porm necessrio que um feixe de luz, ao menos por um instante, as viesse iluminar. Luz essa que lhes vem do exterior. Aquilo que as arranca noite em que elas poderiam, e talvez devessem sempre, ter ficado, o encontro com o poder: sem este choque, indubitvel que nenhuma palavra teria ficado para lembrar o seu fugidio trajeto. O poder que vigiou aquelas vidas, que as perseguiu, que, ainda que por um instante, prestou ateno s suas queixas e ao seu leve burburinho e que as marcou com um golpe das suas garras, foi tambm o poder que suscitou as poucas palavras que delas nos restam: quer porque se lhe tenham querido dirigir para denunciar, apresentar queixa solicitar, suplicar, quer porque ele tenha pretendido intervir e que com algumas palavras tenha julgado e decidido27.

De tal modo, buscamos analisar e compreender as diversas formas com que os homens atravs de seus atos agiram de forma violenta e em que medida essa violncia pode ser compreendida como o momento, muitas vezes, decisivo de relaes intersubjetivas de uma organizao social primitiva. Dessa25

Documentos emitidos em geral, em nome do rei com a funo de denunciar sujeitos e exigir que estes fossem levados priso ou ao internato por seu comportamento indesejvel. Ver: N. T. In: FOUCAULT, M. A vida dos homens infames... p.104. 26 GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes. O cotidiano e as idias de um oleiro perseguido pela inquisio. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.20. 27 Idem, ibidem, p.97-98.

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maneira, a relao entre uma aparelhagem judiciria que estava se organizando no Sudoeste do Paran e uma violncia que se constitua em uma rede de relaes sociais com caractersticas prprias so o objetivo do presente estudo. Assim para alm da cotidianidade de atos de violncia em sua maioria relacionadas ao foro ntimo da populao local a problemtica se concentrou no modo com que, o gerir o territrio e a populao, se desenvolveu antes da interveno das empresas colonizadoras. Para cumprir nosso objetivo no primeiro captulo analisamos as relaes dos homens com o espao, o meio fsico, geogrfico e, as formas com que esse meio interferia nas relaes de sociabilidades, acabando por construir os diversos laos que estruturavam aquela sociedade. A mata densa, a extrao dos recursos naturais, o lugar da agricultura e do criatrio de animais, e a constituio demogrfica dispersa nesse territrio so elementos excessivamente importantes para o entendimento das relaes entre os homens e, claro, um passo alm da construo ideolgica do mito do vazio demogrfico. A partir desses elementos nosso trabalho passou a se preocupar com a percepo do que era a regio Sudoeste do Paran no incio do sculo, donde emerge os temas que se referem aos sentimentos e sua presena no universo social, principalmente da violncia dita ordinria: a briga no bar, o assassinato do vizinho, o roubo, o estupro, a desordem, a embriaguez, dentre outras. Destarte, todas essas condies de estruturao da sobrevivncia material, de ordenao da economia de subsistncia e da ocupao e uso da terra desembocam no problema da governamentalidade, do gerir essa populao nesse territrio. E como pudemos perceber essa gesto estava sobremaneira delegada ao poder judicirio. No segundo captulo abordamos a presena dos estigmas sociais da populao local. So estigmas constitudos pelas alcunhas de criminosos, de bandidos e fugitivos da justia que viriam a se instalar na regio e ainda da imagem negativa do caboclo. Aos tentar desmascarar essas construes buscamos entender os limites e fronteiras do poder jurdico nesses tempos de22

povoao e crescente disputa pela terra, onde esses estigmas produzidos pela justia e reiterados pela historiografia memorialista regional funcionam ideologicamente para o processo de criminalizao dessa populao. A esse respeito Elizabeth Cancelli, em seu trabalho A cultura do crime e da lei, afirma o importante papel da cincia criminal e da antropologia criminal na construo dos estigmas em torno do crime e do criminoso no incio do sculo XX. Em meio aos objetivos dessa produo de estigmas figurava certamente o controle social e ainda a delimitao dos tipos sociais degenerados e, portanto alvos a serem combatidos, dentre eles estavam embriaguez, a misria, loucura, vagabundagem, a prostituio, a jogatina ou mesmo pessoas epilpticas 28. Em nosso caso os estigmas sociais produzidos no encontraram estratificao semelhante. Assim, na tipologia dos crimes que traamos percebemos que os crimes sob os quais a justia buscou julgar e punir no foge a esse padro formado pela pobreza, embriaguez e m ndole supostamente inerente ao sujeito criminoso e favorecida por determinada circunstncia ou situao. Assim sendo, ainda no captulo dois discorremos sobre a constituio e o exerccio do poder judicirio na regio no atravs da sua implantao formal, mas sim atravs das suas prticas e estratgias de poder percebidas em nosso corpus documental. Para salientamos os limites do poder da justia na regio nesses tempos nos valemos de dois casos. No primeiro discutimos o fazer justia com as prprias mos atravs do caso de linchamento de Pacfico Pinto de Lima. Acusado de contratar trabalhadores e depois assassin-los Pacfico teria sido linchado pelos amigos e parentes das vtimas no final da dcada de 1920. A histria de Pacfico nos possibilitou perceber as fragilidades e conseqncias de um aparelho judicirio que no tinha ainda condies de impor todo o seu poder e exercer a sua funo de aparelho de controle social. No segundo caso no h fragilidade ou descaso do poder judicirio para com o crime e o criminoso, mas sim a sua funo disciplinar completamente28

CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei (1889-1930). Braslia: Ed. Da Universidade de Braslia, 2001, p.178.

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efetivada atravs da trajetria de um condenado por homicdio que foi processado, julgado e levado priso onde cumpriu pena e retornou a sociedade. A histria de Honrio Cardoso desvela um timo de superao da fragilidade e do descaso caractersticos da justia por um sistema de controle que passa a funcionar como convm ao projeto de colonizao e ocupao legalizada das terras. nico processo que foi possvel acompanhar toda a trajetria de um indivduo pelo aparelho judicirio e por uma instituio correcional, na qual foi at mesmo objeto do saber psiquitrico. O caso de Honrio somou elementos para a compreenso da apropriao realizada pelos saberes envolvidos na tarefa de corrigir e devolver sociedade sujeitos ou perturbados ou refns de seus instintos e paixes elementares como o dio. Com a passagem de Honrio pela priso estadual de Piraquara entendemos que a instituio prisional continua a produzir e reforar estigmas e preconceitos supostamente abalizados num saber cientfico. No terceiro captulo buscamos analisar diversos casos onde os atos de violncia puderam ser percebidos e o modo com que ela desvelam ou ocultaram os vnculos entre os sujeitos, as relaes que mantinham entre si, ou seja, os diversos sujeitos e suas relaes sociais que em nosso caso foram esmigalhadas pelos atos de violncia. A grande maioria dos atos de violncia se localiza entre os homicdios, agresses e brigas, em seguidos de crimes de honra (estupros e adultrios) e por fim, o caso exemplar do roubo de um porco e a ao de um fazendeiro e da justia a respeito. No que se refere aos homicdios e, principalmente, aos crimes sexuais, as relaes e os detalhes dos processos revelam uma srie de sensibilidades e sentimentos inerentes as relaes intersubjetivas. Sentimentos e relaes que ordenavam a vida social e o cotidiano em comunidade. Ao analisar os conflitos conjugais em Ponta Grossa, entre 1890 e 1940, Adriana Canado ressaltou o fato de que as narrativas dos envolvidos em crimes da paixo, como so chamados os crimes em que os envolvidos mantinham relao conjugal, revelam os sentimentos j que: as narrativas das vtimas de24

violncia conjugal permitem, nas entrelinhas, a reconstruo de uma profuso de sentimentos que permeavam as relaes de gnero nas dcadas iniciais do sculo XX29, ou como destaca Elizabeth Cancelli nos ousados crimes de paixo, os sentimentos mais ntimos eram extravasados 30. Sendo assim buscamos delimitar a interseco entre os atos de violncia e os sentimentos inerentes s relaes que esses indivduos mantinham entre si, relevando a prpria maneira como essas pessoas encaravam o crime, a violncia e a dor que ela porventura trazia consigo. inegvel que, como assinalou Certeau, o ato de escrever a histria coloca em cena uma populao de mortos, personagens, mentalidades ou preos31, no entanto se encontramos muitas histrias de sangue e histrias de dor em nosso percurso, certamente no buscaremos tecer narrativas de sofrimento ou morte seno, para da vida e do pouco que sabemos dessas existncias, poder falar.

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CANADO, Adriana Mello. Um homem, uma mulher, um drama: crimes da paixo em Ponta Grossa PR (1890-1940). Dissertao: Curitiba, 2002, p.69. 30 CANCELLI, Elizabeth. Op. cit. p.143. 31 CERTEAU, M. Op. cit. p,106.

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Captulo 1 O SUDOESTE DO PARAN NO INCIO DO SCULO XX.

1.1. O mito do vazio demogrfico. No incio do sculo XX o Sudoeste do Paran era um territrio com uma rea de aproximadamente 12.000 km e, em 1900, continha 6.000 habitantes, populao composta, principalmente, por agricultores, posseiros e pequenos proprietrios. A regio oscilava entre uma insipiente ocupao, por um lado, e por outro, pela necessidade de uma maior ateno por parte do governo brasileiro, tendo em vista, o interesse argentino por aquele territrio, demonstrado desde o final do sculo XIX32. Em 1920 o Sudoeste tinha aproximadamente, segundo Roberto Lobato Corra, 0,5 habitantes por quilometro quadrado33. habitantes por quilometro quadrado. Essa J em 1940 havia dois era constituda,

populao

fundamentalmente, por um grupo social denominado de caboclos: esses pioneiros annimos eram de origem luso-brasileira, tendo sido genericamente conhecidos como caboclos pela ocupao de colonos que mais tarde ocupou a regio 34. A ocupao e colonizao do Sudoeste tornaram-se captulo obrigatrio nos estudos sobre a regio. A principal discusso realizada pela historiografia se refere aos conflitos resultantes da oscilao de interesses entre companhias colonizadoras e o governo Federal e Estadual. No entanto, antes da colonizao dos anos 1940 e da criao de uma srie de municpios na dcada de 1950 pelo

32

Data de 1881 a reivindicao oficial do territrio de Palmas pelo governo argentino. Segundo Adelar Heinsfeld: Naquele momento, o nico fator conflitivo entre os dois pases era a questo fronteiria, envolvendo o territrio da ento Comarca de Palmas. In: HEINSFELD, Adelar. Fronteira Brasil/Argentina: A questo de Palmas (de Alexandre de Gusmo a Rio Branco). Passo Fundo: Mritos, 2007, p.106. 33 CORRA, Lobato Roberto. O sudoeste paranaense antes da colonizao. Revista Brasileira de Geografia. Ano 32, n.01, 1970, p.88. 34 CORRA, Lobato Roberto. O sudoeste paranaense antes da colonizao...p.88.

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governo Bento Munhoz da Rocha Neto, observa-se que nesta regio a economia de subsistncia tinha suas prprias formas de organizao social e era base de reproduo da sua vida material. Antonio Candido em importante trabalho, Os parceiros do Rio Bonito de 1964, analisa a estrutura e organizao social de uma comunidade rural no interior de So Paulo. H algumas similitudes entre os habitantes daquela comunidade denominados caipira analisado por Cndido e a populao do Sudoeste do Paran do incio do sculo passado. Uma primeira semelhana terminolgica, e, se refere ao processo de acaipiramento ou acaipirao caracterizado pela incorporao dos grupos tnicos (caipira caboclo, caipira preto, caipira branco, caipira mulato) a cultura do interior e a dita rstica 35. Esse fenmeno de acaipiramento tambm acontece a partir do momento em que os migrantes do sul entram em contato com os caboclos no Sudoeste. O que passa a acontecer primeiramente a marginalizao e posteriormente a incorporao cultural do caboclo sociedade que se constitui, j que pouco a pouco, na medida em que chegavam os primeiros colonos, os caboclos iam vendendo suas posses e penetrando nas reas mais remotas, onde escolhiam um lugar isolado para criar porcos 36. Um segundo elemento est relacionado com a chamada rusticidade da cultura rural do caipira, tambm identificvel na organizao de vida do caboclo. Essa rusticidade est ligada aos modos de reproduo material da vida, os meios de subsistncia ligados vida orgnica. Com a chegada dos migrantes do Rio Grande do Sul j nos primeiros anos do sculo, mesmo que de modo esparso: (...) o tamanho mdio da propriedade agrcola girava em torno de sessenta hectares 37. Essa organizao social sem um Estado constitudo, mas com suas regras e padres sociais o elemento determinante nesses tempos. Esse tipo de35

CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformao dos seus meios de vida. 4.ed. So Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p.22-23. 36 CORRA, R. L. O sudoeste paranaense antes da colonizao... p. 90. 37 PADIS, Pedro Calil. Formao de uma economia perifrica: o caso do Paran. So Paulo: HUCITEC; Curitiba: Secretaria de Cultura e do Esporte do Governo do Estado do Paran, 1981, p.167.

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organizao s passa a ser modificada a partir da dcada de 1940 com a vinda ostensiva de diversas levas populacionais de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Em 1920, as reas mais ocupadas por propriedades familiares eram aquelas onde atualmente so os municpios de Pato Branco e Vitorino, com 70 propriedades, alm de diversas posses38

. At 1936, Pato Branco se

caracterizava como uma localidade com maior densidade populacional. Do incio do sculo at os anos de 1930 a coexistncia desses grupos sociais, tnicos, culturalmente constitudos pela diferena dentro do suposto territrio vazio ressaltado pela historiografia a regra. As prticas com relao terra e do encontro colono-caboclo somam-se a outros elementos para a nossa compreenso da relao desses sujeitos com o espao colonial. O caboclo mantinha outra relao com a terra. No era um sedentrio completo. Ele mantinha uma relao sempre provisria com a terra que ocupava. Estabelecia atravs de suas necessidades um movimento de constante, mesmo que intermitente de re-migrao. Assim, no toa o desprendimento que o caboclo mostrava com a terra visualizado em diversos relatos sobre esses tempos:

Na regio Sudoeste, o caboclo posseiro vendia a sua terra ao migrante vindo do Sul. A negociao nem sempre ocorria com dinheiro, aceitava-se no negocio desde um cavalo velho e doente, armas, at escova de dente ou qualquer outra quinquilharia. Em seguida, o caboclo mudava para outra regio ou para um pouco mais distante da qual estava, e se apossava de nova propriedade39.

O caboclo abandonava, vendia ou trocava a terra em que estava e procurava outro lugar para tirar o seu sustento. Esses movimentos no so prprios apenas da presena inicial do migrante do sul. Esses movimentos aconteciam antes da vinda dessas levas populacionais, quando os recursos naturais da terra no davam mais conta do sustento. Na chamada economia de subsistncia o caboclo extremamente dependente das condies dispostas a sua38 39

CORRA, R. L. O sudoeste paranaense antes da colonizao... p. 90. BOCCHESE, Neri Frana Fornari. Op. cit., p.46.

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sobrevivncia, inclusive em aspectos tcnicos. De um modo geral, como ressalta Maria Wanderley, alm da precariedade, o campesinato brasileiro profundamente marcado pela instabilidade das situaes vividas populao do Sudoeste no escapa a essa regra. Segundo Celso Furtado: Tem-se repetido comumente no Brasil que a causa dessa agricultura rudimentar est no caboclo, quando o caboclo simplesmente uma criao da economia de subsistncia. Mesmo que dispusesse de tcnicas agrcolas muito mais avanadas, o homem da economia de subsistncia teria que abandon-las, pois o produto de seu trabalho no teria valor econmico41 40

e a

. Na amostragem documental que utilizamos fica evidente a

caracterstica agrcola e de economia de subsistncia do campesinato existente na regio nesse momento histrico como visualizamos na tabela abaixo. Tabela 1 Profisso dos acusados%Profisso Agricultor Jornaleiro / Peo Comerciante Funcionrio Pblico % 74 5,2 18,2 2,6

Antonio Candido complementa a crtica de Celso Furtado: podemos dizer que o desamor ao trabalho estava ligado desnecessidade de trabalhar, condicionada pela falta de estmulos prementes, a tcnica sumria e, em muitos casos, a espoliao eventual da terra obtida por posse ou concesso 42. Assim, a viso de que o caboclo era pouco afeito ao trabalho de esfacela diante de outra40

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Razes histricas do campesinato brasileiro. XX Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 1996, p.18. 41 FURTADO, Celso. Apud: MENDES, Adilson Miranda. Origem e Composio das Fortunas na Sociedade Tradicional Paranaense, Palmas 1859-1903. (Dissertao de Mestrado em Histria UFPR), Curitiba, 1989, p.113. 42 CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformao dos seus meios de vida. 4.ed. So Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p.86.

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percepo da ordenao e da relao que o caboclo mantinha com o espao e a reproduo material da sua vida: desambio imprevidncia devem ser interpretadas como a maneira corrente de designar a desnecessidade de trabalho, no universo relativamente fechado e homogneo de uma cultura rstica em territrio vasto43

, podemos dizer que essas caractersticas so similares s do

caboclo no Sudoeste nesses primeiros anos do sculo XX. Euclia Gonalves dos Santos reitera certa posio do caboclo nessa sociedade:Saindo dos domnios compreendidos pelas divisas de uma fazenda com outra, no meio de uma vasta extenso de floresta, solitariamente envolvidos pela mata e pelas distancias, habitavam algumas famlias que se diferenciavam dos fazendeiros, por possurem apenas uma roa de subsistncia, e que se distinguiam daqueles que habitavam o centro da Vila, porque se distanciavam daquele espao. Eram chamados de caboclos 44.

Ainda:Estes tomavam uma determinada poro de terra, construam a casinha com os materiais que dispunham e plantavam a roa de subsistncia que mal dava para o gasto. No instante que o solo no fosse mais produtivo ou que a oferta de algo melhor estivesse em vista, eles abandonavam as casas e as terras e iam se estabelecer num novo local, que se apresentasse mais promissor 45.

Como exemplo dessa relao com a terra, sabemos que na Colnia Bom Retiro criada em 1918 para abrigar os dissidentes da Guerra do Contestado, muitos migrantes se fixaram, e,Quando os gachos, os compradores do Sul, como eram chamados, comearam a chagar em Bom Retiro, foram recebidos com esta pelos caboclos, foi uma loteria, quase uma graa divina para os primitivos donos da terra. O sulista vinha com dinheiro na guaiaca e isso era o que os caboclos queriam, porque em Bom Retiro no havia moeda circulando46.

43 44

FOUCAULT, M. A Ordem do discurso, p.87. SANTOS, Euclia Gonalves. Em cima da mula, debaixo de Deus, na frente do inferno: os missionrios franciscanos no Sudoeste do Paran (1903-1936). Dissertao de Mestrado em Histria Universidade Federal do Paran (UFPR), 2005, p. 67. 45 Idem, ibidem, p. 68. 46 BOCCHESE, Neri Frana Fornari. Op.cit., p.57.

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Esse tipo de troca, de comrcio singular da terra durou mais de vinte anos. No possvel subestimar o papel e o lugar do caboclo nesse territrio como sujeito ativo, o que juntamente com o impacto do migrante estruturam a base da evoluo social nesse territrio. inegvel que o migrante possui um lugar bastante definidor e transformador nessas relaes. Ele sujeito determinante no mosaico social que estrutura a nova sociedade. Por outro lado, Euclia Gonalves Santos, analisa um acontecimento interessante sobre a relao entre os sertanejos e os franciscanos. a relao que se estabelece entre os franciscanos e um caboclo chamado Milito.

O Milito era um caboclo importante no seu meio. Sua casa era um local de amplas discusses polticas. No possua mais que qualquer outro caboclo do lugar, mas conquistou um profundo respeito dos demais por estar sempre disposto a ajudar em qualquer negcio. Nada se decidia numa ampla extenso daquelas redondezas sem antes pedir conselho ao Milito. Em meio a simplicidade da vida do mato, o destaque que alguns personagens adquiriram era de tal forma respeitado que, bastaria utilizar estratgias certas ou criar vnculos com determinadas pessoas para atingir a todos. A figura de um caboclo, rude no seu modo de ser, mas que acumulava a confiana dos sertanejos, despertava nesses a vontade de permanecer um pouco mais na presena do padre, para realizar os sacramentos que eram enfatizados, mas que raramente os atingiam. Bastou que o Milito, um caboclo igual a eles, reafirmassem a importncia destes rituais para que fosse aceito e realizado com boa vontade. Portanto, o poder de dominao como comumente observou-se em trabalhos que trataram das relaes entre indivduos institudos (ou a instituio) e pessoas comuns, adquiriu outras faces pela observao destas relaes: o poder no estava nas mos dos freis, nem nas mos dos caboclos, ele circulava em igual medida por todos os indivduos47.

Em outras palavras, as relaes que se estabeleciam dentro do chamado Espao de Misso dos franciscanos levava em considerao o papel social do caboclo, seu status, seu lugar no grupo social. Para estabelecer sua influncia os franciscanos desceram realidade prpria desse territrio para a convivncia de sujeitos histricos singulares em suas aes e decises.

SANTOS, Euclia Gonalves. Em cima da mula, debaixo de Deus, na frente do inferno: os missionrios franciscanos no Sudoeste do Paran (1903-1936). Dissertao de Mestrado em Histria Univerisidade Federal do Paran (UFPR), 2005, p.99-100.47

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Como ressalta Antonio Candido, em torno das sociabilidades do caipira paulista: as relaes de vizinhana, porm, constituem, entre a famlia e o povoado, uma estrutura intermediria que define o universo imediato da vida caipira, e em funo da qual se configuram as relaes sociais bsicas48

. Em

nosso caso essas relaes que se estabelecem tambm so visualizadas com a intensificao das migraes e com elas outras dificuldades bsicas de vivncia se estabeleciam como a alimentao. No incio das migraes, a expanso continuou com a vinda de agricultores do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, que inicialmente sofreram com a diferena de alimentao, j que no havia gado, as frutas o trigo e o arroz com que estavam acostumados, e com o transporte a cavalo por matas virgens de araucrias 49. Esse tipo de dificuldade no pode ser subestimada se levarmos em considerao as caractersticas do povoamento e da organizao primordial da terra que inicialmente era caracterizada por propriedades gerenciadas por famlias em pequenas pores de terra com uma produo de subsistncia. A economia de subsistncia era assim a base estrutural da economia, por isso s relaes que estes indivduos mantm com a natureza, como espao em que vivem, constituem as bases da economia de subsistncia. Como descreve Pedro Calil Padis:

O processo de colonizao e ocupao dessas reas, iniciado no sculo passado, baseou-se em atividades agropastoris que se desenvolviam em propriedades de tamanho familiar, isto , lotes suficientes para absoro da disponibilidade de fora-de-trabalho de uma famlia. Complementarmente, surgiram pequenos ncleos urbanos cuja funo econmica principal era a de prestar servios, especialmente comerciais, e cuja funo social era precipuamente a de ser o instrumento integrados das pessoas radicadas em seu redor, sendo, desta forma, um instrumento de conservao dos costumes, da moral, da lngua e da religio de sua terra natal50.

48

CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformao dos seus meios de vida. 4.ed. So Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p.58. 49 KRGER, Nivaldo. Sudoeste do Paran: histria de bravura, trabalho e de f. Posigraf, 2004, p.90. 50 PADIS, Pedro Calil. Formao de uma economia perifrica: o caso do Paran. So Paulo: HUCITEC; Curitiba: Secretaria de Cultura e do Esporte do Governo do Estado do Paran, 1981, p.167.

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Atravs dessas caractersticas que uma das primeiras atividades econmicas estabelecidas foi a criao de sunos:Em 1920, no municpio de Clevelndia existiam, segundo o senso, 12.000 cabeas de sunos e a lavoura de milho, que fornecia parte da alimentao dos sunos, ocupava mais de 90% do total da rea de lavoura. A suinocultura era a segunda atividade econmica da regio e, aps a queda da erva-mate, passou a ser a principal fonte de renda do Sudoeste do Paran51.

Devido s caractersticas do modo com que as pessoas se estabeleciam no territrio, a criao de porcos se dava de modo extensivo. Os porcos eram criados de modo bastante livre com finalidades especficas tendo em vista a pouca mode-obra existente. No incio a criao de porcos no competia com a erva-mate devido s caractersticas climticas de cada cultura:No inverno, se colhia erva-mate e, no vero se lidava com porco, existindo sempre servio para quem quisesse trabalhar. A criao desses animais era a principio, muito rudimentar, no existindo chiqueiro e nem mangueires para faz-lo. Eram criados sempre no mato, alimentando-se do que encontravam nesse ambiente: frutas, vegetao e principalmente pinho na poca da debulhada52.

Esse modo de criao de sunos era o que se chamava de porco alado. Esse sistema exigia grandes reas de terra; em primeiro lugar, por serem criados quase que naturalmente e, em segundo lugar para no invadirem as terras do vizinho. Por exigirem grandes extenses de terra, com o aumento da densidade populacional, o sistema de safra passou a constituir um problema. Com a chegada de migrantes, a cultura passou a se interiorizar cada vez mais: os porcos de vrios vizinhos, por exemplo, comearam a se misturar no mato. Para

51

LAZIER, Hermgenes. Anlise histrica da Posse da Terra no Sudoeste do Paranaense. Curitiba: Biblioteca Pblica do Paran/ Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte, 1986, p.49. 52 VOLTOLINI, Sittilo. Retorno 1: origens de Pato Branco. 2.ed. Pato Branco: Imprepel, 2005, p.71. Wachowicz tambm destaca esse aspecto da criao de porcos inicialmente ter se constitudo como uma cultura entre safra: C: WACHOWICZ, Ruy. Paran, Sudoeste: ocupao e colonizao. 2.ed.Curitiba: Ed. Vicentina, 1987, p.74.

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solucionar esse problema, os vizinhos em regime de mutiro, pegavam os porcos e cada um marcava os animais com o seu sinal 53. Podemos considerar a criao de sunos como a primeira atividade econmica que extrapolou os limites da regio, levando o produto at So Paulo atravs de Ponta Grossa. Essa expanso do comrcio se deve em grande parte ao contexto brasileiro no incio do sculo, perodo em que ocorria um crescimento na produo nacional de banha o que (...) provocou enorme surto de criao de sunos no Paran, surto esse paralelo expanso em direo s terras florestais no ocupadas como o Sudoeste 54. Mas esse comrcio s se expandiu aps os anos 1930 com o comrcio de porcos realizado na regio atravs das atividades comerciais de Turrbio Bueno de Freitas.

Na dcada de 30, Mrio Dutra era tropeiro de porcos a servio de Turrbio Bueno de Freitas, comerciante de Castro, no Paran. Turrbio contratava o fornecimento de porcos em Castro, em Pira do Sul, em Ponta Grossa, em Joaaba e at em So Jos e Cadeado, dois lugarejos prximo fronteira de So Paulo, bem mais para l de Castro. Fazia a compra dos animais no Sudoeste, desde Barraco at Clevelndia, concentrando-os at Campo Alto, prximo cidade de Clevelndia 55.

As tropas poderiam ter de 400 at 1200 porcos conduzidos por at 20 pees no auge do comrcio, mas, a partir da dcada de 1930 e 1940, as estradas comearam a melhorar e conseqentemente as tropas iniciaram seu declnio. Os porcos comearam a ser transportados de caminho56. Mesmo considerando a importncia das tropas de porcos, da erva-mate, da explorao da madeira de lei, e da agricultura familiar a regio continuava com problemas para se integrar aos centros e mesmo Unio da Vitria, Guarapuava e Ponta Grossa eram destinos distantes e de acesso demorado. Isto por que a distncia, as estradas e os meios de comunicao eram escassos, motivo pelo qual, at a dcada de 1940 o principal meio de transporte eram os muares, assim:53 54 55 56

WACHOWICZ, Ruy Christovam. Op. cit., p.78. CORRA, R. L. O sudoeste paranaense antes da colonizao... p. 89. VOLTOLINI, Sittilo. Op. cit., p.76. WACHOWICZ, Ruy Christovam. Op. cit., p.80.

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Os produtos de origem animal, salame, banha, couro, tambm milho, feijo, ervamate beneficiada, todos produzidos em Villa Nova eram levados por carroas a Unio da Vitria, onde eram trocados por: arroz beneficiado, farinha de trigo (uma raridade), sal, acar, querosene, ferramentas, munio, louas, tecidos, armarinhos e at remdios57.

Vemos que por se tratar de uma regio em que predominava a economia de subsistncia, os diversos discursos sobre a regio, principalmente aqueles laudatrios migrao de origem europia como de Ruy Wachowicz, desprezaram ou ignoraram a populao original (caboclos e indgenas). Mas no apenas os discursos produzidos por essa historiografia, tambm os governos, que no estabeleceram polticas pblicas para a incorporao daqueles habitantes na economia do Paran, da ento uma das explicaes para o processo de estigmatizao desses habitantes que perpassa tanto o discurso historiogrfico quanto a prtica jurdica. Segundo Protasio Langer, essa histria, escrita pelo prisma do colonizador, realiza um verdadeiro encobrimento das populaes que viviam nesse territrio:Sem dvida essa a lgica que impregna os clichs pseudocientficos de vazio demogrfico, terra de ningum, mata virgem, ocupao sorrateira, etc. As terras ocupadas por ndios e caboclos so vazias, na perspectiva jurdica, por no estarem povoadas por indivduos que correspondam s exigncias de ocupao e explorao da terra. Valores e prticas coletivas e consuetudinrias como o trabalho, o consumo e o usufruto do territrio no fundamentam direitos, na tica constitucional do colonizador58.

Como veremos adiante essa lgica se estende ao poder judicirio quando trata de intervir diretamente atravs de seus dispositivos nos diversos conflitos gerados entre os indivduos nessa sociedade, produzindo muitos dos estigmas que podem ser encontrados na historiografia dos vencedores da colonizao e ocupao.

57 58

BOCCHESE, Neri. Op. cit., p.50. LANGER, P. Op. cit. p.88.

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1.2. Foragidos, bandidos e criminosos: estigmas da populao local. No que concerne ao Sudoeste do Paran, as primeiras iniciativas que resultaram em uma preocupao para a governamentalidade, foi a emergncia nessas primeiras dcadas do problema poltico do territrio e da soberania. Esses dois elementos ficam evidentes em relao aos incentivos governamentais para a migrao das levas populacionais do sul e ainda, sobre a ameaa estrangeira no territrio paranaense. Dessa forma, a discusso em torno da governamentalidade nos til, tendo em vista, que a preocupao muito mais a de intensificar a ocupao do territrio do que gerir problemas econmicos e polticos de massa que seriam agora objeto de controle 59. E nesse contexto que os bandidos encontram certa liberdade dentro do territrio do Sudoeste. No entanto, uma vez que a ameaa da soberania era de pequena monta, at 1940 no se verificou uma preocupao relevante com o controle e gesto dessa populao. Por isso, o bandido que vivia no Sudoeste no era um indesejado ou algum a ser perseguido ou excludo da sociedade, mas indivduos que desempenharam o papel muitas vezes de justiceiros. Pistoleiros que estavam se estabelecendo dentro de uma ordem social que no se achava estabelecida, funcionando de modo completamente organizado e sistematizado, tal qual o intuito de experincias da CANGO e tambm do amadurecimento do aparelho jurdico. O apoio e ajuda da populao aos bandidos no Sudoeste ocorria, mas no em funo de uma contestao de uma dominao orquestrada pelo Estado ou por um grupo ou classe dominante, mas justamente pela ausncia desses sujeitos tendo em vista a reproduo da vida material justamente pelas especificidades dessa vida camponesa e de sua populao. Esses bandidos no eram heris, como

FONSECA, Ricardo Marcelo. Foucault, o direito e a sociedade de normalizao. In: FONSECA, R. M. (org.). Crtica da Modernidade: dilogos com o Direito. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2005, p.117.59

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os bandidos sociais, estudados por Eric Hobsbawm60; todavia, podiam ir e vir, escapar, estabelecer-se por algum tempo em algum lugar, realizar pequenos furtos. No cotidiano da regio, os bandidos eram agentes da fluidez, no apenas de localizao e movimentao no espao, mas tambm das diversas relaes sociais. Essa caracterstica d outra forma ao banditismo, que no se encontra, na maior parte das vezes, nem na lei absoluta do mais forte sobre o mais fraco, porque o bandido necessita do homem comum, de seu respeito, mais que de sua oposio, nem na marginalizao do bandido enquanto um mal social.

No incio do sculo existiam poucos povoados na regio. Um deles, denominado Canela, teve incio em 1919, sendo elevado categoria de Distrito Judicirio em 1927, com a denominao de Bom Retiro, onde encontra-se hoje a sede do municpio de Pato Branco. Existiam desde 1903 os povoados de Barraco e Santo Antonio na fronteira da Argentina. Desde o incio do sculo existia, tambm, o povoamento de Santana. Outro ncleo populacional era Campo-Er, na divisa entre Paran e Santa Catarina. Afora esses povoados existiam alguns moradores dispersos, inclusive fugitivos da justia 61.

Como haviam poucos povoados, escassez de remdios, alguns alimentos, roupas, devido dificuldade e distncia dos centros comerciais mais prximos, as relaes entre os indivduos eram profundamente marcadas por certa solidariedade mesmo com os bandidos. claro que mesmo com (...) o isolamento da sociedade rural, a tenuidade e intermitncia de seus relacionamentos, as grandes distncias geogrficas e o primitivismo geral da vida no campo62

, os papis sociais se mantm distintos e isso, claro, aumenta a

visibilidade do bandido dentro dessa sociedade.

Na definio de Hobsbawm: O ponto bsico a respeito dos bandidos sociais que so proscritos rurais, encarados como criminosos pelo senhor e pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa, e so considerados por sua gente como heris, como campees, vingadores, paladinos da Justia, talvez at mesmo como lderes da libertao e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e apoiados. In: HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1976, p.11. 61 LAZIER, Hermgenes. Anlise histrica da Posse da Terra no Sudoeste do Paranaense. Curitiba: Biblioteca Pblica do Paran/ Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte, 1986, p.46. 62 Idem, p.86.60

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O fator solidariedade bastante importante nas migraes. Os fluxos migratrios sempre possuem um carter de solidariedade pessoas inter-relacionadas em torno de comunidades religiosas, por laos de parentesco ou ainda de amizade, ou mesmo vizinhana63.

Do incio das migraes e do caminho de interiorizao da regio os bandidos demarcaram-se no espao colonial como elementos transversais e difusos no espao colonial, para depois, passo a passo, perderem sua relevncia nos vnculos sociais. Para Balhana:

Na dcada de 1920 teve incio, em grande escala, a entrada da corrente povoadora vindo do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, constituda, principalmente, de agricultores de origem italiana e alem. Entraram por Pato Branco, infletindo depois pelos vales dos rios Chopim, Piquiri e Paran64

Desses migrantes, segundo Krger: muitos deles fugiam das pendengas interminveis entre chimangos e maragatos no seu estado65. Assim o sudoeste do Paran tornava-se um territrio onde havia possibilidade de um novo recomear, de uma vida nova, um tempo que foi caracterizado pelo estabelecimento das bases de uma economia de subsistncia onde no havia nenhuma estrutura disponvel capaz de dar o mnimo de condies para a fixao desses migrantes:Deste modo a conjugao dos costumes e da cultura, as dimenses relativamente modestas das propriedades, a conformao difcil do terreno, a inexistncia de meios de comunicao, a falta de recursos disponveis, a considervel homogeneidade das atividades econmicas em toda a rea, sem esquecer as dificuldades tremendas criadas pelos grilheiros e aventureiros que campeavam pela regio durante mais de uma dcada, determinaram que a primeira fase de ocupao tivesse sido a e implementao de um sistema de subsistncia, desvinculado de quaisquer estmulos ou vnculos de mercado. 66

63

BREPOHL, Marion Dias. Arrendantes e Arrendatrios no contexto da soja. Regio de cascavel; Paran 1960-1980. (Dissertao de mestrado em Histria UFPR), Curitiba, 1982, p.60. 64 BALHANA, Altiva Pilatti (et. al). Histria do Paran. Curitiba: Grafipar, 1969, p.218. 65 KRGER, Nivaldo. Sudoeste do Paran: histria de bravura, trabalho e de f. Posigraf, 2004, p.90. 66 PADIS, Pedro Calil. Formao de uma economia perifrica: o caso do Paran. So Paulo: HUCITEC; Curitiba: Secretaria de Cultura e do Esporte do Governo do Estado do Paran, 1981, p.170.

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A expanso do capital na regio no ocorreu, simplesmente pelo fato de que os capitalistas no lhe tinham interesse antes da dcada de 1940. Essas caractersticas de organizao econmica esto relacionadas com a dificuldade de implantao e funcionamento do Estado na regio: a ocupao das terras sudoestinas encontrou barreiras slidas no caos administrativos resultante tanto do conflito de interesses entre a Unio, o estado do Paran e as companhias privadas de colonizao, como da morosidade e inrcia do aparelho judicirio67. Dadas essas tenses, os bandidos continuaram a ser sujeitos sociais ativos nesta sociedade, caracterizados quase como agentes estruturantes de algumas estratgias sociais, que transparecem tambm quando acabam processados:

Dois notrios pistoleiros, Augusto Cella e Raul Teixeira, que sempre faziam pousada na propriedade dos Colla, na Encruzilhada, acampavam embaixo de um frondoso cinamomo. A famlia precisava dar abrigo a eles, do contrrio, os bandidos atacavam os que lhes negassem qualquer favor. Ento, a amizade foi feita com os bandidos. Ser amigo de bandido impunha respeito, pois os outros bandidos por ali no apareciam. Essa era at, uma forma de proteo 68.

Esse mesmo Raul Teixeira tem de prestar contas justia de seus atos, no caso a acusao de ser autor do homicdio de Ireno Rodrigues da Silva. Segundo a denncia do Promotor: Em o dia 24 de agosto de 1940, no logar denominado Buriti, zona de SantAna desta Comarca, o denunciado Raul Teixeira assissinou a tiro de revolver a Ireno Rodrigues da Silva conforma consta no Auto de corpo delito (sic.)69. A denncia feita e o processo s se inicia mais de um ano depois do crime em 29 de dezembro de 1941. As causas da morte da vtima so explicitadas no exame de corpo delito: (...) que examinado o cadver de Ireno Rodrigues da Silva, e que encontraram um ferimento na clavcula esquerda produzido por projtil de arma de fogo calibre (38) trinta e oito70.

67

COLNAGHI, Maria Cristina. O processo poltico de ocupao do Sudoeste. In: PAZ, Francisco (org.). Cenrios de Economia e Poltica. Curitiba: Editora Prephacio, 1991, p.8. 68 BOCCHESE, Neri. Op. cit., p.166. 69 COMARCA DE CLEVELNDIA, Processo-Crime contra Raul Teixeira. 1941, p.2. 70 Idem, p.6.

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Dentre as testemunhas nenhuma participou do acontecimento, todas apenas dizem que ouviram falar do crime e de Raul Teixeira ser o autor. No entanto, a segunda testemunha, Joo Porfdio Borges, traz uma informao importante ao caso. Disse (...) que Raul Teixeira foragiu-se foi encontrado viajando; e depois voltando para casa o depoente soube mesmo que Raul foi encontrado na estrada que vai para Pato Branco71. Essa afirmao reiterada pela quarta testemunha, Miguel de Oliveira, j que Raul Teixeira teria fugido (...) visto ser encontrado na estrada que ia para Pato Branco72. Diante da fuga do acusado e o seu no comparecimento em diversas intimaes, em 14 de abril de 1953 ele acaba condenado: Lavra-se o nome do ru Raul Teixeira no rol de culpados, transcrevendo-o por extrato o despacho de pronuncia e expea-se mandado de priso na forma da lei. Custos pelo ru73. Depois de muitos anos de percalo no processo, Raul Teixeira encontrado pelo Promotor de Xapec (hoje Chapec-SC) que envia um telegrama ao Promotor de Clevelndia em 17/07/1953 e j em 23/07 do mesmo ano acaba preso. Nesse momento percebemos a sua verso no processo, j que em 1953 ele pde ser interrogado sobre o acontecido, mesmo que treze anos depois. Segundo ele, tudo comeou com um problema de cerca. O subdelegado na poca havia determinado que cada um delimitasse com cerca sua propriedade, j que os porcos eram criados soltos, isso evitaria problemas de invaso e de apropriao de animal do vizinho e, portanto a violncia que desse desentendimento podia causar. Os vizinhos de Raul Teixeira, a famlia de Ireno Rodrigues no teria feito a sua cerca no que Raul avisa o subdelegado desse fato. Ressentidos na primeira oportunidade a famlia teria tentado matar Raul, segundo suas palavras:Ireno Rodrigues da Silva agarrou o interrogado pela frente abraando-o e prendendo-o com os braos e Ireno Rodrigues da Silva gritou a seu irmo que o ajudassem matar o interrogado que um dos irmos de Ireno Rodrigues da Silva71 72 73

Idem, p.9. Idem, p.8-verso. Idem, p.38-verso.

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veio com um revolver e Joo Pedro Rodrigues veio com uma faca e o interrogado estava abraado de Ireno Rodrigues da Silva defendia-se com o corpo de Ireno que ficava em sua frente, tendo levado uma pancada na cabea tendo o interrogado cado e Ireno veio por cima do interrogado e nesse momento um irmo de Ireno levou o revolver na direo do interrogado que estava cado com Ireno em cima e ento o interrogado agarrou o revolver com as duas mos e o tiro detonou indo atingir Ireno Rodrigues da Silva e o interrogado em que a vtima estava baleada porque viu sangue em cima de sua pessoa e como o interrogado estava desarmado desvencilhou-se da vtima e fugiu para sua casa; que o interrogado disse a sua mulher que no havia acontecido nada porque no sabia se a vtima havia morrido depois o interrogado soube que a vtima havia morrido (...)74.

No aspecto formal se junta ao processo dois atestados de boa conduta e bom comportamento (um do delegado e outro do subdelegado) e um atestado do Juiz de Xapec relatando que naquela comarca no havia nenhum processo contra Raul Teixeira, nem em sua vida pregressa naquela localidade. Depois de dez meses retido na cadeia acaba indo ao Tribunal do Jri onde absolvido por quatro votos a trs. Mencionamos o processo contra Raul Teixeira, pois este um exemplo de uma rede de relaes onde as informaes sobre os acontecimentos corriam entre os vizinhos mais prximos. A importncia do vizinho se reafirma tambm nos momentos de violncia, e no apenas nos momentos de lazer ou de solido. O bandido encontra aqui o silncio do outro frente os seus atos porque a justia mais desconhecida e ausente que o bandido sertanejo do Sudoeste caboclo do incio do sculo XX. E quando ele no encontra a solidariedade na errncia que ele encontra a soluo para escapar do domnio da justia. Da documentao que analisamos em 20,8% dos processos os acusados fugiram para outras regies, o que revela uma prtica usual entre aqueles que j tinham uma vida, considerada criminosa, pregressa. J na dcada de 1940 com a relativa melhoria das estradas, a entrada de caminhes na regio e a formao dos incipientes ncleos urbanos 75 que

74

COMARCA DE CLEVELNDIA, Processo-Crime contra Raul Teixeira, 1941, p.44 e 44verso. 75 WACHOWICZ, Ruy. Op. cit., p.95.

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inicialmente eram como que um anexo do campo 76, os fluxos de pessoas aumentam o fluxo de autoridades e tambm da busca de foragidos e de intimao de testemunhas, melhorando o funcionamento da justia. Mas a fragilidade de ao da justia encontrada at a dcada de 1960 com processos encontrados sobre abuso de poder por parte de autoridade policial e tambm de corrupo e facilitamento de fuga de priso por parte de autoridades77. Essa fragilidade da justia e do aparelho policial se encontra na raiz do problema resultante dos nexos entre um saber que um artefato de um dispositivo que se articula com aspectos econmicos da sociedade. Um dos elementos presentes na organizao social durante a ocupao e colonizao e mesmo antes dela, juntamente com o caboclo, completa o quase silncio reiterado pela simples constatao de sua existncia, sem uma maior ateno creditada a sua presena; so eles os estigmas que carregam consigo de bandidos, foragidos e criminosos que passaram a migrar do sul em busca, muitas vezes, de vida nova no vasto territrio do Sudoeste. Sabemos que:

A dcada de 1920 teve incio, em grande escala, a entrada da corrente povoadora vinda do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, constituda, principalmente, de agricultores de origem italiana e alem. Entraram por Pato Branco, infletindo depois pelos vales dos rios Chopin, Piquiri e Paran78.

Assim, a historiografia, em momentos diversos, reproduz o iderio ora do migrante vencedor e ora do migrante bandido. Na obra Histria do Paran, organizada por Altiva Balhana e escrita por diversos autores, encontramos a imagem do serto povoado por bandidos:

76

MENDES, Adilson Miranda. Origem e Composio das Fortunas na Sociedade Tradicional Paranaense, Palmas 1859-1903. (Dissertao de Mestrado em Histria, UFPR), 1989, p.112. 77 Respectivamente: COMARCA DE CLEVELNDIA. Processo-crime contra o cabo da P. M. Jos de Andrade e outros. 1961; COMARCA DE CLEVELNDIA. Processo-crime contra o Pedro de Lima. 1955. 78 BALHANA, Altiva P. (et.al.). Histria do Paran. Curitiba: Grafipar, 1969, p.218.

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Do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran vieram foragidos da justia, que encontravam naquele serto excelente refgio, transformando-o num perfeito valhacanto de bandidos79.

Outro exemplo da imagem do migrante foragido o caso de Francisco Dambrowski, que segundo Neri Bochesse teria sido o primeiro polons a chegar a Colnia Bom Retiro:

(...) o primeiro polons em Bom Retiro, um legtimo representante dos brancos, chegou a Bom Retiro em 1910. Residia em Cruz Machado, no Rio Grande do Sul, de onde fugiu por estar jurado de morte pelos ciganos, ento, para se ver livre de ameaa, cruzou o rio Uruguai e encontrou um refgio distante e de difcil acesso: Bom Retiro80.

Assim alm dos migrantes luso-brasileiros, teuto e talo-gachos, observa-se a presena dos bandidos e foragidos narrados com uma imagem estigmatizada ou mesmo pejorativa. Segundo Wachowicz:

Desta forma de 1900 a 1920, a populao do sudoeste passou de 3.000 habitantes para 6.000. A procedncia desse aumento populacional assim pode ser resumida: a) pees e agregados das fazendas de Palmas e Clevelndia que procura de espao para sobreviver, embrenharam-se para o oeste; b) pees, agregados e agricultores da regio de Guarapuava e Campos Gerais paranaenses, procura de subsistncia; c) foragidos da justia do Paran, Sta. Catarina, Rio Grande do Sul e Corrientes, que transformaram o sudoeste em verdadeiro couto de fugitivos da lei; d) posseiros refugiados da regio do Contestado, expulsos das terras da Brazil Railway Co.; e) argentinos e paraguaios que penetravam na regio procura de erva-mate; f) crescimento vegetativo da regio81.

A historiografia reproduz tambm esses estigmas, por um propsito poltico, pois ao enunciar o legtimo representante dos brancos como sinnimo do imigrante europeu, dota-o de um valor social muito maior do que os demais sujeitos histricos. Dessa maneira temos um lugar comum na historiografia que reitera discursos estigmatizantes, taxativos, e, por vezes, preconceituosos. Esses79 80 81

CORRA, R. L. O sudoeste paranaense antes da colonizao...p.88. BOCCHESE, Neri Frana Fornari. Op. cit., p.61. WACHOWICZ, Ruy. Op. cit., p.58.

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supostos bandidos, criminosos e foragidos da justia so indivduos constituintes do corpo social nesses primeiros tempos do passado da regio aps a chegada desses grupos migrantes. Dessa maneira - de uma forma geral - o bandido um elemento ativo dessa sociedade e constituinte dela, ao contrrio da concepo de Wachowicz que observa no migrante europeu o fator chave para o progresso e o bem social em detrimento desses outros migrantes taxados de bandidos e criminosos que seriam um empecilho para a evoluo econmica e cultural da regio. So esses bandidos que mantm com a sociedade diversas sociabilidades e tambm constituem o corpo social:

Os bandidos conhecidos pela populao eram respeitados e ajudados por ela, com troca de cavalos, pernoite nos paiis, alimentao, montarias aos comparsas. Havia tambm um respeito dos prprios delinqentes, com os protegidos do outro salafrrio82.

Sabemos que a prpria sociedade que julga e constri o que normal e anormal, sadio e patolgico, e o conjunto da sociedade que faz essas distines funcionarem e se efetivarem, porque a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominao, segundo Foucault, so apenas formas terminais do poder83. No sudoeste do incio do sculo, com a constituio de uma nova sociedade, encontramos essas fronteiras se constiturem e nesse momento o lugar do ilegal e do legal, do comportamento socialmente aceito estava por encontrar seu equilbrio. Essa relao entre a populao e os bandidos pode ser compreendida atravs noo de que a presena desses bandidos, criminosos e foragidos prximos da populao era to forte quanto a presena das instituies administrativas governamentais e de controle como o aparelho judicirio e policial. Os ncleos principais at a dcada de 1940 eram Palmas e Clevelndia, onde se podia encontrar algumas casas de comrcio, pequenos ncleos urbanos e os representantes da lei. No difcil de pensar que seu domnio era bastante82 83

BOCCHESE, Nri Frana Fornari. Op.cit., p.169. FOUCAULT, M. Histria da Sexualidade I: a vontade de saber. 17.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p.102.

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restrito, inclusive espacialmente. Dessa forma, mesmo que a Comarca de Clevelndia estendesse formalmente seu domnio, ou jurisdio, por boa parte da regio Sudoeste, na prtica, sua ao no era efetiva em todo territrio. Por isso a distncia do aparelho jurdico junto quele grupo social contribuiu para que outras relaes se estabelecessem entre elas, a populao e os bandidos. Francisco Fernandes Leite, engenheiro, e Sylvano Alves da Rocha em relatrio para a ocupao do exrcito, frente a presena estrangeira, datado de 22 de julho de 1942 afirmam a importncia de se ocupar a regio:

A instalao de uma colnia agrcola na Zona limtrofe dos municpios de Clevelndia e Chapec, dentro da faixa regulamentar, conforme prevm as instrues a que se refere nossa designao, vai ao encontro dos mais palpitantes problemas ptrios, ora ainda pendentes de soluo urgente e inadivel, como sejam: a) Assistncia aos nacionais, que ali vivem sem amparo algum, por parte dos poderes pblicos; b) Prestamento de instruo primaria s crianas em idade escolar, que em numero avultado no freqentam nenhum estabelecimento de ensino do nosso lado ou a recm nas escolas argentinas, entoando hinos estrangeiros e aprendendo uma lngua diferente da do pas de origem; c) Saneamento social da populao local, por que a situao geogrfica da regio proporciona aos foragidos da justia um favorvel esconderijo que, atualmente, pela indiferena das nossas autoridades, vivem impunes, perturbando a vida ordeira e proveitosa dos que trabalham e podem ser teis Nao. Iniciados que sejam os servios de colonizao, os maus elementos, por ventura ali ainda existentes, sero capturados, enquanto que os demais podero produzir muito mais em proveito prprio e da coletividade84.

visvel que o relatrio est carregado de elementos ideolgicos prprios do governo de Getlio Vargas, principalmente, a preocupao com a identidade nacional. Isso se reafirma no relatrio atravs da defesa da educao das crianas: a benfica influncia da colonizao far-se-ia desde logo sentir pela alfabetizao de grande nmero de crianas, j que: naquelas longnquas paragens, no esto freqentando escolas, desconhecendo assim, por ignorncia,

84

Relatrio para escolha de terras para localizao de Reservistas do exrcito na faixa fronteiria do Brasil com a Repblica Argentina 22/07/1942. In: LAZIER, Hermgenes. A estrutura agrria do Sudoeste do Paran. (Dissertao de Mestrado em Histria UFPR), Curitiba, 1983, p.110-111.

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os deveres cvicos de sua prpria cidadania 85 porque ao terem contato com os argentinos seriam obrigadas a professar sentimentos estranhos aos de sua nacionalidade86. No corpus documentao que analisamos temos os seguintes dados em torno da nacionalidade dos envolvidos:

Tabela 2 Nacionalidade dos envolvidos em %.Nacionalidade Brasileiros Argentinos Paraguaios Origem europia (Polons, Italiano, Alemo) % 81,8 2,6 5,2 10,4

Temos que 18,2 % dos envolvidos possuam outra nacionalidade que no a brasileira. um nmero relativamente expressivo que denota sim o trnsito e mesmo a vivncia de argentinos e paraguaios pelo territrio brasileiro, mas no podemos dizer que eles so suficientes para dar consistncia preocupao do governo em relao invaso da regio. J em relao aos europeus podemos dizer que, em sua maioria, no so vindos diretos da Europa, mas de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Assim, podemos entender que essa presena estrangeira est relacionada com uma questo maior: a definio da fronteira entre Brasil e Argentina. Nessa disputa, de longa data, iniciada ainda com o domnio portugus sobre o territrio nacional, a chamada Questo de Palmas assumiu a posio de acontecimento definidor da disputa. Mais tarde, em 1943, Vargas acaba criando em Francisco Beltro a Colnia Agrcola Nacional General Osrio (CANGO) a fim de ordenar a85

Relatrio para escolha de terras para localizao de Reservistas do exrcito na faixa fronteiria do Brasil com a Repblica Argentina 22/07/1942, p.126. 86 Idem, ibidem, p.127.

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colonizao do sudoeste87. Segundo Roberto Corra devido ao primitivismo da vida na regio era necessrio que se buscasse os servios nas localidades mais prximas quando da impossibilidade de se locomover at os centros mais prximos, assim: tratava-se, pois, de atividades e vida de relaes primitivas e pouco desenvolvidas, dependentes de centros externos at mesmo para alguns servios de uso corrente, como ocorria na fronteira onde as crianas brasileiras freqentavam as escolas argentinas88. Essas caractersticas em relao proximidade com a Argentina nos remetem s relaes existentes entre segurana, territrio e populao, um trip bsico de estruturao daquilo que Foucault chamou de governamentalidade, ou seja, um:governo da populao (...) constitudo pelas instituies, procedimentos, anlises e reflexes, clculos e tticas que permitem exercer esta forma bastante especfica e complexa de poder, que tem por alvo a populao, por forma principal de saber a economia poltica e por instrumentos tcnicos os dispositivos de segurana 89.

Foucault analisa a emergncia, desde o sculo XVI at o XVIII, na cultura Ocidental da necessidade de se gerir a populao, onde o problema fundamental o controle e domnio, ou melhor, a regulao da sociedade enquanto populao inclusive em seus aspectos biolgicos. Assim, o governo passa a racionalizar problemas prprios a um conjunto de seres vivos constitudos em populao: sade, higiene, natalidade, raas...90. A populao aparece ento como sujeito de necessidades, de aspiraes, mas tambm como objeto nas mos do governo91. Do ponto de vista do governo era exatamente essa necessidade que entrelaava territrio, segurana nacional e populao que motivou a organizao87

Segundo Wachowicz a criao da CANGO era ilegal porque o territrio estava sofrendo processo no judicirio devido disputa entre governo federal e estadual. WACHOWICZ, R. Op. cit., p.144. 88 CORRA, Roberto Lobato. O sudoeste antes da colonizao... p.92. 89 FOUCAULT, Michel. A governamentalidade. In: Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p.291-2. 90 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopoltica (1978-1979). In: Resumo dos Cursos no Cllege de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p.89. 91 Idem, ibidem, p.289.

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da Colnia Agrcola Nacional General Osrio (CANGO) por Vargas no incio da dcada de 1940. No toa: o Estado intervm na fronteira para promover e completar o ciclo de acumulao, e atua atravs dos mecanismos legais de funcionamento de suas agencias burocrticas para mediar a luta pela terra 92. Esse processo de colonizao dirigida pela iniciativa do Estado se concretiza na CANGO, que foi responsvel pela organizao das terras e tambm da instrumentalizao material do territrio. Sementes, ferramentas, alimentos, remdios, ou seja, uma infra-estrutura propicia para uma ordenao da ocupao, que inclua tambm a educao. Os agentes da CANGO realizam a medio dos lotes antes de entreg-los aos colonos. O comrcio foi estimulado e sem sombra de dvidas representou a formao de um campesinato mercantilizado 93. O movimento poltico que fez nascer a CANGO pelo decreto n 12.417 de 1943, pertence tentativa de expanso da fronteira agrcola brasileira que j vinha crescendo desde 1938, era a chamada Marcha para o Oeste. No toa a criao da CANGO no Sudoeste representou uma defesa da propriedade privada, j que ao acesso terra s era possvel para aqueles que conseguissem pagar por ela. O resultado foi a possibilidade de formao de um mercado alm da ocupao normatizada da terra:

O sistema de pequena propriedade adotado na colonizao, sem nus para o agricultor, com um servio de infra-estrutura e assistncia de sade e educao totalmente gratuitos, aliados a uma forte propaganda que se fazia no Rio Grande do Sul, atraiu em