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HISTÓRIAS DO VIVER JANDIR JOÃO ZANOTELLI PELOTAS 2006 1

Histórias do viver

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Histórias do viver

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Page 1: Histórias do viver

HISTÓRIAS DO VIVER

JANDIR JOÃO ZANOTELLI

PELOTAS

2006

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Page 2: Histórias do viver

© 2006 Jandir João ZanotelliDireitos reservados ao autor

Rua Jaguarão, 643 – Laranjal – Pelotas - RSE-mail: [email protected]) 32262662

Zanotelli, Jandir João Contos / Histórias do Viver. / Jandir

João Zanotelli. – Pelotas: 2006

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Page 3: Histórias do viver

APRESENTAÇÃO

Sensibilidade à flor da pele. Espontâneo.

Sentimental. Saboroso e natural como pitangas colhidas no

pé - foi exatamente assim que senti "Histórias do Viver".

AQUI, A PALAVRA RESSOA E REFULGE... e

o leitor se enternece; comove-se!

De um jeito simples - até maroto algumas vezes -

JANDIR ZANOTELLI estréia oficialmente no mundo da

literatura. Conhecia versos feitos por ele... poemas bonitos,

bem trabalhados, envolventes sempre.

Agora tive a alegria de ler (quase em primeira

mão) seus escritos em prosa .

Não me cabe nenhuma análise acadêmica ou

erudita. Sou apenas alguém que tem por hábito, prazer e

profissão, LER. E exatamente por isso me sinto lisonjeada

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Page 4: Histórias do viver

quando este exímio contador de histórias me convida para

apresentar seu trabalho... Quanta honra!

Compreendo que o escritor quis um leitor

comum, mas um ávido leitor, e por isso não me furtei à

nobre tarefa.

A palavra. A escrita. Olhos direcionados para a

leitura... e exatamente neste momento, acionam-se os

intrincados mecanismos mentais: a leitura utiliza a

percepção visual, a função optocinética; a apreensão de

formas; a organização espacial e a significação simbólica

dos elementos da linguagem escrita.

Irremediavelmente envolvida pela teia da prosa

de JANDIR ZANOTELLI - eis o sentimento que me

assomou; pronta para ser absorvida pelo texto do escritor

que se encanta com a vida e dela participa com

naturalidade, sem dramatizar (aliás, manifestação muito

própria de quem tem sabedoria!...)

Contos? Crônicas?

São histórias. Histórias do dia-a-dia. Das

pessoas, dos fatos, dos sentimentos. São homenagens. Às

vezes, documentários de uma vida de estesia, de

contemplação, de indagações. São meditações, confissões,

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Page 5: Histórias do viver

exortações. Observações da realidade, seja esta amarga ou

cheia de doçuras.

Em Histórias do Viver há lembranças evocadas;

há encontros; há o amor apetecido.... comprovações, enfim,

de que o Homem é predominantemente emocional!

Leitor:

A palavra é forte! Ela "exorciza os fantasmas;

sagra os reis; efetiva os relacionamentos." A palavra

tem"mel e ferrão". Mas não me pairam dúvidas de que vais

te encontrar com narrativas impregnadas de emoção, de

estro descritivo com forma e fundo vazados e fixados em

sentimentos profundamente humanos. Muito afeto. Amor

como cachoeira!

Vais perceber momentos em que o texto soluça,

opostamente a outros em que a alegria transborda de

palavras benfazejas que embalam a alma, o coração, todo o

teu ser!

Vais te sentir ora protagonista, ora coadjuvante

em meio a estas histórias que mesclam o tradicional com o

moderno, o convencional com o contemporâneo. Mas uma

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Page 6: Histórias do viver

coisa é certa: estarás nas entrelinhas, na face oculta de cada

palavra que teus olhos sorverão.Tudo isso porque a

experiência do autor funde-se com a expectativa do leitor!

" Histórias do Viver" chega para nos

dizer:"Como é bom ter um livro como este diante dos

olhos!"

E o mundo literário, neste momento

enriquecido, aplaudirá a criatividade de JANDIR

ZANOTELLI.

Lígia Antunes Leivas

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Page 7: Histórias do viver

NOTA DO AUTOR

Estas são histórias vividas. Tem o sabor do contexto

familiar. De meu pai Leonel que as contava aos filhos e

netos com o sabor quente e fumegante do que os ouvidos,

as mãos, os olhos, a pele tocaram.

Três são os espaços imaginários, assim como três

momentos do viver: Um deles é Jacarezinho, município de

Encantado, no vale do rio Taquari, região de imigração

italiana (1882) derivada das primeiras levas localizadas em

Garibaldi, Bento Gonçalves e Caxias do Sul (1875). A vida

diária daqueles pequenos e orgulhosos agricultores com

suas memórias e temores transparece nos contos colhidos

de Leonel e Ana. O segundo é Bentevi, um pequeno

lugarejo de uma dúzia de casas, no interior do então

município de Erechim, à beira do rio Uruguai, onde hoje

está a barragem do Ita. Espaço de um terceiro momento da

imigração no Rio Grande do Sul a partir de 1928, realizada

por filhos e netos dos imigrantes de Garibaldi e Encantado.

As histórias de Bentevi trazem a marca do imaginário

infantil dos filhos de Ana e Leonel. Um terceiro momento

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Page 8: Histórias do viver

acontece ao redor da lareira, nas rodas de chimarrão e na

experiência familiar nossa e de nossos filhos na região sul

do RS (1970 em diante).

Misto de realidade, memória e imaginação, porque o

caminho para a realidade é a imaginação e a poesia, como

diziam os tlamatinimes astecas.

Histórias, contos, cismares para que a relembrança

fecunde identidades e esperanças de filhos, netos, amigos,

de cada leitor.

Não têm pretensão de obra acabada. Apenas

liberdade, singela liberdade de contar a vida, com seus

sustos, suas surpresas, encantos, relações.

Têm o olho benévolo, a companhia do ler e reler, de

Ruth que, há quarenta anos sabe de nossos passos, de

nossos filhos, de nosso amor:

A Ruth com carinho.

Pelotas, julho de 2006.

Jandir João Zanotelli.

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ÍNDICE

1.Saudades do Bentevi.......................................................112.Zita..................................................................................153. Uruguai – ponto de balsa..... ..........................................214. A Volta do Uvá..............................................................295. O lagarto e a melancia....................................................416. Carrinhos de lomba........................................................467. O negro Pedro................................................................518. O baile do velho Simão..................................................619.A estátua..........................................................................7110. O moinho do Bortolotto...............................................7811. Missões na Barra do Rio Azul......................................8512. A seca...........................................................................9413. O temporal....................................................................9814. Pescaria na Barra do Paloma......................................10415. Chocolate....................................................................11716. A mudança..................................................................12317. O porco é a salvação da lavoura.................................12618. Cancha reta.................................................................13219. Eu vi Deus..................................................................13620. Quadra e meia em cancha reta....................................14021. Verdades de Pescador.................................................146

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22. O amor vem depois....................................................15423. O despertar de Ana.....................................................16624. Boitatá........................................................................17925. Torresmo....................................................................18526. Guerra........................................................................18927. A ferro frio.................................................................19328. Revolução de 23.........................................................19829. Traíra..........................................................................20630. Bem-querer.................................................................21031. O diabo no baile.........................................................21932. O moinho de Giácomo...............................................22433. Imaculada Conceição.................................................23034. O discurso de Ana......................................................23635. O sanguanel................................................................24336. Fecundidade...............................................................25337. Ana – Comeu tudo.-...................................................26038. Quero Ver...................................................................26239. Ana Catarina...............................................................26440. Daniel.........................................................................26841. Lica............................................................................27342. Vinícius......................................................................27943. A avó de Aninha.........................................................28244. Luciana.......................................................................28445. Domingo na casa do vô..............................................285

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SAUDADES DE BENTEVI

Cronos, o tempo, devora todas as coisas. Só as

pedras lhe são indigestas. E enquanto ele rói as pedras o

divino, o eterno, o definitivo lhe escapa. 1

Assim, por sobre as pedras, pairando sobre o arroio,

sobre os restos da cacimba, do tanque de lavar roupas e

lavar os pés ao fim da tarde, por sobre as uveiras japonesas

enfileiradas ao longo da estrada que, morro acima, conduzia

à roça nova, assim o amor, a juventude das relações

cordiais ainda permaneciam com a novidade de sempre.

Lá, ainda a palmeira ao final do amplo e fofo

gramado, com suas asas balançando ao vento tépido que

vem do Uruguai, asas que ainda seguram meninos e

meninas afoitamente girando no ar. E o tombo. E a risada.

Congraçamento.

1 Assim conta o mito grego: Zeus, o imortal deus grego, escapou dosdentes do tempo, Cronos, (o tempo não atinge Zeus, ele não morre)porque sua mãe Gea, ao invés de entregar o filho que nascia ao tempoque tudo devorava, deu a Cronos uma pedra

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Page 12: Histórias do viver

Gino, devagarinho, parou a camioneta em meio à

estrada pedregosa, em frente onde era a casa ampla, de

madeira, coberta de zinco para a saudade do chiado da

chuva em manhãs de preguiça, porão alto, garagem de

caminhão e refúgio barulhento de cabritos com seus berros

e requebros atrás das cabras permanentemente em cio.

Abriu a porta. Mas não desceu. Ficou, olhos amplos,

ouvido aberto, narinas sôfregas, bebendo o ambiente de

infância. A memória ressuscitava cenas de brinquedos, de

lutas infantis, de trabalho sofrido de bois que não aceitavam

tanto peso na corroça, da egüinha baia que não perdia

carreira nos domingos à tarde nos poucos metros de estrada

reta enfrente à casa de Filbert, ao som das cachoeiras do rio

Uruguai.

Estava vívida a pescaria de jundiás, caçados debaixo

das pedras do arroio Encantado, logo após o almoço e com

a veemente proibição dos pais.

As aventuras com cavalos, com cobras corais

manuseadas como se fossem minhocas, e dos companheiros

de escola em grupos rivais, mas todos unidos contra as

meninas delatoras...

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Page 13: Histórias do viver

Saudades da professora Zita, bela, esbelta, suave

nos gestos e firme nas atitudes, modelo para as meninas e

inspiração para os meninos quase adolescentes.

Ilva e Classi procuram à beira da estrada alguma

fruta daquele tempo. E vêm vitoriosas com quatro pequenos

e amarelos araticuns que recendem cheiros de vinculações

eternas da felicidade infantil. “Não o comerei. Levarei para

casa para que minha esposa sinta como era bela, como era

saborosa a minha infância”, pensei.

E Castilo insistindo que “aqui estava a cancha de

bochas”, logo ali a pinguela sobre o arroio, ali a ferraria do

Cauduro. Ali as casas enfileiradas dos Hendges com os

amigos Gilberto e Jaime, - o primeiro hoje prefeito de

Aratiba -, com a casa do padrinho cujo filho também é

Castilo.

E do vale da Esperança, e do vale do Encantado

endereçando-se ao Paloma e ao Uruguai, surgem vivas e em

torvelinho as tristezas, as alegrias, as esperanças, os rostos e

corações de encontros que salvam a vida adubada pelos

destroços que o tempo deixou.

Reencontrar tios, de tanto tempo, com os rostos

sulcados de canais que as lágrimas criaram: lágrimas de

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dor, lágrimas de rir, lágrimas de surpresa, lágrimas de

saudade, lágrimas quentes, salgadas, temperadas como a

vida, sempre lágrima, lágrimas... E estes rostos, estas mãos,

curtidos de verdades, de sabedorias, de trabalhos abraçam

fortemente a gente como se fosse a primeira vez de um

encontro feliz. E tio Emílio com um grande abraço e um

olhar profundo, que olha para além das cordilheiras e das

brumas do Uruguai, despediu-se. Uma semana depois

viajou... Certamente com saudades da Barra do Rio Azul,

do Paloma e do Uruguai.

E o tio Ângelo com seu gado branco povoando as

margens da Barragem do Itá, imaginando, lá do alto, sua

casa e suas terras que ficaram submersas, percebe que a

vida exige vôos sempre mais altos, para além do ter e do

juntar, à procura de corações e de ouvidos companheiros.

E tia Inês, com seus numerosos e generosos filhos

que param, se juntam, e recebem com intimidade primos,

amigos que, de há muito, são tão próximos como o amor

que gera saudades. Tudo tão singelo e tão completo como a

verdade e a paz.

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Page 15: Histórias do viver

ZITA

Zita era loira. Vinte e cinco anos. Olhos azuis.

Azuis como os confins da serra quando toca o céu.

Alta, esbelta, bem feita. Cabelos soltos levemente

ondulados, em cachos sobre os ombros, um misto de ouro,

sol e mel.

Vestidos alegres, sempre claros, coloridos de

vermelho e azul balançando ao vento a cada passo num

farfalhar sedoso como o ciciar suave no trigo maduro. Ah!

Aquele vento era muito impertinente! E o olhar dela,

senhoril, sobranceiro, fazia do vento um cachorrinho

obediente ao gesto de seu passo e de sua mão.

Passos amplos, nem tão largos como a banalidade,

nem tão curtos como infantilidade. Firmes, seguros,

confiáveis, confiantes. Ancas esculturais sustentando a

beleza de nossa esperança. Promessa e garantia de um

futuro que se abria sobre a pobreza de nossas vidas, sobre

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Page 16: Histórias do viver

os limites de nosso olhar. A presença corporal dela

emoldurava nossa escolinha de Bentevi com um halo de

companhia inefável que nos convocava a todos a aprender e

estudar. Zita era nossa professora.

Pele sedosa e macia como pêssego maduro. Lábios

delgados e sem baton, sempre entreabertos num prenúncio

de sorriso, deixavam à mostra dentes alvíssimos, parelhos,

bem cuidados. Unhas limpíssimas e bem aparadas. Sem

pinturas, sem realces, sem meneios, Zita era em pessoa um

chamado ao asseio e à simplicidade de ser. Recendia um

cheirinho quase imperceptível de limpeza e de sabonete

Gessy.

A casa dela, em meio às casas dos colonos, era

também de madeira, coberta de telhas vermelhas de barro,

bem alevantada do chão, com um porão para guardar

ferramentas, queijos, salames... Bem cuidada, pintada de

branco no meio do potreiro verde da colina além do riacho

Esperança, tinha janelas envidraçadas, largas sobre a

vizinhança e o arroio. O patamar no topo da escada era um

jardim permanentemente florido, um convite prazeroso a

chegar.

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Page 17: Histórias do viver

As duas filhas, Joanita com três aninhos e Elizabeth

com cinco, pareciam duas bonecas em seus vestidinhos

coloridos e sapatinhos brancos. Como não se sujavam? Não

sei. E brincavam, cantavam e corriam como as outras

crianças. Choravam só quando se machucavam. Acho que a

mãe trocava a roupa delas duas vezes por dia.

Éramos quatro séries, na mesma sala, no mesmo

turno da escolinha municipal Tiradentes, cerca de trinta

crianças, cada uma com suas histórias, dificuldades e

necessidades. Zita atendia a todas ao mesmo tempo, dando

e tomando as lições de cada um e ocupando nosso tempo

com uma eficiência pedagógica extraordinária. Onde teria

aprendido a trabalhar assim? Ela mesma só tinha a quinta

série... Na primeira série todos se alfabetizavam. Na

segunda aprendíamos a tabuada, as operações matemáticas

fundamentais, noções de geografia e a copiar e escrever

ditados... Na terceira e quarta líamos a Seleta em Prosa e

Verso do Clemente Pinto, com seus Dervixe Astucioso, A

Família Reunida, O Filho Pródigo etc. etc. e compúnhamos

pequenos textos e cartas, além de aprofundar história,

geografia e cálculos necessários para a vida de um colono:

preços, juros, medição de terra, cubagem...

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Page 18: Histórias do viver

A segurança no gesto e na voz garantiam a ordem,

dispensando o uso da vara que, como regra geral do

município, sempre deveria estar à vista ao lado do quadro

negro.

Uma vez, apenas, ela tentou utilizar esse último

recurso para resolver o clima de briga generalizada que

havíamos criado no recreio. Dois grupos rivais nos

engalfinháramos a pretexto de provocações levianas sobre

nossas irmãs. Zita pôs os meninos em fila, no corredor que

separava as estantes da esquerda (das meninas) e direita

(dos meninos) para dar uma varada em cada um:

- pode ser que assim vocês se lembrem de ser gente

e não apenas animais.

Eu era o primeiro. Quando a professora ergueu a

vara agachei-me de súbito fazendo com que a vara batesse

sobre a estante. A vara esfarelou-se porque estava seca de

tanto tempo sem uso. Uma risada geral. Ela mesma não

conseguiu evitar o riso. E nos mandou ficar de pé, em

silêncio, atrás do quadro negro, por meia hora. E depois deu

às nossas irmãs um bilhetinho para entregar aos pais. O

bilhete nunca chegou: negociações no caminho...

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Zita conseguia o milagre de reunir beleza,

delicadeza, bondade, firmeza e criatividade.

Naquela escolinha do interior, pertinho do rio

Uruguai, conseguíamos fazer teatro (lembro do Moinho

Remoçante), aprender a cantar todos os hinos: o nacional, o

da bandeira, o da independência.... A fazer festa no dia de

Tiradentes, no dia sete de setembro (com paus de sebo,

marchas, danças, brincadeiras) com a presença feliz de

todos os pais... Aprendíamos catequese, civilidade,

cidadania e a ler, escrever e contar.

Os examinadores municipais que vinham de

Erechim para as provas do final do ano, elogiavam muito a

escola Tiradentes e a eficiência de sua professora. Nosso

peito inchava de orgulho. Nosso respeito e admiração por

Zita crescia e fazia-nos crescer.

Zita era a mulher com quem cada menino gostaria

de casar, que cada menina quereria imitar e com quem

todos gostávamos muito de estar.

Pena que Zita casou com Bernardo! Era o contraste.

Embora eficiente no trabalho de carpinteiro e tivesse bom

gosto em fazer móveis, aparecia-nos como rude, tosco,

“grosso” como dizíamos. Silencioso, quase taciturno, de

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Page 20: Histórias do viver

pouca conversa e poucas relações era, porém, cumpridor de

sua palavra, honesto em seus negócios e uma rocha a

amparar a mulher e as filhas. Elas eram a festa de sua vida.

Cinqüenta e cinco anos depois. Noite de chuva.

Castilo, sobrinho de Zita telefona de Londrina. Na lufada de

saudade e alegria que ele suscitou, lembrava-se do Bentevi,

de nossas traquinagens de infância:

- Você sabe que Zita ainda vive. Mora em Xapecó

com uma filha.

- Tens o telefone dela?, indaguei logo.

E falei. Recuperei raízes de esperança e bem-querer.

E, lá do fundo da infância, saltaram meninos, meninas,

saudades..., saudades e a Zita professora...

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Page 21: Histórias do viver

URUGUAI – PONTO DE BALSA

Os Vioti definitivamente acamparam lá em casa.

Eram dois irmãos de Seara, Santa Catarina, a uns vinte

quilômetros além do Uruguai, além das densas matas das

infindas terras do velho Simão. Deixaram a família para

transportar madeira até a beira do rio. Hospedavam-se no

quarto grande do porão de nossa casa.

Cada um em seu caminhão Ford 47 com longo

reboque dependurado à carroceria, traziam dos pinhais da

Esperança 3, 4, e até 5 grossos toros em cada viagem.

Cinco metros e oitenta de comprimento por oitenta

centímetros, ou mais, de diâmetro. Três viagens por dia

desde a madrugada, até adentrada noite. À noite, avisavam

de longe desde quando desciam o cerro dos Berticelli, lá no

outro lado do vale Esperança, com seus faróis e uma sirene

ligada ao cano de descarga para diversão de crianças e

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Page 22: Histórias do viver

velhos que acompanhavam das janelas aquele barulho e

aquele trabalho desbravador.

Quando a estrada, estreita, pedrenta e empoeirada,

enfrentava o Uruguai dobrando em cotovelo para o Itá, lá

do alto, os toros rolavam pelo Tombador, ladeira abaixo,

amontoando-se próximos à água do remanso enfrente ao

velho Simão.

E os irmãos Vioti voltavam cansados, esfolados

pelo trabalho e pela saudade de casa. Jantavam com prazer

a sopa de feijão que mamãe preparava, e aipins, e arroz e

carnes de galinha e peixe e saladas e pimentões e um copo

de vinho.

Depois um papo solto sobre negócios, sobre os

perigos do quase tombamento do caminhão, do atoleiro, do

peneu que estourou, da ponta de eixo que quebrou, do

pouco tempo para trazer os pinheiros para as balsas de

setembro. E da mulher e dos filhos pequenos que

esperavam semanas e semanas sem que eles pudessem

retornar para um abraço. Mamãe sempre destacava a

beleza de se ter uma família.

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Page 23: Histórias do viver

Na verdade, Germano, o dono da madeira, pretendia

levar suas balsas para São Borja e São Tomé tão logo as

chuvas de setembro elevassem o rio ao ponto de balsa.

As chuvas vinham. Sempre vinham. Ou para o dia

12 ou para o dia 29, festa de São Miguel, padroeiro da

capela de Bentevi.

Elas não esperam. Quem se atrasa perde um ano

com o risco de os toros estragarem.

Nós crianças olhávamos para aqueles heróis, que,

como papai, eram peritos em domar seus caminhões,

enfrentar os perigos e ligar nosso mundo doméstico ao mais

longínquo rio-abaixo, para além do Salto Grande em

direção a São Tomé da Argentina.

O mês de agosto, com alguns frios ainda, com o

Uruguai enchendo suas margens de intensa serração até as

10 horas da manhã, os amarradores das balsas já iniciavam

sua labuta: amarrar os toros, com cipós e alguma soga de

cizal, em filas paralelas de 50 e depois juntar as filas uma

atrás da outra em balsas de até 12 ou 15 filas.

Assim, aquele comboio de toras, guiado por um

remo à frente e outro atrás seria conduzido por 3 ou 5

homens no lombo chucro, nervoso e atrevido do Rio

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Page 24: Histórias do viver

Uruguai, vencendo os saltos alisados pela enchente,

cuidando das curvas e peraus, que eles tão bem conheciam,

sem parar, 5 dias e 5 noites, até o seu destino. Por mais

escura que fosse a noite Simão conhecia os acidentes do rio

apenas pelo ouvido. O Uruguai era um livro que ele

decifrava palmo a palmo.

Na fila do meio, uma pequena barraca desbotada de

lona, acobertava os víveres e alguma roupa para depois da

chuva fria.

A faina de caminhões rolando toras Tombador

abaixo, de juntas de bois acomodando-as à beira d´água, de

homens seminus a gritarem, a puxarem, a juntarem, a

amarrarem pinheiros e a enchente que logo viria muito

embora ainda não estivesse chovendo, povoava a

imaginação de todos com esperanças de sucesso, de

dinheiro que, certamente a cada ano deveria ser melhor.

Não cabia na imaginação a extinção dos pinheirais,

muito embora os exemplos de Erechim, Passo Fundo,

Carazinho e tantos outros lugares o demonstrassem.

Certa manhã, 6ª feira, por volta de 8 de setembro o

velho Simão foi até nossa casa que também era uma casa de

pequeno “comércio de secos e molhados” daquele interior,

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Page 25: Histórias do viver

para pedir a papai se poderia guarnecer as 3 balsas que

zarpariam na quarta feira seguinte entre o meio dia e as seis

da tarde. Papai respondeu que sim e que deixaria o

mantimento no Tombador após o meio dia.

Papai, incrédulo, comentou com mamãe o absurdo

daquele pedido, mas vindo do velho Simão não poderia

deixar de atender. O rio estava abaixo do nível normal. Era

necessário que ele enchesse 7 metros acima do nível normal

para que ocorresse o ponto de balsa. Nem mais e nem

menos. Se fosse menos de 7 metros de água o Salto Grande

os destroçaria em redemoinhos infernais. Se fosse mais do

que a marca dos 7 metros o Uruguai não venceria a Volta

do rio Uvá e provocaria redemoinhos ainda piores. Era

preciso o ponto certo, o ponto de balsa.

E não estava chovendo nem havia sinal que deveria

chover. Mas, por via das dúvidas, Leonel providenciou

tudo: carne fresca, carne charqueada, arroz, feijão, pão,

farinhas, temperos, sal, açúcar, café etc... Os corotes2 de

cachaça viriam do alambique do próprio Simão.

E aguardou.

Sábado e domingo não choveu.

2 Corote: pequeno barril de 15 litros.

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Page 26: Histórias do viver

A Segunda Feira amanheceu num toró contínuo.

Quarta feira ao meio dia o Uruguai estava em ponto de

balsa.

Abaixo de chuva, tudo bem protegido por lonas, lá

estava meu pai, no Tombador entregando o pedido.

Às 4 da tarde as balsas do velho Simão zarparam

soltando foguetes de festa e aventura.

Depois das balsas, quando o rio chegasse a 9 ou 10

metros acima do nível normal era a grande enchente. As

águas vinham roncando, rolando troncos de árvores

arrancados das margens, trazendo restos de casas de

madeira e móveis, mesas, armários, e um berço de criança

vazio..., vazio,... que andava sobre as águas como uma

pequena barca. Tudo, aquele rio do improviso,

manso e violento, tudo ele extorquia daqueles pobres

ribeirinhos descuidados do poder do Uruguai ou

empurrados pela pobreza às margens mais planas. E ai de

quem se atrevesse a interferir na sanha devoradora do rio.

Há 5 anos, dois dos mais experientes balseiros e nadadores

foram tragados e desapareceram para nunca mais quando

tentavam salvar alguns móveis da correnteza. E, com o

susto ante o indomável, vinha sempre uma prece para que

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Page 27: Histórias do viver

os balseiros não fossem alcançados pela enchente maior

que os seguia e perseguia para acima e para além do ponto

de balsa.

Doze dias depois, lá estava de volta o velho Simão

para acertar as contas com meu pai. Pagou. Um sorriso

largo no rosto. Olhos brilhantes naquela pele curtida pelo

sol. Chapéu novo de feltro. Botas novas da Argentina e uma

lanterna potente, de três pilhas que perfuravam até a

serração do Uruguai por mais de 100 metros no escuro.

Tomaram um trago de cachaça boa com Bitter Águia, como

bons e velhos amigos.

E então veio a pergunta entalada na garganta de meu

pai:

- tudo muito bom, tudo certo, mas me explique:

como o senhor sabia que o Uruguai estaria em ponto de

balsa na quarta feira à tarde se o rio estava seco?

- É muito simples, seu Leonel. Faz mais de vinte

anos que eu corro balsas neste rio. E moro na barranca há

mais de 40 anos. Conheço suas curvas, suas manhas, seus

segredos mais do que me conheço a mim mesmo. E o sinal

da enchente é este: quando, de manhãzinha, um fiapo de

serração percorre o rio água acima e não mais alto do que

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Page 28: Histórias do viver

10 metros é sinal certo de enchente na semana vindoura.

Cinco ou seis dias, depende da altura da serração em

relação à água. Naquela Sexta Feira em que eu vim aqui, a

serração subiu o rio a oito metros de altura.

A surpresa de meu pai converteu-se numa sonora

risada e no convite para mais um trago com Bitter por conta

da casa.

Lembro de um ponto de balsa no dia 29 de setembro

às 11, 30 da manhã e no ano seguinte às 12 horas do mesmo

dia 29. Sempre o mesmo reboliço, sempre as surpresas das

coincidências, sempre as promessas se a viagem fosse

exitosa, sempre os olhares de festa e de ansiedade com

aqueles amigos que se aventuravam a enfrentar o rio

Uruguai.

Hoje, o Tombador, o remanso do rio, a casa de

zinco do velho Simão em meio à densa mata de frutas e de

canelas, angicos, grápias, pinheiros, güajuviras...povoada

de pássaros, macacos, quatis e até onças, tudo foi sepultado

pela água da Barragem da Hidrelétrica do Itá. Bem no

fundo dessas águas, lá onde continuam morando os surubis,

os dourados, as piavas e grumatãs, estão plantadas e silentes

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Page 29: Histórias do viver

as saudades do velho rio, do simples rio Uruguai com seu

ponto de balsa.

A VOLTA DO UVÁ

Segunda feira, ao clarear do dia, quando abri a porta

para tirar o leite da vaca Boneca, vi o negro Pitanga passar,

em sua egüinha tordilha, com a cabeça toda envolta em

panos em direção à sede distrital – Aratiba. Papai, que

ajoujava os bois para atrelá-los à carroça comentou:

- isto foi briga nas carreiras do Bastião Foz, na

barranca do rio.

Atirei para perto do cancela da mangueira um bom

feixe de ramas de batata doce e a Boneca veio fagueira com

seu ubre túrgido de leite. Esta vaca holandesa, era mansa a

tal ponto que jamais era amarrada para ser ordenhada.

Enquanto ela saboreava com ar calmo, plácido, pacífico,

quase maternal aquelas ramas, eu me apressava para retirar

de suas tetas bem lavadas e acariciadas, com as duas mãos e

o balde no meio das pernas, sentado numa pedra qualquer,

29

Page 30: Histórias do viver

dez canecas grandes de leite. Mais de meia lata de

querosene3. Ao contrário da Brasina, a vaquinha gersey

impertinente e irrequieta que só permitia ser ordenhada na

cocheira, amarrada, inclusive com o rabo preso a uma perna

e que só dava 4 ou 5 litros de leite, mais gordo é verdade, a

Boneca era a bondade e a mansidão em pessoa.

Sempre penso na Boneca quando descubro que os

hindus reverenciam a vaca como símbolo de Deus, pois

passa a vida inteira, generosamente a alimentar os outros.

Mamãe ajudava Gino e Irma a juntar, na mochila

improvisada, o livro, o caderno, o lápis e uma batata doce

assada no forno de barro depois de retirado o pão. Para a

merenda ou para nossas trocas comerciais de merendas na

hora do recreio. As trocas obviamente sempre aconteciam

ainda em aula, disfarçadamente, por debaixo dos bancos:

batata por rapadura, por bananas, por caquis e até por duas

fatias de pão recheadas de banha com açúcar que os

poloneses ou alemães traziam.

E retornávamos da escola, meninos e meninas que

moravam na costa do rio Uruguai, aos bandos, por entre

3 Uma lata de querosene é de 20 litros.

30

Page 31: Histórias do viver

empurrões, provocações, desafios e alguma briga, tão

freqüente como os dias da semana.

À meia tarde, mamãe me incumbiu de levar à velha

Dalbert a máquina manual de costura que lhe havia pedido

emprestado. Os Dalbert moravam bem no alto da volta do

Uvá. O Uruguai circunda uma plataforma de montanha

alongada de mais de 5 quilômetros indo por um lado e

voltando pelo outro. Do alto avista-se duas vezes o mesmo

rio em todo o percurso que vai do Tombador até a casa dos

Dalbert. Na ponta, quando o rio faz uma curva de 360

graus, fica a barra do rio Uvá. Na enchente, o encontro das

águas do Uvá com as do Uruguai provoca, em pororocas,

torvelinhos que tudo absorvem e destroem.

Nas fraldas do morro, desde a barranca, sobem as

roças dos moradores com suas casas de madeira, cobertas

de zinco ou de tabuinhas de pinho. Pobres, aventureiros

imigrantes que vieram das terras velhas do Rio Grande do

Sul (Caxias, Garibaldi, Encantado, Guaporé...) para as

novas colônias abertas desde Erechim na década de 20 do

século passado.

Alguns fugitivos da polícia. Quase impossível

localizá-los na imensidão daquelas matas. Outros,

31

Page 32: Histórias do viver

frustrados ou falidos de negócios ou de família, buscaram

apossar-se de terras que eram de ninguém.

Por fim vieram filhos e netos dos imigrantes

europeus, comprando uma colônia de empresas

colonizadoras.

Na história da origem de muitos ficava, nos esvãos

do silêncio, o mistério da desgraça ou da esperança que os

alimentava.

Intrigava-me sempre a história de Bastião.

Agricultor bem instalado em sua colônia4, nas cercanias da

cidade de Santa Cruz do Sul, era viciado em jogo de

corridas de cavalo. De posse de um excelente cavalo, tendo

como certa a vitória, apostou todos os bens inclusive as

terras nas patas do animal. Foi traído pelo jockey e pelo

juiz.

No desespero e na vergonha fugiu naquela noite.

Deixou a esposa com um casal de filhos de 2 e 4 anos e

sumiu sem nada dizer. Acompanhou-o nesta diáspora

desumana a cunhada solteira.

4 Colônia era na verdade uma fração de terra destinada a uma família naépoca da Imigração européia para o Rio Grande do Sul: até 1850 eramcerca de 70 hectares, depois a colônia contava entre 25 e 30 hectares.

32

Page 33: Histórias do viver

A cavalo romperam os quase quatrocentos

quilômetros e, ao chegar à Volta do Uvá, imensidão de

mata cerrada, atravessaram o rio Uruguai e arrancharam por

lá.

Vivendo de caça e pesca abundantes, de uma

pequena plantação de milho, feijão e recolhendo bananas

nativas foram criando seus 6 filhos na clandestinidade.

Ninguém sabia de sua história. Até que um dia, 30

anos passados, um senhor, bem apessoado, alto, forte,

cabelos loiros e olhos azuis, apareceu lá em casa

perguntando se não conhecíamos um tal de Sebastião

Vosler. O delegado de política de Aratiba indicara papai

como quem poderia com segurança dar alguma informação.

Meu pai arrepiou.

E antes de arredondar a suspeita perguntou: de que

se trata? Algum caso de polícia?

- Não! respondeu Alfredo. Estou à procura de meu

pai que sumiu do Alto Taquari há trinta anos. Imaginei que

pudesse estar por estes lados.

Papai estendeu-lhe um chimarrão, olhou-o com

curiosidade infinita e repetiu em voz alta:

- Sebastião Vosler?

33

Page 34: Histórias do viver

E pensou: não será o amigo Bastião Foz?

Conduziu-o a cavalo até a barranca do rio e disse:

grita por um caíco que ele vem te buscar.

- Sem me conhecer?

- Não é preciso. Aqui se vive da confiança.

Papai aguardou um pouco. Imediatamente um rapaz

loiro mas de pele crestada pelo sol do Uruguai, ágil no

remo, atravessava o rio.

Papai soube depois por Bastião, chorando como

criança, que Alfredo se apresentou como fiscal de terras,

assustando a todos porque aquelas terras eram de posse e

sem título nenhum. Aos poucos, foi perguntando por sua

vida pregressa, de onde viera, por que viera e se não deixara

parentes para trás... Depois de duas horas de silêncios e

interrogações indagou: não vê nenhum traço de semelhança

entre mim e o senhor?

Foi então que os olhos de Bastião se abriram.

Abriram-se, abriram-se... e se taparam de água:

- Alfredo?

E choraram abraçados. Sem falar. Longos minutos...

E dos olhos de todos explodiram cascatas de chuva,

como depois da tempestade.

34

Page 35: Histórias do viver

No dia seguinte, papai e todos os vizinhos da

redondeza lá estavam para o grande churrasco.

-----------------------------------------------------

Mas nem todos eram Bastião ou seus filhos bem

educados e respeitosos. Alguns eram arredios,

desconfiados, não necessitando de muito assunto para

armar uma briga. Muitos ostentavam, como troféus,

cicatrizes de cortes de faca, facões, e de balas. Sempre

acrescentando que “o estrago no outro foi muito maior”.

No meio da lombada daquele platô em forma de

península, corria a estrada geral, que de geral só tinha o

nome, pois era uma estradinha estreita onde mal passava

uma carroça de bois ou um Jeep, ladeada de enormes

árvores cuja sombra escurecia o caminho quando ainda o

sol nem se tinha posto.

Mamãe recomendara que não tardasse distraído em

brinquedos com os filhos da velhinha Dalbert que era mais

velha porque pequena e magra do que por idade.

- Aquelas estradas e aquelas matas são muito

perigosas.

Mas os carrinhos de lomba foram mais tentadores.

35

Page 36: Histórias do viver

Quando me apercebi as sombras já avançavam e

recobriam o Uruguai à direita. Era quase noite. Era preciso

voltar de pressa.

A egüinha baia parecia adivinhar. Em seu lombo,

em pêlo, apenas com meu velho peleguinho, num pulo

estaria em casa.

A baia era dócil de boca. Bastava inclinar as rédeas

para um lado e ela obedecia. Para freá-la era só um toque e

ela sentava nas patas de traz. Ligeira de marcha, nunca

troteava. Seu balanço suave como dança de valsa era a

delícia das mulheres. Mas também era rápida no galope.

Um grito convidativo de brrrr... e ela desandava em

disparada. Em cancha reta de quadra e meia dificilmente

um cavalo corredor daquelas plagas ganhava dela. Em tirão

mais longo já não tinha o mesmo sucesso porque era

relativamente baixa e seus pulos, embora rápidos, não eram

tão longos como o dos cavalos mais altos. Dócil e mansa

para se deixar prender, encilhar e montar. Era chamá-la e

ela vinha correndo, à espera, obviamente, do prêmio de

uma espiga de milho.

Subi rapidamente o caminho tortuoso e pedrento

que ligava a casa dos Dalbert à estrada geral. Depois de

36

Page 37: Histórias do viver

uma pequena roça de mandioca e milho a estrada afundava

de vez na mata escura. Sempre em marcha solta, as rédeas

levemente esticadas na mão esquerda, ia atento a qualquer

sinal. Atento especialmente às orelhas da baia que, diante

de qualquer perigo, sempre se empinavam.

Não havia percorrido 100 metros de mata e ouço

vozes. Gente conversando em voz baixa, quase em surdina

alguns passos adiante.

Estaquei.

Naquela estrada, uma semana antes, dois mulatos

esperaram um desafeto e o “desgalharam” a facão como se

comentou na venda lá em casa. Cortaram-lhe uma orelha,

quase lhe deceparam um braço além de marcá-lo com

”taios” pelas pernas, pelas costas... Estes comentários

assaltaram-me a mente e o coração. Tive medo.

A baia segura no freio, escutei atentamente. Nada se

ouvia. Mas eu tinha certeza que eram vozes. E lá, a uns 50

metros talvez, nas duas margens da estrada, duas luzinhas

estranhas piscavam. Um piscar longo ora de um lado ora do

outro. Não era luz de vagalume que essa eu conhecia muito

bem.

Animado pelo medo, perguntei em voz alta:

37

Page 38: Histórias do viver

- quem vem lá?

Nenhuma resposta. Silêncio completo. Nem a coruja

chiava dos lugares mais recônditos e de improviso só para

assustar a gente.

Tornei a perguntar ainda mais alto:

- quem vem lá?

O silêncio foi a resposta. Mas as luzinhas, a um

metro e meio do chão continuavam a piscar

provocadoramente.

Outra estrada não havia para retornar à minha casa.

Voltar à casa dos Dalbert era vergonha. Afinal eu já tinha

quase 10 anos. Que diriam de mim os colegas de escola se

me soubessem medroso?

Dei de rédeas e voltei para a entrada do mato.

Quebrei uma varinha flexível de maria-mole, ajustei bem as

rédeas na mão esquerda, apertei os pés na virilha da baia e

dei-lhe uma leve chicotada para dizer-lhe que era preciso

ter toda a atenção.Ela ergueu a cabeça, empinou as orelhas

em atenção máxima e, impacientemente, foi galopando

atravessada na estrada, pronta para disparar.

Fui entrando pela mata e pensando: se alguém

quiser me pegar, não saberia por quê, mas só teria duas

38

Page 39: Histórias do viver

chances: ou estendendo uma corda cortando a estrada para

varrer-me do lombo da montaria, ou atravessando um

tronco para que nele a égua topasse e caísse comigo.

Juntei as duas hipóteses: da corda escapo deitando-

me rente ao pescoço da égua; do tronco a baia, alertada pelo

toque do freio, deveria dar conta sozinha.

Soltei o grito de guerra brrrr...e fulminei em direção

ao centro daquelas luzinhas que agora já não piscavam.

Passei como um raio, sem ver corda nem tronco.

Mas ouvi os palavrões todos de que tinha

conhecimento, por parte de quatro colegas de aula que

voltavam a pé para casa, dois deles, os das pontas

ensaiando fumar um palheiro vagabundo e que queriam me

assustar porque haviam reconhecido a minha voz. Como

eles conseguiram cair fora, não sei. Como a baia conseguiu

desviar deles, sem leva-los de roldão, também não sei. Ao

identificá-los no vozerio não falei. Não parei. Só parei em

casa suado pelo longo galope e pelo arrepio.

No dia seguinte, mal clareava o dia e, ao passarem

para a escola o grupo resolveu parar lá em casa e perguntou

à minha mãe:

39

Page 40: Histórias do viver

- Dona Ana, por acaso Jandir saiu ontem à noite, a

cavalo?

Mamãe, adivinhando e antecipando-se à

possibilidade de alguma encrenca, disfarçou:

- Acho que não. Por que?

- Por nada. É que um louco, pensamos que fosse o

Jandir, quase nos matou na estrada da Volta do Uvá ontem

à noite. Ele não vai à escola?

- Vai sim, eles ainda estão tomando o café.

Quando partiram, o olhar indagador de mamãe

perguntava por explicações dos perigos da Volta do Uvá.

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Page 41: Histórias do viver

O LAGARTO E A MELANCIA

Fim de março. Calor mormacento nas encostas de

Bentevi, próximo ao Uruguai. Outono. Tempo da última

capina ao milharal que já está embonecando. O tempo de

frutas de verão já se foi. Melancias e melões findaram em

fevereiro, logo depois da uva e muito depois dos pêssegos,

das pitangas, das cerejas e guavirovas. Laranjas e

bergamotas só de maio em diante. Os poucos pés de

abacaxis de nossa lavoura amadureceram seus frutos em

janeiro. Restavam os caquis, algumas peras d´água, goiabas

amarelas que cresciam por toda a parte, araticuns com suas

sementes carnudas e doces e as jaboticabas negras,

agarradas ao tronco com sumo adocicado no início e

amarguinho quando se lhe mastigava a casca.

Eu pensava em frutas enquanto arrancava, à mão, os

inços que estorvavam o milho especialmente milhãs e

carurus no meio das pedras altas do fundo da lavoura,

pertinho do mato com seus perigos e seus mistérios..

Os tucanos voavam aos pares de nossa mata para as

do Benincá, lá no outro lado do vale. Ao longe a escala

41

Page 42: Histórias do viver

ascendente do cantar dos inhambus fazia pano de fundo à

algazarra de bentevis, sabiás, almas de gato, tico-ticos,

papagaios, periquitos, gralhas, canários... E ao longe, lá

embaixo no arroio, saracuras anunciavam chuva, enquanto

os quero-queros vigiavam seu espaço de poder no potreiro

de Berticelli.

Apressava-me para terminar a tarefa que meu pai

me dera: limpar aquela área das pedras. Trabalhar era um

dever e, para mim, era um prazer colaborar com meu pai.

Afinal era o mais velho dos, então, oito filhos.

Estava suado, com sede. A fonte que brotava fresca

entre as pedras da beira do mato distava uns 500 metros.

E então a surpresa: à sombra de uma pedra mais

alta, escondidinha, estava uma bela melancia. Não chovera

muito. Não apodreceu. Fresquinha e apetitosa era uma

dádiva dos deuses naquela hora da tarde.

De um talho de facão abri-lhe o coração ao meio. E

sorvi, devagarinho, pedaço por pedaço, metade dela. A

outra metade levaria a papai que trabalhava na outra ponta

da lavoura, quase a um quilômetro dali.

Vermelha, sementes pretas, quase esfarinhava.

Nunca melancia fora tão doce em minha vida.

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Page 43: Histórias do viver

Sentado no alto daquela pedra eu contemplava o

horizonte e ouvia a música dos pássaros como se fosse um

rei.

Um ruído entre folhas secas à minha direita

despertou-me do encantamento. Um enorme lagarto, papo

amarelo, que todos diziam ser muito brabo, vinha do mato

em direção à lavoura. A cinco metros de mim, ao ver-me,

parou, levantou bem o peito e a cabeça e encarava-me de

língua de fora.

Ele parado e eu estatelado a olhar para ele.

Se ele quisesse, subiria na pedra onde eu estava.

Não era mais alta que um metro do chão. Pensei no facão

para a minha defesa. Estava longe da minha mão. Fiz um

ruído com a boca e um gesto com a mão como para

espantá-lo. Mas ele não se moveu.

Tomei, então, um pequeno disco da casca da

melancia, mirei bem e atirei em direção à sua cabeça. Errei.

A casca bateu no chão um pouco antes dele e saltou por

sobre ele sem atingí-lo. Imaginava eu que ele fugisse.

Enganei-me. Ficou furioso e veio em minha direção.

Disparei milharal afora, ladeira abaixo, em zigue-

zague, porque sabia que os lagartos têm muita dificuldade

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Page 44: Histórias do viver

de fazer curvas e, quando parei, quase sem fôlego, sobre o

tronco de uma árvore deitada, já não o via mais.

Respirei fundo. Escutei. Olhei. Nem sinal dele.

Ainda com a doçura da melancia na boca, pensei:

não posso deixá-la lá nas pedras. E papai certamente

apreciaria um pedaço dela. E o facão também estava lá.

Então, pé ante pé, olhos, ouvidos, tato e olfato bem

ligados, retornei.

Ele já não estava. Mas do alto da minha pedra ainda

o vi quando entrava em sua toca: um toro de canela cujo

miolo estava podre.

Facão em punho, fui chegando perto da tora. Ela

tinha um buraco de entrada por um lado e do outro lado

uma saída.

Lagarto não anda de ré, pensei. A toca é muito

estreita para que possa virar-se e retornar pela mesma

entrada. E então, com uma pedra que meus 9 anos

conseguiam transportar, tapei o buraco de saída.

Agora estava a salvo. Poderia retornar ao meu

trabalho descansado.

Foi então que o menino maroto e vingativo

despertou dentro de mim.

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Page 45: Histórias do viver

“Darei uma lição neste desgraçado”..., sismei.

Juntei palha seca na porta de entrada. Acrescentei

uns gravetos e fiz fogo.

A fumaça atormentava o lagarto que batia de

cabeça, inutilmente, na pedra que tapava a saída.

Saboreei aquela vingança, trompada por trompada,

até que ele parou de bater.

E então, com um bastão longo, empurrei de

vagarinho a pedra.

O lagarto saiu em disparada louca, sem parar, sem

afrontar ninguém, levando consigo o medo que ele me dera.

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Page 46: Histórias do viver

CARRINHOS DE LOMBA

Domingo à tarde.

Depois do terço das dez horas, combináramos, os

meninos da redondeza com menos de dez anos, um

campeonato de velocidade com carrinho de lomba. Iniciaria

logo depois do almoço. A pista: o potreiro do Germano.

Cada qual com o carrinho que ele próprio fabricara, sem

auxílio de ninguém. Quem tivesse contado com a ajuda de

irmão ou do pai não poderia concorrer.

Os incrementos contariam pontos: quem

conseguisse levar mais passageiros consigo, quem tivesse

freio acionado pelos pés, quem tivesse apoio para os pés

dos caroneiros, quem tivesse a direção guiada por cordas.

Ganharia quem conseguisse fazer melhor as curvas

desviando os inúmeros tocos de árvores ao longo do

percurso e chegasse mais rápido à beira do arroio sem cair

na água, sem perder passageiros pelo caminho e sem

tombar.

Dez carros ao todo. Cada qual com os eixos mais

engraxados com a banha furtada da cozinha da mãe, cada

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Page 47: Histórias do viver

qual com maiores rodas, com tábua de assento para maior

número de passageiros. Cada um ostentando a tecnologia

mais avançada para a arte. Levar três, quatro e até cinco

caronas, morro abaixo, naquele gramado verde seria

vertiginoso: quanto maior o peso, maior a velocidade. O

problema era controlar a velocidade para as curvas e com a

inclinação dos passageiros para o lado certo.

Ah! Havia expectadores. Irmãos mais velhos e

meninos e meninas. Os pais e as mães não poderiam estar

sob pena de proibir tudo: é perigoso! Vão se matar! Vão se

sujar!... Eu sempre disse!..

O perigo era o encanto e o atrativo. Eram cem

metros de pura adrenalina.

Dois juizes escolhidos pelo voto de todos. Tinham

quatorze anos. Suas decisões seriam irrecorríveis e

inquestionáveis. Valia o que eles dissessem. O sorteio

determinaria a ordem de largada. A saída era no baixar do

braço. A velocidade e o tempo seriam calculados por olho e

por experiência.

Cada piloto dizia quantos levaria e quem eram eles.

Os mais magros tinham preferência, é óbvio. O mesmo guri

poderia ser passageiro de mais de um carro.

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Page 48: Histórias do viver

Darci seria o primeiro. Disse que levaria quatro,

cinco com ele: A tábua-assento e as rodas eram de grápia,

os eixos de angico vermelho, tudo à prova de resistência.

Não precisava de freio. A direção era nos pés mesmo.

Ao grito de todos, lá se foram gramado abaixo.

Contornaram bem o primeiro tronco. A velocidade

aumentou. Na segunda curva quase tombaram, mas

conseguiram retornar ao prumo. A terceira curva foi

impossível vencer. Rolaram uns sobre os outros e, sob a

expectativa de alguns, a preocupação das irmãs e a

gargalhada geral levantaram-se, semi-mancos tentando

limpar o verde das pernas, da roupa e da alma e todos

culpando todos: você fez a curva muito fechada... vocês não

acompanharam com o corpo... Lá ficou o rastro da

derrapada e do tombo... da festa de cair.

Décio levou só três, embora tivesse apoio de pés

para quatro. É melhor não arriscar. Ganha quem chega ao

fim. Tinha freio nas rodas da frente: ajudaria melhor nas

curvas. Foi o seu engano. Quando o carro ganhou

velocidade, depois da terceira curva e bem no meio da

quarta tentou frear. Foi um desastre. As rodas voltaram-se

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Page 49: Histórias do viver

bruscamente para dentro e eles tombaram mais feio que

Darci.

Pedrinho resolveu ir sozinho. Seu carro não era

muito grande. Tinha medo que a tábua de canela preta não

resistisse. Freava com palanca de mão numa das rodas de

trás. Foi de vagar, cauteloso. Venceu oito das dez curvas

sem maiores problemas. Depois, sentiu que andava muito

lento, soltou o freio no mais íngreme da rampa. A nova

curva esperava-o para o tombo fatal. Chegou a chorar de

raiva.

Gino era o último. Fez os cálculos: posso carregar

até cinco, mas a velocidade será incontrolável. Mesmo com

o freio de pé nas duas rodas trazeiras. Resolveu levar

apenas dois passageiros. Afinal ninguém tinha chegado à

meta final ainda.

Preparou-se. Recomendou aos amigos que se

agarrassem firmemente nele, que dobrassem o corpo como

ele dobraria e mantivessem os pés firmes nos apoios.

Não se importou com a torcida-contra dos colegas

que já tinham tombado. Levou controladamente sua

“viatura”, curva após curva, de uma a dez. Quando se viu

na reta final soltou seu carrinho a toda a velocidade e mirou

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Page 50: Histórias do viver

seu bólido no juiz de chegada: só para dar um susto.

Antoninho saltou para o lado e Gino se foi em direção à

água.

Os juizes decretaram: empate geral, porque ninguém

chegou ao final. E todos se gabavam. Cada qual ria mais

dos outros pelos erros, pela má qualidade dos carros, pela

falta de braço...

Menos Gino. A calça nova de brim riscado que a

mãe lhe fizera para que cuidasse e durasse longo tempo

havia-se rasgado nas pedras do arroio. Que explicação daria

em casa?

50

Page 51: Histórias do viver

O NEGRO PEDRO

De Erechim a Barão do Cotegipe. E então quarenta

quilômetros de estrada de chão, tortuosa, de poeira e

pedras soltas, e que insistia em ficar engarupada na crista

dos mais altos morros. Andávamos em direção a Itatiba do

Sul. Íamos matar saudades há cinqüenta anos sufocadas.

Dos dois lados da estrada, quase em precipício,

pastagens para o gado zebu e alguma pequena roça de

milho conquistada dos peraus e grandes pedras vulcânicas.

Em cada minúsculo altiplano um agrupamento de 4

ou 5 casas e uma venda. Um fusca e um motociclo num

armazém de casa antiga e sem pintura, com quatro velhotes

jogando bisca e dois rapazes de boné virado bebendo uma

cerveja, informaram que Itatiba ficava a 16 quilômetros.

Finalmente, lá no topo mais alto, com duas torres de

retransmissão de sinal de TV e telefonia apareceu a vila-

cidade.

De Itatiba, verdadeiro esconderijo no alto dos

montes, avista-se à direita, a menos de 10 km. a vila de

Barra do Rio Azul. Em frente, a trinta km, de cor-terra a

monumental muralha da Barragem do Itá. Um pouco

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Page 52: Histórias do viver

aquém, entre taperas de colonos que se foram, expulsos

pela afronta da barragem, está Bentevi, na barra dos arroios

Encantado e Esperança. À sua esquerda, lá onde os morros

se esgotam e se prostram como barrancas do rio Uruguai,

segue o verde escuro de matas que avançam para Santa

Catarina, de Seara em direção a Xapecó. À direita, após a

lâmina azul das águas da barragem, no cocuruto mais

evidente daqueles verdes está a nova Itá. A Itá da minha

infância afundou-se nas águas. Dela só restaram as duas

torres da igreja que insistem em manter-se acima do dilúvio

como curiosidade turística.

Itatiba, pequeno município que há 10 anos tinha 15

mil habitantes e hoje tem 7 mil, metade deles na cidade

com uma só rua calçada ou quase isso, com um colégio

estadual para onde afluem as quase 400 crianças dos

profundos vales ao redor, carregadas em kombis escolares,

e cujo diretor é orgulhosamente o primo Irino, é o lugar

onde vive Pedro.

Sobrevive. Abraçado às lembranças de infância e

juventude que ele curtiu no sentido mais imediato e chão

da palavra, no espaço do horizonte que ele descortina do

alto de Itatiba.

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Page 53: Histórias do viver

Irino conduziu-nos até a casinha de Pedro.

Minúscula, de madeira, de dois cômodos e uma latrina do

lado de fora. Duas cadeiras, um fogãozinho a lenha, uma

TV preto e branco de 14 polegadas, um radinho com as

tripas de fora sobre a mesinha, eis a mobília daquele ainda

solteiro meu amigo e companheiro de infância. No pequeno

açude a 10 metros da casa, três marrecos se espanejam

barulhentamente.

Algo assustado ante a camioneta branca de Gino

que mais parece uma ambulância, veio receber-nos na trilha

do gramado junto à cerca. Bermudas surradas, chinelos

moídos e desbeiçados pelas pedras da estrada, camisa

aberta ao peito onde pendia de uma cordinha preta uma

cruz de madeira de S. Francisco, cabelos branqueando nas

beiradas do telhado, sobrancelhas murchando na tentativa

incansável de esconder dois olhos pretos e vivos como os

de um guri, Pedro ensaiava perguntar quem éramos, quando

Irino atalhou caminho:

- Não os conheces? Olha bem para eles!... Zanotelli,

Jandir, Gino, Castilo, Ilva, Classi... do Bentevi!

- Não é possível! Filhos do Leonel, lá do Bentevi?

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Page 54: Histórias do viver

Depois de um abraço, braços ainda hirtos pela

surpresa e vontade de todos falarem ao mesmo tempo,

nosso papo se esparramou pelos fiapos de lembranças

novamente costurados com os infindos “te lembra daquela

vez...?” Já se passaram 50 anos que não nos víamos.

- Não mudaste. És ainda o “nego bom” de

antigamente.

- Depois que vocês voltaram para as terras velhas do

Taquari, trabalhei, dizia Pedro, pela Esperança, por Barra

Azul indicando com o dedo lá em baixo, vim parar aqui, no

meio desta gente amiga.

Na verdade ele ficara com quase nada. Nosso cavalo

encilhado e algumas patacas. Quase com tanto quanto tinha

quando chegara lá em casa. A pobreza de meu pai não

permitiu mais. Recusava-me, porém, impotentemente a

interpretar assim: ele não é apenas um filho de

criação...como tantos deserdados e injustiçados neste Rio

Grande do Sul! Mas Pedro não quis ir conosco porque suas

raízes e seus amigos estavam ali.

Enquanto olhava aquele amigo de infância, firme e

ereto como cerne de guajuvira, pensava comigo mesmo:

onde Pedro ancorou o navio de sua identidade, de sua

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Page 55: Histórias do viver

dignidade? Por que não sossobrou em meio a tantos

furacões?

Negro, pobre, órfão desde menino, em meio a um

ambiente racista de imigrantes alemães e italianos, como

pode firmar-se e afirmar-se?

É verdade que adotou o estratagema de branquear-se

falando melhor o italiano e o alemão que os imigrantes,

adotando e criando piadas sobre sua negritude, brincando

sobre as desgraças da vida...

Mas ele é mais do que isso. Não é apenas um herói,

um vencedor. Ele é meu amigo. Radicalmente amigo em

sua negritude, em sua força, em sua esperança em sua

companhia. Pedro encontrou um caminho: para ser não

basta opor-se, ser diferente ou ser igual. É preciso libertar-

se das amarras e dos aguapés e liberar-se à vida. Liberar-se

à verdade, à justiça, ao amor. Permitir-se operosamente

amar e ser amado.

Enquanto falávamos, apareceu, surpreendido o

chefe da comunidade católica de Itatiba perguntando:

- O que aconteceu? Vi a camioneta e pensei que

tivesse havido algo com Pedro. Porque o Pedro é pessoa

muito querida e estimada de nossa comunidade.

55

Page 56: Histórias do viver

Na verdade, soubemos que ele participava

ativamente de toda a programação religiosa, social e

cultural da comunidade. Foi um bálsamo saber que Pedro

continuava a ser querido como nós o queríamos desde os

tempos antigos. Que ele estava integrado. Que, em sua

pobreza de aposentado de salário mínimo, era muito rico de

relações de amizade. E que a comunidade estava atenta a

tudo o que pudesse acontecer em sua velhice.

Era sábado à tardinha. A conversa com o presidente

da comunidade foi breve porque dizia que deveria trabalhar

nos preparativos da janta festiva que fariam logo após a

missa para celebrar a troca de padres: o de Itatiba ia para a

Barra do Rio Azul e o de lá viria para cá. Pedro também

deveria estar. E comeriam um cabrito assado.

- Por sinal, é uma pena que, por questões de ciúmes

políticos neste ano não acontecerá em Itatiba a festa

estadual do cabrito. Cabrito é só o que dá nestas

montanhas!, comentei a Pedro.

- É evidente que vou à missa e não perco a janta,

retrucou Pedro.

56

Page 57: Histórias do viver

Pedro merecia a consideração. De uma honestidade

a toda a prova. De uma fidelidade absoluta a seus amigos,

parecia a muitos, quase ingênuo em sua fé e generosidade.

Mas Pedro sabia muito bem onde pisava. Quando

brincava que “era cristão fiel porque esperava a recompensa

no céu de 17 mocinhas virgens”, sabia muito bem que Deus

olha a interioridade de cada coração e não as aparências

sociais. Será por isto que não casou?

Pedro, órfão de pai e mãe, fora recomendado a meu

pai pelo velho Pitã como um bom menino para criar. E

poderia ser útil nos serviços de casa, pois era saudável,

obediente e de toda a confiança. Papai recebeu-o em

casa como a um filho. E eu fiz dele desde logo, o meu

irmão. Tinha 15 anos e eu 10. Para meu pai, um filho de

criação. Para minha mãe, um pobre mas querido menino a

ser educado e amparado. Para mim e depois para Gino,

Irma e os outros irmãos um companheiro, um ajudante, uma

companhia indispensável no trabalho e nos folguedos.

De uma força hercúlea em seus braços, rapidez nas

pernas e um sorriso contido como quem agradece em

silêncio, Pedro não falava de seus pais. Talvez nem os

tivesse conhecido. Fez de meu pai e minha mãe os seus

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Page 58: Histórias do viver

pais. Por isso adotou, para todos os efeitos, quando nos

fomos de Bentevi, o sobrenome de Zanotelli. Pedro

Zanotelli e, depois de muitos anos: Pedro Zanotelli da

Silva. Assim era conhecido. Por isso o reencontramos.

Das aventuras de infância vividas com Pedro como

as de tombar a carroça em meio à lavoura só para vê-lo

assustado, de caçadas aos nhambus e galinholas com

arapucas cavadas no chão e que Pedro jurava conter uma

cobra, das churrascadas nas festas da Esperança regadas a

cucas e com as quais ele se empanturrou a ponto de ser

levado às pressas ao hospital, das carreiras em cancha reta,

dos terços rezados à noite, depois do jantar, ajoelhado e

escorando os cotovelos no assento da cadeira e

adormecendo depois da segunda ave-Maria, do susto

ofegante depois de ingerir inteira uma pimentinha

vermelha, enfim da companhia permanente deste negro tão

próximo de nossos sonhos e saudades.

Lembro-me da tristeza conformada de seu olhar

quando meu pai o repreendeu por qualquer erro nas tarefas

diárias, dando a entender que ele era um negro. Na verdade,

meu pai, embora tratasse em pé de igualdade os negros que

conviviam conosco e que freqüentavam nossa casa,

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Page 59: Histórias do viver

incluindo obviamente Pedro, não deixava de, nas horas de

raiva e descontrole, revelar o conteúdo racista que os

imigrantes italianos trouxeram da Itália em guerra com a

Etiópia, e sabendo-se igualados aos negros a quem vieram

substituir nas lavouras do café e nas colônias do Rio

Grande do Sul. Mamãe, com alma menos racista e mais

compreensiva repreendeu carinhosamente meu pai:

- Ah! Nelo, se tu tivesses a infância que ele teve,

não errarias também?

Depois do estranhamento, Pedro se recompunha,

como se nada houvesse acontecido justificando-se que a

reprimenda fora merecida.

A imagem de Pedro, porém, que mais povoa a

memória de minha infância no Bentevi é a do salto

espetacular na beira do arroio. No fundo de uma ladeira,

Pedro roçava uma capoeira. Gino e eu, lá no alto, sem que

fôssemos notados por ele, resolvemos assustá-lo. Porque

Pedro assustado ficava mais próximo de nós. Menino como

nós.

Balançamos e balançamos uma pedra mais pesada

do que nós, até que ela se desprendeu da terra e

empurrâmo-la, ladeira abaixo, só para ver os olhos

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Page 60: Histórias do viver

arregalados de Pedro. Mas a pedra, ao invés de descer em

linha reta como pensávamos, foi tomando a direção de

Pedro. Foi então que a aflição e o desespero se apoderou de

nós. Assustados, paralisados pelo estupor da possibilidade

de ferir e até de matar a Pedro, mal conseguimos sussurrar e

depois gritar, e depois berrar:

- Pedro, olha a pedra! Pedro olha a pedra! Peeeedro,

olha a peeedra!

E a pedra, num último e certeiro salto ia exatamente

na direção da cabeça de nosso amigo e irmão. Foi então que

vimos o mais ágil golpe de vista de que nem poderíamos

sonhar.

Pedro, apoiando a foice no chão, como se fosse uma

vara de saltar em altura, voou mais alto que a pedra

enquanto essa lhe roubava a foice da mão.

Corremos morro abaixo. Mas ele já estava de pé.

Ao invés de nos xingar, de nos bater como

merecíamos, ele deu uma gargalhada, daquelas que

explodem, logo depois de um grande susto:

- Oigatê, nego bom!

- E ligeiro, acrescentamos nós, em coro e aliviados.

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Page 61: Histórias do viver

O BAILE DO VELHO SIMÃO

Do outro lado do rio. Bem em frente ao Tombador e

ao remanso do Uruguai onde eram preparadas as balsas.

Abaixo daquele largo poço, vinham as cachoeiras com a

garganta de água volumosa e perigosa no lado direito, por

onde os caícos nem desciam e nem subiam. Para subir era

preciso escolher o lado oposto do rio onde as pequenas

cachoeiras intercalavam águas mansas e onde o sucesso da

pescaria de dourados, surubis e cascudos era sempre

garantida.

No meio da mata virgem pontilhada aqui e ali pela

clareira de uma pequena lavoura, no topo de suave colina

que morria nas margens do rio, estava a casa do velho

Simão. O grande telhado de zinco de 20 por 20 metros

escondia uma casa de madeira feita a capricho pelas mãos

habilidosas daquele imigrante bávaro. Rodeada em toda a

extensão por uma alta varanda de três metros de largura,

tinha no centro uma grande sala com amplas janelas de

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Page 62: Histórias do viver

vidro. Uma espaçosa cozinha. O fogão de barro coberto por

uma chapa de ferro de dois metros por um, aquecido com

troncos de lenha de mais de metro de comprimento, e

permanentemente aceso mantinha nas beiradas as panelas

sempre quentes e, no centro, uma chaleira de água sempre

pronta para o chimarrão. Os quatro quartos desembocavam

junto à mesa e ao fogão. Assim o aquecimento no inverno

era garantido para o casal e os seis filhos daquela casa, dois

rapazes e quatro mocinhas. Ao fundo, um paiol, tão grande

quanto a casa, onde Simão armazenava o milho, o feijão, o

trigo, arreios e ferramentas. Um pouco adiante a estrebaria

e o chiqueiro.

Saudáveis árvores frutíferas sombreavam

saborosamente seus páteos. E inhambus, jacus, pombas,

sabiás, bentevis, papagaios, periquitos e uma infinidade de

pássaros mansos como se fossem galinhas de angola que

Rita, a mulher de Simão criava, viviam e conviviam ao

redor da casa. Pacas, quatis, veados, antas e a mais variada

fauna faziam daquele paraíso a tentação de todo caçador.

Simão insistia em não deixar ninguém caçar em suas terras.

Motivo: o desaforo que uns caçadores lhe fizeram, há

algum tempo. Os porongos que Simão usava como bóias às

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Page 63: Histórias do viver

linhas de espera, na pescaria de surubis, uma manhã

apareceram afundadas nas águas porque perfuradas com

balaços. Prometera a si próprio que não deixaria mais

ninguém caçar ou pescar.

Meu pai era um caçador e um pescador inveterado.

Mal chegou em Bentevi, enamorou-se dos matagais de

Simão. Era preciso conquistar sua boa vontade. Sua

permissão. E lá foi ele, a cavalo. Desceu a trilha que, do

Tombador dava ao remanso. Amarrou o cavalo à soga para

que pastasse um pouco. Assobiou e pediu passagem a

Simão. O filho de 13 anos correu ao caíco e 15 minutos

depois Leonel já estava do outro lado.

- Papai não está em casa, disse o menino, mas em

minutos ele estará aqui.

Foi até o fundo da sala, apanhou uma corneta de

chifre de boi e buzinou estridentemente 3 vezes. Um

cachorro galgo, latiu, como se tivesse sido chamado.

Enganou-se. O chamado a que respondiam os cães era uma

buzinada longa seguida de três curtas.

- Não é necessário que ele venha. Eu posso ir até a

roça onde ele está. Não tenho tanta pressa, disse Leonel.

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Page 64: Histórias do viver

- Mas ele faz questão de receber e falar com um

vizinho novo, insistiu o rapaz.

Vinte minutos depois apareceu o velhote, baixo,

forte, olhos azuis, com um enorme feixe de canas de milho

às costas. Botas embarradas. Chapéu de palha sobre o feixe.

Jogou o pasto perto do chiqueiro. Lavou as mãos e o rosto

suado no tanque onde escorria permanentemente água

limpa e fresca vinda das pedras da coxilha e encanada em

canaletas de bambu.

- Bom dia!

- Bom dia!

- O senhor é o vizinho que comprou as terras do

Ritzel de Bentevi?

- Sou sim, Leonel Zanotelli, ao seu dispor. Peço

desculpas por estorvá-lo a estas horas da manhã e retirá-lo

de seu trabalho.

- Eu já não sabia como inventar um motivo para

deixar de capinar e vir embora tomar um trago com alguém,

disse Simão. Está muito calor...

Papai agradeceu e disse que vinha apresentar-se ao

vizinho e oferecer-lhe os serviços do armazém que estava

abrindo. Queria saber também onde conseguiria uma boa

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Page 65: Histórias do viver

cachaça e um bom vinho para a venda. Ele já tinha ouvido

falar que a cachaça do Simão era de especial qualidade, mas

se fez de desentendido.

Sentaram na varanda frente ao rio. Uma brisa fresca

trazia o rumorejar das cachoeiras e molhava a alma de

serenidade para uma boa conversa.

Simão alcançou um copo de cachaça levemente

amarelada e que formava uma corola de pequenas bolhas na

parte superior, os sinais mais evidentes da excelência do

produto segundo a ciência de Leonel:

- prove e diga se essa cachaça é ou não é boa.

Papai sorveu um bom gole, passou-o pelos quatro

cantos da boca, sentiu o gosto do barril de canela e carvalho

e sentenciou:

- É boa. Onde o senhor consegue esta cana?

- No porão da minha casa, disse Simão.

E levou meu pai a ver a cantina, com dez pipas de

mil litros cada uma.

- Estas três são do ano passado, estas duas do ano

retrasado, neste lado estão as deste ano.

- E o senhor vende? Perguntou Leonel, como se não

soubesse...

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Page 66: Histórias do viver

- Vendo quase tudo. Guardo uns duzentos litros para

mim.

- E o preço? Inquiriu meu pai.

- Eu vendo a dois mirréis5 o litro, mas se meu

vizinho se interessar, vendo-lhe a um e oitenta.

- Depende um pouco se me der algum prazo.

Digamos que, a cada quinze dias eu leve um ou dois barris

e no final de cada mês acertamos as contas.

- Feito o negócio, disse Simão. E quanta caninha

quer?

Leonel fez rapidamente seu cálculo: 100 litros por

semana, (segundo lhe informaram os beberrões do lugar),

quatrocentos e cinqüenta por mês, cinco mil e quinhentos

por ano, pensou e disse:

- Seis mil litros em 12 meses.

Simão, feliz, arrematou:

- Assim é que se faz negócio.

Quiseram-se bem, desde então. Papai não conseguiu

fugir ao convite para o almoço: um dourado assado, arroz e

5 Um mil réis transformou-se em um cruzeiro em 1942. Estávamos em 1947. Ocostume de chamar a moeda de réis permanecia. Um mil réis ou um mirréis.

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Page 67: Histórias do viver

batatas. Jurou que há muito tempo não comia um peixe tão

gostoso...

Ao despedir-se, insinuou que gostava de pescar e

caçar. E Simão convidou:

- Vejo que o senhor é uma pessoa séria e

respeitadora. Quando quiser pescar ou caçar por aqui, basta

assobiar lá do Tombador que eu lhe mando um caíco. Se

vier algum companheiro, cuide para que seja como o

senhor.

Papai agradeceu quase como uma criança que

recebe o presente mais esperado e garantiu que, se fosse,

levaria alguém que merecesse a confiança.

Ao apanhar o cavalo que pastava satisfeito, montou

lépido e faceiro, e veio assobiando até em casa sua modinha

preferida “Saudades do matão”.

Um mês depois, logo após a Páscoa, Simão

promoveu um baile em sua casa e convidou o já amigo

Leonel e esposa. E poderia convidar quem quisesse,

contanto que fosse conhecido e avalizado por meu pai. Só

havia uma lei: nenhuma moça ou mulher seria obrigada a

aceitar dançar com quem quer que fosse contra a vontade.

Nenhum homem, casado ou solteiro, poderia levar como

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Page 68: Histórias do viver

desfeita, como ofensa, a recusa para dançar. Quem não

levasse par deveria contar com a boa vontade da outra

parte. Vinho, cachaça, gasosa e janta eram livres, de graça.

Era uma festa para os 15 anos da filha.

Mamãe, um pouco adoentada, disse que não poderia

ir, mas insistiu que Leonel fosse. Era importante conhecer e

fazer amigos.

Com papai foram três casais vizinhos, a filha de

Strenghini e Antônio, o peão de Lucca, um mulato alto,

bem apessoado, trabalhador e tido como respeitador. Ao

serem convidados, todos foram alertados das normas da

casa de Simão.

Dois caícos transportavam os visitantes pelo

remanso do rio.

Simão recebia a todos. Todos entregavam suas

armas, revólveres, facas, adagas etc. que seriam devolvidas

ao final da festa.

Um gaiteiro e dois violonistas que também

cantavam, era o suficiente para animar o baile. Iniciou

cedo, antes das 10 horas da noite. À meia noite, uma

pequena pausa de 20 minutos para os músicos descansarem

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Page 69: Histórias do viver

enquanto os convivas se serviam de galinhas, porco e

cabrito assado. E muita cuca e sobremesa de sagu.

Antônio, que tinha entornado quase um litro de

cachaça e outro de vinho, jantou e animou-se a pedir a mão

de Angelina para um xote. Angelina, tímida, sobrinha de

Simão, recusou dizendo que ele estava bêbado. E que

convidasse outra.

Antônio insistiu elevando a voz e dizendo que não

era qualquer égua que lhe negava o estribo. E levantou a

mão ameaçando dar-lhe um tapa. Mas nem conseguiu

elevar o braço acima da cabeça e já estava seguro por três

homens, inclusive meu pai.

Levaram-no com calma para a varanda. Sentou num

longo banco de madeira encostado à parede. E papai em

frente, sem falar, mas com toda a vontade do mundo de

quebrar-lhe a cara. Era um convidado seu. De sua

responsabilidade.

- O que aconteceu, Antônio?

- Eu me perdi. Bebi um pouco demais e abusei.

Peço desculpas.

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Page 70: Histórias do viver

- Mas não é a mim que tu deves desculpas. É ao

amigo Simão e à sua sobrinha. Que vergonha! E agora? Por

favor, te manda daqui! E nunca mais venha a baile comigo!

Nisto chega Simão:

- Não, seu Leonel! Não precisa ir embora não. Que

ele fique sentado aí, por uma hora. Até curar um pouco essa

tontura. E depois que vá pedir desculpa à minha sobrinha e

pode ficar na festa. Isto por causa da amizade que tenho

com Leonel.

Antônio, lá ficou sentado como criança em castigo.

Uma hora depois, lavou o rosto, entrou na sala de cabeça

baixa, foi até onde estavam a sobrinha de Simão e suas

amigas que o olhavam espantadas e em silêncio, e disse:

- Angelina, te peço desculpa, eu me passei!

Angelina, quase sem saber o que dizer, balbuciou:

- Não foi nada. A bebida, às vezes, descontrola.

Simão olhou-o e abanou com a cabeça.

Já era dia alto quando os últimos atravessaram o

Uruguai, ouvindo o ronco surdo da garganta da cachoeira.

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Page 71: Histórias do viver

A ESTÁTUA

As três balsas de toros de pinho correram

maravilhosamente neste ano, para Germano. O Uruguai,

como nunca esteve bem comportado. O Salto Grande estava

liso como lagoa. Nem choveu durante a viagem.

Germano não era de descumprir uma promessa. De

São Borja foi direto a Porto Alegre. Na casa Bergmann que

fabricava e vendia estátuas de santos escolheu a da

Medianeira de Todas as Graças quase em tamanho natural.

E era bonita. Feições maternais, de uma beleza pura,

transcendente que comovia. Era para a capela de São

Miguel, do Bentevi.

Mandou levá-la por transportadora com todo o

cuidado. Queria vê-la inteirinha, para a alegria e devoção

do povo.

Era também uma surpresa para o padre vigário que

se queixava que Germano não comparecia à missa. Não

adiantava argumentar que tinha muitos negócios...

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Page 72: Histórias do viver

Especialmente depois que enviuvou e se juntou com uma

mulher casada.

Mas desta vez ele iria se dobrar, dizia para seus

botões. A estátua falaria por si mesma. E, afinal, era Nossa

Senhora. Ela iria protegê-lo.

De retorno, foi tomar uns tragos na venda de

Leonel. Propôs-lhe armarem juntos umas balsas para o ano

seguinte:

- É negócio que dá dinheiro e não as pataquinhas do

armazém ou da roça.

Os olhos de Leonel brilharam de curiosidade mas

retornava sempre à realidade quando pensava que tinha oito

filhos para criar: o homem foi feito para trabalhar na terra e

não para brincar nas águas violentas do rio. Não valeria a

pena arriscar-se tanto. E mesmo o dinheiro que tinha era

pouco para jogá-lo numa aventura.

Germano falava das maravilhas da Argentina, com

sua finíssima e branca farinha de trigo, com seu azeite puro

de oliva, com os peneus muito mais baratos que aqui:

- Na volta poderíamos trazer um caminhão

carregado de tudo isso.

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Page 73: Histórias do viver

- De contrabando? Perguntou Leonel. E se nos

pegarem? Se não formos mortos, seremos presos como

bandidos, além de perder o pouco que juntamos?!

No quarto trago Germano já estava alegre, de língua

solta e, então sussurrou a Leonel:

- Eu tenho um segredo pra te contar – e olhou-o

devagar, quase sorrindo – comprei uma linda estátua pra

capela... Agradecimento... Afinal um homem que não é

grato, não merece viver... não é? Chega esta semana. Não

arrisquei trazê-la comigo, poderia quebrar... Quero só ver se

o padre vai ou não vai ficar contente... e me agradecer.

Leonel que conhecia bem o severo padre

fransiscano, vigário da paróquia de Rio Novo (Aratiba)

comentou para ajudar a preparar o coração do amigo:

- Pode ser. Nem sempre porém, os padres

compreendem as intenções da gente. Deus sempre sabe o

que vai em nosso interior.

Germano olhou para Leonel, o sorriso de surpresa

mudando em estupefação e encaminhando-se para raiva

perguntou:

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Page 74: Histórias do viver

- Você acha que ele não vai gostar? Seria uma

ingratidão não aceitar uma oferta de um paroquiano. Nem

vou dizer quanto custou... o segredo fica comigo.

No dia primeiro de novembro, festa de todos os

santos, haveria missa na capela São Miguel.

Todas as famílias compareceram. Alguns vieram de

fora. No dia seguinte era dia de finados e a visita ao

cemitério era sagrada.

Quando o sacerdote chegou em seu Jeep verde com

o teto de lona, os fabriqueiros6 esperavam na frente da

porta. Germano com eles. O padre saudou a cada um com

um aperto de mão e um “louvado seja Nosso Senhor Jesus

Cristo”. Ao chegar em Germano, ao invés de “louvado

seja...” disse-lhe:

- Ué! O filho pródigo retornando à casa do Pai?

Germano não sabia se era reprimenda ou

acolhimento. Aproveitou para responder no teor da mesma

história que ainda lembrava:

- Éh! Quando o pai espera na cochilha, o filho sente

saudade de voltar...

6 Fabriqueiro é o membro da comissão de coordenação das atividades efinanças da capela

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Page 75: Histórias do viver

E foram entrando na capela de madeira de pinho

pintada de verde claro por dentro e por fora e, no teto azul

estrelinhas brancas em profusão.

Quando o padre viu a estátua ao lado do altar, parou

no meio do corredor e perguntou em voz alta:

- Quem pôs esta estátua aí? Sem falar com o padre,

nem nada? E está benta? Vai ver que algum benzedeiro a

benzeu...

Leonel e Valdomiro saltaram logo em defesa de

Germano:

- Não, senhor padre. Não é o que o senhor está

pensando. É um presente que Germano trouxe para a

capela. Ação de graças pelo sucesso das balsas. Pensamos

que o senhor a benzeria hoje.

- Do Germano? Retrucou o vigário. Ele ainda está

amigado com aquela mulher casada? E ele dá uma estátua à

igreja pensando que a gente vai esquecer tudo? Mas isto

aqui não é a casa da sogra... Onde é que se viu!...

Germano vermelho e sem fala, todos pensavam que

iria desmaiar. Levaram-no à porta da capela para tomar um

ar e ver se conseguiam contornar o incidente. Quando

conseguiu falar, urrou:

75

Page 76: Histórias do viver

- Isto não vai ficar assim, eu mato este padre! É isto

que Cristo mandou ele ensinar?

Depois de um mal-estar enorme, no silêncio

sepulcral em que todos se olhavam e olhavam sem saber o

que pensar e muito menos o que dizer, começou a missa.

Germano no lado de fora, seguro por três ou quatro amigos,

até que o vigário mudou de tom:

- Peço desculpa a vocês todos, porque me excedi,

começou. Peço desculpas também ao Germano. Afinal não

há nada de errado oferecer uma estátua à igreja. E esta é

verdadeiramente muito bonita. Peçam ao Germano que

entre...

Germano relutava entre entrar ou não entrar.

Finalmente, ouviu o amigo Leonel e resolveu entrar e ouvir

calado. Depois da missa acertariam tudo com calma.

O padre voltou a desculpar-se no sermão. Antes de

terminar a missa abençoou a estátua, convidou a todos a

rezarem uma Ave Maria e a cantar “Com minha mãe

estarei...”

Depois da missa o sacerdote alegou que tinha pressa

para atender outra capela e zarpou sem falar com ninguém.

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Page 77: Histórias do viver

Os fabriqueiros não sabiam como descascar o

abacaxi.

Germano não sabia se rosnava, se roncava ou se

berrava. Resolveu tomar um senhor pileque.

Ao final da tarde dois amigos ajudaram-no a chegar

em casa.

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Page 78: Histórias do viver

O MOINHO DO BORTOLOTTO

- Os guris já chegaram da escola? Perguntou meu

pai que acabava de chegar com a carroça atopetada de

mandioca e que Pedro descarregava perto do chiqueiro.

- Já, respondeu mamãe lá da cozinha mexendo a

polenta para o almoço e controlando as panelas de arroz,

feijão e carne de porco.

- Jandir, chamou papai, pegue o cavalo tordilho para

a Irma ir ao moinho. Enquanto isso, Gino, vá até o Locatelli

e pergunta se ele precisa do dinheiro nesta semana.

O arisco cavalo tordilho era matreiro para se deixar

apanhar. Gino já descobrira. Para prendê-lo, não se poderia

levar, à vista, nem corda, nem cabresto e muito menos

freio. Uma espiga de milho e ele vinha. Se conseguisse a

espiga de longe, fugiria com ela. Era preciso que ele viesse

pegá-la bem perto do corpo da gente. E então, jogar a

espiga no chão. Enquanto ele se abaixasse para abocanhá-

la, era agarrá-lo pelo pescoço, cruzar as pernas sobre ele e

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Page 79: Histórias do viver

subir em seu lombo. Tapeando-lhe as orelhas suavemente

ele viria conduzido até a cancela e se deixaria embuçalar.

Naquele dia, como advertira Gino que tinha raiva

daquele cavalo, ao sentir que eu estava sobre ele, enveredou

para um túnel formado pelos galhos de um grande pé de

lima e um de bergamota e onde mal passava ele, afim de

descarregar a incômoda mochila que carregava às costas.

Deitado ao lado de seu pescoço, senti os galhos rasparem

minhas pernas e seu lombo, mas não caí.

Já ultrapassado o perigo vibrei-lhe dois bons tapas

nas orelhas e então ele obedeceu.

Meu pai observava de longe e disse:

- Assim vocês acostumam mal o cavalo!

Não descobri se era elogio ou reprimenda. Amarrei

o grande, forte, ossudo tordilho, que não conseguia

marchar. Só a passo, trote ou galope. Bom para carregar

peso. Só papai gostava de andar nele. Acho que suas

esporas botavam ordem em seu andar.

Depois do almoço papai ditou a agenda para a tarde:

- Irma vai ao moinho dos Bortolotto, lá na

Esperança Alta. Pedro carrega o tordilho com um saco de

milho que debulhamos ontem à noite, um saco de trigo, -

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Page 80: Histórias do viver

três latas bem cheias - daquele do canto do paiol. Cuida que

as metades sejam bem divididas para que não caia a carga

no caminho. Jandir e Gino vão comigo cortar e carregar

cana para o melado e o açúcar de amanhã. Prometi cinco

latas de melado e duas de açúcar.

Enquanto Pedro jogava sobre o cavalo o milho e o

trigo em longos sacos brancos torcidos ao meio para que

metade ficasse a cada lado do cavalo, a chincha bem

apertada, mamãe protestava insistindo com papai:

- Nelo, para quê mandar a Irma? Ela é apenas uma

criança. E menina. Se a farinha não ficar pronta na hora e

ela precisar esperar, ficará noite. E ela na estrada... Afinal

são oito quilômetros. Manda um menino!

Meu pai, acostumado com a dureza que ele próprio

viveu na infância, foi intransigente:

- A Irma já tem quase oito anos. E eu preciso dos

guris e do Pedro para dar conta da encomenda.

Vendo-se vencida, mas obediente ao marido como

ensinavam os padres, o avô e a tradição, fez mil

recomendações à minha irmã:

- Vai ligeiro e não te distraias pelo caminho. Anda

sempre no meio da estrada para que os sacos não encostem

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Page 81: Histórias do viver

em barrancos ou em alguma cerca de arame farpado. Reze

para Nossa Senhora que ela cuidará de ti. E volta cedo.

As sombras do morro do Paloma já cobriam todo o

nosso vale do Bentevi quando chegávamos em casa. A

carroça perigosamente carregada de cana em pé, a ponto de

quase tombar nas valetas da estradinha da roça. Pedro, Gino

e eu, descarregamos tudo ao lado da moenda. Mamãe

esperava aflita, à porta da venda que ela cuidava enquanto

amamentava o último filho, limpava os penúltimos,

preparava a comida, cuidava da roupa de todos e das

galinhas e de fazer o queijo e de governar a casa.

Irma ainda não havia chegado. Em seguida

escureceria. E não havia lua.

- Ela chega em seguida, disse eu para consolá-la.

Tratamos os porcos, ordenhamos as vacas,

distribuímos pasto de “leofante” e ramas de batata doce

para os animais na mangueira, lavâmo-nos no tanque...

E nada de Irma.

Fez-se noite.

Papai também não chegava. Fôra, da lavoura, até o

compadre e visinho Cauduro conversar sobre negócios e

amarrar uma caçada.

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Page 82: Histórias do viver

Mamãe já estava ansiosa, rezando para que Irma

chegasse de uma vez. Em circunstâncias assim, o coração

dela disparava em taquicardia que durava horas e a deixava

cansada mais que todos os trabalhos.

Quando meu pai chegou, eu já estava montado na

egüinha baia, em pelo e buçal para ir saber da irmã.

- Não é preciso, ela já deve estar chegando, atalhou

Leonel.

- Não, retrucou mamãe magoada e sofrida. O Jandir

vai rápido que já é tarde.

- Mas por qual das estradas estaria vindo? Perguntei.

Pois para ir aos Bortolotto havia uma estrada a cada

lado do arroio Esperança. Encontravam-se lá perto do

capitel. Mas, pensei comigo: Irmã não deve ter atravessado

o Esperança para vir pela estrada dos Benincá. É mais

estreita e tem mais mato. Vou, portanto pela estrada dos

Basso. E lá me fui a quase galope.

Há três quilômetros de casa encontrei Irma que

vinha chorando, chicoteando o cavalo, lerdo de cansaço sob

a carga de 150 quilos. Chorou ainda mais quando me ouviu

e me viu.

82

Page 83: Histórias do viver

No Bortolotto não precisou esperar. Havia farinha

pronta para trocar. O moinheiro ficara com o farelo como

pagamento pela moagem. Assim eram 24 quilos a menos a

pesar sobre o cavalo. Mesmo assim só conseguiu sair do

moinho, sol já posto.

Descuidou-se de andar pelo meio da estrada. O

arame farpado rasgou o saco da farinha de trigo. A carga

caiu. Ela não sabia o que fazer senão chorar.

Depois de um longo tempo, passou um cavaleiro,

um Berticelli, que a ajudou a repor tudo no lugar,

mandando dizer ao pai que era louco mandar uma menina

de noite ao moinho.

Voltamos de vagar. Ela na frente e eu insistindo que

cavalgasse pelo meio da estrada. Ao passar pelo cemitério

minha irmã fingiu voltar-se para conversar comigo só para

não ver nem ouvir o que quer que fosse. Depois da

amargura da viagem, sua alma infantil até podia se dar ao

luxo de ter medo de fantasmas.

Antes de passar o arroio, há uns 300 metros de casa

eu já fui assobiando como para anunciar que tudo estava em

paz.

83

Page 84: Histórias do viver

Chegamos. Todos estavam esperando na frente da

casa. Enquanto mamãe abraçava a filha, meu pai, como

para arrancar do fundo do seu medo uma desculpa

esfarrapada, foi dizendo:

- Você não cuidou para o cavalo não encostar na

cerca?

A janta tardou um pouco. E ao rosário que se seguia

todas as noites ao jantar, mamãe fez questão de acrescentar

um Pai Nosso e uma Salve Rainha de agradecimento.

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Page 85: Histórias do viver

MISSÕES NA BARRA DO RIO AZUL

Os padres vinham de fora. Capuchinhos. Vinham de

Veranópolis e Garibaldi. Eram três. Impressionavam pela

longa barba, pela batina marron com um cordão na cintura

cheio de nós, sandálias comuns nos pés.

O calmo padre Egídio da paróquia de Barra Azul

convidara-os para pregar missões e sacudir o marasmo

religioso dos colonos. Todos católicos sim, que rezavam o

terço à noite debulhando ave-Marias e Pai-Nossos sem

pensar muito no que diziam, mas que blasfemavam morro

acima e morro abaixo a pretexto de qualquer contrariedade

e de qualquer alegria. Confissão e comunhão?: uma vez por

ano conforme mandava a Santa Madre Igreja. Fidelidade

sexual e conjugal? Esta sim era controlada por todos desde

os gestos, as saídas à noite até o olhar mais inocente dos

rapazes, das mocinhas e muito mais dos casados. Vencer a

tentação da carne era o que importava. Muito embora a

conversa sobre relações genitais fosse escancarada entre os

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Page 86: Histórias do viver

casados como a da mulher que, ao fazer o banho sumário

no tanque, ao retornar da roça, perguntava ao marido: te la

dopéri sta será? (Usá-la-ás esta noite?), referindo-se

obviamente à genitália feminina. Se a resposta fosse ´sim´,

o banho deveria ser mais completo. Ou da mãe que deixava

as filhas terminando de preparar o almoço porque:

- o pai está chamando. Devo subir para satisfazê-lo.

Os rapazes e as moças aproximavam as falas

indiretas o quanto podiam até quase sentirem

palpavelmente o de que falavam. E riam, cada qual

completando com a imaginação o que as entrelinhas, se é

que as havia, insinuavam ou quase diziam. Depois,

obviamente, iam à confissão declarar que tiveram maus

pensamentos e sonhos pecaminosos.

Aqueles colonos, famílias enormes com dez ou mais

filhos, trabalhavam, do nascer ao por do sol, para recolher

100 sacos de trigo, outro tanto de feijão, e milho para

engordar porcos e alimentar vacas e bois. Sobrava sempre

quase metade da produção para vender aos dois ou três

comerciantes da vila que lucravam e enriqueciam com a

intermediação. Só eles tinham caminhão para levar o

produto a Erechim e os porcos gordos para Concórdia em

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Page 87: Histórias do viver

Santa Catarina. E vendiam caro as mercadorias que traziam

para os agricultores: sal, tecidos, chinelos, tamancos, café,

louças e ferramentas... E a balança quase sempre

adulterada. E as anotações no caderno com suas somas com

leves enganos sempre em desfavor daqueles pobres e

barulhentos homens da terra que mal sabiam ler e escrever

e que jogavam ´mora´, bochas e quatrilho depois da missa

de domingo enquanto cantavam as ´virginelas´ e os

´mazzolin di fiori´.

- Era preciso atacar também a ganância dos

comerciantes, dos moinheiros, dos intermediários, pensava

Padre Egídio. Era preciso insistir com o costume das

orações em família, com a observância dos mandamentos

de Deus e da Igreja, para manter aquele rebanho reunido e a

salvo do demônio. Era preciso preparar os meninos e

meninas para a primeira comunhão e para a crisma com

seus padrinhos, fortalecendo ainda mais os laços sociais. E

insistir para que os rapazes e as moças casassem virgens,

porque a virgindade era santidade que atraía as bênçãos de

Deus. Que o casamento era até a morte. E recriminar

também dois ou três ajuntados lá da costa do Uruguai que

viviam como bichos, sem matrimônio. Era preciso

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Page 88: Histórias do viver

incentivar os meninos e as meninas para a vocação

religiosa, a mais honrosa, a mais alta e a mais santa

possibilidade de vida.

Uma semana de missões era uma renovação para a

paróquia. Mudanças de horários, de roupas, de encontros.

Os pregadores iam durante o dia em cada uma das capelas,

reunindo a todos e incitando à vivência religiosa. À noite,

na igreja matriz, havia pregação mais insistentes, mais

incisivas e candentes com apelos que iam desde a danação

ao fogo do inferno até a descrição pormenorizada das dores,

da paixão e morte de Cristo por nós.

Era especificada para os diversos grupos: para

homens, para mulheres, para rapazes, para moças,

culminando sempre com confissões, longas e detalhadas e

que se prolongavam até depois da meia noite. A missa do

dia seguinte era às 7 horas para que entre a confissão e a

missa os homens não pecassem e pudessem comungar.

A sexta feira era reservada para crianças até 11

anos.

Mamãe, que participara das missões de segunda a

quarta feira, hospedando-se em casa de sua irmã Maria,

retornou ao Bentevi na quinta feira ao meio dia. E já foi

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Page 89: Histórias do viver

dizendo que o pai e eu deveríamos participar também.

Papai alegou negócios urgentes em Xapecó.

- Se o Jandir quiser, pode ir.

Voltei da roça mais cedo. Tomei um bom banho no

arroio. Não aceitei calçar sapatos porque me doeriam os

pés. Iria mesmo de chinelos. Minha mãe preparou minha

melhor muda de roupa: calça comprida de brim cáqui,

camisa branca e até casaco cinza que eu quase nunca usava.

Não sentia frio.

Montei na egüinha baia marchadeira, parti para

Barra Azul. Já era noite fechada.

- Como está escuro! Eu disse, resumindo a

apreensão e um pouco de medo que me assaltava.

- Não precisa ter medo, disse mamãe. Terás umas

duas horas de lua nova que, pelo menos ilumina um pouco.

Já tens 10 anos e o motivo é santo. Vai direto à casa da tia

Maria. Tem lugar para ti.

Apesar das pedras soltas e os buracos da estrada, a

egüinha marchava solta e serena.

Venci a estrada da Esperança, subi a lomba que a

separava do Pinhão. Um fiapinho de lua mal permitia

divisar as casas no vale. Desci, passei em frente à casa de

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Page 90: Histórias do viver

vovô, na expectativa de que arranjasse companhia para ir

até a Barra. Mas nada. Só os cachorros acordavam o

silêncio. Os quero-queros respondiam lá em baixo no

potreiro. Nenhuma lamparina acesa nas casas. Ninguém na

estrada.

Reuni minhas coragens e valentias de menino e

pensei:

“Já venci 14 quilômetros. Só faltam 8. E a estrada

agora é melhor. E lá terei os primos para ver e acompanhar

nas missões”.

Assim fui passando e reconhecendo as casas dos

Rech, dos Bagatini, dos Pilati, dos Munari, dos Rosa, pois,

quando morávamos no Pinhão,muitas vezes, aos domingos,

havia ido à missa na Barra.

Era quase meia noite quando cheguei à casa de tio

Emílio e tia Maria, dois quilômetros além da Barra.

Receberam-me pressurosos:

- Tão tarde? Aconteceu alguma coisa? O pai não

veio? Queres comer alguma coisa?

Expliquei. Agradeci. Indicaram-me um colchão ao

lado dos 5 primos que dormiam no assoalho de um quarto

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Page 91: Histórias do viver

grande e só acordei com uma sacudida do primo Irino,

dizendo que já era tarde e que a missa começava às 8.

Lá fomos a pé, um bando de 12 meninos e meninas,

entre primos e vizinhos para as ´santas missões´.

A igreja lotou. Nunca vi tanta meninada junta. Era

um empurrando o outro para caber nos bancos. Meninos de

um lado, meninas do outro. Assim como na escola, os

meninos ficavam à direita do corredor, as meninas à

esquerda. Era indecente, vergonhoso e castigo um menino

ter que sentar no lado das meninas.

Tocou a campainha. O padre. Alto, magro, quase

calvo e mais calvo parecia porque tinha o cabelo cortado

em grande tonsura. Restava-lhe a periferia do “telhado” e a

longa e honorável barba. Sério, como convinha tratar

crianças, pois ´a disciplina é a mãe de todas as virtudes´,

iniciou a missa. A cada passo parava para explicar o que

acontecia: agora é o ato penitencial, agora é a vez de ouvir a

palavra de Deus, agora é o ofertório, a consagração, a

comunhão... e tudo à altura da compreensão das crianças e

jovenzinhos que éramos. O sermão de quase duas horas

tomou como modelo a infância do menino Jesus: que era

obediente, que ajudava seus pais, que ia com os pais ao

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Page 92: Histórias do viver

templo, que não fazia crueldade para os animais, que não

brigava, que era estudioso, que respeitava os mais velhos e

que depois morreu na cruz por causa de nossos pecados.

Era um pouco e em tudo, o contrário do que nós fazíamos.

Assim ficava marcado indelevelmente na alma o que era e

o que não era pecado, chamando-nos à penitência e a mudar

de vida.

Lembro-me que eu refletia comigo mesmo: como é

que ele sabe tanta coisa do menino Jesus. Na História

Sagrada que nós líamos na escola não constava tudo aquilo.

Em todo caso, ele sabe porque estudou. E padre não mente.

Estranhava também que ele parasse na crucificação e morte

de Cristo. E a Ressurreição festiva e alegre cheia de alegria

e esperança e de presentes seria um episódio inútil para a

salvação?

O certo é que aqueles severos sermões, seguidos de

confissão à tarde e de comunhão festiva no dia seguinte,

fazia bem. Freava nossos ímpetos e ganas. Acomodava tudo

no seu devido lugar. Mas abichornava nossos sonhos. Ou

melhor, transformava-os em sonhos de religiosidade.

De volta, convenci-me que deveria ser padre.

Mamãe concordou, antes que eu terminasse a frase. Afinal,

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Page 93: Histórias do viver

foi o sonho que ela sempre teve. Quando o padre veio rezar

missa na capela do Bentevi, convidou-me para o seminário

e eu aceitei.

- Mas não temos dinheiro, disse mamãe ao

sacerdote.

- Não faz mal. Deus providenciará.

No último dia de fevereiro deste mesmo ano, meus

avós deixaram-me à porta do Seminário Menor de Tapera.

Papai ficara em Passo Fundo para uma cirurgia.

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Page 94: Histórias do viver

A SECA

Era fevereiro. Desde agosto não chovia. Uma

chuvinha no Natal só serviu para queimar ainda mais a

pastagem. As fontes se ressentiam. Só as mais valentes

mantinham um filete d´água que empossava aqui e ali. O

milho do cedo encharutou e secou. O feijão nem nasceu. A

grama dos potreiros esfarelava como pó ao andar dos

animais. As mutucas proliferaram infinitamente e

encurralavam os bois e as vacas para dentro dos capões. Só

os cabritos, que se nutrem até de gravetos, sobreviviam

bem. A desolação morava no canto dos olhos dos

agricultores e agricultoras de Bentevi.

Disseram que há uns 80 quilômetros dali, entre

Concórdia e Joaçaba havia chovido bem, na semana

anterior. Mas, do céu, não vinha sinal algum de esperança.

A lua cheia rodeada por um halo alaranjado prometia mais

seca. O nascer do sol na limpidez de um céu azul e o pôr de

sol com um avermelhado esparso, também indicavam

ausência de chuvas por mais dias. O Uruguai estava abaixo

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Page 95: Histórias do viver

do nível normal e quase não se ouviam as cachoeiras abaixo

do Tombador. O dia dois de fevereiro, festa de Nossa

Senhora dos Navegantes, passara literalmente em brancas

nuvens. Só restava rezar.

O padre, no sermão de domingo, deixara entrever

que a seca poderia bem ser um castigo pelos inúmeros

pecados cometidos. E eu ficava pensando que, se a chuva é

bênção, não deveria chover na roça dos pecadores.

Na hora dominical do terço na escola que

funcionava como capela enquanto esta estava em

construção, por proposta da professora Zita, todos

concordaram que se deveria fazer uma novena de terços

para pedir chuva.

Quando iniciava escurecer, de todos os lados, quase

em silêncio vinham todos à novena. Comentários tristes,

compungidos. Só as crianças pequenas acompanhadas de

um adulto ou irmão mais velho, ficavam nas casas.

Na escolinha para 30 alunos, apinhavam-se quase

100 pessoas, ajoelhadas no chão e apoiando os braços nas

estantes, nas paredes ou no vizinho à frente.

Ave Maria... Santa Maria... Salve Rainha...

Ladainhas de Nossa Senhora...com seus “rogai por nós”,

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Page 96: Histórias do viver

Pai Nossos em intenção especial. Mas especialissimamente

para que Deus se dignasse a não olhar os nossos pecados e

a mandar a esperada chuva.

Um dia... dois dias... e nem um sinal de chuva. Deus

parecia testar a fé daquele povo pobre e simples, que não

sabia tanta teologia, mas que confiava e aguardava.

Ricieri, meu colega e vizinho, tinha a minha idade.

Dez anos. Estávamos ajoelhados no fundo da escola,

logo à direita da porta. Ele comera batata doce assada ao

forno ao meio dia. Barriga estufada, não sabia como

controlar sua flatulência. Passou-lhe então pela cabeça o

seguinte estratagema:

- Se eu esperar a “Santa Maria” que todos rezavam

em coro e em voz alta, logo depois que o puxador

terminasse a “Ave Maria”, poderia desfazer-me dos gases

porque no meio de tantas vozes ninguém notaria.

E preparou-se, engatilhou para disparar logo que o

rezador chegasse ao “ventre Jesus”.

Eis, porém, que ele se atrapalhou. Calculou mal o

tempo e as circunstâncias: o estrondo espocou exatamente

no intervalo entre o fim da reza do puxador e o começo da

resposta da comunidade.

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Page 97: Histórias do viver

Foi um Deus nos acuda. A criançada rindo, os

adultos entre rindo e severamente repreensivos, todos se

voltavam para o canto onde Ricieri, vermelho como

pimentão não sabia se pedia para morrer ou para fugir.

Tio José que estava à nossa frente, no espírito mais

bonachão do mundo que lhe era próprio, sussurrou ao

infeliz:

- Ricieri, não é assim que se responde a “Ave

Maria”.

Domingo de madrugada iniciou a chover

torrencialmente.

Alguns nem vieram ao terço das 10 horas.

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Page 98: Histórias do viver

O TEMPORAL

Final de novembro. Sol muito quente. Um

abafamento excepcional. Fora de época.

Meu pai e Pedro estão cortando o trigo maduro, a

mão, no topo do cerro dos Buttini, lá na Esperança. Um

saco de trigo semeado e plantado a enxada e recolhido a

foicinha, na mão rápida e gabola do pai. A previsão é que

renderia mais de 40 sacos.

Estavam há quase 5 quilômetros de casa. Dormiriam

a semana todo lá, até terminar de roçar, juntar os feixes em

meadas que, bem amarradas em forma de funil de boca para

baixo, protegeriam o trigo da chuva por uma ou duas

semanas até que a máquina trilhadeira pudesse chegasse.

Retornados da escola, almoçamos logo e nos

encaminhamos para o fundo da roça nova, mamãe, e os 7

irmãos. Castilo ainda mamava. Olir, Lírio e Dinacir

nasceriam depois. Um cesto de vime servia de berço ao

bebê enquanto Ite vigiava seu sono à sombra de uma

laranjeira. Nossa mãe estimulava a todos a que

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Page 99: Histórias do viver

trabalhássemos rápido para limpar aquele meio hectare de

milho novo e que cuidássemos para não arrancar os pés de

melancia plantados no dia de finados. Se terminássemos

mais cedo, mais cedo iríamos para casa, mesmo porque

ameaçava chover.

Uma hora depois, armou-se um temporal imenso lá

nos fundos do Uruguai na direção da Barra do Paloma.

Escureceu de repente. Aqui o vento parou. Como assustado

e em expectativa tudo parou. Mas lá na lomba de matagal

da costa do Paloma, um torvelinho de vento, nuvens, poeira

roncava ensurdecedor. Era a fúria do inferno avançando

sobre o mundo. Um surdo quebrar-se de árvores torcidas,

arrancadas, em roldão. Era um tufão. Eu nunca havia visto e

ouvido tamanho temporal.

Mamãe, assustada, lembrou-se que a casa ficara

completamente aberta. Era preciso correr e fechar as janelas

a começar pelo lado de onde viria o vento. Nossa casa, no

coração do vale, receberia em cheio aquele vendaval.

- Jandir corre! Gino e Irma me ajudem a levar as

crianças.

Desatei a correr morro abaixo, descalço, na

velocidade toda de minhas pernas de 10 anos, pisando na

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Page 100: Histórias do viver

ponta das pedras sem dar-lhes tempo para que elas

ferissem os pés.

Em menos de 5 minutos entrava em casa. Subi num

relâmpago ao sobrado. Fechei as duas janelas e desci.

O vendaval já vinha potreiro afora.

No primeiro piso daquela casa de madeira com seu

alto porão, eram 4 janelas do lado do vento. Passei a

taramela na primeira, na segunda e na terceira... Quando,

porém, cheguei à última janela, na cozinha, o vento já

havia chegado.

Em vão tentava aproximar as duas folhas para

passar-lhes a tranca. Encostei os ombros e multipliquei

minha força por dez, - e eu não era fraco -, mas uma lufada

tremenda de vento arrancou a janela e me jogou com ela

aos fundos da cozinha, contra a parede. Pelo buraco

escancarado o vento entrou como um demônio solto.

Arrancou o forro e levantou o telhado de zinco num

estrondo só.

Deitado no chão, eu tentava arrastar-me contra o

vento para ter acesso à sala da frente onde funcionava a

venda, contando que minha mãe e os irmãos já tivessem

chegado. Entre duas ondas de vento consegui safar-me.

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Page 101: Histórias do viver

Mamãe, os irmãos agarrados nela, rezava em voz alta e

tentava acender uma vela.

A casa balançou. O grito foi abafado pelo espanto

parado nos olhos muito abertos de todos. Nem havia tempo

para chorar.

E, de repente, tanto quanto violenta foi sua chegada,

o vento serenou. E iniciou a chuvarada. Dilúvio. Só então

ouviram-se os trovões.

A casa permanecia de pé. Eu tinha medo de retornar

à cozinha. Mamãe tinha medo de ficar na casa. E todos

tinham medo de tudo.

- Demos graças a Deus que estamos salvos, rezou

mamãe. E o pai e Pedro como estarão?

Destelhada em mais de metade, a casa chovia a

cântaros. Só não chovia na sala da venda.

- Jandir, te animas a ver se ainda resta alguma roupa

de cama enxuta para trazer até aqui?

Mostrando-me o “homem da casa”, afinal eu era o

mais velho, examinei o que pude. A cama do casal estava

encharcada. Só os travesseiros se salvavam da inundação.

As camas das meninas, por incrível, estavam secas.

Sobracei o que deu e, em duas viagens, trouxe até a sala da

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Page 102: Histórias do viver

frente. O quarto meu e de Gino ficava no sobrado. Olhei

para meu irmão e rimos um do outro.

- Acho que a sala é um bom lugar de dormir! Disse

eu.

- Dormir, agora? Falou mamãe. Nada disso. Vamos

ver o que poderemos fazer. Gino, pega a egüinha e vai

chamar o pai, antes que anoiteça de vez. Jandir, sobe de

vagarinho ao sobrado e vê se é possível ajeitar o telhado.

Os outros ajudem para levantar as coisas sobre as mesas e

bancos.

- Mãe, gritei eu lá de cima, impossível arrumar o

telhado. Metade dele se foi. Olhe lá no umbu: três folhas de

zinco cravadas como se fossem facas. E lá adiante, para

além do arroio há folhas de zinco espalhadas. Ainda bem

que a parte da frente está inteira. A parede que sustenta a

comieira a isolou.

Ao sair da porta da frente, percebi que a casa não

era a mesma. O degrau tinha qualquer coisa de estranho. E

então vi que o vento deslocara a casa inteira uns 15

centímetros. As vigas de madeira mantinham a casa em seu

limite sobre os pilares. Mais 5 centímetros e ela teria

desabado.

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Page 103: Histórias do viver

Não dormimos em casa. Fomos dormir no paiol. Era

mais seguro. Sofreu menos danos. As árvores que o

rodeavam protegeram-no.

Papai que vira o tufão passar pelo vale, nada sofreu

e imaginou o mesmo para nós. Quando Gino chegou

rompendo a estradinha por entre taquaras e troncos caídos,

meu pai receou.

- O que houve? Algum problema?

- Agora não, disse Gino. A casa é que sofreu. O

telhado voou. Chove por tudo. Mas ninguém se machucou.

- Então tu ficas aqui na barraca com Pedro, que eu

vou a cavalo. Chego antes.

No dia seguinte, com a ajuda de vizinhos, a casa

voltou ao lugar.

E eu, para sempre bani do meu peito, o medo de

temporal. Voltando da roça, a cavalo, eu lembro, abria a

camisa ao peito para apanhar a chuva direta, fria, linda

como lágrimas de felicidade.

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Page 104: Histórias do viver

PESCARIA NA BARRA DO PALOMA

Aquele sábado de fim de abril amanhecia cerrado,

úmido, ensopado. A neblina baixa e densa como chuvisco

só deixava a descoberto o cocuruto escuro das matas da

lombada do Uruguai. As cachoeiras da Volta do Uva

roncavam baixinho, surdamente, clamando pelo sol que

dissipasse aquela névoa. Não era porém o estrondo claro

que denunciasse chuva. O dia seria quente. A lua

minguante, quase nova, nascia como um risco de

sobrancelha tímido. Dia ideal para pescar.

Depois da chaleira de chimarrão com Ana, antes do

amanhecer, Leonel organiza rápido as fainas da casa:

- Diz ao Jandir que traga uma carroça daquela cana

já cortada e faça quatro latas de melado. Que o Pedro cuide

do pasto das vacas. Volto amanhã de manhã. Estou na

Barra do Paloma.

Ana, conformada com sua vida de casada, com suas

oito crianças, sua miséria e suas orações, pediu-lhe que se

cuidasse, que rezasse a Nossa Senhora e a Santo Antônio.

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Page 105: Histórias do viver

Olhou-o com olhos de namorada que admira a energia, a

vitalidade, a alegria de seu parceiro por uma aventura e

desejou-lhe com simplicidade “uma boa pescaria”.

Quando o Jeep Willis do dentista Frederico,

esparramando as pedras soltas da estrada parou diante da

porta, Leonel já estava pronto:

- Bom dia, bom dia! disse Frederico a dona Ana,

sem descer.

- Um chimarrão? Perguntou Leonel...

- Não, obrigado! Vamos que já é tarde. Em meia

hora amanhece.

- A Barra do Paloma deve estar baixa, comentou

Leonel, faz dez dias que não chove, os dourados devem

estar quase de cabeça de fora...

Quando o ronco do Jeep se perdeu atrás do cerro

que deriva para o rio, Ana acordou as crianças. Pedro já

trazia duas latas de água para a cozinha. Os quatro mais

velhos iriam à escola. Os outros poderiam dormir um pouco

mais enquanto ela arrumasse a casa.

Antes de tudo, porém, era preciso dar ração aos

porcos, pasto aos bois, vacas e cavalos, milho e quirela aos

pintos. Jandir já ordenhava a Boneca que, nesta época se

105

Page 106: Histórias do viver

mostrava generosa: mais de dez litros de leite à noite e

outro tanto pela manhã.

Uma caneca de leite quente, uma fatia de pão com

melado, salame e queijo e estava feito o café. Pés descalços,

uma lousa de pedra em cada sacola, uma batata doce tirada

do forno de barro para a merenda e lá se iam os quatro

barulhentos para a escola. E Ana a recomendar todos os

dias:

- Cuidado! Não briguem e nem desobedeçam à

professora.

- Tá, mãe! Os outros é que brigam, a gente só se

defende!...

Lá fora, no portão da mangueira o negro Pedro,

quinze anos taludos, ajouja os bois para trazer a cana

cortada e empilhada no dia anterior. Cana caiana grossa e

doce, de um escuro quase violeta. Varas longas de mais de

três metros que se dobram depois sobre si mesmas sem

parar de crescer, porque o Uruguai com sua cerração não

permite a geada que queima o pé da cana e da mandioca.

- Vem Alegre! Vai Rio Grande! E a junta de zebus,

imponentes como suas guampas arrastam pachorrentamente

a carroça morro acima como se ela não pesasse nada.

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Page 107: Histórias do viver

Pedro carrega. A cana arrumada, de pé sobre a

carroça, forma um volume de mais de seis metros cúbicos.

Um perigo para tombar. Pesada para arrastar da lavoura

para a estrada e da estrada para casa. Mas Rio Grande e

Alegre não se dobram. Pedro vai à frente. Fala aos bois

como se eles fossem gente:

- E então, meus amigos, quero ver se vocês são

valentes ou não! Vamos lá!...

Os bois se esticam, ajoelham na terra fofa, mas

arrancam a carroça para a estrada. As palavras estimulam,

dão mais força e lá se vai Pedro com a carroça rumo ao

engenho. E vai pensando que os bois sentem na alma

quando alguém lhes quer bem. E ajudam. Colaboram.

Obedecem. “Com a gente também deveria ser assim”.

Antes de descer o morro é preciso fechar bem o

breque, fazendo os tamancos de madeira colarem nas rodas

trazeiras. Quase travadas, elas andarão de vagar. O resto do

peso os bois seguram no pescoço.

- Devagar! Devagar! Segura Rio Grande!... E

aqueles monumentos de carne, firmam os cascos nas pedras

e agüentam o peso para a carroça não disparar.

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Page 108: Histórias do viver

Enquanto Pedro descarrega, às braçadas, a cana ao

lado do engenho, os bois pastam com sofreguidão a grama

alta e tenra, como algo merecido.

O engenho, fabricado por Leonel com ajuda do

visinho Estrenghini, - obra artesanal de quem sabe dar

conta dos instrumentos essenciais de trabalho - consiste em

três rolos de grápia, que rodam de pé, apertados entre si

em função de seus dentes de madeira engrenados e dos

sulcos da canga que mantêm os eixos de cima e de baixo

aproximados. Preso ao rolo do meio, um cambão gira

fazendo os três rolos rodarem em conjunto, espremendo a

cana que se lhes pôe no meio. A cana vai pelos rolos da

direita e retorna pela esquerda. É preciso cuidado e atenção

para que os rolos não engulam a mão com a cana. Ana

lembra sempre os exemplos dos meninos sem braço direito,

desgraçados por engenhos e pelo descuido que fez sangue e

garapa esguicharem misturados antes que parassem os bois.

Tudo a postos. Depois do almoço começa a liça do

sábado à tarde. Os bois puxam o cambão ao redor do

engenho. A garapa jorra em borbotões para a bacia de

madeira e daí para as latas. Das latas para os tachos negros

colocados e nivelados sobre três pedras grandes para

108

Page 109: Histórias do viver

permitir o fogo com três troncos grossos que se cruzam

debaixo deles. Três tachos ao mesmo tempo. E haja lenha, e

haja garapa...Duas horas de moenda, de “vamos boi” e

“cuidado com as mãos” e a garapa está toda nos tachos.

E então é cuidar do fogo, do mexer e remexer o

caldo que ferve e se evapora, para não pegar no fundo. Aos

poucos o melado está viscoso, na espessura certa, para que

caia sobre o pão como o mel de camoatim. O açúcar

moreno vem depois, suficientemente seco para não

empaçocar e que é quase uma rapadura. Quatro latas de

vinte quilos de melado, cinco latas de açúcar e está na hora

de limpar tudo, despejar o bagaço no potreiro para que os

animais aproveitem o último sumo da cana e guardar tudo

nas prateleiras do porão.

E, sem ouvir recomendações da mãe, era correr para

o arroio onde o buliço de vinte guris da vizinhança

anunciava a festa do banho. A noite caia depressa demais

para permitir mais mergulhos e brincadeiras. De alma

refeita chegava-se em casa onde a mãe, de baldes na mão

ordenava as últimas tarefas do dia: a ordenha das vacas

“Jandir com a Boneca, Pedro com a Brasina”, o pasto aos

cavalos e bois, “Gino e Irma: água e lenha para a cozinha”.

109

Page 110: Histórias do viver

O perfume da sopa de feijão com “talhadele”,

polenta fumegante sobre o “tabiel” para cortar em fatias

com linha de costurar, carne de porco dourada, molhos

cheirando a alho e cebolas com temperos da horta, salames

e saladas fez todos se apressarem.

- Gino! Comer sem rezar!? ,ataca Ana. Pelo menos

uma Ave Maria para que o pai vá bem de pescaria...

- Será que é só com reza que ele consegue pescar?,

provoca Gino.

- Sempre que vai pescar com o dentista volta

carregado de peixe, disse Ana. Pudera, ele tem todos os

apetrechos necessários!

Aquela janta era um banquete para crianças em

idade de digerir pedras. Os olhos de Pedro se iluminavam

de prazer; repetiu três vezes a sopa e depois acampou-se na

polenta e porco. Ana incentivava:

- Comam que vocês precisam ter força...

A paz caía como um chumbo sobre aquela casa.

Enquanto isso, no remanso em que o rio Paloma

encontra o Uruguai, Frederico, Leonel e Bastião acabavam

de examinar as redes: três lindos dourados beirando a cinco

110

Page 111: Histórias do viver

quilos cada um, seis piavas e oito grumatãs. Já tinham

pescado mais de cinqüenta peixes naquele dia.

- O melhor vem hoje à noite, comentou Bastião

- Impressionante, mas nem uma traíra, falou Leonel.

É verdade que o dourado é ótimo, mas não há peixe que

bata a carne de traíra.

- Se caírem alguns surubis nos espinhéis ou nas

linhas de espera a pescaria estará perfeita, arriscou

Frederico. Eu queria levar um dourado e um surubi, só para

mexer com os colegas de Erechim. Eles não sabem a beleza

que é uma pescaria!

Ao redor do fogo, os três sentados em suas cadeiras-

catre e um pelego - que é tudo o que têm para dormir -,

saboreiam com olhos reluzentes, quase infantis, o dourado

assando de vagar. Concentrados na labareda luxuriante do

fogo, suas piadas rodam por caminhos inimagináveis do

viver. Um garrafão de vinho da colônia Esperança, um litro

da “melhor cachaça da região” fabricada e trazida por

Bastião, e riem quase por nada, por qualquer motivo que

permita rir.

111

Page 112: Histórias do viver

O sininho de uma linha de espera trilou nervoso... e

foi aquele tumultuado corre-corre na escuridão. Bastião

resvala água adentro...Frederico grita:

- É na minha, e é grande...

- Comerei assado no dedo, zombam os outros.

Era um surubi. Bonito surubi. Lutou para fugir. Mas

depois de dez minutos Frederico arrastava-o para a grama.

Negro como a escuridão, as pintas brancas deixavam-no

mais preto ainda. E todos aplaudiam:

- Este merece um copo de vinho.

- Quanto quilos, Leonel?, dizia Frederico orgulhoso

de si e de sua façanha.

- Uns oito, calculo, disse Leonel, não passa de nove

e nem tem menos de sete.

- Leonel sabe das coisas, comenta Bastião. É

açougueiro. Nunca vi ele errar de cinco quilos no cálculo de

peso de uma novilha viva.

- E é o primeiro surubi, destacou Frederico.

- Mas não será o último provocou Leonel. Este rio

tem muito surubi e bem maiores do que este. Já pesquei um

de vinte e dois quilos.

112

Page 113: Histórias do viver

- Pesquei vários acima de trinta, instigou Bastião.

Surubi como este nós quase usávamos para isca.

Enquanto isso o dourado ao fogo já virava carvão.

- Tá aí no que dá a gente ficar falando à toa e

contando lorotas, disse Frederico.

- Mas nem tudo se queimou atalhou Leonel.

E apanhou um bom naco ressequido, limpou as

escamas com a faca e mascava com saboroso enlevo aquela

delícia sapecada com um bom gole de canha. Todos

comeram e acharam bom. E riram como meninos que se

agarram à infância e à felicidade de viver.

Domingo de manhã, escuro ainda, Ana acorda

Jandir e Gino, estimula-os e ajuda a encilhar o cavalo

tordilho e a egüinha baia para que, pelo menos eles estejam

na missa pela família.

São quatorze quilômetros de estrada pedrenta e

montanhosa para chegar a Rio Novo (que agora chamam de

Aratiba). É preciso apressar-se. A missa é às dez horas.

Gino, Jandir, Nelson e Olavo, em tropelias e jogos

de carreira morro acima e morro abaixo, sempre chegam

cedo à matriz.

113

Page 114: Histórias do viver

Todos sabiam que era preciso ficar atento ao

evangelho e ao sermão para poder traduzi-lo às mães

quando retornassem. Assim elas permaneciam vinculadas

ao eixo religioso de sua fé.

Finda a missa, no quiosque em frente à praça da

matriz, um, dois ou três sorvetes e voltar a galope para casa.

Galinha ao molho que só Ana sabia fazer e aipim manteiga,

e saladas verdes de “radici” fresco temperado ao vinagre de

vinho tinto e rodelas mínimas de toucinho frito com alhos e

cebolinhas e sobremesa de sagu tudo era uma festa

dominical.

- E então, o que o padre disse? Que recomendações

ele fez. E o Evangelho... de que parte vocês mais

gostaram?...

Assim os filhos iam aprendendo o quanto era

valiosa a missa aos domingos, e o evangelho e a palavra do

sacerdote que se acatava sem discutir.

- O principal da vida está aí, dizia Ana.

Leonel voltara antes do almoço. Bastião, que

morava à beira do rio, ficara com um surubi para o almoço

com seus dez filhos. Não queria mais. Uma noite dessas

jantaria uns peixes com Leonel. Frederico, apenas almoçou

114

Page 115: Histórias do viver

e partiu. Queria chegar mais cedo em casa. Só levou um

belo dourado de seis quilos e o surubi que ele mesmo

pescara na véspera.

- Leonel fará melhor proveito com os outros peixes,

dizia. Aliás, nem pesco para levar peixes. Eu gosto da festa,

do companheirismo à beira d´água e do almoço de dona

Ana.

Leonel, que aprendera dos pais e avós imigrantes

que “é um pecado jogar fora alimento”, guardava feliz,

como menino que ganhou um campeonato, o restante dos

peixes. Mais de sessenta incluindo os doze grumatãs

(corimbas7) que ninguém aprecia porque têm gosto de

barro. “É que eles não sabem prepará-los, pensava”.

De calção, sem camisa, um boné velho na cabeça, à

beira do tanque de água corrente que vem fresca das pedras

do cerro, disseca a preciosidade de sua conquista. Abre os

peixes pelo lombo, retira-lhes as entranhas e a espinha por

inteiro e contempla com prazer aquelas largas mantas que

salga e estende sobre um cavalete de madeira para escorrer.

Primeiro os dourados, os mais saborosos, os mais lindos.

Depois as piavas (vieram poucas porque não caem na linha

7 Nome popularizado de corumbatá.

115

Page 116: Histórias do viver

e dificilmente se enredam). Depois os surubis, os primeiros

a serem comidos, porque sua gordura e sua pele resistem à

salga. Facilmente estragam. Depois os corimbas dos quais

Leonel retirava com cuidado os dois filetes de barro que

trazem no lombo e sem os quais têm o gosto de piava. Os

cascudos escuros e espinhentos, mas cuja carne branca não

tem espinhos, era para a festa da criançada.

À tardinha, todos eram convocados para transportar

as mantas escorridas e salgadas para a parte superior do

sobrado, onde, em uma série de cavaletes pertinho do

telhado de zinco secavam em uma semana. Ana, num misto

de prazer e queixa notava:

- A casa toda vai cheirar a peixe.

Não era, porém, para reprovar. Era apenas para

avisar ao destino a consciência do desconforto de viver.

E ela participava, com olhos que então se faziam

mais claros, quase azuis, iluminando seu rosto cúmplice

com a conquista de seu herói pescador.

À noite, ela já sabia, ele viria, com toda a pujança

em busca de seu corpo e do delírio.

Não antes, porém, de rezar o terço depois da janta.

116

Page 117: Histórias do viver

CHOCOLATE

- Jandir, disse meu pai, pega o cavalo tordilho, um

saco de milho e um de trigo e vai depressa ao moinho do

Manoel Leite. A Ester do Estrenghini também vai. Cuidem-

se ao atravessar o rio. O vau é perigoso especialmente

depois da chuva de ontem.

Tudo foi rápido. Pedro ajudou-me. Em dez minutos

estava na estrada pedregosa que desce até o Tombador do

rio Uruguai e, então desvia para a esquerda até o passo do

rio Paloma que, entre muitos arroios tributários também

recebe as águas do Encantado, do Esperança e do Rio Azul.

Atravessá-lo a cavalo é fácil quando está baixo. A água

escorre, em suave cachoeira, com profundidade de menos

de meio metro, por cascalhos que favorecem a travessia.

Quando chove, porém, rapidamente suas águas sobem e, se

o animal não se mantiver firme nos cascalhos cai para

dentro de um poço muito profundo e longo. Era preciso

manter-se na borda de cima da cachoeira.

117

Page 118: Histórias do viver

Além do dinheiro da moagem que mamãe me

alcançara, apanhei na gaveta da venda mais dois cruzeiros,

sem pedir nem avisar a ninguém. Na venda do Valdomiro

comprei com eles uma bela barra de chocolate. Convidei

Ester com um pedaço e devorei logo a preciosidade.

Esperamos uma hora para que a farinha ficasse

pronta. Quarenta e cinco quilos de farinha era um excelente

rendimento para um saco de 60 quilos de trigo. Além disso

vinha o farelo para os leitões bem como alguma quirela do

milho. O cavalo era forte para agüentar 120 quilos de

produto e meu peso que não baixava de 40.

Chegamos, de retorno, ao passo do Paloma que

tínhamos vencido à tarde sem muita dificuldade. Agora

suas águas barrentas subiram.

- Vamos! Disse Ester.

- Vamos, disse eu para não mostrar medo nem

passar vergonha diante de uma mocinha.

Ester tinha 14 anos e eu 10.

Estava escurecendo.

Ester foi à frente, como para indicar o caminho,

mantendo as rédeas curtas de sua égua brasina, sempre na

beira de cima da correnteza. Eu fui atrás. Mas meu cavalo

118

Page 119: Histórias do viver

tinha mais peso no lombo. Imaginei dar-lhe rédeas soltas e

bater com os pés na barriga para que ele seguisse a égua.

O tordilho entrou na água. Quando sentiu que a

correnteza lhe dava acima da virilha, tentou baixar-se como

para iniciar a nadar. Ester gritou de lá:

- ele se deita!

E eu entendi:

- deite-se!

Meu cavalo quase tombou correnteza abaixo.

Um pouco de sorte, um pouco de proteção do anjo

da guarda (eu deveria cansar uma dúzia por dia), um pouco

de instinto do animal fez com que ao dobrar-me para trás,

puxasse as rédeas e o cavalo sentindo-se instigado,

aprumou-se e enfrentou a passagem. Suspirei fundo. Ester

riu.

Já na margem ela considerou:

- molhamos, no mínimo, metade da farinha.

Já era escuro quando chegamos. Mamãe esperava na

porta:

- Ainda bem que chegaram. Estava apreensiva.

Ester, você quer que Jandir te acompanhe até em casa?

119

Page 120: Histórias do viver

Ester disse que não era necessário e que ela

conhecia bem o caminho, mesmo na estradinha do mato.

Mamãe entendeu logo porque a farinha molhou.

Separou a farinha seca da molhada. Com esta propôs fazer

logo uma fornada de pão a mais e usá-la em primeiro lugar.

Enfim, tudo parecia estar no devido lugar. Nem tudo,

porém.

Valdomiro era muito amigo de meu pai. E à

tardinha quando se encontraram, compadres que eram, e

zelosos ambos pela educação dos filhos (Valdomiro tinha

16), ele contou a papai a história da barra de chocolate:

- Não quero intrometer-me na vida do compadre e

de seus filhos, mas acho que tenho obrigação de avisar

(gostaria que fizesse o mesmo com meus filhos) que Jandir,

cada vez que vai ao moinho, pára aqui na venda e leva uma

barra de chocolate. Eu ganho com isso. Mas, não sei se ele

tem autorização tua ou se o dinheiro é dele. É apenas por

amizade.

Papai agradeceu sinceramente.

Antes da janta, mamãe sussurrou-me perto do

fogão:

120

Page 121: Histórias do viver

- Que é aquilo das barras de chocolate? Prepára-te

para a surra. Valdomiro contou tudo ao pai.

Sentamos à mesa grande no canto da sala com seus

dois bancos de madeira encostados à parede em L, e

jantamos como se nada houvesse. Excelente sopa de feijão,

saladas, polenta com galinha ao molho, arroz, feijão,

pimentões... Eu já não tinha fome, olhando sempre para o

cinto dependurado na parede em frente, como se fôra o

símbolo da autoridade do pai e o tormento para nossas

traquinagens.

Terminada a janta com calma papai falou:

- Jandir, (eu tremi nas bases), vem cá ao meu lado.

Eu queria mesmo conversar contigo.

E iniciou, com a calma que eu nunca vira em sua

fala:

- Você sabe que, somos pobres, muitas bocas e

necessidades, mas a gente luta para dar conta como pode.

Muitas vezes, na roça, passo a manhã inteira sem tomar

água para não interromper o trabalho e ir até a fonte beber.

Fica longe. E vocês estão na escola. E é preciso que vocês

estejam na escola e aprendam um pouco para viver. Mas

121

Page 122: Histórias do viver

um pouco de sacrifício faz parte da vida. E eu o faço por

vocês.

Eu não imaginava, olhar atento, medroso, confesso,

por onde iria chegar ao assunto...

- Quando, porém, alguém está doente, fraco,

anêmico,- continuou ele,- é preciso dar mais atenção,

reforçar a alimentação também.

Eu me sabia forte como um tourinho... onde é que

ele quereria chegar?

- Assim, prosseguiu ele com serenidade, se você se

sentir doente ou fraco, pode pedir um chocolate que a gente

se esforça e consegue. Está bem?

Nada mais falou. Não bateu. Não ralhou como seria

de esperar e era de seu costume. Minhas pernas afrouxaram.

Sentei-me no banco sem balbuciar sílaba.

Entendi. Foi muito mais forte e eficaz do que ter

levado uma surra. Quem ensinara a meu pai tanta

pedagogia?

122

Page 123: Histórias do viver

A MUDANÇA

O caminhão encostou de ré na porta superior do

sobradinho de madeira em que morávamos no Pinhão..

Pertinho da Igreja. Eu tocava o sino. Seis da manhã,

meio dia e seis da tarde. Todo vale ouvia e parava para a

Ave Maria. O ritual e o som do sino enchia a vida dos

velhos, jovens e crianças. Era o ritmo da vida. Sentia-me

importante. Como se todos obedecessem ao gesto de

minhas mãos.

E havia o toque de agonia, de falecimento – batida

única, espaçada, triste -, de convocação para o terço e a

missa – eram três vezes de badaladas soltas e uma de

repique para indicar que a cerimônia já ia começar. Os

meninos de minha idade invejavam, ajudavam,

atrapalhavam e o padre reclamava da desordem.

Agora, era a mudança.

Iríamos morar no Bentevi. 14 quilômetros

Esperança a baixo, na Barra do Encantado. Pertinho do

Uruguai. Papai conseguira comprar pouco mais de 15

hectares, com um armazém na mesma casa de moradia, por

4 contos de réis. O amigo Rech emprestara-lhe o valor, de

123

Page 124: Histórias do viver

boca, para devolver em 3 anos, pagando 8 por cento de

juros ao ano. Era pouco. Mas dava para recomeçar a vida

depois que um parente safado lhe negara a dívida de 28

contos de um empréstimo que deveria ser honrado com o

fio do bigode. Não contava que os tempos mudavam.

Muitos raspavam a barba e o bigode. Entre cobrar a dívida

a bala ou recomeçar, mamãe aconselhara a recomeçar. Ela

ajudaria. Deus abençoaria. Ele tinha muito mais a dar.

Ameaçava chover. Papai encarregou um peão

amigo, Bastião, para que, comigo, tropeasse as poucas rezes

que tínhamos (três vacas de leite, uma junta de bois

mansos, dois terneiros e 3 cavalos) até o Bentevi. Que não

esperássemos a chuva. Eles iriam depois.

Mal estávamos no alto do cerro que dá para a linha

Esperança e desabou a chover. Andávamos de vagar.

Chegamos, quase noite. Ensopados de corpo e alma. Eu

tiritava de frio.

Abrigados no porão alto da casa que servira de

garagem a um caminhão, Bastião, expedito, pôs logo ordem

nas coisas. Trocou um dos dois litros de cachaça que trazia

por dois bons feixes de canas de milho com as espigas bem

granadas. As canas e as palhas eram para as vacas e

124

Page 125: Histórias do viver

terneiros, as espigas eram para nós. Os bois e cavalos foram

soltos no potreiro.

O vizinho Cauduro veio dar-nos boas vindas e

trouxe salame feito por ele e um pão de forma. Em troca

levou dois baldes de leite. Ficamos com dois litros para

jantar. Ordenhadas, as vacas e terneiros foram à estrebaria.

Um fogo bem no meio da garagem, para evitar

incêndio. E a janta: espigas de milho assadas nas brasas,

pão novo e fofo como carinho de mãe, salame com gosto

forte de pimenta e noz-moscada, e leite ainda morno. Era

um banquete.

Nossas roupas secando ao fogo, eu olhava para as

labaredas tão amigas, tão familiares e aconchegantes e

aquecia o coração na espera da mudança que não chegava.

- Eles não virão hoje, chove demais, disse Bastião.

- E onde vamos dormir? Perguntei. A casa está

vazia.

- No quarto grande, aqui ao lado, no porão, tem

palha seca de milho, falou ele, piscando um olho como um

convite à superação do medo.

Um pelego sobre as palhas foi a mais fofa cama que

o menino de 8 anos poderia desejar.

125

Page 126: Histórias do viver

O PORCO É A SALVAÇÃO DA LAVOURA

- A gente cansa de trabalhar e não ganhar nada. É

que nós colonos somos muito burros, dizia a Leonel o

vizinho Estrenghini. No ano passado o trigo rendeu muito

bem: um saco de trigo Fontana produziu mais de quarenta,

meio saco de pelado me deu 32 sacos na trilhadeira. Mas na

hora de vender é que a gente vê a exploração. O preço

baixou a quase metade do ano anterior. Resultado, ganhei

menos do que no outro ano e as mercadorias que a gente

compra sobem, sobem e não param de subir... Temos que

encontrar outro caminho.

- Eu já tenho outro rumo para este ano, replicou

Leonel. Vou engordar porcos. Os Locatelli, os Buttini

foram muito bem vendendo porco gordo para os frigoríficos

de Concórdia, ali em Santa Catarina. Comprei os dois

alqueires8 de mandioca de 3 anos do Nelson Danner9,

8 O alqueire de referência de Leonel é 2,43 hectares.9 Em regiões muito frias, a mandioca deve ser arrancada a cada anoporque o gelo mata o pé. Na costa do rio Uruguai, porém, a neblinaimpede a formação de geadas, permitindo que a cana de açúcar e amandioca possam continuar crescendo por 2, 3 ou mais anos.

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Page 127: Histórias do viver

plantei mais 4 alqueires de milho, batata doce e abóboras

tenho de sobra, alguns sacos de soja e está feita a

alimentação para cento e vinte ou cento e trinta suínos.

Logo depois de outubro comprarei uns 150 porcos magros,

de preferência duroc. Vou tentar.

- Quem sabe não esteja aí a salvação da lavoura,

como dizem os políticos na hora dos votos!, acrescentou

Estrenghini.

- Especialmente aqueles que nunca trabalharam e

que pregam a policultura, isto é um pouquinho de cada

coisa (trigo, milho, arroz, batata, galinha, uns porquinhos,

uma vaca de leite...) e que mantém a gente sempre pobre e

na miséria, disse Leonel. Eu quero concentrar o fogo no

porco. Se a sorte me ajudar e o preço não cair na hora da

venda, acho que vou me safar bem. É lógico que as galinhas

e os ovos sempre desapertam para comprar um carretel de

linha, um quilo de sal, um metro de chita. Uns sacos de

trigo para o pão, o milho para a polenta sempre haverá.

Mas, pra vender, terei porco gordo.

Enquanto falava, entre uma baforada e outra de seu

palheiro com o fumo especial de Sobradinho, os olhos de

Leonel quase se fechavam. Vislumbravam os caminhões

127

Page 128: Histórias do viver

que encostariam no chiqueiro carregando suínos já antes do

inverno. Escutava os guinchos agudos da porcada que

resistia a ser encantonada e arrastada para a viagem. E o

controle no pêndulo da balança e na anotação dos pesos

porque os comerciantes são rápidos e espertos em suas

contas.

No início de novembro, com as tábuas de duas

enormes grápias arrastadas desde o fundo da roça por três

juntas de bois e entregues aos Berticelli para serrar a meia,

Leonel arrumou e ampliou o chiqueirão. Assoalho a um

metro do chão para permitir a limpeza, cochos compridos

ao redor de toda a parede e estreitos o suficiente para

apenas permitir ao porco comer e beber e não deitar-se nele

sujando o alimento e a água corrente. Uma aba de telhado

para proteger do sol. Tonéis de aço de duzentos litros para

cozinhar mandioca (crua pode matar) e batata misturadas ao

milho e soja. Tudo para evitar o improviso.

Domingo à tarde, depois do terço na capela,

enquanto jogava um quatrilho na venda do Valdomiro,

buscou informações de quem teria porcos magros para

vender. Soube de uma dúzia de vizinhos nas linhas

Esperança, Encantado, Volta do Uvá, que tinham alguns.

128

Page 129: Histórias do viver

Evitou o assunto, camuflou seu interesse. Despertaria a

cobiça.

Segunda feira, antes do sol, já apeava de seu cavalo,

em frente à casa de Minela, lá na Volta do Uvá:

- Ei, seu Carlos, ainda temos chimarrão, ou a água

terminou? Foi gritando espalhafatosamente Leonel.

- Chegue,..Chegue no mais, amigo, que o chimarrão

recém foi encilhado! Mas... a que devo o prazer desta

visita? Vejo que também por lá o sol nunca pega ninguém

na cama...

Depois das introduções, da narração entusiasmada

da última pescaria, cujo troféu (um belo dourado de 12

quilos) pendia sobre o fogão a lenha para secar... depois das

notícias sobre a próxima festa do padroeiro e das carreiras

vindouras, entraram logo no assunto:

- O senhor tem algum porco magro que queira

vender...iniciou Leonel.

- Pois olha, não tinha pensado, mas tenho alguns

capados que posso vender.

- E o preço? O gordo está valendo um e vinte.

- Vendo pelo mesmo preço. Vendo doze.

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Page 130: Histórias do viver

- Sem pechincha. Feito o negócio. Postos lá em

casa... pode ser amanhã à tarde? Tenho balança. Pago na

hora, terminou Leonel.

- Combinado.

Numa semana lá estavam 165 porcos, magros,

esquálidos, ossudos, mais feios que a tuberculose. Nenhum

parecia doente. Mas, por via das dúvidas, Leonel aplicou-

lhes uma semana de dieta de milho e abóboras cruas:

“semente de abóbora é o melhor vermífugo”.

Quinze dias depois a pele deles começou a alisar-se

os ossos a esconder-se e a gritaria por comida a aumentar.

Dois meses depois não pareciam os mesmos. A

maior parte do tempo permaneciam deitados. O peso

triplicou. Leonel mostrava satisfeito o resultado para os

vizinhos.

- Mais vinte dias e estarão prontos. E o preço está

bom, comentava. O filho mais velho, acompanhado pelos

avós que retornavam para Jacarezinho, iria para o internato

em Tapera com duas mudas de roupa numa sacola

improvisada de uma fronha. O dinheiro para comprar suas

roupas e pagar a pensão iria logo depois da venda dos

porcos. Afinal, as coisas começam a mudar.

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Page 131: Histórias do viver

Passou-se um mês. Quarenta e cinco dias. E, para o

filho, nem uma notícia de casa. O inverno chegava.

Dinheiro não veio. A aflição do fê-lo escrever a terceira

carta. Uma semana depois a resposta a lápis, papel de

embrulho, poucas linhas. Quase um telegrama:

- Meu filho, não esperes dinheiro. Os porcos

morreram todos. Foi a peste. Perdemos tudo o que

investimos. Mas, fazer o quê? Deus há de providenciar.

O frio daquele inverno foi menos frio e dolorido do

que saber da tristeza e desilusão do pai que pensou que a

“o porco fosse a salvação da lavoura”.

CANCHA RETA

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Page 132: Histórias do viver

Cinco da manhã. Final de abril. Ainda escuro. Os

galos do vale respondiam uns aos outros as provocações de

seus qui-qui-ri-quiiii...A lua cheia descambava atrás do

morro do velho Germano. Os olhos adivinhavam os vultos

das casas, árvores e animais do vale. A serração do

Uruguai se adensava e molhava como chuva fina.

- Jandir, chamou Ana, de sua cama, no andar de

baixo do sobrado de madeira.

Fingi que não ouvi. E, olhos abertos, degustava o

morno acariciante da cama.

- Jandir, insistiu ela.

- Âhhhh... espichei eu.

- Levanta que é quase dia e é preciso encontrar e

trazer a vaca!

Boneca, a vaca holandesa de estimação, prenhe e

chegadinha, como dizia meu pai, não viera à mangueira

aquela noite como de hábito. Deveria ter parido abrigando-

se em algum caponete lá nos fundos do potreiro. Se o

terneiro mamasse seria um trabalho dobrado desmamá-lo

depois. Por isso papai, depois da janta, recomendou que,

132

Page 133: Histórias do viver

antes do clarear do dia a Boneca fosse encontrada e

conduzida à estrebaria.

A egüinha baia estava perto da porteira. Uma espiga

de milho, o bucal, e lá fui eu, em pelo, à cata da holandesa.

Atravessei o arroio, chamei, percorri a cancha de

corridas de cavalo que se estendia ao fundo do potreiro por

duas quadras, formando dois sulcos retos, paralelos, 30

centímetros de profundidade e lá, depois do partidor

encontrei a Boneca lambendo seu lindo e desajeitado

bezerrinho.

Foi fácil encaminhá-la para casa.

Mas, guri de 10 anos, não me contive. Passar pela

cancha reta sem dar um galope na egüinha era demais!

Voltei. Afastei o gado, que estava deitado ou

pastando, para longe da cancha. Fui até o partidor.

Enquadrei a baia. Puxei-a no buçal para prepará-la. E, com

um aceno largo de braço e o grito de guerra “brrrr.... “ que

ela bem conhecia, dei-lhe rédeas e apertei os calcanhares.

Era um gozo inebriante, quase orgástico, sentir a

égua encompridar-se baixinha no empenho de correr

desabridamente.

133

Page 134: Histórias do viver

Inclinado para frente, quase deitado sobre seu

pescoço, para não oferecer barreira ao vento, a serração

fresca e molhada lavando a cara e eriçando o cabelo, eu

vinha confiante e feliz no lombo da minha baia.

Vencida mais de metade da raia, porém, de súbito,

eis que surge, logo ali, a metros de distância um vulto

humano parado no meio da trilha em que eu vinha.

- Um louco, pensei.

E, num relance, no golpe de vista mais rápido que já

fizera, instintivamente, confiando absolutamente na

capacidade e na docilidade de minha montaria, puxei a baia

para a esquerda, jogando na mesma inflexão todo o meu

peso para arrancá-la da pista.

Seria possível? Naquela velocidade? A cabresto?

Tudo faiscou como um relâmpago na minha mente.

Só restava tentar o impossível. Apoiei a mão direita

bem na direção da junção das patas dianteiras e na hora em

que elas batiam firmes no chão, levantei meu corpo,

tentando liberar a égua do peso do para o próximo pulo...

E a baia conseguiu. Saltou para fora da raia. Três

longos pulos em roda. E estacou. Eu, os braços em volta de

134

Page 135: Histórias do viver

seu pescoço, dei uma volta completa sobre ele e voei

derrapando sentado pelo gramado úmido.

Não me machuquei. O susto, porém, foi grande.

A egüinha permanecia estática, à espera., como que

a dizer: “eu não fui a culpada, eu fiz o que pude”.

No meio da raia, boquiaberto, petrificado como um

fantasma estava o negro Pedro.

- Que fazes aí, animal! Resmunguei. Não viste que

eu vinha?

- Ouvi a zoada, balbuciou, e fiquei curioso. Nem me

dei conta que estava no meio da trilha. Eu vinha pegar os

bois para a carroça.

Os quero-queros pareciam mais furiosos aquela

manhã.

Não falei nada a ninguém.

135

Page 136: Histórias do viver

EU VI DEUS

Noite clara de lua. Final de novembro. Mês dos

finados. De todos os santos. Ninguém de aniversário. Uma

brisa suave e fresca espantava o mormaço daquela tarde.

Voltava da costa do Uruguai em minha egüinha

baia. Fora levar uns recados de negócio que meu pai

mandava para os Deval.

Marcha solta e serena. Rédeas frouxas na mão. As

cachoeiras do rio ressoando suave e plenamente na

amplidão da cabeça. Grilos eufóricos. Pirilampos em

miríades salpicavam os campos e as lavouras de luzes

infantis.

Eu vinha pensando em nada. Simplesmente sentido

o frescor da noite e admirando minha egüinha, de pelo cor

de ouro e sol, um baio doirado, lourice de animal. Tão

rápida, tão mansa, tão prestativa. Ela e eu nos entendíamos,

pela voz, pelo gesto, pelo contato de pernas, calcanhares,

pelo olhar. Bater nela? Sofrená-la? Para que? Não era

necessário. Bastava insinuar e ela correspondia.

136

Page 137: Histórias do viver

Vencera os potreiros e as roças dos Filbert, a curva

fechada da sanga dos Locatelli, estava no plano aberto e

alto dos Berticelli. De um lado a cerca do potreiro limpo do

Esperandio, com gado pastando, do outro a lavoura de

mandioca de Ranner, tudo iluminado pela lua cheia.

Quando, ao final daquele altiplano, a estrada

iniciava a descer para a minha casa, uma surpresa. Bem no

meio da estrada, a uns três metros alto do chão, com

aquelas barbas e vestimentas brancas que aparecem na

primeira página da Bíblia, estava Deus, de braços abertos.

O rosto, os braços largos, as vestes, os pés quase

transparentes, eram tais e quais.

Gelei.

Como a baia não parasse, nem desse sinal algum de

estranheza, o que ela fazia sempre empinando bem as

orelhas, freei.

Olhava para aquele Deus a me esperar. Fugir?

Desviar? Sem chance.

Agarrei a minha vida de guri de 10 anos com as

duas mãos da consciência. Examinei-a pelo lado direito e

pelo avesso, e pensei: Ele vai me pedir contas dela. Pensei

em todos os pecados que eu poderia ter, desde as mais leves

137

Page 138: Histórias do viver

às mais endiabradas traquinagens. Fiz um ato de contrição.

Pedi perdão e suspirei.

Parado, tartamudo, esperei.

Mas aquela figura não se mexia. Não avançava. Não

recuava. Não se elevava. Não baixava. Tremendamente

fixa, à minha frente.

Depois de um tempo, que me parecia infinito em

minha pressa de menino para sair do impasse e chegar em

casa, resolvi agir: vou passar, aconteça o que acontecer.

Segurei a egüinha no freio para ver se ela percebia

alguma coisa. Mas suas orelhas davam sinal de nada.

Certamente, raciocinei, os animais não são capazes de ver e

entender a Deus...

E então, lentamente fui passando, passando...

Ao passar, estaquei e dei, por dentro de mim, a

risada mais gostosa de muito tempo. Em silêncio, para que

a baia não risse de mim.

Lá à frente estava a lua cheia. Em volta dela uma

pequena e solitária nuvem branca. A lua e a nuvem

projetadas sobre os galhos de um loureiro à beira da

estrada, faziam a imagem do Deus Pai criador e juiz do

mundo.

138

Page 139: Histórias do viver

Não me conformei. Voltei. Queria ver se era

verdade.

E lá estava desenhada a figura de Deus, de braços

abertos, vestes brancas esvoaçantes. Tal e qual.

Fui rindo até em casa. Rindo de mim e rindo de

nosso vizinho que, alguns dias antes, dera um tiro numa

folha de bananeira que balançava ao vento e nela ele vira a

cara, o corpo, a mão e arma de um bandido.

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Page 140: Histórias do viver

QUADRA E MEIA EM CANCHA RETA

Sábado à tardinha. Final de janeiro. O grupo de

sempre na venda de meu pai em Bentevi. Quinze homens

conhecidos, reconhecidos e até amigos das vizinhanças.

Dois grupos de quatro jogam “nove” numa atenção

solene como se disso dependesse o destino de suas vidas.

- Peço uma carta...

- Eu não quero carta...

- Eu estou fora...

E espreitam as cartas, leque quase fechado na mão,

olhos miudinhos, cerrados para a alta concentração... e

mostram o resultado:

- Eu tenho sete

- Eu tenho um quatro, um cinco e uma velha...

melhor que este nove só este nove.

E riem, garganteiam e provocam:

- Desconheço galo que cante no meu terreiro.

Entre um trago e outro de canha com Bitter, Bastião

levanta a voz pedindo atenção:

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Page 141: Histórias do viver

- Domingo, daqui a 15 dias, tem carreiras, lá na

minha várzea...

- Que carreiras estão atadas? Pergunta Alcides.

- Temos várias carreiras: O cavalo do Cauduro com

a égua do Estrenghini. Esta é a principal. É pra levantar

poeira e apostas. Depois tem o cavalo do Minella com o do

Berticelli; o meu zaino com o potrilho do Deval e outros

matungos mais.

- Matungo por matungo, gritou Pedro Deval eu

desafio qualquer um para uma corrida a pé. E em quadra e

meia, com apostas, juiz e tudo o mais. Jogo um churrasco

encilhado pra 15 pessoas com bebida e sobremesa.

A estranha proposta causou estupefação...

Todos se entreolhavam. Ninguém se propunha a

enfrentar a aposta. Ninguém arriscava, considerando a fama

de corredor que Pedro tinha.

Leonel, oitavado no balcão, uma toalha atirada

sobre o ombro esquerdo, coçou o queixo e lascou:

- Eu gosto de comer churrasco, especialmente se é

de graça. Se ninguém se anima, eu aceito o desafio.

Todos pararam e se voltaram para Leonel com um

misto de estupefação e de dúvida: ele deve estar brincando!

141

Page 142: Histórias do viver

Como, porém, a fisionomia dele estava impávida e resoluta,

entre risos que não se sabia se eram de pena ou de

encorajamento, todos bateram palmas.

- Isto mesmo, Leonel. Eu conheço tuas corridas

atrás das lebres e veados por estas canhadas. Aposto em

você, compadre, disse Valdomiro.

E toda a atenção, até noite adentro se voltou para a

estranha corrida que se atara para dali a 15 dias. Seria na

cancha reta do Bastião.

Depois dos trabalhos da lavoura, ao escurecer,

durante dez dias Leonel treinou-se na cancha dos fundos do

potreiro.

Sábado ao meio dia, véspera da corrida, Leonel já

estava com a mercadoria sobre a carroça para armar a copa

no outro lado do Uruguai: 20 caixas de cerveja, 10 de

gasosa, um barril de cachaça, Bitter, framboeza, e biscoitos,

rapaduras e um saco de pães grandes, fofos, feitos por Ana

e outras miudezas.. A carne do churrasco Bastião

providenciaria.

Antes do escurecer a ramada para a copa já estava

armada. Palmas de coqueiro por cima, uma tábua para

142

Page 143: Histórias do viver

balcão em toda volta, um tonel de gelo mergulhado na

serragem, que veio de Erechim, para refrigerar a bebida.

Agora, era descansar sobre um pelego, ouvindo o

som do Uruguai na cachoeira a duzentos metros dali,

esperando o momento de mostrar como é capaz de correr

um trabalhador calejado de 40 anos.

O dia amanheceu devagar. O sol esforçava-se para

infiltrar-se e dissipar um pouco, aos pedaços, o lençol denso

de neblina baixa que amordaçava e molhava prometendo

um dia quente e abafado. Do meio da serração, como

fantasmas, surgiam de toda parte cavaleiros de chapéu

grande esporeando valentemente suas montarias.

Quando o sol conseguiu varrer a neblina, impôs-se a

rachar. Não eram 11 horas, a canha rolava solta, as vozes

cresciam de entusiasmo, os meninos apostavam carreiras

com seus petiços...

A primeira corrida oficial, às 11 e meia, seria a de

Pedro e Leonel, pés descalços, em quadra e meia. Depois a

areia estaria demasiado escaldante para correr a pé.

As apostas eram uma festa: “jogo dez no Leonel e

dou um metro de vantagem”; “aposto vinte no Pedro e dou

dois metros de luz”; “aposto 50 no Leonel nos primeiros

143

Page 144: Histórias do viver

cem metros”... Uma pessoa de confiança para ambos ficava

com o valor das apostas para pagar no resultado.

Onze e quinze e já estavam os dois no partidor.

Germano era o juiz da largada. Um tiro de revólver era o

sinal. A multidão se espremia na cabeceira da pista. O juiz

Estrenghini auxiliado por Alfredo procurava afastar a todos,

“pelo menos dois metros... por favor... pelo menos dois

metros da raia”.

Germano, revólver para cima:

- O pé atrás da linha... E é um... é dois.... e buhm...

- E lá vieram, gritou Alfredo e todos gritaram.

Pedro pulou na frente. Leonel não se importou:

- Corrida curta é pra petiço, gritou...

E apertou o passo.

Aos 50 metros vinham juntos, parelhos, orelha a

orelha,... até o cem metros. Leonel tenteava os passos de

Pedro para verificar se era tudo o que ele podia dar. E então

reuniu todas as ganas de guri que ainda moravam em seu

peito e suas pernas que acompanhavam os veados,

distanciou-se um, dois, quatro metros... E manteve o ritmo.

Um riso grande misturado com suor e esforço iluminava

144

Page 145: Histórias do viver

sua façanha. E assim, debaixo de um vozerio infernal de

torcedores cruzaram a linha de chegada.

Erguido nos braços pelos companheiros, no delírio

de sua vitória, Leonel lembrava de sua cançoneta preferida:

“... oi que cavalo bom!...”

As outras carreiras, foram retardadas para o final do

dia para que o sucesso da primeira não ofuscasse o brilho e

a importância das principais.

Ao retornar, sol já posto, nenhuma garrafa cheia, na

travessia do rio, quase lhe cai a carroça da barca. Esqueceu

de calçá-la. E não era para esquecer?

145

Page 146: Histórias do viver

VERDADES DE PESCADOR

- É verdade! Dizia, com convicção, Joanin aos

compadres Leonel e Luiz. É a pura verdade! Vocês não

acreditam? Pensam que eu sou mentiroso? É um desaforo!

- De forma nenhuma! Retrucou Leonel. Onde é que

se viu pensar que nós possamos desconfiar de ti, Joanin? É

que ficou tão engraçado que até parece impossível. Mas,

toma lá o chimarrão, que eu vou contar também o que me

aconteceu. Quando eu ri, é porque me lembrava disso.

Antes, porém, de Leonel falar, sentados à sombra

frondosa do cinamomo-sombrinha, em frente à casa, os três

compadres fizeram um pacto entre si. Cada um poderia

contar o que de fato lhe aconteceu, e, por mais

extraordinário que fosse ou parecesse, ninguém poderia rir-

se ou por em dúvida a palavra do outro.

Ana, que encaminhava umas costuras na saleta ao

lado e que escutara o pacto dos três, debruçou-se na janela

dizendo:

146

Page 147: Histórias do viver

- Eu também quero ouvir. Em seu olhar risonho,

confiado e matreiro estava toda a aposta do mundo...

- Então, eu começo, disse Luiz, ajeitando a palha de

milho atrás da orelha e, pernas dobradas, ia picando o fumo

amarelinho na palma da mão.

- Foi no ano passado. Fomos pescar, um pouco

abaixo das cachoeiras do velho Bastião. O tempo estava p

´ra chuva. A pescaria prometia. Fomos quatro: O Bépi, o

Tonhon, o Alfredo da Joana e eu. O fogo, na clareira do

caponete logo acima da barranca e o poço fundo à nossa

frente. Nem esperei o mate que Alfredo me oferecia:

primeiro as linhas, logo vai escurecer.

Enguliu a saliva para marcar a seriedade do que

viria:

- Tomei a linha mais grossa, que parece um sovéu

de 80 metros de comprimento, engatei nela o maior anzol

que mais parecia um gancho de dependurar carne em

açougue, espetei nele um muçum inteiro de quase meio

metro como isca, segurei a linha em rodilhas na mão

esquerda, rodopiei três vezes a ponta sobre a cabeça, como

quem laça, e joguei. Escutei o “blum....”, lá no meio da

água funda. Deixei correr um pouco para que o anzol se

147

Page 148: Histórias do viver

situasse no fundo e estiquei para sentir o puxão do surubi

das profundezas. Enlacei duas vezes e amarrei bem a linha

num ingazeiro de três metros de altura e dez centímetros de

diâmetro.

E ficou parado, atento, como se escutasse aquele

ruído:

- Agora sim, prosseguiu. Puxei uma pedra e sentei

perto do fogo para o chimarrão. Ali ficamos... Palheiro,

canha e rapadura... Até pouco mais da meia noite. Nas

linhas, nem um beliscão. Nada. Só mosquitos a ferroar as

costas. E então, eles também pararam. Os sininhos quietos.

- Acho que perdemos a viagem, disse Tonhon.

- A noite é escura e sem lua, o peixe grande só anda

à cata de comida na madrugada, atalhei. E eu só quero

peixe grande.

E continuou, olhar perdido na narrativa:

- Alfredo riu, espichou-se num pelego e roncou em

seguida. Bépi, três linhas na mão, no alto da barranca

esperava qualquer sinal.

- E então, acrescentou, em suspense, a minha linha

esticou, um puxão, dois puxões e a disparada do animal que

fez os galhos do ingazeiro baterem n´água.

148

Page 149: Histórias do viver

- Oigaletê, gritei aos pulos para o lado da barranca.

- Pus a mão na linha. Esticada como corda de

violão. Só que a música era diferente. Sentia a corrida do

peixe para um lado e para o outro no fundo do poço. Tentei

puxar. A força dele era maior. Tentei uma, duas, três vezes

e nada. E então pensei:

- Cansarás, danado! A linha é grossa e o ingazeiro é

forte.

- De repente a linha afrouxou. Fui recolhendo

rapidamente e senti que o surubi, - só podia ser surubi e dos

grandes -, vinha para o meu lado. Aproveitei para enrolar a

linha recolhida no tronco. Deixei sempre um pouco de folga

para o caso de ele se atirar em fuga e, no tirão, não estourar

a linha. E assim, aos tironaços e às chegadas, fui cansando

o bicho. Quando o sol apareceu, eu ainda lidava com o

peixe que andava de cá para lá, quase à flor da água. Cada

volta que dava provocava um redemoinho no poço.

Assim fui, eu cansando e ele cansado até às 10 da

manhã.

Leonel e Joanin disfarçavam o riso, mordendo os

lábios e Luiz presseguia:

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Page 150: Histórias do viver

- Foi então que, no desespero final, e sentindo que

não conseguia fugir para o largo nem para o fundo, o peixe

enveredou para o cascalho da barranca. Quando aquele

enorme peixe saltou em terra, montei no lombo dele e

segurei-o pelas orelhas. Compadres: queee pinotes!

Leonel e Antônio escutavam. Olhos vivos de guris.

E lá no fundo do olho, um risinho maroto com vontade de

vir à tona. Mas fora proibido pelo pacto. Ninguém poderia

duvidar.

Antônio partiu para outra:

- Não vou falar de pescaria. Vou contar um fato que

me aconteceu no ano passado. Vocês sabem que eu gosto

de caçar. Minha espingarda 16, de dois canos, dependurada

atrás da porta, está sempre carregada para a eventualidade

de aparecer um veado perto das casas. Aliás, eu gosto muito

de bichos, mas caçar é outra coisa. Senti muito quando a

gata angorá que vinha em cria, desapareceu de casa.

Certamente escolhera um lugar sossegado para ter seus

filhotes.

- Mas voltemos ao assunto, continuou. Certa manhã

de domingo, por volta das 11 horas ouvi meus dois

cachorros levantando uma corrida de veado, lá no alto, na

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Page 151: Histórias do viver

roça de milho perto do mato. Sabia que o veado acossado

viria direto para o arroio. Assim, apanhei a espingarda e

corri para perto das lages abertas que dão para o poço onde

a gurizada sempre toma banho.

E se fez enfático:

- Dito e feito. O veado vinha quase 50 metros à

frente dos cachorros. Quando chegou às lages parou para

atirar-se à água. Levantei a espingarda e disparei os dois

canos. Compadres: era só gata e gatinhos voando pelo ar!

- Mas como é possível? Reclamou Joanin, a gata

dentro dos canos?

- Eu também não te perguntei como seguravas o

peixe pelas orelhas, retrucou Luiz.

E, em silêncio, fingiram não rir. Não se podia

duvidar.

Leonel, torceu-se na cadeira, passou um chimarrão

para Luiz, esfregou o queixo e a nuca e começou:

- Meu caso é diferente. Nasceu de uma necessidade

real que eu tive.

E iniciou:

- Há pouco mais de um mês, estava em casa

sozinho. Ana fora à cidade e só voltaria à noite. As crianças

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Page 152: Histórias do viver

foram para a casa da avó e voltariam no dia seguinte.

Estava só, eu e meus pensamentos. Digo melhor, eu e a

necessidade de preparar algo para comer no almoço.

Deu uma longa tragada em seu palheiro:

- Não havia carne em casa. O charque tinha

terminado. Os salames do porão e os toucinhos também.

Não queria matar uma galinha porque eram poucas e

forneciam os ovos.

- Como se fosse verdade, cortou Ana, lá da janela.

- Você não está na conversa e nem no pacto que

fizemos, retrucou Leonel.

- Está bem. Escutarei em silêncio, concluiu ela.

- Pois bem, continuou Leonel, lembrei que eu

poderia caçar um marrecão no banhado bem pertinho de

casa. Peguei minha espingardinha 36, de um só cano. Só

tinha uma bala. Mas, para quem se garante na pontaria, uma

bala é o que importa.

E olhava para os colegas como pedindo

confirmação:

- E lá fui, em direção ao banhado, por dentro de um

caponete sujo. Pé ante pé. Não poderia assustar a caça.

Todos sentiam o caminhar na ponta dos pés:

152

Page 153: Histórias do viver

- Foi assim que, numa clareira de aguapés, a 10

metros de mim apareceu o primeiro e lindo marrecão.

Levantei o cano de vagar. Mirei... Emartilhei... Antes,

porém, de disparar, vi, logo adiante outros dois e maiores.

Mudei a mira para eles. Enquanto, fazia isso, porém, pisei

em falso num galhinho seco e ele estalou e quebrou.

Seus olhos pararam como a esperar o estalido:

- O ruído espantou minha caça. Eram 12 lindos

marrecões que decolaram e, em revoada passaram por sobre

o banhado e vieram altos, sobre mim. Um ao lado do outro.

E ao fazerem a volta ficaram um acima do outro.

Enfileirados. Não tive dúvidas, apontei e atirei. A bala

certeira derrubou os 12.

- Os doze? suspirou Luiz!

- E eram grandes, prosseguiu entusiasmado Leonel.

E ao caírem em tumulto sobre os galhos secos de uma

árvore, o galho se partiu e bateu no chão. Pois,não é que, ali

estava dormindo uma lebre!? O pau caiu bem na cabeça

dela... No estertor de morte a lebre saltou longe e bateu no

meu peito... Caí na água... Compadres: saí da água com os

bolsos cheios de peixe.

Minha mãe gargalhava... Mas era proibido duvidar.

153

Page 154: Histórias do viver

O AMOR VEM DEPOIS

Leonel saiu cedo de Campo Novo, interior do já

município de Fontoura Xavier, perto de Soledade. Veio,

com seu caminhão velho de puxar pinheiros para a serraria,

até a encruzilhada da estrada que, de Soledade, vai a

Encantado, por Arvorezinha. Encostou frente a casa de um

agricultor que apareceu na varanda tomando uma xícara de

café.

- Posso deixá-lo aqui até a tardinha? Vou para

Jacarezinho. Meu pai não está bem. Avisaram-me pelo

rádio ontem à noite.

- Pode sim. Mas o que tem seu pai? Perguntou.

- Uma complicação de estômago e rins. Está mal.

- Se o problema é rim, o remédio está aí na sua

frente – e apontava para um urtigão de cânulas vermelhas,

espinhento e folhas largas como as de parreira - . A raiz

desse urtigão limpa os rins como uma vassoura.

Na verdade esse urtigão é excelente vaso dilatador e

diurético.

154

Page 155: Histórias do viver

Pelo sim e pelo não, Leonel aceitou a oferta e levou

consigo duas raízes escuras que pareciam mandiocas.

- Minha mulher, intoxicada por remédios e mais

remédios, deixou tudo de lado e, numa semana curou-se e

está aqui com toda a saúde, acrescentou o colono.

No ônibus, por aquelas estradas esburacadas e

poeirentas, Leonel ia pensando.

Pensava nos desmatamentos que os imigrantes

fizeram naquela região. Ao invés da mata virgem que

existia até a década de 1920, com imensos pinheirais e

madeiras de lei (grápias, canelas, cabriúvas, angicos,

cedros...), agora só restava alguma araucária isolada e

cheia de nós, no meio dos potreiros. Lavouras de erva mate,

algumas roças de milho e feijão e capoeiras inúteis tanto

para os homens como para os pássaros.

Pacas, cotias, veados que ele tanto gostava de caçar

quando jovem, já estavam praticamente extintos. Aquelas

terras eram as “terras velhas”.

Há quarenta anos, com que vigor ele lembrava, o

sogro Antônio saía de Jacarezinho para aventurar-se nas

“terras novas” de linha Pinhão, além de Erechim.

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Page 156: Histórias do viver

Conseguira finalmente pagar a fiança em favor do

irmão que comprara um moinho.

O moinho foi mal. Faliu. Sem poder pagar juros e

principal, o irmão fugira para Santa Catarina – não se sabia

bem para onde. Restou ao fiador arcar com a dívida: “O

nome, a palavra empenhada valem mais do que a vida”. E

Antônio, num esforço sobre-humano , por longos 10 anos,

arrancou da pouca terra que tinha o necessário para saldar

as contas.

Contando com a união, a força, o sacrifício de cada

um dos doze filhos e muita reza e conformismo, aquele

homem fez os quinze hectares (entre várzea do arroio

Jacarezinho e encosta íngreme e pedregosa do arroio

Argola) produzir safras e mais safras de tudo o que se podia

vender. Duzentos sacos de feijão por ano, quase outro tanto

de trigo, chiqueiradas e chiqueiradas de porcos, galinhas,

ovos, queijos, e tudo por preços irrisórios em mãos de

atravessadores.

Saíam todos juntos, muito cedo, antes do

amanhecer, montanha acima. A carroça de bois à frente.

Iam rezando. Antônio ensinara aos filhos o que aprendera

do velho, religioso e habilidoso pai Pedro: orações da

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Page 157: Histórias do viver

manhã, o ângelus ao meio dia e à tardinha e o longo terço à

noite depois da janta, com ladainhas e mil intenções... E

missa aos domingos na igreja matriz de Encantado ou o

terço à tarde na capela. E tudo em latim misturado com

italiano.

Trabalhavam sem parar, afora o intervalo do café,

até que o sol do meio dia os expulsasse. Antônio, 8 filhos e

3 filhas, todos de calças longas de tosco brim riscado para

não machucar demais as pernas, eram um exército

invencível no trabalho. Roçar, capinar, arar, quebrar o

milho, plantar e colher e trilhar o feijão e o trigo, tudo a

mão. Os menores enchiam a carroça de abóboras, batatas,

mandioca e ramas verdes para levar aos animais do

potreiro, ao meio dia e à noite.

Em casa, com a mãe, só ficava uma das quatro

filhas para, às 9 horas levar o café a todos na roça. Era a

hora do intervalo e do breve descanso. Quando o sol nascia

a capina do milho, o plantio do trigo ou do feijão já iam

longe.

- Nas horas frescas da manhã, o trabalho rende mais,

dizia Antônio. E Deus ajuda a quem madruga.

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Page 158: Histórias do viver

E só saíam da roça quando escurecia. Montanha

abaixo, tropeçando nas pedras, - as meninas de carona na

carroça -, voltavam rezando para ganhar tempo.

Nos dois últimos anos, Antônio montara um grande

alambique. A cachaça mantinha um bom preço. Um dia,

porém, o tanque principal de garapa fervente explodiu. Por

nada não morreram 5 filhos. Quando a válvula saltou,

Antônio em desespero e gritando “pra fora, pra fora”,

juntou os filhos pequenos pela gola da camisa e jogou-os

pela janela. Um sobrinho teve queimaduras graves.

- Pena! , comentou Antônio, no dia seguinte. Agora

que tínhamos liquidado a dívida.

Pôs tudo à venda e planejou:

- Com o dinheiro da venda desta terra cansada

compraremos três colônias novas em Erechim, uma para

Albino, uma para João (os dois filhos mais velhos e já

casados) e outra para mim. Em pouco tempo cada um terá

seu pedaço de terra. Deus nos ensinou a trabalhar.

Leonel, que, do outro lado do arroio Argola,

também trabalhava duro nas terras montanhosas de seu pai

João, acompanhava, por ouvir dizer, os movimentos e as

intenções de Antônio.

158

Page 159: Histórias do viver

Na verdade, não admirava somente a união, a

tenacidade, a laboriosidade daquela família. Gostava

mesmo era de contemplar as quatro filhas de Antônio.

Aquela, porém, que lhe caiu na alma numa lufada de

desejo, foi Ana.

Nos domingos à tarde, depois do terço na capela de

Jacarezinho, os homens jogavam bochas, “la mora”, ou

quatrilho. Os rapazes jogavam futebol. Quem não jogava, -

rapazes, moças, meninos e velhos -, torcia pelos que

jogavam. Todos ao redor do campo, bebericando um copo

de vinho ou uma gasosa. E namoricar com olhares e acenos

com pequena malícia e ambigüidade.

Para começar a conversar os assuntos deveriam ser

gerais. Por longe: o tempo..., a chuva..., a safra..., a doença

de alguém. Depois evoluíam para alguma crítica ao sermão

do padre, para comentar o casamento desta ou daquela e,

por fim para o namoro de fulano com fulana, tudo entre

risadinhas discretas.

Falar a sós? Pegar a mão? Só quando noivos ou

quase. Afora as roubadinhas, quase pecado.

Falar sobre o futuro, sobre filhos, sobre a

sexualidade? Faltavam palavras... faltava jeito...

159

Page 160: Histórias do viver

Beijar? Alguns... nem depois de casados.

Havia já meses que Leonel vencera a barreira da

timidez. Uma quinta feira à noite fora à casa de Antônio, a

pretexto de ir a filó10. Queria conversar com algum irmão

de Ana.

Queria mesmo era ver Ana e obter a permissão para

visitá-la. Albino entendeu. Ajudou-o. Chamou a irmã que

apareceu logo, secando as mãos no avental.

Simples, sem retoque, alta, esguia, olhos azuis, foi

uma aparição angelical ao olhar de Leonel. A atrapalhação

dela, o rubor das faces, o não saber o que dizer, eram sinais,

mais que sinais: “ela gosta de mim”

Depois, sempre às quintas feiras, voltava mais cedo

da roça. Tomava um banho no arroio. Vestia uma camisa

limpa e, de chinelos como sempre andava, ia visitar a sua

amada. Submetia-se a acompanhar a espichada reza do

terço para, só depois, poder conversar com ela.

10 Filó, é um termo dialetal italiano que significa, visita, passeio. Osvizinhos encontravam-se à noite, na casa de alguém, para conversar,para jogar cartas, tomar vinho doce e caldo de galinha, enquanto asmulheres trançavam palha de trigo para fazer chapéus e bolsas. Osrapazes e as moças jogavam conversa fora... E todos cantavam.

160

Page 161: Histórias do viver

Melhor era a tarde de domingo. Até deixava de

jogar para poder conversar com Ana. Ou jogava para vê-la

torcer por ele.

Mas, um dia Antônio resolveu ir embora. Iriam

todos. Ana também. As terras vendidas aqui e compradas

lá. Tudo como o planejado. Iriam em meados de agosto.

Leonel não se conformou. Perder Ana era perder a

possibilidade de formar uma família sólida, alicerçada na

fé, no trabalho, na fidelidade. E Ana era bonita. Fazia-o

sonhar acordado e até não faltar à missa aos domingos

quando ela também ia a Encantado. Não era como as

mocinhas doidivanas, de fala fácil. Nem era tão sensual.

Mas a inocência que lhe brotava dos olhos num sorriso

largo, criava um ar de intimidade que Lenoel não queria

perder. Ela era literalmente o convite ao aconchego, à

verdade, à paz. Ela era a sua possibilidade real.

Armou-se de coragem. Falou em casar.

Ana estremeceu. Nem pensara que o namorico

pudesse terminar em casamento. Desde pequena,

observando a estúpida labuta da família, pensava em se

fazer irmã carmelita. Viver para rezar e amar a Deus e

assim garantir a salvação da alma. “Não era para isso que

161

Page 162: Histórias do viver

nascemos neste mundo”!? Para que arriscar perder a alma

em meio a tantas tribulações que geram intrigas, raivas,

perigos permanentes de pecado? Mas o pai Antônio disse

“não”. Um não tão redondo que ela não mais voltou a falar.

Só restava obedecer e, então, casar e seguir a trilha penosa

dos filhos de Eva.

E agora Leonel a convida. Antes de responder,

porém, ela quer tirar a limpo uma dúvida atroz que a

atormenta:

- Quem é que estava lavrando com os bois zebus,

ontem lá na roça nova de teu pai?

Leonel se deu conta. Era ele mesmo. Blasfemara

como um condenado porque os bois não queriam obedecer.

Na família de Ana jamais alguém blasfemou. E ela dissera

um dia que não casaria com um homem que blasfemasse.

Rapidamente respondeu:

- Era um peão nosso. Trabalha por dia.

- Ah!...

Antônio e Francisca concordaram em antecipar o

casamento e esperar uma semana mais para a mudança.

............................................................................

162

Page 163: Histórias do viver

No ônibus que descia devagar o morro da

Guavirova, com as balacas cheirando a queimado de tanto

frear, Leonel lembrava dos primeiros anos de casado, do

caminhão Ford 37 com o qual passara tantas vezes por esta

mesma estrada carregado de madeira e arriscando a vida.

Lembrava dos 10 filhos que tinha e andavam estudando cá

e lá pelo Rio Grande do Sul. Em casa, Ana ficou com os

quatro menores e apreensiva pela notícia da saúde do sogro

João.

O ônibus deixou-o na encruzilhada que leva para a

linha Auxiliadora. Aqueles dois mil metros até a casa do

pai, foram um martírio para Leonel. Andava encurvado e

arrastando um pouco a perna direita por causa de um

problema no nervo ciático.

Distribuindo “boa tarde” aos 10 ou 12 amigos e

parentes da beira da estrada, sem se deter, chegou na casa

onde nascera, onde nasceu o pai e onde nasceram os

primeiros filhos.

Várias pessoas na varanda. Falando baixo, quase em

cochichos. Acontecera o pior?

163

Page 164: Histórias do viver

- O pai está lá dentro. Está mal. Não se alimenta há

dois dias. Não urina. Não vai aos pés. Está um pouco

inchado, informava-lhe apressada Angelina.

- Que remédios está tomando?, perguntou Leonel.

- Esta pilha aí, em cima da mesa. Não estão fazendo

efeito.

Leonel entrou, viu o pai que nem reagia às

costumeiras brincadeiras de estímulo e ânimo que sempre

se faziam. Saiu decidido:

- Suspende todo remédio. Ferve ligeiro essa

mandioca que eu trouxe. É raiz de urtigão. Vamos tentar.

- Mas...

- Não tem mas, nem més... O filho mais velho sou

eu. Com toda a medicação que lhe deram o pai está

morrendo. Deve ser dos rins. E se o problema é com os rins

este é um santo remédio.

E lá ficou meu pai, ao pé da cama, oferecendo a seu

pai chá e mais chá de urtigão. E meu avô que não dormia há

dois dias, adormeceu um pouco e, como por milagre, horas

depois urinou. Iniciou a desinchar. 24 horas depois já

tomava uma canja e começou a falar e a se queixar.

164

Page 165: Histórias do viver

- Que dizer ao médico? Respondia à irmã que

questionava. Digam que João está tomando todos os

remédios. Por isso está melhorando.

Papai dormiu um longo sono no quarto ao lado que

fora seu, de menino.

Na manhã seguinte, caminhou cedo até a casa de

Marinot, o benzedor. Era infalível para benzer o ciático,

diziam.

- Ajoelha, disse ele. Fecha os olhos, reza um Pai

Nosso com devoção e, quando terminar, joga estes três

pequenos cascalhos do arroio para trás e não olhes para

onde eles foram. Vem aqui mais dois dias, que eu garanto.

No terceiro dia Leonel subiu a Soledade, lépido

como o rapaz que amava Ana e que lhe dissera uma vez:

- Não importa se a gente se ama ou não se ama

agora. O amor vem depois.

165

Page 166: Histórias do viver

O DESPERTAR DE ANA

Ana, 13 anos, alta, esbelta, grandes olhos azuis

como manhã de outono. Cabelos castanhos claros quase de

mel reunidos numa trança cuidadosamente trabalhada pelo

carinhoso colo da mãe. Naquela tarde voltou da roça um

pouco mais cedo, assustada, preocupada e envergonhada.

Escorria-lhe sangue pelas pernas. Ela não sabia o

por quê. As duas irmãs mais velhas não explicaram nada.

Só disseram que fosse logo para casa falar com a mãe. E

Ana vinha chorando pensando que iria morrer.

A mãe Francisca fitou-a com a mais acolhedora

pena e abriu-lhe os braços:

- Não precisa chorar. Vai te lavar com um pouco de

água morna, bota esses panos entre as pernas e volta aqui.

Ana, desajeitada e sempre chorando lavou-se e

voltou para ouvir a sentença de morte que a mãe iria

pronunciar. Mais desolada ficou, porém, quando Francisca

arrumou-lhe as tranças e, simplesmente disse:

166

Page 167: Histórias do viver

- Éh! De agora em diante, três dias por mês, vai te

acontecer isso. As mulheres só não tem isso quando estão

esperando nenê.

- Mas por que? As mulheres ficam doentes três dias

por mês? Por isso que sempre andam se queixando de dor

de cabeça?

- Éh! É isso. É o destino das filhas de Eva. Nem por

isso a gente deixa de fazer as coisas e de ir trabalhar. A

gente disfarça como se nada fosse. Mas amanhã tu vais

ficar comigo, preparando o almoço. Não precisas ir pra

roça.

À noite quando todos retornaram da montanha, Ana

percorria o olhar de todos à procura de um comentário, de

uma palavra. Mas, nem antes, nem durante nem depois da

janta, nem mesmo quando as mulheres limpavam a cozinha

alguém tocou no assunto. Era como se não se pudesse nem

se devesse falar sobre isso. Era como se fosse algo sujo ou

quase obsceno. Afinal, tudo o que se referia a xixi e cocô se

fazia sozinho e bem escondido. Ou como se isso fosse tão

óbvio e corriqueiro que não valia a pena comentar. Mas

para Ana era o inusitado, o desconhecido, o perigoso.

Afinal era com ela que isto estava acontecendo.

167

Page 168: Histórias do viver

No longo terço depois da janta Ana apanhou-se

várias vezes distraída, balbuciando “Ave Marias” mas com

o olhar andando sozinho e perdido no horizonte muito além

da luz do lampião, e a pensar: como é complicada e triste a

vida da mulher. Bem como dizia a Salve Rainha:...

“...gemendo e chorando neste vale de lágrimas”

Como nunca, o sono abandonou-a aquela noite.

Contava as horas pelo cantar do galo (o relógio da sala

estava parado, sem corda), ouvia os chiados da coruja na

cumeeira do paiol ali pertinho, os quero-queros no potreiro,

sempre atentos a qualquer movimento, e espreitava as

nesgas de luz que a lua minguante projetava na janela de

madeira entreaberta esquivando-se da galharada do plátano.

O coração e a cabeça povoavam-se de dúvidas, receios,

palpitações e ensimesmares.

Ouviu quando o pai e a mãe acordaram, uma hora

antes do amanhecer e falavam baixinho na cozinha ao redor

do “focolar”11 tomando o seu chimarrão. O que falariam?

Quem sabe estivessem a falar sobre ela? Ana teve a

11 Focolar é um fogão a lenha feito de barro, em cima uma chapa deferro com furos tapados por aros concêntricos que se retiram paracolocar as panelas.

168

Page 169: Histórias do viver

tentação de escutar perto da porta, mas se conteve: “é falta

de educação”.

Depois os irmãos despertaram, um por um. Os

adolescentes, “sempre cansados”, eram trazidos à existência

real pelos mais velhos: “vamos dorminhoco, o sol já vai

nascer”. As irmãs juntas, lampião na mão, cada uma com

seu balde grande, encaminhavam-se à estrebaria para a

ordenha. Os rapazes, com os bois já atrelados à carroça,

apanhavam o chapéu de palha dependurado à parede,

juntavam duas ou três fatias de polenta sapecada na chapa

do fogão, um pedaço de queijo e de salame e iam puxando

o cortejo para a roça do morro.

Quando Ana apareceu na cozinha, a mãe foi

dizendo:

- Hoje Ana me ajuda em casa. Maria levará o café

para a roça12 e depois ficará lá trabalhando.

Ana entendeu que era uma deferência especial, um

tratamento novo que, naquela turbulência, davam à recém

mocinha um pouco de segurança. Nem comentou com a

mãe que no dia anterior sentira uma moleza e um cansaço

12 Todos iam muito cedo à lavoura para aproveitar as horas mais frescasdo dia quando o trabalho rende mais. Sol, já alto, 9 horas ia o café paraa roça, momento também de descanso.

169

Page 170: Histórias do viver

pelo corpo, os seios um pouco inchados e os mamilos

doloridos. Não cabia. Devia ser assim mesmo.

No dia seguinte as coisas voltaram ao normal. Tudo

continuou como se nada tivesse acontecido. Nem Ana

comentou nada com ninguém. Olhava para as irmãs

esperando que dissessem, mesmo que indiretamente alguma

coisa. Mas, nada. “Então a vida é mesmo assim” pensava,

enquanto puxava com força a enxada na capina.

Quase um ano depois já conseguia cochichar às

irmãs que estava em seus dias... Elas nada diziam. Somente

um “éh!”... e mudavam de assunto.

A mãe, grávida um ano sim e outro também,

crescia, ficava enorme, “engordava”. E, de improviso, uma

bela noite, anunciava que os rapazes iriam dormir em casa

de tio Ângelo, assim poderiam conversar com os primos...

E as moças iriam para a casa de tia Agnese que morava

vizinha...

- É que hoje vai chegar mais um irmãozinho de

vocês, comentava o pai Antônio.

Ana estranhava que devessem sair. Não entendia

porquê. Sabia que o irmão estava no ventre da mãe,

segundo lhe contou a irmã Maria, assim como se rezava

170

Page 171: Histórias do viver

“...do vosso ventre Jesus”. Não sabia como nasceria nem

como fora parar lá dentro. Nem se permitiria imaginar que

ele viesse de relações sexuais dos pais como acontecia com

os animais. O acasalamento sexual das vacas e bois, dos

cavalos e éguas, dos porcos e porcas lhe causava repulsa

porque revelava violência... E nem olhava porque era

impróprio para moças e crianças... era pecaminoso.

Assim ela foi crescendo e imaginando os filhos

como uma bênção de Deus para os casais que tinham afeto

e carinho entre si...Vinham de Deus... Mas ela pretendia

outro caminho.

Oito anos depois...

Naquela tarde, depois do terço na capela, quando ela

percebeu o olhar maroto, ao mesmo tempo medroso e

insinuante de Leonel, ficou sem jeito. E tratou logo de

desviar o rosto para a roda das amigas para escapar da

cilada. Bem que ela gostava das brincadeiras inocentes dos

rapazes e das moças, mas não queria se comprometer em

gostar de alguém uma vez que pretendia se fazer carmelita

descalça. Queria ir para o convento. Viver de oração, na

intimidade de Deus, dos anjos e santos e garantir o céu. De

171

Page 172: Histórias do viver

que adiantariam brincadeiras fúteis e inúteis, distrações

ilusórias, pondo em risco a salvação?

E quando no retorno a amiga Joana comentou com

alguma malícia:

- E aquele olhar do Leonel, hein?

Ana, entre risonha, tímida e com raiva afastou logo:

- Ah! Bobalhona, são aquelas bobagens sem graça

dos rapazes de hoje,... mas acho que não era bem pra mim

que ele olhava...

Para decidir definitivamente sua vida, afastando-se

daquelas tentações e distrações, porque “por pensamento

também se peca” - ensinavam os padres -, resolveu falar.

Um dia em que ela ajudava a mãe a preparar o

almoço, parou com a bacia de farinha de polenta sobre a

panela, engoliu a saliva, olhou para a mãe como quem

suplica e arriscou:

- Mama, eu gostaria de me fazer freira...carmelita...

E esperou, com os olhos esbugalhados, a boca semi-

aberta um sinal, um gesto, uma palavra de concordância...

Francisca parou de misturar os radici com cebola

para a salada, fitou a filha com aquele olhar de

172

Page 173: Histórias do viver

compreensão infinita que vai até o fundo do coração,

sorriu-lhe coniventemente e disse:

- É o que eu sempre mais desejei para uma filha

minha... tenho quase inveja de tua decisão... sentirei muita

saudade (duas lágrimas rolaram-lhe pelo rosto), mas quem

deve decidir isto é teu pai. Deves pedir isto ao pai. Ele é o

chefe da família. Eu acho bonito e grandioso, mas não sei o

que o pai vai pensar.

O coração de Ana saltava tropeçando em si mesmo

de alegria e expectativa. E o pai o que diria?

Domingo. Antônio, Albino e João foram à primeira

missa, às 6 da manhã. Ana ajudou a trazer os cavalos para

os irmãos e o pai como sempre fazia. Era como participar

um pouco da missa.

De retorno, como de costume, Antônio sentado na

sala, comentava com Francisca e quem quisesse ouvir o

sermão do padre... “buscai em primeiro lugar o reino de

Deus e o resto vos será dada de acréscimo...” Ana escutava

atenta... Era a hora de atacar. Puxou a cadeira para mais

perto do pai e disparou:

- Pai, eu andei pensando, tu me deixarias ir para o

convento e ser freira carmelita...

173

Page 174: Histórias do viver

- Carmelita? Retrucou Antônio entre assustado e

contente.

Olhou para a filha, olhou para Francisca, olhou para

o chão, pensou e, com voz um pouco triste falou:

- Mas por que estás pensando nisso, minha filha?

- Eu queria garantir minha salvação na oração e no

silêncio e também ter mais tempo de rezar para todos vocês.

- Filha, disse com voz resoluta, é bonito, mas é

impossível! A mãe precisa de vocês. A Rosa já casou.

Maria também. Inês é um bebê. E são oito homens, afora

tua mãe e eu, para cuidar. É a comida, a casa, a roupa. Deus

saberá da tua intenção. Ele te abençoará por ajudares em

casa.

Era a teologia pragmática da vida e da necessidade.

Ana sentiu que um mundo acabava ali. Baixou os

olhos e concordou com a cabeça. Então só restava um outro

caminho: a senda espinhosa e difícil das filhas de Eva.

Naquela noite Ana sentiu-se estranha. Triste e

aliviada ao mesmo tempo. Se estava triste por não ter

podido realizar um sonho tão santo, também sentia-se leve,

desobrigada, descompromissada. Era como se já tivesse

cumprido um dever, realizado uma missão. Ninguém

174

Page 175: Histórias do viver

poderia cobrar dela uma dedicação maior a Deus, nem ela

mesma. Agora era questão de obedecer. Ao invés de chorar

e lamentar ela se surpreendeu na cozinha cantando “Sul

castel de Mirabel...” O coração adormecido e quieto, de

repente, acordara despertando pássaros selvagens de todas

as árvores.

Iria casar.

Mas com quem? Até então nunca se havia permitido

namorar alguém. Vários rapazes lhe esticavam um olhar

lânguido, doente, quase febril. Algum aceno. Algum

pequeno contato ou encontrão “distraído” com o imediato e

respectivo “desculpe” e “não foi nada”. Mas aquele olhar

de Leonel, mais safado, mais matreiro, mais malicioso que

o dos outros começou a encantá-la. A povoar sua

imaginação. Duas vezes sonhou que suas mãos se tocaram

quando pegavam o mesmo copo. Mas ela fazia força para

afastar a tentação.

E Leonel, sem se fazer esperar, numa quinta feira à

noite, apareceu a pretexto de qualquer conversa com seus

irmãos. Ela estava secando a louça quando o irmão Albino

a chamou para a sala:

- Ana, vem cá!

175

Page 176: Histórias do viver

E ela foi, secando as mãos no avental...:

- O que é....?

E parou com a palavra entre a garganta e a boca,

vendo Leonel que a olhava sem parar, olhos brilhando no

lusco-fusco do lampião...

- É que Leonel... veio nos convidar... convidar para

que mesmo Leonel? Disse Albino voltando-se para ele e

tentando piscar um olho...

Leonel, engasgou-se, tossiu, e inventou qualquer

desculpa para iniciar a conversa:

- Bem...é que domingo vai haver um torneio de

futebol na Auxiliadora. Queria saber se os irmãos não

gostariam de jogar em nosso time e se vocês não quisessem

ir também...

- Bem, se o Albino e o João forem, nós também

podemos ir, né mãe? (falou alto para Francisca que estava

na cozinha) Iremos ao terço lá e depois veremos o torneio.

Leonel nem esperou o terço que estava por iniciar,

tão logo terminassem de limpar a louça, e saiu feliz

assobiando a cançoneta de que mais gostava: “saudades do

matão”...

176

Page 177: Histórias do viver

Depois, os domingos à tarde tornaram-se uma bela

distração: tomar uma gasosa e conversar um pouco,

pouquíssimas frases, com Leonel.

- Assim, o bem-querer foi aumentando e o amor

fisgou a gente distraída... comentou ela tempos depois.

No idílio platônico de um amor feito de carinhos,

pequenos gestos e convivência ela imaginava o casamento.

Na véspera, porém, de seu enlace matrimonial a

cunhada, com toda a malícia na ponta dos olhos, perguntou-

lhe:

- Você sabe o que vai acontecer na noite do

casamento?

- Ué!, respondeu Ana. A gente casa e vai morar na

mesma casa.

- E na mesma cama, disse Santina.

Ana, vermelha, envergonhada e perturbada:

- Infelizmente, dizem que sim...

E Santina, que não podia acreditar que Ana não

soubesse o que aconteceria num leito nupcial foi direta:

- E ele te levanta o vestido e... crãn...

- O que? Ele não vai ser sem-vergonha assim!!!

177

Page 178: Histórias do viver

- Bobalhona, é isto que todos os casais fazem... e

depois de várias noites de estocadas plantam uma

sementinha de criança na barriga da mulher. E nascem os

filhos...

Ana, titubeou...se deveria ou não casar. Se pudesse

fugir, ninguém mais a encontraria. Mas o casamento já

estava marcado para o dia seguinte. Tudo preparado. Já

tinha até confessado “uma confissão geral” como o padre

recomendara. Ele desejou felicidades...

- Então era aquilo que os padres queriam dizer

quando falavam dos deveres conjugais da esposa? Pensou

em voz alta...

Depois vieram as surpresas, os espantos,os sustos...e

os filhos...

Ana relembrava sempre sua antiga frase: No

começo a gente se conhece, se gosta... o amor vem depois.

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Page 179: Histórias do viver

BOITATÁ

Abril. Sábado. Duas da tarde. Ana ao tanque

termina de enxaguar e estender a roupa no varal entre o

paiol e a casa, cantarolando em seus dezenove anos “Io son

girato d´Italia al Tirol...”. A irmã Maria ajudava a mãe

sovando a massa do pão - até fazer bolha. Rosa limpava a

casa. Os irmãos e o pai já tinham ido à capela para jogar

cartas ou bochas. Os pequenos à catequese.

Mas, o que poderia ser um sol brilhante de outono

com o ar parado e levemente tépido da estação, tornara-se

de uma hora para outra, ofuscado. Um estrondo

ensurdecedor no outro lado da montanha como se fosse

uma dinamite potente. Uma fumaça esbranquuicenta cobria

todo o vale. Não eram nuvens, nem serração. Mais parecia

fuligem branca de um grande incêndio.

- Que será isto?, perguntava a si mesma Ana. Vai

sujar toda a roupa na corda.

Apressou-se a recolher o lavado ainda molhado,

quando o tanque se pôs a tremer como se fosse sacudido

179

Page 180: Histórias do viver

por alguém. Duas ondas de água molharam-lhe os

tamancos.

Maria assustou-se quando os copos deslizaram

sobre a mesa:

- Que é isto, Mãe? As coisas se mexendo. Parece

que um espírito passou por aqui!

- Quê espírito, quê nada, disse Francisca. Vai ver

que tropeçaste na mesa sem perceber.

Os olhos grandes e parados de Maria pareciam não

dar crédito no que a mãe dizia.

Ana, lá de baixo da janela, sem saber se corria ou se

ficava, atarantada com as roupas e o varal, exclamou:

- Santantóni, piccinin!13 Parece o fim do mundo. A

terra está tremendo...

Em alguns segundos, tudo parou. Tudo imóvel. Sem

barulho. Em suspense. E ao mesmo tempo tudo normal. Um

normal tão anormal que espantava. Um silêncio esquisito

como falta de palavra e não como palavra que se aguarda,

tomou conta de tudo. Tudo quieto. Quieto demais. Os

animais, os pássaros, os cães, as árvores, tudo em silêncio

como depois de um grande espasmo. Nem os quero-queros,

13 Tradução literal: Santo Antônio pequenino.

180

Page 181: Histórias do viver

nem os galos cantavam. Como se a natureza toda

suspendesse o fôlego...

Depois..., um longo minuto..., e aos poucos, de

vagarinho, o fôlego voltou. Os ruídos, as vozes foram

repovoando o ar que já não parecia tão parado.

A valentia, dos rapazes e o garganteio dos homens

que jogavam quatrilho na venda da capela, custou a se

recuperar. Cada um empinou o copo de vinho que lhe

estava de fronte...E se entreolharam como a perguntar: para

onde fugir? Mas depois que o susto passou, um começou a

rir do outro para não rir de si mesmo e as vozes se

transformaram em gargalhadas por nada, por qualquer

assunto, por qualquer referência a medo.

Quando o sino badalou chamando para a costumeira

catequese dos meninos e meninas e para as confissões, os

homens também foram à igreja. Queriam saber se o padre

tinha alguma explicação para o susto geral e para aquela

poeira branca que parecia uma farinha.

- Ontem o delegado me disse que telefonou a Porto

Alegre para saber, disse o padre Foscalo. Disseram que é a

poeira de um vulcão, lá do Chile. Não sei se é o Aconcágua

ou outro vulcão... É que no centro da terra existe fogo e, de

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Page 182: Histórias do viver

vez em quando, a pressão explode a panela por algum

furinho no alto das montanhas. Deve ser fumaça de lá.

Depois tudo volta ao normal... Lá na minha terra natal, a

Itália, na cidade de Nápoles um vulcão, o Etna, uma vez,

setenta anos depois de Cristo, destruiu duas cidades

inteiras: Herculano e Pompéia. Muita gente ficou enterrada

na lava derretida pelo fogo que rolava montanha abaixo...

Mas o Chile é muito longe daqui, mais de dois mil

quilômetros. Esta poeira deve ter sido trazida por ventos...

E o tremor da terra? Isto não é nada. Por aqui não deve dar

muito tremor de terra. A terra vai acomodando suas

camadas e isto sacode um pouco. Não devemos nos

assustar.

- E aquele estouro enorme?, perguntou Antônio.

- Não sei, eu não ouvi nada, disse o sacerdote, mas

pode ter sido dinamite de alguém estourando pedras ou a

queda de algum meteorito.

- Meteorito? Que bicho é este?, perguntou o menino

Felipe.

- Uma pedra, uma pedra grande que se desprende de

algum astro e cai por aí. Caiu na cabeça de alguém de

vocês? Não? Então não foi nada, concluiu Foscalo.

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Page 183: Histórias do viver

À noite, na hora da janta, todos comentavam e

queriam saber. Albino que ouviu o padre na Igreja,

sossegou a todos. Tudo já passou.

- Ih! Há tanta coisa misteriosa por aí, comentou seu

Antônio sentado à cabeceira. Nossos pais e avós contavam

que, de vez em quando Deus manda um sinal como um

astro de fogo com rabo comprido, avisando que está na hora

da conversão. Em 1916 viram um grande e assustador.

Ainda não é o fim do mundo mas é preciso viver como se

ele estivesse chegando.

- O padre disse que também viu este cometa de

1916, comentou Albino. E que era muito bonito. Que Deus

fez o mundo bonito e grande e não mesquinho como a boca

de alguns que não param de blasfemar... E quando

perguntaram se o fogo do inferno está no meio da terra, ele

riu de nossa cara e disse:

- Quem disse que o inferno é feito de fogo? O

inferno é muito pior e não devemos facilitar na vida para vir

a cair nele. Deus não brinca em serviço. Cada qual sabe o

seu caminho...

Antonio lembrou que, em menino, viu, uma noite,

uma grande bola de fogo.

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Page 184: Histórias do viver

- Era grande como um barril. Saiu lá de baixo do

banhado na várzea do rio onde houve uma batalha na

Revolução de 1893, levantou-se sobre o canavial e veio em

direção às casas, passou pertinho do telhado e foi subindo,

subindo até se perder atrás do morro do arroio Argola. O

fogo não era vermelho como o fogo do fogão...

O olhar de todos fixou-se na labareda do focolar .

Um olhar que aninhava em si surpresa, medo, espanto, uma

lágrima chegando à borda...

- Era um fogo branco e azulado, continuou Antônio.

Eu nunca tinha visto coisa assim...

Na insignificante luz do lampião que bruxoleava na

sala ampla, todos se olhavam, o coração parado, os olhos

saltando.

Foi difícil começar a reza do terço que sempre

sucedia ao jantar.

E enquanto a boca repetia automaticamente “Santa

Maria...Pai Nosso... Glória... Salva Rainha... rogai por nós...

rogai por nós...” o pensamento de todos se contorcia,

distraído, à procura de respostas...

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Page 185: Histórias do viver

TORRESMO

Leonel tem cinco anos. É o mais velho de três filhos

de João e Mariota. Nesta tarde não acompanhou os pais à

roça. Ficou em casa com a irmã Amália para receber o vô

Narciso quando voltasse de Encantando. Era falta de

respeito e educação não receber os mais velhos. João e

Mariota voltariam mais cedo para tomar chimarrão com

Narciso. Leonel e Amália que soubessem ser acolhedores e

fazer companhia ao avô.

Esperaram, esperaram longo tempo, talvez meia

hora, porque para as crianças o tempo da espera é longo

demais ante a pressa e a impaciência de brincar.

Lá se foram para o chiqueiro ver a porca com seus

onze leitõezinhos que nasceram ante-ontem. A mãe porca

mostra-se uma fera quando os dois se aproximam querendo

entrar e pegar os filhotes. A instâncias de Amália os dois

desistem e voltam ao páteo onde duas chocas conduzem

senhoris uma dúzia de pintinhos cada uma, esgravatando o

chão com seu cuóc...cuóc...cuóc, para que eles encontrem

partículas de alimento.

185

Page 186: Histórias do viver

Tentam apanhá-los mas os pintos fogem e se

escondem atrás das pipas do porão.

Foi então que Leonel se deparou, num canto, com a

prensa de torresmos.

- O que é isso? Pergunta Amália.

- É a máquina de fazer torresmo. Não te lembra que

o pai bota ali dentro a carne de torresmo, rodeia nesta

manivela e sai torresmo, diz Leonel, sem muito

conhecimento técnico da fabricação daqueles petiscos.

- Então vamos fazer torresmos! E comeremos com

pão, anima-se Amália sacudindo as mãos.

- Mas com que carne? Interroga Leonel, ao mesmo

tempo que olha para os pintinhos com uma tentação

bailando-lhe nos olhos.

Em poucos minutos conseguiram caçar oito

pintinhos que piavam desesperados pedindo socorro às

mães. Estas gritavam, abriam as asas em sinal de ameaça e

proteção, mas não atacavam para defender o resto da prole.

Dentro do cone de lata com furinhos para sair a banha, a

prensa redonda de madeira ia sendo acionada de cima para

baixo pelo eixo em parafuso e movimentado por uma aste

de ferro. Quando a prensa encostou nos pintos, seus pios

186

Page 187: Histórias do viver

desesperados apavoraram os dois pretensos fabricantes de

torresmo.

- Pára, pára, pára gritava Amália.

Mas como parar para libertar os pintos?

- Como parar? Pergunta Amália.

- Rodeando a alavanca em cima, diz Leonel

apavorado. Rodeia, rodeia!... gritava para a irmã.

E ela, quanto mais rodeava mais prensava os

animaizinhos... O pasmo tomou conta deles. Tentaram mais

um pouco... Mas os pintos já não piavam...

- E agora? O que fazer? Suplicava inutilmente

Leonel à irmãzinha quando ouviram o ruído da carroça dos

pais que chegavam.

Quando a mãe entrou em casa perguntando em voz

alta pelo sogro que não havia chegado ainda, notou o

espanto, o pavor mesmo, aninhado nos olhos de Amália e

Leonel.

- O que há? O que está acontecendo?, perguntou ela,

assustada.

- Nada! Nada! Apressou-se Leonel enquanto a irmã

gaguejava...

187

Page 188: Histórias do viver

- O to... o to... o torresmo! Conseguiu por fim

balbuciar...

- O quê? Que torresmo? Perguntava a mãe mais

inquieta ainda.

- Lá no porão, apontava Amália com o dedinho...

Quando Mariota viu a prensa com o sangue ainda

escorrendo, entendeu tudo...

Tamanha traquinagem bem que merecia uma surra

de chinelo a cada um, mas diante do olhar que, mais do que

perdão pediam socorro, só pode apaziguar:

- Os outros pintinhos já comeram?

188

Page 189: Histórias do viver

GUERRA

- Corre pra dentro Jandir, olha o avião!, gritou Ana

aflita com as notícias da guerra na Europa.

Agora o Brasil também entrou, pensava, e Leonel

também pode ser convocado. Que Deus tenha piedade e não

permita. Que faria eu com três crianças, o mais velho com

cinco anos? Getúlio mandou um monte de soldados pra

guerra. Dizem que é lá na Itália, na Europa...

O monomotor barulhento, assim como surgiu

repentino por detrás do morro, percorreu o vale e se perdeu

ao longo do Taquari. Tardinha de janeiro de 1945. Leonel

anunciou-se no alto do potreiro com a carroça carregada de

milho: de vagar, Rio Grande, segura Barroso!

- Esse avião não é de guerra, comentou ao chegar.

Se fosse de guerra e voasse tão baixo, eu o derrubaria com

um tiro da minha espingarda.

- Graças a Deus, suspirou Ana. Não sei por que os

homens são tão estúpidos e precisam matar os outros para

amontoar um pouco de dinheiro! Só podem estar a serviço

189

Page 190: Histórias do viver

de Satanás. Deus não quer guerra... E tem até padre que fala

em guerra santa!! Muito mais do que guerra os homens

deveriam aprender a se ajudar uns aos outros!

Leonel lembrava que seu avô Narciso em

companhia do pai Francisco deixara Cembra perto de

Trento na Itália, para fugir à convocação para a

interminável guerra que o Império Austro-Húngaro

promovia devorando a juventude como bucha de canhão.

Felizmente ele conseguiu emigrar mesmo devendo

renunciar à cidadania austríaca.

- Tem muita gente esganada, quer tudo para si,

rouba, massacra e depois conta vantagem pra disfarçar a

mentira, acrescentou Leonel. Mas guerra é guerra, coisa de

homem.

Naquela noite, os cantos alegres e polifônicos dos

“mazzolin di fiori” não soaram pelo vale. Nas rodas de

chimarrão, as conversas com os vizinhos que passavam, na

janta, nas orações do terço, em tudo pairava um ar infeliz de

apreensão, as crianças fitando o rosto dos mais velhos à

cata de uma explicação e de um sossego.

Na manhã seguinte, a primeira pergunta que a

professora Terezinha devia responder: o avião... a guerra.

190

Page 191: Histórias do viver

- A guerra é coisa suja, sem razão... Quem começou

a guerra foi a Alemanha que invadiu os outros países.

Olhem aqui no mapa: aqui está a Alemanha, aqui a França,

aqui a Itália que parece uma bota, a Inglaterra fica nestas

ilhas, e lá longe perto do gelo está a Rússia. A briga está na

Europa, um pouco na África e o Japão lá no outro lado do

mundo tentando dominar a China e todas estas ilhas.

- E os Estados Unidos?, perguntou Lurdes.

- Os Estados Unidos que ficam aqui na América do

Norte entraram por último na guerra, depois que a Rússia já

tinha dominado os alemães. Entraram para repartir o lucro

da guerra. Tomara a Deus que a guerra não venha para cá.

- E o avião de ontem, com aquele barulhão, indagou

Alcides?!

- Ah! Eu também vi, disse a professora. Mas este

não é de guerra. É avião de passageiros. Devia estar

levando alguma autoridade para Porto Alegre. Vocês viram

o que estava escrito nele?

- Eu vi.... responderam quase em coro: VA...RI...G.

O que quer dizer professora?

191

Page 192: Histórias do viver

- É uma empresa que tem aviões para transportar

gente e carga. É como um ônibus, leva trinta ou quarenta

pessoas por vez.

- E cabem lá dentro, professora?

- Ih... existem aviões muito maiores que um ônibus,

levam mais de cem pessoas numa viagem só, como os

aviões de guerra...

Aquele avião trouxe, de repente, a realidade da

guerra para dentro de Jacarezinho. A estupidez, a violência,

a ganância espantava a todos: crianças, meninas e velhos.

Matar, matar muitos, com bandeira na mão, com pretextos

de honra, de pátria, lealdade já não era crime ou pecado? O

ódio, o massacre, a extinção dos outros era virtude... De

quem? Para que? Para quem?

Mas os que falavam contra a guerra falavam

baixinho. Como coisa proibida. Até o padre em seu sermão

evitavam julgamentos... só rezava pelos que sofriam pela

guerra e para que ela acabasse logo...

Jandir, seis anos, de bodoque pendurado no pescoço

como se fosse um rosário, pensava: se eles vierem eu acerto

uma pedrada em seu nariz.

192

Page 193: Histórias do viver

A FERRO FRIO

Na pequena mesa da varanda em frente à casa de

madeira, Leonel, quase 90 anos, apruma-se, para jogar uma

canastra com três netos:

- Vamos ver quem é o galo! No outro dia eu apanhei

demais, brinca provocativamente.

- Não gosto de bater em gente mais velha, mas...

jogo é jogo, responde Tiago no repto.

Chegam mais dois netos. A casa do vô é lugar para

chegar, para estar, para brincar e até para aprender alguma

coisa de suas histórias.

- Mas o que vocês faziam, vô, aos sábados à tarde,

em seu tempo de guri?, pergunta Vinícius.

- Bem, aqueles eram outros tempos. Tempos do

interior. Banhos no arroio... Terço na capela... jogos de

futebol e eu era bom na canela, especialmente no ataque.

Todos respeitavam minha velocidade... roubar frutas e

melancias só pelo prazer de que “a fruta do vizinho é

sempre melhor”... E alguma malandragem...

- Que malandragem vocês faziam?, insiste Diogo.

193

Page 194: Histórias do viver

...................................................................................

- Eu lembro de um domingo à tardinha. Lembro

como se fosse hoje: Voltávamos do terço da Auxiliadora.

Éramos quatro. Meus três vizinhos queriam conhecer a

espingarda que eu fizera com um cabo de guarda-chuva.

Gatilho, coronha e tudo o mais. Em meio às armas velhas

guardadas no sótão: uma carabina, duas armas de caça,

umas adagas e todas enferrujadas, destacava-se a minha

preciosidade.

- Não sei se o cano resiste a muita pólvora, mas

servirá pra dar um tirinho.

De súbito, minha mãe, ao pé da escada, interrompeu

nosso sossego gritando:

- Nelo, acode que o cachaço do vizinho está

cobrindo as porcas duroc, lá no potreiro. Era só o que

faltava!

Despencamos escada abaixo e corremos.

O potreiro abaixo da estrada , era um gramado plano

que ia até a costa do arroio Jacarezinho. Era bem fechado

com cerca de pedra de metro e oitenta de altura, feita por

Bastião. Empreitada que lhe rendera bem mais que o

pagamento por dia. Nele, convivia a fauna toda de meu pai:

194

Page 195: Histórias do viver

cavalos, bois, vacas, terneiros, ovelhas e porcos. Uma dúzia

de porcas de cria, de raça duroc, eram especial preocupação

dele. Ótimas para produzir banha. Tinha pedido a um

criador do Tigrinho que lhe emprestasse um reprodutor de

raça pra tirar umas “ninhadas”.

E agora, lá estava o infeliz porco do vizinho, um

suíno peludo e seco que não servia nem para banha nem

para carne. Fugira do chiqueiro, saltara a cerca de pedra e

emprenhava porca por porca. Era a terceira vez que ele

aparecia no potreiro. O vizinho Agostinho, avisado, não

conseguiu mantê-lo preso.

Era evidente o prejuízo.

Entreolhâmo-nos os quatro. A idéia foi unânime,

nascida ao mesmo tempo e na mesma velocidade:

- É agora!

Encantonamos o bicho perto da porteira. No

primeiro lance de sovéu, laçamos o animal. Gritava como

um condenado. Pressentia o que lhe haveria de acontecer.

Deitado de barriga para cima, dois seguravam as

mãos dianteiras para evitar que ele mordesse, um mantinha

aberta as pernas de trás e eu fui correndo buscar o

instrumento cirúrgico necessário. Cravado num toco perto

195

Page 196: Histórias do viver

da carroça estava o facãozinho de partir abóboras.

Enferrujado, rombudo e cheio de dentes. “Era esse mesmo”.

Nem precisava afiá-lo ao rebolo.

Enquanto eu esfregava... e esfregava o facão para

cortar os bagos da fera e ela “esganiçava” desesperada, dois

cavaleiros do Tigrinho pararam perto da cerca para

contemplar nossa façanha. Um deles é o que emprestaria o

reprodutor a meu pai. E riam a mais não poder:

- Eu nunca vi castrar um porco assim. Ele vai

morrer. Devem ter muita raiva dele.

- Imaginou a bronca do seu João quando souber

disso? E o animal é do vizinho...comentavam.

Extraídos os ovos - com saco e tudo - com toda

aquela delicadeza, a ferro frio, atirâmo-los aos cachorros

com uma conclusão de vingança:

- Quero ver se ele pulará novamente a cerca para vir

aqui fazer estragos!

Com tanta assepsia e limpeza, era evidente que ele

apanharia uma infecção mortal. Em todo o caso, abrimos a

porteira e, com um pontapé, enviâmo-lo para a sua casa.

Quando entramos em casa a mãe perguntou:

- Vocês mataram o porco?

196

Page 197: Histórias do viver

- Não, mãe, só lhe demos uma lição!

O porco? Enfiou-se no barro umas horas. No dia

seguinte já estava curado. Apaziguou-se. O vizinho nada

falou...

Dois dias depois, na hora do meio dia, o criador de

Tigrinho, chegou para tomar um chimarrão com meu pai...

Eu despistei... inventei que deveria pegar um cavalo

lá no fundo do potreiro. Meu pai, atalhou imediatamente:

- Vem cá Leonel... vá dizer ao vizinho que o porco

está castrado...

Ordem de pai não se discute... Lá fui eu cabisbaixo,

sem saber como iniciar. Pensei num subterfúgio:

- Papai mandou dizer que seu porco está castrado...

Agostinho já sabia. Riu e respondeu:

- Então diga a seu João que lhe devo uma

“capadura”.

E eu aliviado retornei:

- A ferro frio!

...................................................................................

O riso matreiro de Leonel, - o leque de cartas numa

das mãos e os óculos na outra -, coincidia com o

encantamento e a conivência dos netos.

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Page 198: Histórias do viver

REVOLUÇÃO DE 23

- Seu João, seu João a ´força´ já está chegando em

Encantado, gritou da estrada, sofrenando o cavalo preto que

vinha a galope, o vizinho Augusto. Disseram que são mais

de cem homens. Estão atrás dos revoltosos escondidos nas

grotas do Fão em direção à Soledade.

- É uma desgraça!, respondeu João. Obrigado pelo

aviso!

E da mesma janela João gritou:

- Nelo! Nelo! (abreviação e apelido de Leonel em

italiano), depressa,... depressa! Reúne nossos bois, nossas

vacas e cavalos. Vamos ter que escondê-los. Os soldados de

Borges de Medeiros vêm aí. Arrasam tudo o que

encontram.

Leonel correu ao potreiro e reuniu oito bois, cinco

vacas, o cavalo, a égua com seu potrilho mamão, as cinco

mulas incluindo a de montaria do pai. João foi dizendo:

- Toca tudo pela estrada do arroio Argola em

direção a Capitão. Vamos escondê-los nos fundos da

198

Page 199: Histórias do viver

fazenda do tio José. Naqueles matos ninguém os

encontrará.

No potreiro só ficou uma vaca magra e uma mula de

cargueiro. Para despistar.

- Se os homens perguntarem por nós, diz que fomos

trabalhar nos fundos das terras e que só voltaremos no fim

de semana, recomendou João à Mariota. Se quiserem

comida, oferece-lhes alguns queijos e uns salames, esconde

o resto como puder...

Meia hora depois, João alcançou Leonel que

tropeava a minguada ponta de gado de que dispunham,

apressando o quanto os animais podiam. Quando superaram

o topo dos morros, em Campinho, souberam que o delegado

de Encantado reuniu seus 12 brigadianos e mais 10

voluntários, que subiriam por Jacarezinho e Nova Bréscia

em direção à barra do Forqueta com o Fão.

- Ainda bem, exclamou João. Estaremos fora de sua

trilha. Acertei fugir de Jacarezinho para Capitão.

José já esperava o irmão João. Em sua casa simples

construída sobre o arroio de tal forma que, de sua varanda

pudesse pescar na pequena represa que ficava em baixo - o

que era um encanto para a infância de Leonel -, havia

199

Page 200: Histórias do viver

fartura. Fartura de cereais, de salames, queijos e vinhos.

Fartura de armas (três espingardas de grosso calibre, 2

revólveres de José e um para cada um dos 8 filhos), fartura

de filhos e filhas. José já providenciara esconder seu gado

(tinha mais de cem cabeças) na pequena invernada no outro

lado do morro. Em volta das casas ficaram alguns bois

velhos, de ossos à mostra, uma vaca de leite e um matungo

tordilho de pouca valia para montar. As armas? Ninguém as

viu nem sabia delas...

- Quem disse que eles não virão para cá? Ironizou

José. Eles sempre mentem para pegar-nos desprevenidos.

Ainda mais este delegado corrupto e assassino com seus

soldados todos vindos de fora. Não há um gringo entre eles.

E dizem que são malvados. Fazermo-nos de bobos é sempre

a melhor política, para com eles. A gente não sabe de nada.

Não sabe o porquê dessa revolução. Não sabe quem é Assis

Brasil e os revoltosos que estão com ele, desde Soledade,

Passo Fundo, Erechim, Palmeira das Missões e, em todo o

Rio Grande. Não sabemos porque Assis Brasil luta contra

Borges.

Nós sabemos que os borgistas são ateus, não têm

religião, que querem mandar sozinhos no Rio Grande do

200

Page 201: Histórias do viver

Sul. Que faz muito tempo que mandam e desmandam. São

positivistas como diz o padre... Eles que se cocem entre si...

E eu acho que passarão por aqui, sim. Este é o caminho

mais seguro para eles irem a Nova Bréscia.

- Então é bom que eles nem saibam que eu vim pra

cá, disse João. Afinal, retirei meu gadinho do caminho

deles. Se me permite, ficarei com o gado na invernada dos

fundos. Ainda existe aquele galpãozinho?

- Existe, confirmou o irmão. Fiquem à vontade. Só

não façam fogo. Daqui eles não passarão. Eles também têm

medo da minha fama.

Naquela noite Leonel adormeceu sobre um pelego

no minúsculo galpão cheio de frestas e sem janelas, entre

apreensivo e encantado. Sonhou com o tio e os primos

pescando lambaris sentados na varanda. Adormeceu

ouvindo os sons de inhambus, jacus e corujas... Sonhou

com uma jaguatirica esfomeada que rondava um

cordeirinho.... Quando acordou, o sol já se enfiava pelas

frestas, e seu pai, de pé, de cá para lá, fumando o cachimbo

e de olhos pesados como quem passara a noite inteira de

vigia.

- E então, pai, e os homens?

201

Page 202: Histórias do viver

- Bom dia, meu filho!

- Ah, desculpe, bom dia!

- Dali de cima, do meio daquelas árvores, eu vi um

grupo de vinte e tantos chegando na casa do tio. Bem que

eu gostaria de saber o que estão falando, falou João como

que em segredo.

- Será que vão prender ou matar o tio?

- Não se preocupe! O tio os enrola a todos e os bota

debaixo do braço. O tio é muito mais esperto do que todos

eles juntos.

- Mas, eles têm armas! Disse o menino Leonel de 8

anos.

- O tio também tem. E eu duvido que ele não tenha

uns cinco ou seis homens de tocaia, para o caso de

necessidade. Ele nunca dorme de touca.

João conhecia muito bem seu irmão mais velho,

José. Não era agressivo, provocador ou afoito em procurar

briga. Mas, provocado, era um leão. E era rápido no gatilho.

Lembrava do dia em que o delegado foi desarmá-lo

numa roça em que ele plantava feijão. Com a espingarda

belga que ele sempre carregava consigo, abatera um veado.

Algum invejoso o denunciara: em época de guerra todos

202

Page 203: Histórias do viver

deveriam entregar suas armas. O delegado, irmão desse de

Encantado, com o topete eriçado de autoridade, intimou-o a

entregar a espingarda sob pena de prisão. José respondeu

que a cano duplo era para defesa pessoal contra animais

selvagens e que não a entregaria.

O delegado, sozinho e com medo, saiu. Buscou dois

policiais como reforço e voltou.

José que também tinha um revólver na cintura disse

ao delegado que ficasse na estrada e que não entrasse em

sua roça. O delegado avançou. Levou dois tiros, um no

braço e outro na perna. Um soldado foi atingido na bunda.

O outro fugiu sem deixar rastro. José, atrás de um toco

assistiu a debandada deles... Depois, a passito de cavalo,

passou pela vila como se nada tivesse havido. Foi para a

sua casa em Capitão e mandou dizer ao delegado por um

tropeiro que passava que, se ele quisesse prendê-lo que

fosse até lá. O delegado nunca mais o procurou.

Mas o irmão dele, o delegado de Encantado, chegou

manso. Pedindo favor. Queria que José os ajudasse a chegar

até a barra do Fão. Pois, ele era quem melhor conhecia o

caminho e o mais seguro. Não queriam importuná-lo em

nada.

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Page 204: Histórias do viver

José, na porta da casa, encolheu os olhos, fez os

cálculos e respondeu:

- Pois não. Eu levo vocês até lá. Até os morros que

dão para a barra do Fão. De lá eu volto. Tem um problema,

porém: eu estou desarmado. E desarmado eu não vou.

- Não seja por isso, disse o delegado.

E alcançou-lhe um 38 dobrevê, Smith, com cabo de

madrepérola.

- Esse é seu.

- Obrigado, não serve para fazer guerra, mas dá para

me defender, fingiu José, alisando aquela jóia.

Buscou no porão 4 queijos e umas dez tripas de

salame para que eles “se entreterem” enquanto pegava seu

tordilho:

- Esse matungo é lerdo, mas vai até lá.

No caminho soube que eles fizeram “um estrago” na

casa dos Dalla Vecchia porque aqueles eram assisistas,

segundo suspeitavam. E observando bem, o cavalo que o

delegado montava era muito parecido com o de

Ângelo...cismou para si mesmo José.

Voltou à tardinha curioso por saber como seria o

encontro deles com os “revoltosos” escondidos nas grotas

204

Page 205: Histórias do viver

do Fão. Torcia secretamente para que o delegado e sua

força fossem derrotados.

Soube depois que chacinaram 12 homens quase

desarmados.

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Page 206: Histórias do viver

TRAÍRA

Manhã de fim de primavera. Promessa de calor no

vale de Jacarezinho. As últimas estrelas, apagando-se, o

dizem.

Pão cheiroso da véspera, um palmo de salame,

melado numa garrafinha e chá de mate com leite noutra

garrafa de cerveja, para o café das 9 horas. Tudo numa

pequena toalha branca - de saco de farinha -, amarrada aos

quatro cantos, bordada pedagógica e ironicamente por Ana:

“nesta casa não se blasfema – só se louva a Deus”.

Leonel, os dois cachorros galgo ao lado, espingarda

às costas, - para a eventualidade de uma lebre – farnel

enfiado no cano, sobe a pé, os dois quilômetros de estrada

pedregosa em direção à roça do alto do morro. A brisa

fresca, quase parada, refresca-lhe o rosto que já quer suar.

O despertar dos pássaros povoa os ouvidos de música, tão

antiga, tão conhecida e tão nova...

Quando o sol aparece lambendo os cabelos verdes

do alto da montanha, o eito de milho capinado já vai

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Page 207: Histórias do viver

grande. Leonel estira a enxada com destreza. O inço

arrancado vem para o pé descalço e este sacode-o,

esparrama-o, retirando-lhe a terra. Assim o pastiçal morre e

ainda serve de adubo. Mas é preciso não deixar sementar,

especialmente a milhã e o picão. Do contrário, o trabalho

para o ano será dobrado.

Dia pleno, sol causticante, as ervas e o milho

encolhem-se escondendo as folhas daquela ferocidade. Suor

aos borbotões, boca seca temperada por gotas salgadas,

garganta pedindo água. O prazer de ver o inço morrer.

Leonel pára junto às pedras. Uma vertente de água

fresca. Para beber e se lavar o rosto e os braços.

Desenrola seu frugal café. Corta o meio pão fofo em

duas generosas fatias, derrama sobre elas o melado, e

degusta o doce-salgado da vida, seus olhos deslizando pelas

fímbrias do mato com micos e papagaios, e alcança lá longe

a lavoura e a casa de Antônio onde encontrou sua mulher.

Pensa na bênção que é sua mulher. Neste dia ela não

viera trazer o café como de costume. A filha menor não está

bem. Os cuidados redobram. A lembrança do segundo filho

que morreu pequeno, com um ano e meio, aguça a

preocupação.

207

Page 208: Histórias do viver

Depois, é agarrar-se à enxada e limpar pelo menos o

hectare e meio que vai até a beira do mato.

A enxada de pé não faz sombra: é meio dia. Hora de

descer.

À tarde não voltará. Irá a Encantado tentar um bom

preço para o feijão recém colhido. Se o preço continuar tão

baixo – sempre isto acontece na hora da colheita -, arriscará

negociar com Francisco pelo valor que tiver daqui a trinta

dias. Francisco adiantar-lhe-á um pouco de dinheiro para os

remédios.

Assobiou para os cachorros. Não apareceram.

“Devem estar extraviados atrás de algum rasto”. Desceu

rápido. Afinal, montanha abaixo todos os santos ajudam, e

as pedras que rolam o exigem, pensava.

A fumaça da chaminé indicava que Ana preparava o

almoço. Jandir chegava da escola com sua sacolinha de

pano.

- Ana, espera um pouco, dez minutos. Vou buscar

uma traíra. Prepara a banha. Jandir vai comigo. Quando eu

pegar uma, ele a trará. Pego mais uma e volto em seguida.

No arroio Jacarezinho, nestes tempos, as traíras

ficavam chocando ao sol, nas partes rasas. Leonel sabia o

208

Page 209: Histórias do viver

lugar delas. Fisga na mão, ia direto aos pocinhos da curva.

Não errava uma fisgada.

- Jandir, leva esta para a mãe. Enquanto ela frita esta

eu chego com outra.

Os dedos nas guelras para que ela não mordesse,

Jandir corria, potreiro afora, com o trunfo reluzente ao sol.

Se alguém o visse e perguntasse onde a pescara, respondia:

- Peguei à mão.

Enquanto Ana a escamava, cortava em postas,

passava na farinha de trigo e fritava, aparecia Leonel,

vitorioso, no topo da escada com mais uma traíra e um

cascudo.

- Esta outra é para a janta. O cascudo é para as

crianças. Não tem espinhos.

A habilidade, o tempero de Ana, seus olhos azuis

como um anjo que zela, que cuida, companhia de todas as

horas, os olhos faiscantes das crianças, faziam do almoço

uma festa.

O resto não importava. Sempre tinha solução.

209

Page 210: Histórias do viver

BEM-QUERER

- Acho que nem sou filha de meu pai!, - escrevia

desolada Irma desde o internato das irmãs de Nova Bréscia

-. Ele não me dá carinho. Ele nunca me beijou. E quando

me visita, é cinco minutos para saber se tudo está bem. Ah

que vontade de um beijo e de um carinho como os outros

pais fazem às minhas colegas! Sinto que não valho nada.

Vontade de morrer! Tenho 14 anos e nunca fui beijada por

meu pai... Beijar é pecado?

- É que não percebes, - respondia Jandir desde

outro internato -, o modo que o pai tem de oferecer carinho

para seus filhos. Ele é gringo. E para o imigrante italiano

(para seus descendentes de geração em geração) o carinho

principal que um homem pode dar à sua família é a

disciplina, a ordem. Ser pai é mandar e ser obedecido pela

voz, pelo relho ou pelo olhar simplesmente. Quando todos

se comportam bem, adequadamente, estão bem

encaminhados, são felizes, pensam eles. Ternura? Afeto?

Carinho? É fraqueza, moleza, falta de energia que leva à

210

Page 211: Histórias do viver

desordem e à desorientação dos filhos. O verdadeiro afeto é

a disciplina. Elogiar os filhos? Só quando eles não ouçam,

para evitar que se façam vaidosos. Facilitar a vida dos

filhos? Nunca! É na dureza das dificuldades e dos

obstáculos que se aprende a vencer. Observa bem e verás

que é este o jeito que o pai tem de manifestar afeto e

carinho, concluía.

Eu ficava recordando o pai de meu pai, de pé na

varanda, chamando e dando ordens aos filhos e netos.

Autoridade patriarcal inconteste. Nunca repetia uma ordem.

Obedecer é também estar atento à voz de quem manda. E

estar disposto a realizá-la imediatamente. Discutir uma

ordem? Jamais. No máximo, perguntar para entender.

Responder aos pais e aos mais velhos não era apenas falta

de educação, era quase um crime. Bastava um gesto, um

aceno e as crianças entendiam claramente o seu lugar no

espaço e na conversa. “Crianças não se intrometem em

conversa de adulto... escutam e aprendem”...

Lembrava também que nossos antepassados,

formados no interior do Estado de Cristandade, levavam a

sério o conselho bíblico que “a educação dos filhos não

dispensa a vara” e o provérbio milenar repetido todos os

211

Page 212: Histórias do viver

dias que “é de pequenino que se torce o pepino”... Ficava

pensando na solidão desses pais que não poderiam saber

das traquinices dos filhos sem tomar imediatamente uma

posição corretiva e severa. Era melhor então, para todos,

não saber o que realmente ocorria com os filhos.

E assim os pais faziam de conta que realmente

mandavam e os filhos que realmente obedeciam. Mas a

disciplina formal, explicitada no mando e na vara, era o

critério. Mesmo a vara e o tapa subentendido, implícito,

escondido atrás das portas, dos escuros, dos silêncios, dos

olhares, permanecendo apenas como uma possibilidade. E o

respeito, sim o respeito, também era um bem-querer.

Os dias correram. Os esvãos do coração enchendo-

se de pura saudade.

Sábado à tardinha, 7 de dezembro. Hora do ônibus.

Ônibus de Soledade e ônibus de Lajeado. Ana pressente,

intui, sabe que os filhos que estão longe de casa estudando

retornarão. É bem provável que venham todos neste dia,

véspera da Imaculada Conceição. Dos 10 filhos, cinco estão

internados: um em Erechim, duas em Soledade, uma em

Nova Bréscia e um em Pinheiro Marcado. Só os pequenos

212

Page 213: Histórias do viver

estão em casa, em Campo Novo, interior de Fontoura

Xavier.

Em meio a uma nuvem de poeira que suja até o

vermelho lindo do sol poente, descem do velho e amarelado

ônibus, os filhos e os vizinhos em algazarra, relembrando

uns aos outros o desfecho da última piada.

Ana, braços abertos, nem sabe como expressar tanta

felicidade. Abraça um a um entre um “eu sabia que vocês

vinham, estava esperando” ou “que bom que vocês

chegaram, graças a Deus”... Os pequenos se dependuravam

no pescoço dos irmãos tentando adivinhar o presentinho

que haviam trazido... E a casa simples de madeira sem

pintura, mas limpa e ampla como o coração de mãe pobre,

com jardim sempre florido, enchia-se de vozes, todos

querendo falar ao mesmo tempo.

Já escurecendo, chegava o pai com sua última carga

de toros para a serraria, em seu caminhão de lataria

amassada e desbotada, sinaleiras quebradas pelos galhos no

mato. Castilo vinha com ele. Em cima da carga, suado, sem

camisa, vinha abanando, mostrando em seus 12 anos, a

valentia de quem sabe e é capaz de exercer o ofício de

carregar, descarregar, amarrar toros e mais toros, desde a

213

Page 214: Histórias do viver

madrugada até o escurecer. A escola? De manhã, entre uma

urgência e outra dos trabalhos do pai. Mesmo porque quase

nada se aprendia naquela escolinha do interior onde a

professora só tinha a 5ª série.

Os dois cinamomos frente à casa pareciam mais

frondosos. A escada e a porta eram estreitas para todos

passarem ao mesmo tempo arrastando sacolas e malas.

Um cheiro de pão fresco, de forno de barro,

recendia por toda a casa.

Ana, o coração saltando de ansiedade de ouvir e

estar com todos, põe ordem:

- Bem, os guris organizem as bagagens nos quartos

e as gurias venham para a cozinha ajudar a terminar a janta.

E se desculpava:

- É pena, mas não tem pão. Só o pão que eu fiz hoje

de tarde. Mas aquele pão de padaria que vocês gostam, não

me lembrei de pedir a Leonel que trouxesse ontem quando

foi à cidade.

Sentindo o cheiro de pão quente que vinha do cesto

de vime coberto com uma toalha branca bordada pela mãe,

os filhos, água na boca, riam:

214

Page 215: Histórias do viver

- Passamos o ano inteiro comendo cacetinho de

padaria, sem gosto, com saudade desse pão fofo.

E um pão alto de forma, moreno, casquinha

crocante, odor convidativo de intimidade, foi sendo

devorado aos pedaços, partido a mão, como aperitivo de

estar em casa.

- Este pão é o resumo de nossa saudade, e a senhora

diz que não tem pão!?

Os irmãos lembravam dos sábados à noite. Retorno

da catequese. Uma bacia de leite exposta ao ar fresco, logo

fora da janela, para não azedar... (não existia geladeira).

Uma grossa camada de nata na superfície. Na impaciência

gulosa de meninos, ao invés de retirar a nata com

escumadeira, passavam sobre ela uma polpuda fatia do pão

macio e ainda quente. O pão de sábado...Fazia bem à alma e

ao coração. E iam silenciosamente dormir tendo na boca o

gosto e o sorriso dos anjos... Na manhã seguinte sempre a

mesma queixa “quem mexeu no leite que azedou?”.

Na janta, todos à mesa, todos os lugares

preenchidos, o pai à cabeceira, a mãe de pé ao lado dele:

215

Page 216: Histórias do viver

- Acho que podemos fazer uma bela oração de

agradecimento. Jandir puxa. Graças pelo ano, pelas férias,

pela família, pela paz.

E a janta: a alegria da sopa fumegante de feijão com

“bigoli” feitos em casa, dourados pela gema de ovos e

farinha de trigo do moinho da vila. As saladas verdes da

horta que Ana e os menores sempre mantinham viçosa,

temperadas com toucinho frito e vinagre de vinho – uma

provocação aos narizes e às mucosas salivares-. Meio

cabrito assado ao forno: Leonel. fazia questão de

destrinchar -e ele sempre tinha uns 30 cabritos no potreiro à

espera de um amigo que chegasse. E polenta sapecada na

chapa do fogão, mantendo sempre uma relação de

proximidade entre o calor e o sabor – calor humano e sabor,

sabor humano e calor- . E o queijo, e os temperos fortes de

cebolinhas, salsas, alecrim, noz-moscadas, hortelãs e sálvia

com gosto de mão de mãe; e salames, arroz com vermelhão,

um bom copo de vinho que o pai guardara “para a chegada

dos guris”. Era uma festa. Todos querendo conversar,

perguntar, falar e falar...

Ao final, quando os mais conversadores ainda

trincavam um pedaço de cabrito, Irma levantou-se para

216

Page 217: Histórias do viver

ajudar a tirar a mesa e limpar a cozinha pois esperava um

namoradinho que viria.

Foi então que o pai falou, quase solene:

- Não, nada de sair da mesa! Nada de limpar a

cozinha!...

- Mas, pai, - quis suplicar Irma - o Antoninho vem

aí!...

- Ele que venha se quiser, disse Leonel. Agora quem

manda aqui sou eu. E nós vamos é cantar... Passamos o ano

todo com vontade de cantar, mas vocês não estavam em

casa... Agora? Agora é hora de cantar.

Formávamos, efetivamente um lindo coral a quatro

vozes, os irmãos e os pais. Cantávamos canções italianas,

cantos religiosos polifônicos, canções gauchescas e do

folclore brasileiro. Enfim, cantávamos muito quando

reunidos, fazendo jus à tradição legada pelos avós.

- Mas... Irmã queria falar...

Pisquei-lhe e ela não se conteve. Sorriso escondido

no canto dos lábios, lembrou-se do que eu lhe havia escrito.

Saiu de seu lugar no banco de madeira, contornou a mesa e,

enroscando-se por trás no pescoço do pai, num abraço

apertado, disse-lhe chorando:

217

Page 218: Histórias do viver

- Velho danado, não tens outra forma de manifestar

carinho?

O pai, vermelho mais que o vinho e assustado com

aquela inusitada manifestação de afeto, arrepiado, uma

lágrima no canto do olho, tentou disfarçar:

- Chega,...chega,... não precisa dizer e repetir

sempre que a gente se quer bem... basta querer bem.

Os irmãos, a começar pelos menores, estupefatos, os

olhos entre esbugalhados e lacrimosos... Comovidos? ...

Novos tempos?

As canções daquela noite tinham mais entusiasmo,

mais harmonia, um novo sabor.

.

218

Page 219: Histórias do viver

O DIABO NO BAILE

No assento do carona, Leonel retorna de

Jacarezinho para Encantado e dali para Porto Alegre.

Felizmente o cunhado adoentado está melhor. O final de

tarde quente de verão, traz à memória um turbilhão de

lembranças dos tempos de menino e de rapaz. O calorão

acachapante do vale, com o ar parado, calor que treme em

si mesmo, era seu conhecido desde a infância.

Aqueles quatro quilômetros para Encantado da

estradinha estreita, pedregosa, com curvas bruscas e

perigosas que vitimou alguns amigos de infância sob as

rodas de um caminhão mais afoito ou com a perda de

direção de suas velhas bicicletas, agora está asfaltada. Não

há poeira. As casas à sua beira estão limpas, pintadas

recentemente, flores nas varandas e nas janelas, um sinal de

vida digna dos tempos recentes.

Os parreirais e os pomares viçosos, os chiqueiros e

os galinheiros limpos, as vacas bem nutridas numa ínfima

nesga de potreiro que até parece milagre. Cada um, com

219

Page 220: Histórias do viver

seus oito ou dez hectares produz tudo o de que uma vida

familiar precisa. Todos com seus eletrodomésticos de

último geração: não só luz elétrica e água encanada trazida

em mutirão dos morros próximos, mas também telefone,

televisão, automóvel ao lado da carroça de bois, com a

facilidade de guardar seus produtos em amplos

refrigeradores... Leonel vai pensando que dá prazer ver

aqueles parentes e conhecidos de outrora vivendo tempos

de relativa fartura na simplicidade de suas comunidades

coloniais. É verdade que a maioria dos filhos já não está ali.

Foram a Lajeado, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo ou

Mato Grosso em busca de espaço mais amplo para

trabalhar, crescer, estudar. Eles voltam sempre para rever os

pais e o irmão que ficou com eles. Para matar saudades.

Leonel pensava em seu exílio da terra natal. Recém

casado buscou terras novas em Pinhão, Bentevi na beira do

Uruguai, retornou para Guamirim, Soledade e agora está

perto dos filhos em Canoas. Os amigos que ficaram

guardam as raízes. É bom revê-los, nos mesmos montes,

nos mesmos vales, nos mesmos riachos que vão

minguando, minguando em seus filetes de água.

220

Page 221: Histórias do viver

Na última curva que deixa a comunidade S. José

para mostrar Encantado na concha de morros que se

encostam no rio Taquari, Leonel aponta à direita, em meio

a casas velhas e árvores de tapera, o lugar do baile.

- Foi ali. Era uma casa de negócio e um salão de

baile. Todo mundo falava. Muita gente viu... Quando fiz

minha primeira comunhão na matriz de Encantado, em

frente à igreja, lá no alto, havia duas grutas. Nelas as mães

vestiam as crianças para poderem entrar limpos na missa.

Nós éramos 100 crianças. Todos de branco. Eu tinha 9

anos. Chovia muito. Lembro... Pois bem, as mulheres

comentavam que os tijolos daquelas grutas eram do salão

de baile da linha São José. Quando derrubaram o salão,

deram os tijolos para a Igreja e Padre Foscalo foi buscá-los

para fazer as grutas. A gente se arrepiava. Eu me arrepio até

hoje.

- Mas a história é assim, - prosseguiu Leonel, com

aquela paisagem semi-morta diante dos olhos- . Santina,

moça faceira e um pouco abusada, disse aos pais que iria ao

baile naquele sábado à noite. Os pais não queriam. Não era

conveniente. Iriam uns rapazes da cidade e gente de fora

que ninguém sabia de que família eram. Os pais nem iriam.

221

Page 222: Histórias do viver

E sem os pais a filha não deveria ir. Santina enfrentou a

autoridade do pai e disse;

- Eu vou, porque vou ao baile. Dançarei com o

rapaz mais bonito mesmo que seja o diabo.

- E foi, continuou Leonel em tom grave... Um rapaz

bem penteado, fatiota azul impecável, camisa branca de

seda, veio tirá-la para a dança. Enquanto bailava feliz, um

menino, olhos esbugalhados e apavorados saiu correndo ao

encontro dos pais:

- Aquele moço de azul, em vez de sapatos tem casco

de cavalo...

Os pais olharam, muitos olharam e, quando muitos

viram houve uma fumaça densa... e o moço desapareceu...

No chão ficaram as marcas de ferradura de cavalo em

brasa...

O baile terminou. Nunca mais ali houve baile. A

casa caiu.

Espavorido, o povo comentava...

Santina nunca mais pode por os pés na igreja. Até o

dia em que o barqueiro, pessoa quieta e que enxergava

muito bem na escuridão do rio, enamorou-se dela e com ela

casou.

222

Page 223: Histórias do viver

Padre Foscalo fez o casamento.

- Os mais velhos sabem... é só perguntar, finalizou

Leonel.

223

Page 224: Histórias do viver

O MOINHO DE GIÁCOMO

Eu tinha um burrinho. Daqueles de fazer inveja a

qualquer criança.

Não era tão alto como a mula de meu avô. Vovô se

gabava que esta era o animal mais resistente da região. Que

montava nela pela manhã em Jacarezinho e à tardinha

estava em Soledade. Eram mais de noventa quilômetros

subindo e descendo montanhas. Estrada de muita pedra.

Sua mula era firme. Não tropeçava. Nem se enredava ao

atravessar o rio Forqueta. De caminhar parelho, quase

marcha troteada, engolia distâncias sem mostrar sinal de

cansaço como os cavalos dos vizinhos que para ele não

passavam de matungos, úteis apenas para o serviço grotesco

ao redor das casas. No alto daquela tostada, a capa

impermeável de feltro bem enrolada e presa atrás dos

arreios, badana cor-café e pelegos brancos sempre limpos, o

laço pendendo do lado esquerdo sempre pronto para o

lance, rédeas do freio e buçal trançadas por ele mesmo e

224

Page 225: Histórias do viver

com capricho, rebenque tala larga de argola grande e

prateada só para gesticular e dizer que o tinha, João fazia de

suas viagens de negócios um desfile e um passeio.

Mas eu também tinha um burrinho. Ah! Se tinha! Se

não era tão alto e imponente como a mula de vovô, também

não era tão baixo, exíguo e mirrado como jegue do

Nordeste. Para minhas pernas de menino de 6 anos era alto.

Era manso e era amigo. Uma espiga de milho na mão, buçal

à vista, chamava-o e ele vinha tranqüilo. Por-lhe o buçal era

fácil porque ele baixava a cabeça. Montar nele em campo

aberto era mais difícil: subia-lhe pescoço acima agarrado

em suas crinas. E ele não se movia. Depois, entronizado em

seu lombo, cutucava-o com os calcanhares e ele se punha a

trotezito em direção à porteira.

Meio saco de milho, meio saco de trigo divididos

em partes iguais, uma para cada lado da cangalha, um

peleguinho sobre a moagem e lá ia eu Jacarezinho acima,

para além da capela da Auxiliadora, pela estradinha estreita

sobre os peraus que caem abruptos sobre o mato e o arroio,

e que vai em direção à Nova Bréscia, até o moinho do

Giácomo. A trilha, que da estrada levava ao moinho, era em

descida íngreme. Dificilmente a carga não acabava no

225

Page 226: Histórias do viver

pescoço da montaria. E então, quando ninguém aparecesse

para ajudar, era preciso voltar o burro monte acima como

para retornar e tentar balançar o carregamento para que

voltasse ao lugar. E isto tantas vezes quantas fossem

necessárias até chegar ao moinho.

Seu Giácomo, o chapéu, a roupa, o rosto, as mãos

sujos de farinha, - eu não via nisso sujeira mas dignidade de

trabalhador -, descarregava solícito o burrinho, arrumava

decentemente os bacheiros e a cangalha, apertando melhor

a chincha. Tratava de trocar o milho e o trigo por um peso

devido de farinha, mandava um recado brincalhão a meu

pai e recomendava que eu não parasse no caminho.

Tudo valia, menos não parar na casa dos primos

Bagatini. Eu sempre inventava qualquer pretexto para

chegar. E tia Maria sempre tinha alguma coisa para mandar

à minha mãe. E sempre tinha um quitute, uma fruta, ou um

suco para convidar e agradar. Jogar peão, meia hora que

fosse, com meus primos Irino e Jocir era tentação

invencível.

Depois ia descendo a estradinha do perau de

vagarinho contemplando as casas de madeira no outro lado

do arroio. Os rapazes arando e gritando com os bois: “ao

226

Page 227: Histórias do viver

rego Pintado,... “vamos, vamos Bonito”...! A fumaça das

chaminés em todas as casas desenhavam nuvenzinhas

ingênuas no verde escuro das árvores, anunciando que

havia água quente sobre a chapa do fogão e que as mães

estavam preparando a janta. Perto daquelas casas de

madeira e cobertas de tabuinhas de pinho ou de zinco, o

alaranjado vermelho dos caquis maduros indicava que era

outono. O coral sincronizado dos galos que cantavam e

respondiam de casa em casa formava um sistema de

comunicação entrecortado pelo canto de bentevis, pombas,

sabiás, tico-ticos e algum inhambu lá na crista das

montanhas de mato espesso.

Um dia, bem no meio da estradinha do perau,

quando ela se estreita de tal forma que só dá passagem a

uma carroça ou um cavalo ao lado do outro, tendo à direita

o penhasco de pedra e à esquerda o precipício que dá no

arroio a quase cem metros de altura, meu burrinho teve um

grande susto.

Íamos sossegados. Ele controlando cada passo para

não resvalar nas pedras e para não deixar cair a moagem e o

condutor. Eu cismando com folguedos da escola e com a

amizade entre os animais e as crianças. Pensava

227

Page 228: Histórias do viver

especialmente em meu cachorrinho Totó, meu braço direito

e esquerdo em cuidar para que os porcos que acaso

fugissem do chiqueiro a ele retornassem guiados pelo acoar

e pelos dentes do cão. Não adiantava correr. Não adiantava

fugir. O leitão voltaria, quisesse ou não quisesse. Eu

esperava de portinhola aberta... e depois corríamos e

brincávamos como se ele também fosse criança.

Numa curva, morro abaixo, atrás de nós e em

velocidade demasiada para as condições daquela estrada,

vinha o automóvel preto do médico de Nova Bréscia. Não

conseguiria frear antes de nos apanhar. E se freasse

bruscamente naqueles cascalhos soltos correria todo o

perigo de desgovernar-se e cair no precipício. Senti o

pânico esfriar-me a espinha e as pernas...

Não sei como, nem por quê. Mas, num segundo,

meu burrinho saltou para cima de um patamar de pedra à

direita, a mais de metro de altura e onde só cabia ele. Não

caí. Ele não tropeçou.

Quando pode parar, o médico voltou correndo e

preocupado... E nos viu, no alto da pedra, como uma estátua

dos cavaleiros antigos, incólumes. Eu ainda deveria estar

pálido e gaguejante porque nem consegui responder à

228

Page 229: Histórias do viver

brincadeira que ele fez para desanuviar... “Não sabia que

você passa farinha na cara...”

Difícil foi fazer o burrico descer daquele altar. O

médico descarregou a farinha para aliviar o salto do burro.

E depois, o doutor Francisco puxando lá de baixo e eu

batendo levemente fizemos o retorno à estrada.

Tudo posto em seu lugar, lá se foi o simpático

médico, não sem antes me encher as mãos de balas que

sempre carregava nos bolsos do casaco, certamente para

compensar o medo das crianças depois das injeções.

Antes que o sol empurrasse a sombra de nosso

monte para o outro lado do arroio e cobrisse metade

daquele morro, eu chegava. Melhor, chegávamos em casa.

229

Page 230: Histórias do viver

IMACULADA CONCEIÇÃO

Oito de dezembro. Não importava a urgência dos

trabalhos da roça. Não interessava se a chuva ameaçasse

destruir o feijão na eira, ou o resto de trigo para recolher.

Leonel não trabalhava. Era mais que um feriado. Era o dia

da Imaculada Conceição14. Ana insistia que era um dia

propício para ir à missa, para se confessar e comungar:

afinal o Natal já estava próximo.

Leonel, porém, madrugada ainda, logo após a

terceira cantada dos galos (por volta das 4 horas), afivelou a

cartucheira com 36 cartuchos bem carregados, acolherou os

cachorros viadeiros, boné preto, botas de trabalho e saiu

mascando um pedaço de pão com salame. Um companheiro

de caçada o esperaria na encruzilhada da estrada que leva a

Soledade. No fundo dos campos de seu Noé, nos matos que

14 Os imigrantes italianos foram profundamente marcados pelo ConcílioVaticano I que, em 1859 proclamou o dogma da Imaculada Conceição,reafirmando com isso a distinção do catolicismo e protestantismo e aautoridade do papa cuja infalibilidade também foi decretada no mesmoConcílio. Assim o papa, sem autoridade territorial e política, marcavasua autoridade diante dos povos.

230

Page 231: Histórias do viver

vão até o rio Forqueta, havia muito veado e paca. No lusco-

fusco fresco do amanhecer ia pensando: hoje não voltarei

de mãos vazias.

E lá foram Leonel e Jerônimo combinando em voz

baixa onde cada qual deveria posicionar-se para esperar a

corrida do veado ou das pacas, onde soltariam os cachorros

e em que deveriam atirar: nada de tiro em pássaros; é só

para espantar a caça e desnortear os cães.

Leonel postou-se à beira do rio onde um córrego

desaguava. As lajes, antes do poço remansoso era o lugar

ideal para avistar a caça e atirar. Chegando às pedras, o

veado costuma parar antes de atirar-se à água. Era o

momento de abatê-lo. Jerônimo ficou mais acima, à beira

de um canto de campo, pois se a caça quisesse passar de um

mato para o outro deveria passar por ali.

Soltaram os cães que, como de costume, foram

subindo ladeirão de mato acima, tentando descobrir o rastro

de veado ou de paca.

Tão logo cheirassem pisadas frescas iniciariam a

latir baixinho, quase chorando, avisando que a presa

deveria estar por perto. E quando vissem a caça atirar-se-

iam morro abaixo em corrida desabalada atrás dela, num

231

Page 232: Histórias do viver

desabrido “quiu, cáu, quiu, cáu” que ecoaria pelos morros.

Era só esperar de prontidão que, a uns cinquenta ou oitenta

metros à frente dos cães viria o veado. Quando era paca a

corrida era diferente fazendo curvas e mais curvas antes de

chegar à água ou ao campo.

Mas naquela manhã os cachorros não ganiam, não

latiam como se não houvesse rastro nenhum naqueles

morros.

Esperaram, meia hora, uma hora e nada.

Leonel encostou a espingarda numa árvore, fez um

palheiro de vagarinho, apurou o ouvido. Só o barulho

manso da água do rio que descia em meio às pedras em

pequena corredeira.

Dez horas. Sol quente. Assobiou para ouvir a

resposta de Jerônimo. Este não respondeu. Assestou a

cornetinha de chifre e buzinou três vezes para chamar os

cachorros. Estes também não responderam.

- Mas que diabo é este, dizia para si mesmo Leonel.

Jerônimo deve ter se deslocado para mais longe e eu talvez

não ouvi a corrida.

Tornou a assobiar e buzinar. E nada de resposta.

232

Page 233: Histórias do viver

- Talvez os cães, não tendo encontrado rastro por

perto, foram para o outro lado da montanha. Mas, nenhuma

corrida? Nenhum tiro? É um vexame.

Contrariado, resolveu ir embora de vez.

No entanto, apesar do combinado de não atirarem

em pássaros, Leonel mudou de pensamento quando viu

sobre o galho de um pinheiro, a não mais de 30 metros dali,

uma pomba branca. Não era pomba de campo mas era tão

graúda como aquelas e parecia não se importar com sua

presença.

Apanhou a espingarda belga de dois canos de

calibre 32 e com a qual não errava tiro, mirou bem e

detonou. O estrondo ecoou por aqueles fundos de mato. A

pomba, porém, não se moveu. Não se assustou e continuou

impávida a olhá-lo.

Leonel não acreditou. Nenhuma pena caiu?

Examinou a arma e os cartuchos: tudo estava correto, o

chumbo apropriado, a distância era a ideal para aquele tiro,

ele não tremera. Assestou novamente a espingarda e atirou

com o segundo cano. O estrondo foi igual. O eco foi igual.

O galho em que estava a pomba descascou com o impacto

233

Page 234: Histórias do viver

dos chumbos. Mas a pomba estava lá. Como se nada tivesse

havido.

- Quem sabe não é uma pomba, é uma ilusão de

olhos?

Mas a pomba se mexia, levantava e baixava a

cabeça, suas patinhas deslocavam-se sobre o galho.

- Não é possível!, dizia de si para si Leonel. Eu

nunca errei tiro assim. É vergonhoso. E que dirá Jerônimo

quando me perguntar em que atirei?

Pôs mais dois cartuchos, daqueles carregados a

capricho, chegou um pouco mais perto, apontou e atirou

com os dois canos ao mesmo tempo.

Os chumbos quase cortaram o galho do pinheiro.

Mas a pomba? A pomba estava lá, a olhá-lo, mansamente,

sem repreensão e sem medo.

Leonel, arrepiado, entendeu ou quis entender:

- É um sinal. Um sinal de Deus... Que dia é hoje?...

Hoje é terça feira, oito de dezembro, dia da Imaculada

Conceição...

Voltou. Não encontrou Jerônimo. Os cães estavam

dormindo à sombra do galpão.

234

Page 235: Histórias do viver

- Nunca mais caço neste dia, prometeu para si

mesmo.

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Page 236: Histórias do viver

O DISCURSO DE ANA

Sentado à sombra da figueira em frente à varanda da

casa de madeira, Leonel, camisa desabotoada, respira com

gosto o ar fresco da tardinha, depois de um dia de tanto

calor.

A aragem suave, quase imperceptível e que nem

move as folhas das roseiras, traz, de todos os lados, uma

serenidade que tranqüiliza e pacifica os pensamentos e os

desejos.

Olha para Ana que lhe serve um chimarrão

suculento como a saudade.

Este chimarrão tem a história de mais de cinqüenta

anos. A vida deles foi tecida, entretecida de chimarrões.

Cada dia, todos os dias, a vida começava com o

chimarrão. Bem antes de clarear a manhã, hora e meia antes

do sol, lá estavam os dois na cozinha ao redor do fogão a

lenha. Enquanto ele reacendia o fogo, que nunca chegava a

se apagar de todo, ela limpava a chapa de ferro, trazia a

chaleira preta para aquecer a água e punha ao alcance de

236

Page 237: Histórias do viver

sua mão a erva, a cuia, a bomba para que ele armasse e

cevasse o mate.

Era a liturgia sagrada de todos os dias. Enquanto o

leite esquentava de vagar no canto do fogão e a chaleira

chiava, eles sorviam, gole a gole, aquela intercomunicação

amorosa. Era uma hora e tanto, sem muitas palavras. As

suficientes para organizar a jornada e para manter quente a

proximidade e o aconchego. Muitas vezes o diálogo deles

nem era feito de palavras. Uma pequena exclamação, um

“ah!...éh!” e o diálogo se mantinha, prosseguia, como se

fosse sustentado pelo mais eloqüente discurso. Às vezes

Leonel se surpreendia respondendo a uma pergunta que

Ana nem tinha feito e que ela continuava como se a tivesse

feito... Quando o amor amadurece dispensa palavras... basta

um gesto, uma insinuação, uma sílaba...

A cada gole longo, as mãos acariciando a calidez da

cuia, os olhos recolhendo os pensamentos e depositando-os

no rosto acolhedor da parceira, ele sabia que ali era o seu

lugar. Lugar para estar, para partir, para chegar, para ficar.

Era a referência geográfica para todos os lugares do mundo.

Para o que fica perto, para o que fica longe... Aqueles

densos diálogos feitos de longos espaços de silêncio eram-

237

Page 238: Histórias do viver

lhe o fio condutor de todo o pensar, de todo o imaginar, de

todo o fazer.

Ele recordava como as discordâncias tão fortes e

incisivas na juventude, foram amainando, arredondando as

arestas com o rolar dos tempos dialogados que agora apenas

servem para anunciar a riqueza de outras faces do sentido

das coisas. Agora a proximidade amansou a petulante

necessidade da diferença. Basta um suspiro, um “deixa pra

lá...” e as coisas se acertam como se sempre tivessem

estado de acordo.

Não raras vezes Leonel se apanhou intrigado com a

questão: por que não conseguia brigar com ela? É

impossível brigar com ela.

Lembra-se do dia em que perdera um bom negócio.

Era a compra de uma bela gleba de terras povoada de

pinheiros e que lhe renderia anos de trabalho. Fizera uma

oferta e aguardava com ansiedade a resposta. Parecia

incrível que o amigo Fausto não dissesse nada. Naquela

quinta feira à noite, cansado do trabalho, na hora da janta,

comentou com Ana o assunto. Não queria perder o negócio.

Ana, de pé, perto do fogão empalideceu. Olhou-o

com um olhar de arrependimento infinito, quase deixou cair

238

Page 239: Histórias do viver

a travessa da sopa, e, sabendo bem o que aquilo significava

para ele, suspirou em murmúrio:

- Não, Leonel!... Eu me esqueci... Fausto esteve aqui

de manhã. Disse que se tu quisesses o negócio era teu, mas

devias dar a resposta até as seis horas da tarde... E eu,...

eu... esqueci...!

Ele petrificou os gestos. Olhou-a com um misto de

espanto, surpresa e fúria traduzidas em quatro ou cinco

blasfêmias de “pórco dio, pórca madona, camadonassa...”

que abalavam os alicerces de Ana. Ele não podia acreditar...

Não podia ser... Perdeu o melhor negócio de sua vida... Por

um esquecimento?!

Ela ficou em silêncio. Nada retrucou. Entendia que

a repreensão e a gana cabiam... Seu olhar para ele era uma

súplica de perdão...

Quando ele parou de falar e imprecar...

singelamente disse:

- Me desculpa!

E ele quis olhá-la rispidamente... mas não

conseguiu... Ao encontrar-se com o olhar dela o fogo de

seus olhos se apagou. E, então, depois de engolir a saliva

239

Page 240: Histórias do viver

em seco, quase arrependido pelo barulho que fizera,

encerrou:

- Éh!... Fazer o quê?... Haverá outros negócios...

Ana, envidou-lhe um olhar convidando-o para a paz

e, sem falar, ofereceu-lhe um prato de sopa fumegante. E

passou-lhe a mão no cabelo. E Leonel:

- Não adianta querer brigar contigo!

Era mais do que reconciliação.

Agora, sob a sombra generosa da figueira, ele a

fitava, sem falar... como se fora a primeira vez.

Aqueles largos olhos azuis, habitando o rosto

sulcado e amaciado por mil diálogos e encontros apontam

para maior amplidão ainda.

Cinqüenta anos casada com ele. Ela fora a sua

primeira e última namorada. Ele fora seu único amor.

Tinham onze filhos, vinte e cinco netos. A vida dela

sempre fora a sua casa, seu porto, sua estrela. Em todos

seus achaques de erisipela, de coração e de diabetes e que

ela suportava sem queixas, sem alarde, sem reclamações ele

aprendia, com os chás que ela repartia, com as intimações

para ir à missa e às orações, a sabedoria e a dignidade de

viver.

240

Page 241: Histórias do viver

Agora ela estava ali. Inteira. Completa. Presente.

Que bênção, pensava ele, ter uma companheira

assim, que me compreende antes que eu me compreenda a

mim mesmo, que está sempre no lugar apropriado, em

quem ele pode depositar a confiança de ser e de estar. O

coração dela é o estuário da fala, da queixa, da necessidade

e da alegria de cada filho, de cada filha e dos vizinhos, dos

parentes, dos netos... É o lugar de cada um... Como pode?

Os cismares de Leonel andam longe, vão até as

raízes, até os picos do viver. E pensa como é uma bênção

que ela não seja tagarela. Que em sua simplicidade não

precise catar assuntos e distrações para matar o tempo e que

enche o espaço e o tempo de todas as ocupações. Que bom

é o silêncio dela... que boa a fala que nasce de um silêncio

longamente meditado e maturado... e nasce simples,

próxima como ela é.

Uma fala que reduplica para marcar e incidir sobre o

significado principal, como quando diz da água fresca que

bebe de olhos fechados:

- É boa... boa... boa!

Ou quando se encanta ante a beleza de um pôr de

sol ou da jovialidade de uma menina moça:

241

Page 242: Histórias do viver

- É bela... bela... bela!

Ana, a fala dela congrega. O silêncio dela fala. E

convida a alma a falar.

Quem fala? Fala ela? Falamos nós? Ou fala o

silêncio.

O chimarrão, para Leonel, tem sabor da fala de

Ana.

242

Page 243: Histórias do viver

O SANGUANEL15

Filó16 em casa de Alcides e Gema. Recém casados.

Há duas semanas convidavam e insistiam. Queriam reunir

os jovens. Os pais também.

Duas rodas: os homens na sala jogando quatrilho ou

“trisset”17, um garrafão de vinho e carne lessa com pão fofo

do qual Gema tanto podia se gabar; e ao redor da mesa

grande da cozinha, perto do fogo, os jovens tomando brodo.

As mulheres trançando dressas18 de palha de trigo para

15 Sanguanel era para os imigrantes italianos um ente fantasmagóricomisto de Saci Pererê, negrinho do pastoreio, a personificação do diabocom cara e chifres de bode, olhos de fogo, roupa vermelha... o perfeitorapazote malcriado perturbador das mocinhas... o diabo em pessoa.16 Filó, para os imigrantes italianos era uma reunião familiar noturna devizinhos e parentes para conversar, jogar cartas, namorar, fazernegócios. Iam todos os integrantes da família. Servia-se vinho e caldode galinha (brodo) com queijo ralado. O caldo era, geralmente do galomais velho e mais gordo do terreiro. A carne do galo cozido na água(carne lessa), servida aos nacos na mão, era muito apreciada. O pão eas cucas que acompanhavam eram o demonstrativo da habilidadeculinária da dona da casa. 17 Os filhos de imigrantes italianos de Encantado jogavam, além dasbochas e da mora, entretenimentos com baralho espanhol comobríscola (a bisca), o quatrilho e o treis sete (trisset), com muitos gestos,senhas e truques, muito comentário após cada raio e, geralmente porbagatelas de bebida ou de petiscos. 18 Dressas eram fitas largas um pouco mais de um centímetro e queeram costuradas para fazer chapéus e bolsas...

243

Page 244: Histórias do viver

fazer chapéus e cestas e de olho nos jovens. Esses

percorriam os assuntos banais do vale contanto piadas tão

picantes quanto o limite do admissível para o ouvido atendo

das mães que, de vez em quando freavam com um

“pára...pára... sporcachón”.

Joana e Sabina, dezesseis anos, aproveitavam para

levantar o vestido um pouco acima do joelho e abrir pelo

menos um botão ou dois da blusa: estava muito calor!... Era

inverno... José e Pedrinho não sabiam se colocavam as

mãos no bolso ou se desviavam o olhar. Elas sabiam disso.

Percebiam sua atrapalhação e riam por nada... de pura

picardia. Alcides, agora já experiente na vida, acicata

Pedrinho:

- Ah! Se os olhos pudessem ver na escuridão! Ainda

bem que a luz do lampião é fraca!

E a sonora risada de todos é a demonstração

bastante de que todos sabem de tudo...

Assunto vai... assunto vem... e a conversa, como de

hábito, insistentemente retornava para o fantástico, o

miraculoso, o demoníaco que ronda a vida dos homens.

Enquanto isso as labaredas do fogo atraíam os olhares

244

Page 245: Histórias do viver

displicentes de todos e projetavam nas paredes figuras que

incitavam o imaginário.

Diante da incredulidade quase atéia de Gino que foi

seminarista e que mostrava a satisfação superior de ter

estudado um pouco mais de religião vinha a argumentação

cerrada de Fidêncio:

- Você não acredita no diabo? Que ele aparece de

vez em quando? Pergunte à tua tia Angelina. Ela nunca te

contou? Ela viu o sanguanel!

- Quê sanguanel, quê nada! Duvido, retrucou Gino, -

seguro de sua teoria teológica -.

- Eu não duvido, disse Alcides, - olhando de lado lá

do canto da mesa. Ela cansou de nos contar. Ela viu o

diabo.

Ortenila, de olho estalado e achegando-se à irmã

Hortência como para buscar apoio e segurança:

- Eu tenho medo até de contar o que aconteceu com

nossa irmã Angelina. Conta tu Fidêncio para ver se esse

sabido não acreditará!

Fidêncio, com a palavra tão oficialmente oferecida,

encostou-se bem no espaldar do banco atrás da mesa e

contou:

245

Page 246: Histórias do viver

- Bem,... todo mundo sabe. Ela era pequena. Tinha

seis anos. Seu João, com todos os filhos estavam fazendo

açúcar lá em cima, no canavial que fica nos fundos da roça.

Lá onde está o engenho, acima dos potreiros.

Enquanto uns cortavam a cana e a carregavam aos

feixes para espremer no tórcio19, outros cuidavam da

moenda, as mulheres cuidavam do fogo nos tachos e de

mexer continuamente a garapa fervente para não pegar no

fundo.

- Aquela festa de fazer melado e açúcar que todo

mundo conhece, prosseguia Fidêncio. E a gurizada que se

babava de tanto beber garapa. Dona Mariota e Amália

prepararam o almoço em casa e, perto do meio dia,

subiram. Folga para o almoço e os trabalhos retomados até

o escurecer. Quando as sombras do morro já tinha escorrido

montanha abaixo e já subiam pela metade das roças dos

Fontana, lá no outro lado do arroio, todos juntavam as

coisas para descer. As onze latas de açúcar e cinco de

melado na carroça, os tachos e as ferramentas recolhidas,

enquanto os bois comiam folhas de cana.

19 Moenda de espremer a cana para extrair a garapa, geralmente comtrês cilindros e movida por uma junta de bois.

246

Page 247: Histórias do viver

- Tudo pronto? Vamos embora, dizia satisfeito seu

João.

Mariota, porém, se inquietava:

- E a Angelina? Onde está Angelina?

Angelinaaaaaa!, chamava...

Todos silenciaram para ouvir uma resposta... E

nada...

- Angelinaaaa! Gritava a mãe Mariota já

sobressaltada...

- Mas ela estava aqui até bem pouco, disse Leonel.

E todos se puseram a procurar... Procuraram atrás

dos montes de folhas de cana, atrás do engenho, sempre

chamando, chamando e nada de Angelina.

Seu João organizou a procura:

- Para casa, sozinha, não pode ter ido. Ela deve estar

no meio do canavial. Vamos varrê-lo, carreira por carreira,

cada um numa linha, até o final e retornamos nos regos

acima. Antes de escurecer a acharemos.

E assim fizeram, palmilharam carreira por carreira

de cana e nada de Angelina

Inconsolados iniciaram o quilômetro e meio de

descida. Todos atentos a qualquer sinal. Os rapazes

247

Page 248: Histórias do viver

rondaram pelo potreiro... Só as vacas pastando

pachorrentas.

Encostaram a carroça no paiol. Nem descarregaram.

A casa estava como a deixou Mariota. Tudo fechado. Tudo

escuro e em silêncio...

- Angelina, gritou a mãe quase desesperada... Só os

cachorros latiram.

Mariota convidou as filhas para rezarem o “Si

queris” a Santo Antônio que ajuda infalivelmente a

encontrar as coisas perdidas...E nada... nada...

- Repartiram-se e foram para os vizinhos. Eu lembro

que foram lá em casa. Eu devia ter cinco anos, continuava

Fidêncio... Ninguém a viu.

A noite caiu pavorosa sobre a família deles.

Ninguém conseguiu jantar. As meninas choramingando. Os

irmãos com um nó na garganta que não permitia engolir

nem falar. Seu João propôs que rezassem o terço e

entregassem o caso nas mãos de Deus.

Ouviram cada cantar do galo, marcando as horas da

noite e da madrugada.

248

Page 249: Histórias do viver

Amanheceu. Um pouco de serração esfumaçava o

vale. Todos se levantaram antes do costume. No silêncio da

cozinha todos pareciam esperar o inesperado.

E eis que a porta da frente se abre. Todos se

voltaram em sobressalto...

Era Angelina que entrava, olhos inchados e

vermelhos, parecendo tremer de frio...

Todos se atiraram para ela. O alarido foi geral: o

que houve? Onde estavas? O que aconteceu? Mariota

abraçou-a,... abraçou-a e chorou... Até seu João enxugava

as lágrimas na manga da camisa.

E Angelina então falou quase gemendo:

- Foi o sanguanel! Foi o sanguanel! Enquanto vocês

estavam se preparando para voltar para casa, ele me pegou

pela mão, me levou para as canas e me fez subir naquela

bergamoteira que está bem no meio. Quando vocês

chamavam, eu ouvia, mas não podia responder. Ele tapava

a minha boca com as mãos, umas mãos pretas e fedidas.

Vocês passaram em baixo da bergamoteira e eu não podia

responder. Quando vocês vieram embora ele me deixou

descer, mas me obrigou a dormir ali no chão. Ele sempre

perto de mim. Tinha olhos de fogo, dois chifres de cabrito,

249

Page 250: Histórias do viver

uma roupa vermelha, esquisita. Quando o sol nasceu ele

desapareceu e eu fugi para casa.

- Esta é a história, concluiu Fidêncio emocionado. A

história verdadeira de Angelina. E daí? Não existe o

sanguanel?

Gino, passou os olhos pelos olhos assustados de

cada um mas não se deu por vencido:

- Quando foi que Angelina contou isto a vocês?

E todos, em coro, a começar pelos mais velhos:

- Ah! Faz muito tempo. Não é de agora, não.

Então Gino provocou, como cartada final:

- E por que não chamamos a Angelina. Ela mora a

menos de 500 metros daqui!

- Vamos chamá-la, concordou Alcides e todos com

ele... Quem sabe, o Agenor vai até ali!

- Vamos eu e Fidêncio, - disse ele, que não queria

enfrentar a escuridão lá fora, sozinho -. Nunca se sabe! A

gente pode tropeçar nas pedras...

Dez minutos depois lá estava Angelina:

- Vocês me chamaram para quê? Perguntou ela.

Agenor e Fidêncio não me disseram para quê seria.

250

Page 251: Histórias do viver

- É um tira-teima que nós propusemos ao Gino. Ele

duvida que tu tenhas visto o sanguanel. Nós contamos a

história para ele e ele se faz de sabido. Não acredita. Diz

pra ele como foi... É ou não é verdade?

Gino antecipou-se:

- Tia! Agora, depois de tantos anos, ninguém mais

está aqui para censurar o que tu viste. Mas conta a história

direito para nós.

Angelina, puxou para si uma escudela de brodo,

pegou um naco de carne lessa de galo numa mão, uma boa

fatia de pão fofo na outra e contou:

- Vocês nem sabem. Eu nunca contei isto a

ninguém. Mas hoje eu vou contar a verdade...

Naquela tarde eu cortava gomos de cana para

chupar com uma faca de mesa de mamãe. Eu perdi a faca.

Sabia que dona Mariota não só ralharia comigo mas que ela

e meu pai iriam me bater. Eu tive medo, muito medo.

Quanto mais eu procurava menos enxergava. Quando

começaram a me chamar assaltou-me o pavor, o pânico.

Corri para o meio do canavial, subi na bergamoteira e,

escondida, fiquei quieta. Depois que todos voltaram para

casa, fiquei com mais medo ainda. E, no medo adormeci em

251

Page 252: Histórias do viver

baixo da árvore. Com fome, com frio e com medo voltei

logo que amanheceu e contei a historinha do sanguanel.

- Filha da p.... gritou Alcides. Então tu nos

enganaste até hoje?

Gino não sabia se ria, se falava... Degustou

saborosamente aquela vitória.

Mas, quando saiu da porta, ao final do filó, ele não

sabia o que pensar do sanguanel.

FECUNDIDADE

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Page 253: Histórias do viver

Doze de abril. Aniversário de Gino. Festa. Barulho.

Corre-corre de netos. Ana, feliz, na ampla varanda com

churrasqueira que dá para o páteo e a horta com canteiros

de flores, pimentas, radici e tomates, diz a Leonel:

- Que beleza! Todos os filhos, noras, genros e netos.

Deus foi bom para nós. É uma bênção.

Os olhos dela, pela janela aberta sobre a sala,

percorrem a fotografia dos dez filhos na parede, cada qual

com sua ou seu consorte. Cada qual com seu sorriso e sua

pose. Os netos ainda não estão nestas fotografias: são vinte

e quatro.

- Ainda recordo a festa das bodas de ouro de meu

pai, diz Leonel. Oitenta e nove netos presentes. Os oito

irmãos de minha mãe Mariota. Nasceram nove, os nove

estavam ali. O mais velho, Marcos, com noventa e oito

anos. Mamãe era a penúltima e estava com setenta e dois. E

cantaram já um pouco desafinados, mas cantaram e

tomaram vinho da manhã à noite. Será que nós chegaremos

lá?

253

Page 254: Histórias do viver

- Eh bem, só Deus saberá, devolveu-lhe Ana. E eu

fico pensando como as famílias antigas eram grandes... E

ninguém passava fome... Tu és o mais velho de doze

irmãos, eu sou a terceira de doze irmãos, meu pai era o

segundo de quinze e o tio dele Ângelo teve vinte e um

filhos... Quê exagero!, comentava sacudindo a cabeça...

Enquanto os filhos e genros escolhiam cantigas que

todos lembravam da infância e afinavam a harmonia

achegando o ouvido à boca do outro como que para captar

na fonte o som correspondente para a polifonia, a alma de

Ana voltava para os primeiros tempos de casada. Quanta

dificuldade! Quê trabalheira!

Os dois primeiros foram anos de labor insano e

quase inútil em terras do sogro que, ao final ficara com a

maior parte da colheita. Em casa, o mínimo do mínimo

necessário para a cama, mesa e fogão. Os vestidos de

solteira que precisaram ser alargados com a gravidez do

primeiro filho.

Depois amamentar e trabalhar ao mesmo tempo. A

enxada e o peito. O peito e a enxada. De sol a sol. Ainda

bem que a sobrinha ajudava a cuidar da criança depositada

sobre um pelego dentro do balaio, à sombra de uma

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Page 255: Histórias do viver

laranjeira, lá na roça. Quando o menino chorava ou de fome

ou pelos beliscões da menina que forçava o choro dele para

que a mãe viesse e a liberasse uns minutos para brincar, lá

ia Ana a oferecer ao filho o que, graças a Deus, tinha em

abundância: leite morno e temperado ao gosto dele. E ele

crescia forte, rechonchudo...

Nos olhos de Ana estas recordações bailavam ainda

numa atmosfera de felicidade.

Mal o primeiro iniciou a comer papinhas e ela já

estava grávida de novo... Fazer o quê! Era a vontade de

Deus...

Mas, bem que era também por vontade louca,

incontrolável de Leonel que parecia insaciável... Uma ou

duas vezes todos os dias... E uma noite chuvosa de sábado

foram três vezes... que falta de pudor... Ele chegava e vinha

porque vinha... para o que era dele, de direito e de poder...

E ela que no início achava aquilo violento e sujo, apenas

obrigação conjugal, começou aos poucos a gostar também,

embora depois se confessasse que tivera muitos maus

pensamentos e desejos. Só naquele sábado ela chegou ao

descontrole da alegria. Depois soube que aquela quase

255

Page 256: Histórias do viver

morte, aquela loucura toda de gemidos e com cheiro de

chifre queimado se chamava orgasmo.

Ela lembrava que Geni, o segundo filho, nunca

tivera boa saúde. Embora tivesse nascido graúdo, foi

definhando, definhando... aos poucos. Desinteria, febres,

tosses... choro, chorinho de dor ela bem sabia, mas não

conseguia identificar. Ela massageava a barriguinha da

criança, aquentava-a com panos mornos, apelava para todos

os remédios caseiros que cada tia, cada comadre solícita e a

sogra indicavam. Não havia jeito. Remédio para vermes,

erva doce, chá de casca de romã, nada parecia ajudar. Foi

um ano inteiro de carinhos, de benzeduras de procura de

médicos, difíceis de achar e mais difíceis ainda de pagar,

médicos que pareciam pouco ou nada entenderem de

doenças de criança... E o leite? O leite generoso teve que

ser posto fora porque sobrava... sobrava.

Naquela tarde chuvosa de doze de abril Geni parecia

cansado de tanto chorar... E foi chorando menos, mais

baixinho, mais baixinho. Quando a cunhada pediu-lhe o

menino cujo gemido se apagava e o levou para fora do

quarto... Ana escutou, escutou e não ouviu mais... Teve

certeza... rezou... ele acabava de morrer. Entregou-o à

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Page 257: Histórias do viver

Virgem para que cuidasse dele na Casa do Pai. Chorou

baixinho, ouvindo os lamentos que vinham da sala.

A dor dela foi tanta que, grávida de sete meses, deu

prematuramente à luz o terceiro filho.

Enquanto Geni era velado na sala, sobre a mesa

recoberta de flores pelas cunhadas, duas moedinhas de prata

sobre os olhos e todos rezando terços e mais terços... ela,

no quarto ao lado, paria outro filho tão pequeno que cabia

na palma da mão. Não conseguira ir ao enterro de Geni.

Soube que Leonel lhe fizera um pequeno túmulo sobre o

túmba dos bisavós Narciso e Domênica em Jacarezinho e,

ao lado dele já preparou outro para o filho que nascera

naquele dia: certamente não conseguiria sobreviver.

Ana, com tristeza infinita e o filhinho na mão,

redobrou os cuidados. Fez para ele uma caminha de

algodão numa caixa de sapatos. Dava-lhe leite em conta-

gotas... Dedicou-se completamente. Por quase dois meses

Leonel foi à roça sozinho.

Ela mantinha seu filho sempre perto do calor do

fogão. E rezava, rezava muito para que Deus cuidasse do

filho que já fora pra casa e deste pequenino que lutava para

viver. Depois de um mês aquele “ratinho”, um belo dia

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Page 258: Histórias do viver

surpreendeu. Tomou jeito, espichou, desabrochou. E

começou a chorar por comida. Ana chorava de alegria.

E o leite? Ela já não tinha leite. Secara. Então

Leonel trouxe uma cabrita lá do Capitão que salvou e

robusteceu a vida do filho... “Bem aventuradas as cabritas...

porque delas é o reino dos céus!”, quis dizer Ana. Óbvio

que era loucura... onde se viu um bicho ir pro céu?!...

Agora, na festa de aniversário daquele filho que a

cabrita salvara, Ana quis comentar com Leonel: pena que

falte um filho, o Geni. Mas se conteve, porque sentia que

ele estava presente, uma presença cálida e carinhosa

bailando na voz dos filhos que cantavam “Boi barroso... La

verginella... O irapuru, ... Il mazzolin di fiori...”

Foi acordada de seus cismares por Carlos que

anunciava:

- O churrasco está pronto... vamos chegando!

O perfume campeiro da carne assada, o acre das

saladas verdes temperadas com toucinho frito e vinhagre de

vinho, o cheiro adocicado do sagu com laranja

convidavam...

258

Page 259: Histórias do viver

Na oração à mesa, em imensa roda de mãos dadas,

coração aberto agradecendo a felicidade da vida, Ana,

lembrava... um lugar para cada filho.

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Page 260: Histórias do viver

ANA - Comeu tudo!

Sábado à noitinha. Semana em borborinho. Faleceu

Leonel, avô de Vinícius. Missa de sétimo dia. Lembrança

dos melhores momentos. Renovação da esperança na

Comunhão dos santos. Missa na Igreja Santo Antônio do

Laranjal. Também Aninha vai feliz à missa. Tem dois anos

e muita observação.

Olho aceso em todas as coisas, em todos os

movimentos. Tantas pessoas, tantas luzes e Padre Jaime, no

altar dizendo que o bisavô Leonel passara para a casa do

Pai e que não é difícil ser órfão quando o pai está em Deus

e, por isso, tão próximo de cada passo, de cada gesto que

fazemos. Cada canção é acompanhada por Aninha com o

balançar do corpo.

Vem o momento da Comunhão. No colo do pai,

Aninha está na fila e nota que todos apanham a pequena

hóstia e a comem em silêncio. Chega a vez de Vinícius.

Este toma a hóstia, - aquela pequena bolacha branca e

diferente -, e, com ela na boca, encaminha-se para o

assento. Aninha olha para o pai, faz um beicinho de

260

Page 261: Histórias do viver

estranheza, quase a chorar e diz: “comeu tudo!!!”. Quase a

dizer: vocês me ensinaram sempre a repartir as coisas, a

convidar o outro com aquilo que se come, e agora, pai, você

comeu tudo, sozinho. Nem me convidou.

Vinícius explicou logo que, quando fosse grande,

ela também receberia aquele pão sagrado. Aninha entendeu,

ergueu os dois braços:

- quando eu ser grande, ganharei também...

Nos olhos negros, saltitantes de curiosidade e vida,

nos gestos francos de quem quer saber, Aninha me ensinou:

a Eucaristia, afinal, é a festa da partilha do pão. Santa

impressão e rebeldia: “comeu tudo”...

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Page 262: Histórias do viver

QUERO VER

Ana completou recentemente dois anos. Viva,

alegre, curiosa, uma bênção ambulante a povoar o mundo e

nossos sonhos de esperança.

Afável, carinhosa, obediente ante aquilo que não se

pode fazer, mas livre e criativa ante tudo o mais. Tudo é

possível a não ser o que é perigoso, frágil e danoso.

E ela sabe que é livre e que o mundo dos homens,

dos bichos, das plantas, das flores, do sol, da lua e das

estrelas, o mundo da água e do vento, tudo é lugar para

viver, para brincar e encantar-se.

O mágico mundo do bem-querer, o mágico mundo

do sorriso, dos parabéns-a-você, da confiança nos pais, nos

avós, nos priminhos, nos dindos, nos amigos e, por que

não?, em todas as pessoas...

Aninha sabe mexer com o coração do pai. Quando

ele volta cansado, depois de tanta cirurgia, de tanta

burocracia, cansado no corpo e na alma e com vontade

apenas de um banho e dormir... lá vem Aninha erguendo os

bracinhos:

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Page 263: Histórias do viver

Pai amado, vamos passear um pouco.

E lá se vai o pai, descansado, refeito, sorriso largo

na testa, pronto para passear... E o cansaço? O cansaço fica

para outra ocasião. Agora é a vida, o convite a viver.

Diante de cada novidade ela sempre pergunta: o que

é? Por que? E acrescenta: quero ver...

No restaurante, pede à mãe Rosana para ir ao

banheiro. E lá vão as duas: a mãe orgulhosa e feliz. Pensa:

quê bênção, uma filhinha assim!

- “Dá a mãozinha para a mãe lavar... deixa lavar o

rostinho...”

Do outro lado da parede, o ruído da descarga de um

vaso sanitário...

- “Que é isso, mãe?”

É o barulho da descarga de outro banheiro

Onde?

No banheiro dos homens.

Quero ver!

Mas minha filha, você quer ver tudo, parece até São

Tomé!

Aninha suspendeu a voz e olhar:

Mãe, quero ver São Tomé...

263

Page 264: Histórias do viver

ANA CATARINA

Ana tem três anos. Nasceu esperada, cuidada,

querida. Uma bênção, uma graça da força do amor.

Surpresa diária de ser. Que canta, que pula, saltita e

que dança e convida o avô a apanhar pitangas, as grandes,

mais altas, pretas de sabor. E reparte, uma para cada prima

que contam com ela e ela conta com elas para povoar o

domingo de imaginações e brinquedos com bonecas,

casinhas e um bom banho de piscina: com bóias, sem bóias,

espaguete ou no colo do pai ou do avô.

Quem poderá conter, calcular, controlar a ânsia

serena de vida que explode em seu ser, seu andar, agradecer

ou reconhecer que o copo virou: “agora sim fiz uma

cagada”?! E o pai, boca cheia, quase explode de rir. E corre

ao banheiro para se compor e voltar com autoridade: não se

diz assim minha filha.

Aninha que cansa dez anjos da guarda por dia. Que

sobe as escadas: “de vagar, minha filha”, apressa-se a mãe.

Que gosta de bichos, de ver passarinhos verdes aos bandos

264

Page 265: Histórias do viver

da varanda na chácara e escuta atenta os inhambus, quero-

queros e as pombas “puh...puh...”

Aninha que gosta de saia rodada que a avó vai fazer:

“vestido de rodá...” E bem colorido, festa da vida e da

esperança.

Aninha que sabe tranqüila que o pai só vem logo.

Ele está trabalhando. Que a espera é confiante porque o pai

é fiel como a mãe.

Aninha que já vai à escola, “ao colégio” e que

brinca com tudo o que vê e com todos os que estão. Aninha

que gosta de negros e brancos e a todos convida a bailar,

conviver.

Aninha que pensa e como pensa Aninha! Como

cabem tantos pensamentos em cabeça tão pequena, em

olhinhos tão negros e tão vivos?! Raciocínio tão rápido,

imaginação fecunda e solta onde cabem princesas,

príncipes, bruxas, bandidos e amigos, e amigas e a paz de

ficar, de visitar a prima Camila, de estar com avós ou tios,

e tia Márcia e tia Lica...

Aninha que tem uma casa: dois pisos, janelas, portas

e patamar que o pai fez, com suas mãos, seu capricho e

carinho. E a mãe fez cortinas. Debruçada na janela Aninha

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Page 266: Histórias do viver

chama, saúda, provoca, convida... É sua casinha onde a

boneca é ela mesma e todos os que ali vão. Onde o faz de

conta já é acontecer. Aninha tem uma casa. Tem um espaço

emoldurando uma identidade.

Aninha tem uma sombrinha. Botão automático que

abre instantâneo. Mas é preciso haja uns pingos de chuva

para passear pelo páteo e ela andar caminhando, balançando

em trejeitos de mocinha princesa.

Na sala da vó os potinhos chineses dourados, em

série, inquebráveis à curiosidade de todos os filhos e netos,

já podem ficar descansando no cestinho dos ovos e

bichinhos de metal. Agora os bichinhos, as zebras, gazelas,

o sapinho pescador com sua mulher de cesta verde, e os

gatos simpáticos de olhar melancólico sobre as estantes, se

animam e falam e andam no universo empático da

imaginação. Quanto vôo, quanto sonho, quem pode

conter?!

Aninha que é forte, que é esbelta (que “é magra, é

fraca, não come” diz a mãe) que come saladas, radici,

agrião e tomates, e frutas e carnes e salsichões e

coraçõezinhos no churrasco do vô. E lulas, e polvos,

mexilhões que a avó Ruth preparou e de que as primas tem

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Page 267: Histórias do viver

nojo... Aninha exibe o mexilhão na ponta da língua só para

provocar e dizer que é gostoso.

Aninha que é dócil, obediente, sempre no limite, na

fronteira de tudo o que pode fazer. O halo protetor dos

olhos e das mãos da mãe, do pai e de todos que se aprestem

a avisar se há perigo no outro lado das coisas. Pois tudo o

que não é explicitamente proibido é permitido, liberado,

aberto aos pés, às mãos, aos olhos, ao coração. A vida é a

liberdade de amar e ser amado.

Aninha tem mãe. No olho sempre enternecido dela

revelando escancaradamente a todos um “que bonitinha!”,

ela lê o acolhimento profundo, a companhia permanente, o

amor incondicionado, a liberdade e o limite, a referência

segura para acordar e dormir.

Aninha tem três anos. Nela a vida saltita, canta,

dança e convida a rezar, de braços abertos, mãos dadas,

coração grato, na graça de ser.

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Page 268: Histórias do viver

DANIEL

Flanela na mão, Daniel contempla suas duas flautas

sobre o veludo preto da mesa, seus dois saxofones em suas

respectivas caixas abertas de veludo vermelho como se

fossem duas jóias incrustadas no anel da vida. A flauta

transversal Selmer é sua preferida, raríssima, antiga,

protegida de Santo Antônio contra roubos e distâncias. Ele

lembra que fora furtada e a reencontrou, em Camboriú, há

mais de oitocentos quilômetros de distância. “Não resta

dúvida que Santo Antônio é companheiro excelente quando

se está perdido do amor ou das coisas deste mundo, como

diziam o pai, a avó e o avô Leonel”.

A doçura clássica, tradicional, macia de seu som

enche-o de orgulho. É impossível não reconhecê-la em

meio a tantas outras flautas.

Olha, entre pilhas de livros de Direito, para o sax

Yamaha, sax alto que lhe permite virtuoses e cabriolices em

qualquer estilo de música: provoca, chama, responde,

acende paixões e volúpias na juventude e requenta saudades

em cabelos brancos.

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Page 269: Histórias do viver

Efetivamente, vive como anunciou:

- O Direito é para sobreviver, a música é para viver.

Sobreviver com a música é quase impossível.

Música é arte, arte é beleza, e beleza é gratuidade, epifania

da transcendência. Pura necessidade de ser.

Faz bem a todos. Nela todos se reencontram com

sua possibilidade de ser. Nela está a infância, a

adolescência, a juventude, a maturidade e a velhice de cada

um.

Gratuidade que não tem preço, como o pão e o ar.

Por isso vale. Vale como a justiça, como a pátria, como a

casa, como o caminho.

E quem faz música, quem faz poesia, literatura,

quem faz o essencial precisa de pão, de casa, camisa, saúde.

E de que viverá o artista? De que viverão os

músicos? Na azáfama febril de dominar o mundo, de

construir armas, de amontoar dinheiro, os homens não tem

tempo para o essencial que “é invisível aos olhos” como

dizia Exupéry. Os governos dão-lhes pouca importância

porque o mercado que a Europa nos trouxe e que se fez

mundo zomba, ri, e proíbe estas insignificâncias ineficazes

de sonhar. O sonho, a música, a arte valem então como

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Page 270: Histórias do viver

distração, entretenimento, descanso para trabalhar mais,

produzir mais, ser mais eficaz.

A sociedade quer música, diz Daniel, sem o ônus,

porém de sustentar seus artífices. Mas os músicos, apesar

de tudo, por teimosia inquebrantável, juntam meios de

sobreviver e, paralelamente, fazem sua arte. A liberdade

dos dedos, das mãos, dos pés, do coração nas asas da

música encontra seu chão, seu lugar.

A arte dá à vida uma dimensão maior do que comer,

beber, afogado na rotina da mesmidade e do sem-sentido.

Melhor: ela ensina o que é comer, o que é beber, o que é o

simples, o cotidiano, o necessário. Ela clama pelo maior,

pelo mais alto, pela liberdade, pelo diálogo radical, pela

justiça e igualdade, pela possibilidade de expressar-se até o

fim, pelo refinamento do ouvido para ouvir a voz, os sons

que o outro, que o mundo, que a vida, que o silêncio têm,

vai pensando Daniel enquanto acaricia sua flauta e exige

dela o que ela pode dar.

A música é a realização da saudade e da esperança

da comunicação. É a possibilidade de cada coisa em seu

som. É a possibilidade do companheirismo, não só no ajuste

da polifonia,- ouvido acoplado a ouvido -, olhos fechados

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Page 271: Histórias do viver

buscando o encontro; mas do companheirismo que se faz

grupo, banda, festa, tertúlia, califórnia... junções. Ela junta

um povo em uma nação, em um hino, em uma esperança.

A música junta as alturas, as aventuras, os

penhascos, os precipícios, os rapéis em acampamentos

rústicos, rudes, naturais. A arte exige esforço, suor, sangue

porque “amar y cantar, esto duele”.

A música permite o amor, o enamoramento: Rachel,

casamento, - enquadramento, instituição precária - limitada

como as pautas da música. Estas apenas indicam a

possibilidade da melodia, da harmonia, mas não têm alma.

No entanto, a música se perde, se esvai na efemeridade se

faltam as pautas. É preciso criar a alma do mundo e da vida

a convite de Deus cuja palavra faz novas todas as coisas na

face da terra e nos permite falar, falar numa língua...falar.

Diante da Lagoa e do luar que se esparrama em

mananciais perdulários de prata, nos arrebóis que arrebatam

efêmeros, Daniel pensa na simplicidade das coisas, num

mundo justo, humano, sem frescura que permita rir uma

risada inteira, com crianças, sobrinhos, primos e primas,

com amigos e colegas, na convivência que fica, que se

constrói e permanece. E lembrando Heidegger, sabe que

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Page 272: Histórias do viver

tudo o que permanece é como o carvalho à beira do

caminho do campo: crava as raízes na profundidade escura

da terra que nutre e assegura e lança-se ao mais alto céu que

ilumina e convoca.

Sozinhos nascemos nos braços de nossos pais,

sozinhos crescemos em meio a tantos amigos e colegas,

sozinhos decidimos a vida na companhia de esposa, pais,

irmãos, amigos e filhos e tantos irmãos. Sozinhos,

definitivamente ligados na simplicidade do querer bem,

escutando a Transcendência que se faz música e Presença.

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Page 273: Histórias do viver

LICA

- Um caminhador a pé!, gritou Lica para a nova mãe

Ruth que, na cozinha, alcançava um caldo quente para o pai

Otacílio, achacado numa cadeira de balanço.

Ela fora atender a porta e, pelo vidro deparou-se

com um senhor que ela nunca tinha visto, um estranho e

que, para cúmulo do espanto ainda lhe sorrira.

Um desconhecido que batesse na porta de sua

casinha de campanha era sempre perigoso, dizia-lhe a mãe

Olga. E alguém que chegasse sem estar a cavalo, pior

ainda: era um caminhador a pé: mendigo, louco, foragido,

um espantalho que evocava lobisomem, alma penada, um

perigo. Por isso, não só não abriu a porta, nem perguntou

quem era e o que queria, mas disparou para dentro da

cozinha para abrigar-se e pedir socorro.

Ruth foi até a porta e gargalhou vendo o professor

que lhe trazia um livro. Comentou a comparação que Lica

fizera, para iniciar a conversa..

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Page 274: Histórias do viver

Era a primeira vez que Lica saía das Tocas, distrito

de Palmas, à beira do rio Camaquã e viera a Bagé como

filha adotiva de Ruth. Nas Palmas ficaram quatro irmãos

repartidos entre outras famílias. No dia em que Olga

distribuíra seus filhos em adoção, por impossibilidade de

mantê-los consigo, Ruth, em férias na fazenda ao lado,

propriedade dos pais da amiga Ieda, ofereceu-se para ficar

com uma. Olhou para o rosto aflito de Lica e perguntou:

- Queres vir comigo?

Sem falar Lica dependurou-se ao pescoço da mãe

adotiva.

No ônibus velho, azul descascado, sem janelas, sem

freios e empoeirado vieram as duas para Bagé. Ruth feliz

com uma filha e Lica feliz e temerosa agarrada ao braço da

nova mãe.

Quando o ônibus estancou frente ao hospital

militar, graças ao cobrador que desceu correndo com um

tronco de eucalipto nos braços e calçou a roda da frente

provocando um solavanco de derrubar até os que estavam

sentados - era o freio a porrete -, Lica viu a nova casa que

também era armazém onde recomeçaria a viver.

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Page 275: Histórias do viver

Na manhã seguinte, sol quente e claro de verão,

foram as duas até o centro da cidade. Lica, no braço da

mãe, olhando para tudo com admiração infinita, apontava

para os edifícios com espanto perguntando como as pessoas

poderiam subir até lá... Um tropeção a cada dez metros

porque não conseguia olhar para o chão com tanta coisa

para ver. Tudo era tão estranho. Suas referências de menina

de 9 anos quebravam-se em cada esquina, em cada loja, em

cada automóvel, na multidão que ia e vinha. Como

mensurar cada coisa com o metro de sua vida infantil?

Uma freira vinha ao seu encontro pela mesma

calçada. Lica, literalmente boquiaberta, ante a beleza

daquela mulher vestida de andorinha, acompanhou com o

olhar esbugalhado a sua passagem e continuou caminhando,

cabeça para trás, tropeçando em um senhor de bombachas e

quase provocando um tombo espetacular de mãe e filha.

Riam e retomavam o passeio.

Depois a cidade de Piratini para onde Ruth fora

nomeada como professora de História e Geografia. Inah,

agora viúva, fora também para Piratini residir com a filha

Ruth. Tia Chininha também foi.

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Page 276: Histórias do viver

A Escola Ponche Verde. Lica, nove anos, nunca fora

à escola. Dificuldades para acompanhar os colegas da

mesma idade. O apoio da mãe e da avó Inah abria caminho.

Lica era a felicidade. A primeira a se oferecer para marchar

no desfile de Sete de Setembro.

Jandir, diretor da escola casou com Ruth, se fez seu

pai.

Surgiram amigas e relações que agora, aos

cinqüenta anos, no Laranjal, sentada frente a seu chalé com

um chimarrão e um cigarrinho recorda com saudade.

De Piratini a Pelotas. O colégio São José. Os quinze

anos na ampla casa da Telles. A companhia dos quatro

irmãos. O falecimento de Marcus. A comida gostosa da

Cema. Depois, os grupos de jovens, a Faculdade, o Serviço

Social, os problemas, as teorias, os estágios e as

dificuldades reais do povo sem casa, sem saúde, sem

emprego com quem ela lida todos os dias em seu semi-

emprego na prefeitura.

Quando ela pensa sobre a verdade de cada coisa,

quando seu coração recolhe o emaranhado de tantas

memórias, e aquece a vontade de construir um mundo

melhor ela se apreende, muitas vezes, sem saber se vale

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Page 277: Histórias do viver

mais o que é real ou o que se imagina e o que se quer.

Porque o real não existe sem o imaginário, sem a memória

e sem a esperança.

Agora, sua ocupação principal é a filha Camila. Já

adolescente, doze anos, preguiça e sono infindável, sonhos

e devaneios perdendo-se nas novelinhas mexicanas da TV e

já botando corpo de mulher. Como dar-lhe uma boa

educação? O colégio São José é bom, mas não basta. E a

responsabilidade por seus estudos, por suas coisas, pelas

amizades, pelos mais pobres, pelo amor a Deus e aos

homens?

Ah! Se Camila conseguisse uma base sólida para ser

feliz! Competência profissional e em conhecimentos,

companheira de primos, tios, avós...familiares e amigos,

solidária com quem necessita de seu braço, de sua palavra,

de sua ação!

Como fazer para ajudar a filha a crescer e não

substituí-la em suas obrigações? Como ensinar-lhe a escutar

os segredos de Deus, de si própria e dos outros, e a falar

uma palavra apropriada e esperançosa?

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Page 278: Histórias do viver

Lica, lutando por um pouco de justiça e de verdade

sabe que tem um lugar sempre seu, junto a seus três irmãos,

cada um em seus sonhos e em sua casa.

O que fazer com as saudades, com os sonhos e as

esperanças?

A vida convida a viver.

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Page 279: Histórias do viver

VINÍCIUS

Vontade de água. Do remo, mergulho, valeta,

arroio, lagoa. E o mar: mar de Santa Teresa, Cassino,

Garopaba, Estaleirinho, Cabo Frio, Porto de Galinhas...

Água pouca, Laranjal, minúscula piscina para todos

os amigos que quiserem vir. Água que salta, aos saltos

mortais. A bóia para três e que sustenta quinze, que sobem,

que caem, que riem de rir da risada risonha, sapeca de

guris.

Água que é festa, que é peixe, traíra, peixe rei,

cascuda, arrastão, tartaruga que se foi ao oceano de

Garopaba com um bilhete no pé.

Daniel e Vinícius do barco Davi que singra

banhados, riachos, lagoas até o lugar do peixe grande e

bom.

Vinícius, Rosana, Daniel, Raquel e Luciana em

praias quentes, surpreendentes de Natal, Maceió, Arraial do

Cabo. Mergulho bem fundo, olhos abertos, peixinhos

milhares, cores, beleza, mansidão.

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Page 280: Histórias do viver

Água, água do poço que jorra e refresca. Água da

chuva que bate no peito nu, sem camisa, dádiva do céu.

Água da cascata, Cascatinha, Arco Íris e do arroio na

chácara. Aninha, até o peito, farelos de pão, lambaris aos

milhares que acorrem ao estalar dos dedinhos e se

escondem depois...

Água da vida, banheira inicial ao balanço do

coração da mãe... Água de beber, de lavar, de batizar,

rejuvenescer.

Água das flores. Água. Água matriz do universo,

águas que estão abaixo e acima dos céus. Água de Deus.

Vinícius saúde, medicina, cirurgia, bondade, paixão.

Estudo e ouvido, mão hábil, cansaço. Ternura que ajuda a

curar.

Vinícius cozinha, um lugar para amigos que sempre

retornam. Festa, sabor.

A burocracia é indispensável, mas mata, reduz,

mutila, proíbe. O espontâneo da flor rompe a caixa de

cimento. Suas raízes não agüentam. Com água e com sol a

saúde explode.

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Page 281: Histórias do viver

Vinícius de Aninha, Rosana e aquele que vem.

Vinícius de irmãos, um espaço para o afeto, para Deus, a

justiça e a solidariedade.

Vinícius, meu filho e de Ruth, e do mundo, e do

amor com suas múltiplas faces.

Amor quer cuidado, paciência, perdão.

Vinícius, recomeça a primavera.

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Page 282: Histórias do viver

A AVÓ DE ANINHA

Aninha, três anos. Já está orgulhosamente no

“Colégio”. Mochila e uniforme. Horários, colegas.

O coração, os gestos, o sorriso protetor da mãe

acompanhando até a porta da aula, aguardando o pedido de

auxílio, socorro de “fica aqui mãe”...

Mas nada disso. Ana entra, senta, confia desde logo

na “tia” professora. Decepção e orgulho para a mãe.

Tarefas para casa: macinhas de modelar, lápis e

canetas coloridas, a festa da sujeira e da criação.

Vó Ruth chega:

- Onde está minha princezinha?

- Vó, tu já sabia que eu estou no colégio?

- No colégio? Que colégio?

- O São José! (O colégio das primas queridas).

- E o meu beijinho?

Ana corre. Abraça, beija e convida:

- Eu tô fazendo umas pinturas... qué vê?

Sobre a mesa várias folhas de papel esparramadas,

um prato com tinta preta. Ana põe a palma da mão aberta

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Page 283: Histórias do viver

no prato e depois carimba a folha com seus cinco dedos e a

palma da mão:

- Vó, este é pra ti!

- Obrigado, querida, que bonito ficou. Mas a avó

Dalva não vai ganhar uma pintura?

Ana faz outra e entrega à avó Dalva sem dizer

palavra. Basta o gesto. Depois:

- Vó Ruth, espera um pouco que vou fazer outra pra

ti.

Fez e entregou com olhos brilhando. E arrematou:

- Esta, vó, tu leva para o vô Jandir!

A arte é verdadeiramente revelação da alma que, na

intimidade da vinculação pessoal, se faz epifania do divino.

Você sabe o que Ana queria dizer?

Coisas de vó...

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Page 284: Histórias do viver

LUCIANA

Lonjuras. Distâncias. Palmas do Tocantins.

Calor sufocante, clamando por água de cachoeira.

E no entanto estudar, lecionar, convocar e lutar.

Saudades, saudades das vozes, dos rostos, quitutes,

um pouco de frio, lá do sul.

Saudades do Laranjal, saudades de ser, de estar,

convidar e de rir.

Saudades da Aninha, irmãos, e cunhadas, Camila,

Carol, Laurinha e Luísa.

Luciana é só saudade quando fala ao telefone.

A vida é uma luta... viver é lutar.

Lutar por verdade, por justiça que tragam a paz.

O Direito é uma espada, intransigente defesa de

quem não tem arado para atrelar a uma estrela.

Luciana: carinho, energia, presença à sombra do

mais alto céu.

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Page 285: Histórias do viver

DOMINGO NA CASA DO AVÔ

Elas chegam invadindo a casa, falando alto, quase

aos gritos, braços abertos para o abraço apertado, beijos

estalados, sabendo que o afeto, a confiança, o espaço é

absolutamente seu.

A casa do vô tem alguma coisa de mistério, de

coisas que falam da mãe, do pai, dos tios, de raízes

escondidas em algum lugar.

E elas vão desvendando tudo: computadores,

biblioteca, sala de costura de onde sempre saem os vestidos

mais lindos para as bonecas e para elas mesmas: a avó sabe

das coisas e das belezas. A tentação de mexer na máquina

de costura, no overlock, nos bordados iniciados, de ser

como a avó.

E correm... por que as crianças sempre correm, e

saltam, e gritam? Para espantar os medos? Para chamar a

vida? Para que a proteção dos adultos sempre esteja por

perto?

O avô chama:

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Page 286: Histórias do viver

- Venham todos, que o churrasco está pronto!

E elas vêm, de olhos gulosos, de mãos irrequietas,

de água na boca buscando coraçõezinhos, salsichões...

- Está bom?, pergunta o avô, só para receber um

elogio...

E elas, em coro...:

- Está óóótimo vô! O churrasquinho que o vô faz é

sempre o melhor.

- Então, quem sabe, antes de iniciar façamos uma

breve oração, de mãos dadas?

- Obrigado Deus nosso Pai... obrigado.... obrigado...

E todos riem, os copos tombam, a conversa dos

adultos visita negócios, as últimas notícias da política, os

projetos de cada um...

E a deliciosa sobremesa da avó...:

- Pode repetir, vó?

- Pode... pode... o regime para os grandes recomeça

amanhã...

Depois, caminhar pelo páteo, ver a última ninhada

de gatinhos:

- Quê bonitinho, deixa eu ver... deixa eu pegar...

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Page 287: Histórias do viver

O domingo abastece o imaginário para a semana,

para um pouco mais de viver...

Depois, é percorrer todos os recantos da casa para

ver alguma novidade e aquelas coisas antigas, intocáveis, e

tocar tudo o que for permitido...

Ah! a tentação das pinturas, dos batons, dos

mistérios da beleza do quarto da avó!

Depois é a cozinha. Todas sentadas, em congresso,

ao redor da mesa grande. Sempre tem bolo fresquinho à

espera das netas, e rosquinhas e pãezinhos para o café da

tarde que se prolonga por horas. Por que será que as frutas

da casa da avó são tão gostosas?

Depois as pequenas: Aninha, Laura e Luísa se

aninham no topo da escada com suas bonecas e suas

viagens imaginárias enquanto olham, lá em baixo, os

adultos que conversam na sala.

- Então eu era a mãe e tu a filhinha...

- Não, eu era a bruxa malvada e tu a princesa, a

branca de neve...

- Mãe, por que os anões eram pequenos?

- Ué!, filha, porque nasceram assim...

- É...?

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Page 288: Histórias do viver

Carol, com seus olhos grandes que esparramam azul

por todo o ambiente, faz questão de, do alto de seus sapatos

de salto, apresentar seu namorado, que já é permanente,

pois dura mais de três meses.

- Mãe nós vamos dar uma voltinha na praia do

Laranjal, diz ela.

- Na praia? Aonde? - diz Denise enquanto pensa um

pretexto para dizer “não” ou, pelo menos, para fazer alguma

recomendação -Voltem cedo.

Camila que também já floresce mocinha conversa

com os dois namorados mas não os acompanha à praia,

embora quisesse. É chato. Chá de pêra diziam os antigos...

E brinca com as pequenas respaldando os jogos mais

perigosos, como aquela que tem experiência, ou se põe a

ver um filminho mexicano...

As pequenas curtem entre si a saudade de ser

priminhas, de se quererem e sonhar com o encontro do

próximo domingo na casa do vô.

Quando à tardinha os pais conseguem, sob protesto,

que elas entrem nos carros... o silêncio cai sobre a casa dos

avós, povoado de presenças e esperanças.

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