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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
Narrativas e lágrimas: A questão dos ressentimentos e a
imigração alemã-judaica para o Brasil (1938-1981)
Valdir Pimenta dos Santos Junior
Londrina, Setembro, 2008.
2
Narrativas e lágrimas: construções de ressentimentos e
fronteiras – A imigração alemã-judaica para o Brasil
(1938-1981)
Valdir Pimenta dos Santos Junior
Orientador (a): Marco Antonio Neves Soares
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pó-Graduação em História
Social do Centro de Letras e Ciências
Humanas, da Universidade Estadual de
Londrina – UEL, em cumprimento às
exigências para obtenção do título de
Mestre em História Social , na linha de
Culturas, Representações e
religiosidades.
Londrina, Setembro, 2008.
3
Valdir Pimenta dos Santos Junior
Narrativas e lágrimas: construções de ressentimentos e
fronteiras – A imigração alemã-judaica para o Brasil (1938-
1981)
Avaliado em_____________com conceito ____________
Banca examinadora da Dissertação de Mestrado:
Profº ___________________________________________
Orientador
Profº___________________________________________
Examinador externo
Profº___________________________________________
Examinador interno
4
DEDICATÓRIA
Gostaria de dedicar este trabalho a meu pai, por sua
inestimável presença e confiança. Também a minha mãe, por seu cuidado e
carinho.
Não poderia deixar de mencionar meu orientador, Prof. Doutor
Marco Antonio Neves Soares, do departamento de História da Universidade
Estadual de Londrina, pelas longas horas de conversa e orientação, por sua
amizade e paciência, a você sou muito grato.
Gostaria ainda de dedicá-lo a meus irmãos, Aline e Diego, pela
força incondicional que nos une.
Também aos queridos amigos Ana Albara e Manoel Nasser,
pela intensa caminhada nas ruas de Londrina. A Raquel Palma, por ter feito
meus dias mais ternos e mais vivos.
Dedico também a todos aqueles que participaram de alguma
forma de toda a minha história, familiares, oriundos de Itália ou Portugal,
amigos de diferentes lugares, professores, a vocês minha gratidão.
Por fim, gostaria de agradecer aqueles que iniciaram comigo
esta jornada em Londrina e sem os quais eu seria literalmente um peixe fora
d’água: Isadora Librais, Jaquis Greter e Jorge Bacco. A vocês três minha
imensa reverência. Sem me esquecer ainda de amigos conquistados por
aqui: Janaina Palmar, Igor Galdino e Thiago Pizutti . A vocês também sou
eternamente grato pelo tempo comparti lhado.
Ainda meus agradecimentos a outros não citados , mas não
menos importantes: Matheus Passianoto, Letícia, Gabriel Del Grossi , Daniel
Bruhl , Caroline Minorelli, Nilo, Juca San Martin, Raphael Batista, Diego
Velho, Fernando Murya, Thiago Roncon, Marcos Ursi, Lívia Harfuchi e a
todos os queridos amigos de Rancharia não mencionados aqui. Muito
Obrigado.
5
O sofrimento é repartido ao longo da vida e
separado por blocos de esquecimento. (Carlos
Drummond de Andrade)
6
AGRADECIMENTOS
Pela elaboração da pesquisa gostaria de agradecer a
Universidade Estadual de Londrina, que durante quase uma década me
acolheu enquanto estudante.
Gostaria de agradecer aos professores do departamento de
História por suas aulas ministradas ao longo desses anos.
Também aos colegas que participaram igualmente desta
caminhada desde a graduação em História.
Gostaria de agradecer aos imigrantes ainda vivos de Rolândia
por sua colaboração e também aos descendentes que muito nos ajudaram
com suas entrevistas e seu material fornecido para o desenvolvimento de
nosso trabalho.
Ainda meus agradecimentos a todos aqueles que direta ou
indiretamente participaram da construção desta pesquisa. A todos vocês
meus agradecimentos.
7
PREFÁCIO
O presente trabalho foi elaborado a partir de uma pesquisa
desenvolvida na Universidade Estadual de Londrina acerca das relações
estabelecidas a partir dos eventos que se desenvolveram no contexto da
Segunda Grande Guerra (1939-1945).
Particularmente, a pesquisa se colocou sobre as questões que
envolvem o anti -semitismo praticado pela estrutura do nazismo alemão.
Foram util izadas fontes literárias para investigar a construção histórica dos
ressentimentos em refugiados estabelecidos no município de Rolândia -PR a
partir do final da década de 1930. Duas obras foram escolhidas como
fontes primárias: Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva
brasileira – Relato de um imigrante (1938-1975), de Max Hermann Maier e
Os jardins de minha vida, de Mathilde Maier. A partir da narrativa dos dois
autores surgiu então a idéia de uma investigação da formação dos
ressentimentos. Ambos os autores refugiaram -se no Brasil em 1938, tendo
então estabelecido moradia em uma fazenda de nome Jaú aos arredores da
cidade de Rolândia, ainda em formação naquele momento.
Os livros esboçam aquilo que definimos como trabalhos
memorialíst icos, ou seja, buscam expor as expe riências a que foram
submetidos. Max Hermann Maier parte de uma análise ligada ao momento
em que abandonaram a Alemanha, seguindo até a chegada ao Brasil e a
conseqüente adaptação em terra estrangeira. Mathilde Maier trabalha de
forma distinta, aborda toda a trajetória de sua vida, desde a infância até a
imigração para o Brasil.
A história dos ressentimentos se revelou uma difícil abordagem
daquilo a que os homens possuem ampla dificuldade de expressão. Desta
forma, analisar o não dito em suas narrativas foi o objetivo principal da
pesquisa, procurando assim analisar de que forma sua análise seria possível
8
através de um olhar histo riográfico de desconstrução de valores intrínsecos,
a fim de estabelecer como é possível sua viabilidade social.
Ao lado da historiografia foram utilizado s instrumentos
fornecidos pela antropologia, a partir daquilo que a mesma estabelece
enquanto interpretação dos grupos étnicos e a forma como definem valores
ou características que sejam pertinentes a identificação de tais grupos.
Desta forma, a pesquisa utilizou -se de fontes literárias e não
documentos formais para sua elaboração. Esta peculiaridade forneceu
caminhos interessantes ao trabalho historiográfico, de forma que a partir da
narrativa dos dois imigrantes é que buscamos definir nosso foco, nesse
caso, a investigação da construção histórica dos ressentimentos.
Sendo assim, aquilo a que chamamo s ressentimentos estaria
ligado a uma construção subjetiva, individual ou coletiva, mas sempre em
comunicação com os eventos que os precedem, ou seja, a form ação de um
sujeito ou grupo envolvido em ressentimentos se dá a partir da experiência
que produzem e comungam com os outros, entendidos aqui no sentido da
alteridade, onde a experiência sempre negativa de tal manifestação se
coloca somente na intervenção de um ou muitos sobre estes.
Part icularmente, a experiência histórica da etnia judaica,
apresenta nesse sentido um ilimitado campo de investigação para
historiadores, sobretudo quando tornamos relevante o anti -judaismo
praticado ao longo dos séculos em diversas regiões do mundo. É importante
ressaltar o caráter estritamente investigativo deste trabalh o, não se tratando
aqui de um discurso em defesa da vasta comunidade judaica ou ainda de
expor tal grupo enquanto vítimas da história, ao contrário, nosso objetivo se
debruça sobre a necessidade de desconstruir historicamente um paradigma
que não se abstém de ações igualmente humanas, e, por isso, inválidas de
serem concretizadas de outra forma .
Mantendo o ponto inicial que expunha a experiência judaica,
juntamente às fontes utilizadas, foram escolhidos outros personagens
históricos que pudessem também contribuir com o desenvolvimento da
9
pesquisa, reforçando assim o estudo acerca dos ressentimentos. Para tanto,
dois autores e suas respectivas biografias foram escolhidos: Primo Levi e
Stefan Zweig, além destes o trabalho passa também por uma reflexão acerca
de ações de descendentes judaicos no Brasil dentro do contexto do período
militar no país. Tais passagens parecem demonstrar, no contexto da
pesquisa, construções de ressentimentos em momentos distintos , através de
igualmente distintas perspectivas. Os trabalhos a respeito da literatura
produzida por escritores de ascendência judaica renderam em outros
momentos pesquisas referentes a certa peculiaridade da produção li terária
judaica, de forma a demonstrarem como o fato de estarem ligados ao
judaísmo dava aos textos um tipo de melancolia, um humor específico.
Estes elementos configurariam assim uma relação textual estabelecida com
a procedência étnica de seus autores. Ao longo da dissertação essa questão
será abordada com mais detalhes e as devidas referência s.
Portanto, o trabalho que se desenvolveu aqui não é mais que
uma reflexão acerca das relações estabelecidas na história entre os
ressentimentos e a produção literária de escri tores de ascendência judaica.
O recorte temporal se estabelece no período contemporâneo, de 1938 a
1981, a data inicial foi escolhida por ser o ano da imigração do casal Maier
para o Brasil e a data final por ser o ano da publicação do livro de Mathilde
Maier, que evidentemente foi publicado posteriormente ao de Max Hermann
Maier. Este teve sua publicação em 1975, mas somente no idioma alemão,
mais tarde, entre 1976 e 1977, Mathilde Maier e Elmar Joenck, professor e
amigo do casal, finalizaram a versão em português iniciada por Max
Hermann Maier e não finalizada devido ao seu falecim ento em 1976.
10
RESUMO
SANTOS JUNIOR, Valdir Pimenta dos. Narrativas e lágrimas: A questão dos
ressentimentos e a imigração alemã-judaica para o Brasil (1938-1981). [Dissertação de
Mestrado]. Londrina: UEL, 2010, pp.
O trabalho inti tulado Narrativas e Lágrimas – A questão dos ressentimentos
e a imigração alemã-judaica para o Brasil (1938-1981) se define como um
esforço historiográfico que buscou compreender a estruturação histórica que
permeia a formação dos chamados ressentimentos. A partir da análise de
duas obras produzidas por imigrantes alemães, Um advogado de Frankfurt
se torna cafeicultor na selva brasileira – Relato de um imigrante (1938-
1975), de Max Hermann Maier, editado em 1975 no idioma alemão e
traduzido para o português em 1977, e Os jardins de minha vida, de
Mathilde Maier, editado em 1981, o trabalho foi desenvolvido. As duas
narrativas utilizadas serviram como fontes para a investigação da
construção dos ressentimentos em refugiados de ascendência judaica no
município de Rolândia-PR. Tais refugiados chegaram ao Brasil no ano de
1938 após as restrições impostas pelo partido nacional socialista alemão aos
alemães-judeus residentes na Alemanha. Desta forma se configurou o
cenário que mais tarde levou Max e Mathilde Maier a produzirem suas
obras, tratadas aqui como relatos memorialíst icos, ou seja, narrativas que
buscaram expor suas experiências na Europa e em terra estrangeira.
PALAVRAS-CHAVE: Imigração – Judaísmo – Ressentimentos –
Religião – História – Memória
ABSTRACT
SANTOS JUNIOR, Valdir of pepper. Narratives and tears: The issue of resentment and
German-Jewish immigration to Brazil (1938-1981). [Dissertation]. Londrina: UEL, 2010,
pp.
The work entitled Narratives and Tears - The issue of resentment and German-Jewish
immigration to Brazil (1938-1981) is defined as a historiographical effort that sought to
understand the historical structure that permeates the formation of so-called resentment.
From the analysis of two works created by German immigrants, a lawyer from Frankfurt
becomes grower in the Brazilian jungle - Report of an immigrant (1938-1975), Max
Hermann Maier, published in 1975 in German and translated into Portuguese in 1977, and
11
gardens of my life, Mathilde Maier, published in 1981, the work was done. The two
narratives were sources used to research the construction of the resentments of Jewish
refugees in the city of Rolândia-PR. These refugees arrived in Brazil in 1938 after the
restrictions imposed by the German National Socialist Party of German-Jewish residents in
Germany. This should set the scene who later took Max and Mathilde Maier to produce
their works treated here as reports memoirs, or stories that sought to explain their
experiences in Europe and in a foreign land.
KEY WORDS: Immigration - Judaism - Resentments - Religion - History -
Memory
12
SUMÁRIO
I – INTRODUÇÃO........................ ...............................14
I.I – CONTEXTUALIZAÇÃO......................................21
II – JUSTIFICATIVA.............. .................................. ..26
III – A HISTÓRIA E OS RESSENTIMENTOS.............28
III,I – OS RESSENTIMENTOS E OS IMIGRANTES
ALEMÃES DE ROLÂNDIA-PR...................................44
IV – O OUTRO NA HISTÓRIA E A FIGUEIRA
BRAVA.............. ............................ ..............................57
IV.I – O ESTRANHAMENTO, O JUDEU E A
HISTÓRIA.................................... ...............................57
IV.II – MATHILDE MAIER E A FIGUEIRA BRAVA
OU O DISCURSO DO ESTRANHAMENTO.................70
13
IV.III – OUTRAS DUAS HISTÓRIAS..........................77
V -CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................82
VI – ANEXOS.................. ........................................... .87
VI.I – FOTOGRAFIAS................ .............................. ..87
VI.II – ENTREVISTA KLAUS KAPHAN........... ..........99
VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................109
14
I – INTRODUÇÃO
A questão da memória, aos trabalhos historiográficos, é de
suma importância. Aos povos antigos, a ideia de tempo mítico, alheia ao
tempo histórico, tirava-lhes a necessidade de um significado na história.
Mais tarde, o significado na história, segundo alguns pesquisadores , passou
a ser significativo , com e para os judeus:
“Dizem que Heródoto é reconhecido como o “pai da his tór ia”
(af irmat iva que requer reaval iação, mas não me deterei aqui em
fazê- la) , e a té bem recentemente todas as pessoas cultas sabiam
que os gregos produziram uma l inhagem de grandes
his tor iadores, que podem ainda ser l idos com prazer e empatia .
Entre tanto , nem os his tor iadores gregos , nem a civi l ização que
os cr iou percebeu qualquer signi ficado transcendente ou
fundamental na histó r ia como um todo; realmente, e les nunca
chegaram a elaborar bem o concei to de histór i a universal , da
his tór ia “como um todo”. Heródoto escreveu com a asp iração
humana carac ter í s t ica de – em suas próprias palavras –
“preservar do perecimento a lembrança daquilo que os ho mens
real izaram e impedir as grandes e maravilhosas ações dos gregos
e dos bárbaros de perder sua merecida recompensa de glór ia”.
Para Heródoto, narrar a his tór ia era uma garant ia cont ra a erosão
inexorável da memór ia engendrada pela passagem do tempo. Em
geral , a his tor iografia grega fo i expressão daquela esplêndida
cur iosidade he lênica de conhecer , e invest igar , que a inda nos
aproxima deles, ou ainda de buscar no passado exemplos morais
ou insights polí t icos. Além d isso, a his tór ia não t inha verdades a
oferecer , e assim não t inha lugar na f i losofia ou re l igião gregas.
Se Heródoto, foi o pa i da histór ia , os pais do signi f icado na
his tór ia foram os judeus. O antigo I srael fo i quem primeiro
determinou um s igni f icado dec is ivo à histó r ia , e assim for jou
15
nossa visão de mundo, cujas premissas fo ram essencia is foram
por f im apropr iadas pe lo cr i st ianismo a também pelo i slamismo.
“Os céus” nas pa lavras do salmis ta podem ainda proclamar a
“glór ia do senhor”, mas foi a histór ia humana que revelou seu
desejo e propósi to . Essa nova percepção não fo i resultado de
especulação f i losófica, mas da natureza pecul ia r da fé i srae l i ta .
Emergiu da compreensão intui t iva e revo luc ionár ia de Deus , e
fo i re finada a través de experiências his tór icas profundamente
vivenciadas.1
Desta forma, a afirmação se coloca sobre uma espécie de lugar
dominante da história no antigo Israel, ou seja, sobre o fato de que o
próprio deus judaico só se revela na medida em que é historicamente
conhecido. Yerushalmi acrescenta:
“Enviado para trazer as novas da l iber tação para os escravos
hebreus, Moisés não vem em nome do cr iador do Céu e da Terra,
mas em no me do “Deus dos antepassados”, is to é , o Deus
his tór ico: “Vai e reúne os anc iãos de I srael , d izendo -lhes : o
Senhor , o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de
Jacó apareceu-me e d isse -me: Eu vos visi tei e vi o que se vos faz
no Egito . . .”2
Portanto, se assim direcionamos nosso olhar para a experiência
judaica, assim podemos concluir que a memória tornou -se fundamental para
o exercício da própria fé hebraica e, em última instância, para sua própria
existência.3 A ordem de lembrar-se é assim absoluta, havendo porquanto
uma sabedoria antiga que os remetia ao fato de compreender quão curta e
instável é a memória humana. Não se trata aqui de afirmarmos que o
judaísmo caminhou no sentido da formação de uma “nação” de
1 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica; tradução de Lina G. Ferreira
da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Yosef Hayim Yerushalmi é professor de História, Cultura e
Sociedade Judaica e diretor do Centro de estudos Judaicos e de Israel da Universidade de Columbia. 2 O trecho citado por Yerushalmi encontra-se na Tora, livro máximo da expressão judaica, em Êxodo, 3:16.
3 Idem 2.
16
historiadores, sobretudo por que se esta história é real , não poderá se
repetir, apenas o tempo mítico se repete, ou seja, a fuga do Egito ou a
libertação do cativeiro da Babilônia só poderiam uma vez dar -se
historicamente, o que obriga a todos os outro s que lá não estiveram, a um
exercício de preservação de tais acontecimentos, também porque, na
concepção hebraica, o homem,
“lançado na his tór ia , ve io para a f irmar sua exis tênc ia his tór ica,
apesar do sofr imento que esta encerra e , gradual e
laboriosamente, descobre que Deus o revela a ele próprio
durante o decurso da his t ór ia . Os r i tua is e fes tas no antigo I srael
não são mais repe tições de arquétipos mí t icos dest inados a
aniqui lar o tempo histór ico. Quando evocam o passado, não mais
se tra ta do passado p r imevo , mas do passado his tór ico, no qual
real izaram-se os momentos cruciais da histór ia de Israel . Longe
de tentar uma fuga da his tór ia , a rel igião bíb lica se permi te ser
impregnada por ela , e não pode ser concebida se apar tada da
his tór ia”4
Assim, se a preocupação com o tempo histórico está presente
na cultura judaica, esta se faz na narrativa e também nos rituais. As festas,
mesmo preservando seus laços orgânicos (primavera e primeiros frutos),
foram transformadas, por exemplo, em comemorações do Êxodo do Egito e
da estada no deserto. Em Deuteronômio 26, diz -se que um celebrante
israelita na cerimônia dos primeiros frutos deve proferir as seguintes
palavras:
“Meu pai era um arameu errante que desceu ao Egi to com poucas
pessoas e al i resid iu; e lá torno u-se uma nação grande , for te e
numerosa. Os egípc ios nos a f l igiram e nos opr imiram, impondo -
nos uma penosa servidão. Chamamos então ao Senhor , o Deus de
nossos pa is , e e le ouviu nosso c lamor e viu nossa a f l ição e nossa
misér ia e nossa opressão . E o Senhor nos t i rou do Egito com mão
4 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica; tradução de Lina G. Ferreira
da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Página 29.
17
for te e braço estend ido, e com grande terror , e com s inais, e com
prodígios. E e le nos trouxe até este lugar , e nos deu esta te rra ,
uma te rra onde mana le i te e mel . . .”5
Parece-nos um tipo de história concisa, onde o essencial a ser
lembrado está claramente presente sob uma forma ri tualizada. Não se trata,
é claro, de uma história “factual” no sentido moderno, mas aos povos
antigos tratava-se de tipos de percepção e interpretações históricas
legít imas. A historiografia bíblica n ão apresenta uniformidade nesse
sentido, mesmo porque sua narrativa foi escri ta em diferentes momentos
históricos e inevitavelmente, por diferentes autores. Sobre isto afirma
Yerushalmi:
“As narrat ivas histór icas que abrangem os per íodos dos inícios
da humanidade a té a conquis ta de Canaã são necessar iamente
mais lendár ias, os re la tos da monarquia mui to menos, e mesmo
dentro de cada segmento exis tem acentuadas var iações de grau.
Isso já era de se esperar . Os textos his tór icos da Bíblia , escr i tos
por di ferentes autores em épocas diversas , frequentemente eram
também produtos de um longo processo de transmissão de
t radições e documentos mais antigos”.6
Podemos expor, desta maneira, que mesmo aos sábios hebreus
que viveram após os tempos bíblicos, o tempo q ue lhes importou foi
sobretudo aquilo que sentiam ser relevante, ou seja, destaca -se aqui aquilo
que era então relevante ao avanço da vida religiosa e comunitária do povo
judeu. Não preservaram, portanto, a história polít ica da Antiguidade, ou
ainda revelaram escasso interesse na história de Roma, mas não
esqueceram a perseguição sofrida sob o imperador Adriano e o martírio
dos sábios.7 Há uma relação direta na compreensão histórica judaica entre
5 Deuteronômio 26:5-9, in Tora.
6 YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica; tradução de Lina G. Ferreira
da Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Página 33. 7 Idem. Página 44.
18
destruição e redenção, como se aquilo que pode emergir ou sustentar a
comunidade enquanto povo sagrado é sempre algo que não apenas surge da
interferência divina na história, mas também que esta interferência é
determinada por momentos de intensa ruptura, como o Messias que nascera
somente no dia em que o Templo fora destruído. Trata-se de uma história de
significados criados a partir de eventos históricos, de significações
escolhidas detalhadamente e, por conseguinte definidora não de uma
verdade, mas de uma interpretação específica da história.
Juntamente à interpretação histórica que os judeus criaram e
suas amplas necessidades de memória podemos observar a questão do
sofrimento e mais adiante aquilo que nos é mais importante neste trabalho:
a construção de seus ressentimentos, ou ainda a construção de seus
ressentimentos a partir da experiência histórica:
“Ele que respondeu a Abraão, nosso pa i , no monte Moriá.
Ele nos responderá, e a todas as comunidades sagradas,
e a todos imersos em sofr imento e a fl ição,
e a todos pr isioneiros de reis e pr ínc ipes.
Ele que respondeu a Moisés no Mar Vermelho,
Ele nos responderá.
Ele que respondeu a Josué em Gi lgal ,
Ele nos responderá.
Ele que respondeu a Samuel em Mizpah,
Ele nos responderá.
Ele que respondeu a Elias nos monte Carmel,
Ele nos responderá.
Ele que respondeu a J onas na barr iga da ba leia ,
Ele nos responderá.
Ele que respondeu a Davi e a Salomão em Jerusalém,
Ele nos responderá” .8
Não apenas a memória de seus antepassados e de suas
experiências frente a intervenção divina, mas também a memória de suas
8 Da liturgia de um jejum bíblico (baseado na Mishnah Ta’anit 2:4)
19
dores e a memória daquilo que julgaram definidor de seu papel junto a
Deus. A memória trágica do povo judaico parece então definidora de sua
própria expectativa enquanto povo sagrado. Para uma comunidade que
impõe o tempo histórico como valor de pertença e símbolo para que as
gerações futuras atentem sobre sua responsabilidade, os acontecimentos
trazem e afirmam aquilo que os define, ou seja, para que possam somente
enxergar a si mesmos quando então evocam aquilo que seus antepassados
fizeram em nome da própria comunidade e a serviço de Deus, ou ainda
somente a partir da intervenção divina é que é feita a manutenção de sua
trajetória na história e estas intervenções quase sempre se manifestaram na
narrativa hebraica quando necessitavam de uma espécie de milagre para
livraram-se ou serem libertos de uma imposição terrena, como os períodos
de escravidão ou submissão a um grupo que lhes era hostil.
Sendo assim, como se formou ou como é definida a experiência
de dor do povo judeu? Quais são os elementos que definem aquil o que
julgam pertinente para a permanência, quais os acontecimentos mais
importantes para a memória do sofrimento judaico, ou ainda quais
acontecimentos devem jamais ser esquecidos? Quais fundamentos
justificam-nos? Ao que nos parece inicialmente, o sentim ento coletivo
colocado sobre situações de intensidade em hostilidade e violência, pode a
priori poder ser o mais rápido argumento para justificar a construção de
uma memória de tal grupo. No caso da história judaica, as constantes
dispersões e movimentos anti-judaicos a que seus antepassados foram
expostos, seriam suficientes para tal argumento. Embora isso, o tratamento
dado a este grupo poderia então encaixar -se a qualquer outro. Mas a questão
dos judeus parece possuir suas peculiaridades e assim necessit a de uma
investigação própria que justifique suas particularidades.
Na literatura judaica não é difícil encontrarmos o lamento, não
referimo-nos somente a palavra em seu sentido etimológico, mas
principalmente ao peso que tal expressão possui ao povo jude u, onde a
mesma refere-se ao conjunto de valores que define os elementos e não mais
20
os coloca num mundo disperso e incerto. Ao contrário, a definição de
sofrimento de seus semelhantes justifica sua estada em qualquer local que
se encontrem e reforça sua al iança com um Deus que olha somente aos seus.
Tal é a importância disso, que a memória construída sobre os lamentos
praticamente atropela a memória rigidamente histórica, ou seja, embora
saibam de diversos acontecimentos que exigem seu lamento e devoção, o
momento ou datas exatas não requerem a mesma importância:
“Os judeus que lamentavam na s inagoga a queda do Templo
sab iam o dia do mês, mas duvido que a maior ia soubesse ou se
importasse com o ano exato em que o Primeiro ou o Segundo
Templos foram destruídos, quanto mais com as tát icas e armas
que foram empregadas. Sab iam que os bab ilônios e os romanos
haviam s ido os des truidores, mas nem um nem outros poder iam
ter sido rea l idades his tór icas para e les. As memór ia ar t iculadas
em cânticos melancól icos de gra nde poder poét ico eram básicas
e comovedoras, mas expressas em tendências que s implesmente
diferem de nossas noções de “saber histór ia”. Aqui es tá um
pequeno trecho de um longo lamento pelo nono dia de Ab, que
revela tão somente uma maneira pela qual a mem ória co let iva
judaica podia se es truturar :
“Um fogo me incendeia quando me lembro – quando de ixe i o
Egito . Mas levanto lamentos quando me lembro – quando deixe i
Jerusa lém. Moisés cantou uma canção que nunca ser ia esquecida
– quando de ixe i o Egi to . Jeremia s lamentou e gr i tou em
desespero – quando deixe i Jerusalém. As ondas do mar se
recolheram mas ficaram de pé como um muro – quando de ixei o
Egito . As águas transbordaram e cobriram minha cabeça –
quando deixei Jerusalém. Moisés me conduziu e Aarão me guiou
– quando de ixe i o Egi to . Nabucodonosor e o imperador Adriano
– quando de ixei Jerusalém” “.9
9YERUSHALMI, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica; tradução de Lina G. Ferreira da
Silva. – Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992. Segundo Yerushalmi o autor desse lamento é desconhecido. O
poema aparece em várias liturgias.
21
I.I – CONTEXTUALIZAÇÃO
As recentes questões colocadas a partir de fim do século XIX e
princípio do século XX trazem reflexões que se colocam como fundamentais
aos historiadores e pensadores em geral. As ideias de civilização absoluta,
dotada de racionalidade, progresso e dinamismo , encontraram enfim, sua
síntese mais obscura, desta vez repleta d e uma racionalização que caminhou
contra os princípios racionais, mo rais e modernos dos novos tempos. 10
As sociedades modernas e o crescente desenvolvimento do
aparato estatal instalaram de fato um sentido plenamente antagônico na
humanidade, o progresso então inevitável em uma Europa industrializada
sob os mecanismos do desenvolvimento científico fez-se também aliada à
barbárie, o racional e o irracional como uma dicotomia explosiva que
resultou em processos de extremo terror na primeira metade do século XX.11
A instalação de regimes totalitários, nazista e fascista, na
Alemanha e Itália respectivamente, mostrou à Europa e ao mundo o poder
de destruição da união do desenvolvimento científico, da racionalidade
instrumental e do surgimento das grandes massas, agora concentradas em
centros urbanos e submetidas às formas de s ubmissão do Estado. Esta
instrumentalização forneceu os mecanismos ideais para os acontecimentos
que resultaram na Segunda Grande Guerra Mundial (1939 -1945). Terror ou
irracionalidade são termos util izados para representar não somente a
10
Em “Dialética do esclarecimento”, “Theodor Adorno e Max Horkheimer apontam para o que chamam
“crise da modernidade”:”. O indivíduo não precisa mais recorrer a si mesmo para decidir o que deve fazer.
[...] sua vida profissional é determinada pela hierarquia de organizações e pela administração pública, e sua
vida privada pelo esquema da indústria cultural. [...] as massas, privadas até da aparência de uma
personalidade, se conformam mais docilmente aos modelos e às palavras de ordem que as pulsões à censura
interna. Se, na época liberal a individualização de parte da população era necessária para adaptar a sociedade
em seu conjunto ao estado atingido pela técnica., hoje o funcionamento do aparelho econômico exige uma
administração das massas que não seja mais perturbada pela individualização”. Tomamos como pertinente
aqui somente a contextualização a que se remetem os autores, observando sobretudo a construção teórica das
relações estabelecidas neste novo momento, não sendo nosso objetivo o aprofundamento conceitual ou
metodológico dos mesmos. 11
ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. 1966.
22
formação do totali t arismo, mas, sobretudo, a perseguição, exclusão e
extermínio de significativa parte das comunidades judaicas espalhadas por
toda a Europa.
Porém, o ofício historiográfico, de maneira muito interessante,
permite não permanecer ligado somente a esta primeir a reflexão. Embora o
termo anti -semitismo apareça somente em 1879 na Alemanha , o
antijudaísmo como acontecimento social é velha prática na Europa. E, como
reforça Rabinovitch, o antijudaísmo não desaparece com a modernidade,
ele se reposiciona. O anti -semitismo agrava mais ainda sua propensão
mortí fera.12
Desta forma, é possível distinguir práticas de intolerância
contra os israelitas, de formas distintas e movidas por razões igualmente
distintas, onde cada época é filha de seu próprio tempo. Massacres em
massa e violências cíclicas poderiam ser apontados aqui por toda a História
(Alemanha em 1096, Espanha em 1391, Polônia em 1648 -1649), e, após
1881 é na Rússia que se agrava a prática de pogroms contra as populações
judaicas mais pobres13
. O anti-semitismo moderno é político:
“A democracia que emerge no decorrer do século XIX no
continente europeu permanece de substrato cr i stão. A perda de
inf luência pol í t ica das autor idades ec lesiást icas deixa intac ta no
coração dos combates os mais seculares a pregnância an t i juda ica
do pagano -cr is t ianismo. A recomposição norma tiva do discurso
público, que passa do teo lógico ao po lí t ico , não acarre ta a
decomposição da vind ita anti juda ica. A função de “bode
exp ia tór io” que pesou sobre os judeus é re tomada. Ao lado da
perpetuação do ant i judaísmo c láss ico desenvolve -se um ant i -
semi t ismo pol í t ico, socia l ou nacional is ta , progress is ta ou
reac ionário”.14
12
RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepulcros nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004. 13
Em 1905, a Okhrana, polícia secreta do Czar russo, fabrica o conhecido “Protocolos dos sábios de Sion”,
plano secreto de dominação mundial atribuído à comunidade judio-maçônica. Os fantasmas do anti-semitismo
estavam de volta, o falso plano funcionou como uma espécie de “licença para matar”. 14
Cit. pág. 33. Lembrado aqui o “afair Dreyfus” no início do século XX, onde o o então capitão da marinha
francesa foi acusado de conspiração e apoio aos alemães.
23
Com o início das perseguições muitos abandonaram a Europa,
sobretudo após os episódios que culminaram com a Kristallnacht15
e se
dirigiram a regiões consideradas seguras, entre elas o Brasil, que acabou
por ser o destino de muitos imigrantes de origem judaica na primeira
metade do século XX.16
Os fenômenos de massa antes orientados pelas tradições
utópicas do período clássico chega ram ao fim do século XX com uma
emergência da memória como fonte de orientação. A força da memória na
construção dos mitos identitários que tem informado contemporaneamente
as ações de reconhecimento social e político.17
Toda memória é criação do
passado, reconstrução e manipulação, ou seja, desempenha um papel
fundamental na maneira como os grupos sociais apreendem o mundo
presente e reconstroem sua identidade. Desta forma, a relação mais evidente
se torna a que se coloca entre memória e poder, onde também o
esquecimento é igualmente vital na construção de uma memória coletiva .
Phillipe Poutignat e Jocelyne Streiff -Fenart alertam sobre a necessidade de
esquecimento no imaginário coletivo francês, visto os confli tos étnicos no
país. 18
Neste sentido, a relação entre História e memória é pertinente,
sendo notório que a historiografia tem recorrido à memória voluntária,
produzida através do desenvolvimento cognitivo, desqualificando assim a
memória involuntária, tida como irracional e muitas vezes avessa à
História.
15
Ou noite dos cristais. Episódio que a partir de 1938 define a intolerância fascista e a perseguição
exacerbada contra os judeus. 16
PRÛSER, Friedrich. O Rolasnd e Rolândia in Roland und Rolandia. Bremen. Robert Bargman: 1957. 17
DE SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de Memórias em terras de História: Problemáticas atuais. in:
BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márica. Memória e (res) sentimento. Campinas: Unicamp, 2004. 18
POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998. A noção
de esquecimento desempenha uma relação com as forças dogmáticas de um determinado grupo étnico. Desta
forma, os valores a que estaria ligada a sociedade francesa não permitem a estes se interessar pelo fato de que
sua nação formou-se historicamente por meio da conquista, migrações ou anexações de povos distintos.
Assim, o esquecimento desempenha o papel que permite ao grupo agarrar-se convictamente a conjunto de
valores étnicos.
24
A relação entre memória e História, somamos a já apontada
noção de ressentimentos , mas como uma espécie de dinâmica dos
ressentimentos, criadora de valores, de finalidades sentidas como desejáveis
pelos indivíduos e que eles buscam realizar . Tal movimento conduz à ação,
à exteriorização, levando em consideração as satisfações e benefícios que
os ressentimentos podem proporcionar. No caso das manifestações anti -
semitas, o ódio19
recalcado e posteriormente manifestado acaba por criar um
vínculo afetivo que permite uma forte identificação de cada um com seu
grupo de pertença. Como um reagrupamento de indivíduos que se unem para
gritar sua agressividade, inventando signos que exprimam desejos hostis,
como apedrejar símbolos alheios ou queimar figuras sagradas de um grupo
ao qual se manifesta ódio e desejo de vingança.
As experiências afetivas a que os atores se propõem são em
escalas diferenciadas recalcadas e evitadas, de forma a não serem reveladas
freqüentemente. Poderia então, a memória dos ressentimentos conduzirem
sempre à das violências e perseguições, uma espécie de dever da memória,
onde fatos e sofrimentos suportados não são levados ao esquecimento.
A partir destas referências podemos nos valer de considerações
da História Cultural , a refazer trajetórias de vida que operam como que
janelas ou portas de entrada para a compreensão de formas de agir, de
pensar e de representar o mundo em uma determinada época20
, ou seja,
buscando representações que revelem fatores previamente não observados,
dando voz a personagens que de outra maneira ficariam no esquecimento, o
que segundo Jaques Revel nos proporciona uma descida ao rés do chão. A
abordagem da obra de Max Hermann Maier e de Mathilde Maier parece
revelar exatamente essa fragmentação, a possibilidade de compreender os
fenômenos decorrentes da segunda grande guerra e principalmente aqueles
que se relacionam com a memória e com os ressentimentos desenvolvidos
19
É preciso esclarecer que o elemento “ódio” se configura em todas as partes envolvidas, de forma que assim
como aqueles que praticam do anti-semitismo podem ser movidos por tal sentimento, os hostilizados
desenvolvem também o ódio pelos anti-semitas, além também daquele deferido por seu próprio grupo de
pertença. 20
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005
25
nestes imigrantes. Esta análise se fará no discurso embutido em suas obras,
naquilo que não se revela claramente em suas palavras. Como o s
ressentimentos se manifestam, a quais comportamentos servem de fonte, que
atitudes inspiram, conscientes ou não?
O trabalho utiliza como fontes duas obras principais: 1)
MAIER, Max Hemann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na
selva brasileira - Relato de um imigrante(1938-1975). Título do original
alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffeepflanzer in Urwald
Brasiliens. Bericht Eines Emigranten (1938 -1975). 2) MAIER, Mathilde. Os
jardins de minha vida. São Paulo: Versão: Roswitha Kempf. Massao Ohno
Editor, 1981. Do original Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef Knecht -
Carolusdrukerei . Frankfurt am Main.
26
II – JUSTIFICATIVA
As pesquisas que se debruçaram sobre , não apenas, os
fenômenos da modernidade, mas , também, os regimes totalitários e as duas
grandes guerras mundiais se esforçaram também no sentido de compreender
a trajetória daqueles que sofreram todo o terror e trauma das perseguições,
assim como o trabalho forçado nos campos de concentração e de extermínio.
As diversas linhas de pesquisa historiográficas revelaram e continuam a
revelar um ilimitado campo de interpretações e possibilidades de
investigações dentro do efeito imigratório durante a segunda guerra
mundial, os sobreviventes, a passagem pelos campos nazistas, a perseguição
em território alemão, a investida em terra hostil e toda a tragédia causada
pela experiência da barbárie fornecem ferramentas suficientes para a
pesquisa histórica. Uma possibilidade de apoio em uma concepção
multidimensional da realidade social , onde cada nível ou dimensão traça
sua própria história, ao mesmo tempo em que se articula com outras, a fim
de restabelecer o movimento de uma sociedade. A própria história judaica,
enquanto grupo étnico dentro dos acontecimentos da segunda grande guerra
tornou-se extremamente fragmentada quando relacionada às questões que
envolvem imigração, exílio ou mesmo fuga do território alemão. A presença
de famílias imigradas ao Brasil revela ao s historiadores um amplo campo de
pesquisa e também possibilita ao presente trabalho a utilização de
instrumentos variados , como os recursos oferecidos pela História Oral ou
consulta de arquivos públicos e privados.
Partindo deste movimento o trabalho pre tende realizar esforços
nas discussões historiográficas que envolvem o s ressentimentos. Conceito
que revela uma multiplicidade de interpre tações e significados, desde a
psicanálise freudiana ou mesmo a filosofia de Nietzsche, em ambos os casos
é sempre presente a relação direta desta dimensão psicológica com as
construções sociais.
27
As práticas de anti -semitismo como ódio aos judeus são
escolhidas como potenciais para a investigação da gênese dos
ressentimentos, o que nos permite igualmente relacioná-lo com a memória.
Para Freud não há erradicação dos sentimentos, antes dele Maquiavel
teorizou que o medo é o principal motor do ódio. Temos, portanto, uma
busca da compreensão não apenas dos conflitos humanos ou dos grupos
étnicos em sua essência política, mas também das relações emocionais, de
teor mais subjetivo, que revelam o surgimento de ressentimentos a part ir de
experiências trágicas. Vinculados a intensidade e força dificilmente não
possuíram consequências ou manifestações na conduta dos indivíduos. Não
objetivamos um trabalho de defesa de grupos supostamente vitimizados pela
História, pois, ao passo em que escolhemos uma determinada maneira de
encarar o objeto, é importante atentarmo -nos para a ilimitação da produção
hstórica desses ressentimentos. Seja estarmos falando de personalidades
caracterizadas como ressentidas, feito Adolf Hitler, seja observarmos os
distanciamentos entre as diferentes confissões religiosas. Portanto, os
ressentimentos a que nos referimos são amplamente produzidos pelos
grupos em ordens e ritmos inconstantes, escolhidos assim em determinados
momentos como mais pertinentes ou não, de forma a optarmos a dar mais
relevância a este ou aquele, e, assim, não estarmos nos posicionando para
um entre eles, mas sim, estarmos optando por uma conduta de pesquisa.
O trabalho busca uma contribuição para os variados estudos de
anti-semitismo, conflitos étnicos e intolerância, além da própria
contribuição à historiografia e seus estudos acerca do século XX e seus
acontecimentos, mas ainda também uma possibilidade de ampliação das
discussões no que se refere ao lado mais subjetivo da experiência, buscando
a compreensão do fenômeno dos r essentimentos e as construções que
permeiam as relações de afeto e memória política assim inserida.
28
III - A HISTÓRIA E OS RESSENTIMENTOS
“Existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo
grande dos ser tões, dos mares , dos desertos, o medo dos
soldados, o medo das mães, o medo das igre jas, can taremos o
medo dos ditadores , o medo dos democrat as, cantaremos o medo
da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos de
medo e sobre nossos túmulos nascerão f lores amarelas e
medrosas”.21
“A morte a vida estão no poder da palavra”.22
Sigmund Freud, em sua obra Reflexões para os tempos de
guerra e morte23
, aponta para as relações estabelecidas entre aqueles que
sobreviveram a primeira grande guerra (1914 -1918), de forma a buscar a
compreensão dos traumas e consequentemente da postura assumida após
1918 diante da vida. De certa forma essa pers pectiva se aproxima daquilo
que o autor buscou explicar através da constituição do psiqu ismo e as raízes
intolerância. Segundo Mara Selaibe:
[ . . . ] o t ipo de natureza paranóica de nosso narcisi smo básico e
fundante a f im de complexizar em d ireção ao reconh ecimento e a
acei tação – inc lusive a admiração – por aqui lo que nos é
es tranho, que nos é outro ou apenas díspar . Tornamo -nos únicos
e humanos pe la via dupla da identi f icação e da
di ferenciação /separação. Tal paradoxo permanece sempre e
recrudesce a cada s i tuação de perseguição, de impedimento da
af irmação da divers idade, de ataque f í sico e psíquico à
21
Carlos Drummond de Andrade. 22
Provérbios, 18-21. 23
FREUD, Sigmund. Reflexões para os tempos de guerra e morte. Obras completas de Freud, vol. XIV.
Imago Editora, 2006.
29
alter idade visando imobil izá - la e neutral izá - la . A vio lênc ia
contra um outro humano se impõe total i tár ia e faz va ler a par t ir
dela a homogeneização , o exterm ínio da d i ferença.24
Desta forma, inspirada na reflexão freudiana, a autora caminha
também no referencial psíquico de alteridade do indivíduo, tomando por
conseqüência a coletividade desses mecanismos de ação e diferenciação que
quando tomados em grandes proporções resultaram em episódios de
massacre e extermínio, numa profunda exteriorização da intolerância. No
caminho traçado pela psicanálise o principal texto para pensar as
diferenças, a diferenciação – bem como as resistências a elas – seja nos
indivíduos seja nos grupos, nas instituições e nas massas foi O mal estar na
civilização de 1929.25
Temos nesta obra a solidificação da diferenciação , do
mal estar recalcado nas sociedades e a relação estabelecida entre o próprio
sujeito atuante e o meio social ao qual esteve vinculado e assim voltamos
nossa atenção sobre não apenas as diferenças reconhecidas pelos atores,
mas principalmente como operam tais diferenciações e como os mesmos
atores se sensibil izam em relação a elas e comportam -se reciprocamente no
contato de suas fronteiras.
Ora, aquilo que pretendemos – observar historicamente os
ressentimentos – só poderia inicialmente ser abordado na relação
identificada com a idéia de alteridade ou estranhamento26
, estabelecer as
condições de sua existência e não d e sua validade, ou seja, tomamos a
verdade como uma produção histórica, onde tal análise nos remete ao
aparecimento, organização e transformação de determinados valores. A
regularidade da pesquisa por sua vez individualizada no espaço do
conhecimento estabelece compatibilidades e incompatibilidades.
Em sua Microfísica do Poder , Michel Foucault afirma que o
poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em
ação, como também da afirmação que o poder não é manutenção e
24
SELAIBE, Mara. Raízes da intolerância. In: Psicanálise e intolerância. São Paulo: 2005. 25
SELAIBE, Mara. Raízes da intolerância. In: Psicanálise e intolerância. São Paulo: 2005. 26
Detalhes no capítulo O outro na História e a figueira brava. Págs. 30 à 51.
30
reprodução das forças econômicas, mas acima de tudo uma relação de
força.27
Desta forma, o poder se configuraria em um exercício, um exercício
de compreensão dos mecanismos de repressão, onde as relações de poder
nas sociedades atuais têm essencialmente por base uma rela ção de força
estabelecida, em um momento historicamente determinável. Em seu
percurso rumo à realização de um projeto em relação à história do
pensamento, o autor procurou mostrar como porções particulares de
conhecimento limitaram a liberdade humana e qua is recursos seriam válidos
para a superação de tais restrições. Des ta forma, Michel Foucault apontou
para o que chama de regimes de verdade, ou seja, relações circulares onde
sistemas de poder as produzem e sustentam. Sobre a questão diz o a autor:
“Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “pol í t ica geral”
de verdade: i s to é , os t ipos de d iscurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que
permi tem d ist inguir os enunciados verdadeiros dos fa lsos, a
maneira como se s anc ionam uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são va lor izados para a obtenção da verdade;
o estatuto daqueles que têm o encargo de d izer o que funciona
como verdadeiro”. 28
As relações de força e a produção de discursos refletem de
maneira inquestionável na conduta dos indivíduos. Aquilo a que Michel
Foucault chama “política geral” manifesta -se de maneira heterogênea em
cada sociedade. A transformação dos discursos, o surgimento de novos, o
desaparecimento de outros, a mudança lentamente se fe z vencedora, de
forma que se dist inguem inevitavelmente em tempo e espaço. Jean
Delumeau, em sua obra sobre o medo no Ocidente29
, dedica pelo menos um
27
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989. 28
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins
Fontes, 1987. A verdade, no pensamento foucaultiano é entendida, portanto, como um sistema de
procedimentos ordenados para a produção, regulação, distribuição, circulação e operação dos discursos. A
questão fundamental da Filosofia deve ser buscada a partir da relação que estabelece entre nós e a verdade, ou
seja, de que forma devemos conduzir-nos? Através desse trabalho vemos modificadas as relações com a
verdade e, principalmente, vemos modificada a conduta dos homens. 29
DELEMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. De
início o autor questiona-se: “Por que esse silêncio prolongado sobre o papel do medo na história?” Trata-se
aqui, assim como em nossa pesquisa sobre os ressentimentos, de não apenas abordar o medo puro e
simplesmente, mas de relacionar o complexo de sentimentos que desempenharam um papel crucial na história
31
capítulo ao anti -semitismo e às relações entre a “Europa e os judeus”.
Chama-nos a atenção nesse momento a contextualização e constatação do
autor ao verificar “idas e vindas” ou “altas e baixas” da comunidade
israelita e a relação desta com a população de forma geral e as insti tuições
de época. Segundo Delumeau, durante parte da História a intolerância
deferida aos judeus aconteceu, sobretudo, pela existência de um anti -
judaísmo popular, ocorridos principalmente nas cidades com episódios
sangrentos anteriores ao século XVI30
, sendo relatados casos onde a
intervenção papal se fazia necessária quando da acusação de algum cidadão
judeu em relação a qualquer crime, a população insana e determinada não se
contentava senão com a morte dos israelitas31
. Na Idade Média e em sua
sequência, principalmente após o século XVI, a instituição religiosa passou
por modificações s ignificativas no tratamento e no discurso. O aparente
“medo” da ameaça judaica solidificou-se no pensamento cristão, o povo
judeu estava, agora, ligado a tudo aquilo que determinasse efetivamente o
mal, o demônio, as trevas. Desta forma, regiões como a Esp anha, antes
conhecida como “terri tório das três religiões”32
, pela tolerância religiosa
das sociedades humanas. Sobre o assunto o autor cita o texto Pour l’histoire d’um sentiment: Le besoin de
sécurité, de 1956 publicado na Annales e escrito por L. Febvre: “Não se trata [...] de reconstruir a história a
partir da exclusiva necessidade de segurança – como G. Ferrero estava tentado a fazer a partir do sentimento
do medo (no fundo, de resto, os dois sentimentos, um de ordem positiva, o outro de ordem negativa, não
acabam por encontrar-se?) – [...], trata-se essencialmente de colocar em seu lugar, digamos de restituir seu
quinhão legítimo a um complexo de sentimentos que, considerando-se as latitudes e as épocas, não pôde
deixar de desempenhar um papel capital na história das sociedades humanas para nós próximas e familiares”.
Aqui o medo fora detectado sobretudo pela análise da segurança, ou seja daquilo que os grupos humanos
fizeram registrar-se em suas preocupações com as edificações, grandes portais, muralhas, feito a descrição
detalhada das fortificações de entrada na Augsburgo do século XVI. 30
Segundo Jean Delumeau “...Os pogroms que acompanharam a Peste Negra na Alemanha e na Catalunha e as
violências de que os judeus foram vítimas em Paris e no resto da França com o advento de Carlos VI (1380)
revelam, no plano local, os ressentimentos de uma população - ou antes de uma fração desta – em relação aos
israelitas. Usurários ferozes, sanguessugas dos pobres, envenenadores das águas bebidas pelos cristãos: assim
os imaginam freqüentemente os burgueses e o povo miúdo urbano no final da Idade Média. Eles são a própria
imagem do “outro”, do estrangeiro incompreensível e obstinado em uma religião, dos comportamentos, de
um estilo de vida diferente daqueles da comunidade que os recebe”. 31
C it. pág. 279: “Essa estranheza suspeita e tenaz aponta-os como bodes expiatórios em tempos de crise.
Inversamente, muitas vezes aconteceu – por exemplo na Espanha e na Alemanha no decorrer da Peste Negra,
mas também na Boêmia no século XIV e na Polônia no século XVII – que soberanos e nobres tomassem a
defesa dos judeus contra a cólera popular. Do mesmo modo, os papas tiveram por muito tempo uma atitude de
compreensão em relação a eles”. 32
Sobre este afirma Jean Delumeau: “O país que, nos séculos VXI e VXII, se tornou mais intolerante em
relação aos judeus, a Espanha, foi o que, anteriormente, melhor os acolhera. No final do século XIII, eles
32
durante parte da Idade Média, transformaram-se em palcos de terror e
perseguição, mas desta vez haviam sido fortemente estimuladas pelo
discurso religioso:
“Do mesmo modo que o rac ismo hit ler i s ta deu ao ant i -semi t ismo
alemão do começo do século XX uma agressividade e uma
dimensão novas , assim também o temor ao judeu – verdadei ro
“rac ismo rel igioso” – exper imentado pe la Igrej a mil i tante entre
os séculos XIV e XVII , numa p sicose de cerco um pouco
comparável , não só exacerbou, legit imou e genera l izou os
sentimentos hosti s em relação aos judeus das co let ividades
loca is , mas a inda provocou fenômenos de rejeição que, sem essa
inci tação ideológica, sem dúvida não se te r iam produ zido.
Reencontra -se então um juízo já enunciado por H. C. Lea quando
ele escrevia no começo de sua monumental History of the
Inquis i t ion of Spa in: “ Não é exagerado dizer que a Igreja foi a
pr incipal ou mesmo a única responsável pe la mul t idão de
sevícias so f r idas pe los judeus no decorrer da Idade Média”. E eu
acrescentarei es ta emenda: mais a inda durante a Renascença”.33
Desta forma, o discurso produzido aponta para momentos
diferentes, primeiro aquele onde a “discursividade ideológica” tem papel
determinante nos movimentos anti -judaicos, e segundo, onde a
agressividade popular era tamanha que aqueles mais favorecidos dentro da
hierarquia social tomavam a defesa dos judeus frente à intolerância popular.
Ambos apontam também para períodos distintos na Históri a, mas embora
tudo isso comunga da mesma hostil idade a um mesmo povo, sendo assim os
judeus vistos como “aliança do mal” e a quem deferem todos os males
surgidos para as comunidades.
A idéia de Delumeau e de outros autores que o mesmo nos
aponta corre em d ireção à formação de um discurso, de uma “incitação
eram ali perto de 300 mil e vivam misturados ao resto da população. Cristãos e israelitas convidavam-se à
mesa uns dos outros. Iam aos mesmos banhos públicos e muitas vezes nos mesmos dias, a despeito de certas
interdições pouco respeitadas. Cristãos assistiam às circuncisões e judeus aos batismos. [...] Tal era, na Idade
Média, a Espanha das “três religiões”, um país tolerante porque não homogêneo”. Também a Polônia por
muito tempo destacou-se como região de tolerância. Na segunda metade do século VXI dizia o estatuto dos
judeus poloneses: “Nessas regiões, encontram-se massas de judeus que não são desprezados como em outras
partes. Não vivem na submissão e não estão reduzidos aos ofícios vis. Possuem terras, ocupam-se do
comércio, estudam a medicina e a astronomia. Possuem grandes riquezas e não são apenas contados entre as
boas pessoas, mas por vezes as dominam. Não usam nenhum sinal distintivo, e lhes é permitido até mesmo
portar armas. Em suma, dispõem de todos os direitos do cidadão”. 33
Idem 7. cit. pág 278-279.
33
ideológica” que predominantemente determina o percurso da análise,
sobretudo naquilo em que lhes confere o sentimento, a subjetividade do
medo. O ditado popular “se não podes com eles junte -se a eles” é aqui
utilizado às avessas. Cabia aos judeus atender a uma oportunidade de
conversão, de permanência, de partilhar valores, ainda que de qualquer
maneira jamais o fosse plenamente. Era -lhes em muitos momentos a única
chance:
“No momento em que Lutero confes sava seu imenso medo do
per igo turco, enfurec ia -se também contra os judeus que, em um
primeiro tempo, esperara conquistar para o Evangelho. A
simul tane idade das duas denúncias não era for tui ta . Ao
contrár io , e la esc larece uma s i tuação his tór ica. Na Europa
Ocidenta l , o ant i juda ísmo mais coerente e mais doutr inal se
manifes tou no per íodo em que a Igreja , percebendo inimigos por
toda par te , sent iu -se presa entre os fogos cruzados de agressões
convergentes. De modo que, no começo da Idade Moderna, o
temor aos j udeus se s i tuou sobre tudo no níve l re l igioso”.34
Esta passagem aponta para o momento em que Lutero acreditou
ainda poder converter os judeus e trazê -los para o interior da reforma
protestante. Ao mesmo tempo, a Igreja, que ainda sangrava após o cisma do
cristianismo no Ocidente, reagiu imediatamente contra tudo aquilo que lhes
parecesse igualmente passível de estranhamento. Portanto, os israelitas não
encontraram diálogo seguro com nenhuma das confissões cristãs. E assim , a
longa crise da Igreja começada com o grande Cisma, e depois continuada
pelas guerras hussitas, o avanço turco e finalmente a secessão protestante
engendraram nos meios eclesiásticos endurecimentos doutrinais e um medo
maior do perigo judeu.35
Séculos mais tarde os acontecimentos que culm inaram nas duas
grandes guerras e, sobretudo nas práticas de intolerância e anti -semitismo
durante a segunda guerra mundial elevaram fortemente o prestígio do
Estado, sendo atribuída a ele uma força legít ima sobre a vida, a morte e a
liberdade. As massas, privadas até da aparência de uma personalidade, se
34
Cit. pág. 278. 35
Cit. pág. 282.
34
conformaram mais docilmente aos modelos e às palavras de ordem. Ou seja,
as massas são submetidas à exploração e à dominação, por de trás do bem -
estar recalcou-se todo um ambiente caótico. Temos uma maneir a diferente
de manifestação anti -semita, embora alguns elementos, como a ideologia
religiosa, que foram ainda estimulados e ainda assim ao esti lo nazista, de
forma que a Igreja não exerceu participação determinante nas perseguições,
formações de campos de concentração ou mesmo extermínios. Nos tempos
de Hitler, segundo Jean Delumeau, o antijudaísmo
“teve dois co mponentes que mui tas vezes se somaram: de um
lado, a hosti l idade experimentada por uma colet ividade – ou por
uma par te desta – em relação a uma minoria empreendedora,
considerada inassimi lável e chegando a ul trapassar um l imiar
toleráve l no p lano do número ou do êxito , ou nos dois ao mesmo
tempo; e , do outro, o medo sent ido por doutr inár ios que
ident i ficam o judeu com o mal abso luto e o perseguem com seu
ódio implacável mesmo quando e le fo i repe lido para fora das
frontei ras”.36
Embora o contexto da primeira metade do século XX possa
assim pensar o anti -semitismo na Europa e o próprio nazismo, as práticas de
intolerância deferidas aos israelitas rem etem a momentos bem mais remotos
da História européia e principalmente não se vinculam necessariamente à
expressão dos sentimentos populares ou a uma situação social e econômica.
Delumeau acrescenta que:
“Do mesmo modo que o rac ismo hit ler i s ta deu ao ant i -semi t ismo
alemão do começo do século XX uma agressividade e uma
dimensão novas , assim também o temor ao judeu – verdadei ro
racismo “rel igioso” – exper imentado pe la Igrej a mil i tante entre
os séculos XIV e XVII , numa psicose de cerco um pouco
comparável , não só exacerbou, legit imou e genera l izou os
sentimentos hosti s em relação aos judeus das co let ividades
loca is , mas a inda provocou fenômenos de rejeição que, sem essa
inci tação ideológica , sem dúvida não se ter iam produzido.”37
Desta forma, o antijudaísmo popular não deve ser visto como
única ou principal força motora das agressões contra os judeus. Há uma
36
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. 37
Cit. pg. 278.
35
relação entre os chamados “afetos” – conjunto de manifestações e
percepções subjetivas ligadas sobretudo à moral e hombridade dos atores –
e o político, ou seja, aquilo que por ventura age diretamente no objeto em
questão: a formação dos ressentimentos.
A partir destes acontecimentos, tomando principalmente nosso
recorte temporal, remetidos, portanto, ao século XX e ao anti -semitismo
praticado durante sua primeira metade, com os conseqüentes extermínios em
massa nos campos de concentração e os grupos de refugiados espalhados
por todo o mundo no antes e pós -1945. Temos assim articuladas
problemáticas que permitem observar a construção dos ressentimentos entre
os descendentes judaicos.
As perspectivas do medo e das formações discursivas em suas
subjetividades dão aos ressentimentos aquilo que podemos colocar como um
pós-operatório, ou seja, como a herança de tempos em que as piores
expectativas confirmaram-se tragicamente para os israelitas. A expressão do
sobrevivente ou do hostilizado é manifesta , consciente ou não, em relação
ao seu algoz.
Observamos anteriormente que o antijudaísmo encontra sua
fonte em conflitos antigos entre grupos distintos e nas riv alidades
teológicas. A evangelização dos povos europeus o propagou no Ocidente,
daí os estudos sobre anti -semitismo ocuparem-se da relação deste com as
sociedades ocidentais. Transformam as populações judaicas em “bode
expiatório”.38
Desta forma a perseguição e exclusão aos judeus tornou-se
frequentemente praticada em território ocidental .
38
RABINOVITCH, Gerard. Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004. Expressão esta utilizada
também por Jean Delumeau na “História do medo no Ocidente”. O chamado “bode expiatório” caracterizou-
se como aquele a quem são creditados feitos ou intervenções, ou seja, se justificou ações muitas vezes
conspiradas por outros ao elemento judeu, de forma que o peso de sua ascendência por si só era suficiente
como prova e podia convencer a grande maioria do grupo. Antes da primeira guerra mundial o caso do oficial
da marinha francesa, Dreyfus, acusado de alta traição e conspiração com os alemães tornou-se um dos mais
famosos julgamentos internacionais da História e fonte de inspiração para a reflexão nas expressões sociais,
feito a obra de 1925 “O Processo”, de Franz Kafka. Na narrativa kafkiana Josef K. é um bancário de 30 anos
que acorda certa manhã, e, sem motivos sabidos, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um
crime não revelado, quando se declara inocente é questionado “inocente de quê?”. K. termina morto nos
portões da cidade. Por outro lado, em meio a estes acontecimentos, tivemos também a formação e
estruturação do pensamento sionista, sobretudo com a atuação de seu principal mentor, Theodor Herzl. O
36
Em uma observação particular, tomando aqui os anos que
antecedem o fenômeno nazista, o sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra
Holocausto e Modernidade , alerta para o fato de que a Alemanha, antes da
ascensão do partido nacional socialista, comparada a outras regiões da
Europa, não apresentou naquele momento (sobretudo a partir do início da
década de 1930) um sentimento extremo de ódio aos judeus, algo muito
mais visto em outras regiões do continente.39
A explosão do sentimento
anti-semita não é inédita nem formulada ao pé do século XX, trata -se de
valores recalcados, que em momentos de incitação tomam lugares de
destaque no cenário social .
A intolerância dos alemães levou mais de cinco milhões judeus
à morte no período compreendido entre os anos de 1939 -1945. Foram estes
trazidos de várias regiões da Europa, dentre estes a maior parte de judeus
russos e poloneses.40
O discurso da violência e sua heroificação apresentam -se
também como forma de conduta, de salva -guarda de valores de um povo
considerado forte e honrado. Segundo Gérard Rabinovitch:
“Berto ld Brecht em sua peça A resist íve l ascensão de Arturo Ui
comparava os naz istas aos gangsters. Os traba lhos dos
soc iólogos e dos antropólogos sobre a máfia tradic ional podem
confirmar a intuição do autor . A hero i ficação da violência como
maneira de “es tar no mundo” , é o ponto mais flagrante de
simi l i tude ent re a subcul tura mafiosa e o naz ismo (que lhe é
poster ior) . As regras de ast úcia, de ferocidades , de prát icas de
roubo e de embuste, a concepção real de honra baseada na
aptidão para a violênc ia homic ida, a prát ica do duplo d iscurso,
sionismo foi caracterizado como um movimento de direito à autodeterminação do povo judeu e à existência
de um Estado judaico. Em 1896, o livro "Der Judenstaat" ("O estado judaico") de T. Herzl apontava para a
necessidade da formação de um Estado judaico, onde somente assim o problema do anti-semitismo seria
resolvido. 39
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. O autor aponta para
um recorte muito específico que engloba as relações mais superficiais dentro do território alemão, não
expandindo a análise a uma conjuntura de longa duração. A expressão anti-semita deflagrada no Ocidente,
como já exposto aqui, foi hora e outra exteriorizada, em uma relação de continuidade com rupturas
estruturais, feito a incitação ideológica por parte de um ou outro. 40
R. Hilberg. La destruction des Juifs d’ Europe. Fayard, 1988. & E. Jäckel. P. Longerich, J. H. Shoeps,
Enziklopädie dês Holocaust, Argon, 1993. Segundo os autores, que divergem em números totais por uma
questão de demarcações e fronteiras, o número de russos mortos está entre 700.000 e 1.100.000 e o número de
poloneses entre 2.900.000 e 3.000.000. Estima-se que o total de judeus mortos durante a guerra esteja entre
5.100.000 e 5.860.000.
37
do logro, do impera tivo de subord inação, da hierarquia
fundamentada na predominância do mais for te , da l ivre
disposição sád ica sobre os fracos e os sem -defesa, da
fanfarronada, os mafiosos têm seus homólogos nos Schwarze
Korps e na Schutzsaffe l (SS) . “Nos castelos de minha ordem,
crescerá uma juventude que a terror izará o mundo. Eu quero uma
juventude v io lenta, despótica, sem medo, cruel . . .” dirá Hi t le r . O
emprego da vio lência homicida é ind ispensável ao homem de
honra . A hierarquia no se io da soc iedade honrada está baseada
na agressividade, na ferocidade, , na so lidez dos nervos, na
ausência to ta l de esc rúpulos, na se lvager ia , na capacidade de
tomar dec isões rap idamente. A heroi f icação do “Super -Homem”
nazista lhe é homóloga quase te rmo a termo. Ela está no centro
das expressões de Hi t ler , Goebbels e de Himmler . É a da SS
como guarda pre tor iana na qualida de de corpos de el i te e na
função de núcleo da “nova ordem” do Reich de mi l anos”.41
Uma vez instauradas as noções de intolerância e de anti -
semitismo podemos agora dirigir -nos à questão da formação dos
ressentimentos e seu apelo junto à História, quais di scursos viabilizaram, de
que maneira foram operados, quem os manteve e como aconteceram nas
sociedades ou mesmo grupos que compartilharam da experiência da
hostilidade sobretudo no anti -semitismo moderno.42
Para tanto a idéia dos ressentimentos deve concentrar-se em
uma diversidade de formas, para que assim possamos trabalhar com a
definição de ressentimentos e não ressentimento. Em seu estudo sobre
memória e (res)sentimentos, Márcia Regina Naxara e Maria Stell a Bresciani
alertam os lei tores:
“Não pensamos aqui somente na co municação voluntár ia de
experiências ou na prát ica da transmissão oral de lendas e
tradições entre populações , o mais das vezes i le tradas; a
preocupação maior busca também o avesso da face
his tor icamente datada da obrigação à memória, es sa memór ia
voluntár ia construída como estratégia de luta po lí t ica, a f irmação
posi t iva de identidade pelos que se vêem excluídos dos d ire i tos
41
RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectivas, 2004. Em seu breve ensaio
sobre o Holocausto e as “raízes do antijudaísmo” o autor expõe dentro daquilo que denomina “cultura da
corja” elementos da formação do ideário e práxis nazista, tais como anti-semitismo, o mito ariano, a cultura
da morte e a heroificação da violência. Desta forma, o conjunto de valores dignos de um representante ariano
deveriam não confrontar-se com estes. Segundo o autor, assim como pensou o poeta alemão Bertold Brecht,
os valores do nazismo estavam próximos daqueles vistos entre as famosas máfias de início do século XX. 42
Entendemos aqui como anti-semitismo moderno as práticas de intolerância deferidas aos judeus a partir da
primeira metade do século XX e a ascensão dessa militância que culminou no movimento nazista na
Alemanha.
38
à cidadania; rememoração dolorosa, mas não menos afirmat iva,
de perseguições polí t icas, re l igiosas, é tnicas, por ve zes
acompanhadas de prá t icas vio lentas de genocídio. Como separar
essas memór ias de sent imentos negat ivos , humilhações, a fe tos
ressentidos, rancores e desejos de vingança das evocações da
par te so mbria , inquie tante e frequentemente terr í fica da
his tór ia?”43
Portanto, a memória dos ressentimentos pode conduzir os
indivíduos a uma manutenção negativa de suas experiências passadas, de
forma a preservarem sentimentos hostis .
Uma noção envolvida com a psicologia social definiria os
ressentimentos a partir das relações entre os afetos e o polí tico, entre os
sujeitos individuais em sua afetividade e as práticas sociais e políticas,
como expresso por Max Hermann Maier:
“No dia 10 de novembro de 1938, após doze anos de uma vida
conjugal fel iz e traba lhosa, após se is anos sob o terror naz is ta ,
depois da “Noite dos Vidros Quebrados” (Kristal lnacht , em
alemão); depois do “pogrom” ordenado pe los naz istas, pude
enfim sair da minha cidade nata l (Frankfurt sobre o Meno) com a
minha famí lia . Pudemos sa lvar -nos das perseguições do últ imo
dia da nossa es tada em Frankfurt co m a ajuda de bons amigos;
sem essa ajuda não ter íamos conseguido pegar o t rem da no ite
para a Holanda. Antes da fronteira , na cidade de Emmerich,
fomos de tidos pe la “SS” e tra tados de maneira humilhante. Na
noi te de onze de novembro, fel izmente nos l iber taram.” 44
Desta forma, a multiplicidade de idéias permite ao termo
ressentimentos uma variedade de abordagens, sendo, porém, presente na
maioria delas uma questão delicada, pois nos obriga a explorar regiõ es e
temas a que somos resistentes. Questão sensível a das memórias
acorrentadas a ressentimentos.45
Portanto, a referência a memórias
43
BRESCIANI. Stella (org) e NAXARA. Márcia. Memória e ressentimento.Unicamp: 2004. 44
Pág. 4, cap. 2 in: MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva
brasileira – Relato de um imigrante (1938-1975) Nesta passagem Max Hermann Maier narra o desepero da
família que saiu tardiamente da Alemanha, daí as dificuldades em ultrapassar as barreiras nazistas rumo a um
lugar qualquer que lhes fosse mais amistoso . 45
BRESCIANI. Stella (org) e NAXARA. Márcia. Memória e ressentimento.Unicamp: 2004. A advertência
das autoras parece-nos bastante pertinente ao passo em que a pretensão da história dos ressentimentos se nos
apresenta de maneira bastante subjetiva, sendo necessário a exploração de memórias noturnas, àquelas para as
quais desenvolvemos resistências colossais, estando ainda sujeitos a uma deformação dessas memórias,
delírios, invenções. É necessário atenção e cuidado ao trabalho historiográfico.
39
acorrentadas a ressentimentos podem ter na perspectiva historiográfica uma
intensa relação com estudos multidisciplinares, onde as utilizações de
ferramentas fornecidas pela psicologia, filosofia e sociologia podem
fornecer suportes para a investigação em história.
Pierre Ansart em seu estudo sobre os ressentimentos e suas
implicações com a memória já apontava tamb ém para uma abordagem plural
do tema, ou seja, uma diversidade das formas de ressentimento , que podem
estar relacionados a uma intensidade na perspectiva da psicanálise, a
representações, ligadas a crenças, religiões, imaginários ou ideologias além
de relações entre grupos e a reciprocidade entre eles.46
Assim, a tomada de
manifestações cotidianas, feito a leitura de um livro ou o trabalho em um
pequeno jardim transformam-se em meios diretamente relacionados ao
ressentimento, exteriorizam valores e revelam a memória:
“Eu vos digo amadas árvores, que p lante i já pressentindo . . .
cresçam como que saindo de minha a lma ao puro ar , pois que
dores e prazeres enter rei sob vossos pés . Cada dia t ragam
sombra , t ragam frutos, regozijos , mas que eu possa per to , per to ,
per to de la vos fruir .”47
Estas palavras de Goethe foram inspiradoras para Mathilde
Maier, que assim as comentou:
“Esta poesia Goethe escreveu para Charlo tte v. S tein , quando
plantou seu jardim – um presente do duque – fo ra dos portais da
cidade de Weimar. I númeras vezes reci tamos es ta poesia e
ident i ficamo -nos com e la. Da mesma maneira como este jardim
em Weimar poss ibi l tou a separação def ini t iva de Goethe de
Frankgur t – e há mui tas provas dis to – assim o plant io do nosso
jardim, seu cresc imento, sua floresc ência e frut i f icação, f izeram -
nos radicar profundamente nes te país novo e esquecer o
sofr imento ind izível da separação da pá tr ia e dos entes quer idos,
e as amargas exper iênc ias do tempo do naz ismo. E assim como o
sofr imento em comum aprofunda o amor , ass im a formação e a
construção conjunta de jardim e casa nos confor tou” .48
46
Também BARISH, Louis e BARISH, Rebecca. O problema do sofrimento in: Crenças Básicas do
Judaísmo. São Paulo: Ed. Edigraf, 1967. 47
Citação de Goethe feita Mathilde Maier em sua obra “Os jardins de minha vida”. 48
Pág. 64 in: MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Massao Ono Ed. São Paulo: 1981.
40
Há, portanto, uma espécie de dinâmica dos ressentimentos,
criadora de valores, de finalidades sentidas como desejáveis pelos
indivíduos e que eles buscam realizar. Assim, dificilmente se pode aceitar a
hipótese de que um sentimento do qual sublinhamos a intensidade e força,
não tenha conseqüências nem manifestações na conduta dos indivíduos. 49
Ou seja, não se livraram desse passado noturno, ele os acompanha ainda que
no Brasil estejam desde o amanhecer ao fim dos dias e a Alemanha tão
distante. Tal movimento conduz à ação, à exteriorização, levando em
consideração as satisfações e benefícios que os ressentimentos podem
proporcionar. No caso das manifestações anti -semitas, o ódio recalcado e
posteriormente manifestado acaba por criar um vínculo afetivo que permite
uma forte identificação de cada um com seu grupo de pertença. Como um
reagrupamento de indivíduos que se unem para gritar sua agressividade,
inventando signos que exprimam desejo s hostis, como apedrejar símbolos
alheios ou queimar figuras sagradas de um grupo ao qual se manifesta ódio
e desejo de vingança.
Mas, qual a solidariedade viabilizada pelos ressentimentos
coletivos, ou ainda, como se operam os movimentos que conduzem à a ção?
Os ressentimentos se constituiriam em sentimentos criadores, fei to a inveja,
ciúme, rancor, maldade, desejo de vingança, humilhação e medo. Devemos
duvidar de que algum tipo de sociedade possa fazer desaparecer a
experiência do ódio, inferioridade, humilhação e potencialidades
permanentes de agressividade. Segundo a perspectiva freudiana as pulsões
inconscientes nos confrontam à dualidade pulsional do amor e do ódio, onde
esta dualidade é redescoberta e incessantemente posta e recomposta.
Ao tentar problematizar os ressentimentos e a História devemos
buscar restituir e explicar o devir dos sentimentos individuais e coletivos.
Segundo Pierre Ansart,
49
RABINOVITCH, Gerard. Sepultos nas nuvens. São Paulo: Perspectiva, 2004.
41
“A d i ficuldade é redobrada quando se tra ta não somente de
anal isar os ód ios, mas de compreender e explic ar aqui lo que
precisamente não é di to , não é proc lamado; aquilo que é negado
e se consti tui , entre tanto, como um móbi l das at i tudes,
concepções e percepções soc ia is . O objeto esquiva -se, é p rec iso
formular a hipó tese de sua importância e reconsti tuir o inv isível
que , se não é tota lmente inconsciente, ao menos em par te é não
consc iente” .50
E acrescenta:
“O his tor iador encontra -se na obrigação de acumular o es tudo
dos indícios, dos signos, dos traços: es tudar a distr ibuição dos
camponeses nos so los, es tabe le cer a curva dos casamentos
mis tos, observar as est ratégias de a fas tamento, considerar os
l imi tes das terras e dos l i t ígios, recompor os r i tua is rel igiosos,
observar qual imagem, do outro é ai apresentada, re traçar a
his tór ia par t icular de um estupro e dos rumores que o tornaram
público e o transformaram em cr ime simbólico. Tarefa de licada
que diz mais respe ito ao es tudo dos costumes, dos usos da vida
cotid iana que à grande his tór ia pol í t ica .”51
Portanto as experiências afetivas a que nos propomos , sejam
elas ligadas a circunstâncias particulares, como a história privada de
famílias ou, sejam elas ligadas a valores contidos em situações públicas,
fei to os conflitos étnicos, são, em escalas diferenciadas , recalcadas e
evitadas, de forma a não serem reveladas f reqüentemente. Poderia então, a
memória dos ressentimentos nos conduzir sempre à das violências e
perseguições, uma espécie de dever da memória, onde fatos e sofrimentos
suportados não são levados ao esquecimento.
Por outro lado a investigação de tais val ores remete o
historiador a uma observação mais minuciosa, de forma que os pormenores
50
ANSART, Pierre. História e Memória dos Ressentimentos in: BRESCIANI, Stella. Memória e (res)
sentimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.
51
Cit. pág. 29.
42
da vida cotidiana é que irão de fato nos conduzir dentro da pesquisa,
revelando mais tarde acréscimos e subtrações no devir histórico, naquilo
que os grupos tomam para si e naquilo que recusam de bom grado, com
hostilidades maiores ou não. No caso dos israelitas alguns autores refletem
sobre a assimilação do judeu em relação à Europa, ao passo em que
reconhecem nos povos europeus uma porção de judaísmo. Sobre isso
afirmou Georg Simmel:
“O per igo da absorção não ameaça de modo algum os judeus,
pelo contrár io , encontram-se no estágio de judaização da
Europa. Se examinarmos i sso com uma lupa psico lógica,
encontraremos e lementos judaicos no sangue de todos os povos
de cultura e essa juda ização do não judeu ocorre para lela à
europeização dos judeus. Quanto mais os judeus se ass imi lam,
tanto mais e les se assimilam a s i mesmos, e o momento da maior
assimilação dos judeus coinc idirá com o momento de sua maior
inf luência enquanto e l emento psíquico ( . . . ) europeus e judeus
encontram-se em uma profunda l igação cultura l . Eles são
ind ivis íve is.”52
Árdua tarefa a da memória dos ressentimentos, configurados em
discriminação, repressão, terror, intolerância, tortura ou violência. Na
perspectiva historiográfica buscar ainda a transformação, no sentido de
compreender a memória que o indivíduo conserva de seus ressentimentos, a
memória que conserva dos ressentimentos daquele de quem foi vítima e
ainda a memória conservada pelo grupo de seus p róprios ressentimentos. A
memória híbrida de civilização e barbárie:
“O mundo dos campos da mor te e a soc iedade que engendra
revelam o lado progressivamente mais obscuro da civi l ização
judaico -cr is tã . Civil ização s igni f ica escravidão, guerras,
exp loração, e campos da morte . Também signi fica higiene
médica, elevadas idé ias rel igiosas, be las ar tes e requintada
52
Georg Simmel (1858-1918)
43
música. É um erro imaginar que c ivi l ização e crueldade
se lvagem sejam ant í teses. Em nosso tempo as c rue ldades, como
mui tos outros aspec tos do nosso mu ndo, passaram a ser
adminis tradas de manei ra muito mais a fet iva que em qualquer
época anter ior . Não deixaram e não deixarão de exist ir . Tanto a
cr iação como a destruição são aspec tos inseparáveis do que
chamamos civil ização”. 53
A passagem de Rubenstein at enta para um ponto fundamental
em qualquer pesquisa que pretenda elaborar algo realmente significativo
sobre o holocausto e as perseguições anti -semitas: não se deve partir de
pressupostos de isolamento, ou seja, a observação da imigração semita para
o Brasil deve ser encarada como parte integrante de um movimento de todas
as sociedades, e mais do que isso, igualmente integrante à mentalidade que
conduziram nossos semelhantes às práticas de intol erância. Ora, o
holocausto nasceu e foi executado em nossa sociedade moderna e racional,
no auge do desenvolvimento cultural humano, por essas razões é um
problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura. Como aponta
Rubenstein a barbárie aconteceu juntamente à música e belas artes. 54
A presença dos Maier e de outros imigrantes no norte do Paraná
configuram aos historiadores e pesquisadores das Ciências Humanas uma
vasta área de investigações, seja a partir da constituição dos grupos étnicos
e suas imigrações ou dos ressentimentos desenvolvidos, recalcados e ain da
assim, manifestados. A estruturação dos imigrantes torna possível a
possibilidade de apoio em uma concepção multidimensional da realidade
social, onde cada nível ou dimensão traça sua própria história, ao mesmo
tempo em que se articula com outras, a fim de restabelecer o movimento de
uma sociedade. A própria história judaica, enquanto grupo étnico dentro dos
acontecimentos da segunda grande guerra tornou -se extremamente
fragmentada quando relacionada às questões que envolvem imigração, exílio
53
Richard Rubenstein. The Cunning of History. New York: Harper, 1978. in: BAUMAN, Zygmunt.
Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 54
Assim como nos salientou Benjamin nas famosas teses sobre o conceito de história: “não há um
monumento da cultura que não seja também um monumento da barbárie”.
44
ou mesmo fuga do território alemão. As presenças de famílias com sangue
judaico na cidade de Rolândia revelam aos historiadores um amplo campo
de pesquisa.
Parece-nos que o movimento aqui exposto relaciona -se mais
fundamentalmente com a cultura, entendida aqui de fo rma ampla, ou seja,
tudo que o homem construiu para tornar humanizado o seu espaço. Todos os
elementos do humano estão inscritos no campo da cultura. Desta forma a
postura não visa uma discursividade sobre espaços específicos que
pretendam dar visibilidade para determinados grupos sociais e legitimar o
seu poder. Ao contrário, as manifestações das sensibilidades e a
constituição de imigrantes como grupo étnico em “terras longínquas” são
fenômenos que buscamos compreender no movimento histórico através da
investigação de vontades individuais dentro da estrutura geral da sociedade
humana.
III.I – OS RESSENTIMENTOS E OS IMIGRANTES
ALEMÃES EM ROLÂNDIA-PR
A obra de Mathilde Maier, Os jardins de minha vida55
, pode ser
compreendida como um retrospecto de sua p rópria história enquanto
personagem de um cenário habitado por outras centenas de histórias que a
precederam. O abandono da Europa em 1938 e a exposição de seu último
jardim em solo alemão refletem não mais que um aspecto de tragédia, a
guerra que se anunciava novamente frente os olhos de uma geração que já
havia passado pelos horrores da primeira grande guerra (1914 -1918):
“ninguém ainda pressentia o terror da Primeira Guerra Mundial que afetou
55
O livro de Mathilde Maier, publicado em 1981, foi editado pela primeira vez pela Editora Massao Ohno, de
São Paulo-SP. A versão é de Roswitha Kempf. Kempf foi também uma refugiada alemã que veio ao Brasil e
mais tarde casou-se com Massao Ohno. Os Maier já os conheciam dos tempos vividos em Rolândia.
45
tão gravemente a nossa geração”.56
Desta forma, para uma geração mais
madura, o anúncio da segunda grande guerra representava não mais espanto,
mas temor e medo, frente ao a experiência de que já haviam comungado
antes. Aos jovens, segundo Mathilde Maier, causava menor angústia a idéia
de transferência para terras est rangeiras, embora o não reconhecimento, o
estranhamento em relação ao tempo que viviam fosse o mesmo para todos.
“Quando depois da emigração, que se deu em 1938 , fomos pela
pr imeira vez visi tar a Alemanha, então foram os amigos que
sobreviveram ao terror do nazismo e da guerra; a casa de Goethe
o jardim das palmeiras, que nos facul taram de novo es te
sentimento de so lidar iedade com a ve lha pátr ia” 57
Não é difícil identificar entre os imigrantes alemães -judeus
que vieram para Rolândia uma espécie de a bandono ao modus operandi
germânico. Embora não pudessem eliminar traços característicos de sua
formação, muitos buscaram evitar a permanência de laços com a antiga
pátria. Alguns se recusavam a falar o idioma alemão, outros jamais
retornaram à Alemanha e com o tempo seus descendentes foram criando,
segundo relatos e observações, um desapego ainda maior, e desta vez não
somente com a cultura germânica, mas também com o próprio judaísmo.58
Ao que parece, o casal Maier não adotou postura tão radical.
Retornaram algumas vezes à antiga pátria, registraram seu estranhamento e
não deixaram de viver no Brasil até o fim de suas vidas. Isto não caracteriza
de certa forma, uma menor formação de ressentimentos em relação aos
episódios que os fizeram abandonar a Alemanh a, mas talvez uma relação
diferenciada para com suas próprias experiências:
“Em 1938, o des t ino nos levar ia às regiões tropica is com seu
pujante crescimento . Talvez a lembrança do despertar t ímido da
56
MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf
(primeira edição), 1981. Cit. p. 22. 57
Cit. P. 23. 58
Para compreender esta questão está inserido em anexo, ao final da dissertação, uma entrevista com Klaus
Kaphan, filho de imigrantes e antigos sócios do casal Maier que chegaram a Rolândia ainda no início da
década de 1930.
46
natureza depois do inverno , as campânulas de neve e as
pr imeiras viole tas na grama, sejam o que res ta da saudade do
paraíso perdido da infância, do qual não podemos ser
expulsos”.59
A narrativa de Mathilde Maier, ao contrário de Max Hermann
Maier, possui uma grande metáfora recalcada em seus jardins, que se
referem não somente às suas experiências de infância, juventude e
maturidade, mas também uma forma bastante específica de expor seu
lamento, de exemplificar de que maneira poderia ela ou não manter seus
laços com aquilo que ninguém poderia lhe arrancar. Neste caso, a vivência
da infância parece ser aquela que melhor traduz o que não podem lhe t irar,
o paraíso perdido como a autora mesma coloca. E os momentos ligados aos
seus jardins são vastos em toda a narrativa:
“Feliz a cr iança que pode br incar num jar dim. O meu jard im
es tendia -se atrás de uma be la ant iga casa renana que, na frente,
apresentava uma portentosa escadaria e atrás , para o lado do
jardim, um largo terraço de pedra onde se viam grandes vasos
com o leandros vermelhos, cor de rosa e brancos. No verão, es tes
arbustos sempre f lor iam abundantemente, porque eram bem
tratados , regados e adubados e nisto o co mprido cachimbo de
meu pa i desempenhava uma função s igni f icat iva : as c inzas do
tabaco eram co locadas nos vasos . Na minha memór ia o estranho
per fume sul ino das flores de o leandro ficou para sempre
assoc iado a um leve che iro de cachimbo”60
Ou ainda:
“Como era pací f ica a Alemanha, na perspect iva de uma cr iança
de antes da grande guer ra mundia l ! Agora, aqui no Bras i l ,
quando a no ite estou deitada na n ossa casa de madeira, mui tas
vezes depr imida pe las no tíc ias dos jornais, eu passo em
pensamentos pelos aposentos e jardins de minha infância . E
então escuto o estorninho cantar do al to da casa, onde está
sentado na entrada de seu ninho , as plumas pre tas e lus trosas, e
à sua frente a pereira que esbanja o mister ioso e doce per fume
de suas flores . Este estorninho canta em louvor do Criador do
59
MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf
(primeira edição), 1981. Cit. p. 10. 60
MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf
(primeira edição), 1981. Cit. p. 9.
47
universo e em seu canto eu reencontro a fé na per fe ição da
cr iação”.61
Aliado à perspectiva de seu passado, Mathild e expressa um
sentimento depressivo, uma nostalgia do lar e da infância, dos tempos de
paz. A redenção parece querer surgir através de seu louvor à natureza. Os
jardins representam a forma mais sutil de permanência em um ambiente
ausente da violência e hos tilidade daqueles dias.
Depois de imigrados, os Maier se estabeleceram em uma
fazenda, num cenário próximo aquele que a autora imaginava enquanto
liberto, juntamente a isto outro fator determinante para a estabil ização,
sobretudo emocional, parece ter sido o apego a literatura, que na passagem
de ambos, Max Hermann Maier e Mathilde Maier, ocupou um lugar especial
após a fuga para o Brasil:
“Ser ca tól ico ou judeu, não fazia d i ferença na est ima humana
recíproca e nos conceitos de ordem divina no mundo. A c ruz inha
de cinzas na tes ta de Hede, eu a olhava com o acanhado respei to
por uma trad ição que para mim era estranha. Desde cedo, eu me
t inha desl igado das rel igiões trad icionais em favor de um
concei to rel igioso mais ou menos no sentido dos Hypsistár ios,
uma sei ta do século três , cuja doutr ina consiste numa mistura do
judaísmo e paganismo. O nome é der ivado do grego e s igni f ica a
veneração de um Deus só. No Bras i l , depois de ve lhos, onde para
meu marido e para mim, Goethe se tornara uma figura
or ientadora, e ncontramos numa car ta dele escr i ta em 1831 a seu
amigo Boisserée, o seguinte t recho que, para mim, fo i
concludente : “Nenhum ho mem se l ivrará do sent imento
rel igioso. . .entre todas as confissões ainda não achei uma, à qual
eu pudesse me confessar plenamente. Agora nos meus velhos
dias chego a saber de uma se i ta dos Hypsistár ios que, s i tuados
entre pagãos, j udeus e cr i stãos , dec laram es t imar o melhor , o
mais per fe i to que viesse a seu saber , admirá -lo e venerá - lo e ,
desde que es teja em íntima relação com uma d i vindade, também
adorá -lo . De uma época obscura surgiu de repente uma luz
alegre, po is eu senti que durante toda minha vida tentara
quali f icar -me como Hypsis tár io , e isso não fo i coisa fác i l” .62
61
Idem. Cit. P. 15. 62
Idem. Cit. P. 19.
48
Nesta passagem, além dos valores religiosos a que a autora se
coloca, há claramente o valor dedicado ao escri tor alemão Johann Wolfgang
Von Goethe (1749-1832), a quem o casal declara em alguns momentos uma
interferência direta em sua estabilidade psicológica, a uma nova concepção
de mundo, que menos antes, quando já o conheciam, não haviam ainda
conseguido exercer tal olhar sobre sua obra . Sobre isso escreveu Max
Hermann Maier:
“Seguir incondic ionalmente um homem, e endeusá - lo a té , fo i
possíve l unicamente porque os seus sequazes, numa obediência
cega, não t inham mais fé em Deus e , por i sso mesmo, não
sentiam mais remorsos em tr ipudiar sobre a dignidade humana de
seus semelhantes. No es trangeiro lemos co m novos o lhos o ve lho
Kant , para o qual a crença em Deus cr iador era a razão prát ica
das necessidades inatas ao ser humano. Em nenhum lugar ,
porém, a soberania e as exigências de Deus vêm tão claramente
delineadas quanto na Bíblia , na qual al iás se mencionam
inúmeras, arrogantes e fracassadas tentat ivas humanas de
usurpar -se o lugar de Deus. A Bíb lia torna -se sempre o l ivro
mais importante do emigrante. Sempre de novo l ida, comentada e
exp licada e la pode ser encontrada na casa de cada emigrante da
Alemanha, mui tas vezes em vár ias edições e exemplares. No
es trangeiro, pudemos chegar também a uma nova noção do maior
poeta a lemão, Goethe. Essa noção já nos havia sido anunciada
antes, por Alber t Schweitzer e Karl Jaspers , mas ela se tornou
viva e rea l somente pela própria experiência. Got thold Ephraim
Less ing expressou de maneira ímpar o que signi fica experiência
própria: “A r iqueza da experiência obt ida a través de lei tura e
l ivros se chama erud ição. Experiência própria é sabedor ia . O
capí tulo menor da sabedoria va le por mi lhões de erudição”. Em
1947, após receber o prêmio Goethe da cidade de Frankfurt ,
d isse Kar l Jaspers: “É do esp ír i to de Goethe que se par t ic ipe da
sua vida, lendo -o cada ano, a ele , suas obras, car tas e discursos.
Ele se torna nosso companheiro e auxi l iar constante em todas as
fases da nossa vida. Viver com Goethe nos torna alemães, nos
transforma em pessoas humanas”. Por desejo de minha esposa ,
por ocasião da emigração, t rouxemos a edição de 8 vo lumes das
car tas de Goethe, apesar das l imi tações de bagagem. Tornaram -
se um tesouro em nossa casa, ao lado de outras obras, c lássicas e
românt icas. A lei tura des sas car tas tornou-se jus tamente uma
fonte de a firmat ivas para se viver em tempos di fíceis. Embora
Goethe mesmo t ivesse t ido suas horas e temporadas de
sofr imento e preocupações, quando “adormecia entre lágr imas”,
tendo a té chegado a dizer a seu amigo Ecker mann que em seus
75 anos não t ivera “nem um mês de a legria”, suas obras e car tas
são che ias de amor e entusiasmo pe lo homem e seu futuro:
“Como quer que ela seja , a vida é um bem, e la é boa”. Sentenças
desse teor , axiomas ou regras de vida, são freqüentes em seus
epigramas: “O que cada dia quer de t i , deves perguntar , o que
49
ele deseja, va i te responder . Alegra -te em tuas obras, e dá valor
às a lheias. Que a menor das coisas te dê sat is fação. Aprovei ta
bem a hora presente. Acima de tudo , não odeies a pessoa
a lguma. E de ixa o futuro nas mãos de Deus”.63
E acrescenta:
“Ele foi , i sso s im, um ser humano de profunda sensibi l idade,
vivendo entre semelhantes, de mui ta bondade e pac iênc ia. Para
poder conservar suas energias para o traba lho , construiu como
que um muro ao seu redor e , como d isse seu venerador Karl
Jaspers, Goethe vis lumbrou as mais te rr íve is coisas, mas não
permi tiu que elas o at ingissem. Por i sso mesmo é que para nós,
ví t imas de fatos horr íveis e desumanos os quais não soubemos
evitar em nossas vida s, para nós Goethe se tornou mais que um
guia ou ajudante , tornou -se mestre universa l que, pela sua
personalidade e suas obras, nos adverte a que nos empenhemos
todos, e em tudo, para sermos pessoas d ignas , que honrem a
humanidade”.64
Desta forma, a importância do pensamento goethiano se fez
bastante presente entre os Maier. A necessidade de uma orientação naquele
momento representava não apenas novas condições de sobrevivência, mas
acima de tudo uma possibilidade de manter -se vivo. A experiência da
hostil idade e violência que levou muitos alemães -judeus a refugiarem-se em
localidades distintas fez com que muitos não encontrassem essa espécie de
porto seguro como os Maier e consequentemente buscaram soluções radicais
para aquilo que enfrentavam.65
Para Mathilde Maier, o fato de estarem vivendo em uma região
de mata tropical , trazia talvez além da perspectiva literária uma relação
construída com suas experiências passadas, com a construção de vida desde
a infância:
63
MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 55. 64
Idem. Cit. P. 56. 65
Sobre este assunto ver o item IV. III. Para muitos refugiados a solução mencionada foi o suicídio.
50
“Aqui , no nosso jardim bras i le iro , temos u ma arcada com tr inta
videiras de vár ias espéc ies. Quando na pr imavera brasi lei ra , em
se tembro, passo pe la arcada e s into doce che iro da f lor da uva,
então vejo o jardim de Trier , vejo o r io Mosela entre os morros
cobertos de vinhedos. Um bem-estar independ ente do tempo se
apodera de mim, s into a natureza eterna, na qual nos é permi t ido
f icar por um tempo de terminado . Este sentimento de fazer par te
da na tureza eu já t ive naquele tempo do terraço , onde os ramos
das parreiras se enroscavam nas co lunas e onde n o fim do outono
colhíamos as uvas Moscate l avermelhadas . Estas uvas têm bagos
f irmes, sua casca é grossa e são um t ipo bem origina l de uva,
per fumosas e de boni to aspecto, porém não mui to doces”.66
Assim, a construção dos ressentimentos, com efeitos não
menores, diga-se aqui, se faz apenas de maneira distinta. Não significa
imaginar que para os Maier os acontecimentos ligados à investida nazista
tenham repercutido com pouca intensidade. A formação de tal subjetividade
implica em um auxílio buscado por ambos em formas de superação de sua
própria tragédia. Assim como colocou Max Hermann Maier ao mencionar
Karl Jaspers em seu discurso sobre Goethe, o poeta teria construído ao seu
redor um muro para que pudesse continuar a trabalhar e manter suas
perspectivas em relação à condição humana, ainda que tenha vislumbrado
coisas terríveis ele não permitiu que elas o atingissem. Os Maier buscaram
também não se permitir atingir, e como Goethe ou em Goethe, buscaram tal
inspiração.
Em Rolândia, na comunidade formada p or diversas famílias de
refugiados, é presente a figura de Max Hermann Maier como alguém que
reivindicou entre todos a continuação de práticas e valores antes
66
MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf
(primeira edição), 1981. Cit. p. 18.
51
experimentados. Por ocasião de seu falecimento, em 1976, durante o elogio
fúnebre, disse o pastor da igreja luterana Hermann Muelhaeuser:
“Não preciso fa lar da valiosa e s ingular importância que teve o
Dr. Maier para a comunidade rolandense. Não ser ia esta a minha
incumbência . Menos a inda ser ia tarefa minha aval iar uma vida
des tas. Quem ser ia capaz disso? Muito ousado ser ia pretender -se
fazer o retrospecto ou descr ição de uma vida assim, moldada e
esculpida ao mesmo tempo por profec ias b íbl icas, pela eterna
f i losofia , pela míst ica juda ica e pela teologia dos rabinos, pe la
ét ica rel igiosa e prát ica, pe la poesia de Goethe , pela
par t icipação no desenvolvimento e sobrevivência de I srael , e
pelos mais a tua is e pessoais esforços pela obtenção da paz para
o mundo. Acima de tudo, a formação e a sabedoria do nosso
quer ido Dr . Maier nunca const i tuíram puro d il e tanti smo, um
destaque pessoal em si e para s i – mas seu esp ír i to viveu neste
mundo e fo i preocupado com a pessoa humana a quem ele
devotava um vivo e amoroso interesse. Dif ici lmente haveria
entre nós alguém que não t ivesse de alguma maneira sido tocado,
inf luído ou benefic iado pela for te e marcante personalidade do
Dr. Maier”.67
Embora se trate aqui de um discurso fúnebre que naturalmente
se inclina no intuito de expor quali tat ivamente aquele que morre, o pastor
coloca Max Hermann Maier como uma figura de determinada importância na
formação da cidade de Rolândia. Por outro lado, o trabalho de campo
realizado com outros imigrantes apontou para uma diferenciação entre
aqueles que viveram na cidade e aqueles que foram a área rural aos
arredores da cidade, sendo assim, as famílias que se estabeleceram fora da
zona urbana seriam aquelas com maior potencial financeiro, que
abandonaram a Alemanha e que lá possuíam poder econômico antes da
ascensão nazista. Desta forma, a dist inção entre estes imigrantes existiu,
sobretudo no contato entre os mesmos. Não entendemos aqui uma reflexão
67
Idem. Cit. P. 72.
52
com uma determinante econômica, onde a influência dos Maier e sua
sobrevivência no Brasil tenha se dado apenas por suas condições materiais,
mesmo porque aqueles que abandonaram a Alemanh a, mesmo possuindo tais
condições, foram desvalorizados pelos nazistas e acabaram por perder muito
do que possuíam. Sobre estas diferenças escreveu Mathilde Maier:
“Ganhar o suf ic iente, te r comida , um telhado sobre a cabeça , te r
alguém para cuidar em caso de doença ou quando nasc ia uma
cr iança, i sto cr iava uma a tmosfera de confiança recíproca
agradável para todos. Este compor tamento básico sempre
considere i como condicionado por rel igião. Muitas vezes
ouvíamos dizer : “Tem gente r ica e gente pobre, se somos bons
uns com os outros é possível viver em harmonia””.68
Por outro lado, naquilo que consistia em experiência prática,
não haviam os refugiados passado por si tuações tão dist intas assim. Cabe
aqui, ainda sobre a formação destes alemães, acrescentar que durante a
primeira guerra mundial (1914-1918), tiveram, alguns deles uma
participação direta como qualquer outro alemão. Sobre isso escreveu
Mathilde:
“Os eventos da guerra se aba tiam como um pesadelo sobre nós.
Vinham notícias de colegas de escola que to mbaram, ou uma
amiga no iva perd ia o bem-amado. O entus iasmo pe la guerra,
grande a pr incíp io, era fomentado exageradamente nas esco las e
também na nossa. Queriam que nós , alunas do segundo ano
colegial , cantássemos de manhã no início das aulas: “Deus
cast igue a Ingla terra”, (nós não o f izemos, devo d izer para a
honra de minha c lasse) . – Este entusiasmo cedeu à um luto
abafado pe los terr íveis acontecimentos na frente de guerra. Só
mais ta rde, na convivência co m meu mar ido que sempre foi um
homem da pol í t ica, percebi como éramos pouco esco lados nessa
matér ia . As questões de Estado, de comunidade humana e de
convivência dos povos deviam ocupar um grande espaço na
educação de todo jovem. Nós, es tudantes femininas, fomos
convocadas em 1917, no “inverno das beterra bas”, pe la
Univers idade de Muenchen para o “Serviço de Ajuda
Espontânea”. Fel izes por finalmente poder fazer alguma co isa
pela cole t ividade, nós nos apresentamos ao rei to r”.69
68
Idem. Cit. P. 61. 69
MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf
(primeira edição), 1981. Cit. p. 26.
53
Também Max Hermann Maier havia participado da primeira
grande guerra enquanto recruta do exército alemão. Por conta de círculos
filosóficos realizados em Frankfurt no pós -guerra (1919), onde se
estudavam as Teorias do Direito de Fries e mais tarde O Estado de Platão, é
que Max Hermann Maier e Mathilde Maier se conheceram. Estas reu niões
foram organizadas por jovens que eram todos marcados pela guerra70
, de
forma que eram igualmente envolvidos com as questões políticas. Max
Hermann Maier era quem orientava estas reuniões.
Desta forma, as obras escolhidas enquanto fontes deste trabalh o
representam mentalidades enraizadas na experiência da guerra. Tinham já o
conhecimento da primeira grande guerra em suas memórias. Fato este que
não deve simplificar ou diminuir o terror vivido frente ao regime nazista,
mas que de qualquer forma não os coloca como inexperientes em um cenário
de barbárie promovido por uma Europa às portas de mais um conflito
armado.
Concluímos, portanto que, a exteriorização, a prática cotidiana,
traz em sua simplicidade a capacidade de revelar os sentimentos ocultos,
recalcados, que tem o jardim com a saída de Goethe da cidade de Frankfurt?
Aparentemente nada, assim como a construção dos jardins de Mathilde não
teriam, não fosse a história a que se ligam com profundidade e a elas
remetem em seus dias. Ainda que a autora revele o contexto em que está
inserida, os ressentimentos não permitiram uma exposição explícita da
argumentação:
“As fantas ias do nacional soc ia l i smo que prometia tudo a todos,
era como um veneno mortal que infestava toda a Alemanha e que
mais tarde exigiu sacr i fíc ios ind iz íveis de todo o mundo
civi l izado. Sobre i sto não quero escrever”.71
70
Idem. Cit. P. 30. 71
MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf
(primeira edição), 1981. Cit. p. 39.
54
Certamente é mais atraente ao escritor narrar os feitos de suas
histórias, sobretudo quando se expõe a própria história, num regime de
escri ta autobiográfica, de maneira a concretizar sua subjetividade, suas
emoções, através de um viés, de uma metáfora que sintetize pacificamente
uma trilha obscura, de obstáculos diversos que possuem mais experiências
trágicas do que harmoniosas: “A separação dos velhos amigos sempre foi
ferida que não se fecha na alma”. 72
No prefácio da obra de Max Hermann
Maier escreveu Elmar Joenck:
“Este é um re lato di ferente. Não se procurem nele bara tos
suspenses e empolgações. Para isso exis tem out ros l ivros. Este é
um relato que deverá agrad ar a todos aqueles que souberem
reconhecer como “mais perene que o bronze” o va lor e o
exemplo de uma vida enraizada e vivida conforme as mais puras
tradições da cultura germânica, e i luminada pelo humanismo
europeu e judaico. Além d isso, o rela to nos at in ge de frente,
pois essa vida veio encerrar entre nós sua peregr inação, a
conse lho de mestres como Goethe e Alber t Schwei tzer , faróis
como poucos, a inda capazes de nos sa lvar do naufrágio no meio
das tempestades em que todos navegamos.”73
O comentador refere-se a um texto que os atinge de frente, não
o leitor que mais tarde conhecerá o texto de Max Hermann Maier, mas eles
próprios, também refugiados alemães que vieram para Rolândia -PR, onde a
experiência narrada do autor confunde -se com a do tradutor, que fi nalizou a
obra começada pelo imigrante. De alguma forma, a manutenção de valores
construídos na Europa tinha na figura de Max Hermann Maier um papel
importante na comunidade formada em terras brasileiras: “Árvores hoje
pujantes devem seu viço a seivas antigas. E o respeito às suas raízes é a
melhor garantia ao verdor de seus ramos ansiosos de flores e frutos.” 74
72
MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im Urwald
Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975. Rolândia:
Gráfica Velox-PR, 1976. 73
Idem. Cit. P. 2. 74
Esta passagem foi escrita por Elmar Joenck ao final do prefácio do livro de Max Hermann Maier. Encontra-
se na página 6. Joenck fala neste prefácio da maneira como concluíram a tradução do livro, feita em parceria
com Mathilde Maier.
55
Por outro lado, o autor apresenta em seu texto uma participação
efetiva no desenvolvimento das questões políticas, como aqu elas que
envolviam diretamente os refugiados no Brasil:
“Para nós, banidos da Alemanha, fo i uma grande ajuda podermos
f icar sossegados co mo relação aos t í tu los das terras da
Companhia, e sermos também aco lhidos de maneira agradável
pela direção, inclusive com conse lhos acer t ados e importantes.
Imigrantes de mui tas par tes do Brasi l e da Europa foram
chegando antes e depois de nós às terras da Co mpanhia. Os
gerentes davam ajuda a todos e les, a começar pelo dire tor gera l ,
o escocês Arthur Thomas, auxil iado pelo bras i le iro Will ie Davis,
também de or igem inglesa . Ajudaram também a aconse lhar os
colonos o Boris Kleswerk, um fugi t ivo da Rússia comunis ta , e
que falava bem o alemão, sem esquecer o velho of icial da força
aérea inglesa, Gordon Fox Rule. A mental idade desses homens
se caracter iza por um ar t igo que Rule escreveu mais tarde , no
qual se lê : “Não podia imaginar , depois da pr imeira guerra
mundial , que alguns anos mais tarde eu receberia esses a lemães ,
soldados na pr imeira guer ra e que haviam cumpr ido seu dever
com a pátr ia , eu os receberia como expulsos da sua pá tr ia , para
ajudá- los e instruí -los. Nós os ajudávamos sem acei tar nem
esperar agradec imentos . Esses imigrantes va lentes, para melhor
dizer , fugit ivos, co mpraram as terras da Companhia e cr iaram
Rolândia. Foram exemplos v ivos das vir tudes dos heró is com
cujo nome bat izaram a c idade: Rolândia , terra de Roland.”75
Portanto, havia ainda a relação com estrangeiros de partes
diversas, os ingleses, que fundaram a Companhia de Terras e expuseram na
Europa uma forma de negociação, sendo assim, portanto, a maneira como os
alemães tiveram acesso a essas informações e assim puderam comprar os
vale-terras e refugiar-se no Brasil, visto que os nazistas não permitiam que
alemães-judeus retirassem o dinheiro que tinham de dentro da Aleman ha.
Max Hermann Maier comenta o fato de ter deixado na Alemanha parte de
seus livros:
“Para pôr um t i jolo defini t ivo sobre o passado, reso lvi não levar
nenhum l ivro jur íd ico comigo para o Bras i l . Com o correr dos
anos em Rolândia, comecei a lamentar essa decisão. Precise i
comprar de novo tais l ivros porque a lgumas ta refas vinham -me
75
MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im Urwald
Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975. Rolândia:
Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 18, capítulo 7.
56
ao encontro. No meio do mato, como se diz , percebi que um
jur ista , que aprendeu a amar sua profissão, recebe uma marca
indelével , um character indelebi l i s .”76
.
Havia uma comunicação entre os imigrantes, e desta forma
puderam organizar-se no sentido de resolver os problemas imediatos a que
foram expostos, a sobrevivência econômica era sem dúvida uma questão que
não podia ser deixada para outro momento, nesse sentido o contato com os
ingleses foi fundamental : Os ingleses nos ajudaram, e a muitos e muitos
fugitivos do nazismo, a começar uma vida nova, em liberdade, no Brasil77
.
Alheio a isso, o advogado Max Hermann Maier desenvolveu atividades
políticas e não deixou de manter rel ações constantes com aqueles que
permaneceram na Alemanha, não menos intensa foi a participação nas
questões ligadas aqueles que estavam no Brasil . Havia uma espécie de
plano, onde outros alemães poderiam também ser trazidos para o Brasil e
aqui fixarem residência.78
Portanto, a reinvenção de práticas cotidianas após a imigração
é o fator que permite a investigação das fontes, de forma a nos possibilitar
assim uma aproximação com o objeto e a observação dos ressentimentos
desenvolvidos.
76
Idem. Cit p. 2. Capítulo 1. 77
Idem. Cit. P. 12. Capítulo 1. 78
Sobre esta questão ver entrevista com Klaus Kaphan. Kaphan era do filho de Heinrich Kaphan, antigo sócio
de Max Hermann Maier na fazenda Jaú. Sobre ele escreveu: “Numa viagem profissional a Berlim, no fim de
1935, falei com amigos mais idosos sobre nossos planos de emigração, na esperança de ganhá-los para o
Brasil. Mas já tinham outros planos em vista. Eles nos puseram em contato com o agricultor Heinrich
Kaphan, de Emilienhof, perto do Dramburg na Pomerânia. Este já estava resolvido a emigrar para o Brasil,
com sua mulher Kaete e com três meninos. Após um contato telefônico, o resoluto prussiano apareceu em
Berlim, já no dia seguinte, para conhecer-nos”. Klaus Kaphan fala em sua entrevista sobre a formação de uma
espécie de alojamento que abrigaria estudantes alemães refugiados, mas a idéia não chegou a ser concretizada.
57
IV – O OUTRO NA HISTÓRIA E A “FIGUEIRA
BRAVA”
IV.I – O ESTRANHAMENTO, O JUDEU E A HISTÓRIA
Investigar as origens de atração e repulsa na civil ização não é
tarefa das mais fáceis. Compreender os diferentes grupos humanos,
separados em espaço, tempo ou cultura somente, seria limitar a reflexão.
Quem é o “outro”? Na História, quem é o “outro”? Sabemos que o exército
nazista era um e que o soviético era outro. Teríamos ai um perfeito exemplo
de alteridade: alemães e russos. Cada qual identificou no adversário o
“outro”, distintos geograficamente ou politicamente. Desta forma, o
estrangeiro configura-se claramente no embate bélico, na oposição política
que sacudiu a Europa e fez evidenciar a heterogeneidade do velho
continente. Seguindo este raciocínio podemos elabora r um mapeamento
histórico e concluir que, com conflitos explícitos ou não, o “outro” é aquele
que se estabelece fora do grupo de origem, que não compartilha dos mesmos
valores de pertença.
Esta análise parece bastante superficial quando um olhar
profundo é lançado sobre o problema. O estrangeiro, termo há tempos
ligado a uma persona non grata79
, estabelece em uma sociedade relações de
valores que ocupam posições privilegiadas em suas estruturas morais, no
desenvolvimento das práticas coletivas, que ori entam a sustentação do
grupo enquanto tal. Ginzburg diz aos seus leitores: “ Sou um judeu nascido
79
Persona non grata é um termo do latim, cujo significado literal é pessoa não bem-vinda.
58
num país católico; nunca tive educação religiosa; minha identidade judaica
é em grande parte fruto da perseguição” 80
. E conclui:
“Compreendi melhor algo que já pensava saber , i s to é , que a
fami liar idade, l igada em últ ima anál ise à per tença cultural , não
pode ser um cr i tér io de relevância. [ . . . ] o mundo é nossa casa
não quer dizer que tudo seja igual ; quer dizer que todos nos
sentimos es trangeiros em relação a a lguma coisa e a alguém”.81
Assim, aquilo que por vezes chamam o estranhamento pode ser
encarado como definidor das característ icas de pertença, ou ainda afirmá -
las ou reafirmá-las como elemento de manutenção. O embate nestas
fronteiras subjetivas torna o grupo reconhecedor de valores específicos e
aquilo que por vezes poderia desaparecer, pode permanecer sob olhares de
definição do outro.
A história obscura da perseguição à comunidade judaica se
encontra entre acusações de envenenamento das águas, homicí dios,
bruxarias, encontros noturnos, feitiçaria; uma porção de caracterizantes
pode ser encontrada na história dos judeus em solo estrangeiro . Fato
interessante é aquele ainda onde temos absorvida a delirante construção
deste estrangeiro. Tal sentimento, muitas vezes configurado em ódio é
expresso de forma não direta e não assumida, mas sempre interiorizado e
mesmo denegado, podendo até fazer -se como construção de um possível
auto-ódio para com os iguais e, sobretudo para com os próprios judeus,
onde uma tragédia comum entre os grupos étnicos que são hostilizados ou
perseguidos é o fato de que muitas vezes acabam introjetando a deletéria
imagem que deles é construída. 82
Assim sendo, se os dizem as multidões é
por que devem ter razão.
80
Este trecho está na obra Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância, onde o autor italiano Carlo
Ginzburg expõe diferentes olhares sobre o estranhamento, sobre a sensação de reconhecer o estrangeiro e de
perceber-se igualmente como um. “Grandes olhos de madeira, por que olham para mim”, pergunta Collodi,
pseudônimo de Carlo Lorenzini, escritor também italiano autor de Pinóquio, obra infantil do final do século
XIX. 81
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia. Das Letras,
2001. 82
BAIBICH, Tânia Maria. Fronteiras da identidade - o auto-ódio tropical. Curitiba: Ed. Moinho, 2001.
Ainda sobre esta passagem é interessante destacar o papel de certos elementos constitutivos da cultura
59
O hostilizado assume vo luntariamente o papel do estrangeiro,
embora possa em quase todos os seus aspectos compartilhar de valores
culturais deste mesmo grupo e ter seus descendentes ligados aos mesmos há
séculos83
. A presença não só dos Maier, mas de diversos imigrantes
refugiados em Rolândia enfatizam tal argumento. A manutenção do grupo
enquanto possuidor do espírito cultural alemão é mais presente que as
relações mantidas com o judaísmo. O mais forte expoente da cultura alemã
entre os Maier e outros imigrantes foi sem dúvi da Goethe. O poeta serviu
principalmente ao casal Maier como uma figura orientadora em seus novos
dias.
Portanto, a relação estabelecida com a literatur a alemã e,
sobretudo com Goethe, revela-se na narrativa do advogado como um ponto
seguro e redefinidor suas emoções ligadas ao desespero e tragédia vividas
outrora. Em outras palavras, a esperança e vontade de viver encontravam na
sua voz a liderança. A respeito da coleção particular de livros dos Maier é
interessante destacar o conflito entre os hábitos de brasi leiros e alemães.
Tendo sido mais tarde declarada guerra à Alemanha pelo Estado brasileiro,
muitos imigrantes foram intimados a pr estar esclarecimento devido ao peso
de suas bagagens. Muitos traziam caixas enormes e pesadas que continham
somente livros. Tal prática não havia sido compreendida pelas autoridades
brasileiras:
“Como nossos viz inhos , quando chegamos da Europa , t rouxemos
caixões de l ivros que eram cuidadosamente transportados da
es tação de trem a té nossas casas. No co meço da Segunda Guer ra
Mundia l , uma denúncia junto às autor idades mil i tares a f irmava
que nós, os a lemães , escondíamos armas e munições nas casas,
humana, feito a religião, a música, a literatura, como referenciais imprescindíveis para a superação de práticas
intolerantes por parte dos grupos hostilizados. Sobre isso trataremos mais detalhadamente em outro momento. 83
Uma análise permitiria reconhecer a heterogeneidade dos grupos étnicos. Sobre esta questão, enfatizando o
não reconhecimento desta heterogenia pelos membros dos grupos, no prefácio de Teorias da Etnicidade, nos
diz Jean-Willian Lapierre ao pensar a sociedade francesa: “A ideologia jacobina de nossa república, em nome
do dogma do Estado-nação, sempre negou a diversidade étnica da população francesa. [...] Mas a maioria dos
franceses não está interessada em saber que sua nação formou-se historicamente por meio da conquista, da
migração ou da anexação de povos muitos diferentes e também por uma imigração proveniente de diferentes
regiões da Europa central ou meridional, inclusive das “colônias”, de modo que muitos dos cidadãos franceses
da atualidade são descendentes de imigrados que se integraram a nós durante o século XIX ou na primeira
metade do século XX.
60
porque nenhuma outra coisa podia esta r nessas caixas pesadas
que chegavam da Alemanha”.84
De qualquer forma, não é difíci l perceber as ín timas relações
estabelecidas com a Alemanha e com toda a cultura envolvida. A primeira
aventura literária de Max Hermann Maier apresentou -se em obra de 1973:
Lembranças da Alemanha – impregnadas em nós, profunda e
maravilhosamente.85
Poucos anos depois tivemos editadas suas impressões
sobre a imigração para o Brasil .
O outro da história fica até aqui como legitimador de práticas
culturais, obriga o estrangeiro a apegar -se àquilo que pode redefini -lo
enquanto ser humano, enquanto agente controlador de seu pr óprio destino.
Depois de estabelecidos em solo brasileiro, os alemães se depararam com o
cenário exótico das matas americanas. Muitas experiências estão descritas
entre a fauna e flora observadas, mas poucas chamaram tamanha atenção na
narrativa de Max Hermann Maier como a figueira:
“A maior par te da nossa fazenda era então mata virgem, na qual
se encontravam grossos troncos de perobas, cedros, paus d ’alho ,
canelas e f igue iras. As figueiras têm enormes copas e ra ízes
aéreas que se derramam tronco aba ixo. S uas sementes numerosas
só se desenvolvem depois de passarem pelo es tômago dum
pássaro. Nós observamos com cur ios idade um pequeno pé de
f igueira brava se desenvolvendo na bi furcação duma árvore no
nosso jardim. Co m os anos, ela abraçou a árvore -supor te como
uma cobra para no f im acabar com e la, estrangulando -a ; daí seu
nome “f igueira -brava”. Presenciamos como que uma tragédia na
na tureza”86
Como compreender as conseqüências de tal experiência? A
assimilação fez-se, sobretudo, pelo reconhecimento da “tragédia ” natural
84
MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Trecho do capítulo VII: Brasil, terra de asilo, página 19. 85
Tais lembranças, caracterizadas com as palavras do poeta Rainer Maria Rilke, saíram pela editora Josef
Knecht, de Frankfurt, a mesma que em 1975 lançou seu relato de imigrante. A primeira edição é composta de
208 páginas e editada somente em língua alemã. 86
MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Trecho do capítulo IV: O norte do Paraná e a fazenda Jaú, página 13.
61
expressa poeticamente por Max através da figueira -brava, planta que com o
passar do tempo sufoca sua hospedeira primária. A analogia do anti -
semitismo e da figueira -brava pode ser estabelecida em direção ao viés da
imigração, o papel da terra est rangeira em meio aos conflitos do continente
europeu. Após o movimento anti -semita e o nazismo, puderam estes
encontrar, na imigração e em algum momento, sua síntese mundana, mas
síntese de perenidade, de anti -tragédia, de aventura goethiana, de Thomas
Mann e Bach em meio aos pássaros e toda a mata tropical . A figueira -brava
da intolerância não é um olho que tudo vê. Puderam os fugit ivos escapar e
não serem sufocados pela figueira -brava.
Desta forma, o Ostranienie, o estranhamento, desde o lar até
terras longínquas, assume aqui um novo papel no devir humano. No campo
lítero-teatral87
podemos apreendê-lo como sinônimo de arte em geral ou
produção específica? Ele se manifesta na arte por ser ela edificante aos
homens, tornando possível suportar a realidade, o estranhamento é
necessário para que os homens possam encarar a existência e suas
implicações.
No universo religioso a idéia do estranhamento está presente na
medida em que se criaram instrumentos de distanciamento, para encarar,
cada qual à sua forma, a realidade. O que se tentou de fato foi caracterizar
o grupo, mantendo os outros distantes, como a fantasia popular da eleição
divina, o mito grego ou a proibição judaica da idolatria, onde a imagem é
vista como presença de algo que não existe.
87
O termo ostranienie fora empregado pelo alemão Bertold Brecht, que buscou expor o estranhamento
humano, assim como Tolstoi em suas passagens. Em seus escritos o imperador Marco Aurélio atentava para o
reconhecimento da comoção e do envolvimento com aqueles que despertam paixões que deveriam ser
compreendidas: “Cada uma dessas admoestações implicava uma técnica moral específica destinada a adquirir
o domínio sobre as paixões, que nos transformam em marionetes. A voz melodiosa de um canto deve ser
subdividida em cada um dos seus sons e, tomando-os um de cada vez, tu te perguntarás se ele te
comove”.Também Viktor Chklovski: “Para ressucitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis as coisas,
para fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da
coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve
de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a qual tende a tornar mais
difícil a percepção, é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o
devir de uma coisa, para ela, o que foi não tem a menor importância”.
62
A experiência dos Maier pode atentar -nos para a legitimação
deste distanciamento na identificação dos judeus que abandonaram a
Alemanha na década de 1930, para além da caracterização f ísica, feito a
estrela de Davi costurada junto às roupas ou seus passaportes, documento
fundamental para qualquer viajante e que trazia um “J”, em vermelho,
destacado na primeira página. Max Hermann Maier apontou as
conseqüências de portar tais sinais : “Os passaportes alemães de judeus
traziam na primeira página um “J” carimbado em vermel ho, que tornava
impossível ao portador o retorno para a Alemanha, e visava tornar o
portador “persona non grata” no estrangeiro”.88
Mais tarde seria a vez do
advogado explicitar suas primeiras impressões sobre o Brasil e o
distanciamento destas com sua cultura de origem:
“Logo após nossa chegada ao recinto da a l fândega em Santos,
aprendi que no Brasi l é mais conveniente a pessoa entender -se
tanto com as autor idades como com os par t iculares com um
jei t inho amigável do que se apoiar em leis ou cumprimento de
decre tos. O brasi leiro es tá quase sempre d isposto a dar um
“je i to” (uma pa lavra d i fíc i l de traduzi r : uma “sa ída” ou um
“acer to”) . Max conclui: “Toda a vida aqui era di ferente da nossa
hab itual vida na Europa”.
Portanto, o estranhamento configurou -se de maneira a atingir
todos os envolvidos, falta -nos aqui apenas o contraponto, a percepção de
estranheza do brasileiro em relação ao alemão. As possibilidades de
pesquisa podem vir a contribuir nesse sentido.
A produção dos hábitos no plano do inconsciente pod e também
ser uti lizada como argumento agravante, de forma que a manutenção dos
mesmos cria o auto-reconhecimento e muitas vezes define o distanciamento.
Viktor Chklovski refletiu sobre a questão:
“Se estudarmos com suficiente a tenção as leis da percepção, não
tardaremos a perceber que os a tos tendem a se tornarem
automáticos . Todos os nossos háb itos provêm da esfera do
inconsciente e do auto matismo. O peso dos háb i tos inconsc ientes
88
Esta passagem encontra-se no início do livro, capítulo dois, página quinze.
63
é tão for te que a vida passa, se anula. A automatização engole
tudo: co isas , roupas , móveis, a mulher e o medo da guerra”.89
Portanto, quando Brecht nos fala de seu ostranienie, da
excessiva distância, do estranhamento, devemos reconhecer a construção
historicamente persuadida. Os movimentos, físico, geográfico e também
cultural e psicológico, permitem acumular à experiência individual ou
coletiva uma coleção de novos hábitos, onde, consciente ou não, há um
“sincretismo cultural”, a adoção de novos hábitos, posturas, códigos de
comportamentos que passam a ser novos orientado res de conduta. Mais
adiante poderemos notar as transformações dos refugiados em solo
brasileiro, de forma a percebê-los também orientados por aquilo que nunca
fez parte do universo cultural alemão ou europeu.
Há também uma espécie de inversão, ou seja, nota -se
claramente a manutenção dos valores germânicos, desde a língua
amplamente falada até as mínimas manifestações cotidianas, como a
alimentação ou a leitura. Embora isso, agora há uma luta incessante para se
fazer manter a perspectiva cultural ligada aos an cestrais, ao universo
europeu sempre impregnado, mas agora apenas na memória, nas lembranças,
nas histórias, não se respira mais o inverno da Europa, quem os acorda é o
verão americano.
A experiência judaica, de grupo “legitimamente” apátrida,
assim definido pelos “outros”, é caracterizada levando em conta a
ascendência que não se define exatamente nem como religiosa nem como
étnica.
Não se chama este ou aquele de “cristão”, no que se refere ao
seu valor étnico pelo simples fato de fazer ou não parte de uma cultura
mergulhada no cristianismo. Quando colocamos o que não se diz, apelamos
ao fato da distinção operada pela terminologia quando ela é aplicada ao
elemento judeu. Ou seja, ele o é independente de suas forças autônomas e
subjetivas. O papel dos judeus na filosofia contemporânea, a influência do
89
Citado por Ginzburg em “Olhos de madeira”, páginas quinze e dezesseis.
64
judaísmo nas revoluções socialistas do século XX, a participação dos judeus
na militância de esquerda durante a ditadura militar no Brasil, enfim, de
diversas formas podemos representar a passagem destes ator es na
experiência civilizatória. A relação estabelecida com a religião criou e
ainda cria sugestões interessantes para a compreensão do fenômeno.
Para alguns autores que interpretaram a participação dos judeus
em movimentos mais tardios, como as transform ações na década de 1960,
estes possuem estreita relação com o mito do Éden, de forma a definirem o
romantismo revolucionário como aquele que
Apresenta uma cr í t ica da modernidade, i sso é , da civi l ização
capi tal i sta moderna, em nome de valores e ideais do p assado
(pré -cap ital is ta , pré -moderno) . [ . . . ] Um romantismo
revoluc ionár io e /ou utópico, [que objet ivava] instaurar um
futuro novo, no qual a humanidade encontrar ia uma par te das
qualidades e va lores que t inha perd ido com a modernidade:
comunidade, gratuidade , doação, a harmonia com a na tureza,
t raba lho como ar te , encantamento da vida.90
Dessa forma, a luta armada no Brasil contra a ditadura “não foi
senão uma das manifestações mais radicais do romantismo revolucionário
naqueles anos, presente não só no cam po político-partidário, mas também
político-cultural, na música popular, no cinema, no teatro, nas artes
plásticas e na literatura”91
. A intensidade deste período e de seus eventos
aproxima-se de nosso objeto em questão, sobretudo quando definidos a
partir de conceitos contextuais, como afinidade eletiva, onde a definição de
uma época aproxima valores e ideais naqueles colocados como
historicamente distintos:
A definição sobre esse concei to base ia -se na definição de
Michael Lövy ( Redenção e Utopia: o judaí smo l iber tário na
Europa Central . São Paulo : Cia. Das Letras, 1989, p . 13 -8) . O
autor o def ine co mo “um tipo mui to par t icular de relação
dialét ica que se estabe lece entre duas configurações sociais e
90
LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Romantismo e política. São Paulo: Paz e terra, 1993.
_____________________________. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade.
Petrópolis: Vozes, 1995. 91
RIDENTI, Marcelo. O romantismo revolucionário nos anos 60, cit., p.414.
65
culturais, não redutíve l à determinação causal d ireta ou à
“influência” no sentido tradicional . Trata -se, a par t ir de uma
cer ta ana logia es trutural , de um movimento de convergência, de
atração rec íproca, de confluência a t iva , de combinação capaz de
chegar a té a fusão. [ . . . ] Essa força é a a finidade , determinand o a
combinação dos corpos he terogêneos numa união que é uma
espécie de casamento, de enlace químico, procede antes do amor
que do ódio. [ . . . ] Mui tos dão o no me af inidade ao que chamamos
atração. [ . . . ] Afinidade é um caso par t icular de atração. [ . . . ]
formam um ser que tem propriedades novas e dis t intas daquelas
que per tencem a cada um desses corpos antes da co mbinação.
[ . . . ] A afinidade elet iva não é a a finidade ideo lógica inerente às
diversas var iantes de uma mesma corrente soc ial e cultural . [ . . . ]
A afinidade elet iva também não é s inônimo de influência, na
medida em que implica uma re lação bem mais at iva e uma
ar t iculação rec íproca (podendo chegar à fusão) . É um concei to
que nos permi te jus t i f icar processos de interação que não
dependem nem da causa lidade d ire ta , nem da re lação expressiva
entre forma e conteúdo (por exemplo , a forma rel igiosa como
expressão de conteúdo polí t ico ou social) . [ . . . ] A af inidade
ele t iva não se dá no vazio ou na placidez da espir i tual idade
pura : ela é favorec ida (ou desfavorec ida) por condições
his tór icas e soc ia is.92
Assim, a atração entre jovens judeus que se tornaram militantes
armados no Brasil no fim dos anos 60 não representa igualmente a
experiência dos judeus fugitivos da Segunda Grande Guerra, nem o que
ocorreu nos anos trinta entre imigrantes e nativos pode ser descrito como
uma afinidade neste sentido. O que torna válido o argumento é a relação
desenvolvida entre os próprios imigrantes, que submetidos a um contexto
92
KUSHNIR, Beatriz. Nem bandidos nem heróis: os militantes judeus de esquerda mortos sob tortura no
Brasil (1969-1975). In: Cadernos de Língua e Literatura hebraica. São Paulo: Humanitas-FFLCH-USP, 2001.
A autora trata neste ensaio de dez diferentes casos de tortura e morte durante o auge da repressão militar no
Brasil. Todos os militantes envolvidos eram de ascendência judaica e participaram dos principais grupos
armados de esquerda no país. O primeiro caso citado é o do estudante de medicina e militante da VPR
(Vanguarda Popular Revolucionária) Chael Charles Schreier, primeiro militante torturado e morto nas
dependências do DEOPS (Destacamento de Operações de informações/Centro de Operações de Defesa
Interna do II Exército) no Rio de Janeiro no ano de 1969. Nos anos seguintes a autora passa por outros
militantes com o desenlace final nos casos Wladimir Herzog e Iara Iavelberg, ambos certamente torturados e
mortos pela polícia política embora ainda hoje se mantenha em alguns setores a versão de suicídio em ambas
mortes. Wladimir Herzog e Iara Iavelberg jazem na ala reservada aos suicidas no cemitério israelita do
Butantã em São Paulo (setor G. Iara está no G/quadra 26/lápide 57 e Herzog no G/28/64). Em 1996, o artista
plástico Carlos Zílio, ex-militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), expôs no MAM
(Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) sua arte e política entre os anos de 66/76. No catálogo da
exposição, a dedicatória é para os amigos perdidos, sobretudo para José Roberto Spiegner, morto em 1970:
“Fico espantado em pensar como tão jovens tínhamos a certeza de poder mudar o mundo e modelar a história.
As mortes e o sofrimento me comovem. Experimentamos a dura realidade da derrota. [...] Gostaria de dedicar
esta exposição a todos que morreram nessa luta, alguns, inclusive, de maneira bastante cruel. Mas queria
homenagear, sobretudo, José Roberto Spiegner. Foi meu primeiro amigo a morrer [...] De certo modo, devo-
lhe a vida”.
66
histórico sem precedentes e sem nada que pudessem faze r desenvolveram
uma reciprocidade mútua, uma alavanca para a superação de males maiores,
seja incorporando novos padrões valorativos e cotidianos ou fazendo
permanecer as manifestações germânicas.
No Brasil , durante a repressão militar após o golpe de 1964,
havia a expressão do Estado que dizia “Ame -o ou Deixe-o”. De certa forma
muitos o deixaram mesmo sob juras de amor eterno. Décadas anteriores,
sobretudo os anos da era Vargas , apresentam não só a repressão e
manipulação da máquina estatal em todos os se tores da sociedade, mas
também uma relação peculiar com os estrangeiros e precisamente com os
estrangeiros de ascendência judaica. Em 1933, publica -se no Rio de Janeiro
uma coletânea de art igos entre intelectuais brasileiros, cujo tí tulo era: “Por
que ser anti-semita?”. Neste livro, embora a maioria crit icasse o anti -
semitismo percebe-se certa ambigüidade de opiniões, apesar daquilo que
declaravam sobre os judeus:
“Única raça pura que ta lvez ainda exista no mundo, vem desde
séculos real izando es te mi lagre único : o de um grande povo , uma
verdadeira nação, sem o menor pa lmo de terr i tór io . São, ass im,
os pr imeiros humanistas do mundo. Como bras i le iro , porém,
f i lho de um país novo e ainda fraco, aber to a todas as invest idas,
sem defesa, pr incipa lmente, para to da e qualquer manifes tação
de caráter mais espir i tua l do que rea l , não deixo de receiar mui to
que os judeus se implantem vitor iosamente no Bras i l . Bastará
que o queiram, esta é a verdade . Não acred ito mui to que o
desejem, porém, pois a inda es tamos, apesar de tudo, no per íodo
do desbravamento e os judeus preferem chegar mais tarde : no da
colhe ita”. 93
Assim, persiste no discurso a construção de idéias
questionáveis, como a pretensa formação de uma “raça” judaica, distinta de
outros tipos de ”raça”, de outros tipos de pessoas. A definição étnica é
realmente
Naqueles anos o controle sobre os estrangeiros era amplo,
segundo Helena Lewin,
93
NETTO, Américo. Dois pontos de vista. In: Vários Autores. Por que ser anti-semita. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1933.
67
“O controle não se rest r ingiu à correspondência, inc luía jorna is
e chamadas te le fônicas ; out ras providências foram adotad as ,
como a e laboração de l i stas do movimento portuár io de
passageiros desembarcados no Bras i l ou em trânsi to para outros
países, informações sobre passaportes, sobretudo de cidadãos
russos , ident i ficação de todos os est rangeiros, a lém das f ichas de
registro em hoté is da cidade e exame detalhado dos pedidos de
na tura l ização. Por outro lado, as inst i tuições judaicas eram
obrigadas a d ispor , para conhecimento da pol íc ia , seus esta tutos,
composição da dire tor ia e , em alguns casos, a l is ta de todos os
seus sócio s, pr incipalmente no caso de assoc iações que t inham
vínculo externo, como o Joint , Ica, Wizo, organizações s ionis tas
e outras como a Socorro às Vít imas da Guerra, obrigator iamente
dependente da Cruz Vermelha Bras i le ira . Em mui tas ocas iões, a
políc ia re futa va os nomes apresentados para aprovação que
deviam ser preferentemente brasi le iros ou na tural izados, e , a té
que se pro movesse a subst i tuição, a inst i tuição não obt inha
l icença para funcionar ” .94
Desta forma, os vestígios históricos da questão judaica
convencem àqueles que querem ver. Seja na mili tância armada ou na
imigração forçada, os judeus estavam etnicamente identificados, com um
distanciamento, uma subjetiva fronteira, não geográfica, mas cultural , por
que implica na proximidade, no contato entre seus atores. Assim, a
permanência de valores depende do desenvolvimento no choque dessas
fronteiras, do sucesso ou não da reciprocidade estabelecida entre os grupos,
desviando assim o foco da importância fundamental dada ao fato de se
compartilhar uma mesma cu ltura.95
A interpretação teórica dos grupo s étnicos ligada à
antropologia traz-nos assim um forte campo de discussão e análise,
sobretudo quando parte de uma reflexão contrária à chamada antropologia
94
LEWIN, Helena. Dops: o instrumental da repressão política. In: CAD. Líng. Lit. Hebr., n. 3, p.267-294,
2001. 95
Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos Étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth/Phillipe Poutignat,
Jocelyne Streiff-Fenart; São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. Esta visão a respeito dos grupos
étnicos é principalmente encontrada na obra do antropólogo Fredrik Barth. Em Grupos étnicos e suas
fronteiras Barth expõe que o argumento é lucrativo quando visto como uma implicação ou um resultado, mais
do que como uma característica primária e definicional da organização do grupo étnico. Coloca ainda que “a
classificação de pessoas e grupos locais como membros de um grupo étnico deve depender do modo como
demonstram os traços particulares da cultura. [...] A atenção é dirigida à análise das culturas, não à
organização étnica. [...] O ponto de vista abrange igualmente uma “etno-história” que faz a crônica dos
ganhos e das mudanças culturais e procura explicar por que razão determinados itens foram tomados de
empréstimo”.
68
tradicional no que se refere a uma concepção dos grupos étnicos, onde os
designa como populações que: a) perpetuam -se biologicamente de modo
amplo, b) compartilham valores culturais fundamentais, c) constituem um
campo de comunicação e interação, d) possuem um grupo de membros que
se identifica e é identificado por outros. Tal definição se aproxima em
conteúdo da proposição postulada de que uma raça = uma cultura = uma
linguagem e que uma sociedade = entidade que rejeita e discrimina outras.
Esse modelo sem dúvida aproxima-se de várias situações, de objetos
estudados à luz etnográfica, mas desenvolve de maneira problemática uma
concepção ideal dos grupos étnicos, sobretudo em relação à gênese,
estrutura e função dos grupos. Isso nos impediria de compreender o
fenômeno étnico e seu papel na cultura humana. A manut enção das
fronteiras nesse caso decorreria do isolamento de cada grupo. Segundo o
pensamento barthiano:
“O mais grave de tudo é que e la nos induz a assumir que a
manutenção das fronte iras não é prob lemática e decorre do
iso lamento implicado pelas carac te r í s t icas: di ferença racia l ,
d i ferença cultural , separação socia l e barre i ras l ingüíst icas,
host i l idade espontânea e organizada. I sso l imi ta igualmente o
âmbito dos fa tores que ut i l izamos para exp licar a divers idade
cultural : somos levados a imaginar cada g rupo desenvolvendo
sua forma cultura l e soc ia l em iso lamento re lat ivo,
essencia lmente, reagindo a fa tores ecológicos loca is , ao longo
de uma his tór ia de adaptação por invenção e emprés t imos
se let ivos. Esta his tór ia produziu um mundo de povos separados,
cada um com sua cultura própria e organizado numa sociedade
que podemos legit imamente i solar para descrevê -la co mo se
fosse uma i lha” .96
Desta forma, o autor não apenas afirma a importância das
fronteiras como elemento fundamental da compreensão do grupo, d e sua
interação com os demais e evitando assim formulações hostis e por vezes
violentas como também dá um papel de destaque à h istória, enquanto
reveladora dos resultados pragmáticos dessa concepção. Jean Delemeau, em
96
BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne.
Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998.
69
seu trabalho sobre o medo no Ocidente contextualizou a relação entre os
diversos grupos e os judeus em meio a isso, destacando alguns pontos para
compreender a gênese daquilo que colocaria o judeu como uma face do mal:
[ . . . ] out ras verdades his tór icas devem ser ressal tadas : a) as
relações entre cr is tãos e judeus, antes do tempo dos pogroms,
não haviam sido sempre más; b) o fato r re l igioso desempenhou
um papel importante nessa degradação ; c) no século XVI, esse
fa tor rel igioso tornou -se o e lemento motor , a caracter í st ica
dominante do anti juda í smo ocidenta l .97
Somente uma visão de isolamento poderia influenciar
excessivamente na relação entre os grupos ou entre judeus e cristãos. Uma
história que produziu um mundo de povos separados, cada qual podendo ser
observado particularmente. É a política do estranhamento. Das dificuldades
de realizar uma manutenção de suas fronteiras e do que podemos dizer
também como uma impossibilidade de suas assimilações plenas, surgindo
assim a obrigatoriedade de sua tolerância mútua. A História mostra que
poucos momentos assim se mantiveram. O judeu foi identifica do, sobretudo
após o ano 1.000 d.C. como uma das faces do diabo.98
O estranhamento de
cristãos e a exteriorização desses levaram a episódios sangrentos em
diversas partes da Europa, sobretudo na Espanha após o século XVI, França,
Inglaterra, Portugal, além de outras regiões como Polônia ou Alemanha. De
forma geral a hostilização sofrida pelos judeus foi amplamente
caracterizada com expulsões, extermínios, acusações ou sinais de
identificação exteriores .
97
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. Sobre
esta passagem, ao falar do fator religioso o autor cita Jean Paul Sartre em sua obra Reflexões sobre a questão
judia de 1961: “Foram os cristãos que criaram o judeu ao provocar sua assimilação”. Assim, os elementos
apontados por Delemeau implicam nas relações historicamente produzidas entre, sobretudo, cristãos e judeus,
de forma que a variação ou períodos de maior ou menor hostilidade entre os grupos são provocadas pela
alteração ideológica, que se manifestou principalmente através do discurso de pregadores cristãos. Embora
essa compreensão, o autor aponta também os fatores econômicos, desde as mudanças geográficas das
comunidades israelitas e seus períodos de manutenção, sucesso e decadência até o desenvolvimento tardio dos
cristãos nas relações comerciais, sobretudo nas internacionais. 98
Ibid. p. 280.
70
IV.II – MATHILDE MAIER E A FIGUEIRA-BRAVA OU O
DISCURSO DO ESTRANHAMENTO
“. . . Lá nos p i lares da sa la de es tar e da biblio teca es tão
penduradas três cápsulas de metal , como é costume entre os
judeus, nas quais estão escr i tos sobre pergaminho em le tras
hebraicas os versos do quinto l ivro de Moisés: Amarás o Eterno
teu Deus de todo coração e com toda tua alma. Para nós i sto
sempre s igni f icou que só o amor de Deus manifes tado a través da
beleza da natureza , pode ajudar ao homem”. 99
Escrever sua própria histór ia, reencontrar largos caminhos
percorridos, trilhados. O homem, Deus e a natureza. Assim Mathilde Maier
poderia ter sua narrativa, inti tulada Os jardins de minha vida100
, justificada
ou interpretada. Inicialmente publicada em alemão, a obra teve, assim como
a Max Hermann Maier, uma versão traduzida ao português101
. O labirinto
percorrido pela autora e a chave que a conduz ao fim de um escuro e
99
MAIER, Mathilde. Os jardins de minha vida. Do original alemão: Alle Gärten meines Lebens. Verlag Josef
Knecht-Carrolusdrukerei. Frankfurt am Main. São Paulo: Massao Ohno Editor – versão Roswitha Kempf
(primeira edição), 1981. Cit. p. 82. 100
Segundo Ethel V. Kosminsky, em seu artigo Literatura judaico-feminina de imigração nos Estados
Unidos e no Brasil, publicado no Caderno de Língua e Literatura Judaica da USP (Universidade de São
Paulo), volume 3 (2001), o estudo da autobiografia e do romance de cunho autobiográfico, escritos por
mulheres imigrantes judias e suas filhas, possibilita a colocação de algumas questões, como o que é possível
conhecer dos processos migratórios e de adaptação à nova sociedade de famílias judias por meio da literatura
feminina? Coloca ainda que: “A ampliação do movimento feminista provocou o levantamento da vida de
mulheres, daquelas que tinham sido mantidas à parte, isoladas pelo silêncio. Segundo a socióloga inlgesa
Mary Evans, o reconhecimento dos limites das grandes teorias teria conduzido, provavelmente, ao crescente
interesse pela pesquisa, em menor amplitude, do particular e, ainda, a legitimação do crescente
individualismo, com as suas idéias de ressocialização do indivíduo. O novo pluralismo que valoriza a
singularidade e a autonomia social implicou a liberação de uma série de possibilidades, ampliando os limites
do que é aceitável. Esse sentimento de liberação ocorre de forma paralela a dois importantes
desenvolvimentos do uso da biografia: a crescente ênfase na documentação das experiências de pessoas
comuns e o surgimento de um novo tratamento dos dados pessoais, nos quais a vida é entendida como uma
repetição de certos padrões, que provavelmente se formaram a partir da infância”. Sendo assim, a pertinência
do uso da obra de Mathilde Maier pode ser justificada não apenas pelas transformações de postura, mudanças
sociais ou alterações de métodos acadêmicos, mas, sobretudo por aquilo em que pode sua obra contribuir à
narração do devir migratório de ascendentes israelitas, ou como diz Kosminky: ampliação e adaptação à
nova sociedade por meio da literatura feminina. 101
Feita por Roswitha Kempf, editora, que se estabeleceu em Rolândia juntamente com sua família, em 1936.
71
interminável túnel é a natureza. A memória encontrada e reencontrada
através da mais involuntariosa possibilidade de s e lembrar, de recordar de
sua própria experiência vivida, por vezes tida como sonho no misto com a
aproximação da realidade. Através dos jardins constituídos em seus
diversos lares pela Europa e culminando no jardim da grande casa de
madeira na fazenda Jaú, Mathilde Maier traz a história sua que é também a
história do turbulento século XX, com suas aflições e alegrias, relacionadas
à natureza e ao homem, sendo este sua parte essencial. Caminhava pelos
oitenta e três anos de vida quando se dedicou à elaboração do livro. Viúva
em terra estrangeira foi através da reconstituição da caminhada por estes
imensos e memoriosos jardins que a imigrante alemã -judia recompensou
seus últ imos momentos de vida no Brasil.
Quando da elaboração e edição do l ivro os Maier já estavam
no Brasil há mais de quarenta anos. A experiência de fugit ivos em solo
desconhecido já não era mais tão evidente. Os colonos alemães -judeus
imigrados já desfrutavam de forte assimilação, sobretudo nas relações
comerciais e na estruturação de fun ções, atividades, novos hábitos, além do
conhecimento da língua local e reciprocidade com os brasileiros. O norte do
Paraná não mais se caracterizava em torno da atividade ferroviária e da
presença estrangeira. A modernidade já havia estruturado grandes ci dades,
centros de produção econômica, todo um aparato civilizatório bastante
distinto daquilo que os imigrantes encontraram nos anos 30. Mathilde
encontrou nos jardins seu próprio consolo:
“As mulheres em gera l não se des tacam na l i teratura sobre
jardins. Não obstante, encontre i mui tas mulheres cr iat ivas para
as quais o jardim era uma fonte de vida. Si tuado no meio de
Base l , este jardim era tão grande que ocupava dois jard ineiros o
tempo todo. Sobre aterros em forma de pequenas e levações havia
jardins de p edra, então em p lena f lorescência com aubrécias
l i lazes, iber is brancas, tul ipas p recoces vermelhas e narcisos
amare los . Nos lados do jardim vi es tufas com orquídeas
tropicais. Quantas horas boas es te jardim deve ter proporcionado
a estes exi lados” .102
102
Cit. p. 42.
72
Ao que parece, o mito judaico-cristão do Éden se faz,
consciente ou não, tranqüilizador enquanto simbolicamente manifestado em
jardins públicos, mas principalmente nos particulares, aqueles que foram
caseiramente cuidados, onde era possível encontrar algum ti po de conforto:
“Também nós encontramos confor to no nosso jardim, nestes anos
di fíceis da perseguição, em nossa casa aber ta para o jardim que
abrigou tantos amigos , nos úl t imos d ias antes de emigrarem,
quando não t inham onde f icar . Ajudar os out ros na d i f íci l
desped ida da pá tr ia tornou -se nossa missão. Os jovens confiantes
e i sto com toda razão; para os mais velhos era penoso . [ . . . ] Os
úl t imos anos em Frankfurt foram d i fíceis e só va leram pela ajuda
que pudemos dar a outros. Muitos de nossos conhecidos pus eram
f im à própr ia vida. Nós os compreendíamos, sem aprová -los,
porém. [ . . . ] O últ imo jardim em Frankfur t foi o do consulado
inglês. Era um jard im pobre, mal tratado e mesmo assim ele nos
confortou com suas poucas f lores enquanto esperávamos pelo
Visto , tão vi talmente necessár io ” .103
Nesse sentido, a tragédia natural da figueira brava, que ainda
não havia chegado aos olhos dos Maier, já se fazia sobre o espectro do
nazismo. Após 1938 e consequentemente o início da guerra a Europa já
deixara de ser um local at rativo aos judeus, e entre aqueles que puderam ou
conseguiram de algum modo deixar o continente, já o haviam feito.
O capítulo oitavo da obra de Mathilde Maier traz suas
primeiras impressões sobre o Brasil e, consequentemente, suas primeiras
formas de es tranhamento:
A primeira saudação do Bras i l fo ram as palmeiras de uma i lha,
pouco antes de nosso navio, o Cap Arcona, atracar em Santos.
Era dezembro, a época quente do ano. Na travess ia t ínhamos
es tudado por tuguês e tentado imaginar como ser ia nossa vida no
campo. Na bagagem vinham caixas co m sementes e mudas e eu
tentei visua lizar o futuro jard im. Max faz ia projetos para a
103
Idem / p. 43. O último jardim antes de abandonar a Europa não poderia vir senão como um aspecto trágico.
Assim a autora o descreve, seu estranhamento de cores e formas sob o manto do início da segunda grande
guerra. Frankfurt não é a mesma, entre eles reconheceu-se apenas a solidariedade. Nada mais era reconhecível
aos judeus no final da década de 1930 na Alemanha. Aos jovens menor temor causava o estrangeiro, a
longínqua terra, se não hostil ao menos desconhecida. Nestes casos o estranhamento é para com todos, não se
define senão naquilo que não pode ser, em um não reconhecimento, expatriado dentro de um mundo que não
oferece mais espaço.
73
construção de uma casa e estes foram real izados , ao cont rár io do
que aconteceu com minhas idé ias sobre jard inagem neste c l ima
tota lmente di ferente. [ . . . ] Soubera eu, que tudo ser ia em vão ,
porque a terra e o cl ima estranho acabariam em cur to tempo co m
elas. 104
Seguindo a narrativa, a autora adentra pelo universo que os
conduziu até seu últ imo lar. O casal Maier não obteve maior problema até
sua chegada em Rolândia-PR. Naquele momento grande parte do norte do
Paraná estava dentro de um desbravamento territorial ligado ao
desenvolvimento econômico e realizado por parcerias entre empresas
estrangeiras e investidores brasileiros. O que se vi u pelas janelas daquele
trem não pareceu muito acolhedor ao casal: “Em 1939, só uma estrada de
ferro primitiva conduzia ao interior, a locomotiva era movida a lenha”.105
No interior dos vagões chamou-lhes a atenção o “desnível, às vezes grande
entre a camada baixa sem pretensões e primitiva, e a camada alta por vezes
sofisticada demais”. 106
De fato não foram boas as expectativas naquele
momento e o cenário fez-se como que um espelho dos angustiantes dias que
viveram na Europa. Max Hermann Maier comenta a paisa gem sob seus
olhos:
“Quando da janela do trem o lhamos para a pa isagem,
compreendemos porque t ínhamos de viajar seiscentos
qui lômetros para chegar ao nosso dest ino: abso lutamente não era
convida tiva . Pas tos magros, plantações de milho mirradas, um
pobre bosque de euca lip tos e áreas imensas de capoeira”. 107
O ambiente tragicamente descrito foi o cenário da incerteza, da
expectativa, do distanciamento entre o que eram e o que viam, mas era
também o cenário do alívio, de uma esperança pela vid a distante dos
campos de concentração e de toda a segunda guerra na Europ a. As
104
O jardim europeu em terras brasileiras nunca se realizou. Mas o processo de interação e manutenção levou
a novas formas de invenção desses novos cotidianos, sobretudo naquilo em que os despertou o exotismo do
Brasil. Mathilde descreve sua primeira experiência com uma manga ou um mamão e aponta aquele que foi o
primeiro jardim a acompanhar suas memórias: o de um hospital em São Paulo em que se hospedaram por
alguns dias por ocasião de um problema de hérnia em Max H. Maier. 105
Cit. p. 51. 106
Idem. 107
Idem.
74
impressões do casal Maier vieram a transformar -se com o correr dos anos .
Mathilde acrescenta sobre a viagem: “De vez em quando o trem parava em
pequenas estações de aspecto caót ico com nomes que soavam estranho para
nós, como Ibiporã”.108
Em Rolândia foram recebidos pelo sócio de Max H.
Maier109
e seguiram até a fazenda. Sobre os primeiros dias na Fazenda Jaú
comentou:
“Na fazenda fomos recebidos com mui ta amabil idade pe la
famí lia de nosso sócio . Eles moravam com os três fi lhos numa
modesta casa de madei ra; ao lado havia outra cas inha para o
professor par t icular e sua mulher . Nós fomos acomodados na
“casa dos estagiár ios” e logo na pr imeira no ite pudemos dormir
em lençóis l impos. [ . . . ] A casa dos es tagiár ios t inha sido
construída para um grupo de jovens que , instruídos em
agr icultura na Fazenda Experimenta l de Grossbreesen na Silés ia ,
deviam emigrar ao Brasi l . Mas o governo fascista de Getúlio
Vargas, influenciado pelos naz istas, nego u o vis to de entrada
para estes jovens e quase todos pereceram em campos de
concent ração. Is to fez com que uma sombra escura pairasse
sobre nosso começo, uma sombra que não podíamos afasta r e
nem o queríamos. A casa, na qual a lém de nós só morava um
es tagiár io , es tava no meio de uma p lantação de algodão . Pela
pr imeira vez vimos f locos brancos de a lgodão sair das cápsulas
arrebentadas. Dos 114 alqueires co mprados, 36 t inham sido
transformados em terra de cultura com 10.000 pés de café e
plantações de mi lho , a rroz, fe i jão e algodão. Atrás da casa
desc ia um bar ranco a té a mina de água; na frente via -se a mata
vi rgem que sub ia ao lado dos cafezais a té o espigão. Ali , onde
havia mata, reso lvemos fazer a nossa casa porque uma fonte
garant ia o abastecimento abundan te de água , o que era mui to
importante . Ainda hoje, após quarenta anos, essa fonte é o nosso
suprimento de água e de alegr ias. Ela a inda al imenta o pequeno
chafar iz per to da varanda , no qual se banham os beija -f lores
exibindo sua p lumagem bri lhante, - um espetáculo incr ivelmente
belo”.110
108
Cit. P. 64. 109
Heinrich Kaplan era também alemão e refugiado, recebeu a família Maier ainda quando de seu
desembarque, mas por ocasião de uma consulta médica para Max Hermann Maier, ele e a esposa
permaneceram em São Paulo enquanto a sobrinha seguiu para Rolândia com o imigrante alemão Heinrich
Kaplan. In: MAIER, Max Hemann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira -
Relato de um imigrante(1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird
Kaffeepflanzer in Urwald Brasili
ens. Bericht Eines Emigranten (1938-1975). 110
Em 11 de março de 1828 Goethe escreveu a Eckermann: “O ar puro do campo é realmente o lugar ao qual
pertencemos, é como se o espírito de Deus ali envolvesse o homem diretamente e como se uma força divina
exercesse sua influência”. Os Maier consideravam-se felizes por poder passar a segunda metade da vida no
campo, em terra tão aventurosamente estranha. De alguma maneira os fatores externos podem vir a
contribuir com o desenvolvimento dos grupos? Os fatores econômicos? De fato, o quase isolamento na mata,
afastados dos grandes centros urbanos do Brasil e com uma excelente quantidade de terras e estrutura já
desenvolvida, são fatores que poderiam justificar a estada de mais de sessenta anos desses imigrantes. Ma isso
75
Havia, portanto, um evidente distanciamento entre os
imigrantes e a nova terra. A experiência da narrativa expõe o
estranhamento. Mathilde Maier revela seus personagens, mas de forma a
pouco descrevê-los, talvez pela intenção de não causar-lhes ares de
romance, o que tornaria a lei tura menos biográfica ou memorialística do que
romancista. Embora isso, a narrativa é certamente bastante instigadora à
compreensão do fenômeno migratório alemão -judaico para o sul do Brasil,
tomado aqui evidentemente o caso da comunidade de Rolândia. O elemento
judaico parece igualmente presente, sobretudo na perspectiva digamos
talmúdica de sua obra, ou seja, aquela que segundo a tradição israelita não
permite uma interpretação unívoca e definitiv a pelo respeito ao livro divino
que impede sua cristalização e redução a um sentido único. A visão sobre o
novo mundo que a cerca torna possível a descoberta de novas camadas de
sentido até então ignoradas . Sobre esta influência apontou Walter
Benjamin: “Eu nunca pude pesquisar ou pensar senão num sentido, se me
atrevo a dizê-lo, teológico – isto é, de acordo com a doutrina talmúdica dos
quarenta e nove níveis de sentido de cada passagem da Torá”.111
Para Berta
Waldman vistas com distância, essas interpretaçõ es de interpretações
seria limitar a reflexão do movimento migratório. É preciso que se observe os fatores que operam nas
instâncias morais, psicológicas e emocionais, passando por seus conflitos intra e extra grupo. Sendo assim,
não existem regras de avaliação, diferentes casos foram relatados e caracterizam igualmente um mesmo
fenômeno, por ocasião do início da segunda guerra Mathilde disse: “e também na nossa pequena comunidade
em Rolândia houve vítimas; alguns não agüentaram a tensão e se desesperaram”. Certamente que se trata de
um eufemismo para suicídio entre os emigrados. De qualquer forma, os Maier sobreviveram aos anos
juntamente com a maior parte dos imigrantes alemães. Goethe talvez lhes tenha sido a principal inspiração
literária, onde certos olhares sobre suas palavras parecem ter sido escritos sob encomenda ao destino dos
refugiados. 111
BERTA, Waldman. A letra e a lei no texto de Clarice Lispector. Cad. Ling. Lit. Hebr., n.3, p. 295-309.
São Paulo, 2001. Segundo a autora essa afirmação de Walter Benjamin sublinha sua ligação não aos preceitos
ou aos dogmas da religião judaica, mas a um modelo de leitura herdado do estudo dos textos sagrados. Na
tradição teológica judaica, e especialmente na tradição talmúdica ( o Talmud integra duas linhas de
comentários: a Halakhá, da raiz hebraica halakh que significa andar ou caminhar, e a Agadáh, da raiz hebraica
higuid que significa dizer ou falar. A primeira inclui a parte normativa da Tora epassou a designar a tradição,
a regra ou o regulamento. Já a segunda é o repositório de vôos imaginativos de muitas gerações de sábios,
podendo ser traduzida por lenda ou fábula.), a interpretação não pretende delimitar um sentido definitivo. [...]
Que Benjamin reivindique essa tradição religiosa no contexto de uma análise materialista dos textos literários
é absolutamente notável: significa que a crítica materialista, para ele, não tem como meta estabelecer a
verdade definitiva sobre uma obra ou sobre um autor, mas tornar possível a descoberta de novos sentidos.
76
desenham uma linha que põe em movimento sentidos que não se agrupam
nem se fixam numa figura única.112
Assim, o argumento da autora parte da
idéia de uma multiplicidade de sentidos revelados nas obras de autores de
ascendência judaica, como Clarice Lispector, Kafka ou o próprio Walter
Benjamin, conscientes ou não estariam ancorados na tradição talmúdica das
interpretações da Tora, é como se estivessem sempre sobre um manto
ilimitado da compreensão. Mathilde Maier referencia em sua obra a atenção
que davam à natureza (alguns trechos de Goethe aparecem naquilo que o
escri tor mencionou a respeito da natureza), inclusive o pequeno temor que
tiveram quando se depararam com cobras, por exemplo. Ou seja, a
preocupação pareceu ter sido a de explanar a perspicácia, a tolerância ou
reciprocidade com que tentavam encarar a tudo e a todos.
A genealogia humana e as facetas de seus grupos
invariavelmente recorrem a elementos similares de sobrevivência.
Experiências traumáticas como a Schoá113
aproximaram, na mesma medida
em que os repeliram de sua pátria mãe, daqueles que comumente eram
vistos, sobretudo com distanciamento e com a clareza de tratarem -se eles
todos de universos distintos. Portanto, a possibilidade de adequação e
fixação dos imigrantes em solo estrangeiro permitiu, ao menos em partes, a
transgressão dessas fronteiras, sua violação e contato contínuo. Nas
palavras de Poutignat e Streiff -Fenart , por que
a e tnic idade não é um conjunto imutável de traços culturais
(crenças, va lores, símbolos, r i tos, regras de conduta e tc . ) ,
t ransmitidos da mesma forma de geração para geração na
his tór ia do grupo, ela provoca ações e reações ent re es te grupo e
os out ros em uma organização socia l que não cessa de evo luir114
.
112
Cit. p. 297. 113
Catástrofe. Termo hebraico que simboliza as mortes de israelitas durante a segunda grande guerra. 114
POUTIGNAT, Phillipe. & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. UNESP, 1998.
77
IV.III – OUTRAS DUAS HISTÓRIAS
“Um grupo de sobreviventes de Auschwitz e da Grande Guerra
viaja erra t icamente por entre escombros da barbár ie , ao sabor do
arbítr io e da burocracia dos vencedores. Numa Europa
semidestruída, esta trégua soa como ironia t rágica, inte rvalo
entre a indús tr ia do genocídio e a memór ia da danação eterna em
cada sonho matinal ; também, ent re lugares -fantasmas de um
mapa pont i lhado de setas para o nada. Lento movimento de trens
até a es tepe russa, o jogo da sobrevivência é o único retalho do
sentido que se des locou da histór ia .” 115
Francisco Foot Hardman116
inicia com estas palavras a breve
apresentação da obra de Primo Levi. La tregua foi publicada pela primeira
vez em 1958, alguns anos após o fim da Segunda Grande Guerra. Primo
Levi nasceu em Turim em 1919, foi químico e destacou-se também como
escri tor, atividade a qual se dedicou , sobretudo nos anos pós-nazismo. De
família judaico-piemontesa117
, foi um sobrevivente de Auschwitz e, pode -se
dizer que dessa condição se esboçou toda a sua obra. A na rrativa118
, que
segundo Levi conta “coisas verdadeiras, mas filtradas” , situa-se no
ambiente silencioso que se instalou na Europa depois de 1945.
Sobreviventes de um dos maiores campos de extermínio da guerra,
Auschwitz, um grupo de pessoas inicia mais um longo capítulo da queles
tempos, que inevitavelmente e mesmo com a memória trágica do terror,
trouxe junto a si inúmeros conflitos: que é agora a Europa? A que
chamamos lar? Por onde devemos seguir? A condição perpetua -se entre os
vitoriosos, a narrativa de Levi apresenta p rincipalmente o contato com o
exército soviético, este o primeiro a estar no coração do III Reich e que
115
LEVI, Primo. A trégua. São Paulo: Cia. Das Letras, 1997. 116
Francisco Foot Hardman é professor titular do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual
de Campinas. 117
Piemonte é uma região situada ao norte da Itália cuja capital é Turim. 118
A Trégua faz parte de uma “trilogia” escrita por Primo Levi, conta ainda com as obras “É isto um
homem?” e “Os afogados e os sobreviventes”.
78
conduziram este grupo até a Cracóvia, onde foram concentrados em
hospitais, escolas e outros espaços públicos juntamente com outros
sobreviventes.
O argumento não só interessante, mas acima de tudo instigante
do autor nos remete a reflexão que expõe a fragilidade da idéia de que com
o fim dos conflitos os sobreviventes estariam a salvo e rapidamente se
reconstruiria suas antigas posições sociais. Em A trégua somos convidados
a reconhecer a ineficiência de readequação destas pessoas, as inúmeras
vezes em que foram desacreditadas por suas histórias de cárcere, as pessoas
realmente não podiam acreditar em suas experiências.
“Tínhamos a esperança de uma via gem breve e segura, para um
campo preparado para nos receber , para um subst i tuto acei tável
de nossas casas ; e tal esperança faz ia par te de uma esperança
maior , a de um mundo reto e justo , mi lagrosamente restabelecido
em seus fundamentos na tura is após uma e ternidade de
transtornos, erros e tragédias, após o tempo de nossa longa
paciência. [ . . . ] Mas não ; acontecera a lgo que somente
pouquíss imos sáb ios dent re nós haviam previs to . A l iberdade, a
improvável , impossíve l l iberdade tão dis tante de Auschwitz, que
apenas nos sonhos ousávamos imaginar , chegara: mas sob a
forma de uma impiedosa p lanície deser ta . Esperavam por nós
out ras provas, outras fadigas, outras fomes, out ros gelos, outros
medos”.119
A relação entre estranhamento e liberdade pode se configurar
de diferentes maneiras. Embora não estivessem mais sob os olhos dos
algozes nazistas, o que evidentemente lhes causou o mais profundo dos
anti-reconhecimentos, o estranhamento e o medo, a idéia de liberdade em
seus imaginários conectava-se diretamente ao reconhecimento, de sons,
cores, cheiros e tudo o que lhes permitisse de volta o mundo que lhes
antecedeu o cárcere. Ingenuamente não se deram conta da nova forma de
liberdade que os aguardou, outras provas, outras fadigas, outras fomes,
outros, outros medos. Percebe-se, talvez totalmente perplexo, o
distanciamento pela própria vida, o estranhamento desta, e não somente
119
LEVI. Cit. p. 54.
79
destes ou aqueles, definitivamente tudo havia mudado e tais feridas jamais
poderiam cicatrizar -se.120
Uma semana depois do carnaval, no dia vinte e três de
fevereiro de 1942, o casal de empregados domésticos encontrou Lotte e
Stefan Zweig mortos em duas camas, na casa alugada em Petrópolis
próximo ao Rio de Janeiro. O médico atestou “morte por ingestão de
substância tóxica – suicídio”.121
O choque e a emoção foram grandes, como comprovam
testemunhas e jornais da época. As fotos da po lícia , mostrando o
casal mor to, abraçado nas camas s imples colocadas lado a lado,
ainda comovem e causam arrep ios, e quem as vê não pode de ixar
de sentir -se, ao mesmo tempo, um intruso. [ . . . ] Como na época,
ainda hoje as pessoas se perguntam por que Stefan Zweig, autor
famoso no mundo inte iro , suic idou -se, e por que sua jovem
esposa, El isabe th Charlotte , de 34 anos, procurou a mo rte junto
com ele .122
Certamente, a morte do famoso escritor alemão em um duplo
suicídio com sua esposa ainda antes do fim da segunda guerra chocaram a
todos no Brasil e no mundo. Segundo o próprio autor em carta para sua ex -
mulher “a solidão, que no começo tinha efeito tão calmante, começou a ser
opressiva” . Ainda em 1941, Zweig e a esposa conseguiram permissões
120
Segundo a revista judaica Morashá, edição 41de junho de 2003 a morte de Levi trouxe alguns
questionamentos sobre um possível suicídio: “Em abril de 1987, aos 68 anos, Primo Levi é encontrado morto
no poço da escadaria do apartamento no qual vivera toda a vida. Na época, sua morte foi atribuída a suicídio.
Acreditou-se que o grande escritor havia posto um fim à vida, pois esta se tornara pesada demais. Mas, nos
últimos anos, três importantes biografias (duas na Inglaterra e uma na França) colocam em dúvida esse
suposto suicídio. Afirmam que, provavelmente, foi um acidente provocado pelos remédios que Primo Levi
tomava na época. Uma das mais completas biografias é da escritora e pesquisadora Myriam Anissimov,
publicada na França em 1996. Primo Levi é retratado como um homem gentil, um tanto reservado. Em sua
essência, era um otimista. Enfrentou a crueldade em sua forma mais irracional. Foi forçado a testar suas
certezas racionais e humanas contra a máquina nazista, determinada a transformar suas vítimas em seres
desprezíveis antes de exterminá-los. Mas, mesmo assim, não perdeu a lucidez, nem sua fé na racionalidade,
sua curiosidade em observar e analisar, mesmo nas horas mais desesperadoras. Por que um homem assim
escolheria o suicídio, pergunta Myriam Anissimov em seu livro. E se ele realmente queria acabar com sua
vida, por que, sendo químico, não usou uma forma menos traumática? Por que não deixou algo escrito, uma
última mensagem? Acreditar que um homem assim se suicidou é difícil, porém a verdade sobre os últimos
instantes do grande escritor nunca será descoberta. Talvez, no fim, Auschwitz tenha atingido seu objetivo,
cobrando-lhe a vida tantos anos depois. Mas não resta dúvida que a vida de Primo Levi pode ser dividida em
dois períodos distintos: antes e depois de Auschwitz. 121
Informações colhidas no prefácio de Ingrid Schwamborn, doutora em Letras Romanas pela Universidade
de Bonn, Alemanha em Grandes mestres da literatura contemporânea – Stefan Zweig, Ed. Record. 1996. 122
Idem.
80
permanentes para a estadia no Brasil. Viveram em uma modesta casa de
veraneio em Petrópolis, local este onde escreveu sua obra Schachnovelle ou
Novela de Xadrez , obra que obteve toda a atenção de Zweig em seus últimos
dias. Trata-se esta de uma das primeiras obras literárias com reflexos da
política alemã, ao contrário de suas outras obras, nessa Zweig diminui a
distância em relação a seus próprios sentimentos e também entre tempo
fictício e tempo real .
Trata-se aqui não de um distanciamento nacional ou territorial,
vemos um personagem em puro distanciamento da vida, da impossibilidade
da sensibilidade, da arte, dos espíritos criadores frente à barbárie dos
tempos vividos. Ainda que tendo decla rado amor ao país acolhedor, o seu
paraíso, em pleno inferno mundial, a vida se tornou insuportável para ele.
Antes de morrer tomou todas as providências necessárias para que sua obra,
finanças e todas as atividades particulares em geral fossem devi damente
deixadas em ordem pelo escritor , preocupava-se sobretudo com o destino de
sua produção literária, tendo por isto enviado diversos exemplares para
amigos e editores, entre eles um brasileiro, Abrahão Koogan, que recebeu
de Zweig um exemplar de Schachnovelle. Anos mais tarde a editora
Guanabara, de Waismann e Koogan, com tradução do médico Odilon Galotti
foi a primeira a publicar a obra em âmbito mundial.
Naqueles anos trinta no Brasil , dizem os biógrafos, Stefan
Zweig foi um dos escritores mais fotografad os e l idos no país123
, recebeu
homenagens de autoridades políticas e também da Academia Brasileira de
Letras, onde em discurso dizia estar envergonhado por todos conhecerem
tanto de sua obra e ele tão pouco sobre a literatura brasileira. Tais
depoimentos deixou em “Pequena viagem ao Brasil” (Kleine Reise nach
Brasilien) e “Brasil, país do futuro” . Este último, o mais famoso de seis
livros no Brasil, escreveu em 1940, publicado pela editora Guanabara em
1941. As belezas naturais, a popularidade, a cultura do p ovo, o caráter
123
Os livros de Stefan Zweig foram queimados na Alemanha em 1933 e sua antiga editora Insel, não mais o
publicava.
81
“amável e pacífico” das pessoas, a aparente ausência de barreiras, tudo isso
proporcionou a Stefan Zweig um sentimento tranqüilizador, apaixonante
pelo Brasil, como ele mesmo disse “eine Seelenkur” ou uma “cura de alma”.
Porém, as estreitas relações surpreendentemente construídas tão
rapidamente não foram suficientes para Stefan Zweig, o horror daqueles
tempos o abatera profundamente. Paradoxalmente, o escritor abandonou o
solo de seus ancestrais e de seus contemporâneos pátrios, teve seu tr abalho
destruído e sua família ameaçada, os amigos mortos ou expulsos de suas
casas e de seus países. Chegando ao Brasil , uma acolhedora recepção, em
pouco tempo um visto definitivo, o clima tropical, a popularidade, os
livros. Não haveria outra palavra senão mesmo paraíso para aqueles que
conseguiram refugiar -se fora da Alemanha ou dos terri tórios anexados, feito
Zweig, que era austríaco e não alemão.
Embora as transformações pudessem permitir uma tranqüila
estadia no Brasil, o suicídio lhe veio como a ta ntos outros, a depressão, a
solidão e a angústia daqueles dias foram insuportáveis a ele. Em sua últ ima
novela, “Schachnovelle”, alguns dizem que buscou expor uma nova
modalidade de tortura, mas para outros queria apenas relaçar a luta da
sensibilidade e intelectualidade contra a brutalidade e a barbárie, as
questões que atormentam o personagem Dr. B, que havia sido enterrogado
pela Gestapo, certamente incomodavam também a Stefan Zweig. Não por
acaso, o suicídio é uma temática abordada na maioria de suas ob ras, em
“Schachnovelle”, seu único livro escrito inteiramente no Brasi l, nenhum
dos personagens pensa em suicidar -se. Segundo Ingrid Schwamborn “A vez
agora, era do próprio autor. Xeque -mate no paraíso”124
.
124
Grandes mestres da literatura contemporânea – Stefan Zweig, Ed. Record.
82
V - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caráter historiográfico da pesquisa é essencial neste trabalho.
Aquilo que foi pretendido aqui foi somente uma tentativa de ampla
exposição de um tema antes determinado: a construção histórica dos
ressentimentos a partir da experiência de refugiados alemães -judeus
estabelecidos na cidade de Rolândia-PR.
A segunda grande guerra (1939-1945), sem dúvida alguma,
trouxe e ainda reflete em toda a comunidade israelita, um tipo de memória
recente que expõe talvez o evento de maior teor trágico para a história deste
grupo. Desta forma, aquilo a que nos submetemos resolver, foi de encontro
a um tema bastante delicado, sobretudo quando pretendemos realizar uma
reconstrução ou ainda desconstrução de um lado assim por dizer, bastante
subjetivo da experiência individual e coletiva da queles que se
estabeleceram em território brasileiro.
A pesquisa permitiu, através do contato com a narrativa
produzida por Max Hermann Maier e Mathilde Maier, observar não apenas
como reagiram aos eventos que marcaram a Europa entre as décadas de
1930 e 1940, mas ainda como estes imigrantes desenvolveram sua memória
a respeito destes eventos e também como a construção de um “porto seguro”
lhes permitiu superar de alguma maneira a experiência da hostilidade e da
aversão étnica.
Quando tratamos aqui de uma superação, não estamos nos
referindo a um tipo de esquecimento, mesmo porque o esquecimento das
tragédias coletivas não faz parte da tradição judaica, ao contrário, é preciso
sempre reforçar tais acontecimentos, de forma que estes identificam e
marcam as características do grupo ao longo de sua própria história. E isto
o fazem com seriedade.
A questão dos ressentimentos apresenta uma referência social,
de forma que a sua possibilidade de existência se faz a partir de uma
83
relação entre os sujeitos e as prá ticas socialmente determinadas. Sendo
assim, não tratamos aqui de subjetividades alheias e independentes, ao
contrário, é preciso que a reflexão seja inteiramente relacionada ás práticas
sociais e assim podê-las determinar historicamente.
A literatura enquanto fonte da investigação historiográfica
permite ao historiador uma observação que nos parece diferenciada.
Enquanto o tratamento com documentos ditos formais exigem uma precisão
e um tipo específico de questionamento, o uso de obras ditas literárias e em
nosso caso, memorialísticas, exige uma atenção porque aparece como uma
mistura entre aquilo que a priori é entendido enquanto relato de uma
experiência e aquilo que pode esporadicamente ser construído por seus
autores enquanto ocultação, ou seja, um cui dado dado ao tratamento de suas
narrativas, de forma que isto é, então, a determinante para o investigador.
Desconstruir as formas como se criam narrativas e a elas dão um teor de
verdade, de narração exata de uma experiência trágica. Ora, o caráter
trágico de suas narrativas é justamente o elemento que nos conduziu a este
estudo. E sendo assim, o objetivo foi retirar de seus “não ditos” aquilo que
pudesse ser pertinente ao nosso trabalho.
No caso do texto de Mathilde Maier, Os jardins de minha vida,
a narrativa possui, por detrás de uma história aparentemente particular, que
busca um retrospecto desde a infância, uma experiência do cotidiano, uma
exposição de ressentimentos l igados a formação de jardins, que
simbolicamente expuseram tudo aquilo que a autor a possuía dificuldade em
relatar explicitamente. A violência, seja física ou moral, não é algo que se
trate facilmente, sendo assim a conveniência de um texto escrito a partir de
memórias individuais, pode de alguma forma, retroceder a tudo aquilo que
porventura se vive com resistência. Em outros casos, poderíamos sim,
encontrar pensamentos que se colocaram de forma a serem igualmente
violentos, taxativos, denunciadores de uma situação vivida. Embora
Mathilde fale constantemente dos dias experimentados na A lemanha, da
saudade de outros tempos, e a idéia de uma narrativa autobiográfica deixa
84
isso bastante claro, os ressentimentos não são expostos trivialmente. Há um
cuidado com aquilo que pretende falar de si mesma e da forma como
lidaram com os acontecimentos.
O texto de Max Hermann Maier possui grandes diferenças. Sua
narrativa é feita de maneira mais formal, ou como escreveu Elmar Joenck,
professor que auxil io Mathilde Maier no término da tradução de Um
advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva b rasileira – relato de
um imigrante (1938-1975), Max se expressou em exata terminologia,
clássica, científica e jurídica.125
Sendo assim, Max Hermann Maier
procurou escrever de maneira mais concisa, onde os eventos não são
evitados, mas escritos de forma dife rente.
As narrativas se encontram em muitos momentos, embora sejam
diferentes naquilo que poderíamos chamar de uma estrutura pessoal na
natureza de seus discursos. A questão da imigração para o Brasil, os
primeiros acontecimentos em São Paulo por ocasião da chegada, alguns
elementos da perseguição nazista e a forma como foram tratados no
momento em que deixavam a Alemanha, enfim, não poderiam de outra
forma tratar de assuntos distintos que não tomassem estes acontecimentos
como importantes no decorrer da e scrita, ainda assim, Max Hermann Maier
se utiliza de um discurso que percorre os ressentimentos de forma
redentora, ou seja, se preocupa com a maneira como expõe a construção de
novos cotidianos, da superação de eventos de outrora.
Entre livros, música, t eatro, política, plantações de café e
percepções imediatas de um mundo que se transformava a cada momento, os
Maier e outros imigrantes criaram novas maneiras de cotidiano, de
experimentação e construção de realidade. Os ressentimentos se refletem
sobretudo na fragmentação de valores antigos, na permanência de tradições
germânicas orientadas pela filosofia, literatura e religião.
125
MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. página 6.
85
O elemento religioso, presente nas narrativas de ambos os
autores, não é tomado da maneira como se poderiam imaginar judeus
praticantes de uma ortodoxia. O judaísmo os servia mais como uma
referência étnica e transmissora de valores e não uma postura assumida
radicalmente. Certamente, que os chamados “judeus de Hitler” , que pela
expressão polí tica do partido nazista foram necessari amente assim
designados, estavam mais assimilados a cultura germânica e ao espírito
europeu do início de século do que ao próprio judaísmo instituído enquanto
prática determinante de suas personalidades.
Talvez seja este um ponto importante para a reflexã o acerca
daqueles que foram obrigados a abandonar seu país de origem. Embora
judeus, eram alemães. Em alguns momentos isto se tornou um problema no
Brasil para os refugiados, visto que uma vez fora da Alemanha, era
determinado que se colocassem como “sem p átria”, não podendo estes, por
exemplo, em situações formais, apresentarem -se enquanto alemães:
“Meu sóc io e eu nos inscrevemos num pequeno albergue , onde
quer íamos pernoi tar , informando sermos “sem nac ional idade”,
que nesse tempo era uma espéc ie rea l de estado civil . O governo
nazista da Alemanha recusara aos judeus a nac ional idade alemã.
Em seguida mandaram-nos dar uma chegada, à noite , ao gab ine te
do chefe de pol ícia . Este disse ser obrigado a nos prender no
caso de ins ist irmos ser sem nac ionalidade”.126
Desta forma, os problemas com a Alemanha não foram extintos
no momento em que se refugiaram no Brasil , sobretudo no período em que
os nazistas ainda governavam o país. Eles mantiveram -se e trouxeram aos
alemães-judeus uma confusão acerca de suas própri as identidades. E o
chamado aqui de confusão, é por outro lado, a reflexão que permeia uma
formação direta de um tipo de ressentimento para com aqueles que lhe
negaram o direito de permanecerem alemães: Profundas eram nossas raízes
126
MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 19.
86
na Alemanha; gostávamos demais de nossa casa, linda, com grande jardim,
no bairro de Holzhausen Park, na Rua Kleeberg.127
Questões identitárias, formações de jardins em diversas partes
da Europa e novos jardins no Brasil, a guerra, a violência; variados
elementos que permearam a s ituação de refugiados que se espalharam por
muitas regiões do continente americano. A experiência aqui demonstrada
surgiu da relação entre potencialidades de uma perspectiva política que se
utilizou do anti -semitismo como valor de ordem e manutenção de uma
verdade e a coisa em si refletida pragmaticamente, ou seja, na forma como
aqueles que se tornaram hostilizados reagiram, mantendo assim a
possibilidade de sobrevivência.
127
MAIER, Max Hermann. Um advogado de Frankfurt se torna cafeicultor na selva brasileira. Relato de um
imigrante (1938-1975). Título do original alemão: Ein Franfurter Rechtsanwalt wird Kaffepflanzer im
Urwald Brasiliens. Berich Eines Emigranten (1938-1975). Josef Knecht Verlag-Frankfurt am Main, 1975.
Rolândia: Gráfica Velox-PR, 1976. Cit. P. 10.
87
VI – ANEXOS
VI.I – FOTOGRAFIAS
Ilustração 1 128
128
A Menorah significa candelabro, suporte para lâmpadas. Tradicionalmente a Menorah
possui 07 lumes de lâmpadas, uma haste central e 03 braços que saem de cada lado.
88
Ilustração 2129
129
Interior da casa de Max e Mathilde Maier.
89
Ilustração 3130
130
Biblioteca da casa.
90
Ilustração 4131
131
Piano vertical.
91
Ilustração 5132
132
Visão lateral.
92
Ilustração 6133
133
Varanda.
93
Ilustração 7134
134
Detalhe da construção, o desnível do terreno fez com que a arquitetura da casa recorresse a uma estrutura
lineadora.
94
Ilustração 8135
135
Varanda.
95
Ilustração 9136
136
Visão frontal.
96
Ilustração 10137
137
Visão lateral.
97
Ilustração 11138
138
Mata ao redor da casa.
98
Ilustração 12139
139
Entrada da fazenda Jaú, Rolãndia-PR.
99
VI.II – ENTREVISTA
ENTREVISTA - Klaus Kaphan – 20/10/2006 – 15 horas – Fazenda Jaú
K. K:[...] Tudo bem. E, agora, vocês querem que eu conte o que?
Bom, quanto tempo faz que o senhor está aqui em Rolândia?
K.K.:Faça a conta, de 1936 pra cá. Junho de 36.
E como que o senhor veio pra cá?
K.K.:Como ou por quê?
Como...
K.K.:Eu vim de trem (risos)
O senhor desceu em Santos?
K.K.:Desci em Santos, paramos em São Paulo e viemos pra cá.
Mas, quais foram as circunstâncias, por que Rolândia.?
K.K.:Bom, o negócio foi o seguinte, como você disse, nós fomos judeus e meus pais
reconheceram em tempo o que tava ... o que iria acontecer na Alemanha e teve a
possibilidade de escolher entre ir para Israel e vir para o Brasil. E, como naquele tempo
tinha a Companhia de Terras Norte do Paraná que vendia, que tinha essa concessão, uma
área grande aqui no norte do Paraná para colonizar e vender terras. Estavam vendendo
terras na Alemanha. Meus pais...meu pai conseguiu vender a propriedade dele lá e com esse
dinheiro comprar um vale para x hectares de terra dessa companhia. Essa companhia, pelas
informações que meus pais receberam, era uma companhia séria, como realmente foi, mas
ele poderia ter também chegado aqui no Brasil com um pedaço de papel na mão, com a
esposa e três crianças pequenas e não encontrar nada, né. Mas, deu tudo certo, então...foi
assim que nós chegamos. Chegamos em São Paulo, depois pegamos o trem, ai os meus pais
me deixaram em São Paulo com as crianças na casa duma senhora que tinha uma pensão e
meus pais vieram de trem pra Rolândia que foi a ultima estação que tinha naquele tempo
Terminava ai ... Quer tomar um suco?
100
Então, pelo que o senhor fala foi muito tranqüila a vinda do senhor pra cá.
K.K.:Nossa vinda foi tranqüila, que as coisas ficaram feias mesmo só depois disso, só em
38, 39, que... Agora já quando nós saímos da Alemanha, minha irmã mais velha já sentiu
muita discriminação contra judeus na Alemanha, na escola, pelos professores e tudo isso.
Eu era menor e tava numa escolinha, numa vila perto da fazenda do meu pai, então eu
quase num...
Qual era a idade do senhor?
K.K.:Eu tinha nove anos e... chegamos aqui em Rolândia, meu pai alugou uma casinha na
cidade. A cidade que tinha acho tinha dez, quinze casas, ou menos. Então ele pôde, com a
ajuda do pessoal da Companhia de Terras, pôde escolher onde ele queria a terra, escolheu
essa área aqui, abriu uma clareira e construiu a casa, que é logo ali na frente. Aquela casa
amarela lá pra frente. E, hoje minha filha mora lá. E estamos aí desde 15 de janeiro de
1937, que nós moramos aqui na fazenda.
E, assim, a família do senhor seguia o judaísmo?
K.K.:Não, éramos... meus pais eram bastante liberais, vamos dizer assim. Não éramos
ortodoxos, nem nada, como a maioria das famílias que vieram pra cá naquele tempo. E a
gente... Eles, os adultos se, como posso dizer, eles se juntaram em grupos muito menos pela
religião do que pela descendência de país, por causa da língua e tudo isso. Cultura que
tinham. Então não houve mesmo uma comunidade judaica por aí. Teve relativamente
poucos, não teve oitenta imigrantes judaicos aqui em Rolândia, de maneira nenhuma.
Não chega?
K.K.:Não chega a isso, nem de longe. Não sei se vocês sabem que para certas cerimônias
judaicas[...] quando precisavam fazer uma cerimônia, por exemplo, mesmo um enterro ou
qualquer coisa, tinha que ter treze pessoas, treze homens para poder fazer uma celebração
de qualquer coisa judaica, né. E, às vezes era difícil encontras treze pessoas, treze homens
adultos para fazer.
Aqui em Rolâdia?
K.K.:Aqui em Rolândia. Eu acredito que, assim pode ser que não existam oitenta então, que
seja, né. Mas, existe então um número significativo de famílias judias aqui em Rolândia.
101
Bom, hoje tem muito menos ainda, mas não vieram oitenta famílias pra cá. Hoje a maioria
ou voltaram pra Alemanha, a maioria também já morreram do pessoal que vieram, também
os meus pais e nossos vizinhos, inclusive.
Mas, vieram algumas famílias de judeus pra cá. E, aqui? Vocês se sentiam seguros aqui, em
relação às perseguições que vocês estavam sofrendo?
K.K.:Se a gente se sentia seguro? Sim. Muito, muito, nossa! Bom, meus pais se sentiram
muito bem aqui e nós, crianças, nós... Bom, eu não tenho mais nenhuma ligação com a
Alemanha, eu falo alemão porque meus pais falaram, mas vivi aqui, to naturalizado, meus
filhos são brasileiros, meus netos são brasileiros, então...
O senhor nunca teve a intenção de voltar pra lá?
K.K.:Não.
O senhor se sente brasileiro?
K.K.:Me sinto brasileiro e to muito bem aqui. O pouco tempo que me resta, quero ficar
aqui.
E, quanto ao judaísmo, o senhor se considera um judeu?
K.K.:Bom, eu me considero judeu de descendência, vamos dizer assim. Eu não sou
religioso, nem nada. Não sou praticante. Eu sou judeu porque meus pais eram e na
Alemanha, naquele tempo eu seria considerando judeu, como era, não sei quantas gerações
pra trás.
Sim, mas aqui existiu certa separação entre os judeus e os outros que não eram judeus.
Existe até o clube concórdia que dizem ter sido um clube nazista, fundado por eles...
K.K.:Bom, principalmente naquele tempo existiam alguns, talvez ainda existam alemães
que vieram, às vezes são descendentes de alemães que ainda acham, que se acham nazistas,
mas nós não... aqui muito pouco. Mas aqui, quando eles vinham pra cá, não tinham...Tinha.
Tinha os alemães que eram nazistas, tinham.
E como eles tratavam vocês?
102
K.K.:Bom, a gente não se misturava, eles formavam o grupo deles e a gente se mantinha
separados, não queria saber de política (risos) e cada um queria viver em paz.
E os judeus que vieram pra cá, houve uma união entre essas famílias aqui?
K.K.:Houve uma união assim, não tanto pela religião, quanto pelo grupo dos judeus. E
houve também, teve muitos imigrantes não-judeus e que faziam parte do grupo, teve muita
gente que saiu por motivos políticos ou simplesmente não concordavam com o que tava
acontecendo lá.
O Sr. Max Hermann Maier, era sócio do senhor?
K.K.:Era sócio do meu pai.
Eles tinham um alojamento para estudantes, não tinham?
K.K.:Tinha. Isso era aqui na fazenda. Eram, meu pai com doutor Maier, juntos e, eles eram
sócios, os dois eram donos daqui da fazenda e tinham, existia um plano de trazer filhos de
proprietários de gente que tinham comprado terras também mais que não vieram e os filhos
deles eram pra vir pra cá pra tomar posse da terra que os pais compraram e aqui ia ser um
centro de treinamento de adaptação eram pra vir quinze, dezesseis jovens, principalmente
de uma escola agrícola alemã, mas judia e desses quinze, dezesseis, não sei mais quantos
eram um único conseguiu vir. A maior parte não conseguiu sair da Alemanha, morreram
em campos de concentração e outros conseguiram sair para outros paises e não
conseguiram vir ao Brasil. Então só teve uma pessoa desse grupo de jovens que chegou.
Chegou aqui, morou aqui, e inclusive depois casou com uma irmã minha e ele já faleceu há
tempo também. O nome dele era Hans Rosenthal. Depois ele casou com dona Inge, não sei
se vocês já... Inge Marie Rosenthal que ainda mora aqui na fazenda inclusive.
Então assim, a princípio a ideia era trazer estudantes e refugiados, ao mesmo tempo? Ou
eram só estudantes?
K.K.:Eram estudantes e refugiados ao mesmo tempo. Não, não, judeus, porque aquela
escola era judia. Era uma fazenda – escola. E era pra vir pra cá, se adaptar aqui pra depois
cada um ir pro seu lado.
Existe alguma coisa, mesmo que ruína desse alojamento?
103
K.K.:Não. Foi demolido. Existe da madeira daquele lá, ai onde vocês pararam ai, a casa da
direita, o escritório da fazenda, isso foi feito de parte da madeira. Mais isso já faz muitos
anos.
E a adaptação da família do senhor aqui. Não era cidade, né, mas era tudo, acredito que
mato fechado. Foi difícil a adaptação?
K.K.:Bom, quando gente já de idade, não era fácil, né? Chegar num país estranho,
praticamente sem dinheiro, três filhos pequenos, sem saber falar a língua e conhecer... e o
clima diferente e tudo mais, não foi fácil. Agora, meu pai sempre era otimista, meu pai se
adaptou mais fácil, ele não falava o português no começo, mas se fazia entender. E no fim
ele era um dos poucos agricultores já que tinha propriedade na Alemanha antes, que tinha
propriedade agrícola, então ele ajudou muito os outros aqui, aconselhando e na parte
agrícola, coisa que ele sabia, ele conseguiu ajudar muita gente aqui.
Ele tinha intenção de voltar para Alemanha?
K.K.:Nunca. Nunca. Bom, depois que se sai tocado de um lugar, de um lugar onde
assassinaram teus parentes todos, que quase ninguém escapou de lá, você tem... eu pelo
menos não pretendo, nunca quero voltar pra lá, que pras pessoas mais velhas eu não posso
olhar nem na cara assim dizer: será que você tava no meio disso? Será que você matou
meu tio?
Mas o senhor voltou para lá depois?
K.K.:Não.
Nem pra visitar?
K.K.:Nem pra visitar. Não quero, não. Eu falo alemão, tenho amigos alemães e tudo isso,
mas eu não me sentiria à vontade lá, de jeito nenhum.
Tem alguém da família do senhor lá?
104
K.K.:Na Alemanha não. E mesmo que tivesse, eu pessoalmente, eu não... eu sempre falei
que não quero, e não vou, não vou mesmo.
Veio a família do senhor para cá, seus pais e seus irmãos, mais ficaram ainda familiares do
senhor na Alemanha?
K.K.:Ficaram. Ficou minha vó, que é a mãe da minha mãe e ficou o pai do meu pai. E eles
conseguiram vir em 38. Eles ainda vieram, viveram aqui com a gente até falecer. Fora os
outros parentes que conseguiram sair, estão esparramados pelo mundo, em Israel, uns
foram pra China primeiro e outros lugares. O único parente nosso que veio para cá,
independente da gente, não sei se vocês já ouviram falar do Max Moser? Ele era primo do
meu pai.
O senhor falou que a maioria das famílias que vieram para cá, já eram mais liberais, que
não seguiam tanto o judaísmo, mas em alguns momentos vocês tentavam seguir a tradições
porque o senhor mesmo fala que...
K.K.:Bom, meus pais tentaram manter as festas religiosas, por exemplo. Nós tínhamos no
começo, como não tinha escola, a gente tava longe da cidade, mesmo na cidade não tinha
escola, então veio uma moça junto com meus pais para ser professora nossa no primeiro
ano, depois ela foi embora, veio um casal também eram refugiados alemães, também eram
professores e viveram aqui por três anos.
Quem era esse casal?
K.K.:Esse casal era, ele chamava [...], acho que ninguém menciona, eles moraram aqui na
fazenda e deram aulas em alemão, um curso mais ou menos escolar e deram aula de
religião também. Sabiam um pouquinho de religião. Mas ficou nisso, quando tinham as
festas, ano novo e o dia do perdão, tudo ai então eles celebravam com a gente, pra manter a
tradição. Agora, tem outras famílias que mantém mais a religião ainda, por exemplo, a
senhora Inge Rosenthal, ela é muito mais, não é ortodoxa nem nada, mas é mais, como
posso dizer? Se identifica muito mais ainda com a religião judia, entendeu?
Tem famílias que, mesmo que não fossem tão praticantes lá, na Alemanha, quando eles
vieram pra cá, eles tentaram resgatar esse passado deles.
K.K.:Não, claro. No começo era isso e era a cultura alemã, que a geração anterior a minha,
quer dizer, esses que vieram, tentaram manter a cultura, que é uma cultura diferente da
cultura daqui.
105
Sim. Existia até um clube, né, que é o Pró- Arte.
K.K.:Tinha o Pró-Arte, que o Dr, Max Hermann Maier era, naquele tempo ele era o líder,
faziam palestras e convidavam, tinha alguma pessoa em São Paulo, que entendia de alguma
coisa, e todos ficavam pra dar uma palestra aqui...e, uma porção de coisa assim, né.
Então, mas nós percebemos, assim, que nos dois cemitérios daqui, que a maioria desses
judeus, em suas sepulturas, eles acabam seguindo um pouco a tradição.
K.K.:Como assim?
Da própria arquitetura tumular, a questão do túmulo ser perpétuo...
K.K.:Sim, mas isso não é, não é típico judeu, isso é típico alemão e mesmo aqui, talvez, o
jeito de pedra das lápides ai, dos meus pais, vocês devem ter visto lá, tem uma pedra pesada
que nós pusemos lá. E, mas...mas isso não é tradição, assim...é mais, é...pessoal.
E, quanto ao velório dos pais do senhor? Como que foi?Vocês seguiram a tradição?
K.K.:Foi seguida a tradição um pouco, que tinha uma pessoa em Londrina que...que
ajudava, que vinha celebrar um pouco. Mas não, sabe, eu, pessoalmente não...não, como se
costuma dizer? Não simpatizava, não é certo. Mas eu não fazia questão, vamos dizer assim.
Quando o senhor veio pra cá, se o senhor lembrar, vocês trouxeram muitas coisas?
K.K.:Bom, o que a gente podia trazer, trazia. As caixas, caixote grande de coisas que
podiam trazer, que gente vinha de navio então não era tão difícil. Naquele tempo não tinha
avião. Tinha avião, mas não tinha aviões de passageiros, assim constantes como tem hoje,
então a gente podia trazer mais coisas. Trazia utensílios de casa, um pouco de ferramentas
que a gente achava que um dia podia usar aqui. Ferramentas de carpinteiro, ferreiros, de
coisas que podiam usar ai, na fazenda, né.
Livros?
106
K.K.:Livros, muitos livros. Isso, como eu falei sobre a cultura dessas pessoas. Tem na casa
do Max Hermann Maier ainda existe, ela está aqui, está vazia no momento, está muito bem
conservada.
Nós podemos fotografá-la?
K.K.:Pode. O meu filho assumiu aquela casa. Meu filho mora em São Paulo, mas ele tem a
família, e eles querem, tão logo que eles podem, eles querem renovar a casa e usar ela para
férias e tudo isso. E, na sala você vai ver que tem a biblioteca ainda, é uma parede enorme,
cheia de livros, ta lá ainda, os livros estão lá. A dos livros deles estão lá.
Eram romances?
K.K.:Tinha de tudo, né. De todo. Mas, mais era literatura.
Filosofia?
K.K.:È, filosofia e. como te diria, autores antigos e conhecidamente... não sei como
explicar (risos). Que tudo isso fazia parte da cultura européia e a cultura alemã, né. Eram os
...
E assim, o senhor veio para cá quando tinha nove anos, o senhor era pequeno. Os pais do
senhor incentivavam o senhor a ler aqueles livros?
K.K.:É, mais eu nunca era de ler muito aqueles. Eu li muito pouco daquilo, li e sei sobre
eles alguma coisa, mas tem gente muito mais culta (risos).
Não ter se formado então essa comunidade judaica, então o senhor realmente atribui isso ao
fato de que esses judeus não seguiam tanto a tradição, eles eram mais liberais, não envolve
questão financeira, de não conseguir construir uma comunidade...?
K.K.:Não, não.
A questão da perseguição, aqui também não tinha perseguição?
K.K.:Não, perseguição não tinha nenhuma.
107
Nenhuma?
K.K.:Ao contrário, durante a guerra os alemães que eram... eles não podiam falar alemão na
rua. Eu estudei em Londrina, estive um ano do ginásio londrinense, que nem existe mais
hoje e quando eu vinha para casa em algum fim de semana, tinha que ir na delegacia tirar
salvo conduto para poder ir viajar de jardineira ou de trem de Londrina a Rolândia. E tem
alemães nazistas que ficaram presos, foram presos por se manifestarem nazistas. Ficaram
presos durante a guerra.
E, assim quanto à questão do senhor Nixdorf, senhor Oswald Nixdorf, existem alguns
relatos de que ele seria nazista.
K.K.:É o que dizem. Pessoalmente não sei, ouvi falarem isso e acredito que tenham sido,
agora, dizer que ele foi eu não posso porque ele nunca me falou nada (risos).
Mas assim, aqui o senhor não tinha contato com ele assim, e com a família dele?
K.K.:Não, muito pouco. Eu conheço o filho dele, o Klaus Nixdorf, mas também conheço,
né? Ele é uma pessoa que gosta de cultivar o germanismo que disso eu mantenho longe, né?
[...] dos judeus que ainda moram aqui em Rolândia, ela, Suzanne Behrend...
Que também era liberal.
K.K.:Era liberal e a dona Inge Rosenthal, o Bruch, inclusive vocês entrevistaram a filha
dele por acaso?
A Léa? Sim, temos entrevista marcada.
K.K.:O Bruch passou um tempo aqui na fazenda trabalhando com a gente, trabalhou em
muitas fazenda ai, e só tem ela agora, a Lea do pessoal daquela família.
Se eu não me engano, a dona Mathilde Maier, ela não dava aula de hebraico?
K.K.:Ela dava aula de hebraico, tentou dar para nós, tentou dar aulas para os meus filhos.
Ela era uma personalidade interessante. Ela escrevia. Vocês leram os livros dela, Os jardins
108
da minha vida, ela dava aula, mas hoje em dia ela não esta mais ai, nem o Rafael nem
ninguém se interessou pela religião (risos). Agora você diz ai no cemitério São Rafael...
você vê que tem muito poucas sepultura de judeus lá. Poucas, tem muitos alemães, não sei
porque eles se uniram lá...[...]
K.K.: Existe até uma certa diferença, uma certa simbologia, a questão das pedras...
Sim. Mais eu vejo isso muito mais uma questão individual, pessoal do que... cavar o
terreno, não sei se você viu que tem a sepultura dos meus pais e atrás nos pusemos a lapide
do meu avô, e tem a estrela de Davi nela e logo atrás a da minha avó também.Mas isso ai é
tudo diferente, cada um faz do seu jeito, ninguém fala que tem que ser assim, que tem que
ser daquele jeito. Pra mim, pessoalmente, eu nunca vou negar que sou judeu, inclusive que
nasci judeu, judeu para mim não é uma raça, como Hitler queria que fosse, para mim judeu
é uma religião como posso ser muçulmano, posso ser católico ou budista. Eu pessoalmente
sou mais hinduísta do que judeu, nós temos um grupo de meditação em Londrina, que
segue um guru indiano. Se quiser assim, não sou mais judeu. Eu sou judeu porque nasci
judeu, nunca vou negar que sou, né.
[...]
K.K.:Ele (Max Hermann Maier) levanta umas questões de não ter se formado uma
comunidade pelo fato da questão financeira, porque...
Eu não acredito que seja isso.
[...] A Companhia de Terras tinha um contrato com o governo brasileiro de construir uma
estrada de ferro atravessando essa concessão de terras que eles tinham e de fundar, ao longo
dessa estrada de ferro, a cada dez, quinze quilômetros um núcleo, para ser uma futura
cidade. É o que fizeram. E, para construir essa estrada de ferro, eles compraram na
Alemanha trilhos, locomotivas, vagões, pagando em dinheiro alemão e, meus pais e muitos
imigrantes pagaram para a companhia inglesa lá pelo vale de terras, judeu quando saia de
Rolândia não podia levar dinheiro, podia levar cinqüenta marcos, que não era nada. Mas
teve esse vale de terras, então meu pai vendeu a propriedade com o dinheiro que comprou
as terras e aquele dinheiro ficou lá e pagou pelos trilhos e etc da estrada de ferro e salvou
vida de muita gente, com isso muita gente conseguiu sair de lá, compreende? Cinqüenta
marcos pra sair de um país com a família e tudo, não era...Para sair da Alemanha, então,
não podia levar dinheiro. Não podiam levar nada.
109
VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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110
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