Idealismo e Realismo -

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Idealismo e realismo: desafio constante de realizao das utopias

Martonio MontAlverne Barreto LimaDoutor em Direito pela Universidade de Frankfurt/M, Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade de Fortaleza, Procurador do Municpio de Fortaleza

"No se trata aqui de que o Estado prefira os fundamentos do filsofo aos do jurista (o representante do poder do Estado), mas sim que aquele seja ouvido. (...) No de se esperar nem desejvel que reis filosofem ou filsofos reinem. Monarcas e seus povos no devem extinguir ou calar os filsofos, mas deix-los falar livremente, j que no cal-los e, sim, deix-los falar livremente, imprescindvel ao esclarecimento de suas atividades, porque os incapacita para a formao de clubes, ou do uso suspeito de suas palavras como propaganda". Immanuel Kant.(1)

I.No incio dos anos noventa comemorou-se o fim da histria, enquanto a maior parte da populao do mundo ficava mais pobre, mais faminta e, proporcionalmente ao grau de desenvolvimento das relaes econmicas e da tecnologia, mais desprotegida ambiental e socialmente. Cada vez mais, recursos financeiros obedeceram a um modelo de aplicao desigual, consistente no combate - meramente discursivo s desigualdades planetrias, ao mesmo tempo em que se reclamava por obedincia aos padres de investimentos capitalistas.(2) As naes em desenvolvimento, pobres e desesperadamente pobres assistiam ao seguinte discurso, seja por parte das sociedades ricas e de seus ricos, seja dos organismos internacionais: "temos que ajudar os mais pobres", "no podemos conviver com tanta desigualdade", "a globalizao no pode perder seu rumo social", ao mesmo tempo em que sentiam duramente o peso das imposies destas sociedades ricas e dos organismos internacionais sobre seus ombros. Simultaneamente, era exigido das naes mais pobres o corte de atuao de um Estado j incapaz de cumprir demandas bsicas de seus povos, como sade e educao. Se para uma compreenso mais ingnua consiste este mecanismo em alguma forma de contradio, necessrio que se ressalte que exatamente aqui se concentra a natureza primitiva do capitalismo e a razo mesmo de sua existncia: a explorao constante de mercados a gerar acmulo de valores monetrios financiadores da opulncia noutros espaos, resultando em limitaes impostas s sociedades econmica e politicamente desarmadas. Portanto, nenhuma contradio existe no mbito da globalizao e, se ela existe, reside esta no fato de se desejar conciliar a prtica capitalista de globalizao com realizao de justia social ou distribuio de riquezas em escala mundial. Esta seria uma tarefa dos pejorativamente definidos como "utopistas". Ocorre que os utopistas de hoje podem tambm ser realistas e, desta forma, recorrerem a ferramentas tericas precisas para enfrentarem os defensores da vitria final da economia de mercado.

A produo acadmica do homenageado deste volume, o Professor Nelson Saldanha, representa, para a cultura jurdica e poltica do Brasil, um terreno incomum e proporcionador daquilo que se pode ter como fundamental no exerccio da pesquisa: a crtica. Nos dias atuais, a recuperao da atitude crtica da tarefa da filosofia significa, como observa Max Horkheimer, uma tarefa de grande envergadura: "A resistncia da filosofia contra a realidade deriva de seus princpios imanentes. A filosofia insiste em que a ao e os objetivos do homem no devem ser produtos da necessidade cega. Nem os conceitos cientficos nem a forma da vida social; nem a maneira dominante de pensar e tampouco os costumes dominantes devem ser incorporados ou acriticamente praticados. O impulso da filosofia direciona-se contra a mera tradio e a resignao nas questes fundamentais da existncia; ela tem a ingrata tarefa de trazer a luz da conscincia sobre qualquer relao humana e suas reaes, de forma to enraizada, que elas natural e imutavelmente paream eternas".(3) Repare-se que Horkheimer formulou suas reflexes para um mundo dominado pela massificao da indstria cultural, que desde o final da Segunda Guerra insiste no campo cultural e intelectual tambm(4) insiste, como disse, na vitria do real, ou seja, do capitalismo ocidental, qualificando a eventual realizao da utopia socialista de irracionalidade.

O discurso descredenciador da utopia bem visvel atualmente. Ningum desconhece a recusa de diversos governos de se submeterem a protocolos internacionais de respeito ao meio ambiente, de reduo da emisso de gases poluentes, ou da absteno da utilizao dos recursos naturais no-renovveis, sejam estes fontes de energia ou alimentos para o homem. O pragmatismo(5) reafirma que a adoo de tais medidas impede o desenvolvimento, gerando desemprego e recesso econmica - como se desenvolvimento, como mostraram Cardoso e Faleto, redimisse povos da dependncia,(6) sem se considerar os "laos da dependncia" a "incrementarem-no". Interessante perceber que a argumentao de radicalidade da defesa do desenvolvimento no enfrenta, neste ponto especfico, o mrito da questo o lembrado desequilbrio ecolgico planetrio deixando de oferecer alternativas concretas para a superao do problema. Aqui, a reflexo dos "pragmticos" fundamenta-se na defesa do padro de vida das sociedades do chamado Primeiro Mundo. Com outras palavras: o mundo deve sustentar o nvel de consumo das sociedades ricas, o que conduz necessariamente ao no desenvolvimento real dos pases do conhecido Terceiro Mundo. Estes ltimos no somente no tm o direito de recorrer s suas riquezas naturais, como devem redirecionar os seus oramentos pblicos para pagamento de dbitos externos, o que os torna completamente vulnerveis, obrigando-os ainda, num cenrio poltico internacional, a agirem de forma dependente, com episdicas posturas de independncia poltica frente aos significativos conflitos mundiais militares e econmicos. Neste ambiente, os defensores do meio ambiente so definidos como idealistas desconectados da natureza humana e das possibilidades de progresso do homem.

No referido contexto de idias, no casual, portanto, que parte significativa da Cincia Poltica da dcada de 1990 defina a transio de socialismo real dos pases do Leste Europeu para o sistema de economia de mercado como "democratizao", qualificando a existncia da democracia como de inerente ao capitalismo.(7) A economia de mercado, a adeso globalizao, a diminuio do Estado social impuseram-se como requisitos realistas de governabilidade do sculo XXI; elementos sem os quais as sociedades no tero como se desenvolver, fazendo com que vitrias eleitorais da esquerda,(8) em naes da Europa ou da Amrica Latina, cheguem a representar fonte de grandes martrios para a prpria esquerda, de cuja tradio emana a defesa de uma ordem mais justa portanto, como lembraria Horkheimer, com menos liberdade, no sentido que lhe empresta o liberalismo - de organizao do Estado e da sociedade.Como afirmei acima, no enxergo contradio alguma nesta cadeia de comportamento prtico e atitude intelectual. Muito pelo contrrio, a defesa do padro de consumo da maioria dos pases desenvolvidos e a subservincia financeira internacional que domesticam os impulsos de autonomia das sociedades em desenvolvimento se entrelaam e compem uma complexa e interessante realidade a ser compreendida, o que, novamente, conduz-nos s idias de Horkheimer e da tarefa da filosofia na ps-modernidade.

A pergunta central deste ensaio que proponho enfrentar a seguinte: os elaboradores das vises contrrias ao realismo globalizante so mesmo idealistas? Sero estas reflexes impossveis de aplicao s sociedades modernas, constituindo-se em exerccios livres do pensar, sem nexo com a realidade subjacente que se tem diante da porta de casa? J que a idia do socialismo pereceu, e a reflexo de aperfeioamento da democracia em escala mundial, recorri a dois autores que, ao contrrio do que se diz, possuem muito em comum. O primeiro deles Immanuel Kant e o segundo ser Karl Marx. A vasta obra de Kant no poderia ser analisada num escrito de pequeno porte como este. Sequer mesmo qualquer de suas obras isoladamente. Entretanto, escolhi o seu escrito "A Paz Perptua" (Zum ewigen Frieden) por duas razes fundamentais: a primeira delas, representada pela atualidade do debate sobre a construo de uma paz duradoura entre os povos. A segunda, pela natureza tradicionalmente identificada de idealista de sua obra, e principalmente, deste escrito.

necessrio que se esclarea, desde j, que no se trata aqui de saber se Kant era socialista ou no, mesmo porque soaria aventureiro procurar identificar o filsofo de Knigsberg com idias que se emanciparam praticamente aps sua vida e a construo de sua obra. Por outro lado, parece possvel que se indague o qu as idias socialistas e principalmente aquelas do socialismo cientfico poderiam ganhar com as reflexes de Kant e do Iluminismo. Ressalto,ainda, que no h como, no espao deste ensaio, tentar cruzar toda a produo kantiana com a de Marx. Porm, uma comparao a partir de fragmentos que no perderam em atualidade dos dois autores muito tem a oferecer. Desta maneira, os trabalhos de Marx que pretendo analisar para, igualmente, afast-lo de seu carter de pensador despreocupado com participao do povo e democracia sero, alm da Introduo Crtica da Filosofia do Direito de Hegel, seus escritos artigos publicados na imprensa, principalmente - sobre as condies de paz na Europa do sculo XIX e suas reflexes envolvendo valores humanistas. Explicitados os limites do campo de investigao, passo ao momento posterior, qual seja, a busca do no-idealismo em Kant, a partir de sua "Paz Perptua" e da presena de elementos caractersticos do Iluminismo em Marx.

II."A Paz Perptua Um Projeto Filosfico" (Zum ewigen Frieden Ein philosophischer Entwurf) foi publicada pela primeira vez em 1795, por Friedrich Nicolovius, em Knigsberg, que tambm publicou a segunda edio de 1796, ambas pouco mais de dez anos do falecimento de seu Autor, em 12 de fevereiro de 1804. Se se compara com outros escritos de Kant, A Paz Perptua no representa, fisicamente, um de seus maiores trabalhos. Na verdade, este trabalho um de suas mais breves reflexes, surpreendendo sempre pelo contedo e atualidade e por sua condio realista.

Merece registro o fato de que, apesar de o pensamento iluminista no ser desconhecido no Brasil, conforme relata Nelson Saldanha para o caso de Azeredo Coutinho(9) ainda durante o perodo colonial, parece difcil conceber a existncia de reflexo iluminista num espao de sociabilidade mesmo como o Brasil imperial, onde "[o] pensamento brasileiro sofre, no meado do sculo XIX, algumas temperaes e j toma feitios mais representativos, mas ainda tropea e vacila, pois as caractersticas culturais do pas ainda esto em formao e a conscincia ainda bastante precria".(10) Precisamente, essa ausncia de organizao da cultura nacional ressente-se de uma estrutura acadmica fixada, fazendo com que o jornalismo ocupasse referido espao, na grande maioria das vezes, destitudo do rigor cientfico que auxiliaria na solidificao de uma cultural nacional. Em todo caso, no deixou o pensamento brasileiro de produzir. Jos de Alencar, Tavares Bastos, Tobias Barreto, os Viscondes de Uruguai e de Cairu, e Joaquim Nabuco recepcionaram muito das idias iluministas e representam apenas alguns dos momentos autnomos da reflexo poltica brasileira.

O escrito sobre a possibilidade de uma paz eterna de Kant produto de um dilogo com a realidade. Como afirmei, formulado em 1795 a obra denuncia que Kant no era desatento quilo que mais tarde se denominou de Realpolitik. E que motivos poderiam levar um filsofo j respeitado e reverenciado a se preocupar com assuntos terrenos, num instante histrico em que a filosofia apenas interpretava o mundo? Um dos motivos do trabalho de Kant foi a retirada de Frederico Guilherme II da Guerra da Primeira Coalizo, em 1795. Um outro fato provocador do livro, foi a companhia em reflexes sobre a paz de pensadores como Leibniz, Voltaire, Frederico, O Grande e Rousseau; companheirismo de idias que remonta 1713.(11) Observa-se desde logo a ligao com a realidade de Kant. V-se que desde a elaborao da proposta de uma paz perptua seu Autor no se desvencilha do vnculo com a realidade e dela parte para, confirmando sua teoria moral, oferecer ao mundo e na sua condio de cidado do mundo e no de cidado prussiano, a necessidade de um "direito cosmopolita" (Weltbrgerrecht) a substituir o clssico direito internacional (Vlkerrecht). O carter internacionalista de Kant surge aqui de forma evidente como um ponto comum com as reivindicaes materialistas explicitadas por Marx e Engels. A partir da segunda metade do sculo XIX, referidos pensadores indagam-se a respeito da necessidade do universalismo a orientar a formao de partidos socialistas e comunistas, na perspectiva de que a tarefa emancipatria dessas agremiaes devem unir os proletrios de todo o mundo.

O ponto geral mais importante do escrito sobre a constituio de uma paz perptua entre os povos como proposta por Kant aquele de que a construo do bom no representa objetivo passvel de realizao em outro mundo. A paz perptua traduz o esforo de uma construo para o mundo em que todos vivemos, conduzindo de maneira inequvoca que poltica cabe o que necessrio, e no o que simplesmente possvel. Ao trocar a discusso em torno da possibilidade objetiva de uma paz para o mundo, tendo como cenrio de observao a realidade europia, na verdade Kant deseja a extenso do acontecimento para as outras naes do planeta, confirmando o carter universalista de suas proposies.

A paz na comunidade internacional deixar o terreno da utopia para adquirir realidade e foi exatamente isso que estava no pensamento de Kant, quando estruturou o seu trabalho. O trabalho contm duas seces (Abschnitten), dois adicionais (Zustzen) e um anexo (Anhang)(12) mais extenso. Na primeira seco, Kant enumera os seis artigos preliminares para a paz perptua; no segundo, so enumerados os trs artigos definitivos. O primeiro adicional diz respeito sobre a garantia da paz perptua e o segundo estabelece o artigo secreto paz perptua. O anexo trata do desacordo (I) e do acordo (II) entre moral e poltica.

Para Kant o primeiro dos artigos preliminares para uma paz perptua consiste na "inexistncia de tratados de paz secretos que oferea elementos secretos para uma guerra futura".(13) O segundo prev que "nenhum Estado independente (grande, pequeno, no tem importncia este detalhe aqui) no pode ser adquirido por meio de herana, troca, compra ou doao".(14) O terceiro artigo preliminar estabelece que os "exrcitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente".(15) O quarto destes artigos determina que "no deve existir endividamento do Estado em favor de outro relacionado a assuntos de poltica exterior".(16) O quinto e o sexto dos artigos dizem, respectivamente: "nenhum Estado deve intrometer-se na constituio e no governo de outro"; e que "nenhum Estado, em guerra com outro, deve permitir que as hostilidades impossibilitem a confiana recproca na paz futura, tais como assassinatos (percussores), envenenamentos (venefici), ruptura da capitulao e instigao traio (perdullio)".(17)O que se observa que Kant tem como elementos preliminares da paz o que ele prprio definiu como leis proibitivas (leges prohibitivae). O sentido de tais leis proibitivas dizem muito sobre o realismo kantiano. As preliminares na forma de proibies resultam em nada mais do que a constatao de seu Autor sobre a ao dos Estados na poca em que vivia (antecipo que esta viso coincide com a de Marx sobre a conduo das guerras na Europa do sculo XIX, o que ser comentado em tpico seguinte deste artigo), onde a diplomacia secreta, a entrega de Estados vencidos a vencedores, alm da transio entre uns e outros exatamente pelos meios condenados por Kant, a existncia de tropas permanentemente armadas e a decidida disposio dos Estados em promoverem mobilizaes militares, o endividamento para pagamento de danos de guerra, a injuno de Estados em governos de outros de toda as formas possveis, e a prtica de incitamento traio, a contratao de mercenrios etc., correspondiam prtica cotidiana da conturbada vida na Europa iluminista. Este aspecto revelador de como a realidade servia de referncia de pensamento para Kant e de como as exigncias proibitivas dos artigos preliminares revelam o conhecimento ntimo de Kant sobre os mecanismos da poltica e do direito internacional usuais na Europa.

Propor uma conduta restritiva dos soberanos absolutistas significaria cham-los lucidez que, alm de no representar postura idealista, corresponderia necessidade da manuteno da existncia dos prprios soberanos na sua qualidade, agora, no mais de monarcas absolutistas, porm de portadores de uma cultura republicana a incluir o povo no centro de deciso dos assuntos polticos. Talvez pelos motivos de no terem acatado as proposies kantianas preparatrias da paz, o absolutismo auxiliou o seu prprio declnio, sendo substitudo pela burguesia revolucionria. Esta classe manteve quase tudo da poltica externa blica absolutista e, semelhantemente ao absolutismo, sofreu o horror de mais de uma centena de conflitos armados entre os quais as duas Guerras Mundiais que lhe custaram a credibilidade, obrigando-a social-democracia, em razo da vitria bolchevista na Rssia.

A prova da atualidade das determinaes proibitivas de Kant deixa-se confirmar pela histria. Se a partir do sculo XIX a nobreza inicia seu processo de despedida do poder e de sua reivindicada alta dignidade em favor da classe motora do capitalismo industrial, a burguesia imperialista, organiza esta ltima os Estados com seu alcance industrial e blico, exercitando a mesma poltica exteriormente condenada por Kant e que, por ironia dos tempos, revelou resultados prximos entre si. Uma leitura da obra de John Maynard Keynes As Conseqncia Econmicas da Paz - e de suas principais concluses sobre a construo da paz aps a Primeira Guerra Mundial conduzem automaticamente reflexo da paz perptua de Kant e de seus artigos preliminares. Escrito no outono de 1919, o livro de Keynes analisa os pontos principais do Tratado de Versailles, profeticamente convencido de que uma movimentao blica mundial pior e mais intensa que a Primeira Guerra teria tambm no citado Tratado toda a sua fonte. De um modo geral, na elaborao dos artigos preliminares Kant discorre sobre uma nova reorientao da poltica europia, acostumada aos governos absolutistas. Para Keynes, "[p]recisamos antes de mais nada escapar da atmosfera e dos mtodos de Paris. (...) difcil imaginar que o Conselho dos Quatro possa retraar os seus passos, ainda que o quisesse. Portanto, a substituio dos atuais governos europeus uma preliminar indispensvel".(18) No que diz respeito ao endividamento pblico resultante de imposies de um Estado sobre outros preconizados por Kant, Keynes reprova as pesadas imposies econmicas Alemanha. Neste instante da reflexo de Keynes, constata-se como dois artigos preliminares de Kant so vlidos: aquele que condena o endividamento pblico de um Estado por outro, e o da necessidade de que as hostilidades no impeam a confiana para o desenvolvimento de uma paz futura. Segundo Keynes "[s]e adotarmos o ponto de vista de que pelo menos durante uma gerao no ser possvel confiar Alemanha nem mesmo um mnimo de prosperidade; que enquanto todos os nossos recentes aliados so anjos de luz, os nossos recentes inimigos os alemes, austracos, hngaros, etc so filhos do demnio; que ano aps ano a Alemanha precisa ser mantida na pobreza, cercada de inimigos, seus filhos passando fome, ento teremos que rejeitar todas as propostas feitas neste captulo, especialmente aquelas que visam ajudar os alemes a reaver uma parte de sua antiga prosperidade material e encontrar um meio de vida para a populao industrial de suas cidades. (...) Ainda que o resultado nos decepcione, no ser melhor basear nossas aes na melhor expectativa, acreditar que a prosperidade e a felicidade de um pas estimula a dos outros, que a solidariedade humana no uma fico, que as naes ainda podem tratar as outras amigavelmente?". (19)Explicitamente sobre o endividamento diz Keynes: "Fixar pagamentos das reparaes de guerra dentro da capacidade de pagamento da Alemanha tornaria possvel a renovao da esperana e do esprito empreendedor no seu territrio, evitando a frico perptua e a oportunidade de presses imprprias abertas por clusulas do Tratado cuja aplicao impossvel".(20)Como muito pouco daquilo recomendado por Keynes - bem como por Kant despertou interesse ou compromisso dos homens de Estado que detinham a capacidade decisria durante os acertos sobre o fim da Primeira Guerra, o destino parece no ter perdoado tanta desateno. Ao final de suas concluses, escreveu ele que "(...) uma vitria reacionria na Alemanha seria considerada por todos uma ameaa segurana do continente, pondo em perigo os frutos da vitria e os fundamentos da paz".(21) As advertncias de Keynes dirigiram-se contra a possibilidade de sucesso de grupos reacionrios na Alemanha, o que no tardou a ocorre em janeiro de 1933, prenunciando um novo inferno sobre a Europa, causado pelas prprias potncias europias. O que resulta interessante que Keynes no pode ser definido como um idealista, embora confirmasse o que Immanuel Kant cem anos antes havia escrito. Explicito aqui o entendimento de que ao Tratado de Versailles no pode ser imputada a responsabilidade da ecloso da Segunda Guerra Mundial. A partir dos anos sessenta, Horkheimer trouxe novos elementos compreenso filosfica do Nazismo, onde se perguntava como pode a razo tambm ser utilizada para a concretizao da barbrie. Afinal, o Estado alemo nazista direcionou todos os seus esforos materiais no sentido de executar a poltica de extermnio dos judeus da Europa, na forma da conhecida como "soluo final" (Endlsung); ou seja, uma proposta racionalmente articulada e sustentada pela direo do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemes (NSDAP) desde o incio de sua ascenso ao poder.III.Na segunda parte de sua obra, definiu Kant os artigos definitivos necessrios paz perptua. Se aos preliminares competiam a preparao da ambincia de uma governabilidade favorvel paz, os definitivos traziam proscries permanentes a serem adotadas pelos Estado, aps, deliberadamente, resguardarem-se de suas atitudes instigadoras de sentido belicoso. O primeiro dos artigos definitivos diz que a "constituio de todos os Estados deve ser republicana";(22) o segundo, afirma que "o direito internacional deve fundar-se num federalismo de Estados livres"; e o terceiro prev que "o direito cosmopolita deve limitar-se s condies da hospitalidade universal".(23)

O republicanismo de Kant contm elementos inovadores e radicalmente democrticos. Observador atento da realidade poltica que o cercava, Kant constitui-se um defensor da soberania popular. A transparncia inerente ao republicanismo em oposio ao segredo, elemento fundamental na diplomacia secreta, causadora de todas as guerras e incapaz de promover a paz e o povo no centro de todas as decises polticas podem mais facilmente conduzir paz eterna do que aquilo que se at hoje foi experimentado por intermdio dos mecanismos polticos conhecidos. A publicidade dos atos governamentais constitui-se em essencial para a sobrevivncia da repblica. No por acaso, afirma Kant, no segundo anexo da Paz Perptua, que "todos os atos respeitantes ao direito de outros homens, cuja mxima no compatvel com a publicidade, so injustos".(24) A publicidade, nos dias atuais constitucionalizada em quase todas as naes democrticas, tem tornado possvel a ao do povo na direo de alterar o rumo de decises polticas importantes. Exemplo recente so as eleies da Espanha ocorridas em maro de 2004, logo aps atentados sofridos, e que puniram um governo conservador, que, no somente levou a nao guerra, mas, sobretudo, escondeu verdadeiras informaes sobre a autoria do atentado a fim de preservar a si prprio, e no a governabilidade democrtica.

Destaca-se na perspectiva kantiana, sobretudo, o fato de que numa constituio republicana o povo deve decidir se vai ou no guerra. Isso pelo fato de que, at os dias presentes, aquele que suporta o nus da guerra no decidiu por ela; e quem decidiu, no suporta nus algum, como perdas pessoais e patrimoniais, alm da dolorosa tarefa da reconstruo fsica e psicolgica de quem sobreviveu. Este ltimo, o soberano absolutista e anti-republicano "que no companheiro do estado, porm proprietrio do Estado permanece em sua tvola, com sua caada, em seus castelos, nas festas da corte, nada paga pela guerra",(25) e tampouco constri qualquer relao direta com os danos por ela causados. Desta forma, somente uma realidade republicana capaz de impedir os instintos blicos dos monarcas, educados em ambientes proporcionadores de demonstrao de superioridade e glria sustentadas na direta razo de suas vitrias blicas de humilhao de povos contra povos. A repblica para Kant continha o antdoto a frear tal irracionalidade. J no primeiro dos artigos definitivos, percebe-se o no idealismo de Kant, bem como a confirmao da, como oportunamente registra Soraya Nour, "ntima ligao entre a organizao interna de um Estado e a possibilidade de uma coordenao internacional".(26) Novamente, a exemplo do caso dos artigos preliminares, Kant no abandona o critrio internacionalista de suas concepes.

Para alm da relevncia da forma republicana e de seu vnculo com a manifestao direta da vontade popular o que corresponde materializao da soberania popular essa forma de organizao poltica favorece o controle da poltica externa de qualquer Estado por meio do parlamento. Este apenas mais um dos instantes em que Kant, antecipando-se teoria da democracia atual, entrega ao legislativo a direo do Estado. Referida concepo j fora manifestada na Metafsica dos Costumes. "Todo Estado contm em si trs poderes, isto , a vontade geral une-se em trs pessoas polticas (trias politica): o poder soberano (a soberania), que reside no poder legislativo; o poder executivo, que reside em quem governa (segundo a lei) e o poder judicirio, (que possui a tarefa de dar a cada um o que seu, na conformidade da lei), na pessoa do juiz(27) (...)".Este olhar revelador, ao mesmo tempo, da contemporaneidade de Kant e de sua capacidade em superar criticamente o seu momento histrico. Enquanto o liberalismo, como mostra Ellen Wood, defendeu os direitos do parlamento contra a coroa mas para fazer a "revoluo" dos "oligarcas de 1688, em nome de sua liberdade de sua propriedade e de seus servos",(28) Kant percebe num parlamento livre parte importante da soluo para o problema da igualdade entre os homens, devendo, em momentos cruciais, como uma declarao de guerra, no ser suficiente a deciso do parlamento, mas a de todo o povo. Certamente entre os que suportariam o nus da guerra estavam os servos, elementos tradicionalmente excludos dos processos decisrios defendidos pelos liberais.

Entendimento seguro a respeito do postulado de Kant que afirma a supremacia do poder legislativo presente na obra de Norberto Bobbio, quando este, recorrendo Metafsica dos Costumes, entende que "Apesar da afirmao da subordinao de um poder ao outro, o fundamento da separao dos trs poderes ainda a supremacia do poder legislativo sobre os outros dois poderes: o poder legislativo deve ser superior porque somente ele representa a vontade coletiva".(29) Antecedendo a Immanuel Kant, Jean-Jacques Rousseau defendeu tambm a supremacia do legislativo: "O poder legislativo o corao do Estado, o poder executivo o crebro, que d o movimento a todas as partes. O crebro pode cair em paralisia e o indivduo prosseguir vivendo. Um homem fica imbecil e vive, mas assim que o corao cessar suas funes, o animal est morto. No pela lei que o Estado subsiste, mas pelo poder legislativo".(30) O republicanismo, para Kant, traduz a melhor forma de controle do parlamento sobre os governos.A interpretao do postulado republicano de Kant oferecida por Soraya Nour(31) avana em qualidade, na medida em que essa autora adotando o republicanismo democrtico como exigncia da paz no plano internacional, faz com que a noo de democracia poltica veja-se inexoravelmente acompanhada de sua verso social, ou seja, com a satisfao de condies materiais dignas de existncia a todos os habitantes de um Estado. Por intermdio da articulao entre os dois parmetros que se torna possvel crer que o reclamo republicano no somente comportar dilatao em si, como deve ser necessariamente conjugado com os outros artigos definitivos da paz perptua.

O segundo artigo definitivo prev que necessria ao direito internacional a fundamentao a partir de uma federao de Estados livres. O pressuposto da liberdade dos Estados no se desvincula dos artigos preliminares, onde um dos requisitos a independncia financeira entre os Estados de modo a garantir o exerccio da livre ao de cada um deles no mbito da conjuntura da poltica internacional. No ser bastante que a federao de Estados livres seja formada; primordial que ela seja respeitada e solicitada pelas partes para a efetiva resoluo dos conflitos que so impostos agenda poltica. Observando-se a realidade recente que a crtica kantiana recebe mais em atualidade. Decises unilaterais de naes econmica e militarmente mais fortes desacreditam qualquer tentativa de federao de Estados, tendo como resultado imediato a deflagrao permanente de conflitos e a incapacidade de soluo dos j existentes. esse aspecto revelador de uma atualidade positiva das idias kantianas, a crena na existncia de entidades internacionais armadas para proteo recproca como agentes capazes de postularem a construo da paz, tem levado parte considervel dos "realistas" a descredenciarem a paz perptua kantiana, acusando-a, como sempre, de idealismo.(32) Ocorre que entidades como a Organizao do Tratado do Atlntico Norte OTAN e o Pacto de Varsvia no resolveram os conflitos que lhes impuseram as condies herdadas desde Segunda Guerra Mundial , ainda que em diversas ocasies tenham esses pactos militares substitudo a Organizao das Naes Unidas. A precria situao dos pases que compem a antiga Iugoslvia, os embates nas repblicas do Cucaso e sua respectiva ausncia de soluo equacionadora dos distintos interesses tnicos e econmicos leva a crer que alianas militares possuem limites mais exguos que organizaes de Estados, onde o debate exaustivo pode conduzir a solues duradouras.Para Norberto Bobbio, a exigncia de uma Federao de Estados livres representa a garantia do direito interno de cada Estado. Somente desta forma poder um Estado pequeno sobreviver e ver que sua produo normativa republicana no sofrer assaltos do mais forte, ou que, em se concretizando tal previso, a comunidade federada possa agir de maneira eficaz e restaurar o status quo anterior de paz entre os povos.

O terceiro artigo definitivo de Kant diz respeito s regras da hospitalidade universal que deve limitar as condies do direito cosmopolita. Em mencionado contexto, no deve um estrangeiro ser tratado com hostilidade quando se desloca para um outro Estado, mas sim bem recebido e aceito na sua condio. O artigo definitivo da paz perptua denuncia-se como resultante da necessidade de se encontrar solues adequadas para a luta tnica, ainda presente em solo europeu. A tolerncia com outras culturas significa uma das melhores alternativas de edificao de uma paz entre os povos. No sem razo ilustra Kant sua idia de hospitalidade na firme condenao da chegada do europeu em terras estranhas na condio de dominador e explorador. Kant considera um verdadeiro terror a chegada do europeu na "Amrica, nos pases negros, nas ilhas do Cabo, que eram, antes de seu descobrimento, terras que no pertenciam a ningum, j que seus habitantes no significavam nada para os europeus. Nas ndias Orientais (Hindusto) desembarcaram eles apenas como agentes de comrcio, mas as tropas induziram opresso dos nativos, a instigao em seus diversos Estados, guerras demoradas, fome, rebelio, traio e toda sorte de males que castigam o gnero humano". (33)

A consolidao de um direito cosmopolita fundado na hospitalidade emerge como artigo definitivo da paz, uma vez que a chegada de estrangeiros em outros Estados somente ser pacfica se garantida pela lei universal da hospitalidade. Os atuais conflitos tnicos desencadeadores das mais significativas guerras nos Blcs e na repblica centro-africana de Ruanda, ambas no segundo lustro dos anos noventa exibiu ao mundo, novamente, que, apenas argumentativamente, se a paz eterna como proposta por Kant no passa de idealismo, no deixa de serem estas ponderaes produto da mais arguta observao ante a realidade que se tinha. De uma construo to decididamente baseada em acontecimentos reais no h como deixar de reconhecer na sua parte propositiva algum realismo, ou melhor, uma totalidade realisticamente concatenada.

O carter moderno da hospitalidade universal no se encerra aqui. Ingeborg Maus atualiza a reflexo de Kant sobre a integrao do estrangeiro a uma sociedade como aquele que adere livremente ao pacto constitucional da sociedade onde deseja permanecer, o que exclui qualquer restrio tnica, religiosa, cultural: "Por esta razo, refora Kant que, independente de origem e tnica e geogrfica, somente podem pertencer ao mesmo solo aqueles que concordam com a lei fundamental do contrato original".(34) Se aos cidados estrangeiros foi concedida a oportunidade de escolher livremente sua nova ptria, nada se poderia opor a tal vontade, uma vez que a lei do pas hospedeiro previa, democraticamente, tal possibilidade. Confronta-se referida exigncia com a Constituio da Repblica de 1988, outra no ser a concluso de que, no Brasil, o princpio de uma hospitalidade universal resta positivado: os estrangeiros e sua descendncia podem viver pacificamente no Brasil, e, estes, como brasileiros sero considerados, podendo alcanar qualquer dos postos de direo poltica do Pas, como diversos exemplos bem demonstraram. A idia da hospitalidade no se deixa confundir como o bem receber ou com a caridade em tempos de guerra. Na verdade, a hospitalidade preconizada por Kant diz respeito necessidade de os povos conviverem entre si, reconhecendo-se reciprocamente na legitimidade de suas crenas, culturas, formas de comportamento etc., sem hierarquizao de qualquer ordem. A hospitalidade redunda mais na construo futura da harmonia entre os homens, objetivando a aceitao das diferenas, favorecendo uma convivncia pacfica. A cultura do pacifismo realista somente derivar de longos perodos ininterruptos de experincia de convivncia entre povos diferentes, dispostos a se receberem uns aos outros, sem proibies que impliquem no abandono da prpria identidade enquanto estiverem uns no espao territorial dos outros. Aqui se encontra a viso de Kant para o desenvolvimento dos direitos humanos, num plano interno, mas com forte ressonncia no patamar externo. Os povos devem sempre estar prontos para receber aqueles que, por diversas razes, necessitam deixar seus espaos originais.

Concebidos desta maneira, os artigos preliminares e definitivos da paz eterna articulam-se entre si a partir de uma observao histrica concreta de seu Autor e o contexto de sua vida. Os artigos formuladores da paz kantiana em nada significam idealismo e sua necessidade na poltica externa da atualidade parece confirmar o seu realismo pela razo de que a previso de que as naes resolvam seus conflitos segundo o direito internacional, por elas prprias estabelecido j que so repblicas democrticas e num foro internacional pelos diferentes pases fundado e mantido. Concebida desta maneira e comparada com os desafios da atualidade, a viso de uma paz eterna abandona o terreno do impossvel, uma vez que nada de seus parmetros de fundao requer a transformao radical dos homens em outro tipo de homem. A paz eterna como pensada por Kant aplicvel aos homens que vivem na Terra e nela querem permanecer.

A tentativa de Kant em propor uma paz perptua no se esgota nos artigos preliminares e definitivos. Integram o texto e dele no se dissociam em sentido os dois adicionais e os anexos e as reflexes neles contidas.

IV.O primeiro dos adicionais da Paz Perptua de Kant chama-se " Da Garantia da paz perptua". Essa garantia estaria no princpio de que a "grande artista, a natureza, por meio da discrdia entre os homens, mesmo contra a sua vontade, faz surgir a harmonia".(35) Kant entende que a povoao do planeta que levou o homem a habitar as regies mais inspitas a glacial e a desrtica foi uma providncia da natureza. A "grande artista" forneceu o camelo para que o deserto fosse atravessado e animais com "peles, carne e gordura para o fogo" para que o homem vivesse em regies frias. A ocupao destes espaos distantes entre si foi causada pela guerra, mas a convivncia entre estes mesmos homens se mostra mais necessria ainda. Esta convivncia somente pode ser possibilitada pelo "esprito do comrcio que se apodera mais cedo ou mais tarde de todos os povos" que inconcilivel com a situao de guerra; o dinheiro, pois, representa o mais "fiel dos meios subordinados ao poder do Estado, obrigando no por motivos morais que se faa a "nobre paz".(36)

No podem as palavras de Kant envolvendo o comrcio levarem a crer que a soluo de uma paz perptua estaria no estabelecimento do comrcio cuja convivncia com a guerra impossvel. aconselhvel no esquecer que Kant no ignorou o papel do comerciante europeu ao por os ps em terras americanas ou asiticas, estabelecendo uma forma destruidora de comrcio entre distintos povos. A possibilidade comercial possivelmente eliminadora da guerra explicitada neste adicional por Kant corresponde ao comrcio para satisfao das necessidades dos homens em virtude de seu habitat natural. Mercadorias que no podem ser produzidas nas regies frias do globo, por exemplo, devem ser trazidas por homens que vivem em outras regies; e aqueles que fazem dos plos sua morada na Terra podem abastecer com sua produo outros que vivem em situaes climticas distintas. Reafirmando o contedo no idealista, Kant no desconhece o papel do dinheiro originado pelo comrcio nem por isso afirma-se que o econmico domina o pensamento de Kant elevando-o condio de "mais fiel dos meios" disponveis ao poder do Estado para o desenrolar de suas aes concretas. Podem e devem os Estados comercializarem entre si, objetivando tambm a manuteno da paz, aqui em explcita substituio guerra que separou homens e os ps em geografias to distanciadas umas das outras.

O segundo adicional de Kant paz eterna trata do papel dos filsofos perante os governos. Relao dilemtica desde Plato - intelectuais/filsofos, de um lado, e poder, de outro - tem um considervel acmulo na histria a oferecer, seja em favor, seja em desfavor de uma paz duradoura entre os povos. A transcrio com a qual iniciei este artigo traduz a idia kantiana da funo do filsofo nas sociedades. No h como o filsofo se distanciar do contexto em que vive, no devendo exercer ele a tarefa meramente especulativa longe de todos, retirando-se para um ermo local. O filsofo deve pensar a partir do concreto e colocar o seu saber a servio da sociedade onde est, de modo a ser tambm um construtor da paz entre os povos. Na verso de Kant, o filsofo abandona sua descrio tradicional e pedante de homem que no tem dilogo com o concreto, e emerge como um ator poltico que deve ser ouvido pelos governantes; estes, sim, devidamente legitimados pelo povo, exercero o governo aconselhados tambm pelos filsofos. Indiscutivelmente inovadora a posio de Kant, a atuao dos intelectuais constitui o cerne do segundo adicional, ou seja, o "artigo secreto" da Paz Perptua. Ressalte-se que Kant no afirma secreto pelo fato de que somente uns poucos podem ler ou compreender esse dispositivo ou porque no deve ele ser mostrado ao pblico. Cumpre lembrar que o artigo secreto foi acrescido obra em 1796 e que o significado do termo "secreto" nesta parte da obra deriva do fato de que "[u]m artigo secreto nas negociaes de direito pblico pode se considerado, objetivamente, como uma contradio, desde que tratado a partir de seu contedo; subjetivamente pode ser secreto na medida em que avaliado pela condio da pessoa que o dita, uma vez que esta pode ter como inconveniente anunciar-se como autora".(37) Para Kant o sentido do artigo secreto pode ser definido como uma perspectiva de humildade, de retrao pessoal: o filsofo no superior a ningum na sociedade e, para que objetivamente no paire dvidas sobre sua sincera humildade diante da complexidade dos fatos da vida social e poltica de cada Estado, deve ele ser ouvido secretamente, para que no lhe cresa a vaidade, a certeza da superioridade por suas qualidade intelectuais. Assim que para Kant, a mxima do artigo secreto deve ser: "As mximas dos filsofos sobre as condies da possibilidade da paz pblica devem ser ouvidas pelos Estados preparados para a guerra".(38)

Para Bobbio, "Kant no tem iluso alguma de que os polticos se tornem filsofos, nem tem a pretenso (este, sim, seria um sonho de visionrios) de que os filsofos criem os polticos. Pede, por um lado, que os polticos formem os polticos e deixem aos filsofos a liberdade de formar os filsofos. Pede, por outro lado, aos filsofos no se fecharem em torre de marfim, ma dirigirem-se aos polticos com os seus ensinamentos derivados de uma crtica desapaixonada da razo". (39)Bobbio esclarece com preciso o teor do artigo secreto de Kant quando destaca a importncia da liberdade cultural e intelectual como elemento proporcionador da paz pblica. Dessa maneira, o princpio interno ao Estado formador da paz perptua no passeia ao largo da atividade intelectual e deve afastar o filsofo da tentao de servir apaixonadamente ao poder. Como disse, esse ponto do dilema da relao entre filsofos e poder representa um desafio at os dias de hoje. No quero afirmar que a impossibilidade na construo de uma cultura de paz perptua - interna ao Estado bem como a ausncia do favorecimento de uma poltica exterior do Estado que se deixe caracterizar pela busca objetiva da realizao da paz encontrem sua causa maior na participao irracional baseada na vaidade dos filsofos no exerccio do poder. A diversidade dos nveis de sociabilidade que se vive nos dias de hoje torna impotente mesmo a participao do filsofo bem intencionado nos assuntos dos governos, os quais parecem mais decididos especialmente quando se considera os conflitos blicos deflagrados no sculo XX a se guiarem predominantemente por seus interesses econmicos expansionistas imediatos. Nesta direo, os filsofos teriam apenas funo de dilogo, de chamar a ateno para conseqncia cuja obstinao cega grande parte das vezes os governantes. John Maynard Keynes foi apenas um exemplo, como se viu, pelo contedo quase proftico de suas previses sobre o futuro da Europa sada da Primeira Guerra Mundial, onde a paz fora feita tendo como suporte a humilhao de povos diante de outros povos. Novamente, no intenciono fortalecer teses conservadoras que condicionam o sucesso do fascismo e do nazismo s responsabilidades alheias vontade de italianos e alemes. Estas sociedades desempenharam funo importante no surgimento e consolidao dos regimes totalitrios do perodo entre-guerras e sem o apoio de seus povos no teriam tais regimes atingido a magnitude que obtiveram (40)

O projeto de Kant de uma paz eterna, ou melhor, a filosofia da paz de Kant no idealista. Este argumento central sustenta, precisamente, neste ponto, o que podem as idias socialistas ganharem com Kant e seu iluminismo. Apoiada por uma base material jurdica organizada, a paz eterna, como se viu, evita rotulaes sobre a natureza humana, no ignora as dificuldades naturais que exigem enfrentamento por parte de governantes e sociedade. A repblica como parmetro para a formao do Estado que pressupe a transparncia e a participao de todos; o abandono da fixao de definir as aes governamentais como boas ou ms, bem como a defesa de que produo e manuteno de paz entre os povos uma exigncia racional da realidade, dissipam dvidas quanto ao idealismo imobilizador que se atribui, tradicionalmente, filosofia da paz de Kant. Oliver Eberl resumiu as razes pelas quais a filosofia da paz de Kant no pode ser definida como idealista em razo de: "1. O escrito A paz Perptua no projeta nenhuma utopia. 2. O projeto de Kant no puramente orientado num contedo moral-idealista, mas sim numa teoria do direito. O direto permite a mediao da realidade poltico-social com aquela das exigncias da razo. 3. Kant descreve uma figura do homem que corresponde uma inclinao racional, sem se constituir numa descrio moralmente boa. 4. O escrito da paz no objetiva somente a paz, mas tambm a democracia e os direitos humanos, trazendo tais elementos para um encadeamento, o qual um deles no pode ser alterado em favor de somente um outro dos elementos, sem alterar a realizao de todos".(41) A proposta de Kant no pode ser vista como utpica pela razo de essa mesma paz ter que ser fundada pelo homem, haver de ser produto da criao humana - e no cair do cu alm de possuir como base o direito, o que faz "da teoria da paz de Kant, conseqentemente, uma teoria do direito". (42)

Realizadas estas consideraes sobre a materialidade da filosofia da paz kantiana, passo a relacionar alguns de seus aspectos com idias presentes nas reflexes de Karl Marx.

V.Talvez no exista na histria do pensamento moderno um terico causador de tanta polmica como Karl Marx. De incitador da desordem a filsofo de grande flego; de mero provocador de costumes fceis sua dialtica materialista no passaria disso a idealista, interminvel o fio de adjetivos a qualificarem ou desqualificarem suas proposies. O tom incisivo da grande parte de seus escritos, sua vida marcada por dificuldades de toda ordem financeiras, de sade e de relacionamento com membros de sua famlia na Alemanha exerceram uma funo nada desprezvel em sua mente, de tal forma que, para muitos, pouco teria Marx a oferecer ao mundo do final do sculo XX e alvorada do XXI, especialmente pelo colapso do "socialismo real existente" do Leste Europeu. Nesse ponto, a materialiade to cara a Marx seria responsvel pela comprovao de seu engano terico. Concebido sob este prisma, Marx no dialogaria com o Iluminismo ou com valores democrticos.Modernamente, teorias do final do sculo XX registram as limitaes de Marx em explicar sociedades produzidas pela globalizao: a obra marxiana no daria conta de temas como incluso/excluso, j que especialmente em sociedades do capitalismo perifrico, como a brasileira aqueles no includos, mesmo que pobres do sistema capitalista, no passariam de um "exrcito de reserva", ou seja, o lmpen-proletariado que no desempenharia qualquer funo importante na formao do partido revolucionrio, tampouco na consecuo de estruturao do futuro Estado comunista. Neste sentido, segundo Mezros, a filosofia da comunicao, principalmente, tende a ocupar um espao at ento indito no terreno de seduo explicativa para o sculo XXI. Mezros procura demonstrar o engano de Jrgen Habermas ao qualificar que a "confiana na experincia histrica e socioeconmica errnea e sofre de um vis produtivista.(43) Desmistificando esta concepo e confirmando a compreenso de Marx de que a complexidade do capitalismo contraditria, que no h como se pretender retirar das estruturas econmicas e polticas do capitalismo a unanimidade da conspirao e ao conjunta entre si, Mezrios lembra que "a verdade que Marx originou a idia de socialismo ou barbrie opondo-se de maneira mais ntida possvel aos vis produtivista a ele atribudo. Isso foi continuado por Engels e Rosa Luxemburgo, que diagnosticaram, no mesmo esprito, a relao entre os desenvolvimentos produtivos e as tendncias destrutivas do avano capitalista". (44)Com esta pequena amostra, v-se a amplido das fronteiras de Marx, reconhecedor da pluralidade de fatores a atuarem nas sociedades capitalistas e que transformam seu funcionamento numa engrenagem complexa. Em outras palavras, para Marx a mecnica do capitalismo no simples de explicar, e algum ter que se dedicar a essa tarefa, a fim de subsidiar aqueles que assumiro o poder pela opo revolucionria, objetivando transformar o homem em senhor de si prprio destino. Incorporando esta viso da economia capitalista que Marx afirma que uma mercadoria qualquer no tem seu preo somente pelo valor do trabalho nela empregado: ela traz consigo a alienao da sociedade capitalista, as disputas entre os produtores e todas as tenses polticas e sociais as jurdicas no esto excludas - existentes na sociedade . Nesta direo, as palavras de Engels, em carta a H. Starkenburg de junho de 1894 so elucidativas: "O desenvolvimento poltico, jurdico, filosfico, religioso, literrio, artstico etc., toca o econmico. E todos eles reagem no nvel econmico e uns sobre os outros.No se trata de afirmar que a condio econmica sozinha a causa ativa de tudo e, no mais, o resto possui apenas um efeito passivo. , precisamente, a alternncia dos efeitos sobre o fundamento da contnua necessidade econmica a se realizar, em ltima instncia. No se trata de, como se deseja aqui e acol e de forma confortvel, afirmar o efeito automtico da economia, mas os homens fazem a sua prpria histria, porm num dado e condicionado Milieu". (45)Porm, onde residira o ponto de dilogo possvel entre Marx e Kant e as idias iluministas? Por ocasio do primeiro centenrio de Kant, celebrado em fevereiro de 1904, surgiu o debate no espao germnico de cultura, que ocupou boa parte dos intelectuais como Franz Staudiger, Franz Mehring, Hans Jrg Sandkler, Max Adler. Tais autores, dentre outros, refletiram sobre um possvel dilogo entre Kant e Marx, posicionando ora favoravelmente sua possibilidade, ora contra.Anteriormente limitada analise que planejo realizar sobre o tema paz em Kant e em Marx, parece importante que se ressalte o valor do indivduo para um e outro pensador. Para Kant, ainda que no expressamente em sua Paz Perptua, a lei moral individual que deve ser vlida para todos, significa a liberdade individual de autodeterminao que torna todo homem livre. Especificamente na sua filosofia da paz, como se viu, Kant exige as repblicas livres de homens livres em sua individualidade como um artigo preliminar para a paz eterna entre si. O homem livre de Kant e do Iluminismo aquele liberto do jugo absolutista. O de Marx o liberto da alienao capitalista. Nos dois casos, a liberdade individual, de o homem ser senhor seu prprio destino, uma exigncia fundamental para a transformao da sociedade mundial na direo de uma paz eterna, como quer Kant ou no rumo socialista emancipatrio, que se dar por meio da revoluo organizada pelo proletariado como almeja Marx. Na sua obra O Capital, esta referncia de Marx explcita: a propriedade privada capitalista "a primeira negao da propriedade privada individual fundada no prprio trabalho".(46) Franz Staudinger registra essa conjuno: "Aqui determinamos o ponto onde o atual socialismo relaciona-se intimamente com a idade clssica, embora no ligados como uma conseqncia direta. Porm, exatamente pelo fato de que ele [o socialismo] no se vincula forma mais elevada do esprito clssico, mas sim sua descendncia, no teve como recepcionar completamente deste os seus contedo e mtodos de pensamento".(47) Por sua vez, Max Adler identifica convergncia entre Kant e as idias do socialismo. Para Adler, a condenao expressa de Kant indiferena da nobreza, na iminncia e durante guerra, encastelada em suas frvolas atividades, corresponde crtica de Marx ao militarismo e armementismo inerente natureza do Estado capitalista para sobrevivncia. (48)Assim como Kant, condicionava Marx a liberdade do homem sua ao permanente, a um agir material e teoricamente neste sentido. Se a proposta de paz eterna kantiana um projeto concebido a ser realizado pelos homens na Terra, para Marx desempenham filosofia e ao humana funo central. Desta forma, "[c]omo a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas tericas (...). A emancipao do alemo a emancipao do homem. A cabea dessa emancipao a filosofia; o seu corao o proletariado".(49) importante salientar que da emancipao do alemo no depende aquela dos homens no mundo. O significado que Marx confere aos alemes para faz-los despertar da situao concreta atrasada na qual se acham, desde que comparados com outras sociedades da Europa. No sem razo, na mesma obra, lembra Marx que a "Alemanha encontrar-se- um dia no mesmo nvel da decadncia europia, sem que tenha vivido o nvel europeu de emancipao".(50) A tarefa da atividade abstrata, por um lado e a qual tanto esmero dedicam os alemes, significa "o sofrimento abstrato",(51) por outro lado. Referida dinmica, encontrada no pensamento da filosofia do direito de Hegel, fortemente criticada por Marx como causa do atraso scio-poltico do Estado alemo, tornando-lhe impossvel o "gozo"(52) de seu prprio refinamento terico. Marx est, portanto, muito distante de qualquer insinuao relativa categorizaes hierarquizantes de modelos como "povo escolhido" ou adjetivao semelhante.Em direo oposta a Staudinger e Adler, Franz Mehring, social-democrata austraco de primeira hora, lembra que o sentido da tica em Kant e Marx seria idntico: o que os afasta de forma inconcilivel a respectiva "fundamentao analtica". No haveria possibilidade de dilogo entre o recurso medieval separao do Estado entre cidados do Estado (Staatsbrger) e membro/scio do Estado (Staatsgenossen) - que Kant procura unificar - e a fundamentao "histrico-causal" do desenvolvimento econmico oferecida por Marx. Esta diviso terica no tornaria aceitvel uma aproximao entre um e outro.(53)No foram os "novos kantianos" os nicos a defenderem um dilogo entre Iluminismo e o iderio socialista, tampouco se encerrou essa discusso com as comemoraes do centenrio da morte de Kant. No que diz respeito alienao prpria entre escravos e senhores nas suas inter-relaes, pontua Friedrich Mller as distintas concepes que separam Hegel de Rousseau. Para o segundo, a compreenso que o escravo tem de si enquanto escravo e o senhor, enquanto senhor, e no na qualidade de homens, redunda na alienao de sua prpria existncia. Analisada a situao ante o prisma da alienao a que a existncia da propriedade privada conduz o homem, outra no pode ser a concluso de que o sentimento de liberdade ter que enfrentar a alienao para o estabelecimento de homens livres entre si e que se compreendam iguais.(54)Os breves escritos de Marx sobre guerras, ou de sua iminncia, so reveladores de sua qualidade de observador atento a conflitos e suas verdadeiras razes. Perturbadores e, ao mesmo tempo, conciliadores necessrios da ordem poltica mundial e do prprio capitalismo, os embates levados a cabo pelas naes europias na Europa e fora dela, denunciavam a complexidade do capitalismo e de seu mercado que Marx de forma to radical condenou.(55) Eis um ponto onde a matriz da observao de Kant e de Marx se comunicam: a Realpolitik que os cercava impunha-se como fonte de suas formulaes. Em Marx, so muitos os textos sobre as mobilizaes na Europa, a busca na verdadeira inteno dos Estados em estado de "pr-beligerncia", bem como sobre as reais intenes da paz celebrada, quase sempre de forma secreta. No nmero 13 (de 30 de julho de 1859) do peridico Das Volk, publicou Marx um artigo intitulado "Invaso!". So as seguintes suas palavras iniciais:"De todos os dogmas da poltica beata de nossos dias, nenhuma serviu tanto desgraa quanto a que diz que se queres a paz prepara-te para a guerra. Essa grande verdade que de fato da se extrai, que ela contem uma mentira, a chamada para uma batalha que atrai toda a Europa s armas, produzindo uma fantica servido nacional, onde cada tratado de paz considerado com uma nova declarao de guerra e assim, com cobia, explorado".(56) No mesmo texto, Marx lembra ainda que enquanto a "ponderao" secundria da diplomacia parlamentar satisfaz-se com esse ditado, tem-se o incio da guerra das civilizaes, cuja "frvola barbrie" pertence ao melhor dos tempos do "predadorismo", em que se vincula a "refinada perfdia" dos perodos modernos exclusivamente ao "imperialismo da burguesia".(57) Aqui, como em Kant e no Iluminismo, a crtica ao realismo vulgar cede espao racionalidade explicativa.Anlises sobre a conjuntura blica da Europa, bem como de suas origens, no escaparam do olhar de Engels. Em texto seu publicado a 23 de abril de 1859 no New-York Daily Tribune, intitulado "O Planejado Congresso da Paz", a respeito do Congresso Europeu para a Paz, escreveu Engels que: "Este congresso se que ele deveria acontecer - provar-se- por isso apenas como uma mentira, uma ironia, uma armadilha, em vez de aparecer como uma sincera ou pelo menos honrada tentativa de produzir a paz. Quase no se pode duvidar que todas as grandes potncias esto convencidas de que toda esta oportunidade ser apenas uma mera formalidade que se executa com o fim de enganar o pblico, encobrindo-se outros planos que no podem vir luz". (58)Quatro interessantes artigos de Marx e Engels analisam as condies objetivas de situao econmica, de armamentos, de animais e homens, e de maquinrio blico das naes europias, autorizando-o a enxergar a iminncia de conflitos armados. Todos estes artigos foram publicados no New-York Daily Tribune, ainda no ano de 1859: "O Pnico do Dinheiro da Europa" de Engels e Marx (publicado em 13 de janeiro); "A Posio de Lus Napoleo", de Marx (em 18 de fevereiro); "O Exrcito Francs" (em 24 de fevereiro) e "Os Recursos Alemes para a Guerra, ambos de Engels" (em 12 de maro).(59) Em todos os escritos esto presentes preocupaes com: a) a diplomacia secreta; b) o custo da manuteno de exrcitos e de sua constante corrida em superao dos Estados uns dos outros; c) o endividamento pblico a prejudicar trabalhadores, beneficiando alguns poucos; d) a conquista de um Estado por outro em virtude da necessidade de cobrir gastos realizados com guerras ou com vocaes territoriais expansionistas. Todos estes elementos formam o olhar de Kant a propor a paz eterna entre os povos. Se em Kant essa preocupao devidamente formulada, embora no se possa dizer o mesmo de Marx e de Engels, no h como deixar de concluir, por outro lado, que a condenao das guerras por estes dois ltimos pensadores se d por fora do mesmo impulso: o de superao da alienao do homem, o concreto propsito de emancipao de suas condies objetivas por intermdio de aes igualmente objetivas. Neste sentido, mais irreal que o socialismo a esperana de que o capitalismo consolide a democracia ou a igualdade entre os povos, como pensou Marx. Para Kant, irreal e utpico o desejo de se construir uma paz perptua tendo como ponto de partida a manuteno da situao poltica da Europa poca de seu escrito sobre a paz eterna.Por fim, um dos pontos onde mais se cruzam Marx e Kant/Iluminismo o do universalismo. Kant, na sua filosofia da paz, entende-se como um cidado do mundo. Naturalmente que esta definio j havia surgido na Metafsica dos Costumes, e permanente em quase toda a obra kantiana. qualidade de cidado do mundo equivale a aceitao democrtica e fraterna do outro, de outras culturas; a recepo dessas outras culturas no prprio lar e a convivncia no mesmo espao. O universalismo emanciparia o homem de seus mais arraigados instintos egosticos, podendo construir um novo mundo. Este requisito leva Kant a discursar sobre um direito cosmopolita, direito internacional, federao de Estados, hospitalidade, como se viu, fazendo de tais pontos os artigos centrais de sua teoria da paz.O universalismo de Marx de outra ordem, mas o apelo no se altera: o desenvolvimento da solidariedade entre os povos, construdo pela ao revolucionria humana. Revolucionria, sim, pois somente uma autntica radicalidade seria capaz de alterar a situao de status quo em que se encontram homem, sociedade e Estado no sculo XIX. Como afirma Megill, o ponto do universalismo repetido por Marx j que o Estado representa somente o particular e no o geral, o universal(60) - um ponto esboado por Rousseau, Kant e Hegel. Presente em grande parte dos escritos de Marx, especialmente aqueles mais importantes, o tema do universalismo no surge da mesma maneira que em Kant, uma vez que este nunca se dedicou a estudos de economia como Marx. Na sua compreenso sobre economia poltica, constante na teoria do valor/trabalho de Marx o recurso ao universalismo, seja por meio da explicao das contradies inerentes ao acmulo do capital,ou em razo da crise da superproduo, por exemplo. Se o capital cria novas necessidades e as modifica, como nota Rosdolsky, este processo para o prprio Marx no significa que o capitalismo tenha superado o problema a ponto dele deixar de existir. O problema de superao dos obstculos ao desenvolvimento capitalista existe e desafia constantemente a circulao do capital, onde a internacionalizao dos mercados e do comrcio representa uma ferramenta de auxlio de inestimvel serventia.(61) A circulao do capital que compreende todo o segundo tomo de O Capital sofreu, como toda a obra, reformulaes at sua publicao final, esta j pstuma a seu Autor. O que importa para a finalidade deste ensaio o fato de que o universalismo, pela natureza da concepo dialtica e histrica marxiana, no se dissocia tambm das idias de economia poltica de Marx. Como disse, a verso original de O Capital previa alm dos trs livros sobre o capital, a propriedade e o trabalho assalariado, outros trs, com especial dedicao ao Estado, ao comrcio exterior e ao mercado mundial.(62) A estrutura modificada da obra permaneceu em trs livros, a saber: o processo de produo do capital, o processo de circulao do capital e o processo global da produo capitalista.Um ponto inequvoco da importncia do universalismo como requisito emancipatrio em Marx continua sendo a referncia constante de O Manifesto Comunista. O chamado unio dos proletrios de todo o mundo no traduz somente uma exigncia estratgica de realizao de processos revolucionrios. por meio da unio entre os proletrios e dos partidos em que se organizam nos diferentes cantos do mundo que vir sua emancipao. Novamente: a tarefa de liberao do homem depender de sua ao concreta. Aps a morte de Marx, Engels percebeu cada vez esta necessidade, revigorando o entendimento marxiano de que o desenvolvimento do capitalismo exige o aperfeioamento da conduo de sua superao: "A ironia da histria mundial tudo revolve. Ns, os revolucionrios, os agitadores temos muito mais a ganhar atravs dos mtodos legais, do que pela ilegalidade e agitao. Os partidos da ordem, como eles se denominam, perecem diante da legalidade por eles prprios estabelecida e clamam desesperados com Odilon Barrot:. la lgalit nos tue, a legalidade a nossa morte (...)". (63)Ver a conexo entre Kant/Iluminismo e Marx mais promissor para aqueles que (em especial no mbito do direito constitucional e da poltica, pelo fato de que direito constitucional nada mais do que direito poltico) insistem em manter o esprito da crtica diante dos desafios que a construo de uma verdadeira democracia requer, abandonando a frmula de democracia de classes, que se exibe, porm, como se de todos fosse e como soluo fcil dos problemas que surgem. No se tratar de "curar" Marx daquilo que convencionou chamar de seus enganos ou reatualiz-lo com Kant, a fim de que sejam assumidas posies meramente ideolgicas (embora a incluso da ideologia no pensamento humano menos adultera suas possibilidade do que costumeiramente dizem os conservadores disfarados de idealistas da igualdade). O desafio maior reconhecer que no mbito do pensamento emancipatrio ocidental, desde o Iluminismo at a proposta socialista, existem pontos convergentes e que estas representam correntes cujos contedos dificilmente seria avesso um ao outro. Afinal, a racionalidade concreta da histria no tinha como permitir que a perspectiva de uma construo da paz universal e eterna entre os homens pudesse derivar de quem jamais teve na igualdade emancipatria seu mais lcido referencial terico.