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In Gouveia, A.; Souza, A.; Tavares, T. Políticas Educacionais: conceitos e debates.
Curitiba: Appris, 2011.
Capítulo I: Estado, Política e Sociabilidade
Marcos Alexandre Ferraz
Quando se procura iniciar um debate sobre o conceito e o papel do Estado
Moderno, o senso comum, e, em alguns momentos, o pensamento acadêmico
delimitam um campo semântico, e por que não dizer cognitivo, que destaca a reflexão
sobre um lócus privilegiado de poder e uma função gerencial, reguladora ou política de
fixação dos parâmetros de igualdade, assim como das ações para melhor promovê-la.
Não é de se estranhar, portanto, que o Estado seja o objeto por excelência da Ciência
Política, do Direito Administrativo e de áreas de conhecimento prático no exercício de
políticas públicas, como a Educação, a Saúde, a Economia, o Serviço Social, entre
outras. Entretanto, é sempre de maneira, um tanto quanto tangencial, que o Estado se
apresenta no interior do debate sociológico. Ou seja, raramente o Estado é central
para o pensamento do sociólogo. Talvez, porque a Sociologia se ocupe de objetos
aparentemente mais nobres como as relações sociais, a ação social, as estruturas
sociais, a revolução social, a divisão do trabalho, a identidade coletiva, a estratificação
social, entre tantos outros.
Como uma produção fundamentalmente sociológica, este texto não tem a
pretensão de romper com esta tradição disciplinar. Mas, ao tentar reunir, em uma
mesma reflexão, Estado, sociabilidade e política, se esforçará por buscar um sentido
sociológico de interconexão entre estes três fenômenos na experiência cultural e
mesmo de classe dos indivíduos. Estado, neste contexto, de alguma forma ainda será
um lócus privilegiado de poder. Também será uma instituição capaz de agir
organizadamente – seja de forma administrativa ou política – sobre as desigualdades
que cortam determinada sociedade. Mas fundamentalmente, será uma instituição
capaz de intervir1 sobre a sociabilidade, ou porque não dizer, sobre a construção dos
parâmetros de solidariedade entre os indivíduos.
1 O verbo intervir não tem aqui um significado moral de ação autoritária, no sentido de contrapor Estado
e indivíduo como tanto gosta o pensamento liberal. Com este verbo busca-se apenas a neutralidade de
O debate que se propõe não se iniciará pelo Estado, mas pela sociabilidade e
pela solidariedade que unem diferentes indivíduos em sociedade. Entende-se
sociabilidade, no rastro dos escritos de Simmel2. Não há sociedade sem interações
entre indivíduos. No entanto, os padrões destas interações, em outras palavras, sua
forma, podem se desprender dos conteúdos e interesses individuais que as motivaram.
É a valorização, até mesmo lúdica, da forma das interações sociais, independente do
seu conteúdo, que o autor denomina sociabilidade. Ou seja, a sociabilidade é a
cristalização e a valorização de padrões de interação independente do sucesso que os
mesmos possam proporcionar para a conquista de interesses individuais.
Por outro lado, quando se fala sobre solidariedade3, não está em jogo nenhum
sentimento ou característica inata do ser humano. O conceito sociológico de
solidariedade distancia-se de qualquer conceito religioso ou cristão que a associa a
bondade humana, como características inerentes ao indivíduo. Não se trata de um
atributo moral ou uma virtude dos seres humanos. Solidariedade tem o sentido de um
complexo sistema de direitos e deveres que unem homens e mulheres de modo
durável, independente de suas diferenças e individualidades específicas. Assim, se o
conceito de sociabilidade remete a Simmel e a forma das interações sociais;
solidariedade remete a Durkheim e a coesão de uma sociedade.
Nestes termos, tanto a sociabilidade como a solidariedade são resultantes de
processos sociais e históricos concretos, incorporando os conflitos, as contradições, as
disputas e os consensos entre os sujeitos, sejam individuais ou coletivos. Quase
desnecessário dizer que não há uma sociabilidade a-histórica que perpasse toda a
humanidade. Da mesma maneira, os laços que mantém a solidariedade de um grupo
social podem variar infinitamente, na dependência de estruturas sociais precisas. Em
conformidade com os objetivos que esse texto se propõe, há que se perguntar,
logicamente, em que termos se apresentam a sociabilidade e a solidariedade em um
mundo moderno.
caracterizar um processo em que Estado e indivíduo não se opõem como pólos, mas constituem partes de um todo e se relacionam sob influências recíprocas. 2 Para um debate sobre o conceito de sociabilidade ver SIMMEL, 2006. Em especial o capítulo 3, em que
o autor apresenta a coqueteria e o jogo erótico como exemplos de sociabilidade. 3 Para o conceito de solidariedade ver Durkheim, 1999.
Entre as diversas formas de se caracterizar a modernidade, Giddens (1991)
remete a uma questão de desencaixe das relações sociais. Em sociedades modernas,
as relações sociais se libertam dos contextos face to face; do aqui e do agora. Este
desencaixe possibilita uma sociabilidade em termos abstratos, posto que o conteúdo
das interações não necessita remeter a nenhuma experiência prévia, compartilhada
entre os atores. A forma, muitas vezes quase vazia de conteúdo, garante a viabilidade
das relações. Concomitantemente, a solidariedade se liberta dos seus aspectos
puramente locais e comunais, possibilitando uma solidariedade mais ampla, seja
nacional, de classe ou universal.
O desencaixe das relações sociais, de Giddens, contempla tanto a passagem da
solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica durkheimiana, fruto da intensa
divisão do trabalho social; como a substituição do valor de uso pelo valor de troca e a
transformação das relações sociais em mercadoria da tradição marxista, resultado da
concretização do modo de produção capitalista4. O que está em jogo é a substituição
de uma sociabilidade e uma solidariedade de base comunal, em que os indivíduos
dividem uma história e uma experiência compartilhada, por sociabilidades e
solidariedades que se constituem sobre sistemas abstratos e, muitas vezes, mediados
por estruturas altamente institucionalizadas, que possibilitam a convivência e a
colaboração entre indivíduos estranhos entre si. Estas relações sociais desencaixadas –
prossegue o autor britânico – precisam se reencaixar5, através de sistemas
institucionais, que dê estabilidade para a ausência de conteúdo comum. É neste
contexto, que se faz necessário compreender duas instituições fundamentais da
sociabilidade e da solidariedade moderna: o Mercado e o Estado.
Para inverter título e subtítulo, pode-se dizer que, ao discutir as origens de
nossa época, Polanyi (2000) não teve dúvidas em classificar o advento da economia de
mercado como a Grande Transformação. E economia de mercado, para o autor, é um
sistema auto-regulável de mercados, em termos ligeiramente mais técnicos, é uma
economia dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado
4 Ver Marx, 1998.
5 Para Giddens são dois os sistemas capazes de reencaixar as relações sociais modernas: As Fichas
Simbólicas e os Sistemas Peritos. Ver GIDDENS, 1991. Em trabalho anterior procurei explorar os meios de comunicação de massa como sistemas de desencaixe e reencaixe de relações sociais, em um contexto de disputas políticas na esfera pública. Ver FERRAZ, 2000.
(POLANYI, 2000, p. 62). O que ocorre no século XIX, para o autor, é que, com a
hegemonia do mercado, pela primeira vez, na história da humanidade, a economia se
torna auto-suficiente. Livre, portanto, de outras amarras sociais. É evidente que
qualquer sociedade, em qualquer período histórico, só conseguiu sobreviver tendo um
amplo sistema econômico. No entanto, antes do liberalismo do século XIX, todos os
sistemas econômicos6 estavam submetidos a um conjunto de obrigações sociais que
ligavam os indivíduos em comunidades.
Neste sentido, a economia de mercado tornou-se uma força avassaladora que
desmontou, significativamente, as relações sociais herdadas tanto do feudalismo,
como das sociedades de corte. É este aspecto destrutivo do mercado que a obra de
Marx tão bem desvenda do ponto de vista da economia política. E que Polanyi coloca
acentos sociais singulares. Entretanto, o aspecto destrutivo se fez acompanhar por um
processo de reordenação tanto da sociabilidade, como da solidariedade. Para
Durkheim, por exemplo, o mesmo mecanismo social que impulsiona um individualismo
exacerbado e egoísta, também ativa a valorização do indivíduo sobre o coletivo,
possibilitando o aparecimento dos direitos humanos. Em resumo, podem-se apontar,
ao menos, duas características revolucionárias ligadas ao mercado: o rompimento com
a sociabilidade tradicional e a circulação pública das identidades.
Ao debater o assalariamento, ou seja, nos termos deste texto, o mercado de
trabalho livre, Gorz registra o núcleo da questão que aqui se tenta salientar:
Se os filhos de agricultores abandonaram os campos e se as mulheres reivindicam o direito de trabalhar, é porque o trabalho assalariado, por restritivo e desagradável que possa ser sob outros aspectos, liberta do encerramento numa comunidade restrita onde as relações interindividuais são relações privadas, fortemente personalizadas, regidas por uma relação de forças móvel, chantagens afetivas, obrigações impossíveis de formalizar (GORZ, apud. FITOUSSI & ROSANVALLON, 1999, p. 117).
Gorz consegue, em um mesmo movimento, perceber o rompimento com a
sociabilidade tradicional e a circulação pública das identidades. O primeiro fica
evidente na fala do autor francês, pois o trabalho assalariado significa a possibilidade
6 Polanyi descreve quatro princípios básicos a ancorar diferentes sistemas econômicos: Princípio de
Domesticidade, Princípio de Reciprocidade, Princípio Redistributivo e Princípio de Mercado. Dentre estes, os três primeiros são fundamentalmente princípios não econômicos, visto que se sustentam sobre compromissos sociais entre os indivíduos e a sociedade. Por outro lado, o Princípio de Mercado é puramente econômico, visto que regulado apenas pela oferta e procura.
de liberdade frente a todos os aspectos autoritários e limitadores da sociabilidade
familiar. Enquanto a sociabilidade tradicional se caracteriza pela impossibilidade de
formalização e se abre para as diversas formas de chantagens afetivas – visto que
regulada fortemente pelas vontades –, o assalariamento pressupõe uma formalização
que define deveres e direitos, diminuindo o conteúdo casuístico ou oportunista nas
interações sociais. Mas este é o sentido mais evidente e explícito da fala de Gorz.
Igualmente, ela contém um significado que não se mostra tão abertamente. A
liberdade, frente ao que Gorz chamou de comunidade restrita, significa a circulação
em um mundo amplo e público em que as diferenças se explicitam, causando tanto o
conflito como o diálogo. As múltiplas identidades, sejam individuais ou coletivas, se
tornam públicas e a construção de qualquer parâmetro de solidariedade se transforma
qualitativamente. Entre indivíduos culturalmente diferentes, a solidariedade se torna
um desafio abstrato de construção de objetivos e interesses comuns, apesar das
assimetrias culturais prévias. Da proximidade, simplesmente afetiva, se passa a
construção social de projetos políticos que consolidem uma identidade que mantenha
uma coletividade coesa sem, necessariamente, um passado comum entre seus
membros.
Mas o limite destas sociabilidade e solidariedade, forjadas pelo mercado, se
apresenta em seu processo de mercantilização das relações sociais. A sociabilidade e a
solidariedade familiar ou comunal são capazes de construir uma rede social de apoio
que previne cada um de seus indivíduos contra os azares da vida cotidiana. Assim,
acidentes de trabalho, invalidez, orfandade, velhice, falta de acesso à educação são
questões que o auxílio mútuo consegue, em pequenas comunidades, remediar sem
colocar em colapso a reprodução social. A reciprocidade entre os indivíduos de um
mesmo grupo familiar ou vicinal é suficiente para prover todos os vitimados pelos
acidentes da vida social.
A sociabilidade e a solidariedade geradas no interior do mercado, contudo,
ainda que mais amplas e abstratas, não constituem o mesmo grau de reciprocidade
entre os indivíduos. Assim, é incapaz de gerar uma rede de socorro mútuo suficiente
para enfrentar os vários percalços das trajetórias individuais. É neste preciso sentido,
que a questão da pobreza, ou a questão social, como diz Castel (1998), é um fenômeno
eminentemente moderno. O enfrentamento destas questões, no contexto de uma
sociedade moderna, só se tornou possível, portanto, em um nível ainda mais abstrato
de construção da solidariedade. É neste ponto que o Estado Moderno se consolida
como instituição capaz de regular novos direitos e deveres. Direitos e deveres que vão
além do simples contrato mercantil, transformando o Estado em mediador de
solidariedades nacionais.
Consequentemente, ainda que se possa tentar sustentar que, em sua origem, o
Estado, tanto absolutista como burguês, tenha se comportado como instituição
exclusivamente opressora, logo, portadora dos interesses de uma única classe social. A
partir dos diversos conflitos sociais e da representação política que as classes
subalternas, pouco a pouco, conquistaram, ao longo dos últimos três séculos, o Estado
se transformou em elemento fundamental para desmercantilizar as relações sociais.
Nestes termos, ainda que não se possa falar em um Estado anti-burguês, pode-se
compreendê-lo como uma instituição não essencialmente burguesa7, e sim clivada de
interesses. Interesses que se organizaram ao redor das diversas possibilidades de
constituir e distribuir um fundo público.
Nas palavras de Oliveira (1998), a constituição de um fundo público no interior
do Estado, não apenas auxilia na desmercantilização das relações sociais, mas também
produz um processo de reconhecimento da alteridade dos interesses em sociedade. É
nestes termos que, o autor, posteriormente, falará na dialética entre a privatização do
público e da publicização do privado (OLIVEIRA, 1999). Mas, neste momento, basta
compreender o caráter plural do Estado e o reconhecimento dos diferentes interesses
de classe que o institui, assim como este impacto sobre a sociabilidade que unem os
indivíduos.
[...] as condições da regulação contemporânea, fundamentalmente perpassada e estruturada pelo fundo público, diluem uma única razão de Estado, substituindo-a pelas razões particulares que ligam o fundo público a cada movimento ou a cada capital, ou a cada condição específica da reprodução social, incluindo-se aí a reprodução da força de trabalho e a sociabilidade geral (OLIVEIRA, 1998, p. 43).
Isto faz do Estado não apenas um lócus de poder, mas um espaço de disputa
pela hegemonia política e pelos parâmetros da sociabilidade de uma sociedade.
7 Para este debate entre Estado burguês e um Estado que não é mais essencialmente burguês seria
necessário acompanhar as discussões habermasianas sobre esfera pública burguesa e esfera pública não-burguesa, o que fugiria dos objetivos deste texto. Ver HABERMAS, 1984.
Entretanto, esta disputa não se trava como um simples embate de forças sociais que
se enfrentam em um vazio institucional, mas de forças sociais que se enfrentam em
um espaço institucional altamente organizado e racionalmente estruturado. Como
ensinou Weber (1994), enquanto instituição, o Estado se consolida como detentor do
monopólio legítimo da violência e como portador de um corpo burocrático de
servidores especializados. Estas características não se limitam a descrever
fotograficamente a estrutura do Estado, mas revelam a dimensão da sua legitimidade,
enquanto poder social.
Esta legitimidade de poder burocrático, racional-legal, garante seu caráter
universal e público. Logo, ainda que perpassadas por diversas disputas e interesses
privados, suas decisões atingem indistintamente as diferentes classes ou grupos
sociais. É somente, através do Estado, que ações ou decisões políticas são
universalizáveis. E, nesta exata medida, suas decisões universalizáveis requerem um
jogo político estável e que projete confiança futura entre atores sociais tão diferentes.
O processo político, no Estado moderno, adquire, assim, características bastante
precisas. Segundo Poggi (1981), cinco características são fundamentais para o
funcionamento do Estado moderno: civilidade, pluralidade de focos, metas irrestritas,
controvérsia e centralidade das instituições representativas8.
Civilidade: O exercício de governo sempre implica em algum controle dos meios
de coerção, e como já registrado acima, no Estado Moderno, é fortalecido o
monopólio legítimo desta coerção. No entanto, a fantástica ampliação do aparelho de
Estado torna a preocupação com os mecanismos de coerção um elemento um tanto
quanto localizado e pontual em meio a todas as suas atividades. Dentre todas as
funções exercidas pelo Estado Moderno, apenas as funções militar e de polícia estão
diretamente vinculadas ao aparato coercitivo. A maior parte das funções do executivo
(administração, saúde, educação, assistência, infra-estrutura), assim como todas as
atividades desempenhadas pelo legislativo, se desprendeu daquele aparato de
coerção. Consequentemente, todas as decisões fundamentais, que dizem respeito à
deliberação sobre as atividades do Estado, assim como ao seu financiamento, estão
conectadas a amplas redes de deliberação não coercitivas.
8 Toda a argumentação que se segue nos próximos parágrafos é devedora explícita da obra de Poggi
(1981).
Da mesma forma, pouco a pouco, ao longo da história, as diversas oposições, às
lideranças políticas estabelecidas, foram sendo institucionalizadas, diminuindo,
sensivelmente, tanto a repressão violenta às idéias divergentes, quanto as tentativas
de tomada do poder político, à força. Também questões impossíveis de serem
negociadas, por se fundarem sobre idéias absolutas e totalizantes – como os conflitos
religiosos, por exemplo – foram remetidas para a esfera privada, reduzindo a tensão
do espaço público. Todo este processo fez com que o exercício do poder se
desmilitarizasse, tornando-se mais civil. Não é mera coincidência o fato dos
parlamentos democráticos serem maciçamente ocupados por representantes civis, e
não militares. Isto, contudo, não impede que o Estado ainda utilize da força e da
violência, quando a elite política estabelecida se sinta de alguma forma ameaçada
pelas camadas subalternas, principalmente em momentos de intensa mobilização
popular.
Pluralidade de Focos: Como instituição mediadora da sociabilidade moderna, as
atividades de Estado, ainda que organizadas em um aparelho unitário, contemplam
uma infinidade de focos. Do financiamento explícito da reprodução do capital, ao
combate dos impactos de uma catástrofe natural, são inumeráveis as ações
empreendidas através do Estado. Também são incontáveis os seus órgãos, cargos e
níveis hierárquicos. Isto possibilita diferentes pontos de acesso ao processo decisório.
Assim, setores diferentemente especializados da sociedade ocupam-se de decisões e
políticas específicas de cada setor do aparelho estatal. Ainda que pertencentes a uma
mesma classe social ou grupo ideológico, atores de pontos diferentes da estrutura do
Estado tendem a se colocar em constante conflito. Visto que seus objetivos imediatos
não são concordantes.
Por exemplo, as prioridades dos Ministérios do Planejamento ou da Fazenda
raramente são coincidentes com aquelas que mobilizam os Ministérios da Saúde, do
Transporte ou da Educação. Da mesma maneira, os objetivos perseguidos e
contemplados em nível nacional, muitas vezes se chocam com aqueles que se
expressam nos níveis estaduais e municipais. Principalmente, quando se observa o
modelo federativo brasileiro. E por fim, interesses representáveis no Executivo e no
Legislativo podem ser inconciliáveis, mesmo quando se olha para dentro de um único
partido. Esta pluralidade promove o envolvimento de grupos sociais cada vez mais
vastos no processo político.
Metas Irrestritas: Se hoje o Estado se apresenta como uma instituição plural e
com alto grau de civilidade, o seu nascimento é fundamentalmente marcado pela sua
característica coerciva. Assim, sua primeira forma de mediação da sociabilidade foi a
repressão e a violência contra as camadas populares, em um esforço pela manutenção
dos privilégios tradicionais das categorias dirigentes. A linguagem, portanto, pela qual,
indivíduos e grupos se dirigiam ao Estado Absolutista, e, mesmo antes dele, ao Sistema
Feudal de Governo, era o apelo aos costumes e à tradição. No Estado Moderno, a
linguagem do privilégio é, paulatinamente, substituída pela linguagem do direito
positivo.
A universalidade do poder racional-legal é variável, ao longo do tempo, e capaz
de expansão infinita. Nestes termos, o poder não é mais exercido em nome da
manutenção de privilégios de setores específicos, por mais amplos que estes venham a
ser. Ao contrário, o exercício do poder se orienta para alvos cada vez mais abstratos,
como o bem-estar geral de um povo ou a felicidade do indivíduo. Em nome desses
alvos, metas e objetivos podem ser legitimamente revisados, em função do equilíbrio
político entre as classes sociais e dentro de regras previamente acordadas. Para
traduzir na forma de uma expressão temporal. O poder não se legitima em nome de
um passado, mas em nome do futuro.
Controvérsia: Em um contexto de metas irrestritas, de pluralidade de focos e de
civilidade, uma arena pública de debate se torna incontornável, assim como
mecanismos de controle sobre a ação do Estado. O desdobramento lógico é que,
mesmo dentro de parâmetros institucionalizados, limitados ou regulamentados, a
controvérsia não é simples concessão às vozes opositoras, mas elemento constitutivo,
e não menos importante, para o regular funcionamento do processo político do Estado
Moderno. Sem o confronto de opiniões se tornaria impossível o funcionamento do
aparelho de Estado, em sua complexidade atual.
Centralidade das Instituições Representativas: Em um país como o Brasil, no
qual o papel do Executivo, muitas vezes, parece se sobrepor ao Parlamento, é quase
ingênuo destacar as instituições representativas parlamentares. No entanto, enquanto
a função do Executivo é fundamentalmente prática, no sentido de realização e
condução de políticas públicas definidas; ao Parlamento cabe o papel de constituir
maiorias, consensos, opiniões. Ainda que se votem os projetos que o Executivo deseja,
somente se vota, após a construção de uma maioria política parlamentar, em relação à
proposta do Executivo. A centralidade do Parlamento é incontornável, quando se olha
sob a perspectiva do desenvolvimento do processo político. A função do Parlamento é
tradicionalmente definida como legisladora e fiscalizadora das ações do Executivo. Não
são menores estas funções, pois não há lei sem um consenso ou maioria parlamentar.
E não há Executivo democraticamente instituído que não se movimente no interior
desta legalidade, fruto do consenso parlamentar.
Mas a função do Parlamento é ainda mais significativa, pois vai além de fixar os
parâmetros legais em que o Executivo pode se movimentar. Ao se constituir como um
espaço institucional da fala, da palavra; o Parlamento não apenas dá voz para a
pluralidade de demandas que ecoa da sociedade, como as processa, construindo
consensos entre demandas díspares. Como membro de um partido, de uma maioria,
de um bloco ou de uma oposição, espera-se de um parlamentar que este não apenas
expresse suas opiniões e princípios – ou mesmo as idéias de sua base política –, mas
que seja capaz de negociá-las no interior das idéias mais amplas e comuns do coletivo
que ele integra. O parlamento é central no sistema porque não transmite
simplesmente impulsos políticos originados alhures; ele produz impulsos políticos na
medida em que processa as orientações do eleitorado que representa (POGGI, 1981, p.
121).
Os resultados desta ação não são simples negociatas ou conchavos, como
adora salientar o jornalismo político brasileiro. Ao contrário, esta ação projeta
consensos que transbordam do Parlamento para bases sociais organizadas ao redor
dos parlamentares, diminuindo a violência dos conflitos sociais e dando estabilidade
para uma sociabilidade ampla, assim como para as atividades propriamente de
governo, alojadas no Executivo. Por fim, o parlamento tanto realimenta a opinião
pública, quando se coloca na posição de crítico do Executivo, como é fonte de
formação de novas lideranças capazes tanto de formular soluções inovadoras para os
problemas sociais, como de assumir responsabilidades públicas.
Diante destas características do processo político, torna-se evidente que o
Estado não apenas representa um lócus de poder ou um agente de governança de
políticas públicas. Ao contrário, é central para a sociabilidade e a solidariedade
moderna, na exata medida em que é a instituição capaz de mediar o processo, que
Oliveira (1999) chamou, de privatização do público e publicização do privado. Ainda
que toda demanda atendida pelo Estado possa atingir determinados grupos
específicos – e neste preciso sentido é sempre uma privatização do público –, a
formação de um consenso para atendê-la implica em uma publicização do privado.
Esta publicização do privado significa que os interesses privados, em um regime
democrático, não podem e não devem ser atendidos clandestinamente. E deve se
compreender que eles se tornam clandestinos tanto quando não se mostram, como
quando se plasmam em um suposto interesse geral ou nacional, que interdita a
circulação das diferenças.
Talvez, um exemplo possa tornar mais compreensível, o raciocínio de Oliveira.
Um problema, que desafia a sociedade e o Estado brasileiro hoje, é a universalização
da educação infantil. Em princípio, não há brasileiro ou brasileira que se oponha a
resolução do problema. No entanto, quanto do fundo público é necessário para
enfrentar tal questão? Quais são as outras políticas públicas que devem ser
abandonadas ou negligenciadas para que o aporte financeiro necessário esteja
disponível? Quais são os grupos sociais que terão suas demandas adiadas ou não
atendidas?
O caráter universal de tal política, caso fosse plenamente executada, é literal,
visto que todas as crianças abaixo de cinco anos teriam sua vaga em um centro de
educação infantil. Portanto, todo brasileiro ou brasileira menor de cinco anos seria
diretamente beneficiado por tal política, assim como todo brasileiro ou brasileira
adulto que tenha ou pretenda ter filhos. Resta o seguinte problema. Tal política atende
interesses de brasileiros ou brasileiras adultos que não têm, nem pretendem ter
filhos? Diretamente, não. Isto significa que parte do fundo público, composto com os
impostos e taxas, também pagos por brasileiros e brasileiras sem filhos, não serão
utilizados diretamente para políticas públicas que os beneficiem.
Sob esta perspectiva, todas as políticas públicas, que não atendam indistinta e
diretamente todos os brasileiros e brasileiras (desnecessário dizer que estas políticas
são quase inexistentes), são formas de privatizar o público. Privatização do público,
portanto, não se resume a venda de empresas estatais ou a terceirização dos serviços
públicos. Toda política pública, financiada com o fundo público – ou seja, fruto da
contribuição da riqueza gerada por toda a população –, que atende um segmento
específico da população, é uma forma de privatização do público. E isto independe da
justiça, da legitimidade ou do alcance da política em questão.
Entretanto, em um Estado democrático, em que o processo político seja
pautado pela civilidade, pluralidade de focos, metas irrestritas, controvérsia e
centralidade das instituições representativas, tal privatização do público não se
realizará sem uma relação dialética com uma concomitante publicização do privado.
Exposta, principalmente, à civilidade, à controvérsia e à centralidade das instituições
representativas; a privatização do público só é passível de ser operada na proporção
em que os interesses privados são explicitados, confrontados e debatidos. Assim, em
regimes democráticos, para se privatizar o público – e isto é sempre parte do processo
político – é necessário publicizar o privado e, através de amplos consensos sociais,
deliberar sobre como, quando e sob qual hierarquia de importância, os diversos
interesses privados serão atendidos.
Se o vigor de um sistema democrático pode ser verificado pela sua capacidade
de privatizar o público e publicizar o privado, resta compreender através de qual
linguagem tal processo é conduzido. Não há outra linguagem no Estado Moderno que
não seja a racional-legal. É através do direito que se processa a divisão legítima entre
as partes em sociedade. Mas ao se tratar de uma divisão entre partes, propriamente
de uma redistribuição, não é nos direitos civis e nos direitos políticos que se encontra a
condução deste processo. A estes direitos cabem salvaguardar os direitos do indivíduo,
enquanto uma mônada. É nos direitos sociais, ou seja, no que cabe a cada
coletividade, que se encontra a linguagem pela qual se processa a privatização do
público e a publicização do privado.
Ao se falar em direito ao trabalho, à saúde, ao salário igual por trabalho igual,
ao repouso, ao lazer, à previdência social em caso de velhice, doença ou desemprego,
à educação e em tantos outros, está se processando politicamente a distribuição
pública do fundo público (o pleonasmo é intencional), e não instituindo formas de
privilégios como propagandeiam alguns arautos da lei da selva. Os direitos sociais,
como Ewald (1986) identificou, ao estudar a lei sobre acidentes de trabalho na França
do século XIX, são a tradução pela qual uma sociedade reconhece o seu dever para
com os azares individuais de cada um de seus membros. Assim se estabelece os
parâmetros do justo e do injusto, para a distribuição das partes. É nesta mesma
perspectiva que Telles (1999) compreende os direitos sociais.
Para além das garantias formais inscritas na lei, os direitos estruturam uma linguagem pública que baliza os critérios pelos quais os dramas da existência são problematizados em suas exigências de equidade e justiça. E isso significa um certo modo de tipificar a ordem de suas causalidades e definir as responsabilidades envolvidas, de figurar diferenças e desigualdades, e de conceber a ordem das equivalências que os princípios de igualdade e de justiça supõem, porém como problema irredutível à equação jurídica da lei, pois pertinente ao terreno conflituoso e problemático da vida social (TELLES, 1999, p. 178).
Esta formulação exposta por Telles significa que as experiências individuais de
azares cotidianos são traduzíveis, pelos direitos sociais, em uma linguagem pública que
tem significado político para todos os demais grupos sociais. É a passagem do micro ao
macro, da ausência de médico no posto de saúde do meu bairro ao orçamento
municipal votado, todo final de ano, na Câmara de Vereadores. Faz esta tradução
porque institui o consenso ao redor de quais demandas são justas ou injustas.
Concomitantemente, possibilita àqueles, que não fazem parte da divisão pré-
estabelecida, reivindicar suas partes.
Nas palavras de Rancière (1996), os direitos sociais são a linguagem para a
produção do dissenso, instaurando a política. Se ao Estado, através dos direitos sociais
e do debate no parlamento, cabe a produção do consenso que confere equilíbrio a
distribuição entre as partes; é pela produção do dissenso, que a linguagem dos
mesmos direitos sociais confere aos novos atores, que a política se instaura, reabrindo
sempre o jogo das metas irrestritas. É por isso que Lefort (1987) irá diferenciar uma
sociedade democrática e o totalitarismo, justamente pela presença de um espaço
público atravessado pela consciência do direito a ter direitos. Não é por estar inscrito
na Lei, que um direito se efetiva. Mas por estar na Lei, um direito abre o universo da
reivindicação política.
É sob este prisma, de uma cultura do direito a ter direitos, que se faz necessário
inquirir a realidade da sociedade brasileira. Sociedade complexa e polissêmica, em que
a negação do dissenso parece ser a regra, em planos tão diferentes, como a
sociabilidade, o mercado de trabalho ou a institucionalidade. Sociedade complexa e
injusta, que, para Paoli e Telles,
[...] garante os direitos políticos democráticos, mas não consegue fazer vigorar a lei, os direitos civis e a justiça no conjunto heterogêneo da vida social, subtraídos que são por circuitos paralelos de poder que obliteram a dimensão pública da cidadania, repõem a violência e o arbítrio na esfera das relações privadas, de classe, gênero e etnia [...] (PAOLI & TELLES, 2000, pp. 103-104).
Sociologicamente, é possível procurar por estes circuitos paralelos de poder,
que interrompem o processo de efetivação dos direitos sociais no Brasil, no mínimo,
nas três esferas anteriormente sugeridas: a esfera institucional, a esfera da
sociabilidade e a esfera do mercado de trabalho.
Francisco de Oliveira (1999) apresenta, em um rápido cálculo matemático, que,
entre 1930 e 1990, além da ditadura de Vargas e da ditadura militar de 1964, o Brasil
viveu uma sequência de golpes e tentativas fracassadas de golpes, que perfaz uma
média de um atentado à democracia, a cada três anos. Esta rápida conta já demonstra,
quase que automaticamente, o circuito de poder autoritário que interrompe,
continuamente, a validade dos direitos no plano institucional brasileiro. Mas o cálculo
de Oliveira, por questões inerentes ao seu próprio debate, contempla apenas o Brasil
industrializado. Pode-se recuar ao início da história nacional, e ainda assim, a
democracia institucionalizada será uma exceção.
Os períodos colonial e imperial, nem com muita boa vontade, poderiam ser
classificados como democráticos. Na Primeira República, nem a metade dos
presidentes conseguiram concluir seus mandatos integralmente. Entre aqueles que o
fizeram, muitos tiveram que apelar para o estado de sítio. À Primeira República se
segue a Ditadura de Vargas. E no curto período democrático, que vai de 1946 a 1964,
tem que se contabilizar a clandestinidade do Partido Comunista Brasileiro em 1947 (o
que demonstra o limite da democracia sob a Presidência de Eurico Gaspar Dutra); o
suicídio de Vargas em 1954 (motivado pela contínua possibilidade de golpe); a
tentativa de impedir a posse de Juscelino (que após assumir viria, ainda em seu
primeiro ano de governo, decretar a prisão domiciliar do general Juarez Távora,
adversário derrotado nas eleições de 1955); a renúncia de Jânio Quadros em 1961; a
instauração do parlamentarismo para impedir que o poder chegasse às mãos de João
Goulart, no mesmo ano; e, por fim, o golpe, propriamente dito, em 1964.
Esta interrupção contínua da institucionalidade democrática é a obliteração do
processo de publicização do privado, restando apenas a privatização do público, que,
solitariamente, é sempre o fim do dissenso e o sepultamento da política. Um Estado,
no qual o espaço para a controvérsia é reduzido, ou mesmo inexistente em alguns
momentos, realimenta uma sociabilidade autoritária, e o circuito de poderes paralelos
a interromper a constituição de uma cidadania pública é continuamente intensificado.
Nestes termos, o papel do Estado, no processo de desmercantilização das relações
sociais, não se efetiva.
Mas esta contínua interrupção na institucionalidade brasileira não é um mal
intrínseco a estrutura de Estado, como uma sociologia bipolar e vulgar, que separa
completamente Estado e mercado, poderia sugerir. Não se trata de separar o Estado,
como pólo de todos os nossos vícios (o patrimonialismo, o compadrio e a corrupção) e
o mercado como o centro das virtudes (a modernidade, a meritocracia, a
concorrência). Definitivamente, não se trata de contrapor o mito da brasilidade
malemolente e o mito paulista do motor da nação9. Esta persistente e contínua
interrupção se encontra na incapacidade de articulação entre Estado e sociedade
(principalmente, deve ser considerada a elite política desta sociedade) para aceitar e
incorporar novos atores, falas e demandas sociais.
Prado Jr.10 (2004) interpretou esta dificuldade pela coexistência entre uma
realidade colonial contemporânea ao capitalismo mercantil, portanto, partícipe de
uma economia de mercado, com um modo de produção que repousava sobre o
trabalho escravo – a negação do mercado de trabalho. Florestan Fernandes (1987), por
seu turno, sustentou a impossibilidade da revolução burguesa em terras brasileiras,
visto que a precoce aliança entre burguesia ascendente e oligarquia decadente
produziu uma revolução econômica, sem a contrapartida da revolução política que
9 Para uma leitura sobre os impasses brasileiros, hoje, sob uma perspectiva de confronto entre o mito
brasileiro e o mito paulista, ver o excelente trabalho de SOUZA, 2009. 10
Esta maneira de se tomar o pensamento de Caio Prado Jr. Florestan Fernandes, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, ainda que revisitando os escritos originais dos mesmos, é devedora direta da leitura que Francisco de Oliveira (1999) faz destes clássicos.
propunha o liberalismo clássico. Nesta chave interpretativa, Estado e mercado
colaboram, igualmente, para a consolidação de uma individualidade, sem civilidade.
Mas os clássicos da sociologia nacional delegaram outras chaves, igualmente
eficazes, para se compreender a atávica dificuldade em reconhecer a legitimidade do
dissenso político. No plano da sociabilidade privada, Gilberto Freyre (2006) e Sérgio
Buarque de Holanda (2006) evidenciam práticas sociais que teimam em não
reconhecer a alteridade. Paralelamente a valorização da miscigenação como a grande
virtude nacional, Freyre é contundente ao interpretar a prática de anulação do outro,
contida nas relações escravocratas. Da proibição de cultos africanos à banalidade da
violência sexual, passando por todos os métodos de punição do corpo que reprimiam
qualquer forma de discordância; a cultura do “Sabe com que está falando?” se
estabeleceu como regra de toda autoridade.
No mesmo ritmo, a expertise da proximidade do homem cordial (HOLANDA,
2006) é a negação de qualquer formalidade que possa revelar a universalidade dos
direitos. Portanto, a informalidade, o compadrio, o patrimonialismo – ou mesmo, o tão
famoso jeitinho brasileiro – operam, sob o registro da sempre valorizada cordialidade,
obscurecendo os limites entre vontades pessoais e formas de dominação privada, sem
qualquer mediação pública, sujeitas, assim, a todas as chantagens e coerções.
Por fim, resta a herança de quatro séculos de escravidão que moldou um
mercado de trabalho, no qual, o princípio de subordinação – essência do direito do
trabalho (SUPIOT, 1994) – é sistematicamente travestido de servidão, e a burla do
contrato de trabalho torna-se recorrente, tanto pela parte patronal, como pelo
trabalhador (CARDOSO, 2003). Esta reunião – de uma democracia política tantas vezes
interrompida, da quase impossibilidade de uma revolução burguesa, da cordialidade
que nega, sistematicamente, a alteridade e de um mercado de trabalho, em que ainda
sobrevivem algumas das piores práticas do passado escravocrata – explicita o tamanho
do desafio político e social que o país enfrenta, desde o seu retorno ao regime
democrático, há cerca de duas décadas e meia.
Mas estas duas décadas e meia trouxeram algum alento a tão maltratada idéia
de cidadania nos trópicos. A modernização do mercado capitalista sem a sua
contrapartida clássica da revolução burguesa encontrou seus limites de mover a
economia, sem produzir inclusão política11, em fins do regime ditatorial. As grandes
greves de 1978, 1979 e 1980 – as quais Sader (1988) descreveu como os novos
personagens que entravam em cena – significaram a instalação do dissenso, na exata
medida em que revelaram novos personagens e novas pautas, no tabuleiro político
nacional. Trabalhadores urbanos, através de lideranças e instituições sindicais
renovadas, juntamente com infinitos outros movimentos sociais que tensionaram toda
a década de 1980 (Movimento Sanitarista, Movimento contra a Carestia, Fórum de
Defesa da Escola Pública, Associações de Bairros, etc...), estabeleceram bases para
uma Constituição mais democrática, que passou a fornecer diversos espaços
institucionais que não negam, a priori, o dissenso.
Desta forma, os anos de 1970 e 1980 deixaram, ao menos, duas contribuições
como seu legado para a democracia do Brasil do século XXI: 1) a independência de
atores sociais novos, com demandas novas e capazes de formalizarem publicamente
estas demandas, escapando da teia do homem cordial, sempre avessa a alteridade; e
2) um quadro institucional mais permeável ao reconhecimento e tratamento destas
demandas, conferindo estabilidade ao conflito democrático de representação de
interesses. A vitalidade do movimento social brasileiro, nas respectivas décadas,
amplia a civilidade e a pluralidade de focos do processo político nacional. Par e passo,
a nova institucionalidade, que emana da Constituição de 1988, possibilita equilíbrio ao
jogo de metas irrestritas, assim como viabiliza o exercício da controvérsia nas
instituições representativas, sem grandes sobressaltos.
Entretanto, se sob a ótica do poder de fala dos movimentos sociais e da
estruturação de um espaço formal, em que esta fala possa reverberar, a abertura dos
anos de 1990, no Brasil, foi promissora, pois era o fruto das conquistas das
mobilizações das décadas anteriores; a desestruturação das relações de trabalho e a
desmontagem do aparelho de Estado foram o lado perverso da última década do
século XX. Os anos de 1990 coincidiram com o ápice de dois fenômenos que permitem,
a Oliveira (1999), caracterizar o neoliberalismo, em terras brasileiras, como um
totalitarismo político. Estes dois fenômenos, seguindo o autor supracitado, são a perda
11
Sob diferentes óticas, vários autores registram a relação entre a consolidação do parque industrial automotivo e o desenvolvimento das condições sociológicas necessárias para o amadurecimento de um movimento sindical vigoroso e massivo. Ver ALMEIDA, 1975; HUMPHREY, 1982; OLIVEIRA, 2005; RODRIGUES, 1970.
de centralidade do trabalho e um processo de intensa subjetivação da acumulação do
capital, [...] que expressa a privatização do público, ou, ideologicamente, uma
experiência subjetiva de desnecessidade, aparente, do público (OLIVEIRA, 1999, p. 57).
Não cabe aqui, em função dos interesses que norteiam o texto e,
principalmente, do espaço reservado ao mesmo, adentrar ao debate sobre a perda de
centralidade do trabalho12. Basta lembrar que a formalização das relações de trabalho
é base, no ocidente, para o desenvolvimento dos direitos sociais e de tudo que os
mesmos significam no processo político democrático. Logo, o significado sociológico da
perda desta centralidade é a fragilização dos espaços da política13.
Mas, se faz necessário dedicar maior atenção ao segundo fenômeno registrado
por Oliveira: a experiência subjetiva de desnecessidade, aparente, do público. Como
foi argumentado até aqui, o Estado Moderno, através do fundo público (OLIVEIRA,
1998), é mediador da sociabilidade, por atuar desmercantilizando as relações sociais e
promovendo o reconhecimento da alteridade. Neste sentido, o Estado do Bem-Estar14
transformou-se no modelo melhor acabado deste processo, ainda que imperfeito e
insuficiente. O problema é que, apesar de ser fruto de um conflito político – porque
não dizer, um conflito de classe – que se materializou em direitos sociais, a
longevidade do Estado do Bem-Estar produziu, nas últimas décadas, o processo de sua
própria naturalização.
Esta naturalização se efetiva na proporção inversa em que o conflito histórico,
que deu origem a determinados direitos, se distancia no tempo. Ou seja, o fruto da
conquista coletiva perde a historicidade de luta de uma classe ou grupo social e se
apresenta como privilégio ou direito subjetivo, sendo, apenas, individualmente
percebido. Assim, o caráter, muitas vezes, administrativo do exercício dos direitos, os
descolam da base material do conflito e passam a ser fontes de percepção de uma
desnecessidade do público.
12
A referência fundamental para o início deste debate é OFFE, 1989; mas o escopo da discussão é bem mais amplo, tendo enfoques sociológicos, econômicos e políticos diversos. Sobre este assunto, sob diferentes abordagens teóricas, pode-se, além de OFFE, consultar BOYER, 1990; CASTEL, 1998; FERRAZ, 2011; FITOUSSI & ROSANVALLON, 1999; GORZ, 1987; HABERMAS, 1987; MARKERT, 2002; SILVA, 2004, SUPIOT, 1994 e TELLES, 2001. 13
Para um debate sobre o significado político da perda de centralidade do trabalho nos conflitos trabalhistas ao redor dos acordos coletivos, ver FERRAZ, 1006. 14
Sobre o Estado de Bem-Estar ver o já citado OLIVEIRA, 1998; além de FIORI, 1997 e ESPING-ANDERSEN, 1991.
Mas não é apenas a relação individualizada com os direitos que sugerem,
ideologicamente, a aparente desnecessidade do público. Oliveira chama de
experiência subjetiva de desnecessidade, aparente, do público, também, ao
movimento que leva o indivíduo a se auto-retratar como responsável pela riqueza do
Estado, sem tocar no papel central do Estado no processo de reprodução social. Talvez
seja melhor dar a palavra ao próprio Oliveira:
A privatização do público é uma falsa consciência de desnecessidade do público. Ela se objetiva pela chamada falência do Estado, pelo mecanismo da dívida pública interna, onde as formas aparentes são as de que o privado, as burguesias emprestam ao Estado: logo, o Estado, nessa aparência, somente se sustenta como uma extensão do privado. O processo real é o inverso: a riqueza pública, em forma de fundo, sustenta a reprodutibilidade do valor da riqueza, do capital privado. Esta é a forma moderna de sustentação da crise do capital, pois anteriormente, como nos mostrou a Grande Depressão de trinta, assim como todas as crises anteriores, o capital simplesmente se desvaloriza (OLIVEIRA, 1999 p. 68)
E o autor não se detém nesta esfera da relação entre indivíduo e Estado. As
experiências subjetivas, das diversas camadas da burguesia nacional, produzem uma
sociabilidade cotidiana cada vez mais privatizada, que acaba por reforçar o fenômeno.
Com exemplos esta afirmação pode ficar mais compreensível. Os filhos e jovens da
burguesia brasileira crescem, hoje, no interior de condomínios fechados, onde apenas
se relacionam com membros da sua própria classe. Ao atingirem a idade escolar,
escolas privadas, que não permitem a presença de nenhuma alteridade social, os
acolhem e uma nova socialização é feita, novamente no interior da própria classe. Seu
lazer e práticas de consumo são filtrados por padrões de mercado que segmentam os
diversos shoppings, e, mais uma vez, inibem o contato inter-classes. O resultado é,
que, quando adulto, sua relação com o Estado só pode se materializar na visão de uma
grande empresa. Portanto, extensão do seu próprio escritório.
Ou seja, sob olhos privatizantes, porque alheios a alteridade, o Estado se
transforma em um espaço puramente técnico e administrativo. Se o Estado não é
puramente o lócus do poder. Tampouco é apenas um aparelho gerencial, em que
qualquer conflito político, seria a prova de seu atraso e ineficiência. Talvez por isso, por
este olhar de pouca afeição a alteridade, a sociologia brasileira tenha gasto tantas
linhas para substituir o conceito de burocracia, pelo conceito de tecnocracia15, nos
estudos sobre o Estado brasileiro. Se em Weber a burocracia é fundamentalmente um
conceito para explicar a legitimidade da dominação, logo é de poder e de política que
se trata; o conceito de tecnocracia esvazia o debate sobre a dominação legal entre
classes e o transforma em uma discussão sobre as hierarquias técnicas no interior do
aparelho de Estado.
Sob todas estas facetas, a falsa impressão de desnecessidade do público é a
forma mais contemporânea de privatização do público, sem a consequente
possibilidade de publicização do privado. É a experiência privada do mundo, sem
vislumbrar a alteridade. É a experiência privada do mundo que sepulta a fala, o
dissenso e a política. Com estas questões, torna-se possível colocar ponto final neste
texto. Mas também há a possibilidade de se colocar alguns pontos de interrogação.
Como pensar, hoje, no Brasil, o acesso aos direitos sociais, como saúde,
educação, previdência, trabalho, lazer e cultura, em uma realidade repleta de
virtuosidades como instituições democráticas relativamente sólidas, setores
organizados da sociedade capazes de exercer de modo contínuo a representação de
interesses, espaços públicos propícios para o exercício da pluralidade de focos e da
controvérsia; mas ao mesmo tempo; em uma realidade transpassada por tradições
que rejeitam a alteridade, como o golpismo político, a cordialidade e a escravidão,
assim como as novas formas de interditar o debate público, através de processos
contemporâneos de experiências subjetivas de desnecessidade do público? Em outras
palavras, e para fazer uma questão mais direta e menos repleta de vírgulas e pontos e
vírgulas. Como privatizar o público e publicizar o privado no atual estágio das relações
políticas e sociais brasileiras?
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15
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