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Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma ... Iterra... · de um brasileiro otimista, que acreditava entusiasticamente nas possi bilidades de seu país, apesar de

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Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária

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ITERRA

JOSUÉ DE CASTRO

SEMEADOR DE IDÉIAS

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Produção: Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária - ITERRA e Instituto de Educação Josué de Castro. Organização e texto: Anna Maria de Castro Projeto Gráfico, diagramação e capa: Flavio Valverde Garotti

Todos os direitos reservados ao ITERRA.

1 a edição: setembro de 2003.

ITERRA - Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária

Rua Princesa Isabel, 373

Cx. Postal 1 34 95330 - 000 Veranópolis/RS

Fone/fax: 54 441 1755 Endereço Eletrônico: [email protected]

O coletivo de educandos e de educadores do Instituto de Educação Josué de Castro agradece

a disponibilidade e a solidariedade do trabalho da companheira Anna Maria de Castro.

Sumário

Apresentação .................................................................................................... 7

Introdução ........................................................................................................ 9

Onde tudo começou ........................................................................................ 11

Escritor e cien~·sta ......................................................................... .................. 23

Professor ........................................................................................................... 27

Político .............................................................................................................. 33

Cidadão do mundo .......................................................................................... 39

Homem ............................................................................................................. 43

Biografia resun1ida ........................................................................................... 67

II parte .............................................................................................................. 69

Hoinenagem ..................................................................................................... 85

Principais obras ................................................................................................ 91

Algumas obras sobre Josué de Castro ............................................................ 93

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Apresentação

Caros companheiros e companheiras, militantes de movimentos so­ciais e, em especial, militantes-educadores de nosso MST.

Sinto-me muito orgulhoso em poder fazer a apresentação deste bo­

nito texto sobre o significado da vida e obra de nosso querido Josué de

Castro. Fazer referencias elogiosas à contribuição de Josué de Castro seria

quase uma redundância, mal feita, do próprio texto da cartilha.

Referenciar sua figura, como apresentação de texto escrito por sua filha, também pode ser dispensável.

Por isso, penso que devemos aproveitar a oportunidade para, na

figura exemplar de Josué de Castro, relembrar a importância e a neces­

sidade que o povo brasileiro tem de cultuar, de cultivar, de homenage­ar, de resgatar seus principais pensadores e lutadores.

O povo brasileiro viveu, nos últimos trintas anos, duas tragédias po­

lítico-sociais. A primeira foi a ditadura militar que sobre ele se abateu

de 1964 a 1984, e que foi a responsável pela partida precoce de Josué

de Castro. E a segunda foi a onda de neoliberalismo, sobretudo nos go­

vernos Collor e FHC. As duas tragédias tiveram uma coisa em comum:

implantar o pensamento único, hegemônico das classes dominantes, capitalistas, subordinadas apenas aos interesses do capital estrangeiro,

como se fosse a verdade absoluta e a única forma de interpretar a rea­lidade brasileira.

Ou seja, nosso povo e nossos jovens viveram uma ditadura ideoló­

gica que nos cegou. Que tentou, a todo custo, apagar da memória his­

tórica a contribuição de nossos grandes pensadores. Apagar o exemplo, às vezes heróico, de tantos lutadores do povo brasileiro, que deram até

a vida para que construíssemos uma sociedade mais justa e fraterna. Quantos professores, jovens e militantes do Brasil conhecem ou

ouviram falar de nossos queridos Paulo Freire, Josué de Castro, Darcy

Ribeiro, João do Vale, Patativa do Assaré, Câmara Cascudo, Caio Prado Junior, Nelson Werneck Sodré e tantos outros?

Esses pensadores e lutadores foram "esquecidos" pela classe do­minante, para que as gerações atuais não pudessem se apropriar de seu pensamento, de seu exemplo, de suas reflexões. E nos proibiram de conhecê-los porque sabem que seu pensamento e ação são revolucioná­rios. Revolucionários não numa retórica agitadora, de gritar toas a mu­danças. Revolucionários no verdadeiro sentido de Marx e de Caio Prado

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Junior: de revolucionar as estruturas econômicas e sociais, para que o povo possa se apropriar coletiva e socialmente dos bens da natureza e das formas de produzir os bens, utilizando-os em favor da melhoria de

vida material e cultural de todos e não apenas de uma minoria, como

sempre aconteceu nesses 500 anos. Nossa obrigação, como militantes estudiosos e dedicados que de­

vemos ser, se quisermos honrar a memória de Josué de Castro, é estu­

dar suas obras, compreendê-las, utilizá-las para transformar nossa

realidade. Recuperar seu pensamento e ação para que todos os estudan­

tes e militantes sociais os conheçam.

Referenciar Josué de Castro é apreender dele o método. O méto­

do de conhecer profundamente a realidade em que vivemos, aplicar

sobre ela os instrumentos científicos de análise e interpretação, e tirar

lições para que a nossa ação seja de fato transformadora.

Apesar das duas tragédias citadas, apesar de tantos esforços da clas­

se dominante em esconder de nós Josué Castro, cá estamos revivendo­

º· Eles, a classe dominante, podem muito. Manipulam os meios de comunicação. Manipulam as escolas. Mas não podem parar a historia

nem esconder a realidade.

Mais do que nunca o espírito de Josué de Castro está presente.

Mais do que nunca ele nos ensina, com amor a nosso povo, a mudar

nossa realidade.

Viva Josué de Castro!

João Pedro Stedile

Introdução

Foi com dupla satisfação que aceitei o convite para escrever um caderno de estudos sobre Josué de Castro para os estudantes do MST.

Primeiramente, pela admiração que nutro pelo Movimento, que tem

dado ao Brasil exemplos de coesão, disciplina e dedicação a uma causa justa. Em segundo lugar, porque recordar meu pai é sempre estimulante e renova em mim esperanças de um Brasil melhor.

Espero que a leitura destas páginas, recolhidas com muito zelo e

carinho, possa ser útil aos jovens, na medida cm que, a despeito da du­

reza dos temas como fome, subnutrição, miséria, elas encerram a história

de um brasileiro otimista, que acreditava entusiasticamente nas possi­

bilidades de seu país, apesar de reconhecer as dificuldades a serem en­

frentadas.

Na medida do possível, procurei manter suas próprias palavras,

selecionadas de entrevistas, livros, artigos e depoimentos, concedidos

e escritos ao longo de sua produtiva existência.

Toda sua obra, na verdade, Josué de Castro dedicou aos jovens. Queria transmitir suas descobertas, denunciar as falsas teorias, levar o

conhecimento adquirido através dos anos às novas gerações. Usava das

palavras como poucos, era extremamente convincente nas suas afirma­

ções e após suas conferências, tanto no Brasil como no exterior, podia-se

contar um novo número de admiradores e seguidores. Na realidade foi semeador de idéias.

Queria satisfazer um pouco esta fome de saber das novas gerações de brasileiros cujos interesses são tão diversos dos da educação conce­

bida nos países ricos. Na visão de Josué de Castro, contribuir para a edu­

cação de povos subdesenvolvidos é fazê-los ter consciência de sua realidade social, mesmo sabendo que conhecer e aceitar esta realidade

é tarefa árdua e penosa para eles. Espero ter tido êxito e que este caderno possa, a um tempo, au­

mentar o contingente de novos admiradores da obra de Josué de Cas­tro e, a outro, transformar-se cm mais um elemento para ajudar na compreensão e solução dos graves problemas que ainda temos de ven­cer.

Rio de Janeiro, maio de 2003 Anna Maria de Castro

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Onde tudo começou

Josué de Castro nasceu cm 5 de setembro de 1908, na cidade do

Recife, Nordeste do Brasil.

"Não sei porque me chamo Josué. Talvez porque meu pai era mís­tico, ledor da Bíblia. Sou filho de Manuel Apolônio de Castro e de Josefa Carneiro de Castro. Meu pai era homem pobre, da Paraíba, Cabaceiras, o lugar mais seco do Nordeste. É onde menos chove no Brasil. Mamãe era professora."

A história da família de Manuel Apolônio de Castro é bastante in­

teressante e merece ser conhecida. Ela é contada por um de seus pri­

mos, Serlito Pereira de Castro:

"na estação de Cabaceiras, cm 1700, no alto sertão paraibano, foi onde tudo começou. Daquele tempo até hoje, houve de tudo, oca­minho foi longo, tortuoso e incerto, foi tudo feito na pata do boi, inclusive até assassinatos bárbaros. Mataram-se índios que eram os donos de tudo, como se mata moscas. Os índios foram substituí­dos pelo gado. Como toda civilização, a nossa foi também imposta pela força. Em nome da civilização, do progresso e do cristianismo, matamos, saqueamos e tomamos posse. Quando tudo estava sob controle e reinava a paz imposta pelas armas (índio não é bobo; contra a força, o melhor é fugir para bem distante!), eis que surgem quatro personagens muito importantes na nossa história: Domin­gos de Faria Castro, Izabel Rodrigues de Oliveira, Cristina Rodrigues de Oliveira e Antônio Ferreira Guimarães. As células destes quatro, germinaram e se multiplicaram até 1854, na grande confraternização de João Evangelista Pereira de Castro e Isabel Victorina de Barros. Daí até 1923, foi um pulo só: Octávio Roque Pereira de Castro em parceria com D. Carolina Custódia da Silva Mello, D. Laurinda Moreira de Lemos e D. Maria das Neves Pe­queno criaram, a partir de 1923, um monte de gente que iria criar dezenas de centenas de novos 'Castras'."

História que vale a pena ser recontada é a José de Faria Castro e Maria José dos Anjos. Meio século antes da abolição da escravatura, em e

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pleno sertão paraihano, longe de todo tipo de comunicação, o casal to­

mou uma atitude admirável e raríssima para a época, conta Serlito. Li­

bertou seus escravos e os incluiu entre seus herdeiros. E is a cópia do

inventário:

Inventário

"Declaro que o restante de minha terça deixo por esmola a todos os meus escravos repartidamente com igualdade por todos, os maxos

e as femeas maiores e menores. Declaro que ainda em tempo de meo marido demos a liberdade a todos os nossos escravos, cujas contas se achaão cobertas com outro papel e tirada a dita carta de liberda­

de, esta será entregue ao meu Testamenteiro, para as mandar lançar em notas, e dá a cada um dos referidos escravos hum titulo em for­

ma e peço a Justiça de sua magestade imperial proteja aos sobre~itos

escravos a cerca de sua liberdade. Declaro que exclua da herança todo, qualquer dos herdeiros que tentarem contra a liberdade de rneos escravos, paçando a dita herança a quem os defender."

Assim, 15 escravos foram libertados pelo casal e, em homenagem

aos antigos senhores e libertadores, adotaram o sobrenome "Faria de

Castro."

A principal atividade econômica da região de Cabaceiras está ba­

seada na pecuária e na agricultura. O município de Cabaceiras faz par­

te do polígono das secas, e está localizado no médio sertão dos Cariris

Velhos. Região seca, pedregosa e abundante em tabuleiros próprios para

a criação de gado. Com sua vegetação de cactos e bromélias, está em

condições de preservar seus rebanhos durante as secas. Por esse moti­

vo, a maior força da economia da região está concentrada na pecuária,

principalmente no gado bovino da raça Zebu, importado da Índia para

o estado da Bahia e exportado para todo o Brasil. Este tipo de gado é

bastante resistente às condições locais .

"Nasci no número 1 da rua Joaquim Nabuco. Eu escrevia o nome de Nabuco, mesmo antes de saber quem ele era. Depois foi uma personalidade que me interessou sempre."

Assim Josué, com suas próprias palavras, descrevia, parte de sua

infância. E, prosseguia:

"durante muitos anos moramos numa velha casa colonial com a madeira das janelas toda descascada, fincada à beira do rio, corno uma fortaleza trepada em altos batentes, ficando, em tempo de cheia inteiramente cercada de água, com caranguejos subindo pelas gra­des até o terraço, os mais ousados entrando sala a dentro. Bem do

lado da casa começava um bairro de mocambos, verdadeiras cumbucas negras parecendo boiar sobre as águas dos mangues."

Sua vida de estudante era narrada com bastante humor: "estudei em dois Colégios no Recife, nos quais personifiquei duas atitudes estereotipadas: numa a de anjo, noutra a de demônio. Co­mecei como demônio. Arrancado de minha selvageria de banho no rio, de jogo de pião e de castanha, de pés descalços na rua, para a disciplina rigidamente estúpida de um colégio onde o aluno inte­ressava apenas como contribuinte ao seu orçamento, me rebelei,

profundamente e personifiquei o menino mau. Nos três anos que lá estudei desobedeci, com fervor, o regulamento e fui castigado com método. Passei mais tempo deste período ajoelhado num canto da

parede do que sentado na banca de estudo. Dia havia em que só saia do castigo na hora do recreio para estirar as pernas nas correrias pelo pátio do colégio. Felizmente me mudaram de colégio e no novo encontrei a figura humana que mais influência teve em minha vida. Uma influência discreta, dissimulada, mas no fundo decisiva: a do

educador Pedro Augusto Carneiro Leão, mestre insuperável de inúmeras gerações de pernambucanos, possuidor de uma penetra­

ção psicológica que lhe dava um domínio tranqüilo sobre a inquie­ta população de seus jovens alunos. Este grande pedagogo, profundo conhecedor da alma infantil não pretendeu dominar a fera pela força, quebrando-lhe o ímpeto selvagem com castigos, mas captar o seu interesse e desviar a sua inquietação para objetivos mais nobres. E conquistou-me. Conquistou-me com um pacto que tacitamente fizemos os dois, sem aludirmos diretamente aos seus artigos fun­damentais: a obrigação de estudar de verdade e a liberdade de con­

tinuar com direito a certas rebeldias. O Mestre fechava os olhos a certas faltas de comportamento e eu me esforçava um pouco mais nos estudos para que ele continuasse nesta sua atitude dis­traída, tão propícia à minha selvageria. O seu método acabou por domesticar o selvagem, sem quebrar-lhe a espinha dorsal do espírito. Trocamos o primeiro sorriso de íntima compreensão no fim do primeiro ano de estudos, o qual selou a nossa amizade. Foi no dia em que terminei os exames dos quatro primeiros pre­paratórios no Ginásio pernambucano e tirei o primeiro lugar da turma do colégio. Neste dia, diante de outros professores, al­guns sempre irritados com o mau comportamento do aluno re­belde, quase vi o sisudo diretor piscar-me o olho, quando me apertava a mão."

"Quero ainda relatar um episódio ocorrido durante o meu curso secundário, o qual define o profundo senso com que este grande

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mestre orientava o comportamento dos seus alunos. Foi no último ano de preparatórios. Tomei-me de entusiasmo pelo jogo de bilhar. E como havia um grande bilhar nas vizinhanças do colégio, não saia de lá. Comecei a faltar as aulas, a relaxar os estudos. O mestre cha­mou-me em seu gabinete e entabulou comigo em tom cordial, o seguinte diálogo:

- As suas notas estão baixando inexplicavelmente. O número de

faltas aumentando. Já não o julgo o mesmo aluno. O que é que se passa com o senhor?

Apressei-me em arranjar uma justificativa:

- É que o meu pai foi para o Sertão e deixou-me encarregado de resolver vários negócios complicados.

- Mas isto é muito ruim, prossegue o mestre, isto prejudica os seus estudos. Eu vou escrever ao seu pai explicando-lhe que é preciso

encarregar outra pessoa destes negócios ...

- Não há necessidade, atalhei assustado, eu mesmo explico tomo

todas as providências ...

- Muito bem, agora, outra coisa, me disseram que o senhor às ve­

zes entra no bilhar do Parque.

- Raramente, professor, só quando está chovendo entro para pas­

sar a chuva.

- Pois faz muito mal, replicou-me o professor, com um tom de voz bem pausado, faz muito mal mesmo. É melhor levar chuva que entrar naquele antro. Já teve ocasião de reparar bem quais os seus

colegas que freqüentam esta casa de jogo?.

- Não senhor, sempre demoro tão pouco lá.

- Pois volte mais uma vez e repare bem quais são e depois volte para me dizer se o senhor se sente bem em ser considerado de sua classe. Faça esta experiência.

Sai com o sangue me afogueando o rosto, não fui reparar mais nada no bilhar. Nem mais lá entrei e terminei neste ano os quatro pre­paratórios que me faltavam."

A lição foi proveitosa. Octavio Pernambucano, amigo de infância,

cuja amizade permaneceu por toda a vida, dá um expressivo depoimento

sobre esses tempos de colégio:

"no início das aulas cm 1921, voltávamos ao Instituto Carneiro Leão sem ter perdido o medo inspirado pelo Dr. Pedro Augusto, grande educador que sabia esconder sob a máscara da severidade, o pater­no sentimento do verdadeiro mestre. Temiam todos sua repreen­são bem medida ou o nome na lista dos 'privados' que ficavam para escrever de 100 a 500 vezes a resposta certa ou estudar até repetir a lição sabida. Como al~ns poucos, nós dois, eu e Josué, nunca fi­camos privados e tínhamos uma afinidade: não usávamos os ditos e gestos imorais dos companheiros."

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' Médico

''Acabei meus preparatórios com 15 anos. Me formei, em medici­na, com 20 anos e meio. Papai, com sacrifício, queria que eu estu­dasse na Bahia, lá permaneci por três anos. Terminei a Faculdade

no Rio de Janeiro, em 1929. Mas não me diplomei porque tive de sair chefiando uma delegação de estudantes à posse do Presidente do México, Engenheiro Pascual Ortiz Rubio."

Certa vez, diante da pergunta, sobre que impressão lhe causara a

Bahia e sua Faculdade de Medicina, assim respondeu:

''A princípio uma impressão de deslumbramento e de veneração por

seus velhos muros, pela austera fachada da sua escola. Depois de desencanto no que diz respeito ao ensino ali ministrado. Aliás, não

só a Faculdade da Bahia, mas depois a do Rio, também me desa­pontou por completo. Entrei com um grande entusiasmo e saí com o interesse quase morto pela maioria dos assuntos, na forma em que eram apresentados. Poucos professores me entusiasmaram. Na Bahia, destaco o velho mestre Pirajá da Silva, figura veneranda de homem de estudo, e o professor de Fisiologia, Aristides Novis, que me arrebatou muitas vezes com o brilho literário de suas preleções. Virei 'fisiólogo' em dois tempos. Estudei com furor, conquistei uma distinção na cadeira e a amizade do mestre que perdurou. até a sua

morte. Na Faculdade do Rio, a grande figura que me encheu de encantamento foi a do Prof A. Austregésilo, sem dúvida uma das maiores vocações que teve o ensino médico brasileiro.

"Mas devo honestamente confessar que maior influência do que os professores, teve em minha formação o convívio com alguns cole­gas de talento. Na Bahia influenciou muito no rumo de meus es­tudos e indagações, a presença na mesma pensão em que morava, de dois colegas com os quais muito me liguei: Artur Ramos e Teotonio Brandão. Teotonio com mais intimidade, Ramos com uma certa distância e reserva diante de sua maior maturidade intelectual, do seu prestígio de veterano, com três anos de curso na frente. Com Teotonio, discutíamos; com Ramos, ouvíamos. E ouvíamos coisas

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esmagadoras. Nomes arrevesados de venerandos sábios alemães. Teorias frescas trazidas diretamente dos centros europeus, por mis­teriosos caminhos, para o sisudo discípulo de Freud, na Baixa do Sapateiro. Ficamos de queixo caído diante da imponência da sua cultura. Um dia ele nos fez a revelação suprema de que sairia um estudo seu sobre Augusto dos Anjos e a Psicanálise, num dos su­

plementos dominicais de 'O Jornal'. Isto na província em 1925, meu

caro, me pareceu a glória. Fomos comovidos até o Plano Inclinado comprar o número do 'O Jornal', desdobramos as páginas com unção e lá encontramos o artigo com título e nome do autor. Tudo

aureolado pela letra de forma em tipo grosso. Não me contive. Veio­me à alma uma inveja doida de tanta glória. Fui também ao Freud - um Freud de terceira classe, já comentado cm tradução e lancei um ensaio tremendo, meu primeiro ensaio, intitulado 'A Literatura Moderna e a Doutrina de Freud' , que saiu flamejante na Revista de

Pernambuco. Senti-me como um igual e no ano seguinte passei a ir ao cinema junto com o mestre Ramos."

Ao longo da vida, Josué manteve o gosto pelo cinema. Apreciador

das artes, de um modo geral, jamais abandonou as idas ao cinema, sem­

pre que a agenda de compromissos lhe permitia. Quando jovem, estu­

dante de medicina, era extremamente vaidoso e pretensioso e para

demonstrar erudição, saia à rua com o mais grosso de seus livros de es­

tudo, conforme relata em seu diário.

Na verdade foi um jovem impetuoso, que não via fronteiras sociais

nem culturais que não pudessem ser ultrapassadas; acreditava cm sua

inteligência e competência para conquistar o reconhecimento de seu

trabalho.

"Com Freud fui direto ao estudo da psiquiatria, encantei-me com

o achado que na Psiquiatria eu poderia relacionar a literatura com a medicina."

Aos poucos o interesse por Freud foi diminuindo e começou a fase

da poesia. De 1928 a 1930 sua produção literária se intensifica e diver­

sifica-se quanto à temática.

"Eu sonho sonhos distantes,

em barcos ausentes, velozes, ondeantes,

paisagens vivas, longe, diferentes.

Eu sonho sempre. Sonho ... "

Neste poema revela sua alma de sonhador, circunstância que mar­

cará sua trajetória de vida.

Também expressivo, do ponto de vista poético, embora construído

em prosa, é o texto em que repudia as teorias racistas tão presentes na

sociedade da época:

" ... alcançaremos este futuro lentamente como quem busca a per­feição. Etapa por etapa. Do individualismo ao socialismo. Derru­bando primeiro os preconceitos de classe. Segundo, os de raça. Terceiro, os de nacionalidade. Sempre tendentes à irmanação inte­gral. Amando a todos os homens. A todos os irmãos de raça. A to­das as raças irmãs. A todos os filhos de Deus."

Formado, retorna ao Recife para trabalhar na secretaria de Educa­

ção. Olívio Montenegro, Sílvio Rebelo, Gilberto Freire e outros eram do

grupo de José Maria Belo, que seria o governador. Por todos eles esta­

va reservado um cargo para Josué.

"Contudo, não houve posse e a coisa gorou. Abri, então um con­sultório para fazer nutrição. Eu, na realidade queria ser psiquiatra mas o Ulhoa Cintra (outro médico) tinha dois aparelhos de meta­bolismo. Me vendeu um e resolvi fazer nutrição. Um só livro, 'O Tratado de Umbe', figurava na biblioteca. As doenças da nutrição eram cinco, na época: obesidade, magreza, diabete, gota e reuma­tismo. Como era coisa nova, consegui ter uma boa clientela, apesar de minha cara de menino que às vezes assustava os clientes.

"Comecei, também, a trabalhar numa grande fábrica e a verificar que os doentes não tinham uma doença definida, mas não podiam trabalhar. Eram acusados de preguiça. No fim de algum tempo com­preendi o que se passava com os enfermos. Disse aos patrões: sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-los porque sou médi­co e não diretor daqui. A doença desta gente é fome. Pediram que eu me demitisse. Saí. Compreendi, então, que o problema era so­cial. Não era só do Mocambo, não era só do Recife, nem só do Brasil, nem só do continente. Era um problema mundial, um drama uni­versal."

A descoberta da Fome Emocionava-se, ele próprio, quando narrava, como o fez no prefá­

cio de seu livro Homens e Caranguejos, seu primeiro e angustiante con­

tato com o fenômeno da fome.

"O tema deste livro é a história da descoberta da fome nos meus anos de infància, nos alagados do Recife, onde convivi com os afogados deste mar de miséria. Procuro mostrar neste livro de ficção que não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei

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conhecimento com a fome. O fenômeno da fome se revelou espon­taneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha

do Leite e tantos outros. Esta é que foi minha Sorbonne."

E, ao descobri-la, mais tarde, Josué de Castro tentou encontrar mé­

todos científicos capazes de analisá-la como fenômeno social, econômico

c político e não como algo natural.

No prefácio da Geografia da Fome enfatizava dramaticamente:

"não é só agindo sobre o corpo dos flagelados, roendo-lhes as vísceras e abrindo chagas e buracos em sua pele, que a fome ani­

quila a vida do sertanejo mas, também, atuando sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta social.Nenhuma ca­

lamidade é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido tão nocivo a personalidade humana corno a fome .... O maior ab­

surdo de nossa sociedade é termos deixado morrer centenas de mi­lhões de indivíduos de fome num mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua produção e que dispõe de recursos téc­

nicos adequados à realização desse aumento."

Assim, Josué de Castro descobriu a fome não como um fenômeno

natural como muitos gostavam ele explicar, mas como uma criação cios

homens, fruto ela forma ele exploração ela natureza e da ação violenta ele

alguns homens sobre outros homens.

Ainda em Pernambuco

"Dois anos como médico da fábrica e a experiência direta que tive da miséria de nossos operários - experiência que utilizei no campo da ficção quando escrevi o como 'Assistência Social'- me levaram à

convicção de que era absolutamente necessário proceder-se a um estudo desta miséria aludida, referida ou combatida por muitos, mais até então não comprovada com rigor científico. Foi então que rea­lizei o inquérito sobre as condições de vida das classes operárias do

Recife, em 1932, o primeiro levado a efeito no País e cttjos resulta­dos impressionantes repercutiram nos meios cultos, chamando a atenção das elites para o problema da fome nacional. Logo a seguir, sob a inspiração deste inquérito outros foram realizados no Rio de Janeiro e São Paulo.

"De 1930 a 1932, já clinicando, meu instinto de fera reaparece e se exalta ao máximo, revelando-se em atitudes e referências diante de certos grupos de gente da terra, que eu reconheço como tendo sido desnecessário exagero demolidor ... Tomamos atitudes forçadas e

esnobes só para desconcertarmos o rebanho dos cordatos e acomo­dados. Foi esta a fase de minha vida em que consegui fazer o maior número de inimigos, alguns deles da mais salutar influência no

rumos das minhas íntimas aspirações."

Josué de Castro entendia que a incompreensão dos inimigos lhe

era benéfica porque o obrigava a pensar para encontrar respostas.

"Comecei a estudar o social e o econômico. Fundei, com vários companheiros, a Faculdade de Filosofia do Recife. Consegui ser pro­fessor da Faculdade de Medicina (Fisiologia) e da de Filosofia (Geo­

grafia Humana). Na Faculdade de Filosofia, conheci Glauce, uma bela aluna que mais tarde tornou-se minha esposa."

Rumo ao Rio de janeiro

Na busca de novos horizontes, Josué transfere-se para o Rio de Ja­

neiro, onde pensa continuar seus estudos sobre fome e nutrição. Assim,

já casado com Glauce Pinto de Castro, sua companheira, mãe de seus

filhos, cúmplice, parceira, iniciou uma nova etapa cm sua vida. Glauce

deveria ter seu nome gravado como co-autora de cada um dos livros es­

critos por Josué de Castro.

"Quando em 1935 deixei o Recife para ir residir no Rio, atravessei um período de dificuldades, lutando duramente pela subsistência. Escrevendo, tentando clinicar, tentando até um concurso de Esta­

tístico, onde me agüentei na tese, na sua defesa, na escrita e na oral, mas me achatei definitivamente na prática, diante de máquinas muito mais inteligentes do que o candidato, capazes de fazer com­

plicadíssimos cálculos ao leve toque de alavancas, com as quais o candidato não sabia mexer, tocando enfim vários instrumentos e fracassando em todos os tons. Foi nesta época (1936), que Roquette Pinto convidado para professor de Antropologia da recém-criada Universidade do Distrito Federal, sonho de cultura e pesquisa de Anísio Teixeira, e não podendo aceitar por motivo de saúde o en­cargo, indicou o meu nome para substituí-lo. Assim comecei a en­sinar no Rio, passando depois para a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. O outro nome que desejo referir com emoção é o do grande Mário de Andrade. Sua influência se exer­ceu através de longa correspondência que mantivemos até a sua morte e na qual ele derramou generosamente advertências, conse­lhos e sugestões que muito serviram na marcha dos meus estudos."

Aos 28 anos fez o concurso de professor titular em Geografia Ilu­

mana da Facu ldade Nacional de f'ilosofia da Universidade do Brasil. Se E

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os primeiros trabalhos elaborados tratavam da fisiologia da nutrição, aos

poucos foi abrindo os horizontes e inserindo a nutrição como problema

social, objetivando estudá-lo no contexto sócio-politico para poder entendê-lo e explicá-lo.

Do Rio de Janeiro partiu para o mundo, convidado pelo Laborató­

rio Lorenzini. Foi sua terceira viagem ao exterior. As anteriores foram

à Argentina e ao México, ainda como estudante.

Escritor e cientista

Vivendo no Rio de Janeiro, Josué, a despeito do sucesso da clíni­

ca médica, resultado de viagem de estudos realizada a Roma, começa,

paulatinamente, a abandonar a medicina exercida em seu consultório.

Cada vez mais deseja escrever sobre o objeto de suas pesquisas cientí­

ficas. Cresce também sua admiração pelos grandes escritores. Em 1937

publica: Alimentação à luz da GeOKJYlfia llttmana.

Durante a guerra, participou da Comissão de Mobilização Nacio­

nal. Escreveu seus primeiros artigos sobre alimentação e estudou mui­

to, pesquisou, leu o que havia sido até então publicado sobre

alimentação e fome.

Como médico, estudou a fome relacionando-a a d iferentes tipos de

doenças, e aos poucos desenvolveu rodo o conhecimento necessário para

entender, como prioritária na formação do homem, a alimentação.

O retorno ao Rio de Janeiro

"Ao regressar, cu era o homem que tinha chegado da Europa. A clí­nica abarrotou. Fui convidado para dirigir um departamento de nu­trição. Não pude aceitar. Ainda assim, a clínica já não me satisfazia. Faltava 15 dias em cada 30 de trabalho no consultório. O que eu queria era escrever a Geografia da Fome."

Neste momento, fruto de dedicação e estudos Josué mostrava

grande amadurecimento não só quanto a seus objetivos, como também

do ponto de vista científico. Indagado sobre se a ciência deve estar sem­

pre a serviço do social, assim se expressou:

"Claro que sim. A ciência e a técnica são duas outras expressões do mesmo rosto da cultura e só significam alguma coisa como traços componentes deste mesmo rosto. Isoladas perdem toda a expres­são. Temos uma comprovação desta verdade no que se passou nes­tes últimos anos. A ciência pura cm sua expressão máxima de aparente alheamento ao mundo das realidades sociais - a Física Teórica - cm suas transcendentes especulações deu lugar a desco- 4

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bertas que estão subvertendo por completo, todos os princípios e valores de nossa civilização, com ameaças e esperanças que abalam a consciência social do mundo inteiro. A bomba atômica derrubou

os últimos muros que ainda podiam separar os homens de labora­

tório dos homens da rua."

Alimento como a melhor vacina Guia da Al imentação organizado pelo Instituto de Nutrição da Univer­

sidade do Brasil. Campanha de Educação de Adultos, Ministério da

Educação e Cultura, 1947

Todo animal precisa de alimento para poder se desenvolver. O homem como qual­

quer outro animal não é diferente. A vida depende da alimentação. Assim, uma vaca

bem alimentada e bem nutrida, produz muito mais leite do que as que não têm o que

comer e muitas vezes do que beber.

O homem bem alimentado quase não fica doente, já que a principal causa geradora

de doenças é a falta de alimentos, que gera um organismo sem forças para agir quan­

do entra em contato com algum micróbio. Muitas crianças que morrem de sarampo,

na verdade, estão morrendo de fome porque não conseguiram reagir à ação da doen­

ça. As crianças que podem comer os alimentos que seu organismo necessita crescem

mais e sobretudo podem desenvolver seu cérebro, podem pensar e aprender melhor.

E, quando adultos poderão trabalhar melhor e continuar aprendendo.

Precisamos, contudo, saber que comer muito não significa comer bem e estar bem

alimentado. Cada alimento tem mais ou menos as qualidades, vitaminas. sais minerais

que o homem precisa em seu desenvolvimento. Os alimentos não têm o mesmo valor.

Alguns valem mais do que outros.

Os alimentos são as substâncias que comemos para viver e que farão bem ao orga­

nismo do homem.

Os alimentos servem para diferentes funções:

1. formam toda a matéria do organismo - a pele, os ossos. o sangue, os dentes, as

unhas, o cabelo;

2. ajudam o crescimento do organismo e dão força para o trabalho;

3. asseguram a reprodução do organismo;

4. defendem o organismo contra as doenças.

Existem alimentos que só servem para dar calor ao organismo. São uma espécie de

combustível, para manter a máquina trabalhando. Assim, como uma máquina sem o

combustível, ela para.

A mesma coisa acontece ao homem quando ele usa certos alimentos, como gordu­

ras. doces, farináceos. Emagrece. perde energia, trabalha menos.

Mas. quando não come os chamados "alimentos protetores", não terá forças de

lutar contra os micróbios, (doenças).

Chamamos de alimentos protetores as carnes, os peixes, os ovos. o leite, o queijo, a

manteiga, as frutas, as verduras e os legumes, porque contêm em sua composição

substâncias da maior importância para a saúde do homem; as proteínas, as vitaminas

e os sais minerais.

Existe uma relação entre alimentação e trabalho já que a quantidade de alimentos

que uma pessoa deve comer depende de quanto necessita para realizar um trabalho.

O esforço de um rachador de lenha é maior que o de um cabelereiro. Quanto mais

pesado o trabalho, mais alimentos são necessários.

O motor do homem, para poder funcionar, precisa de combustível. A máquina pre­

cisa de carvão, o caminhão de óleo Diesel. o trator de gasolina. Quanto melhor a

qualidade do combustível melhor a máquina funciona, e também dura mais. O mesmo

acontece com o homem.

Além disto, existe relação direta entre alimentação e crescimento. No período da

infância e da adolescência o alimento é importante para o crescimento e desenvolvi­

mento. (Ver o desenvolvimento do cérebro). É também neste período que se adquirem

hábitos e conhecimentos que permanecem na cultura de cada um.

A criança sadia vai crescer e se desenvolver de forma sadia, se tornando um adulto

com saúde. Os hábitos alimentares que lhe forem ensinados quando criança serão

mantidos na vida adulta. O mesmo com relação aos erros que em muitos casos não

poderão ser reparados.

Como a criança está crescendo, construindo seus ossos, mudando os seus dentes,

fortalecendo seus músculos. mais do que ninguém necessita de bons alimentos.

Alimentação e gravidez. Normalmente, a mulher come menos que o homem. Mas,

quando a mulher está grávida precisa comer por ela e pelo filho que se desenvolve por

nove meses em sua barriga.

Depois. quando nasce a criança, a mulher deve alimentar seu filho pela amamentação.

O leite materno é o alimento mais completo para a criança em sua primeira idade. E,

para poder al imentar seus filhos a mulher tem que procurar se alimentar com bons

alimentos. (Ver os dados do leite de vacas bem alimentadas e nutrida).

A maioria das doenças decorre da subnutrição. A tuberculose, por exemplo. O or­

ganismo precisa de força para resistir aos micróbios, vírus e outras ações da natureza.

O chamado organismo fraco é conseqüência de uma alimentação defeituosa.

A produção de alimentos

A terra no Brasil. A concentração na mão de poucos. O latifúndio improdutivo e a

monocultura. Os terrenos para plantio podem ser mais pobres ou ricos. A terra precisa ser

tratada para poder produzir bem e continuadamente. Precisa ser adubada e molhada. A

água e o adubo são os alimentos da terra, fazem a terra viver. Precisamos saber como pre­

parar o terreno e os canteiros. Hoje também é importante saber escolher as sementes.

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Professor

O exercício do magistério iniciou-se corno atividade complemen­

tar ao trabalho do médico, entretanto, ao longo dos anos, não só Josué

foi tomando gosto pelas aulas como também percebeu a importância das

mesmas para o desenvolvimento de seus estudos. Gostava, também, do

contato com os jovens. Assim, o magistério foi ocupando um espaço

cada vez maior em sua vida.

Seu primeiro trabalho publicado como professor foi o de uma tese

para o concurso de titular cm Geografia Humana - 'Fatores da locali­

zação da Cidade do Recife'.

Afeito a concepções globais, que não demarcavam limites para oco­

nhecimento, lecionou, além de disciplinas ligadas à medicina, outras apa­

rentemente distantes da área médica. Em seu currículo assinalam-se:

- Professor de Geografia llumana, da Faculdade Nacional de Fi­

losofia da Universidade do Brasil.

- Diretor do Instituto de Nutrição, da Universidade do Brasil, hoje

Universidade Federal do Rio de janeiro. Este Instituto, por ele organi­

zado e fundado, leva o seu nome.

- Professor de Alimentação e Nutrição, dos cursos de pós-gradua­

ção da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil.

- Presidente da Sociedade Brasileira de Nutrição, por conta do ma­

gistério.

- Professor assistente de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Recife.

- Professor Catedrático de Geografia I Iumana, da Faculdade de

Filosofia e Ciências Sociais do Recife.

- Vice-diretor da Faculdade de Fi losofia Ciências e Letras do Recife.

- Professor de Antropologia da Universidade do Distrito Federal,

hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro. - Professor visitante da Universidade de Roma e Nápoles . 4

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- Professor estrangeiro associado ao Centro Experimental de

Vincennes, Universidade de Paris.

Já como professor criou o curso de Nutrição da antiga Universida­

de do Brasil. Desenvolveu pesquisas sobre alimentos regionais e divul­

gou através de um Guia da Alimentação, os principais conceitos ligados

à importância de cada um dos alimentos.

Era a atividade que melhor expressava seu modo de ser. Começou

e terminou a vida como professor. Orgulhava-se de ser chamado profes­

sor. Sempre acreditou nos jovens, únicos capazes de transformar este

mundo que recebemos.

Acreditou sempre no valor e importância ela educação. Em uma

expressiva passagem do texto Estratégias do Desenvolvimento, assim se

manifestou:

"Na minha opinião, uma das mais altas prioridades para o Terceiro

Mundo é a formação humana, a formação de homens responsáveis

e capazes de por em ação esta estratégia global. .. é necessário pre­

parar este tipo de homem ... Nesta nova cultura, a ciência e a técni­

ca terão certamente um grande papel a descmpenh::tr, mas elas não

podem ser as únicas componentes desta cultura. Existem muitos

outros valores que são igualmente importantes. É preciso não es­quecer que ciência não é sabedoria. A ciência é o conhecimento. A

sabedoria implica o conhecimento e o juízo. E sobre este ponto - o

do juízo dos valores - estamos muito longe de possuir uma idéia

clara das hierarquias dos fatores a serem acionados para construir

uma estratégia global do desenvolvimento que não separe o econô­

mico do humano, mas que, pelo contrário, considere o homem, os grupos humanos, toda a humanidade, como objetivo final do de­

senvolvimento ... É esta nova ótica do desenvolvimento - a do en­

sino, da educação e da formação humana-, que deve constituir o

investimento prévio e seguramente o mais rentável para desenca­

dear o impulso do desenvolvimento ... O problema mais grave dos

países subdesenvolvidos continua a ser, ainda hoje, o do baixo ní­

vel de educação dos seus habitantes ... "

A estranha Geografia da Fome Em 1946 publicou a obra-prima Geografia da Fome, na verdade,

uma estranha geografia.

Em pleno período de crescimento, industrialização, de desenvol­

vimento econômico não havia muitos trabalhos sobre fome, um tema

ainda proibido. Diria:

"o assunto deste livro é bastante delicado e perigoso e se constitui num dos tabus de nossa civilização. É realmente estranho, chocan­te, mesmo à observação, o fato de que num mundo como o nosso,

caracterizado por tão excessiva capacidade de se escrever e publicar haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome

em suas diferentes manifestações."

" ... trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cul­

tura, foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de or­

dem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental

que tornaram a fome um tema proibido ou, pelo menos, pouco

aconselhável de ser abordado publicamente."

Refere-se à fome como algo artificialmente criado pelo homem,

fruto de distorções econômicas oriundas do modelo de desenvolvimento

escolhido.

"Ao retratarmos a fome no Brasil estamos evidenciando o seu sub­

desenvolvimento econômico porque fome e subdesenvolvimento - . ,, sao a n1esma coisa.

Demonstrou, com este importante trabalho, que era possível cons­

truir uma ciência que teria por objeto de estudo problemas específicos de

países pobres e que fosse capaz de explicar a situação destes países sem

recorrer ao mito ela inferioridade racial, do fatalismo, do determinismo ge­

ográfico. Conseguiu, a partir de uma auto-consciência da realidade soci­

al, encontrar o instrumental necessário para seu estudo.

Utilizou o método geográfico no estudo do fenômeno da fome

" ... o único método que, a nosso ver, permite estudar o problema

em sua realidade total, sem arrebentar-lhe as raízes que o ligam sub­terraneamente a inúmeras outras manifestações econômicas e so­

ciais da vida dos povos. Não o método descritivo da antiga geografia, mas o método interpretativo da moderna ciência geográfica.

"Neste ensaio de natureza ecológica, tentaremos, pois, analisar os

hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos ligados a de­terminadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir

as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos e, de ou­tro lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam

a estrutura econômico social."

Assim, quando perguntaram sobre quais os motivos que o levaram

ao planejamento desta obra, respondeu:

"A convicção a que fomos conduzidos cm nossos estudos da im-

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portância categórica do fenômeno da fome na formação e evolução dos grupos humanos, importância que cresceu tremendamente em nossos dias de tão acirradas lutas econômicas e sociais no mundo inteiro. Temos a impressão de que não é possível promover-se a reconstrução do mundo dividido por blocos antagônicos sem lim­

par do mundo estas terríveis manchas negras representadas por grupos de populações subnutridas e famintas, inferiorizadas ao máximo pela falta permanente de uma alimentação adequada. E

todo plano para remediar esta angustiosa situação na qual se encon­

tra, segundo dados estatísticos bem apurados, mais da metade de seres humanos, só surtirá efeito se for baseado num conhecimento intensivo e extensivo do fenômeno da fome, em suas causas remotas

e imediatas e em seus efeitos humanos. Um dos grandes obstácu­los ao planejamento de soluções adequadas no problema da alimen­

tação dos povos reside, exatamente, no pouco conhecimento que

se tem do problema em conjunto, como um complexo de mani­festações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior parte dos estudos científicos sobre o assunto se limita a um de seus aspectos parciais, projetando uma visão unilateral do problema.

"São quase sempre trabalhos de fisiólogos, de químicos, de econo­mistas especialistas cm geral limitados por contingência profissional,

ao quadro de suas especializações. Foi diante desta situação que re­solvemos encarar o problema de uma nova perspectiva, de um plano mais distante, de onde se possa obter uma visão panorâmica de con­junto, visão onde alguns pequenos detalhes certamente se apagarão, mas na qual se destacarão de maneira compreensiva as ligações, as

influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas manifestações do fenômeno. Para tal fim lançamos mão do método geográfico no estudo do problema da fome. Único método que a

nosso ver permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos. Aí es­tão as razões que determinaram o projeto desta Geografia da Fome."

Conhecido o projeto e as razões que motivaram a denominação

do livro, seguem algumas breves considerações sobre o pensamento de

Josué de Castro a respeito desse fenômeno, destacadas do conteúdo do livro.

• A fome sempre existiu. Sua denúncia foi considerar a fome COfflO fenômeno social, criação do homem, e sua realidade como

força social. O novo não é o fenômeno, mas a perspectiva pela qual se percebe sua trágica realidade.

• Considerando que as características dos povos subdesenvolvi­

dos 6 que todos padecem de fome, ele procurou demonstrar

como o problema 6 fruto de distorções econômicas, ou seja, é

um fenômeno artificial, criado pelo homem ou, mais precisa­

mente, por certos tipos de homens.

• Procurou desenvolver, assim, toda uma ciência a partir de um

fenômeno que é a própria expressão do subdesenvolvimento,

sua mais dura expressão. Foi um cientista que tentou criar uma

teoria explicativa para a triste realidade do subdesenvolvimento,

da pobreza, da miséria e que pretendeu modificar a história de

seu país.

• No prefácio do livro, classificou o tema como bastante delica­

do e perigoso. A tal ponto delicado e perigoso que se constituiu

num dos tabus de nossa civilização. Em seu desenvolver, con­

tudo, a própria ciência e a técnica ocidentais, envaidecidas por

suas brilhantes conquistas materiais no domínio das forças da

natureza, sentiram-se humilhadas, confessando abertamente o

seu quase absoluto fracasso em melhorar as condições de vida

humana do planeta, cúmplices dos interesses políticos que pro­

curavam ocultar a verdadeira situação de enormes massas huma­

nas envolvidas em caráter permanente no circulo de ferro da

fome. • Entendia que "ao retratarmos a fome no Brasil estávamos evi­

denciando o seu subdesenvolvimento econômico porque fome

e subdesenvolvimento são a mesma coisa ... Foi esta conjuntu­

ra econômico-social com todas as suas trágicas conseqüências

que inspirou este ensaio", concluiu no prefácio do livro.

• Não falava só de fome de comida, mas também de fome desa­

ber, de conhecimento, de liberdade.

Antes da publicação dessa obra, o fenômeno da fome constituía uma

espécie de tabu, matéria proibida na qual ninguém se atrevia a tocar se­

não com circunlóquios que desfiguravam a realidade. E esta foi sua luta,

atacar velhas e insustentáveis teorias, falsas interpretações, deploráveis

preconceitos raciais e climáticos, bem como o malthusianismo praticado

em detrimento das populações subdesenvolvidas.

A leitura de sua obra permanece como busca de uma tomada de

consciência sobre problema tão grave para a própria segurança da socie­

dade, como de nossas elites dirigentes que permaneceram surdas ao gri­

to de alerta deste grande cientista brasileiro.

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Político

Na década de cinqüenta, pensa em entrar para a política e

candidata-se à Câmara Federal pelo Estado de Pernambuco. Não con­

segue eleger-se na primeira tentativa. Insiste e, em 1954, consegue sua

primeira eleição, obtendo 14.076 votos, sendo o 7º mais votado. Resul­tado que se repete em 1958.

"Fui deputado duas vezes. Oito anos. Na segunda eleição, em 1958, tive a maior votação no Estado. Só na capital, vinte e tantos mil votos. Sabe a que devo essa vitória? Ao povo votando numa idéia, a luta contra a fome. "

No exercício dos mandatos pode desenvolver sua já brilhante ora­

tória, reconhecida até por adversários. Entretanto, embora gostasse da polêmica e da provocação, que lhe proporcionavam a oportunidade de

exibir essa qualidade, não conseguia inserir-se no jogo de interesses

pessoais e às vezes mesquinhos que a vida partidária acaba exigindo.

Era um idealista, um sonhador, além de um homem de ciência. Não se julgava um bom político.

"Não sou homem de partido e fui um mau deputado (não pedi em­prego para ninguém)."

Ainda assim, humildemente, declarava sua intenção ao se candidatar:

"quando me candidatei, fi-lo com a grande esperança de poder tra­zer ao Parlamento Nacional a modesta experiência que tenho dos problemas de nosso povo, das suas condições de vida, que venho estudando há 25 anos. Aqui chegando, verifiquei a minha falta de preparo. Foi por isso que durante um ano, em lugar de apresentar projetos, tratei de aprender, de estudar de observar e de me prepa­rar para realizar, dentro de minhas modestas possibilidades o que penso fazer este ano: apresentar uma série de projetos interdependentes sobre os problemas agrários do Brasil."

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A propósito de sua oratória vale a pena relembrar parte de um im­

portante discurso por ele proferido quando das comemorações do "dia

pan-americano":

"tenho a impressão que ao se comemorar esta data de tão alta signi­ficação para a vida de todas as nações que compõem este Continente,

falando em nome de um partido de massas, que tem sua origem nos mais íntimos anseios do povo brasileiro, nas suas aspirações mais

profundas, deveria formular algumas reflexões que traduzissem, até

certo ponto, qual a atitude, o pensar e o sentir do povo brasileiro diante da política pan-americana, ou seja, dos estatutos, princípios

e doutrinas que se tem corporificado dentro do que se chama o Pan­Americanismo, têm orientado, de certo modo os destinos continen­tais, em matéria de política internacional...

"O pan-americanismo que no dia de hoje comemoramos, consti­

tui, sem sombra de dúvida um movimento de ação política inter­nacional que, por suas origens, merece a simpatia e a consideração

de todos os povos deste continente sinceramente interessados numa política de autêntica solidariedade e de ajuda mútua para superar as dificuldades continentais. Não se pode esquecer que este movimen­to se originou e tomou consistência como expressão de uma polí­

tica de emancipação do jugo do colonialismo. Foi a política anti-colonialista do século pa-ssado que deu origem a este sentimen­

to, chamado de pan-americanismo; tanto assim que, quando se busca as raízes vamos encontrá-las fincadas na grande obra política

de Bolívar, o grande pioneiro da emancipação política e econômica das repúblicas latino-americanas ... "

Tenho esperanças de que o pan-americanismo tome um rumo novo, dentro deste sentido de admitir que a cooperação entre os povos não se deve fazer apenas nos termos vagos daquela assistência téc­

nica e financeira que as grandes potências dispensam aos países pobres e subdesenvolvidos."

É desta época um curioso e importante documento elaborado por

Josué, intitulado: 'Programa de 10 pontos para vencer a fome':

1 - Combate ao latifúndio

2- Combate à monocultura em largas extensões sem as correspon­dentes zonas de abastecimento dos grupos humanos nela empre · gados.

3 - Aproveitamento racional de todas as terras cultiváveis circunvizinhas dos grandes centros urbanos para agricultura de sus-

tentação, principalmente de substâncias perecíveis como frutas, legumes e verduras que não resistem a longos transportes, sem os recursos técnicos da refrigeração.

4 - Intensificação do cultivo de alimentos sob forma de policultura nas pequenas propriedades.

5 - Mecanização intensiva da lavoura, da qual dependem os desti­nos produtivos de toda nossa economia agrícola.

6 - Financiamento bancário adequado e suficiente da agricultura as­

sim como garantia da produção pela fixação de bom preço mínimo.

7 - Progressiva diminuição até a absoluta isenção de impostos da

terra destinada inteiramente ao cultivo dos produtos de sustenta­

ção.

8 -Amparo e fomento ao cooperativismo, que poderá servir de ala­vanca impulsionadora à nossa incipiente agricultura de produtos ali­

mentares.

9 - Intensificação dos estudos técnicos de Bromatologia e Nutrologia no sentido de que se obtenha um conhecimento mais amplo do valor real dos recursos alimentares.

1 O - Planejamento de uma campanha de âmbito nacional para a formação de bons hábitos alimentares, o qual envolva não só o co­nhecimento dos princípios históricos de higiene como o amor à terra, os rudimentos de economia agrícola e doméstica, os funda­mentos da luta técnica contra a erosão.

Seguindo estes mesmos princípios, o projeto de lei Nº 11, de 1959,

de sua autoria, apresentado à Câmara dos Deputados, que "define os

casos de desapropriação por interesse social e dispõe sobre sua aplica­

ção", na verdade, continha uma bem elaborada proposta de reforma

agrária. Em sua justificação do projeto, Josué dizia:

"com este Projeto, que define os casos de desapropriação por inte­resse social, visamos tornar exeqüível no país a implantação de uma reforma das estruturas agrárias, tornando-as mais adequadas e consentâneas com a evolução econômico-social brasileira.

"Há consenso acerca do arcaísmo das estruturas agrárias existentes pelo menos em certas regiões do país as quais entravam de maneira significativa as forças produtivas da zona rural, agravando o desní­vel entre as áreas industriais e as agrícolas.

"Urge, pois, modificar essas estruturas através de uma reforma téc­nica e racionalmente concebida. Esta reforma deve ser planejada

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como um processo de revisão das relações jurídicas e econômicas entre os que detêm a propriedade rural e os que nela trabalham. Deve, pois, representar um estatuto legal que ponha as justas e ne­cessárias limitações à exploração da propriedade agrária de forma a tornar o seu rendimento mais elevado e principalmente melhor distribuído em benefício de toda a coletividade rural.

"O possível conjunto de leis que comporiam esse código deverá re­

gular inúmeros problemas, tais como a desapropriação das terras,

os arrendamentos rurais, os contratos de trabalho e vários outros aspectos complementares da tcnença da terra. Não se deve, pois, conceber a reforma agrária como simples expediente primário de desapropriação e redistribuição da propriedade, mas sim como um instrumento técnico de utilização racional da terra na defesa do bem estar coletivo.

"O projeto que temos a honra de submeter ao Parlamento Nacio­

nal visa, pois, armar o Poder Público do necessário instrumento legal que permita levar a efeito, nos casos indicados, a desapropriação por interesse social, pré-requisito indispensável à concepção de uma

reforma agrária no Brasil-Josué de Castro."

Outro projeto de grande repercussão e valia foi o de Nº 904, tam­bém de 1959 que dispunha "sobre o ensino superior de nutrição e re­gula o exercício da profissão de dietista, e dá outras providências", este,

ao fim, transformado em lei. Em sua exposição de motivos, Josué, mais uma vez, enfatizava a gravidade do problema da fome:

"O problema da alimentação representa, no momento atual o nú­mero um para o povo brasileiro. Todas as medidas que tendem a racionalizar e solucionar este grave problema devem merecer a máxima prioridade. Na solução deste complexo assunto inclui-se como requisito essencial a formação de pessoal habilitado tecnica­mente nos diferentes setores englobados pelo problema.

''A formação de nutricionistas e auxiliares de nutrição constitui cer­tamente um elemento essencial na batalha contra a subnutrição e a fome, em que estamos todos empenhados.

"Embora várias instituições brasileiras possuam em funcionamen­to cursos de nutricionistas, faz-se necessária a sua melhor ordena­ção no sentido de encarar este aspecto do ensino superior de nutrição como fundamental.

"O pessoal habilitado através destes cursos deverá, por outro lado,

possuir garantias na execução de seu trabalho profissional, donde a necessidade de uma regulamentação do exercício da profissão de dietista ou nutricionista."

/\inda por conta de sua atuação no Parlamento, comentava-se à época que seu nome teria sido cogitado para ocupar o Ministério da Agricultura, no lugar de Mário Menegueti. Também há controvérsias sobre uma possível candidatura sua à prefeitura do Recife.

Embora tenha declarado, em inúmeras oportunidades, que o traba­

lho no Parlamento não o encantou, sua passagem pelo Legislativo Fe­deral foi muito importante para o fortalecimento de suas convicções,

especialmente sobre subdesenvolvimento, expressão que para muitos era de sua autoria, até os problemas ligados à ecologia e paz mundial, que viriam a ocupar seu universo de preocupações.

De qualquer forma, deixar as lides políticas significou para Josué de Castro o retorno aos estudos, conforme declara em seu diário.

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Cidadão do mundo

Josué de Castro ainda era parlamentar no Brasil, em 1952, quan­

do foi eleito presidente da FAO, organismo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. Em momento anterior já tinha sido membro

do Comitê Consultivo Permanente de Nutrição da FAO, cm 1947, e

delegado do Brasil na Conferência de Alimentação e Agricultura da

ONU. Uma forte disputa travada entre ele e o concorrente Inglês, foi assim descrita por ele mesmo:

"Meu competidor era Lord Bruce, da Inglaterra. Eu venci por 34 a 30 votos, depois de um empate no primeiro escrutínio ... Imagine a

emoção de me ver sentado na cadeira da Presidência, olhar um a um os representantes das grandes potências e recordar os mocambos do Recife onde se reproduzia o ciclo do caranguejo e onde vivem outros meninos de rua iguais ao menino que eu tinha sido."

No exercício da presidência da FAO, impulsionado pelo sucesso de

seus livros e pelo prestígio do órgão, além da aceitação de suas posições científicas, Josué de Castro, empreendeu uma série de trabalhos no

combate à fome no mundo, sempre buscando unir os conhecimentos técnicos-científicos e a ação. Em sua concepção, qualquer plano ou pro­

jeto de intervenção na sociedade deveria estar muito bem alicerçado cm estudos previamente realizados e esta ação deveria ser monitorada por

estudos avaliativos constantes. À frente da FAO, buscou intensificar a ajuda aos países subdesenvolvidos, não só através de programas e pro­

jetos de desenvolvimento, mas cobrando das nações desenvolvidas, suas responsabilidades frente aos desequilíbrios regionais, traduzidos na for­mação de imensos bolsões de miséria em determinadas áreas do planeta, contra as pequenas ilhas de abundância.

Na medida em que assumia a condição de porta-~oz do terceiro mundo, enfrentou forte oposição dos países desenvolvidos, especial­mente Estados Unidos e Inglaterra, para a concretização de suas propos­tas, dentre as quais se destacavam: a criação de uma reserva alimentar de emergência, o desenvolvimento de vários programas de cooperação e

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técnica para melhoria e aumento da produção agrícola nos países do ter­

ceiro mundo, programas de capacitação de mão-de-obra, além da bata­

lha em se proceder a urna verdadeira reforma agrária nas áreas mais

pobres do planeta e, desta forma, poder incrementar a produção de ali­

mentos, gerar empregos, renda e combater a fome.

Lamentavelmente, os planos e o entusiasmo dos primeiros tempos,

a despeito de todo seu empenho, não se efetivaram com a velocidade

que Josué desejava. Assim, ao deixar a presidência, mostrava uma cer­

ta decepção frente à inoperância do organismo:

"pode ser que quando aqui cheguei, com uma certa dose talvez exagerada de idealismo, não tenha pensado bastante nas dificulda­des, nos obstáculos que sempre se encontram quando se quer fa­zer algo desinteressado, no puro interesse da humanidade. Como eu ocupo uma função de presidente do Conselho e a exerço de ma­

neira independente, não representando nenhum país e sim um homem que aqui veio, um homem de boa vontade ... estou um pouco decepcionado com o que foi feito até agora, pois a meu ver ainda não elaboramos uma política realista que leve em conta ao mesmo tempo as necessidades do mundo e nossos propósitos.

"Longe de mim menosprezar a obra realizada pela FAO mas dese­jo dizer, com toda sinceridade - e peço que perdoem por falar com uma sinceridade um tanto brutal - que me sinto decepcionado di­

ante da obra que realizamos. Decepcionado pelo que fizemos por­que, a meu ver, não elaboramos até hoje uma política de alimentação realista ... Não fomos suficientemente ousados, não tivemos cora­gem suficiente para encarar, de frente, o problema e buscar as suas soluções. Apenas afloramos a sua superfície, sem penetrar em sua essência, sem querer, na verdade resolve-lo, por falta de coragem

de desagradar a alguns. Precisamos, a meu ver, ter a coragem de dis­cordar de certas opiniões para não aceitarmos a imposição das cir­cunstâncias, resolvendo o problema no interesse da humanidade."

Ao deixar a FAO, em 1957, Josué de Castro organizou e fundou a

Associação Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam) - visando des­

pertar a consciência do mundo para o problema da fome e da miséria,

e promover projetos demonstrativos de que a fome pode ser vencida e

abolida pela vontade dos homens. Tinha, entretanto, urna clara visão do

alcance de uma organização desta natureza frente à magnitude do pro­blema, quando declarava:

"não estamos, pois, diante de uma moléstia a ser combatida isola­damente pela ação fulminante de um remédio específico. Não existe

um específico para a fome. O que existe são catalisadores capazes de apressar as reações sociais que conduzirão o organismo social à depuração desta impureza e não se pense que julgamos possível resolver o problema da fome universal apenas com a criação de um organismo especializado que viria, num passe de mágica, apagar da fisionomia da nossa civilização este traço negro. Não somos tão

ingênuos nem tão otimistas. Sabemos que estão bem fincadas, nas estruturas econômicas do mundo, as raízes desse problema, que só poderá ser extirpado revolvendo-se, profundamente, resíduos dos

tempos do feudalismo e da escravidão. É esta ação catalisadora que julgamos indicada para o organismo cuja criação preconizamos: agir como um catalisador que acelere a transformação de um vasto con­

junto ou complexo social no qual está indissoluvelmente engloba­do o fenômeno da fome. Para esta ação catalisadora, precisamos

como primeira condição que o nosso organismo possa agir com completa independência das injunções políticas de toda ordem, seja um organismo capaz de pautar a sua linha de conduta e a diretriz das suas atividades num plano acima dos interesses particulares de

grupos, partidos, governos e blocos de países, no interesse exclusi­vo da humanidade. A forma indicada é uma Fundação Internacio­nal, instituição que, sem visar a lucros ou proveitos individuais,

concentrasse e coordenasse os esforços de um certo número de in­divíduos numa força coletiva, capaz de interferir de maneira cons­trutiva na dinâmica social do mundo. Internacional, pelo seu campo de atuação, mas supra nacional no seu comportamento. A Associa­ção Mundial de Luta Contra a Fome - a Ascofam- poderia assim captar o interesse e os recursos postos à disposição de personalida­

des e instituições realmente preocupadas pela solução de tão grave problema, em todos os países do mundo, sem nenhuma exceção.

''A Associação terá por fim promover, encorajar e organizar no mun­do a luta contra a fome, notadamente despertando, desenvolven­do, apoiando, difundindo, preparando, supervisionando, realizando, direta ou indiretamente, estudos, pesquisas, iniciativas, atividades e ações de natureza a fazer conhecer, diminuir ou eliminar, a fome no mundo, isto sem nenhuma limitação. A palavra fome é tomada aqui no seu sentido mais amplo, compreendendo tanto a fome aguda, como a fome crônica, mesmo oculta, a fome quantitativa como a fome energética e a fome epidêmica, como a fome

endêmica.

"Para realização de suas finalidade, procurará concentrar a sua ação em quatro setores de atividade: e

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1. atividades visando sensibilizar e despertar a consciência univer­sal acerca da significação e da expressão social do problema da fome;

2. realização de pesquisas, investigações e inquéritos que permitam o conhecimento integral do problema da fome, de suas causas e efei­

tos, cm diferentes quadros geográficos e dos meios mais eficazes para remover os fatores que intervêm nesta calamidade;

3. formação de pessoal capacitado para as múltiplas tarefas que se

impõem aos planos de desenvolvimento das regiões subdesenvol­vidas do mundo, onde grassa a fome cm massa;

4. elaboração de projetos específicos de âmbito nacional ou regio­

nal, visando incrementar o desenvolvimento econômico e melho­rar as condições de vida e de alimentação dos grupos humanos mal

alimentados."

Mais do que um cidadão do mundo foi um guerreiro que acreditava

possível mudar a história. Lembrando Gonzaguinha, na realidade, Josué

morreu quando lhe tiraram o trabalho.

"Guerreiro menino" de Gonzaguinha

Um homem também chora, menina morena Também deseja colo, palavras amenas Precisa de carinho Precisa de ternura

Precisa de um abraço, da própria candura.

Guerreiros são pessoas tão fortes, tão frágeis, Guerreiros são meninos no fundo do peito

Precisam de um descanso Precisam de um remanso

Precisam de um sono que os tornem perfeitos

É triste ver meu homem, guerreiro menino Com a barra de seu tempo por sobre seus ombros Eu vejo que ele berra, eu vejo que ele sangra A dor que tem no peito Pois ama e ama

Um homem se humilha se castram seus sonhos, Seu sonho é sua vida E a vida é seu trabalho E sem seu trabalho um homem não tem honra E sem a sua honra, se morre, se n1ata.

Não dá para ser feliz!

Homem

Ao longo de minha vida sempre tive grande dificuldade de escre­

ver sobre Josué de Castro na condição de sua filha. Talvez porque

como cientista social, me obrigava a uma visão excessivamente técnica

sobre sua obra ou por temer que, invadida pelo sentimento de orgu­

lho, pudesse faltar com a isenção. Entretanto, meu pai sempre me es­

timulou a escrever. Guardo com imenso carinho os termos de sua carta,

que, do exílio, ele me escreveu:

"8 setembro, 1964

Minha filha:

Li as duas cartas que você mandou para sua mãe de 1 e de 2 de agosto. Gostei muito do tom das mesmas. Tom de revolta certa­mente, mas de uma revolta consciente de tudo o que se está pas­sando, das razões que determinam todos os atos de vandalismo de uma reação desesperada por ter sido desmascarada pelo processo social em marcha. Gostei muito de sua disposição de participar do

processo, de pagar a sua quota pela emancipação do povo contra a clique dos seus aproveitadores, associados aos parasitas militares. Gostei, também, do seu estado de espírito no que diz respeito à

minha situação pessoal e à situação dos meus nas circunstâncias do momento. Estou com você, não só tudo irá passar, mas capita­lizaremos a única forma de capital que deve ser acumulado ao

máximo - o respeito à dignidade humana. Seremos cada vez mais respeitados. Pelo menos no mundo, onde o respeito que nos vo­tam compensa o desrespeito em que se vive hoje no Brasil, conspurcado e aviltado aos olhos do mundo.

Recebi, também, sua carta de parabéns pelo aniversário a qual me deu grande alegria. Senti você toda nesta carta. Nela você insiste no mesmo ponto, que a vida é para ser vivida com o bom e o mau, mas sempre com grandeza, nunca com mesquinhez, com coisas pequeninas. Temos, pois, que reagir e a reação se está formando contra o exército de pigmeus, este formigueiro de mediocrida­de que hoje morde o Brasil em toda a sua pele com um apetite e

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uma ferocidade de formigas esfomeadas, mas que não passam de formigas - cegas, agitadas, inconscientes do mal que estão fazendo ao país, ao seu povo, ao mundo.

Na verdade, considero minha vida atribulada como um fato po­

sitivo, não cheia de glórias como você diz. Não as alcancei. Mas alcancei o respeito do mundo e a consagração de algumas de mi­

nhas idéias a serviço da humanidade. E, isto já é muito. Por isso tem-se e deve-se pagar um preço. O preço que a imbecilidade brasileira me cobra, pelo menos até hoje, com toda a inflação da

moeda e da estupidez militarista, não é caro. E, sobre este aspecto me sinto feliz. O que me contriste, o que me revolta são as notí­cias que leio de perseguições mesquinhas e miseráveis, onde a

mediocridade recalcada se desforra contra os homens de pensa­

mento, de caráter e de coragem que se deram ao serviço da eman­cipação econômica e social de nosso povo. O Correio da Manhã publica artigos e informações que são de estarrecer. Informações

sobre os métodos de tortura que os novos nazistas brasileiros estão usando e que certamente receberiam efusivas congratula­ções de Hitler e seus seguidores. E, tudo isto feito para nada, na defesa de uma causa perdida: a do reacionarismo feudal brasilei­ro, apodrecido no clima decadente dos seus privilégios desuma­nos. É isto que me revolta. Esta agressão vergonhosa contra a

grandeza do povo, humilhado, traído e vilipendiado.

Não sei o que fazer à distância para ajudar este povo. Talvez tentar mostrar ao mundo que o Brasil não é apenas um país de vândalos, ineptos e insaciáveis de lucros e de vinganças, mas, também, um país onde há homens que pensam e que sentem como criaturas

humanas.

Tenho trabalhado muito, mas trabalho útil. O CID toma forma e

consistência. Esta semana ampliaremos o seu quadro de pessoal e em outubro será o seu lançamento público com a divulgação de

documentos de base sobre seus objetivos e sua filosofia de ação. Como decorrência de meu encontro com Robert Oppenheimer nos Estados Unidos e de sua visita ao CID em Paris, nasceu a idéia que me parece extraordinária, de fazer da cidade de Canisy, ora em construção cm Deauville, a Universidade Internacional do desen­volvimento. A idéia foi aceita e trabalho ferozmente neste planos. Será a primeira Universidade do Desenvolvimento no mundo e conterá um Instituto de generalização da Ciência e um Instituto de técnicas da Paz, para promover a reconversão psico-sociológi­ca e econômica do mundo de sua estrutura atual de guerra para uma de paz. É qualquer coisa de grande e creio que realizável.

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Entendi-me com Oppenheimer como com ninguém até hoje. O seu entusiasmo pelas mesmas idéias que defendo é extraordiná­rio. Exprime-se sobre o meu livro com uma admiração que me comove. Esta semana preparei o anteprojeto da Universidade e sexta feira vou a Geneve encontrá-lo para discutirmos sua viabi­lidade. Sua dedicação à causa da humanidade faz com que ele se

interesse vivamente pelo que se está passando no Brasil, moven­

do o Congresso da liberdade pela Cultura para protestar energi­camente contra as perseguições que estão sofrendo os intelectuais

brasileiros. O seu plano neste sentido me parece extremamente válido e útil ao nosso país. Noutra carta mandarei mais detalhes sobre os projetos para o Brasil e para o mundo, concebidos com Oppenheimer.

Em sua carta você diz que vive sem planos e sem projetos. Tem um apenas: o de vir à Europa o ano que vem para estarmos jun­tos. Isto será bom, mas isto é muito pouco. Você precisa ao lado

deste projeto bem fácil de realizar, ter outros projetos maiores e mais difíceis de alcançar. Se até setembro do ano que vem não es­tivermos ainda aí, num país já libertado da bota nazista, bem an­tes, com o desenvolvimento e crescimento naturais do que estamos criando na Europa, todos vocês da família virão certamen­te para cá, para me ajudarem pelo menos por algum tempo, neste enorme projeto em execução.

O que eu quero nesta carta é sugerir-lhe um projeto seu. Um pro­jeto para dar sentido à sua vida nos próximos anos. É o seguinte:

lendo suas cartas sinto a força que você dá a tudo o que escreve. Uma grande força afirmativa, uma violência de expressão que convence. E, isto constitui qualidade de escritor. Por que não experimentar, por que não tentar, por que não triunfar? Aprovei­te estas qualidades espontâneas, procure aperfeiçoar outras no próprio treino de escrever e faça um plano de ser escritora. Man­de à m ... o Instituto de Nutrição com seu ordenado de porteiro de quartel. Eu lhe pago o dobro para você trabalhar escrevendo. Para você escrever a história do golpe de Estado brasileiro, com um prefácio de Josué de Castro. Comece a pensar neste plano, a coletar informações, a selecionar o que se pode ler nas entrelinhas da imprensa, em grande parte amordaçada( ... ). Mande dizer o que acha do projeto e, principalmente, quando começa seu novo tra­balho.

Passei um bom aniversário. Recebi sua carta, trabalhei no CID de 9 da manhã às 8 da noite e neste dia fiz o anteprojeto da Univer­sidade do Desenvolvimento. Dia bom e produtivo. Como você

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vê se nem tudo é bom, tudo é grande: cm matéria de amigos, de projetos, de sonhos. A vida é isto.

Lembranças ao Célio, beijos no Márcio e um aperto de mão na futura colega escritora,

Do seu colega e pai,

Josué

PS. Peço mandar entregar a carta junto ao Reed, assim como ao pessoal do Instituto o cartão que segue anexo a esta.

Beijos, Josué"

Uma das vezes em que o fiz mais na condição de filha do que de

cientista social, foi quando aceitei o convite da Editora Vozes para prefaciar o livro de Jean Ziegler, A fome contada a meu filho, festejada

idéia do cientista consagrado, de escrever um livro em forma de diá­

logo mantido com seu filho. Naquela oportunidade escrevi:

''Vivi, pessoalmente, esta experiência. Foi meu pai, Josué de Cas­tro, o primeiro cientista no Brasil e, talvez no mundo, que procu­rou levantar o véu que encobria este fenômeno denominado fome e transformado em tabu e tema obscuro pela sociedade ocidental, Cresci ouvindo falar de fome desde a mais tenra idade. A princípio como mera e atenta ouvinte, após como jovem interessada e, final­mente como também cientista social, fascinada pelo tema e pelas idéias."

Alimento, ainda hoje, passados muitos anos, uma profunda e sen­tida sensação de tristeza, quando recordo o homem afetuoso com

quem convivi e o cientista incansável a quem admirei em razão de suas claras e entusiasmadas explanações feitas, quase todas as noites,

em rorno da mesa em que realizávamos nossas refeições. Discorria so­

bre suas descobertas, sobre suas propostas, que acreditava poderiam

solucionar, se implementadas, parte dos problemas mais agudos da sociedade. Foi por intermédio de suas palavras que pude reconhecer

o quanto é difícil viver neste mundo de homens que são capazes de criar infinitas belezas, capazes tecnicamente de controlar a natureza,

capazes de cantar a paz, mas, também, diversamente de outros animais que só atacam para saciar a fome, praticar atrocidades inomináveis con­tra seus semelhantes. São capazes de aprisionar, torturar e escravizar outros homens, produzir alimentos e não distribuí-los para todos, rom-

per com o equilíbrio ecológico, poluir rios e mares, destruir florestas, consolidando a desigualdade, aumentando a pobreza, cudo cm busca de mais riqueza.

Até hoje, apesar dos anos, qualquer trabalho que realizo sobre Josué de Castro é muito dolorido, ainda mais quando trabalho, tam­

bém, com suas fotografias. Mas, trabalhos como este me entusias­mam, sobretudo, tendo cm vista o público a que se destina. Ele

sempre acreditou que era possível modificar a realidade de nosso país

e para isto semeou todas as suas idéias sobre as causas da fome, da

miséria, do subdesenvolvimento e apresentou suas propostas visando a modificar esta realidade tão bem retratada em seus livros.

A história da humanidade tem demonstrado que, na maioria das

vezes, os que semeiam propostas de mudança, como meu pai, nem

sempre colhem o fruto. Josué de Castro semeou o suficiente para que

possamos colher os frutos de um Brasil mais justo e igualitário.

Muitos foram os semeadores na história da humanidade. Muitos

morreram defendendo suas idéias, seu ideais. Desde Galileu, que ou­

sou afirmar que a terra é que girava em torno do sol e não o inverso, a Igreja de seu tempo não o perdoou. Seus livros foram colocados no

index de onde só saíram 200 anos depois. Colombo descobridor da

América foi difamado, processado, caluniado por aqueles que invejan­

do seus feitos, não queriam admitir que só a história seria capaz de provar que estava errado quando descobriu o Novo Mundo. Pode-se

encontrar um cem número de exemplos como estes, de pensadores, políticos, pintores, músicos. Muitas vezes, objetivando melhorar a

qualidade de vida de seu povo, de inovar as possíveis formas de pin­tar ou de tocar, de plantar e de colher, alguns homens foram

detratados, exilados, quando não mortos, como subversivos, como agi­tadores sociais.

Em seu livro Sete palmos de terra e um caixão, no último capítulo intitulado "Anos decisivos", Josué de Castro explicita que no Nordes­te, no início dos anos 60,

"o agitador autodidata vinha agitar a própria agitação já reinante na região. Agitação levantada pela abusiva permanência de um siste­ma que ofende a dignidade humana, sistema que mantém todos os poderes nas mãos de uns poucos privilegiados.

"foi vendo este espetáculo que Julião apareceu e lhe deu expressão, como há vários séculos frei Bartolomeu de Las Casas, assistindo à

hecatombe dos índios, dizimados pelos colonizadores espanhóis, passou a agitar o problema da escravidão dos índios. Como Joaquim

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Nabuco, diante da escravidão do negro se fez agitador da abolição. Como Antonio Silvino e Lampião, diante do desrespeito aos direi­tos do homem imposto pela prepotência dos latifundiários do ser­tão, se fizeram agitadores do cangaço. Sempre o mesmo processo: a agitação latente se exprimindo pela força consciente de uma forte personalidade humana. Joaquim Nabuco riscando a história com

os traços de sua pena e Lampião com os traços de sua bala. Mas para que a História não seja falsificada é preciso colocar bem esses tra­ços dentro das linhas daquele tecido a que já fizemos referência: o

tecido espiritual da consciência coletiva."

Ao descrever a situação da propriedade rural no Nordeste, a do-

minação da aristocracia rural controladora da vida agrícola, afirma:

"nestas condições, tratar de um assunto tão emocionalmente car­regado de tensão política é provocar inevitavelmente a agitação. Com sua mentalidade de poeta lírico, Julião começou a agitar fa­lando numa linguagem colorida e popular, de fácil percepção pela massa."

Citando algumas das falas de Julião, como:

- "não pode haver felicidade de estomago vazio"; "a fome é inadiável e não se transfere: ou se mata a fome ou se morre dela."

- "a Liga é como a cheia do rio: começa pequena e vai crescendo e levando tudo pela frente."

- "com frases como estas, dos mais variados matizes ideológicos,

procurou Julião canalizar para um mesmo fio, todas as águas cor­rentes oriundas das fontes emocionais do caboclo do Nordeste: a sua consciência da injustiça social, a sua revolta contra os privilégi­

os, a sua religiosidade e a sua combatividade nas horas decisivas."

J ui ião foi cassado em 1964 e se exilou no México onde casou-se em

segundas núpcias com uma camponesa mexicana e onde, anos mais tar­

de, veio a falecer.

No mesmo texto, Josué de Castro descreve o clero da época di-

zendo que:

"o clero do Nordeste é o mais avançado do Brasil - a maior nação católica do mundo. E o novo clero do Nordeste é o mais avançado da região."

Entre outras momentos fala no padre Melo, que,

"em certas ocasiões, fez causa comum com Julião e que, ao lado dos camponeses, travou luta política contra o governador de

Pernambuco, pelo fato deste ter orâenado a expulsão de campone­ses em certas áreas do Estado."

Cita a frase do prelado quando entrevistado pelo jornalista Mauritônio Meira:

"a revolução agrária não tem de ser feita pacificamente , como di­zem os capitalistas; ou na briga, como querem os comunistas. A for­

ma da revolução são as circunstâncias históricas que vão dizer. E, explicava, valendo-se de uma imagem, 'quando botamos um carro

para correr na estrada, não podemos dizer, por antecipação, qual a marcha que vamos usar. A estrada é que escolhe a marcha, como a reforma agrária vai escolher os seus meios'."

Em artigo entitulado, publicado, também, em 1964,

"a ciência a serviço do desenvolvimento econômico" afirmava que

o que caracteriza por excelência estas fases revolucionárias da his­tória é a desorientação geral das novas gerações que se sentem como que perdidas num mundo que ameaça desmoronar-se, sem que en­trevejam o caminho seguro para sua sobrevivência, Daí sua maior inquietação, sua frenética busca de soluções urgentes para os pro­blemas mais agudos dos destinos da humanidade."

Mais adiante continua:

"para ajudar os jovens, tão desejosos de ação construtiva e de parti­cipação histórica, a vencerem a crise presente, é necessário que os

mais velhos - principalmente os intelectuais que vieram da era pré atômica - lhes transmitam sua experiência vital, de forma que pos­sam os jovens encontrar uma medida comum, e se sintam assim mais firmes, melhor inseridos no quadro da realidade social vigen­te."

Sempre citava Einstein:

"é essencial que se estruture uma nova maneira de pensar se a hu­manidade deseja sobreviver e marchar para planos mais elevados."

Entendia Josué de Castro que

"é esta realidade social que torna árdua, mas tão decisiva a tarefa dos educadores - daqueles que têm a função de moldar os homens novos para o mundo de amanhã."

Em outro artigo, já em 1970, sobre "a estratégia do desenvolvi­mento econômico", afirma que em sua opinião,

"uma das mais altas prioridades para o terceiro mundo é a forma­ção humana, a formação de homens responsáveis e capazes de pôr

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em ação esta estratégia global. É preciso integrar em um só mundo as parcelas justapostas das economias contraditórias, e isto é a tare­fa do homem de amanhã. Para levar esta tarefa a bom termo, é ne­

cessário preparar este tipo de homem."

Entendia, então que

"a ciência e a técnica terão certamente um grande papel a desem­

penhar, mas elas não podem ser as únicas componentes desta cul­

tura. Existem muitos outros valores que são igualmente

importantes. É preciso não esquecer que ciência não é sabedoria. A ciência é o conhecimento. A sabedoria implica conhecimento e juízo

de valores."

Considerava como o padre Joseph Lebret, que era importante não

separar o econômico do humano, da melhoria dos grupos humanos, de

toda a humanidade, como o objetivo final do desenvolvimento. Assim

apresentava sua nova ótica de desenvolvimento

"a do ensino, da educação e da formação humana - que deve cons­tituir o investimento prévio e seguramente o mais rentável para de­

sencadear o impulso do desenvolvimento."

Mas chamava atenção para o fato de que os países subdesenvol­

vidos sendo subcapitalizados necessitavam assim fazer uma planifica­

ção, e citava a economista hindu Ilka Paul Pont

"organizar a penúria para incentivar o desenvolvimento e arrancar à ignorância e ao analfabetismo estas grandes massas humanas: os

condenados da terra."

Josué de Castro afirmava:

"a simples transferência de cultura - isto é, as utopias de exporta­ção em matéria de educação - jamais pode pôr à disposição um meio de formação de tipos de homens de que o terceiro mundo tem necessidade para desenvolver a sua economia num sentido huma­

no que respeite as raízes culturais destes povos";

e continuava:

"procurar encontrar o meio de integrar os valores científicos e

tecnológicos no patrimônio dos valores representativos de outras civilizações não ocidentais - eis o único meio de desenvolver o mundo com equilíbrio, e não sob o signo perigoso de uma domi­nação que provoca em toda parte a revolta. Uma educação que li­berte o homem, eis ao que aspiram os povos do Terceiro Mundo. E isto supõe uma pedagogia da liberdade que os liberte da domina-

ção da Natureza, mas também da dominação de outros grupos humanos - de todo os tipos de dominação. Quer isto dizer que é preciso educá-los para se libertarem econômica, política e espiri­

tualmente."

Concluindo o artigo sobre Estratégias do desenvolvimento denuncia­

va o tipo de ensino das universidades do terceiro mundo, "incapaz de

um impulso criativo e renovador." Entendia que

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"ministrar um tipo de educação popular seria desencadear um movimento irreversível de transformação social, ao qual se oporiam

as minorias dominantes, hostis às idéias de reformas educacionais válidas. Os verdadeiros reformadores dos métodos de ensino de numerosos países subdesenvolvidos são vistos como elementos

perigosos, subversivos da ordem estabelecida, perigosos para a manutenção destas democracias sem povo, em que um punhado de homens deve tudo saber e tudo dirigir, e as massas devem tudo ig-

norar e obedecer sempre."

A semente da educação popular foi assim plantada por Josué de

Castro, como também o foi por Paulo Freire que elaborou a teoria da

pedagogia do oprimido. Já no final da vida acreditava e defendia a

reconversão da economia de guerra pela "formação humana centrada

fundamentalmente sobre uma economia de paz." denunciando que

"o subdesenvolvimento é uma forma de subeducação. De subeducação , não apenas do Terceiro Mundo, do mundo inteiro. Para acabar com ele, é preciso educar bem e formar o espírito do homem por toda parte."

Hoje, 30 anos depois de sua morte, Josué de Castro continua

atual, fazendo-nos acreditar que estamos num momento possível para

que nasça cm nossa sociedade "um novo tipo de homens capazes de

ousar pensar, ousar refletir e de ousar passar à ação" e, estaremos

realizando seu sonho de uma verdadeira economia baseada no desen­

volvimento humano e equilibrado.

Retomando o tema, ao escrever este Caderno de estudos para o

MST, novamente fico estimulada a falar, um pouco, ainda como filha

de Josué de Castro.

Todos os cientistas que em seu ofício estudam as diferentes ma­

nifestações da realidade, quer física quer sociocultural, gostariam de

poder descrever seu objeto de estudo como conseguem fazê-lo os

grandes escritores. Contudo são ofícios diversos e, se o escritor não

tem pretensões de se tornar cientista ao descrever a realidade com tan-

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ta acuidade, dificilmente os cientistas conseguem se desligar da rea­lidade que procuram entender para se transportar para o mundo irre­al do pensamento, do romance, da novela, Josué de Castro sempre

admirou os escritores capazes de, melhor que os cientistas, com uma

linguagem universal, contar dos homens e das coisas dos homens. As­

sim é que ao escrever seu principal livro, a Geografia da Fome, dedicou­

º a dois escritores, Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida,

"romancistas da fome no Brasil", e à memória de Euclides da Cunha

e Rodolfo Teófilo, "sociólogos da fome no Brasil."

Anos antes, junto com Cecília Meirelles, havia escrito Festa das Le­tras, uma cartilha de alimentação. Tentara desenvolver sua verve de es­

critor ao editar, em 1935, Documentário do Nordeste. Entre os contos então

publicados, encontra-se o Ciclo do Caranguejo, que só bem mais tarde de­

senvolveu como uma novela sob o nome Homens e Caranguejos:

"Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita pro homem, com tudo para bem servi-lo, também o man­gue foi feito especialmente pro caranguejo. Tudo aí é, foi ou está para ser caranguejo. O caranguejo nasce nela, vive dela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com lama a caminha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caran­guejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita de lama fa­zer a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos. São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito para a lama do man­gue, para virar caranguejo outra vez."

Nesta placidez de charco, identificada, unificada no ciclo do caran­guejo, a família Silva vai vivendo, com :i sua vida solucionada, como uma das etapas do ciclo maravilhoso. Cada elemento da família mar­cha dentro desse ciclo até o fim, até o dia de sua morte.

Nesse dia, os vizinhos piedosos levarão aquela lama que deixou de viver, dentro dum caixão pro cemitério de Santo Amaro, onde ela seguirá as etapas do verme e da flor. Etapas demasiado poéticas, chei­as duma poesia que o mangue não comportaria. Parte-se aparente­mente, nesse dia, o ciclo do caranguejo, mas os parentes que ficam derramam caridosas as suas lágrimas no mangue para alimentar a lama, o ciclo do caranguejo."

Formado em Medicina, estudioso de biologia, cedo tomou cons­ciência de que os problemas de saúde que encontrava na população de

operários que assistia eram sobretudo de salário, da impossibilidade de adquirir os alimentos necessários para sua manutenção.

A preocupação com o tema, Fome e Paz sempre permeou o pen­

samento de Josué de Castro até o fim de seus dias, talvez tenha sido

ela, esta preocupação, bem como os trabalhos sobre o assunto, que te­

nham motivado sua indicação, duas vezes, para o Prêmio Nobel da

Paz: em 1953, pela escritora Pearl Buck, Prêmio Nobel de Literatura

e, em 1963, pela Associação Mundial de Parlamentares para um Go­

verno Mundial (World Parliament Association), em documento assina­

do por lord Silkin, presidente da Associação, membro do Parlamento

Britânico e membro da Inter-Parlamentar; Gilbert Mac Allistcr , vice­

presidente do Comité Executivo da União Inter-Parlamentar; Edgar

Faure, pela França, Joseph Clark, pelos USA, além de lord Boyd Orr,

lord Beveridge, abbé Pierre, padre J. Lebret, Robert Buron e Albert

Schwitzer.

Não recebeu o prêmio, entretanto, tenho a esperança de que ve­

nha receber algo melhor: o reconhecimento pleno dos brasileiros so­

bre a certeza de seus estudos e de sua contribuição para a formação de jovens absolutamente conscientes de sua cidadania.

Este, prezados jovens amigos, é o homem que gostaria pudessem

melhor conhecer e admirar. Espero que na próxima parada obrigató­

ria, da grande marcha que estão empreendendo, possam reforçar sua

base teórica, com estes escritos sobre Josué de Castro, um brasileiro, um semeador de idéias.

Junho de 2003 Anna Maria de Castro

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Casa em Petrópolis, RJ

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Laboratório do Instituto de Nutriçao . 1947

Josué em 1926.

Glauce e Josué, 1952. Josué com dois anos. Faculdade nacional de filosofia· posse da cadeira de geografia humana, 14/06/1948.

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Em Paris Josué com Glauce, a filha

Sonia e o neto Glaudio

Helsinque, 1954, quando recebeu o Prêmio Internacional da Paz Dezembro de 1951-dircurso de posse novo presidente da FAO.

Josué em sua casa em

Petrópolis.

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Josué com Pelopidas Silveira, ex-prefeito de Recife

Josué e seu neto Marcelo

Com o presidente

Getúlio Vargas

Palestra a estudantes de Engenharia, Peru.

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Conferência na universidade

católica · Bélgica

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Campanha contra a fome

Biografia resumida

• Formado em medicina pela Faculdade de Medicina da Univer­

sidade do Brasil, em 1929. • Livre docente de Fisiologia da Faculdade de Medicina do Re­

cife, em 1932, professor catedrático de Geografia Humana da

Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife, de 1933 a

1935; professor catedrático de Antropologia da Universidade do

Distrito Federal, 1935 a 1938; professor catedrático de Geografia

Humana da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil,1940 a 1964.

• Convidado oficial do governo italiano para realizar um ciclo de

conferências na Universidade de Roma e Nápoles sobre os Pro­

blemas de aclimatação humana nos trópicos, 1939. • Convidado especial de governos de vários países para estudar

problemas de alimentação e nutrição. Entre eles: Argentina (1942), Estados Unidos (1943), República Dominicana (1945), México (1945), França (1947).

• Chefe da comissão que estudou as condições de vida das clas­

ses operárias do Recife (primeiro inquérito desta natureza leva­do a efeito no país, 1933 ).

• Membro da Comissão de Inquérito para estudo da alimentação do povo brasileiro, realizado pelo Departamento Nacional de Saúde, 1936.

• Agraciado com o prêmio Pandiá Cal ó geras, 193 7.

• Idealizador e diretor do Serviço Central de Alimentação, depois transformado no Serviço de Alimentação da Previdência Social - SAPS, 1939 e 1941.

• Presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação, 1942 a 1944.

• Idealizador e diretor do Instituto de nutrição da Universidade do Brasil, 1946.

• Prêmio José Veríssimo da Academia Brasileira de Letras, 1946

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• Delegado do Brasil na "Conferência de Alimentação e Agricul­

tura das Nações Unidas", convocada pela FAO, 1947. • Membro do Comitê Consultivo Permanente de Nutrição da

FAO, 1947. • Professor honoris causa da Universidade de Santo Domingo,

República Dominicana, 1945, da Universidade San Marcos

Lima, 1950, da Universidade de Engenharia, Lima 1965.

• Presidente do Conselho da Organização para Alimentação e

Agricultura das Nações Unidas (FAO), 1952 - 1956.

• Presidente da Associação Mundial contra a Fome (ASCOFAN). • Prêmio Roosevelt da Academia de Ciências Políticas dos Esta-

dos Unidos, 1952. • Grande medalha da cidade de Paris, 1953.

• Prêmio Internacional da Paz, 1954. • Oficial da Legião de Honra, França, 1955.

• Presidente eleito do comitê governamental da Campanha da

luta contra a fome, ONU, 1956. • Deputado federal pelo Estado de Pernambuco, 1956 a 1962.

• Embaixador do Brasil na ONU, em Genebra, 1962 a 1964.

• Detentor da medalha Andrés Bello, do governo da Venezuela. • Membro de várias Academias e associações no Brasil e no ex­

terior. • Fundador e presidente do Centro Internacional para o Desen-

volvimento (CID), 1965 - 1973. • Presidente da Associação Médica Internacional para o Estado e

Condições de Vida e Saúde (AMIEV), 1970. • Professor estrangeiro associado ao Centro Universitário Expe­

rimental de Vincennes, Universidade de Paris, 1968 a 1973.

CONSULTAS REALIZADAS Foram consultadas todas as obras de Josué de Castro, além de do­

cumentos pertencentes ao arquivo particular da aurora. Foram também

examinadas inúmeras entrevistas e pronunciamentos dele como políti­

co, professor, médico, presidente da FAO, entre outros. Valeu-se também a autora de diversos trabalhos universitários re­

presentados por teses de doutorado realizadas por estudiosos da vida e obra de Josué de Castro. Especialmente os trabalhos da professora Ta­nia Elias Magno da Silva e do professor Renato Cavalheira do Nasci­mento e do escritor e amigo de roda uma vida, Otávio Pernambucano,

além de outros autores.

li parte

Seguiu-se, em 1954, o livro Geopolítica da Fome, onde trata domes­

mo problema no âmbito mundial. Verdadeiro sucesso editorial. Ambos

os livros foram traduzidos para 17 diferentes idiomas.

A crítica mundial foi extremamente lisonjeira, como o demonstram

os comentários sobre os dois livros:

JOHN BOYD ORR, Prêmio Nobel da Paz,

Ex-reitor da Universidade de Glasgow; ex-diretor geral da FAO

"O Prof JOSUÉ DE CASTRO bem poderia ter dado ao seu livro de alcance mundial 'Geopolítica da Fome', o título de 'Fome e Po­lítica' porque, nesta obra, surgem perspectivas políticas de primei­ra grandeza. Mas, como salienta o próprio autor, sempre foi considerado pouco conveniente, entre os povos bem alimentados, discutir-se a fome dos menos afortunado - fome que nunca foi assunto muito popular em matéria de política. E, no entanto, a fome tem sido, através dos tempos, a mais perigosa das forças políticas. Foi a fome que precipitou a Revolução Francesa. Uma multidão de mulheres dos cortiços de Paris marchou até a sede do Parlamento, bradando por pão. Os políticos fugiram. As mulheres, com suas hostes reforçadas pelos homens, rumaram para a Bastilha. A queda da Bastilha foi o golpe de morte contra o sistema feudal na França, iniciando uma nova era. Na atual crise mundial, um livro como a 'Geopolítica da Fome' é de vital importância. Se os políticos de to­das as nações do mundo pudessem esquecer por um momento os seus conflitos políticos e lessem 'Geopolítica da Fome', sem idéias preconcebidas, adquiririam certamente uma visão mais sadia dos problemas universais e teriam, assim, maior possibilidade de salvar nossa civilização de perecer numa terceira guerra mundial."

Prossegue, com seus comentários, agora discorrendo sobre o con­ceito de fome.

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''A palavra fome, usada pelo autor, precisa ser bem definida. No pas­sado, empregava-se a palavra fome para exprimir a falta de alimentos para a satisfação do apetite e o número de mortos pela fome restrin­gia-se então aos indivíduos esquálidos que morriam por completa ina­nição. JOSUÉ DE CASTRO, porém, usa essa palavra no seu sentido

moderno, no sentido da falta de quaisquer dos quarenta ou mais ele­

mentos nutritivos indispensáveis à manutenção da saúde. A falta de

qualquer deles ocasiona morte prematura, embora não acarrete, ne­

cessariamente, a inanição por falta absoluta de alimento. A carência

total de alimento, tal como se verifica nas épocas de fome em massa,

sempre constituiu uma causa importante de mortalidade. Mesmo nos

últimos tempos a fome tem matado mais gente do que a própria

guerra. Mas o número dos que assim morrem ainda é pequeno, em

comparação com os que vivem num regime alimentar inadequado

para manter a saúde e que, por isso mesmo, sofrem, em maior ou

menor grau, de doenças da nutrição. Dando-se à palavra 'fome' essa acepção, de acordo com as estimativas feitas antes da guerra, dois ter­

ços da população do mundo vivem em regime de fome. A fim de dar

alimento suficiente para toda a humanidade, levando-se em conta o

aumento forçoso da população mundial, seria necessário elevar-se a

cerca do dobro a produção de alimentos, nestes próximos vinte e cinco

anos ... Surge, assim, a questão de poder ou não a terra fornecer ali­

mentos suficientes para sua população em tão rápido crescimento.

Acreditam os neomalthusianos que tal seja impossível e consideram

que o único caminho para a sobrevivência da civilização ocidental é o controle da natalidade, rigorosamente imposto, se necessário, para

reduzir a população. Mas o autor da 'Geografia da Fome' salienta o

fato conhecido de que o índice de natalidade é mais alto entre os mal

alimentados e mais baixo entre os bem alimentados, caindo, neste úl­timo caso, até abaixo do nível de equilíbrio, a despeito de seus índi­

ces menores de mortalidade. Explica essa diferença fisiologicamente, baseado em experiências feitas com animais. Um grande consumo

de proteínas provoca alta percentagem de casos de esterilidade. O

índice de natalidade decresce à medida que aumenta o consumo de

alimentos ricos em proteínas, tais como carne, ovos e leite; sendo caros

estes alimentos o seu consumo é proporcional aos recursos do indi­víduo. Dá uma lista de países do mundo com as respectivas quotas individuais de proteínas e respectivos índices de natalidade, come­çando com Formosa, onde a quota média é de 4,7 gramas diários per capita e o índice de natalidade de 45,6, mostra a correlação regular entre a quota protéica e o índice de natalidade, que vai decaindo até chegar à Suécia, onde essa quota é de 62,6 e o índice de natalidade,

15.

"Existem, naturalmente, além do regime alimentar, fatores econô­

micos e culturais que influem nos índices de natalidade. Pouca dúvida resta, porém, de que o único método de controle de natali­

dade realmente eficiente é a melhoria da dieta, a elevação dos

standards de vida e de educação nos países de altos índices de nata­

lidade, de modo a reduzi-los, como aconteceu em outros países,

outrora, com índices de natalidade igualmente elevados e hoje re­duzidos ao nível de equilíbrio ou mesmo abaixo deste. O processo

é demorado, todavia. Não há dúvida que, caso não venha uma guerra

com armas biológicas mortíferas, as quais, como se sabe, poderão

exterminar mais de 50% da população da área onde forem usadas,

a população de antes da guerra, que era de cerca de 2 bilhões, ainda na geração dos nossos filhos passará a 3 ou 4 bilhões.

"Pode a Terra fornecer alimentos num nível satisfatório para essa população assim aumentada? O autor cita fatos bem comprovados,

demonstrando não haver dificuldade de ordem fisica para dobrar-se

ou redobrar-se o abastecimento de alimentos do mundo. Se os agri­cultores falharem, os químicos poderão fornecer conforme demons­

traram, alimentos sintéticos. As únicas limitações de ordem prática

para a produção de alimentos são os volumes de capital e de trabalho humano que a sociedade esteja disposta a empregar para esse fim. A

questão, pois, é saber se os governos estão dispostos a cooperar para

um plano de alimentação mundial. Tal plano - único meio de cum­prir a promessa de libertar o homem da miséria- embora bem rece­

bido pela maioria dos governos, foi rejeitado pelos Estados Unidos,

pelo Reino Unido e pela URSS Os governos estão dispostos ajuntar

homens e recursos para uma guerra mundial, mas as grandes potên­cias não estão dispostas a se unir para banir do mundo a fome e a

miséria. As razões dessa relutância em aplicar a moderna ciência em

beneficio de toda a humanidade, a começar pelos mais pobres, estão

explicadas neste livro. A história do domínio econômico do mundo

e a exploração dos povos e dos recursos naturais das nações mais fra­cas pelas nações da Europa ocidental, nestes últimos três séculos,

desde a guerra hispano-americana, pelos Estados Unidos da Améri­ca, é relatada nas suas minúcias, com abundante documentação, e

chega a chocar os que ainda conservam idéias preconcebidas sobre as glórias e as virtudes de nossa civilização ocidental. A história de

uma luta sem tréguas pela riqueza, sem consideração pelos direitos ou pelo bem-estar das 'raças inferiores'. Mas, nestes últimos cem anos, a era um tanto brutal da luta pelo lucro, sem consideração pelo pró­ximo, vem se modificando, cada vez mais rapidamente em direção a outra era social, na qual a liberdade, tanto política como econômica,

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começa a ser considerada como direito inalienável de todo ser hu­mano. Se, por milagre, pudéssemos ter a certeza de não haver guerra durante cinqüenta anos, a próxima geração poderia ser a sociedade humana a caminho de um mundo de paz e abundância, livre para sempre da fome, da miséria e das doenças evitáveis que sempre afli­

giram a maioria da humanidade.

"Como diz JOSUÉ DE CASTRO, este poderia ser o terreno de co­

mum entendimento para as duas novas grandes potências que ora dividem o mundo. Ambas proclamam que o seu objetivo é benefi­ciar a humanidade. Ambas declaram desejar ardentemente a paz. Por

que não começam por unir-se e por considerar a cooperação num plano concreto, visando aumentar a riqueza do mundo, para aten­der às necessidades primordiais da existência, a começar pelos ali­

mentos para os povos de todas as nações? Como disse uma vez o presidente TRUMAN, se pudéssemos discutir com a Rússia nos­sos interesses comuns em matéria de agricultura, mais fácil setor­

naria a discussão das divergências políticas. Por que não inscrever na agenda de uma reunião de chanceleres a cooperação, através dos órgãos das Nações Unidas, num plano mundial de alimentação, que interessaria muito mais a humanidade do que essas intermináveis

discussões em torno de ideologias políticas?."

OLÍVIO MONTENEGRO, escritor e crítico literário brasileiro

"Em JOSUÉ DE CASTRO o escritor deu sempre o melhor relevo ao homem de ciência que nunca deixou de ser. 'Geografia da Fome' e 'Geopolítica da Fome' foram, sem dúvida, nos últimos tempos, os dois livros brasileiros mais traduzidos nos países do velho e do

novo continente. Em ambos essas obras conquistaram, quer nos Estados Unidos, quer na Rússia, prêmios magníficos, que consti­tuíram, para o seu autor, título de uma excepcional consagração e

que tanto havia de dar um luminoso relevo aos seus cinqüenta anos de idade com grande parcela de trabalhos a serviço do homem, deste ou de outros continentes. A crítica estrangeira, na sua maior parte, foi de louvor, de rasgado louvor à obra deste ainda moço cientista brasileiro. No Brasil, entretanto, quando surgiu a tradução france­sa de 'Geografia da Fome', prefaciada por ANDRÉ MAYER, hou­ve críticos que procuraram atribuir a este tão documentado e desinteressado livro um espírito antes partidário do que científico; que viram nele menos uma lição de ordem político científica do que uma propaganda de fim premeditadamente comunista.

"Tratava-se, evidentemente, de uma crítica que era mais para mor­der do que para julgar. Tudo como se os fatos e as idéias que na­queles livros tão vivamente se mostram fossem idéias e fatos mudos, que não falassem por si mesmos, e por si mesmos não traduzissem o espírito renovador e construtivo que tanto os fortalece.

"No livro 'Geografia da Fome', o que sobretudo nos mostra o au­tor é o cemitério enorme, essa desolação infernal em que o egoís­

mo do homem ameaça transformar toda a natureza fisica do mundo.

E daí, certamente, a nova e estranha geografia, chamada da fome, que abarca quase todo o globo terrestre, e que vemos agora, depois

de minuciosamente estudada por JOSUÉ DE CASTRO, ser obje­to de interesse nos quatro cantos do mundo. Um dos quadros que o autor pinta em cores de um pungente mas justo realismo é o da

vida da Amazônia no Brasil. Um quadro trágico.

"Mas o autor revela-se de uma segurança admirável quando chega

o momento de apontar os meios racionais, os meios práticos de re­duzir a um mínimo de sacrifícios os horrores da tragédia amazôni­ca, senão mesmo de transformar essa tragédia num maravilhoso surto de vida.

"Não são impossíveis aos homens esses meios, ainda que requei­

ram um vigoroso programa: 'Os melhoramentos - diz o autor-das condições alimentares regionais exigem todo um programa de trans­formações econômicas e sociais. As soluções dos aspectos parciais do problema estão ligadas à solução geral de um método de coloni­zação adequada. Sem alimentação suficiente, a Amazônia será sem­pre um deserto demográfico. É que, na Amazônia, como bem acrescenta ainda o aut.or: 'as águas e a floresta é como se tivessem feito um pacto ecológico para se apossar de todas as riquezas da região'. Um traço simpático dos livros do sr.JOSUÉ DE CASTRO é o de que, embora sendo de especialização, o leitor nem por isto está menos à vontade dentro deles, sem passar a todo instante, em face de nomes agressivamente técnicos, pelo vexame de sentir-se mais ignorante do que convém à sua humildade cristã. Porque, em geral, um dos vícios mais comuns dos nossos livros de ciência é serem eruditos demais, de um saber muito pesado nas palavras ainda que muito leve no espírito que os conduz, como se fosse uma ciência menos para instruir do que para 'espichar' o leitor.

"É possível que críticos mais exigentes queiram em livros como 'Geografia da Fome' e 'Geopolítica da Fome' uma objetividade mais felpuda, e que todos os fatos viessem acompanhados de uma guar­da de números que fossem como uma Guarda imperial, dessas que o gênio totalitário da estatística moderna inventou para maior '

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desumanização da ciência. Mas poderíamos replicar que nenhuma forma de conhecimento vem a prevalecer, unicamente, pelo seu caráter técnico, independente de todo o espírito da vida, e que a vida não a conseguimos entender sem as reações do mundo subjetivo. Imutavelmente e absolutamente objetivo só a morte.

"Nos livros de Josué de Castro negue-se o que quiser, menos po­rém essa sensibilidade humana que os penetra como uma flama ge­

nerosa, exaltando em dramática realidade o problema da fome no

Brasil e no mundo.

"O crítico de "La Revue des Auteurs et des Livres" marca bem essa

força humana da obra de JOSUÉ DE CASTRO quando põe em alto relevo o que nela existe "de um humanismo superior ao humanismo da maioria dos romances (caso da "Geografia da Fome") por isto

mesmo que se trata aqui de uma humanidade mais verdadeira." E não é esta uma opinião isolada. Este sentido humano da obra de JOSUÉ DE CASTRO é, da mesma maneira, exaltado por vários outros crí­

ticos franceses que se ocuparam deste escritor. Compreende-se, dai, que esses livros tenham sido traduzidos em várias línguas - no fran­cês, tanto como no espanhol, no polonês, no sueco. E este poder

enorme de comunicação decerto que vem menos do temperamento científico da obra, que do temperamento humano do Autor.

MAX SORRE, professor da Sorbonne, Paris, França,

''A FOME SEM O VÉU DISCRETO DA FANTASIA

"Em seu livro "Geopolítica da Fome', o prof.Josué de Castro apre­senta um dos aspectos mais prementes, e sem dúvida, o mais trágico desta geografia da alimentação que é o capitulo inicial de toda a Geo­grafia humana. Realmente, a importância de tais problemas não era

desconhecida dos entendidos do assunto. Existe muito de humani­dade profunda na obra de um E. Réclus ou de um Vida! de La Blanche, para que não se tivesse deles uma clara consciência. Na ver­

dade, nossos antigos mestres não estavam enganados a respeito dos tabus que Josué de Castro denuncia. Todavia, ele tem muita razão quando afirma que o comum dos geógrafos, e, principalmente, oco­mum dos homens, preferia nada dizer a propósito desse assunto. E muitos há que lançavam um véu discreto sobre essas feias perspecti­vas. Eis que, apesar disso, nós, civilizados, vimos levantar-se, à nossa frente, o espectro horrível da fome. Coisa que não se imaginaria há vinte anos passados: temos tido fome como nossos avós tiveram

fome. Os quadros mais sombrios, nos quais estávamos inclinados a não encontrar senão na literatura, retomaram, aos nossos olhos, cor e realidade. Viram os médicos o aparecimento, nos hospitais da Eu­ropa ocidental, de moléstias estranhas, cujas causas mal conheciam. Não foi preciso menos para que uma verdade elementar se tornasse, enfim, sensível: as necessidades alimentares jamais foram satisfeitas

de um modo permanente, senão para uma pequeníssima parte da humanidade. Os demais têm vivido de maneira precária, à margem da subalimentação. Enquanto as grandes fomes flagelavam regiões que são como que as terras clássicas da fome, a ameaça da escassez periódica rondava em torno de numerosos grupos, e a ação insidiosa dos desequilíbrios dos regimes e das carências atingia profundamen­

te os outros em sua vitalidade. Datam apenas de ontem nossos co­nhecimentos sobre as moléstias de carência, o que vale dizer, sobre as formas menos espetaculares, porém não menos perigosas, duma

certa espécie de fome.

"O livro de JOSUÉ DE CASTRO, em que são estudadas, em seu quadro geográfico, as insuficiências de alimentação dos grupos hu­manos vem, de certo modo, ao encontro de várias ordens de preo­cupações. Primeiro, uma angústia despertada em todas as almas pela lembrança de misérias recentes e pela consciência que temos, agora, de sua persistência em várias regiões. Depois, o sentimento de uma

contradição entre duas séries de fatos, o crescimento demográfico atual da espécie humana e a possibilidade de aceleração deste cresci­mento pela generalização das observâncias higiênicas, dum lado, e de outro lado, o balanço dos recursos alimentares. A velha fórmula de Malthus já não é aceitável, mas a inquietação que a inspira ainda per­dura. Enfim, os progressos da fisiologia da alimentação orientaram para esses problemas todos aqueles que, a um título ou outro, se têm interessado pela ecologia humana. Seja permitido dizer que este é o

meu caso. O movimento natural do pensamento do ecologista o conduz para o estudo das condições de nutrição dos grupos huma­nos no seu quadro geográfico, independentemente de toda preocu­pação de atualidade. A convergência destas três linhas de pensamento é sensível no livro de JOSUÉ DE CASTRO. Médico e geógrafo es­pecializado, tem ele contribuído pessoalmente nas atividades da Organização das Nações Unidas, no setor da Alimentação e Agricul­tura (FAO), de cujo Conselho é hoje o presidente. Sua colaboração nessa grande obra internacional permitiu- lhe avaliar com maior exa­tidão a significação universal e a importância do problema da alimen­tação. Primaciais, do ponto de vista cientifico, são esses problemas, de imenso alcance para a política geral da humanidade. Lord Boyd

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"Orr, que escreveu o prefácio para a edição inglesa daquela obra, diz: "O título deste livro brilhantemente escrito bem poderia ter sido Fome e Política, pois surgem, dos debates nele suscitados, conclu­sões políticas da maior importância." E a conclusão mais geral é que somente uma aliança das nações líderes do mundo pode salvar a humanidade de temerosas catástrofes e acabar com a angústia que a

oprime. Os neomalthusianos oferecem soluções pessimistas do pro­blema da alimentação. O livro de JOSUÉ DE CASTRO é um ex­

tenso requisitório, apaixonante e apaixonado, contra essas doutrinas

que humilham a humanidade. Ele aponta os erros dos homens, o es­pírito de ganância, a imprevidência, como responsáveis por todo o

mal. Constitui, ainda, esse livro um libelo contra os malefícios do

imperialismo e do colonialismo - libelo constantemente justificado.

"Mas esquecemos, por vezes, que nessa matéria existem , slogans,

políticos. A moda, hoje, dá um sentido repugnante a palavras que

usávamos sem malícia em nossa juventude, e o vocabulário políti­co, isto é, passional, contamina o vocabulário científico. Pode o historiador ser tentado a fazer urna triagem crítica entre os argu­mentos e deles colher essa idéia de que as necessidades alimentares

estão na origem de todos os grandes movimentos humanos. Che­ga-se, porém, a um acordo sobre a sua exatidão, no geral. É mesmo

o essencial. Ter-se-á o direito de censurar JOSUÉ DE CASTRO por falar tão acaloradamente sobre temas que são fundamentais para a humanidade? Eu, por mim, julgo que ele realizou um trabalho benéfico, insistindo, com uma força persuasiva, sobre a gravidade da situação. Seja de quem for o acervo de responsabilidade e de culpas, é salutar que nos defrontemos com esses problemas. E a própria veemência de JOSUÉ DE CASTRO aproveitará a seu de­sígnio, que é forçar a atenção dos indiferentes sobre este paradoxo mortal: a humanidade, em sua grande massa, à margem da subalimentação, sofrendo fome, ao passo que as técnicas modernas de produção, aplicadas aos solos disponíveis, permitiriam, não só

que todos os homens tivessem o que comer, de modo suficiente, como também afastariam, por algum tempo, ao menos, a inquieta­ção que traz o crescimento das populações. E se digo "por algum tempo" é para não prejulgar a solução de um problema atualmente teórico, que, entretanto, não se suprime com o negar. Somos ho­mens e vivemos no tempo. É preciso desfazermo-nos de fantasmas. Urge crermos em nós mesmos e em nossa própria capacidade. Não preciso seguir toda a argumentação de JOSUÉ DE CASTRO con­tra os neomalthusianos, para subscrever sua conclusão: "O cami­nho exato da sobrevivência está ainda ao alcance do homem. Ele é

marcado pela confiança que deve sentir cm sua própria força." E a verdadeira linguagem de um homem.

"Que me seja permitido como geógrafo, insistir sobre o interesse pro­priamente geográfico, da obra de JOSUÉ DE CASTRO, retoman­

do certas considerações desenvolvidas em um dos seus trabalhos. É perfeitamente cabível tratar deste problema, sob este aspecto. A fome é um fenômeno de ordem universal. Mas as grandes penúrias devas­

tadoras, aquelas que atraem a atenção dos homens, flagelam com mais

ou menos intensidade ou freqüência, de acordo com os países. Há regiões que são corno que as terras clássicas da fome, e entre essas os

grandes formigueiros da Ásia oriental e sul-oriental, nas quais o es­tado atual da técnica de produção não permite uma vitória definitiva contra as forças hostis do clima ou restaurar o desgaste dos solos."

RUSSEL LORD, escritor e jornalista, Nova York, Estados Unidos

"NÃO HÁ NECESSIDADE DE MALTHUSIANISMO

"O Dr. JOSUÉ DE CASTRO, fundador do Instituto de Nutri­ção da Universidade do Brasil, na sua vibrante réplica aos neomalthusianos, escolheu WILLIAM VOGT, cujo "Road to

survival" ("Caminho da sobrevivência"), foi publicado em 1948, como seu principal antagonista. Ele apresenta provas, das quais al­gumas são novas, para demonstrar que embora 2 /3 da humani­dade sofram fome, no momento atual, este regime de fome e desnutrição não pertence à categoria dos incuráveis ou inevitáveis.

"Pelo contrário; 'o mundo possui à sua disposição bastante recursos para providenciar uma dieta adequada para cada um e em cada lugar.

"O caminho da sobrevivência não se encontra nas prescrições do neornalthusianismo de eliminação da população supérflua, nem no controle da natalidade. Estas concepções derrotistas e desintegradoras mostram o caminho da morte, das revoluções e das guerras - o caminho da perdição.' WILLIAM VOGT quando es­creveu seu livro estava chefiando a parte conservadora da União Pan-americana. Ele advogou a ajuda, segundo o plano Marshall, somente aos países inclinados a adotar o sistema de controle de nascimentos. No momento atual, ele está chefiando a Liga da Pa­ternidade Planejada, com sede em Nova York.

Além dos católicos, outras pessoas também vão aprovar e ler com simpatia a réplica humanitarista com a qual o Sr.JOSUÉ DE CAS-

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TRO rejeita o dogma científico dos que, com sanb'l.lC frio, conside­ram a elevada mortalidade com calma e, talvez, com aprovação, quan­do a infelicidade atinge a terceiros, pertencentes às classes menos favorecidas. É fácil para os privilegiados dar de ombros à desespera­da fome dos seus semelhantes e considerá-la inevitável, quando, de fato, as condições de morte e penúria estão arraigadas não no solo e no clima, mas decorrem da colonial e exploradora política imperia­lista. Lord John Boyd-Orr frisa este ponto no seu prefácio à 'Geo­grafia da Fome". O Sr. CASTRO, no decorrer da sua obra, dá grande ênfase a esses pontos e acusa os Estados Unidos, referindo-se à ex­

ploradora monocultura de açúcar, por nós imposta a Porto Rico.

"Na sua réplica ao malthusianismo, o autor lembra um outro 'in­tuitivo' profeta do passado, Thomas Doublcday, que, em 1853,

declarou que a "verdadeira lei da população' baseia-se no fato de que a maior riqueza de filhos sai sempre da classe pobre e mal ali­mentada. Deste modo, não é a fome que resulta da superpopulação; esta é que se origina da fome. Desenvolvendo este argumento, o autor cita recentes experiências realizadas para demonstrar que os ratos mantidos com a dieta altamente protéica revelam-se com

menor capacidade reprodutora do que os subalimentados. Basea­do nestes ensaios, o autor estabelece analogias com o gênero hu­

mano, apresentando tabelas com índices de natalidade em ascensão na medida do decréscimo da ingestão protéica ...

"As suas estatísticas e observações, quanto às imensas áreas que ainda podem ser utilizadas nos países super-populosos e mal nutridos, im­pressionam muito mais. O mesmo se pode dizer dos capítulos re­ferentes à possibilidade produtiva dos solos atualmente ocupados,

porém inadequadamente aproveitados. A 'Geografia da Fome' é um livro corajoso, escrito de uma bela e impressionante maneira, con­trabalançando os lamentos e as previsões fatídicas."

RACHEL D E QUEIROZ, jornalista e escritora, membro da Academia Brasileira de Letras

"Diante de certos livros é que a gente vê como é fácil e sem importân­cia o oficio de literato. Sim, são realmente os cientistas que nos botam complexo de inferioridade. Porque afinal de contas fazer literatura não é mais do que coisa gratuita e à toa, anotar impressões, traduzir um estado de alma, ou relatar algum sucesso havido, sempre deformado. Em suma: tudo improvisação, falsificação, fingimento.

"Mas escrever um livro que informe, ensine, descubra verdades encobertas ou controvertidas, isso sim, representa, na realidade, um mundo de honestidade, esforço, labuta, rigor - além do talento

natural que exige cm grandes doses.

"E é pois o sentimento da minha inidoneidadc que me afeta ao tentar

um comentário em tomo do livro do ilustre professor JOSUÉ DE CASTRO: O 'Geografia da Fome'.

"É essa obra um estudo da fome no Brasil - aliás o primeiro volu­me de uma série de estudos do fenômeno 'fome' no mundo intei­

ro. Assunto pouco explorado, pouco discutido, pois como diz o autor no prefácio, é tema bastante delicado, perigoso, que repugna

- um dos tabus da nossa civilização. Entre gente como nós, os di­tos 'artistas da pena', quando se fala em fome e miséria, ou carência

endêmica ou epidêmica, só nos ocorre fazer um romance bem cho­rado sobre o assunto, ou compilar um anedotário pitoresco, ou, no melhor dos casos, uma antologia do folclore ou da literatura da fome

no Brasil. Mais não se dá.

"Os estudiosos já são outra casta de gente. Vão em pessoa para o lo­cal que interessa, levam máquinas e fichários, alugam auxiliares, co­lhem o material na fonte, e lá mesmo o examinam por todos os lados, sejam homens, micróbios, cereais ou caça de pena. Ai, secos algaris­mos, duros nomes científicos de raízes gregas, como falais, como sabeis arrancar lágrimas! Quando JOSUÉ DE CASTRO nos conta

que os caboclos amazômcos têm 'deficit' protéico - isso quer dizer, senhores, panela sem carne, sem ovo e sem leite, a pura farinha d' água com algum feijão e, sem mesmo o peixe abundante que é deixado para dia de festa. E meninos amarelos, e cabrochas de quinze anos já

sem dentes, e homens cansados, e preguiça, e derrota.

"Quando, em simples números, nos dá conta do índice de morta­lidade infantil nas capitais do Brasil e assinala aquelas cm que esse índice é mais alto (Aracaju com 357 por mil, Maceió com 363, Natal com 382), a gente vê logo o morticínio desadorado das criancinhas pobres que se acabam como pinto quando dá um ar na criadeira. A

frutificação inútil das mulheres, os penosos meses da gestação so­fridos à toa, as dores do parto, as noites de insônia com o menino doente que chora, a caminhada sem fim para os raros ambulatórios de socorro - e tudo isso para dar de comer à terra do cemitério.

"Há dessas cidades em que as meninas já têm um vestido branco se­parado para acompanhar enterro de anjinho. E uma senhora conhe­ci, também numa cidade dessas, que fizera promessa aos santos inocentes de só usar as flores do seu jardim para enfeitar caixão de

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anjo. Não havia rosa Paul-Neron, ou antes Palmeron, que chegasse, nem rosa Amélia, nem mimo do céu, nemjasmim, nem margarida, nem crisadália arrepiada. Contou-me a dama que era raro o dia em que não batia uma pessoa à porta, (porque toda a cidade já sabia da promessa) pedindo flor para um anjo. E tinha dia de virem duas e três.

"Quando nos fala nos dois fatores correlatos: desnutrição e tuber­culose - é como se evocasse aquelas famílias nossas conhecidas que ficaram tabus no meio das outras porque são compostas de gente

'fraca do peito'. Quando comem na nossa mesa os pratos são de­

pois escaldados e certas donas de casa, mais exageradas no escrú­pulo, chegam a quebrar toda a louça usada pela visita suspeita. Se

beijam as crianças, a gente esfrega álcool na cara do menino beija­do até quase arrancar a pele. E se algum membro dessa clã marcada quiser casar com parente nosso - seja embora o pretendente rico, bonito e prendado - a família inteira faz uma oposição terrível, porque ninguém deve se misturar com a 'raça do tísico'. Na verda­

de, vêem-se moças morrendo da peste branca quando ainda ama­mentam o primeiro filho; vinte anos depois, aquele filho, por sua vez, também vai sofrer do peito. Se é praga, é praga medonha, por­que não tem reza forte que a abrande. Isso todo o mundo sabe. Diz Josué de Castro. O que o índice de mortalidade de tuberculosos em Salvador, Fortaleza e Recife, é, respectivamente, de 343, 302 e 359 para cem mil. E engraçado: Fortaleza, por exemplo, é cidade pro­curada pelos tuberculosos por causa dos seus ares puros, levados pelos ventos do mar, clima seco e uniforme, mantendo-se quase o ano inteiro num nível único de temperatura. Morrem, pois, os seus

302 tuberculosos em cada cem mil habitantes não por causa do cli­

ma, está bem visto, mas a despeito do clima.

"Não se pense entretanto que num livro como este "Geografia da Fome" vamos encontrar apenas magras enfiadas de números, se­

guidas de uma tonelada de palavrões técnicos. O autor segue a es­cola criada no Brasil pelo nosso grande Gilberto Freyre: o de

completar o artista o trabalho do estudioso, e dizer em linguagem bela, compreensível e inteligente, as suas descobertas, conclusões ou hipóteses científicas. Por isso mesmo falei acima que eles nos botam complexos; porque não nos deixam sequer o gozo exclusi­vo da nossa cidadela, que sempre foi a forma artística, o 'verbo'. Em geral, têm prosa tão boa ou melhor do que a nossa, mais bonita e de muito mais interesse, porque enunciam fatos enquanto nós ape­nas bordamos divagações. Que nos sobra, afinal? Que nos vale fa­zer como eles dizem um "romance de fome" se esses nossos rivais nos levam toda vantagem, contando autênticas histórias de fome,

coisas acontecidas, medidas e pesadas, e com um interesse de nar­rativa que a gente jamais consegue igualar? Já desde os tempos da publicação de "Casa Grande & Senzala" que ando invocada com essa

concorrência desleal. Afinal, a obrigação deles que são estudiosos, sábios, mestres, seria se resumirem a enfileirar números, acumu­lar observações, distribuírem suas notas num jargão incompreen­sível e bárbaro que desse sono logo à primeira página e só pudesse ser lido inteiro, à custa de muita força de vontade. A obrigação de­les é nos apontar os caminhos, nos fornecer o material bruto, para

que depois nós brilhemos.

( ... )

"Engraçado é que eles nos cortejam, nos citam, nos dão importân­cia. Obra de excessiva modéstia, ou mesmo de ironia, não sei. De­

pois que nos esmagam profissionalmente, tornam a nos esmagar com gentilezas. Vejam o professor Josué de Castro por exemplo: dedica o seu livro, além de a Euclides da Cunha, a três romancistas que ele chama de "romancistas da fome" no Brasil: Rodolfo Teofilo, José Américo de Almeida e esta sua humilde criada. E fica a gente tão radiante e honrada, que nem se apercebe do esbulho.

"Carece de se beliscar, de se pôr alerta, lembrar-se do pão de cada dia

que eles nos surrupiam. Não, mestres vossas palavras são lisonja, como dizia a modinha. Estou infinitamente grata, mas continuo sendo contra esta novidade de sábio escrever bem. O sindicato dos escrito­res devia arranjar uma lei punindo tal invasão do nosso espaço vital por levar muita vantagem, vantagem excessiva. É quase como um campeão de boxe que se metesse em briga de taponas entre garotos, na rua. Em nome dos dois ou três romancinhos de fome que eu ain­da poderia fazer, de outros tantos draminhas de teatro, protesto. Já dizem tudo melhor do que diríamos; onde está, pois, ajustiça deste

mundo? Nem mais nos é dado o mesquinho tema de falar mal do governo - até isso eles invadem. Estou vendo a hora de, ou mudar­mos de oficio, ou morrermos de fome. E, para cúmulo da ironia, eles irão estudar nos seus futuros volumes, com muita elegância e muita ciência, a miséria da nossa dieta, a escassez da nossa receita, o índice de mortalidade por mil na arruinada família dos literatos."

MARK HOLLOWAY, crítico literório e jornalista, Londres, Inglaterra

''A GEOGRAFIA DA FOME é, sem dúvida, um dos mais valiosos livros publicados na última década. Os fatos e teorias nele contidos

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são de imediata, radical e fundamental importância para a humani­dade. Seu tema é a pior enfermidade do mundo, mais comum e mais mortífera do que as guerras e pestes em conjunto."

MARCEL NIEDERGANG,jornalista, Paris, França

''A FOME DOS OUTROS

"No começo, havia a fome. Através dos séculos, o homem se bate

com a natureza para dela arrancar a própria subsistência. Hoje, con­templa, com orgulho, o universo mecanizado que ele domesticou e no entanto a fome permanece. Está cientificamente demonstra­

do que cerca de dois terços da população do mundo vivem num

estado permanente de fome, mas as classes bem nutridas e os po­vos saciados não gostam de falar acerca da fome dos outros.

"Neste sentido é que vem muito a propósito o aparecimento da "Geopolítica da Fome", de JOSUÉ DE CASTRO. Nunca, na ver­

dade, se falou tanto de paz, de justiça social e de liberdade em esca­la universal, mas também nunca foi tão esquecido o fato de que essas

grandes palavras não têm sentido para aqueles cuja única liberdade é, muitas vezes, a de morrer lentamente de fome. Felicitações ca­lorosas devem ser dadas ao ilustre sociólogo brasileiro, ex-presidente do Conselho da Organização para a Alimentação e Agricultura das

Nações Unidas, por ter relembrado, duramente, essas verdade ele­

mentares.

"Eis a verdadeira mensagem deste panfletário humanista. Utopia de sonhador solitário, dirão alguns. Talvez, mas sem estes solitári­

os, nós nos sentiríamos ainda mais sós ... "

LUÍS DA CAMARA CASCUDO,jornalista e escritor brasileiro

"O HISTORIADOR DA FOME

"O amor e fome governam este mundo, dizia Schiller .. Toda ativi­dade humana ou maior percentagem dela corre para um desses

pólos: amor e pão.

"A fome - assunto, tema de livro, material de estudo e desistematização - é que não tem atraído muita gente. Bibliografia pobre e nomes escassos para uma indicação bibliográfica. Ou melhor,

enrolando a tese num título ressonante, foi a criação de uma ciência social, determinando a metodologia do socorro aos desequilíbrios e situações instáveis de depois das guerras. A ciência é o processo de fixar as áreas destruídas, as populações famintas, a produção em cur­va alarmante, a capacidade dos alimentos a importar e distribuir 'per

capita' ou em blocos. É o estudo das calamidades. HERBERT HOOVER, por exemplo, é doutor em calamidades públicas.

"O prof Josué de Castro enfrentou justamente esse assunto tabu, difícil, negaceado, escondido nos relatórios e coberto com os reta­lhos de sinônimos bonitos como mentiras. É um sentimento pri­

mário que humilha a nossa cultura de raciocínio. Não humilha a concepção instintiva de civilização mas os elementos formadores, minando-lhes o interior com denúncia de uma desolante e diária

verdade natural.

"Certo também é que a generalização é sugestiva para o homem in­teligente. A fome pode explicar o impulso inicial de todo movimen­to de progresso e de indústria como a simples curiosidade, o arrojo cristão da catequese, o próprio instinto pessoal de um líder que sacode o seu povo, seu grupo, seu clã para acima da cordilheira;

procurando terra-onde-não-se-morre, independente do problema da alimentação parca ou menos suficiente.

"Indiscutível é que a fome é um elemento decisivo, um dos mais fortes, irresistíveis e poderosos na dispersão humana e no processo seletivo da massa. Seletivo está aplicado num plano biológico e não sociológico, ou, se me permitem, fora dos modelos da antropolo­gia cultural. A fome mantém em nomadismo concêntrico os ára­

bes do deserto, como enrijou, disciplinou, secou as gorduras, enxugou os músculos, afilou o perfil agudo do sertanejo nordesti­no, sacudindo-o para o Pará, Amazonas, Acre, com um teor de ali­mentação que é a fome endêmica, mas politicamente empurrando os limites do Brasil, espalhando o conhecimento geográfico, indus­trializando os métodos indígenas de caça e pesca, determinando mesmo uma mentalidade sugestiva e viril que resiste até ir ceden­do, devagar, aos assaltos de todas as febres que credenciam a ma­jestade do paludismo. JOSUÉ DE CASTRO, com a 'Geografia da Fome', iniciou seu grande estudo num plano de monumento, de extensão, de esforço continuado. Não apenas trouxe para o estudo dos aspectos brasileiros da fome, a capitalização de leituras, viagens, observações e intuições surpreendentes, mas articulou todo este material em esquemas lógicos de uma campanha de inteligência e de humanismo radical.

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" ... Nenhum menino brasileiro do meu tempo dizia: "Mamãe, tô cum fome!", para não levar um beliscão espontâneo e reprimidor do de­sejo que atrapalhava o 'complexus' do bom comportamento.

"Ainda hoje, com tanto século de marcha, a maior festa oficial é dar­de-comer ao visitante, rei, barão, soldado, ladrão. A maior home­

nagem é o brinde-de-honra, no fim, de copo na mão, ao redor da mesa. Ergamos as nossas taças ... Vou ficar aqui. JOSUÉ DE CAS­TRO está, com um atrevimento que merece sucesso, atravessando uma mata cheia de encanto e de mistério confuso. Chegando do outro lado, deixou, nas pegadas, a picada que a marcha fará uma

estrada real. Volumosa é a sua tarefa. Desejo intelectual onde a imaginação pouco colabora: muito livro para ler, muito mundo para ver, muito escuro para clarear. este é um livro que anuncia dedica­

ção digna de um homem que ama o seu pais sabendo a verdade.

"Contudo, países como o nosso, marcados pelo colonialismo, vol­tados para fora, sempre desvalorizaram o cientista nativo, que pre­

tendia estudar, analisar e oferecer soluções próprias para os problemas específicos do país. Não raro foram considerados anti­científicos e utópicos, como Josué de Castro foi visto por alguns brasileiros."

Homenagem

O nome Josué não é muito comum, mas não é desconhecido. Na histó­ria do mundo, faz-nos lembrar dos profetas. O "profeta" Josué de Cas­tro é o nosso herói neste Caderno de estudos. Pensando também assim, um antigo defensor dos camponeses, Francisco Julião, escreveu este

cordel:

Josué nosso profeta

1 Como sabe todo mundo Moisés nasceu no Egito Tinha feições delicadas Era um menino bonito

2 Pensando no seu destino

A mãe dele, uma judia Manteve o filho escondido Até que chegou o dia

3 De fazer uma cestinha E de betume tajá-la Meter a criança dentro No Rio Nilo deixá-la

4 Vendo a cestinha boiando Entre as moitas de papiro A filha do Faraó Com ........... deu um suspiro

5 Levada para o Palácio A criança amamentada Por quem lhe dera a existência

Sendo por ela criada

6 Assim Moisés se fez homem E recebeu a missão De libertar o seu povo Das garras da servidão

7 Eram cinqüenta ou cem mil

Somando toda essa gente Que vagou pelo deserto Com Moisés marchando à frente

8 Há quem calcule em quarenta Os anos que se passaram Pra chegar ao Mar Vermelho Que finalmente avistaram «

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9 16 23 30 O Faraó furioso Fez do sertão um incêndio Daquele recanto pobre Josué é o filho único Com a fuga dos vassalos E do sol fez uma tocha Manoel de Castro é nativo Que nasce dessa união Mandou suas legiões Que depois de queimar tudo Queimou muita macambira Dona Moça deu a ele Afim de capturá-los Quebrou pedra e partiu rocha Pra manter seu gado vivo Muito amor e devoção

10 17 24 31 Mas as águas se separam Os judeus tinham um profeta Fez tudo pra não deixar Dotado de inteligência Deixando passar com vida Com muito tino e constância O quinhão que havia herdado E de força de vontade Todo povo de Israel Que os levou de volta à Pátria Até que caiu sem vida Josué de Castro cresce Para a terra prometida Onde tudo era abundância O último boi do cercado E chega à Universidade

11 18 25 32 Vendo aberto o Mar Vermelho Nosso infeliz sertanejo

. ' Vendo a terra devastada Mas a visão que ele leva

As hostes do Faraó Da Baía ao Ceará Preparou o matulão Da lama podre do mangue Partiram atrás de Moisés Nunca viu cair do céu Fechou a porta da casa Aguça seus sentimentos Em meio a nuvens de pó Uma gota de maná Pôs a chave no surrão E lhe fez ferver o sangue

12 19 26 33 Foi quando o mar se fechou Mas legiões de urubus Partiu sem destino certo Com seu porte elevado Afogando sem deixar Baixando pra devorar Com seu rifle a tiracolo E sua mirada séria Um soldado do Egito Meio mortos, meio vivos E as alpercatas rompendo Vai de favela em favela Para a tragédia contar Os que tentavam escapar A poeira negra do solo Pra sentir toda a miséria

13 20 27 34 Sem por o ponto final Setenta e sete repete Mal sabia que o Recife Dos mocambos do Recife Convido o leitor amigo Com mais força e desenganos Seria o fim da jornada Um cientista surgiu A deixar o Oriente Outras secas sucedidas O começo de outra vida Daquele jovem doutor E vir ao Brasil comigo Quase de dez em dez anos Outro mundo, outra morada Que deixou a fantasia

V) 14 21 28 35 V)

:5 :5 ..., Se por lá sobram os profetas Eu peço ao leitor que veja Corno entendia de gado De buscar luxo e riqueza "' o ~ w Aqui também não nos falta O mapa da Paraíba Pôs aí uma vacaria Ignorando o destino UJ o o "' O poeta põe um deles Onde fica Cabaceiras E não levou muito tempo De milhões de brasileiros "' o o o

Em posição muito alta Pra conseguir freguesia Morrendo no sol a pino o

< Uma terra conhecida < w UJ I: I: w UJ V)

V)

o 15 22 29 36 o "' Guiado por uma estrela "' >- Quem não ouviu ou não soube Como a mais seca existente Pelos sertões e catingas t;; V)

< < V Da boca de um narrador Em todo o vasto sertão Manoel encontra o caminho Ou dentro dos hospitais V w w o

A história de uma seca Ali habita u'a gente Casando com Dona Moça Pondo os pulmões pela boca o ..., "' :::> :::> V) Que de morte e de pavor Que chama nossa atenção Que fez do lar o seu ninho Aos trinta anos. Não mais ... V) o o

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37 Josué de Castro disse Com coragem e ousadia O que há cinqüenta anos Alguém no Brasil não dizia

38 FOME, FOME, FOME, FOME!

Foi o seu grito de guerra Que partiu de Pernambuco

E se estendeu pela terra

39

Josué de Castro foi Quem destapou a panela Da pobreza e da miséria Pra ver o que havia nela

40 E nela não havia NADA

Aí está sua obra Onde expõe essa tragédia Mas tanto expõe como cobra

41 Cobra de quem pode dar E de quem se nega a isso Porque não se mata a fome Com choradeira e feitiço

42 Mas, sim, mexendo na terra Mudando todo o sistema Pondo fim ao latifúndio Estourando esta postema

43 Josué fez-se notável Sendo por isso invejado Desde quando proclamou Muito bem documentado

44 Que pior que a bomba atômica A guerra, a peste, a matança Por diferença de raça Tudo junto não alcança

45 O genocídio que a fome Com sua foice afiada

Vai ceifando pelo mundo

Sem ter compaixão de nada

46 A "Geografia da Fome" Deu-lhe nome e deu-lhe fama Mas quem seguiu os seus passos?

Quem alentou sua chama?

47 Depois de cinqüenta anos Eis, porém, que ela renasce Como um grito de espanto

E uma bofetada na face

48 Josué, nosso profeta Quis redimir o seu povo

Quis dar pão a todo mundo E fazer um mundo novo

49 Mas sua hora há de vir Seu clamor há de crescer

Sua luta contra fome Há de vencer, de vencer

50 Josué morre bem longe De sua terra querida Mas continua entre nós Amando o povo e a vida

Rio, 23/09/1993 - Chico julião

Josué de Castro morreu na França, com 65 anos. Não pode voltar

ao seu país porque não lhe deram o visto necessário. Assim eram trata­

dos os brasileiros exilados, nos idos de 1973.

As razões do exílio e por que, quando morreu, os jornais de todo o

mundo fizeram menção ao "apóstolo da paz", ao "descobridor da fome",

foram os objetos deste livro.

O exílio, o afastamento de suas raízes, marcaram muito a vida des­

ce guerreiro. Como cantava o poeta: "Minha terra tem palmeiras, onde

canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá."

Quando morreu seu corpo pode, então, voltar ao Brasil. Num dia chu­

voso de setembro de 1973, sob o discurso inflamado de Barbosa Lima So­

brinho, outro ilustre pernambucano, Josué Apolônio de Castro foi enterrado

no cemitério carioca São João Batista, sem grandes cerimônias oficiais.

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Principais obras

1 - O problema fisiológico da alimentação no Brasil, 1932.

2 - O problema da alimentação no Brasil, 1933.

3 - Condições de vida das classes operárias do Recife, 1935.

4 - Alimentação e raça, 1935.

5 - Therapeutica dietética do diabete, 1936.

6 - Documentário do Nordeste, 1935.

7 - A alimentação brasileira à Luz da Geografia Humana, 1937.

8 - Fisiologia dos tabus, 1939.

9 - Geografia Humana, 1939.

1 O - Alirnentazione e acclirnatazione urnana nei tropici, 1939.

11 - Geografia da fome, 1946.

12 - La alimentación en los trópicos, 1946.

13 - Farores de localização da cidade do Recife, 1947.

14 - Geopolítica da fome, 1951.

15 -A cidade do Recife - ensaio de Geografia Humana, 1954.

16 - Três personagens, 1955.

17 - O livro negro da fome, 1957.

18 - Ensaio de Geografia Humana, 1957.

19 - Ensaio de Biologia Social, 1957.

20 - Sete palmos de terra e um caixão, 1965.

21 - O ciclo do caranguejo, 1966.

22 - Ensayos sobre el subdesarrollo, 1965.

23 - Adonde va la Arnerica Latina, 1966.

24 - A explosão demográfica e a fome no mundo, 1968.

25 - EI hambre - problema universal, 1971.

26 - Latin Arnerican radicalism, 1969.

27 - Estratégia do dcsenvolvimenro, 1971.

28 - Mensagens, 1980.

29 - Fome, um terna proibido, 1983.

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Algumas obras sobre Josué de Castro

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Que é Fome? São Paulo: Brasiliense,1983. ACADEMIA PERNAMBUCANA DE MEDICINA. Ciclo de Estudos so­

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