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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO JAMIL AMORIM DE QUEIRÓZ PRÁTICAS DE ABORDAGENS OPERACIONAIS NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS: desafios para a formação do policial militar CUIABÁ-MT 2015

JAMIL AMORIM DE QUEIRÓZ · À Secretaria do programa de pós-graduação em educação, ... 3.5 Como se tornar soldado na Polícia Militar ... O manual do aluno no curso de formação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

JAMIL AMORIM DE QUEIRÓZ

PRÁTICAS DE ABORDAGENS OPERACIONAIS NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES

ETNICORRACIAIS: desafios para a formação do policial militar

CUIABÁ-MT

2015

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JAMIL AMORIM DE QUEIRÓZ

PRÁTICAS DE ABORDAGENS OPERACIONAIS NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES

ETNICORRACIAIS: desafios para a formação policial militar

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso

como requisito exigido para o título de mestre, na área

de Educação, linha de pesquisa Movimentos Sociais,

Política e Educação Popular.

Orientadora: Profª. Drª. Suely Dulce de Castilho

CUIABÁ-MT

2015

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

Q3p Queiróz, Jamil Amorim de.

Práticas de abordagens operacionais no contexto das relações

etnicorraciais: desafios para a formação do policial militar / Jamil

Amorim de Queiróz. -- 2015

204 f. ; 30 cm.

Orientadora: Suely Dulce de Castilho.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso,

Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,

Cuiabá, 2015.

Inclui bibliografia.

1. Polícia militar. 2. Abordagem policial. 3. Preconceito racial.

4. Discriminação. 5. Formação. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a)

autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 - CUIABÁ/MT Tel : 3615-8431/3615-8429 - Email : [email protected]

FOLHA DE APROVAÇÃO

TÍTULO: "Práticas de abordagens operacionais no contexto das relações etnicorraciais: desafios para a formação do policial militar"

AUTOR: Mestrando Jamil Amorim de Queiróz Dissertação defendida e aprovada em 17 de abril de 2015.

Composição da Banca Examinadora:

____________________________________________________________________

Presidente Banca / Orientadora Doutora Suely Dulce de Castilho

Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinadora Interna

Doutora

Nilce Vieira Campos Ferreira

Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinador Externo

Doutor

Ronilson de Souza Luiz

Instituição: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO/PUCSP

Examinador Suplente

Doutor

Edson Benedito Rondon Filho

Instituição: FACULDADE CATÓLICA RAINHA DA PAZ/FCARP

CUIABÁ, 17/04/2015

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Dedicatória

Dedico este trabalho com todas as forças do meu Ser:

A Deus, pela força de vontade que a Ele pertence. A Jesus, modelo e guia da humanidade e

nosso irmão maior;

Aos meus pais, Natanael Ribeiro de Queiróz e Antonina de Amorim Queiróz, pela dedicação

e simplicidade na condução da minha vida;

À Minha querida esposa, Marli de Souza Queiróz, pela luta diária, pelo companheirismo,

pela cumplicidade, pela dedicação e pela maneira incontinenti de colaboração.

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Agradecimentos Àqueles que contribuíram para o enriquecimento dos meus conhecimentos: Professora Drª. Suely Dulce de Castilho, minha orientadora que me honrou com sua especial atenção para a conclusão deste trabalho; Professor Dr. Ronilson de Souza Luiz, Examinador externo, pela convicção e pela confiança no trabalho e, acima de tudo, pela contribuição para o engrandecimento da pesquisa; Professora Drª. Nilce Vieira Campos Ferreira, examinadora interna, pela simplicidade, pela graciosidade e pela competência acadêmica demonstrada em nosso convívio de defesa pública; Professor Drº. Edson Benedito Rondon Filho, examinador suplente, pela postura firme e pela preocupação de pontos importantes em relação ao trabalho; Aos demais professores doutores do programa de pós-graduação em educação que contribuíram de forma direta para o término desta fase acadêmica, pelos estímulos demonstrados durantes as aulas, pelos debates, muitas vezes acalorados, pela afetividade nos momentos das nossas abordagens acadêmicas e até pessoais, enfim, pela convivência interada de confiança e companheirismo; À Secretaria do programa de pós-graduação em educação, profª Drª Márcia Ferreira, Luisa, Marisa, Marcos, Ricardo e Letícia, cuja atenção, respeito e educação são referências no atendimento digno às pessoas; Aos colegas de curso, sem vocês a caminhada seria monótona e sem sentido. Obrigado pelas oportunidades ofertadas em qualquer âmbito, pelo acolhimento e pela convivência sem igual; Aos componentes da Polícia Militar que se colocaram à disposição para contribuir com a pesquisa sem temer críticas ou desmerecimento profissional. Em especial ao sargento Nildo Paulo de Amorim que foi parceiro do pesquisador em todos os procedimentos administrativos da corporação indispensáveis para o prosseguimento do estudo; Àqueles que foram os motivadores na conquista deste desafio, os colaboradores civis, especialmente os sujeitos negros, que continuam tendo, algumas vezes, seus direitos fundamentais desrespeitados. Apesar dessa situação colaboraram de maneira sui generis caracterizando vozes de denúncia contra o preconceito e a discriminação na abordagem policial militar.

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RESUMO

A presente pesquisa, em nível de mestrado, tem como objetivo analisar as abordagens

operacionais da Polícia Militar no contexto das relações etnicorraciais, enfatizando as relações

verbais, sociais e físicas durante as operações realizadas, seja do ponto de vista preventivo ou

repressivo. Também pretende conhecer as políticas de formação da Polícia Militar e sua

historicidade; compreender como os policiais militares percebem suas ações e reações nas

abordagens quando se dirigem ao cidadão negro ou branco; e apreender como os cidadãos

negros e brancos percebem as abordagens do policial militar quando dirigidas a si mesmos. A

pesquisa insere-se na abordagem qualitativa e inspira-se no método etnográfico. A pesquisa

foi realizada tendo como instrumentos de coleta de dados a análise documental das Matrizes

Curriculares de formação de soldados PMMT; a observação participante das atividades

operacionais, as entrevistas semiestruturadas com policiais operacionais e abordados. Em

relação à análise, inspirou-se na análise de conteúdo. Foram realizadas dez entrevistas com

abordados, dez entrevistas com policiais e aplicados questionários com vinte policiais

militares de duas unidades, uma de Cuiabá-MT e outra de Várzea Grande-MT. A partir da

análise de conteúdo, foi possível caracterizar evidências de práticas preconceituosas e

discriminatórias. Na polícia ostensiva, o sujeito a ser abordado é descrito como homem de

pele escura, com tatuagens, normalmente de classe popular. Isso evidencia a necessidade de

melhor capacitação desses profissionais por meio de incrementos curriculares – aumento de

carga horária e de disciplinas na área de ciências humanas; diálogo com os movimentos que

representam as minorias, introdução de estudos sobre questões etnicorraciais, maior espaço-

tempo para reflexão sobre a diversidade entre outros, seja na formação inicial ou continuada.

Palavras-chave: Polícia Militar. Abordagem policial. Preconceito racial. Discriminação.

Formação.

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ABSTRACT

The present research, at Masters level, aims to analyse the operational approaches of the

military police in the context of ethnic racial relations, emphasizing the verbal, social and

physical relationships during operations, whether preventive or repressive point of view. Also

want to be aware of the military police training policies and its historicity; understand how

police officers perceive their actions and reactions in approaches when addressing the black or

white citizen; and learn how the black and white citizens perceive the approaches of the

military police when directed at themselves. The research is part of the qualitative approach

and inspired by the ethnographic method. The survey was conducted taking as data collection,

tools documentary analysis of the Curriculum Matrix training PMMT soldiers; participant

observation from operating activities, semi structured interviews with operational officers and

addressed. Regarding the analysis, it was inspired by the content analysis. Ten interviews

were conducted with the police, and questionnaires with twenty military police of two units,

one from Cuiaba-MT and another from Várzea Grande-MT. From the content analysis, it was

possible to characterize evidence of prejudice and discriminatory practices. In the ostensible

police, the subject to be addressed is described as dark skinned man with tattoos, usually

popular class. This highlights the need for better training of these professionals through

curriculum increments; increased workload and disciplines in the humanities; debates with the

movements that represent minorities, introduction of studies on ethnic racial issues, most

space-time to reflect on the diversity of others, whether in initial or continuing education.

Keywords: Military Police. Police approach. Racial prejudice. Discrimination. Formation.

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RESUMEN

Este estudio, a nivel de maestría, tiene como objetivo analizar las abordajes operacionales de

la policía militar en el contexto de las relaciones etnicorraciais, realzar en las relaciones

verbales, sociales y físicas durante las operaciones productor es el punto de vista preventivo o

represivo. También postular conocer al tanto de las políticas de formación de la policía militar

y su historicidad; entender cómo policías perciben sus acciones y reacciones en los enfoques

al abordar el ciudadano negro o blanco; y aprender cómo los ciudadanos blancos y negros

perciben las abordajes de la policía militar cuando se dirige a sí mismos. La investigación es

parte del enfoque cualitativo y se basa en el método etnográfico. La encuesta se realizó

tomando como análisis de las herramientas de recolección de datos documental de formación

matrices curriculares soldados PMMT; la observación participante de las actividades

operativas, las entrevistas semi-estructuradas con la policía operativos y abordados. En cuanto

al análisis que se inspiró en el análisis de contenido. Diez entrevistas se realizaron con

abordados, diez entrevistas con la policía y los cuestionarios con veinte policías militares de

dos unidades, una de Cuiabá-MT y otro Várzea Grande-MT. A partir del análisis de

contenido, fue posible caracterizar evidencia de prejuicios y prácticas discriminatorias. En la

policía manifiestos, la característica del sujeto que abordar es descrito como el hombre de piel

oscura, los tatuajes, por lo general de clase popular. Esto pone de relieve la necesidad de

mejorar la formación de estos profesionales a través de incrementos del currículo - aumento

de carga horaria y las disciplinas en las humanidades; diálogo con los movimientos que

representan a las minorías, la introducción de estudios sobre etnicorraciais cuestiones, la

mayoría del espacio-tiempo para reflexionar sobre la diversidad de los demás, ya sea en la

formación inicial o continua.

Palabras clave: Policía militar. Abordaje Policía. Prejuicio racial. Discriminación.

Formación.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................. 10

CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS...................................... 15

1.1 O campo de pesquisa......................................................................................... 15

1.2 Orientação teórico-metodológica....................................................................... 19

1.2.1 A abordagem ............................................................................................ 19

1.2.2 O método .................................................................................................. 20

1.3 Os instrumentos de coleta de dados .................................................................. 23

1.3.1 Análise documental................................................................................... 23

1.3.2 O questionário........................................................................................... 23

1.3.3 A entrevista............................................................................................... 24

1.3.4 Observação........... ................................................................................... 25

1.4 Técnicas de análise de dados: Análise de conteúdo .......................................... 26

CAPÍTULO II - CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA POLÍCIA

MILITAR NO BRASIL E EM MATO GROSSO......................................................

29

2.1 Antecedentes Policiais Militares de Mato Grosso............................................ 36

2.2 Organograma Hierárquico da Polícia Militar de Mato Grosso......................... 41

CAPÍTULO III – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA FORMAÇÃO

MILITAR NO BRASIL E EM MATO GROSSO......................................................

45

3.1 O ensino na Polícia Militar de Mato Grosso no Centro de Instrução Militar.... 50

3.2 O espaço físico como ambiente de formação.................................................... 55

3.3 As competências na formação policial militar................................................... 57

3.4 A política nacional de segurança pública – Matriz Curricular Nacional –

Diretrizes............................................................................................................

60

3.5 Como se tornar soldado na Polícia Militar........................................................ 66

3.6 O ambiente de formação policial militar: Centro de Formação e

Aperfeiçoamento de Praças................................................................................

68

CAPÍTULO IV - REFLEXÕES TEÓRICAS E ANALÍTICAS SOBRE RITOS,

HIERARQUIA, DISCIPLINA E PODER NA FORMAÇÃO E AÇÃO DO

POLICIAL MILITAR..................................................................................................

74

4.1 Rituais de iniciação do policial militar.............................................................. 74

4.2 Manutenção da configuração militar: a disciplina............................................. 77

4.3 A importância dos ornamentos no corpus policial militar................................. 82

CAPÍTULO V - O ESTADO E O PROCEDIMENTO POLICIAL MILITAR...... 86

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5.1 A Polícia Militar como aparelho do Estado....................................................... 87

5.2 A função policial militar e a sociedade.............................................................. 91

5.3 Abordagem operacional na dimensão da ação policial...................................... 97

5.4 O poder de polícia na abordagem operacional................................................... 99

CAPÍTULO VI - A ABORDAGEM POLICIAL E AS RELAÇÕES

ETNICORRACIAIS....................................................................................................

107

6.1 O sujeito negro: na concepção da ação policial........................ ........................ 115

6.2 Racismo institucional na Polícia Militar de Mato Grosso?............................... 120

6.3 Direitos do cidadão e a prática policial.............................................................. 123

6.4 A confiança da população nas abordagens operacionais................................... 127

6.5 As normas para policiais e cidadãos.................................................................. 129

CAPÍTULO VII – RESULTADOS DA PESQUISA.................................................. 135

7.1 Apresentações das análises................................................................................ 135

7.1.1 Projeto Político Pedagógico...................................................................... 135

7.1.2 Documentos curriculares.......................................................................... 138

O manual do aluno no curso de formação........................................................ 138

A Lei de ensino da polícia militar...................................................................... 141

O estatuto dos militares do Estado deMato Grosso........................................... 143

7.2 As Matrizes Curriculares dos Cursos de Formação de Soldado de 2003,

2005, 2008 e 2011.............................................................................................

145

7.3 Questionários e entrevistas................................................................................ 151

7.4 Estratégias de análises das perguntas elaboradas no questionário..................... 153

7.4.1 A importância de ser policial militar........................................................ 153

7.4.2 A prática de abordagem policia................................................................ 155

7.4.3 O preconceito/discriminação ou estereótipo racista................................. 157

7.5 As entrevistas – policiais militares.................................................................... 159

7.5.1 O papel do policial militar........................................................................ 160

7.5.2 Preferência de abordagem operacional..................................................... 161

7.5.3 Percepção da Polícia Militar em suas práticas de abordagens.................. 164

7.6 As entrevistas – Sujeitos abordados................................................................... 165

7.6.1 A abordagem policial militar na ótica do abordado.................................. 166

7.6.2 O sentimento do abordado sobre as abordagens policiais........................ 169

7.7 Observação de policiamento - Procedimentos e Direcionamento..................... 172

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7.7.1 Observação do policiamento ostensivo motorizado................................. 175

7.7.2 Observação – operação repressiva............................................................ 183

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 187

REFERÊNCIAS............................................................................................................ 192

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INTRODUÇÃO

No início de janeiro de 1979, adentrei a um quartel da Polícia Militar do Estado de

Mato Grosso, a convite de um colega policial militar, no bairro do Porto – Cuiabá-MT, 1º

Batalhão da Polícia Militar –, local histórico para a cidade e para a Polícia Militar; naquele

momento tinha um cartaz dizendo que havia vaga para 100 policiais militares (soldados) e,

após minha inscrição, 45 jovens se inscreveram. No meu caso, ainda não havia prestado o

serviço militar obrigatório, foi necessário então solicitar autorização ao Exército brasileiro

para que eu pudesse servir à Polícia Militar do Estado de Mato Grosso. Foi assim a minha

inclusão nas fileiras da Polícia Militar.

O mundo militar foi estranho à minha convivência, ninguém pedia “por favor”, era

determinação aqui, acolá etc., na minha percepção era difícil aquela situação até porque não

tinha ideia da estrutura hierárquica/disciplinar militar. O tratamento ofertado aos recrutas, em

minha opinião, era desumano, por exemplo: em uma noite de trabalho, no quartel, alguém

hierarquicamente superior mandou que eu apanhasse um tijolo para que ele pudesse descansar

o pé; achei aquilo desproporcional e argumentei que daquele jeito não atenderia, se dissesse

“por favor”, pegaria o tijolo. Resultado: detenção – sem sair do quartel durante dois dias.

Naquele momento, ainda ingênuo, acreditei que poderia contribuir na modificação naquele

ambiente “deseducado”.

No mesmo ano da inclusão realizei concurso interno para sargento. Mesmo não tendo

ideia segura sobre a questão, prestei concurso para o Curso de Formação de Sargentos (CFS)

no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), na cidade de Várzea Grande-

MT, bairro Costa Verde, curso ministrado em seis meses em regime de semi-internato. Fui

aprovado em uma turma composta por 45 sargentos.

Terminado o curso em 25 de dezembro de 1979, fui designado para servir na

Companhia de Polícia de Trânsito na capital e a partir de então fui operacionalizar os

ensinamentos policiais militares junto à sociedade. Depois de formado, eu e um colega de

curso iniciamos uma “campanha” com ideias de “ajustes” na instituição, por tratamento mais

humanizado, respeito ao profissional etc. Essas ideias foram tomadas como pensamentos

revolucionários e que não poderiam ser aceitos pela corporação.

Acredito que devido a essas atitudes fui caracterizado como “subversivo”, termo usado

por alguns policiais superiores a meu respeito. Por conta disso, vieram as retaliações através

do recorte indisciplina, então surgiram as punições e transferências, inclusive ocorrendo a

minha exclusão das fileiras policiais, fato ocorrido em 1982, com alegação da falta de

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documento (Reservista) expedido pelo Exército brasileiro, cujo ato (exclusão) se resolveu

quando o Exército foi procurado e, tomando conhecimento da situação, o próprio Exército

resolveu com a Polícia Militar solucionando o problema.

Outros episódios que ocorreram durante a vida profissional: concurso interno para

ascensão profissional, sem êxito; algumas vozes foram ouvidas: “Você é incompatível com o

oficialato”, “baixinho, negro e subversivo”. Até como praça (sargento) alguns insistiam em

dizer que não deveria fazer parte da corporação. Porém é importante ressaltar que, nesse

percurso, houve apoio de muitos companheiros (oficiais e praças), incentivando para não

desistir da ascensão profissional e nem pedir exoneração da carreira policial militar.

Foram 30 anos de experiência como policial militar, questionando e refletindo sobre

várias condutas e comportamentos efetivados por alguns integrantes da corporação no

exercício da função e outras vezes fora da função, com postura de resistência e de anulação

dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Outras experiências foram vivenciadas com mais intensidade: o excesso de força e a

característica discriminatória utilizada na abordagem policial, que é um viés muito tenso da

ação policial militar, momento em que o policial necessita demonstrar preparo profissional

adequado; é um momento em que o desempenho será decisivo para o sucesso ou não da

operação policial. Nesse contexto de relação, o enfrentamento é um fenômeno que pode

ocorrer entre o policial e o cidadão.

Na direção desse fulcro é que diversas indagações percorreram nossas reflexões e, em

especial, nesse campo de relação entre o policial militar e o cidadão. No lastro dessas

indagações foi possível elaborar o seguinte questionamento: as abordagens operacionais da

Polícia Militar do Estado de Mato Grosso na contextualização etnicorracial são práticas com

respeito à dignidade da pessoa humana?

Com a elaboração do problema, o ponto inicial é a hipótese que sugere: a Polícia

Militar como instituição da segurança pública, no campo etnicorracial, estabelece relações de

poder entre o público interno (policiais) e externo (sociedade) gerando dificuldades de

compreensão social, que também se refletem nas abordagens operacionais com marca de

preconceito racial e discriminação.

Os antecedentes de ações policiais justificam observar que lamentavelmente na

relação policial e cidadão a cidadania tem sido negada por parte de alguns componentes da

Polícia Militar, o que dificulta ainda mais a consolidação de uma polícia cidadã. Nesse

sentido, é pertinente a realização desta pesquisa, a fim de serem identificados mecanismos que

deturpam a cidadania.

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Ademais, a pesquisa tem como perspectiva contribuir para uma nova abordagem

policial militar, de modo que seus componentes apliquem o tratamento nas ações policiais

com respeito à dignidade humana. Com isso, elaboram-se os seguintes objetivos:

Geral: Analisar a prática das abordagens operacionais da Polícia Militar do Estado de

Mato Grosso, com enfoque no tratamento racial dispensado aos sujeitos envolvidos,

enfatizando as relações verbais, sociais e físicas durante as operações realizadas, seja do ponto

de vista preventivo ou repressivo.

Específicos: Analisar a Matriz Curricular de formação do policial militar a fim de

verificar se esta problematiza, silencia ou contempla as discussões que incluem os temas

preconceito, racismo, igualdade e outras questões pertinentes às relações raciais na sociedade

brasileira; observar as abordagens operacionais no âmbito das ações policiais militares no

momento das abordagens dos suspeitos; compreender como o policial militar percebe suas

práticas profissionais diante de diferentes sujeitos abordados, mais especificamente brancos e

negros; compreender como o cidadão negro percebe a si mesmo diante das abordagens

policiais; relacionar possibilidades de outras perspectivas de abordagens operacionais,

colocando-se na postura cidadã diante de sujeitos negros ou brancos.

Para essa intencionalidade foi escolhida a pesquisa qualitativa com caráter descritivo e

interpretativo, porém sem a intenção de neutralizar a pesquisa quantitativa. E no curso do

plano metodológico o método utilizado é o etnográfico, pois este estudo pretende

compreender o comportamento do policial militar em sua atividade de abordar, o que só pode

ser feito por meio de observação direta.

Esta é a razão pela qual a etnografia leva as suas investigações em cenários “naturais”,

que existem independentemente do processo de investigação, em vez de as efetuarem em

ambientes especialmente preparados para o efeito. Além disso, a ideia de naturalismo implica

que os acontecimentos e os processos sociais sejam explicados em função da sua relação com

o contexto onde decorrem.

Nessa perspectiva, foram utilizadas como técnicas de coleta de dados o questionário, a

entrevista semiestruturada, a observação participante com policiais de duas unidades

operacionais, com seus relatos e experiências cujos discursos e representações foram

compreendidos em seu percurso profissional e, ainda, a análise documental. As técnicas de

coleta de dados foram tratadas com a técnica de análise de conteúdo, com o critério de

categorização adotado, o semântico.

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Nessa perspectiva de reflexão, foi importante verificar o processo histórico da

instituição para perceber um percurso quase que inalterável de modelo militarizado ao longo

de sua caminhada, descrevendo o processo de formação policial militar e direcionando a uma

característica cidadã, utilizando postulados teóricos no cerceamento da liberdade profissional

e pessoal, enfim, a contradição do policial militar em fazer uso das normas e na prática

policial anular os direitos fundamentais da pessoa humana.

Assim, em virtude da relevância do trabalho, o método utilizado foi a etnografia na

perspectiva de Geertz (2008), na descrição sobre o enquadramento e formação militar

pormenorizada por Foucault (1999), na concepção de instituições totais sob o olhar de

Goffman (1999), no Estado e aparelho repressivo o levantamento de Althusser (2003), na

análise de currículo de Silva (1999) e formação de Freire (1987), dentre outros autores.

Para atingir os objetivos propostos, foi importante abordar vários temas como

historicidade das polícias militares, estrutura policial militar, postulados da polícia

militarizada, formação e práticas policiais, relação da polícia com a sociedade em seus vários

aspectos (socioeconômico, etnicorracial etc.), conteúdos que compõem o contexto policial

militar na relação com suas ações. Dessa forma, há uma possibilidade de a pesquisa

movimentar com maior segurança o objeto diante da configuração complexa que o assunto

contempla.

Nesse continuum introdutório, o estudo foi estruturado em sete capítulos assim

descritos: no primeiro capítulo estão os procedimentos metodológicos, sob a tutela de Clifford

Geertz; o percurso metodológico está relacionado à constante busca para se enxergar o mundo

policial militar segundo o ponto de vista do policial militar. Isso torna possível vivenciar o

mundo natural, pois é por meio da captura de conceitos do policial que se possibilita

esclarecê-los ou ao menos tentar. Nesse sentido, é possível descobrir os significados

atribuídos as suas práticas e representações das suas abordagens.

No segundo capítulo é abordado o percurso histórico da Polícia Militar,

contextualizando suas perspectivas sócio-históricas, as competências de seus homens como

caçadores de escravos e contemporaneamente na preservação da ordem pública, seus

enquadramentos militaristas, sobretudo a influência que a disciplina e a hierarquia exercem no

ser policial militar.

A formação policial militar é abordada no terceiro capítulo trilhando pela base de sua

história, perambulando pelas vias educacionais e demonstra que esta se tem vislumbrado

somente a formação tradicional, visualizando cursos com características opressoras, desde sua

gênese aos dias atuais, com leves modificações. A formação policial militar do século XXI,

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mesmo com tentativa de reconstrução, por exemplo: a criação da Matriz Curricular Nacional

para uma formação mais adequada à democracia brasileira, mesmo assim, ainda está

vinculada ao tecnicismo.

O capítulo quarto descreve os rituais, a disciplina, a hierarquia e o poder na formação

policial militar. Esses postulados exercem uma influência e um fascínio nos componentes

militares de tal forma que o corpo se transforma literalmente em docilidade e seu

comportamento anterior ao policial militar transforma-se magistralmente, chegando à morte

do eu civil e surgindo o eu militar.

O quinto capítulo descreve o princípio de poder que configura o Estado, por

intermédio de mecanismos normativos, e tem como atributo a vigilância dos indivíduos e da

massa. Nesse viés, fica definido que a formação social é resultado de um modo de produção

dominante. Então o Estado é o aparelho repressivo do próprio Estado, e é nessa direção que

segue a abordagem policial militar.

O sexto capítulo descreve o processo de contribuição que o sujeito negro oferta ao

Brasil, uma contribuição à força da escravidão, àqueles que reagiam à chibata, à prisão, à

morte. Esse ‘trabalho’ era realizado pela força pública, pela milícia ou Polícia Militar. A

contribuição das teorias raciais foi a de inferiorizar o sujeito negro e o poder de polícia, e de

torná-los bandidos perigosos.

Enfim, o sétimo capítulo se constitui no olhar etnográfico cujo percurso metodológico

se formatou na descrição e interpretação dos fenômenos policiais militares, tornando-os

relevantes, mas também possibilitando uma compreensão diante das percepções do mundo

policial militar, de suas intencionalidades após as análises cientificas.

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CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

1.1 O campo de pesquisa

No segundo semestre de 2012, como se por acaso, observando uma abordagem policial

militar a um sujeito negro, no interior do Estado de Mato Grosso, a intuição registrou que

seria interessante pesquisar sobre a intervenção do policial junto às pessoas em suas ações

enquanto operadores de segurança pública. Esse cenário observado reavivou as inquietações

adormecidas nos vários momentos de experiências policiais militares.

A partir desse momento, com o ingresso no curso de mestrado no primeiro semestre de

2013 e com as inquietações sobre o preconceito racial por parte de alguns policiais, fomos

cumprir os encargos do curso: disciplinas, participação em seminários temáticos,

apresentações de trabalhos orais, encontros e desencontros que o curso proporciona, enfim a

iniciativa de ir a campo com o propósito de realizar entrevistas, questionários e observações.

A nossa experiência como policial militar, em tese, seria uma vantagem na

movimentação pelo meio, talvez menos burocracia, mas enfim... teria que seguir todos os

rituais regulamentares para poder me posicionar de uma forma consistente, coerente e

especialmente como acadêmico. O tempo passou.

A primeira medida tomada foi solicitar autorização para realizar a pesquisa, o pedido

teria que ser encaminhado ao comandante geral da corporação, e assim foi feito: no início de

dezembro de 2013 foi protocolado o ofício ao comandante para que pudesse autorizar o

intento, e por desejar a concretização da questão também foi encaminhado documento de

solicitação ao departamento responsável pela formação de policiais – Diretoria de Ensino,

Instrução e Pesquisa (DEIP).

O documento descrevia nossa condição de aluno de mestrado do Instituto de Educação

da Universidade Federal de Mato Grosso e o tipo de pesquisa que gostaríamos de realizar na

Polícia Militar do Estado de Mato Grosso. O ofício encaminhado ao comandante mencionava

o tema da pesquisa e justificava a escolha do assunto pela inexistência de estudos similares na

Região Centro-Oeste e pela motivação pessoal de pertencer aos quadros da Polícia Militar,

mesmo estando na reserva remunerada.

Enfim, em janeiro de 2014 saiu a autorização, tornando-se concreta. A autorização foi

publicada na data de 10 de janeiro de 2014, em boletim geral da Polícia Militar do Estado de

Mato Grosso, número 930 – documento administrativo da corporação que legitima as ações e

para que seus componentes tomem conhecimento. Então, oficialmente autorizado, deslocamo-

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nos aos comandos regionais para solicitar autorização dos comandantes de grandes áreas sobre

a pesquisa em questão.

Após esses procedimentos, outros passos foram dados com tranquilidade devido a

nossa experiência como policial militar que possibilitou os encaminhamentos sem que algum

estranhamento fosse sentido. Após a autorização do comandante geral da corporação,

seguimos para apresentação aos comandantes regionais, ao coronel comandante do Comando

Regional I em Cuiabá, e a segunda ao coronel do Comando Regional II em Várzea Grande, e

em outros momentos aos batalhões da Polícia Militar. Em seguida foi a vez de visitar os

comandantes de unidades. Este ponto foi menos burocrático; apesar da mesma estrutura, o

atendimento foi promissor.

Mesmo com esse viés favorável dos comandantes de unidades, a nossa presença nos

batalhões foi seguida sempre dos ritos de apresentação: ao comandante do quartel, ao oficial

de dia, ao oficial de área, enfim sempre há, na unidade militar, um “comandante” a quem se

deve pedir licença. Essa dificuldade ocorre nas demais instituições, porém na Polícia Militar

prevalece o excesso de burocracia. Ficou esclarecido aos comandos que determinaram aos

chefes da seção de pessoal que nós [pesquisadores] estaríamos coletando dados da nossa

pesquisa através de questionários, entrevistas e observações.

A primeira unidade visitada (com agendamento) para a coleta dados foi o 1º Batalhão,

localizado na Avenida XV de Novembro (bairro Porto) Cuiabá. Chegamos à caserna às 6h, o

primeiro contato foi com o oficial de dia – função de comando dos policiais escalados para o

serviço interno e externo. Reunimo-nos com os policiais escalados naquele dia e fizemos as

explicações sobre o trabalho; dentre os profissionais presentes, cinco se prontificaram a

colaborar. O retorno à unidade no período noturno foi às 18h30, o procedimento foi da mesma

maneira, e mais cinco policiais se colocaram à disposição para colaborar.

Na cidade de Várzea Grande, a visita (agendamento) foi no 4º Batalhão de Polícia

Militar. Os procedimentos foram os mesmos adotados em Cuiabá. O início dos trabalhos foi

às 12h. Nesse momento o oficial do dia organizou o encontro com os policiais que entrariam

de serviço no dia. O local da reunião foi o pátio do quartel; enfim reunidos, receberam as

informações sobre a pesquisa e dez desses policiais se posicionaram para responder ao

questionário.

As entrevistas foram realizadas com menos burocracia, aproveitamos a homologação

geral da pesquisa para a realização desta atividade, independente da autorização dos

comandantes. Também foram entrevistados cinco policiais da unidade de Cuiabá e cinco

policiais de Várzea Grande, em horários aleatórios; alguns desses policiais aceitaram

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participar no momento do encontro e outros marcaram horário de acordo com sua

disponibilidade.

Com os abordados também houve essa característica de informalidade, então nos

deslocamos para os locais combinados por eles mesmos, procurando a melhor maneira e a

melhor hora, respeitando sempre a opinião desses participantes. Foi notada uma ansiedade por

parte desses colaboradores, as entrevistas tiveram um aspecto de denúncia, também uma

espécie de esperança em favor dessa população. Dentre eles, apenas um elaborou denúncia

formal na Corregedoria da Polícia Militar contra a abordagem, que ele achou preconceituosa.

Em relação às observações, parte delas foi realizada no policiamento na Arena

Pantanal: estádio de futebol construído para a ocasião da Copa do Mundo, e no seu entorno

nos dias 17 às 18h, 21 às 18h e 24 às 16h do mês de junho de 2014, por ocasião do

campeonato mundial de futebol, nas respectivas partidas: Rússia X Coreia, Nigéria X Bósnia e

Japão X Colômbia.

Nessas datas entre as 12h e as 13h estávamos no 1º Batalhão – o local de concentração

dos policiais escalados na operação. Três horas antes do início dos jogos nos deslocávamos

para a arena, sempre por dois itinerários centrais (Avenida Agrícola Paes de Barros e Av. Oito

de Abril) permanecendo durante o tempo dos jogos em movimento nas vias do entorno do

estádio. No encerramento das partidas de futebol permanecíamos até mais ou menos à 1h30 no

entorno da arena e nos itinerários centrais.

Outra parte das observações foi realizada nos bairros Centro e Porto, da cidade de

Cuiabá, cujo policiamento ostensivo e repressivo é de responsabilidade de um dos batalhões

da Polícia Militar da cidade.

No mês de outubro de 2014, iniciamos a observação das abordagens no policiamento

ostensivo motorizado: dia 14 no período noturno; dia 23 no período vespertino; dia 24 no

período matutino; dia 27 no período noturno e dia 29 no período matutino. As observações de

abordagens repressivas foram realizadas em 31 de outubro e 22 de novembro de 2014, ambas

no período noturno. O tempo de cinco horas foi o estipulado para cada período de observação.

Mesmo com todos os trâmites acertados, durante o percurso da pesquisa ocorreram

situações que demonstraram uma espécie de clivagem, de filtragem interna desse “algo” vindo

do mundo exterior. Diante dessas situações burocráticas foi possível observar resistência à

flexibilidade que não é peculiaridade da organização policial militar. A impressão que ficou

foi que a estrutura de comando constitui-se em um bloco único e seguro de funcionamento,

isto é, prevalece o ponto de vista militar como prática institucional.

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Esses procedimentos nos dizem que a Polícia Militar é uma instituição burocrática e

burocratizada, com funcionamento em departamentos e cujos setores funcionam

organicamente. Suas unidades representam ao mesmo tempo essas relações e com o mesmo

tipo de procedimentos, isto é, um funcionamento linear, procedimentos padrão.

Essa burocracia nos remete ao entendimento da visão weberiana, sobre como funciona

o poder, não o poder geral, mas o poder da dominação, isto é, a pessoa que impõe seu arbítrio

sobre os demais; por outro lado, os demais [subalternos] vão considerar como de sua

obrigação obedecer às ordens emanadas.

Outra característica descrita por Weber (1982, p. 269) em relação à burocracia é que

ela potencializa os segredos, conhecimentos e intenções. “Na administração burocrática, tende

a ser uma estrutura organizada de pequenas sessões secretas: na medida em que pode, oculta

seu conhecimento e ação da crítica”. Dessa forma, o poder do perito, ou funcionário

especializado, é aquilatado e, por esse motivo, a qualificação como forma de especialização

crescente resulta muito valorizada. A burocracia, portanto, “tem um caráter ‘racional’: regras,

meios, fins e objetivos dominam sua posição” (WEBER, 1982, p. 282).

Essa forma de funcionar e operacionalizar, mesmo com a autorização do Comando

Geral, fez com que o percurso das coletas de dados, especificamente as observações das

abordagens, demorasse um pouco mais, porém sem prejuízo significativo. Durante as visitas

nas unidades militares todos os procedimentos (ritos militares – apresentações, explicações

sobre a pesquisa, autorizações) institucionais foram cumpridos; nessa caminhada não ocorreu

nenhuma negação, somente a burocratização (comandante não estava, marcou para outro dia

etc.) fez o tempo passar até que se efetivassem as observações.

Diante desse grupo social (policiais militares), como em qualquer atitude de ciência, os

processos utilizados pelo pesquisador fizeram-se públicos desde a tarefa inicial, pois há

necessidade de decidir sobre os fatos de suas descobertas. Assim, suas próprias decisões

devem ser tomadas, apesar dos tipos de ‘parceria’ que devem estar presentes no percurso da

pesquisa entre pesquisador e instituição.

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1.2 Orientação teórico-metodológica

1.2.1 A abordagem

A pesquisa aparece com a necessidade de se buscar a resposta de uma inquietação de

atividade investigativa, isto é, a formulação de um problema. Portanto, necessita de um

mecanismo científico apropriado para atingir o resultado pretendido.

Dessa forma, a presente pesquisa insere-se na abordagem qualitativa, pois isso

possibilita apreender e compreender a relação de Estado e sociedade, utilizando abordagem

policial militar a sujeitos negros. Esse fato social demanda aprofundamento no contexto

social, racial e histórico dos pesquisados, além de compreender as peculiaridades e as

significações desses atores em suas práticas e experiências.

Dentre essas caracterizações Bogdan e Biklen (1994) expressam que a fonte direta de

dados para a pesquisa é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento

principal, tratando a informação como fonte direta. O fenômeno deve ser visto de forma

minuciosa. O processo é passo importante, pois as significações são negociadas por meio de

gestos, atitudes. A análise é construída à medida que as informações particulares vão se

agrupando. O significado é vital, e isso é designado por perspectivas participantes.

Essa relação com os pesquisados reflete uma aproximação segura, de modo que o

pesquisador se aprofunde nos sentidos e nas emoções que produzem saberes e práticas. Esse

ambiente possibilita procedimentos que permitam tomar considerações do informante, e essa

conduta reflete uma espécie de diálogo entre pesquisador e pesquisados. Nesse sentido,

Serrano (1998) afirma que pesquisa qualitativa em seu mais amplo sentido é a investigação

que produz dados descritivos – nas próprias palavras das pessoas (faladas ou escritas) e na

conduta observável.

Outro viés significativo na pesquisa qualitativa, diz Triviños (2006), é o fato que

muitas informações sobre a vida de um povo, de uma comunidade ou de um grupo não podem

ser quantificadas e precisam ser interpretadas de forma mais ampla. Por outro lado,

proporcionam uma visão da realidade social e cultural, e nesse sentido, obrigam o pesquisador

a considerar uma série de estratégias metodológicas, marcadas fundamentalmente pela

flexibilidade da ação investigativa.

A abordagem qualitativa surge como contraponto à abordagem quantitativa que

defende a quantificação e o controle das variáveis para que o conhecimento objetivo do

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mundo seja alcançado. O fundamento da abordagem quantitativa está na crença de que o

modelo das ciências naturais é pertinente para as ciências sociais.

O ponto de vista da abordagem qualitativa é compreensivo. No entanto, os modelos

científicos das duas ciências são diferentes, dada a natureza distinta de seus objetos. A ação

humana é intencional e reflexiva, cujo significado é apreendido a partir das razões e motivos

dos atores sociais inseridos no contexto da ocorrência do fenômeno, o que não acontece com

os objetos físicos, foco de análise das ciências naturais.

Portanto, a pesquisa qualitativa é particularmente a mais adequada a esta investigação,

porém não tendo à intencionalidade de se sobrepor à pesquisa quantitativa, até porque ambas

as abordagens se complementam. Para a busca das significações sobre abordagem policial

militar no contexto etnicorracial é necessário um envolvimento com os profissionais que se

permitam observar, ouvir, conversar, possibilitar a expressão livre desses sujeitos e procurar

compreender o contexto da caserna, suas relações de poder, valores e símbolos.

As configurações das práticas policiais serão analisadas em suas peculiaridades, mas

isso não exclui comparações nem dados quantitativos (perfil dos participantes), pois esses

dados serão cruzados com a entrevista, anotações de campo, levando em conta sentimentos,

percepções, contextos sociais, econômicos, raciais e históricos. Até porque pesquisa

qualitativa impõe-se sempre que se trate de temas que se interessam mais pela intensidade do

que pela extensão dos fenômenos e, ainda mais, ela não se opõe ao formato de pesquisa

quantitativa, uma vez que a dicotomia entre quantidade e qualidade está superada (DEMO,

2006).

Com o propósito de compreender e avaliar as abordagens operacionais da Polícia

Militar de Mato Grosso e a relação que mantém com a sociedade mato-grossense, a pesquisa

utilizará como método a etnografia, que é uma modalidade de pesquisa qualitativa com suas

raízes na antropologia. A escolha pelo método etnográfico reside no fato de que o

reconhecimento do racismo, muitas vezes sutil ou praticado às escondidas pelos policiais em

suas abordagens, não seria possível de apreender se não fosse por meio de observação

acurada.

1.2.2 O método

A pesquisa etnográfica desenvolve-se no final do século XIX e início do século XX,

tem suas raízes nas práticas desenvolvidas pela antropologia e, em seguida, pela sociologia e a

educação (PFAFF, 2010). Os pesquisadores perceberam que muitas informações sobre a vida

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dos povos não podem ser quantificadas e precisavam ser interpretadas de forma muito mais

ampla que circunscrita ao simples dado objetivo.

A linha etnográfica, antropológica, está mais interessada em modelos socioculturais da

conduta humana do que na quantificação dos atos humanos. Os fenômenos culturais são mais

suscetíveis à descrição e análises qualitativas que a quantificação (SERRANO, 1998).

A etnografia pressupõe a participação do investigador que se envolve na vida da

comunidade com todas suas coisas essenciais e acidentais. Mas sua ação é disciplinada,

orientada por princípios e estratégias gerais. De toda maneira, sua atividade, sem dúvida

alguma, está marcada por seus traços culturais peculiares, e sua interpretação e busca de

significados da realidade que investiga não podem fugir às suas próprias concepções do

homem e do mundo (TRIVIÑOS, 2006).

Portanto, a abordagem policial militar será apreendida e interpretada de acordo com a

concepção de Geertz (2008, p. 212). Ou seja, “como um conjunto de texto (teia de

significações), que o pesquisador tenta ler por sobre os ombros daqueles a quem ele pertence”.

Na concepção de Geertz, praticar etnografia não é somente estabelecer relações, selecionar

informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário.

[...] é a prática da etnografia, é que se pode começar a entender o que representa a

análise antropológica como forma de conhecimento. [...] Mas não são essas coisas,

as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que o

define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma

"descrição densa", tomando emprestada uma noção de Gilbert Ryle (GEERTZ, 2008,

p. 4).

Então a etnografia é considerada uma descrição densa Geertz (2008) por englobar uma

multiplicidade de estruturas complexas que o antropólogo deve apreender e apresentar. De

acordo com Geertz (2008), fazer etnografia é como “construir uma leitura” de um manuscrito

estranho, que tem incoerências e exemplos transitórios. Após a investigação do universo

pesquisado, o antropólogo sistematiza as informações coletadas sobre os informantes, de

modo que os textos finais não são mais do que interpretações de “segunda e terceira mão”,

pois somente um nativo seria capaz de interpretar a sua cultura em “primeira mão”. São,

portanto, ficções, por serem construídas pelo antropólogo.

A descrição densa tem quatro características: é interpretativa; o que ela interpreta é o

fluxo do discurso social; a interpretação consiste em salvar o dito num discurso, de modo que

ele não se extinga e fixá-los em formas pesquisáveis; ela é microscópica. Geertz (2008) ainda

ressalta que mesmo no cotidiano do trabalho

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o etnógrafo enfrenta uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas

delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas,

irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e

depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho

de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir

os termos de parentesco, traçar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico...

escrever seu diário. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de "construir

uma leitura de") um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências,

emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais

convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado

(GEERTZ, 2008, p. 7)

Isso proporciona um olhar atento sobre instituições e organizações sociais, supera a

estrita dependência descritiva, uma vez que é pluridisciplinar o saber disponível sobre essas

instituições e organizações. De modo que se mantém a dependência descritiva, mas como base

sobre a qual se interpreta.

A pesquisa etnográfica, conforme Hall apud Ludke (1986), é um desafio ao

pesquisador/observador, pois exige habilidades que não são poucas e nem simples. Algumas

características essenciais para o bom etnógrafo: precisa ser capaz de tolerar ambiguidades; de

trabalhar sob sua própria responsabilidade; deve inspirar confiança; deve ser pessoalmente

comprometido, autodisciplinado; sensível a si mesmo e aos outros; maduro e consistente; deve

ser capaz de guardar informações confidenciais.

A etnografia como método de investigação científica trouxe contribuições

significativas para esta pesquisa que tem como foco a abordagem policial na relação

etnicorracial, por se preocupar com uma análise das concepções, saberes e práticas policiais,

como um sistema de significados; nesse sentido, torna-se necessário ‘mergulhar’ nesse

fenômeno de tal forma que possa visualizar nas entrelinhas dessas práticas.

Portanto, de acordo com Castilho (2011, p. 79), os pesquisadores devem primar por

uma reconstrução de olhares com a finalidade de “ter olhos para ver” as diferenças culturais

mais sutis, uma vez que o “selvagem”, o “primitivo”, “sociedades simples”, no que diz

respeito a povos e culturas, não existem mais. As trocas culturais estão mais acentuadas,

diluindo as demarcações de espaço e tempo, bem como tornando as fronteiras culturais e

identitárias cada vez menos nítidas, ainda que ativas e persistentes.

Por essas razões a etnografia oferece ferramentas metodológicas para compreender

como as abordagens policiais militares são realizadas no ambiente público, como são

construídas essas ações, como os policiais conduzem suas vidas no âmbito profissional, e

“revelar” o significado das abordagens nas relações com as pessoas num contexto

etnicorracial.

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Os dados serão interpretados de forma que seja o mais representativo possível do

significado que as próprias pessoas pesquisadas dariam à mesma ação, evento ou situação.

Portanto, a etnografia apresenta-se como uma forma específica de construção de uma narrativa

sobre o grupo social pesquisado. Além disso, o texto etnográfico parece refletir um esforço

intelectual do pesquisador em atribuir significação às representações e práticas dos envolvidos

na cena em observação.

1.3 Os instrumentos de coleta de dados

1.3.1 Análise documental

A análise documental foi outro instrumento utilizado para ampliar o entendimento

sobre abordagem policial que necessita de contextualização histórica e sociocultural. Por

exemplo, na reconstrução de uma história vivida. Outra questão importante dessa análise é que

ela permite acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social. A análise documental

favorece a observação do processo de maturação ou de evolução de indivíduos, grupos,

conceitos, conhecimentos, comportamentos, mentalidades, práticas, entre outros (CELLARD,

2008).

A documentação analisada em pesquisas, conforme Lakatos e Marconi (2003), pode

ser de vários tipos. Nessa pesquisa os documentos se constituem de textos oficiais da Polícia

Militar cujo teor é fonte fidedigna. Podem dizer respeito a atos individuais ou, ao contrário, a

atos da vida política, de alcance municipal, estadual ou nacional. Neste caso, foram

analisados: o Projeto Político Pedagógico do Curso de Soldados; o Manual do Aluno, Lei de

Ensino da Polícia Militar e Estatuto dos Policiais Militares; Matrizes Curriculares dos Cursos

de Formação de Soldados da Polícia Militar dos anos de 2003, 2005, 2008 e 2011.

1.3.2 O questionário

O questionário foi outro instrumento utilizado para coleta de dados, com a

intencionalidade de obter informações sobre conhecimentos, temores, crenças, valores etc. dos

policiais pesquisados. Foram aplicados no mês de junho de 2014, para vinte policiais militares

em duas unidades, uma em Cuiabá e outra em Várzea Grande.

A disponibilidade para a aplicação do questionário e das entrevistas foi assegurada

pela marcação prévia com os comandantes de unidades, exceto as entrevistas, e repassados aos

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pesquisados, e os procedimentos de preenchimento foram de modo individual. Também foi

dito sobre a confidencialidade do teor das informações, sendo que seriam apresentadas de

forma codificada por um sistema numérico (01, 02, 03... 10, 11, 20) mantendo assim o

anonimato dos autores das afirmações.

O tempo de duração da aplicação do questionário apresentou variação que oscilou

entre 20 e 35 minutos, e as entrevistas entre 30 e 40 minutos, dependendo dos respondentes

que, de acordo com o tempo e abertura para o diálogo, desenvolveram o discurso.

Para Lakatos e Marconi (2003), o questionário é um instrumento de coleta constituído

por uma série ordenada de perguntas, que devem ser respondidas por escrito e sem a presença

do pesquisador. Para Gil (2011, p. 125), o questionário pode ser definido “como a técnica de

investigação composta por um número mais ou menos elevado de questões apresentadas por

escrito às pessoas, tendo por objetivo o conhecimento de opiniões, crenças, sentimentos,

interesses, expectativas, situações vivenciadas etc.”

Assim, nas questões de cunho empírico, o questionário é uma técnica que apresenta as

seguintes vantagens: garante o anonimato das respostas; permite que as pessoas o respondam

no momento que julgarem mais conveniente; não expõe os pesquisadores à influência das

opiniões e do aspecto pessoal do entrevistado (GIL, 2011, p. 121-122). Nesta pesquisa o

questionário teve como objetivo de estimular o participante a ficar mais à vontade e seguro

durante sua colaboração.

1.3.3 A entrevista

Para Gil (2011), entrevistas são técnicas adequadas para a obtenção de informações

sobre o que os participantes sabem, creem, sentem, pretendem fazer, fizeram, bem como para

fornecer explicações ou razões a respeito de situações precedentes. Isto é, uma técnica que

coloca o investigador para formular perguntas com o objetivo de obter dados que interessam à

investigação. A técnica da entrevista traz um roteiro a ser seguido, possibilitando maior

segurança na coleta de informações.

Pensamos que o pesquisador é marcado pela preocupação em relação aos dados a

recolher e recolhidos. Portanto, há necessidade de uma organização sistemática, até porque a

sistematização envolve outros elementos de pesquisa, tais como a neutralidade metodológica,

a imparcialidade e outros ritos ou mitos. Mesmo diante dessas variáveis, as técnicas de

recolhimento de dados devem ser seguras e contundentes.

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Os participantes selecionados para as entrevistas foram os operadores de segurança

pública militares, de unidades operacionais de Cuiabá e Várzea Grande, e pessoas negras, isto

é, os abordados; no sentido de compreender suas representações em abordar e de ser

abordado. Também foram codificados de forma numérica (01, 02, 03...), mantendo o

anonimato das informações.

As entrevistas dos abordados seguiram de forma similar aos policiais militares,

marcação prévia com os colaboradores, com o local e tempo disponibilizado pelos

participantes; as informações seriam apresentadas de forma codificada, pelo mesmo sistema

numérico dos militares, bem como foi mantido o anonimato dos autores. Neste caso, a tensão

nos encontros foi de nível elevado, levando até aproximadamente 60 minutos de diálogo para

encerrar a atividade.

Desse modo, parafraseando Geertz (2008) é possível dizer que a prática da abordagem

policial militar enquanto viés cultural é uma teia de significados que os homens tecem e a ela

se prendem, à medida que mantêm interações cotidianas que influem diretamente nas suas

ações sociais. Igualmente, ela é como um texto ou um conjunto de textos que os indivíduos

leem e interpretam ao longo dos acontecimentos sociais.

1.3.4 A observação

Foi utilizada também a observação participante que é um importante recurso para uma

inserção mais densa nas práticas e representações vivenciadas pelos policiais militares, pois

permite ao pesquisador uma análise mais delimitada e específica, devido a incursões mais

constantes que se podem fazer no dia a dia das experiências com a abordagem policial. A

observação, afirma Gil (2011), nada mais é que o uso dos sentidos com vistas a adquirir os

conhecimentos necessários para o cotidiano.

De maneira distinta, a observação participante parte da premissa de que a apreensão de

um contexto social específico só pode ser concretizada se o observador puder imergir e se

tornar um membro do grupo social investigado. Só então poderá compreender a relação entre

o cotidiano e os significados atribuídos por este grupo.

Neste procedimento, é importante para a pesquisa que o pesquisador assuma o papel de

um membro do grupo, isto é, o observador (GIL, 2011) faça parte da mesma comunidade ou

grupo que investiga. Neste caso, somos parte da instituição policial militar, atualmente na

reserva remunerada. Destaca-se o valor desse procedimento no estudo ora em pauta.

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A observação foi utilizada como uma das técnicas de coleta de dados nesta pesquisa,

devido à possibilidade de se captar uma variedade de situações às quais não se teria acesso

somente por meio de perguntas realizadas aos participantes.

Na observação participante, as anotações foram propostas em dois momentos

diferentes, porém com o mesmo propósito de estudar e analisar as abordagens policiais na

percepção dos sujeitos envolvidos.

No primeiro momento, houve preparação para entrada no campo onde foram feitos

estudos sobre conceitos e indicadores da ação policial. Essas ações foram planejadas tendo

como arcabouço as normas policiais militares. Mesmo no exercício da função legítima, muitas

vezes ocorre o desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. Dessa forma, nas

abordagens policiais procura-se enxergar a intencionalidade de cada policial militar nesse

campo de enfrentamento. Assim, o propósito foi consubstanciar conhecimentos para uma

possível medida afirmativa à Polícia Militar.

No segundo momento a análise dos fenômenos observáveis foi descrita conforme aos

conceitos apreendidos e de acordo com indicadores propostos. Essas proposições foram

consubstanciadas na proposta de Geertz (2008) que é a maneira de interpretar por sobre o

ombro e olhar do nativo, isto é, a prática de abordagem de policiais militares, daí se buscou

fazer as observações de forma densa.

1.4 Técnicas de análise de dados: análise de conteúdo

Procedeu-se à construção de um corpus de análise e definição de categorias. O

material empírico se constitui como elementos-chave do código do analista. Procurou-se

identificar os indicadores que fomentam uma organização estrutural do discurso, conduzindo à

explicitação sistematizada do conteúdo das mensagens focalizadas na dedução lógico-

interpretativa dos dados escritos, originando uma análise temática e categorizada, determinada

por ligação semântica.

A análise de conteúdo desde seus primórdios tem como precursores diferentes

enfoques para análise e comparação de textos, começando no contexto da hermenêutica,

segundo Bardin (2010, p. 16), “a arte de interpretar os textos sagrados ou misteriosos é uma

prática muito antiga” (ex. interpretação da Bíblia), sendo os fundamentos teóricos da

comunicação as bases da análise de conteúdo quantitativa. Além disso, “a análise de conteúdo

nos permite reconstruir indicadores, valores, atitudes, opiniões, preconceitos e estereótipos

[...]” (BAUER, 2014, p. 192).

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A definição da análise de conteúdo em 1943 era como sendo “a semântica estatística

do discurso político”. Ela pode ser quantitativa e qualitativa. Há uma diferença entre essas

abordagens: na quantitativa se trata de uma frequência das características que se repetem no

conteúdo do texto. Na qualitativa considera-se a presença ou a ausência de uma dada

característica de conteúdo ou conjunto de características num determinado fragmento da

mensagem (FRANCO, 2008).

Na análise de conteúdo o ponto de partida é a mensagem, mas devem ser consideradas

as condições contextuais de seus produtores. Segundo Franco (2008), deve ser considerada

não apenas a semântica da língua, mas também a interpretação do sentido que um sujeito

atribui às mensagens.

A análise de conteúdo consiste numa técnica de análise de dados que vem sendo

utilizada com frequência nas pesquisas qualitativas, assim como na psicologia, na ciência

política, na educação, na publicidade e, principalmente, na sociologia. Na realidade, como

refere Flick (2014), a pesquisa qualitativa é recente e ocorreu concomitantemente em diversas

áreas, tendo cada uma delas se caracterizado por um embasamento teórico específico, por

conceitos de realidade específicos e por seus próprios programas metodológicos. Nessa

perspectiva, Bardin (2010) assevera:

A análise de conteúdo pode ser considerada como um conjunto de técnicas de

análises de comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de

descrição do conteúdo das mensagens. A intenção da análise de conteúdo é a

inferência de conhecimentos relativos às condições de produção e de recepção das

mensagens, inferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não)

(BARDIN, 2010, p. 38).

Na análise de conteúdo o texto é um meio de expressão do sujeito, e o analista busca

categorizar as unidades de textos (palavras ou frases) que se repetem, inferindo uma expressão

que as representem. O esforço de interpretação, nesta técnica, oscila entre a objetividade e a

subjetividade enquanto fator de rigorosidade, no entanto não compromete o pesquisador na

busca pelo escondido, pelo latente, pelo não aparente retido em qualquer mensagem. É uma

tarefa paciente de inferência.

Análise de conteúdo pressupõe algumas etapas: a organização da análise; a codificação

de resultados; as categorizações; as inferências; e, por fim, a informatização da análise das

comunicações. As diferentes fases da análise de conteúdo organizam-se em torno de três

polos, conforme Bardin (2010, p. 121): “1. A pré-análise; 2. A exploração do material; e, por

fim, 3. O tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação”.

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A técnica de análise de conteúdo, nesta pesquisa, segue o critério de categorização. O

método, o semântico, que forma o campo de uma imagem ou de um enunciado, que nos levará

ao uso de sentenças, frases ou parágrafos como unidades de análise. O evidenciamento das

unidades de análise, recortes do texto, do discurso, orienta-se por um processo dinâmico e

indutivo, levando em consideração ora a mensagem explícita ora as significações não

aparentes no contexto.

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CAPÍTULO II - CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA POLÍCIA MILITAR NO

BRASIL E EM MATO GROSSO

O objetivo deste capítulo é entender o papel da Polícia Militar enquanto aparelho de

Estado, por compreender que a relação entre a instituição policial e a sociedade nas ações

operacionais perpassa por relações de poder, cujo entendimento está nos gestos, nas falas e na

própria organização social.

Vale lembrar que no Brasil os estudos sobre polícia são recentes, e que segurança

pública e polícia são temas ainda negligenciados pelos estudiosos das ciências sociais,

devendo-se fazer justiça aos esforços pioneiros de alguns aplicados estudiosos, dentre os quais

podemos destacar Antônio Luiz Paixão (In memoriam, 1947-1996). O estudioso foi não

apenas o precursor dos estudos sobre a polícia no Brasil como também inaugurou a primeira

parceria entre a universidade e a polícia, dando início à quebra da barreira que isolava a

formação policial e estimulando o interesse pelos estudos sobre segurança pública (1991,

1992), na UFMG; Roberto Kant de Lima (1995) na UFF, Marcos Luiz Bretas (1997) na

Fundação Rui Barbosa, e os do Núcleo de Estudos da Violência da USP, junto com Paulo

Sérgio Pinheiro (1981). Como resultado do trabalho destes pioneiros, verifica-se no Brasil,

nos últimos vinte anos, a consolidação de olhares próprios das ciências sociais sobre o tema da

violência e da criminalidade, que têm ido além da perspectiva quase exclusivamente jurídica e

especialmente do direito penal.

Por isso, duas questões de certa forma correlatas merecem atenção em nosso estudo: a

violência e o racismo. Violência, abordada em suas múltiplas manifestações, às vezes tocando

literalmente na questão da polícia e da segurança pública. Racismo, abordado ora para negar

ora para afirmar a presença desse caráter em nossa cultura, mas raramente admitindo-se

associação entre racismo, violência e polícia.

Para verificar essas dimensões apontadas acima é necessária uma contextualização no

percurso histórico dessa instituição de segurança pública, a Polícia Militar: o fim da Idade

Média e a diluição do pensamento absolutista que a sustentava, adicionado às conquistas do

novo mundo, originaram as bases primárias para o surgimento de um Estado público em

contraposição ao Estado privatista da era feudal, ou da Monarquia patrimonialista (COSTA e

FERNANDEZ, 1998).

Os autores acima citados em suas análises afirmam que na Idade Moderna (1453-

1789), a estrutura de dominação exigia um aparato sustentador, e que externava a visão dos

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que detinham o poder sobre a grande massa que precisava ser controlada, como fundamento

para o suposto alcance do governo estável.

Entretanto, em 1505, na cidade de Florença organizava-se o 1º Conselho de Gestão da

Polícia que a literatura noticia. Maquiavel foi incumbido de organizar a milícia para o cerco

de Pisa, sendo que os milicianos iriam substituir os mercenários (grupo de pessoas sem

preocupação com a disciplina ou com a coesão, que eram pagas para defender o Estado ou

para atacar um inimigo). Como Chanceler dos Nove, órgão responsável pelo comando da

milícia, Maquiavel estrutura a força policial para uma atuação eminentemente de caráter

militar (MAQUIAVEL apud COSTA e FERNANDEZ, 1998).

Mas historicamente a França foi o primeiro país a instituir em sua linguagem jurídica a

expressão "polícia", através de ato do Rei Luís XIV, o Rei Sol, em 1667. O fim da Idade

Média e a substituição progressiva nos séculos seguintes do Estado e do pensamento

absolutista, adicionado às conquistas do novo mundo, originaram as bases primárias para o

surgimento de um Estado liberal, público, em contraposição à era feudal ou à Monarquia

absolutista (COSTA, 2013).

Costa (2013) aponta que os séculos XVI e XVII – período de profundas

transformações na estrutura social, inclusive da reforma religiosa – acarretariam a

consequente abertura das portas da história para os novos tempos. Com os contratualistas, com

o Iluminismo e tantos outros movimentos que iniciaram alterações profundas na humanidade,

dava-se início à era do Estado Social. Moraes apud Costa (2013) afirma:

O movimento social caminhava a passos largos para o rompimento da velha

estrutura do absolutismo monárquico. O desiderato por participação nos destinos de

suas nações tornava as pessoas ávidas por alterações que lhes possibilitassem o

atingimento de direitos sociais e políticos, originando o Estado Social de Direito.

Apenas em 1760 o termo polícia começava a ser usado na França, seguindo o seu

significado atual (MORAES apud COSTA, 2013, p. 16).

A Revolução Francesa foi o grande marco. O lema da igualdade, da fraternidade e da

liberdade expandiu-se para todo o mundo. Enfim a humanidade soltava a sua voz e

simbolicamente dava o brado anunciando o limiar de uma nova época, que seria

consubstanciada na busca pelo respeito aos direitos inalienáveis da pessoa humana.

Esses acontecimentos geraram novas expectativas no mundo, favorecendo o

surgimento de novos ideais na sociedade e habilitando os homens para outra fase em suas

relações com o poder. E é nessa contextualização que os estabelecimentos policiais estatais

surgem em toda a Europa.

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No Brasil a ideia de polícia surge de maneira peculiar, conforme lembra Azkoul

(1998):

A ideia de polícia no Brasil nasceu em 1530 quando D. João III resolve então adotar

o sistema de capitanias hereditárias, outorgando a Martins Afonso de Souza uma

carta régia para estabelecer a administração, promover a justiça e organizar o serviço

de ordem pública, como melhor entendesse, nas terras que conquistasse (AZKOUL,

1998, p. 9-10).

Dessa forma, a estratégia de criar as capitanias hereditárias serviu para expulsar outros

possíveis conquistadores que porventura quisessem criar benfeitorias no território brasileiro.

As autoridades colonizadoras que as explorariam indispensavelmente teriam que constituir

forças de defesa que direcionassem as suas ações para a proteção da propriedade contra as

invasões estrangeiras e também contra a ação dos nativos.

O senhor de terras será, consequentemente, autoridade pública. Investido, inclusive, do

poder militar, que em consequência era delegado o ônus de defesa e por isso mesmo recebia o

titulo de governador e capitão. Eram poderes tão amplos que chegaram a chamar de

majestáticos, chegando alguns senhores a recusarem o ‘cumpra-se’ às ordens da corte

(SODRÉ, 2010).

O autor acima citado afirma que por conta dessas delegações aconteceram conflitos

políticos entre a colônia e a corte, então a metrópole retoma sua autoridade e faz aparecer as

milícias que ocuparam pouco a pouco as funções militares. Foi nessas milícias que a Coroa

colocou seu esforço para preservação da ordem interna, de seus interesses e para assegurar seu

domínio. Assim a milícia adquiriu importância de grandes proporções. Foi uma força

destinada a fiscalizar o povo, a vigiar suas ações, reprimir qualquer manifestação de rebeldia,

foi uma força contra o povo.

Essa estrutura militar era uma indicação de ameaças, dentre elas, para os indígenas.

Contra esse povo é que se organizaram as primeiras expedições punitivas e policiadoras que

tiveram como missão percorrer o litoral. Foi nessa medida que a colonização conseguiu dar

caráter permanente à conquista, estabelecendo-se enquanto engenhos e povoações.

Nessa perspectiva, Sodré (2010) afiança que aos senhores eram delegados os ônus de

defesa, e por isso mesmo cada um era ao mesmo tempo governador e capitão. E, por conta

dessas particularidades, teve início a legislação militar, que data de 1534 – a Carta de Doação

de 10 de março. A Carta de Doação era o documento que comprovava a doação de uma

Capitania Hereditária a um donatário pela Coroa que atribuía a esse donatário a posse, quando

de sua morte seus descendentes continuavam a administrá-la, sendo proibida a sua

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venda. Assim era todo procedimento de assentamento: o sistema de capitanias hereditárias

determinou que cada donatário recebesse de sua exclusiva propriedade uma faixa de dez

léguas, contada a partir da linha litorânea, e distribuísse, a título de sesmarias, o restante do

território sob seu comando; tal procedimento era determinado pelo rei e tinha caráter militar.

Além dessas questões políticas de distribuição de terras, a proteção dos senhores

também tinha sua autonomia. Sodré (2010) afirma que o regimento dessas áreas ditava muitas

normas, inclusive as regras de recrutamento e de serviço militar, pois se entendia que era

necessária a defesa das povoações e das ditas terras do Brasil, daí a necessidade de se ter

artilharia, munições e outros tipos de armas ofensivas e defensivas. O Brasil em sua fase

colonial usou a estratégia de dividir áreas entre os colonizadores para manter o poder

econômico, produtivo, entre outros sob a tutela do senhor de terras. Sodré (2010, p. 25)

assinala que “o senhor de terras será, consequentemente, autoridade pública. Investido,

inclusive, do poder militar”.

Nesse quadro, as milícias assumem caráter permanente Sodré (2010), absorvidas nas

missões de vigilância e repressão, e por causa do crescimento da mineração, essa força tem

seus comandantes transformados em chefes militares – que é o traço fundamental da

organização em defesa territorial. Nesse contexto, os senhores de terras e de escravos

constituem a parcela mais importante da classe superior, detentora do poder.

Nessa dinâmica de segurança, criava-se um vínculo entre os donatários que cediam as

sesmarias para cidadãos portugueses com condições financeiras para prosseguir no processo

de colonização. Esse compromisso expressava a ação de segurança por parte do arrendatário

que teria de providenciar a força miliciana, para a manutenção do seu patrimônio e de outros

interesses, por exemplo, o monopólio da elite.

No país, diz Sodré (2010), não se conheceu nenhuma autoridade que não fizesse uso

daquela forjada na força bruta, na ponta de uma faca ou no cano da garrucha à sombra do

homem travestido na figura de um corpo militar. Ainda mais: ao longo da história

colonizadora foi construída na perspectiva da força militar em benefício de uma ordem social

hierarquizada que manipulou o pobre, o negro e o índio em nome da colonização.

Após esse período de capitanias hereditárias, um novo modelo de segurança foi

implantado, como expõe Pietá (1997):

O aparato de segurança com o advento da instituição da colônia em substituição ao

sistema de capitanias hereditárias passa a ser composto basicamente por três forças:

Tropas de 1ª Linha ou Corpos Permanentes; Tropas de 2ª Linha ou Corpos

Auxiliares ou Milícias; e Tropas de 3ª Linha ou Ordenanças (PIETÁ, 1997 p. 16).

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Com esse modelo de segurança ficou estabelecido que as tropas de 1ª Linha

constituíam-se do Exército com tropas pagas pela Coroa, integradas por portugueses que

exerciam a função de controle e defesa da posse territorial pertencente a Portugal, e que agiam

sob ordens diretas dos prepostos portugueses no Governo Geral do Brasil. As tropas de 2ª e 3ª

linhas não eram Corpos Regulares, mas sim um conjunto de pessoas que por delegação do

poder concedente promovia nas emergentes vilas as tarefas de segurança pública (COSTA e

FERNANDEZ, 1998). Isso fica claro quando essas características são demonstradas:

No período colonial, não havia um corpo de polícia regular. Para o policiamento,

grupos de vinte moradores, com o nome de quadrilha, ordenados por juízes e

vereadores, podiam durante três anos prender malfeitores, vadios, indivíduos de má

fama e os estrangeiros. Deviam agir de forma preventiva contra os prostíbulos, casas

de jogos, receptadores de objetos roubados, alcoviteiras e feiticeiras. Um corpo

policial só se fez presente com a vinda de D. João VI ao Brasil (COSTA;

FERNANDEZ, 1998, p. 16).

Essa concepção de segurança e de policiamento prevaleceu até o século XVIII, pois,

com a descoberta do ouro, Portugal tornou a segurança e a polícia de cunho público para

poder ter controle sobre o rico minério, controlando a atividade através do fisco e tendo como

órgão de controle a polícia.

Sodré (2010) corrobora esclarecendo que por conta das riquezas descobertas, dentre

elas o ouro, a Metrópole começou a aplicar a tributação e foram criados aparelhos de poder

público de fisco, de justiça e de milícias que exerciam funções destinadas a manter a

população submissa que crescia na mesma proporção da dominação militar.

Essa concepção de segurança com uma polícia de controle se perpetuou no país, por

conta desse poder militar a população elitizada do Rio de Janeiro demonstrou interesse nesse

tipo de policiamento, já que era condizente com a segurança da classe dominante. Como a

organização policial era executada por hierarquias personalizadas, a cargo de capitães do

mato, capangas, ordenanças e milícias (resquícios dos tempos coloniais), era considerada uma

ameaça à elite do país, portanto sua reformulação era necessária (BRETAS, 1997).

Mesmo com a pressão política, nessa cidade, o policiamento regular começou no início

do século XIX, no sentido de fortalecer e garantir a perpetuação das sociedades hierárquicas e

a manutenção do controle nas mãos das elites existentes. Sociedades que foram descritas por

Freyre (1996) como uma tentativa de manutenção das regras do comportamento público

aceitável.

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Essas ações se efetivaram com a chegada da Comitiva Real Portuguesa ao Brasil, em

1808, quando criou a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil e, no ano

seguinte, em 1809, a Guarda Real de Polícia, força policial de tempo integral, organizada

militarmente e com ampla autoridade para manter a ordem e perseguir criminosos.

A criação dessa força militarizada teve como finalidade fortalecer o policiamento das

ruas, combater os vários tipos de crimes e proteção à elite dominante do Rio de Janeiro.

Qualquer tentativa de revolta, especialmente de sujeitos escravizados, cidadãos negros e

mulatos, deveria ser entendida como questão de segurança máxima no Brasil. Outras

perspectivas foram fundamentais para realização de outras funções públicas, tanto que

sua missão incluía aterrar pântanos, organizar o abastecimento de água e a coleta de

lixo e esgoto, calçar e iluminar as ruas usando lampiões a óleo de baleia, construir

estradas, pontes, aquedutos, fontes, passeios e praças públicas. Ficou também sob

sua responsabilidade policiar as ruas, expedir passaportes, vigiar os estrangeiros,

fiscalizar as condições sanitárias dos depósitos de escravos e providenciar moradia

para os novos habitantes que a cidade recebeu com a chegada da corte (GOMES,

apud COSTA, 2013, p. 3).

Apesar dessas ações generalizadas, a estrutura manteve a atitude militarizante que

ascendeu rapidamente, tanto que Faoro (1987) entende que no período pós-independência

passa a existir entre os idealistas brasileiros e o poder português, abrigado na Corte e no

Exército, sérias disputas pelo domínio político do recém-criado Império, sendo que, com a

abdicação involuntária de D. Pedro I, essas rusgas se consolidam e a Regência Trina, órgão

governativo do momento, impõe drástica redução dos efetivos militares.

Mas a crítica política foi em relação exclusiva ao Exército que consumia dois terços do

orçamento e se compunha de 30.000 homens, e, sem produção de segurança. Logo depois de 7

de abril, os efetivos se reduziram à metade, com o máximo legal de 10.000 em 3 de agosto de

1831.

Por conta dessas disputas políticas em relação aos militares, criou-se a Guarda

Nacional com as mesmas características do Exército. Dessa forma, a Guarda Nacional se

destacou com o enfraquecimento do Exército e foi inspirada na ordem liberal da França, mas

estava vinculada às velhas Milícias e Ordenanças da época da colônia, cujo propósito era

controlar as pessoas por meio da criação do Corpo Policial (SODRÉ, 2010).

A estratégia manteve a força pública como aparelho político dominante, e no intuito de

fortalecê-lo, também criou as Guardas Municipais Permanentes, estruturadas em modelo de

Infantaria e Cavalaria Policial, através de Lei de 10 de outubro de 1831, sendo a

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descentralização do serviço de segurança uma constatação clara, conforme faz sugerir Souza

(1986, p. 10) na transcrição seguinte:

A Lei de 10 de outubro de 1831, reguladora do funcionamento das Guardas

Municipais Permanentes, era o respaldo legal necessário para as decisões em nível

de governos provinciais quanto à criação de seu corpo próprio. Assim ditavam os

seus artigos básicos:

Art. 1º - O Governo fica autorizado para criar nesta cidade um Corpo de Guardas

Municipais voluntários a pé e a cavalo, para manter a tranquilidade pública, e

auxiliar a justiça, com vencimentos estipulados, não excedendo o número de

seiscentos e quarenta pessoas, e a despesa anual a cento e oitenta contos de réis.

[...].

De acordo com Pietá (1997, p. 3), “as Guardas Municipais Permanentes, exercendo

atividades de polícia, possuíam formato militar, seguindo no curso da história como

instituições das províncias, porém com forte vínculo e utilização pelo poder central, inclusive

em eventos internacionais como foi a Guerra do Paraguai”. Embora organizada militarmente,

a atuação das então Guardas Municipais era voltada para a manutenção da ordem pública nas

Províncias do Império.

Como consequência dessas disputas políticas em relação aos militares, Costa e

Fernandez (1998) ressaltam que a utilização da força pública como elemento dominador

atendia aos dispositivos do poder aos quais estava ligada, isto é, a classe dominante. Nessa

direção, foi proclamada a República no Brasil e as velhas oligarquias manifestaram os seus

anseios pelo poder. Nascida de uma conspiração do poder militar, e influenciada pelos Estados

mais ricos: São Paulo e Minas Gerais, a jovem República manifestaria um de seus aspectos

mais marcantes que foi a militarização das polícias estaduais, estrutura fortalecida com a

chegada de missões militares do Exército francês em São Paulo (1905) e, ainda, em Minas

Gerais (1912), com a chegada de uma missão do Exército suíço.

Mas é importante ressaltar que desde os remotos tempos de sua origem, a Polícia

Militar teve e tem como pilares a hierarquia e disciplina, além de seus regulamentos e códigos

específicos. A característica militar acompanha suas ações, conforme Magalhães apud Rondon

Filho (2011, p. 79-80), “polícia significava quase tudo, tudo o que era conforto, educação,

limpo, harmonioso, belo, farto, polido, culto” e, ainda (idem, p. 86), “entre o final do século

19, início do século XX [...] criaram as chamadas Forças Públicas [...] incumbidas de

defenderem o poder constituído, resguardando interesses regionais, chegando mesmo a ter

artilharia de campo e aviões de combate”. A estrutura militarizada manteve sua vinculação

com o Exército, que tem a cultura de defesa territorial.

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Podemos perceber que a história da formação das polícias militares é representativa, é

uma aproximação dos segmentos das elites nacionais ao controle do aparelho estatal existente.

A classe dominante, dos senhores de terras, de escravos, do Império e da República, estiveram

em intensa luta para manter-se no controle do aparelho de Estado, mantendo o instrumento

militar de que necessitava, e empreendendo a neutralização da população “rebelde”. Nesse

sentido, essas forças públicas representaram um poder ligado às classes dominantes.

Outra questão percebida no decorrer da história foram suas práticas que cada vez mais

foram dando sustentação às instituições políticas e à consolidação dos projetos políticos

existentes na Nação. Como exemplo, o controle da população da sesmaria, o controle do fisco,

no século XVIII, a caça de escravos no século XIX, quando as forças públicas, centralizadas

no Estado, foram importante instrumento de manutenção do ideário estatal. Diante disso, as

forças públicas caracterizaram-se por meio de ações violentas, preconceituosas e

discriminatórias, embora com caráter de justiça e de legitimidade.

2.1 Antecedentes Policiais Militares de Mato Grosso

Em Mato Grosso a gênese da Polícia Militar não foi diferente das demais regiões do

país, a expansão de terras, a fuga de escravos, a descoberta de ouro foram pautas para a

instituição de forças policiais como instrumento de controle dessas situações.

O corpo policial teve participação em fatos da História Mato-grossense e Nacional: em

1726 na Recepção Oficial no Arraial do Cuyaba ao 1º governador e capitão-general da

Capitania de São Paulo (a que pertencia Mato Grosso); em 1727 na elevação do Arraial do

Cuyaba a Villa; em 1751, na recepção oficial na Villa Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá a

Dom Antônio Rolim de Moura - 1º governador e capitão-general da Capitania de Mato

Grosso; em 1752 na fundação de Villa Bela; em 1818 na elevação de Cuiabá de Vila a Cidade

(PMMT, 2014).

A história da milícia em Mato Grosso também começou após um ano e sete meses da

fundação do Arraial do Cuyaba, ocorrida em 8 de abril de 1719, isto é, ainda no período do

Brasil colônia, com as características de protetores do território cuiabano cujo comando

passou a ter responsabilidade direta pela defesa local e manutenção da ordem legal e

administrativa no Arraial do Cuyaba, fato endossado e ratificado pela Coroa portuguesa

(PMMT, 2014).

Dessa forma, o governo português manteve dispositivo de controle para garantir a

fixação da população e posse do território, que de acordo com as disposições do Tratado de

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Tordesilhas pertencia aos espanhóis. Assim, pensando em garantir a posse do interior da

colônia, Portugal passou a desenvolver uma política voltada para a proteção da fronteira entre

Portugal e Espanha.

Uma das primeiras decisões do governo português para assegurar a posse deste vasto

território foi o desmembramento de Mato Grosso da Capitania de São Paulo. Dessa maneira,

em 1748, D. João V decidiu criar a Capitania de Mato Grosso e para governá-la o rei nomeou

como seu primeiro capitão-general Antônio Rolim de Moura. Póvoas (1985) afirma que os

corpos de segurança foram constituídos por causa das constantes repressões as ameaças

espanholas e outras investidas – índios, negros rebelados etc. para consolidar o território.

Por conta desse cenário, a força pública teve que aumentar seu efetivo, então se criou a

Companhia de Ordenanças dos Homens Brancos, uma Companhia de Homens Pretos, uma

Companhia de Ordenanças de Homens Pardos e posteriormente, seis Companhias de

Ordenanças de Homens Pardos. As Ordenanças foram transformadas em Força Pública com o

efetivo de 620 homens, dos quais mais da metade oriundos das Companhias de Ordenanças.

Suas atividades limitavam-se, basicamente, a Villa Bela da Santíssima Trindade e Cuiabá

(PMMT, 2014).

Nessas tropas formava-se um espaço de negociação simbólica entre os sujeitos de cor

e a Coroa (poder central) ou com governadores, oficiais da Câmara e juizes de paz (poder

local), que oferecia uma espécie de ascensão social. Como era um cenário temporal de

pobreza, contou com grande camada de vadios e ociosos – assim classificados os homens

livres e forros pobres. Esse corpo policial utilizou homens com essa classificação de vadios e

ociosos no emprego das tropas militares, que muitos se utilizavam desse “ofício” como forma

de subsistência. O recrutamento era feito para desempenhar uma função específica e depois

disso se dissolvia. Para este fim eram utilizados “carijós, negros forros e mulatos”.

De qualquer forma, as ordenanças legitimavam o reconhecimento social. As patentes

militares “estimulavam” esses homens de cor. Assim essas forças públicas tinham um caráter

de distanciamento da escravidão na medida em que o indivíduo recebia mercês do rei, mesmo

com raras nomeações em níveis mais altos. Pensar sobre os sentidos da existência das tropas

de homens de cor na sociedade colonial, a troco de agradecimentos da Coroa, é também

desvendar como se impunham as hierarquias sociais naquele período. Dessa forma,

acreditamos que as Ordenanças foram campos de luta social.

As Companhias de Ordenanças, com princípios militares, eram comandadas

hierarquicamente pelo capitão-mor, homem branco. Todos os Regimentos de Ordenanças

compostos por brancos, pardos e pretos, estavam submetidos hierarquicamente a este

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comandante. Em relação aos homens pardos e pretos, estes ficavam impedidos de alcançar os

postos mais altos na hierarquia militar, por serem “impuros de sangue”, estabelecendo-se na

maioria das vezes como soldados nessas tropas.

As Companhias de Ordenanças apresentaram ideias e comportamentos que causaram

“transtornos” aos sujeitos de cor, acarretando perda de eficiência dos sujeitos, tanto social

quanto econômica e pessoal. A cor da pele desses componentes das Ordenanças foi contributo

pelo seu esfacelamento, causando arbitrariedade e violência. A Polícia Militar em sua gênese

já era estruturada em princípios racistas, a cor da pele trouxe aos seus componentes uma

estrutura de poder racista que faz com que os negros sejam de fato vistos como ociosos.

Somente a partir do século XIX, quando foi criada a Guarda Nacional, subordinada ao

Ministério da Justiça, se extinguem as Companhias de Ordenanças. A Lei de 18 de agosto de

1831 da Assembleia Legislativa Regencial autoriza a criação, na sede do império e nas

capitais provinciais, dos Corpos de Guarda Municipais, também denominados de Guardas

Municipais Permanentes (PMMT, 2014).

Em agosto de 1834 é delegada competência às Assembleias Legislativas Provinciais do

Brasil para legislarem sobre as polícias. Devido à transferência do poder municipal para as

Assembleias Legislativas Provinciais, surgem as denominações de Corpo Policial, Corpo de

Polícia ou Força Policial (PMMT, 2014).

Foi nesse período, especificamente em 1835, que a corporação se fortaleceu com a

criação do Corpo Policial com a denominação de Homens do Mato, sob os auspícios da Lei n.

30, de 05/09/1835 da Assembleia Legislativa Provincial de Mato Grosso. A Assembleia

Legislativa Mato-grossense, provisoriamente e sob proposta da Câmara Municipal desta

cidade, decreta:

Art. 1º - Criar-se-á desde já, nesta Cidade, um Corpo Policial com a denominação de

“HOMENS DO MATO”, que será distribuído pelos distritos do Município como

melhor convier ao Governo Provincial.

Art. 2º - Este Corpo será composto de um Comandante, ou Capitão, 3 Cabos e 24

Soldados, em 3 Esquadras [...]

Art. 4º [...] ficam pertencendo aos indivíduos deste Corpo, as tomadas de escravo

estipulado no antigo regimento de Capitão do Mato, que lhes serão pagos

pontualmente pelos respectivos senhores (MONTEIRO, 1985, p. 14).

Precisamente, prescreve o artigo 4º que: “[...] as tomadas de escravos estipulados no

antigo regimento de Capitão de Mato, que lhes serão pagos pontualmente pelos respectivos

senhores.” Nessa prescrição, observa-se que a criação do Corpo Policial, além de outras

atribuições, era um aparelho estatal repressor, e sua atividade essencial consiste também na

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perseguição e captura de escravos fugitivos. Como o sujeito negro era considerado uma

mercadoria de seu senhor, quando ocorria a captura desse sujeito era legítimo ao policial ser

remunerado.

Essa característica de servir a classe dominante permaneceu durante a Primeira

República nos movimentos políticos, tanto em Mato Grosso como no país. Devido à disputa

desse poder entre as figuras famosas em todo o Brasil republicano, estavam os coronéis que,

[...] eram homens ricos e proprietários de terras, pessoas influentes politicamente que

haviam sido agraciados, durante o império, com patentes da Guarda Nacional,

correspondentes àquelas do Exército, sendo que a maioria deles era chamada de

coronel, porém eram coronéis civis, da Guarda Nacional (SIQUEIRA, 2002, p. 156).

A disputa desse poder de dominação no Estado carrega a ideia de soberania que traz

em seu conteúdo a conotação de mando. Daí a compreensão daqueles que dessa estrutura

fazem parte e se dispõem ao exercício de suas atividades de mando, tanto que para

determinados policiais esse poder representa, bem mais que um respaldo sobre determinada

ação, uma ação da repressão, da coerção. Servir ao Estado é servir ao poder.

Essa crença policial sobre o poder de mando é resultado de um processo histórico

fortalecido permanentemente. Silva (2006, p. 60) diz que “a organização político-

administrativa seguiu o modelo do Brasil colonial e imperial em que a política dos coronéis

dava os tons e os sons na vida econômica, social e cultural no país”, além de manter o mando

no aparato policial.

Por conta desse poder, o tom da força pública foi o caráter militar, que permaneceu.

Esse fato se fortaleceu ainda mais a partir de 1891, quando passou a se chamar Força Pública,

já em período republicano. Nesse período, sua missão era garantir a segurança das instituições

da República no Estado e a manutenção da ordem. Acrescente-se a isso o que diz a

Constituição política de Mato Grosso em seu artigo 65:

Todos os habitantes do Estado, salvas as restrições legais, são obrigados a pagar em

armas para sustentar a sua autonomia e integridade, e defendê-lo dos seus inimigos

externos ou internos [...] e quanto ao ingresso, diz o Regulamento da Força Pública,

no seu artigo 6°: “Terão praça na FORÇA POLICIAL os cidadãos brasileiros e

estrangeiros de boa conduta” (MONTEIRO, 1985, p. 32).

Perpetuou-se em Mato Grosso o modelo de polícia existente no Brasil, uma

configuração de polícia colonial. Esse resquício, provavelmente, aconteceu porque durante um

longo tempo a polícia de Mato Grosso recebeu diversas denominações, porém com a mesma

estrutura militar, até chegar ao que se conhece atualmente. Envolveu em fatos de destaque no

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Estado até que, em 1917, teve seu caráter militar legitimado por meio do Decreto n° 22 e

Aviso n° 892 de 23 de novembro (MONTEIRO, 1985), quando as polícias brasileiras foram

declaradas forças auxiliares do Exército e reserva de 1ª linha em caso de guerras.

Com o passar do tempo ocorreram algumas transformações, dentre elas, a Polícia

Militar do Estado de Mato Grosso (PMMT) passou a ter a função primordial de polícia

ostensiva e de preservação da ordem pública do Estado. É uma força auxiliar e reserva do

Exército do Brasil e integra o Sistema de Segurança Pública e Defesa Social brasileiro. Seus

integrantes são denominados militares estaduais, conforme prescreve o artigo 42 da

Constituição Federal de 1988.

A missão da Polícia Militar ficou definida por intermédio da Constituição Federal

Brasileira/88, da seguinte forma:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,

é exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do

patrimônio, através dos seguintes órgãos:

[...]

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

[...]

§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem

pública; [...]

§ 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva

do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos

Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (BRASIL, 1988).

Assim, seguindo essa orientação federal, em 1989, Mato Grosso também menciona seu

caráter e a missão da Polícia Militar no texto da Constituição Estadual que diz o seguinte:

Art. 80. A Polícia Militar, instituição permanente e regular, força auxiliar e reserva

do Exército, organizada com base na hierarquia e na disciplina, é dirigida pelo

Comandante-Geral.

Parágrafo único: A escolha do Comandante-Geral é de livre nomeação e exoneração

pelo Governador do Estado, dentre os oficiais da ativa do Quadro de Oficiais da

Polícia Militar do último posto de carreira.

Art. 81. À Polícia Militar incumbe o policiamento ostensivo, a preservação da ordem

pública e a polícia judiciária militar, além de outras atribuições que a lei estabelecer.

“A ideologia militarista fortalece a ideia de combate, a existência de um inimigo, a

importância da força e do vigor físico e o autoritarismo” (COSTA apud MAINARDI, 2009, p.

26). Essa cultura do ofício acabou por modelar as práticas de controle social formada ao longo

da história em Mato Grosso, como no país, baseadas no uso indiscriminado da força e práticas

truculentas e imprimindo nos agentes a cultura de caça ao inimigo na sociedade.

Se ainda prevalece a violência como forma de atuar da Polícia Militar, é possível

observar as táticas militares e a valorização bélica no enfrentamento com infratores e não

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infratores. No Estado Democrático de Direito é crucial que o policial precisa desenvolver

ações mais tolerantes e pedagógicas no seu trato com a população em geral.

2.2 Organograma Hierárquico da Polícia Militar de Mato Grosso

As polícias militares estão estruturadas operacionalmente de maneira similar ao

Exército, organizadas em comandos intermediários, batalhões, companhias e pelotões. Os

batalhões têm suas bases nos grandes centros urbanos e suas companhias e pelotões são

distribuídos de acordo com a densididade populacional nas cidades circunvizinhas.

Normalmente os pelotões são também subdivididos em destacamentos ou postos de

policiamento. A polícia montada, isto é, a cavalaria está organizada em regimentos, divididos

em esquadrões e pelotões.

A Polícia Militar do Estado de Mato Grosso está organizada operacionalmente em

Batalhões de Polícia Militar (BPM), Regimento de Policiamento Montado (RPMon) e

Companhias Independentes de Polícia Militar (CIPM), distribuídos em 14 Comandos

Regionais (CRs), um Comando Especializado (CESP) e um Grupo Especial de Fronteira

(GEFRON), além de grupos integrados com outras forças de segurança ligados diretamente à

Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESP), Centro Integrado de Operações Aéreas

(CIOPAER) e outros órgãos como o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime

Organizado (GAECO) do Ministério Público (MP) (PMMT, 2014).

Essa estrutura militarmente organizada tem a disciplina e o respeito à hierarquia como

manutenção de todas as circunstâncias da vida, entre os servidores militares da ativa, da

reserva remunerada e reformados. Conforme prescreve a Lei Complementar n. 231 de 15 de

dezembro de 2005 que dispõe sobre o Estatuto dos Militares do Estado de Mato Grosso:

Capítulo V

Da Hierarquia e da Disciplina

Art. 22 - A hierarquia e a disciplina são as bases institucionais das corporações

militares estaduais.

Parágrafo único: A autoridade e a responsabilidade do militar estadual crescem

juntamente com o grau hierárquico.

Art. 23 - A hierarquia militar é a ordenação da autoridade em níveis diferentes,

dentro da estrutura das instituições militares estaduais.

Parágrafo único - A ordenação é feita por posto ou graduação.

Art. 24 - A disciplina militar estadual consiste no exato cumprimento dos deveres,

traduzindo-se na rigorosa observância e acatamento integral das leis, regulamentos,

normas e ordens, por todos os integrantes das instituições militares estaduais.

§ 1º - São manifestações essenciais da disciplina:

I - a observância rigorosa das prescrições legais e regulamentares;

II - a obediência às ordens legais dos superiores;

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III - o emprego de todas as energias em benefício do serviço público;

IV - a correção de atitudes;

V - as manifestações espontâneas de acatamento dos valores e deveres éticos;

VI - a colaboração espontânea na disciplina coletiva e na eficiência da instituição.

§ 2º - A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos, permanentemente,

pelos militares, tanto no serviço ativo quanto na inatividade (MATO GROSSO,

2005).

Nessa estrutura organizacional da Polícia Militar, para cada nível hierárquico são

atribuídos diferencialmente: as responsabilidades, as competências específicas, as atribuições

funcionais, os salários e o status profissional. E essa diferença está escalonada: coronel,

tenente-coronel, major, capitão, tenente, subtenente, sargento, cabo e soldado.

O oficial (coronel, tenente-coronel, major, capitão, tenente) é preparado ao longo da

carreira para o exercício de funções de comando, de chefia e de direção, resultando daí os

comandantes, chefes, diretores e instrutores que dirigem as várias divisões e/ou seções da

corporação.

Os subtenentes e sargentos auxiliam e complementam as atividades dos oficiais, quer

na instrução e na administração, quer no adestramento e no emprego de meios para a execução

de atividades de policiamento ostensivo peculiares à Polícia Militar. Os cabos e soldados são,

essencialmente, os elementos de execução, realizando a tarefa de patrulha policial.

Nessa estrutura hierarquizada da Polícia Militar o importante é que o indivíduo possa

perceber a sua localização no ambiente, significando que ele deve estar no ponto de interseção

de forças sociais específicas; geralmente quem ignora essas forças age com risco. O sujeito

deve agir dentro do sistema cuidadosamente definido de poder e prestígio que lhe foi

designado. E depois que aprende sua localização passa também a saber que não pode fazer

muita coisa para mudar a situação. Conforme vislumbra Berger (1994),

Ao esquema oficial de organização sobrepõe-se uma rede muito mais sutil, muito

menos visível, de grupos humanos, com suas lealdades, preconceitos, antipatias e,

principalmente, códigos de comportamento. A sociologia [...] está entulhada de

dados a respeito do funcionamento dessa rede, que sempre existe em vários graus de

acomodação e conflito com o sistema oficial (BERGER, 1994, p. 45).

É uma perspectiva “carregada” de dificuldade de competência profissional, o posto ou

a graduação, que de certa forma tira a autonomia, a iniciativa do subordinado, que sempre

espera a ordem do superior. Neste ponto de vista social, o policial militar é percebido como

“violência simbólica profissional”, a sua relação com o trabalho está vinculada a um processo

coercitivo que estabelece técnicas para manutenção de uma ordem social estabelecida.

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Provavelmente esses recursos de manutenção da ordem impulsionam a práticas estereotipadas,

causando confusão entre autoridade e autoritarismo. A propósito, Berger (1994) observa:

Os papéis ocupacionais, o papel do lixeiro envolve um padrão mínimo, ao passo que

os médicos, clérigos e oficiais do Exército têm de adquirir toda espécie de

maneirismos característicos, hábitos de linguagem e gestos, tais como otimismo

diante do doente, palavreado santarrão ou garbo militar (BERGER, 1994, p. 109).

Diante dessa contradição profissional autoridade/autoritarismo, Berger (1994) acentua

que o policial militar é um membro social e, mesmo com essa contradição profissional que

implique em situações de desconforto profissional, ele sobreviverá. Essa concepção

profissional do policial militar constitui as paredes do encarceramento na história da

segurança pública na relação com a sociedade.

Esse aspecto conjuntural na postura policial militar proporciona visivelmente a

internalização de propósitos estereotipados, pois dentro dos próprios círculos de postos e

graduações fica explícita a fragmentação funcional, na qual cada grupo fica estagnado em seu

nível específico. Esse tipo de convivência torna-se resistente a uma relação profissional mais

democrática, permanecendo uma ideologia fechada, priorizando a harmonia de cada grupo

profissional militar.

Nesse comportamento militar, cada posto e graduação, por conta de seus interesses

conduzidos por meio do instrumento disciplinar, vai fortalecendo o condicionamento dos

indivíduos, o que também qualifica, classifica e impulsiona-os com a intenção de torná-los

aptos à profissão, bem como os deixa dóceis à estrutura estabelecida, isto é, à estrutura militar.

Foucault (1999) descreve:

O soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto,

fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente

uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o

conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no

automatismo dos hábitos (FOUCAULT, 1999, p. 117).

Dessa forma, a disciplina conduz à obediência às normas e regras da instituição

policial militar que passa por um processo de massificação dos indivíduos, na medida em que

há uma exigência de padronização de comportamentos. A hierarquia e a disciplina militar são

facilitadoras dessa padronização e da consequente reprodução da submissão por parte de seus

componentes. Os sujeitos militares submetem sua força de trabalho às normas e regras

estabelecidas pela instituição.

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Esse modelo de instituição privilegia a perspectiva identitária e a incidência ao culto de

valores e práticas militares, cuja consequência se traduz na manutenção de uma espécie de

vínculo sócio-comportamental, por meio de um corpo adestrado e produtivo. São produtos dos

velhos ranços psicopáticos, contaminados pela ideologia militar que reza que na guerra todos

são adversários, crença de que a competência e a eficácia se alcançam pela truculência e pelos

maus-tratos aos cidadãos.

O processo de modernização democrática já está instaurado pela Constituição Cidadã

brasileira de 1988 e pela parceria com organizações como a Anistia Internacional. Dessa

forma, o velho paradigma tradicional da Polícia Militar precisa ser substituído por outra

perspectiva, uma proposta que exija mudanças na postura de formação e na postura

ideológica. Os princípios da hierarquia e da disciplina verticalizada não conseguem mais

expressar procedimentos padrão em uma sociedade tão diversa do ponto de vista racial, ético,

de gênero e outros.

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CAPÍTULO III – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA FORMAÇÃO MILITAR

NO BRASIL E EM MATO GROSSO

O objetivo deste capítulo é analisar aspectos históricos na formação do policial militar

a fim de verificar se esta problematiza, silencia ou contempla as discussões sobre

preconceitos, racismo, igualdade e outras questões pertinentes às relações raciais na sociedade

brasileira. Nesse contexto, serão examinadas a influência dessa formação e suas

consequências na atualidade.

A formação policial militar vem se configurando historicamente, no Brasil, num

campo com pouca perspectiva de uma reformulação mais ousada, permanecendo num modelo

circunscrito denominado tradicional com o pressuposto centrado no professor e no conteúdo,

cuja circunstância não corresponde às formas diferenciadas para a compreensão das relações

que a polícia deve estabelecer com a sociedade democrática.

Para contextualizar essa característica é preciso olhar pontos históricos desse

fenômeno. O ensino militar no Brasil, durante a colônia, resultou da necessidade que Portugal

encontrou para defender um extenso território, particularmente o litoral, das investidas de

outras nações que lhe eram hostis e que conheciam as riquezas que o Brasil poderia lhes

fornecer (BEIER, 2013).

Como a metrópole não dispunha, à época, dos meios necessários e suficientes para

prover a defesa da terra, os reis portugueses decidiram que os naturais – pessoas radicadas na

terra brasileira, aqueles que não eram considerados estrangeiros – deviam aprender a arte da

arquitetura e o uso e manejo de artilharia (TELLES, 2003).

Com essas circunstâncias apontadas, surgiram as primeiras aulas de ensino militar –

era o final do século XVII. No século XVIII, especificamente em 1792, a Aula Militar do

Regimento de Artilharia foi transformada na Real Academia de Artilharia, Fortificação e

Desenho da Cidade do Rio de Janeiro. A Academia tinha um currículo de seis anos e os

alunos de Infantaria e Cavalaria completavam o curso ao fim do 3º ano, os de Artilharia os

cinco primeiros anos, e os de Engenharia, o curso completo. Esses estudos, nos três primeiros

anos, eram comuns aos alunos das quatro Armas (VIANA, 2013).

No século XIX, pressionado pelas tropas de Napoleão, chega ao Brasil, em 1808, a

Corte portuguesa com o príncipe Dom João, que resolveu reorganizar o ensino militar no

Brasil e, com a Carta de Lei, de 4 de dezembro de 1810, criou a Academia Real Militar que

foi inaugurada em 23 de abril de 1811, nas dependências da antiga Casa do Trem, no Rio de

Janeiro (SEIDL, 2013). Conforme descreve Holloway (1997):

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[...]. No ano seguinte, em 13 de maio de 1809, D. João VI decretou a criação de uma

força policial de tempo integral, organizada militarmente e com ampla autoridade

para manter a ordem e perseguir criminosos. Era a Divisão Militar da Guarda Real

de Polícia, subordinada ao Intendente de Polícia que ocupava o cargo de

desembargador. A missão de patrulhar em tempo integral tornava-a mais eficiente do

que o antigo sistema de vigilância esporádica por guardas civis. Seus oficiais e

soldados provinham das fileiras do Exército Regular (HOLLOWAY 1997, p. 46).

Nessa mesma ótica, Cunha apud Gonçalves (2009) enfatiza que o ensino adotado

àquela época era predominantemente científico e de elevado nível, valorizando, sobretudo, o

estudo da Matemática e ciências afins e tinha a duração de sete anos. Ofertava a formação

tanto militar (habilitação em Engenharia e Artilharia, Geografia e Topografia) quanto civil

(Engenharia). Tratava-se de uma instituição pouco militarizada, que não exigia a prática de

exercícios físicos nem o uso de uniformes, não realizava cerimônias de formatura e não

estabelecia normas de conduta. Porém, em 1822, a Academia Real Militar passou a se

denominar Imperial Academia Militar e, em 1832, Academia Militar da Corte.

Conforme o mesmo autor, em 1839 ocorreu a primeira reforma no ensino militar.

Nessa época o curso de formação de oficiais reduziu-se para cinco anos e incluiu-se a

formação do oficial de Estado-Maior. A formação do engenheiro militar era a prioridade do

curso, relegando-se a plano secundário a dos infantes e cavalarianos. A Academia se

transformou em Escola Militar, reforçando a tendência militarizante e contrapondo-se ao seu

modelo inicial, pouco militarizado.

Para Seidl, (2013) a nova unidade de ensino passou a ser o único acesso ao oficialato,

conforme determinação da Lei n. 585, promulgada em 6 de setembro de 1850 - Regula o

acesso aos postos de officiaes das differentes armas do Exercito. Dom Pedro por Graça de

Deos, e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do

Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que a Assembléa Geral Decretou, e Nós

Queremos a Lei seguinte: Art. 1º O accesso aos postos de Officiaes das differentes armas do

Exercito será gradual, e successivo desde Alferes, ou Segundo Tenente até Marechal de

Exercito [...], e a aprovação do regulamento pelo Decreto n. 772, de 31 de março de 1851. De

igual maneira, tornou-se a condição para a ascensão ao posto de oficial da corporação, pois até

então existia a cultura do cadetismo – ocupavam-se cargos no Exército por meio de privilégios

de nascimento, isto é, a ascensão funcional dependia da sua origem familiar, sem levar em

consideração a meritocracia.

Nessa perspectiva, de acordo com Santos (2014) até o ano de 1874 o único curso

superior de Engenharia existente no país era o da Escola Central do Exército. Ao longo dos

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anos, a Academia Real Militar passou por reformas e transformações. De acordo com o

Instituto Militar de Engenharia apud Santos (2014), seu nome mudou quatro vezes: Imperial

Academia Militar (1822), Academia Militar da Corte (1832), Escola Militar (1840) e Escola

Central (1859). Assim, a Academia Real Militar responsabilizava-se pelo ensino das ciências

exatas e engenharia em geral. Formava não só “oficiais para as armas”, mas também

“engenheiros geógrafos e topógrafos com a finalidade de conduzir estudos e elaborar

trabalhos em minas, caminhos, portos, canais, pontes, fontes e calçadas” (SANTOS, 2014).

No entanto, Alves (2014) esclarece que nesse ano de 1874 a Escola Central deu origem

à Escola Politécnica e a Escola Militar transferiu-se definitivamente para a Praia Vermelha,

separando-se a formação do engenheiro civil da do militar. A reforma do ensino militar de

1874 deu a forma de um verdadeiro curso, organizado em três anos, distribuindo os conteúdos

disciplinares de forma a se apresentarem em séries, e não mais em aulas separadas.

Dessa forma, o curso passou a expedir diplomas de bacharelado. Por conta disso,

Mota (1976) esclarece que os jovens oficiais se orgulhavam de seus diplomas de bacharel e

faziam questão de ser chamados de doutores em vez de alferes, tenentes ou capitães, como

que se se escusassem de seus postos na hierarquia militar. Surgia, assim, a casta dos

bacharéis de farda enquanto as virtudes castrenses esmaeciam cada vez mais.

Contudo, tal titulação não era novidade no Exército, pois, como observou Cunha apud

Gonçalves (2009), mesmo após a separação entre o ensino civil (Engenharia Civil) e o ensino

militar, a Escola Militar continuou concedendo diploma de bacharelado em Matemática e

Engenharia, sendo costume, à época, chamar os oficiais de doutor: doutor general, doutor

capitão ou, simplesmente, seu doutor.

Esse procedimento, diz o autor, guardava controvérsias, como de fato demonstrava o

posicionamento do senador Cruz Jobim ao lhe perguntarem sobre a pertinência de se conferir

o título de doutor aos militares:

Confesso, senhores, que me incomoda, que me aflige mesmo ver um militar procurar

encobrir o brilhantismo do seu uniforme, essas insígnias militares... Incomoda-me,

repito, vê-lo esconder a sua farda com uma murça, um capelo ou uma beca, parece-

me que não há nada que o militar deva pôr em cima de sua farda... porque nada

considero mais nobre, nem mais distinto, do que a farda de um militar benemérito...

em público, um militar ocultar a sua farda com qualquer coisa que seja parece-me

que é dar pouca consideração à mesma farda [...] (CUNHA apud GONÇALVES,

2009, p. 55).

Para bem caracterizar esse quadro, vivido nos albores da República, Castro (2001)

esclareceu alguns motivos que levaram os alunos da Escola Militar da Praia Vermelha à

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prática de atos abjetos de vandalismo, tais como a quebra dos lampiões de iluminação das ruas

do Rio de Janeiro, na Revolta da Vacina Obrigatória, também conhecida como Revolta dos

Quebra-Lampiões. Foi uma revolta que começou na Rua do Ouvidor, Largo de São Francisco,

Praça Tiradentes, Largo da Lapa e ruas do Teatro e Espírito Santo, onde começaram a se

registrar choques de populares com a polícia. A baderna se generalizou. Os revoltosos

destruíram a iluminação pública, depredaram os bondes e a revolta espalhou-se por todas as

ruas do Rio.

Esses movimentos revolucionários foram enfrentados e vencidos por profissionais

militares tratados preconceituosamente de tarimbeiros, pelos bacharéis influenciados por um

positivismo mal interpretado e que dominava a situação no Exército. Era essa mocidade que

estava imbuída das doutrinas de Augusto Comte e professando uma religião da humanidade

que visa ao cosmopolitismo (cidadão universal). Pode ter sido uma boa doutrina, mas não para

o soldado, que antes de tudo foi feito para empunhar armas em defesa da pátria (CASTRO,

2001).

Nesse clima de conflitos, Seidl (2013) enfatiza que a situação era dantesca e tinha,

então, mercê de um ensino distorcido, Forças Armadas despreparadas, desmotivadas, sem um

mínimo de espírito militar, eivadas de oficiais enredados na política partidária, o que os

desviava da atividade-fim da instituição. O que significava a propaganda das ideias

humanitaristas, pregando-se abertamente o pacifismo, o que apaisanou o Exército.

Milanesi (2013) informa que a reforma de 1889 e o Regulamento Benjamin Constant,

regulamentado pelo Decreto n. 371 de 2 de maio de 1890, acentuou a ênfase na cultura

científica em detrimento da técnico-profissional no colégio militar. O interesse por assuntos

positivistas ficou demonstrado pela incorporar matérias como a Gramática portuguesa e

francesa, Geometria, Física, etc.; a Escola Militar da Praia Vermelha adquiriu excepcional

prestígio no cenário intelectual brasileiro. A influência dos oficiais positivistas, máxime junto

à jovem oficialidade, era muito intensa, ensejando a politização dessa parcela do Exército da

época.

Essa reforma iniciou uma nova filosofia na formação dos oficiais, de fato

profissionalizante, pois toda a cultura abstrata, preponderante, foi suprimida. A reforma,

contudo, apesar de decisiva para os novos caminhos a seguir pela instituição militar, manteve

a exigência de uma cultura científica sólida, sem os exageros anteriores, que lhe conferiu

prioridade em relação à formação técnico-profissional.

Essas circunstâncias demonstraram conflitos difíceis para a instituição militar. Os

atos de heroísmo, de bravura, de espírito militar, típicos da estrutura militar, mostraram-se

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ruins para a manutenção hegemônica para qualquer Força Armada. A introdução de ideias

políticas, filosóficas, dentre outras que tinham a intenção de ferir os valores paradigmáticos

das virtudes militares tradicionais, jamais foi um bom sinal.

Por conta desses conflitos nos primeiros anos da década de 1900, implantou-se a

Reforma Hermes da Fonseca no Exército, totalmente voltada ao profissionalismo –

cristalizada em rígidos regulamentos, apodados, pejorativamente, pelos bacharéis militares de

“regulamentos da alfafa”. O lema de Hermes, rumo à tropa, bem caracterizava a procura da

eficiência da Força Militar Terrestre (FGV, 2001).

Partindo desse princípio, conforme Grunnennvaldt (2006), já na primeira década do

século XX a Escola Militar passou a se preocupar com o ensino, concentrando essa

preocupação nos conteúdos das matérias e sua aplicabilidade militar. Com isso, em 1906

foram enviados oficiais do Exército brasileiro para estagiar na Alemanha, pois naquele país as

forças militares eram profissionalizadas, o que serviu de modelo para vários outros exércitos

de países da América do Sul.

Os oficiais que para lá foram (em 1906, 1908 e 1910) sentiram a necessidade de

organizar e estruturar o Exército brasileiro, tendo a última turma, que recebera a alcunha de

jovens turcos, desempenhado papel preponderante nessa iniciativa. Em 1918 o Exército

brasileiro recebeu a Missão Francesa e, sob sua orientação, em 1922 entrou em vigor o

Regulamento de Instrução Militar, aprovado pelo presidente Epitácio Pessoa e seu ministro da

Guerra, João Pardiá Calógeras (MORAES, 2005).

As reformas engendradas pelo Exército influenciaram a estrutura do ensino militar,

que passaram a ter as seguintes formulações: objetividade do ensino e praticidade dos métodos

e processos. Nessa perspectiva, trabalhava-se principalmente com base na pedagogia do “fazer

para aprender”. Essa postura corrobora o que diz Ferreira Neto (2006, p. 4): “O saber pode ser

adquirido lendo ou ouvindo. O saber fazer só se aprende executando; daí o provérbio ‘só

forjando, conseguir-se-á ser ferreiro’”.

Nessa mesma década, segundo Souza (2011), foram criados cursos preparatórios para

o ingresso na Escola Militar, que eram ministrados por oficiais que visavam preparar o aluno,

nos âmbitos intelectual e militar, priorizando os hábitos militares. Também, em muitos

quartéis foram instituídas as Escolas Regimentais, destinadas a preparar e alfabetizar a tropa.

Com isso, constata-se que o Exército se preocupava em trabalhar o ensino em todos os níveis

da estrutura hierárquica, mas começando primeiramente pelos oficiais.

Assim, o reflexo de formação do Exército foi incorporado à Polícia Militar, força

reserva auxiliar do Exército, enquanto técnico de segurança pública, priorizando o tecnicismo

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como estrutura pedagógica ponderando o currículo como ferramenta de formação. É

interessante observar que em nenhum momento registra-se a formação de soldados.

3.1 O ensino na Polícia Militar de Mato Grosso no Centro de Instrução Militar

O Ensino Policial Militar no Estado de Mato Grosso surgiu na década de 1940, com

estrutura militarizada pela influência da educação do Exército brasileiro, quando foi editado o

Decreto-lei n. 778, de 10 de agosto de 1946, criando o Centro de Instrução Militar (C.I.M.),

com o objetivo de formar e aperfeiçoar oficiais e praças da Força Pública (MATO GROSSO,

1946).

A característica militar da instituição policial tem como sustentação organizacional

dois vieses que marcam esse modelo policial: a hierarquia e a disciplina. Esses dois postulados

são a direção no processo de formação da força policial do Estado. Com esse formato

pedagógico foi criado o Centro de Instrução Militar.

A normativa de criação do Centro de Instrução Militar nessa estrutura adotou o modelo

de formação tendo como referência o Estado de São Paulo que dispunha de um “Exército

estadual”, conforme se verifica em decreto federal:

O Interventor Federal Substituto do Estado de Mato Grosso, usar da atribuição que

lhe confere o artigo 6, item V, do decreto-lei federal n. 1.208, de 8 de abril de 1939,

decreta:

Artigo 1º - Fica criada na Força Policial do Estado de Mato Grosso, o Centro de

Instrução Militar, destinado ao aperfeiçoamento e preparo dos oficiais e habilitação e

formação dos sargentos e promoção ao oficialato da referida corporação.

§ único - O aspirante a oficial não poderá ser promovido ao posto imediato e o

segundo tenente comissionado não poderá ser confirmado nesse posto, sem que

primeiro obtenham aprovação final no curso do C.I.M. ora criado.

Artigo 2º - Fica adotado no C.I.M. o regulamento do Centro de Instrução Militar da

Força Policial do Estado de São Paulo, na parte em que for aplicável até que seja

elaborado o regulamento deste Estado.

[...] (MATO GROSSO, 1946).

Mesmo com essa condição normativa, o ensino policial militar não foi

operacionalizado pelo Estado nem pela Força Pública de Mato Grosso, não sendo perceptíveis

as razões nem os motivos pela não implantação do ensino policial militar naquele momento no

Estado de Mato Grosso.

Coincidentemente, no retorno, via democrática, da Presidência de Getúlio Vargas e do

Governo do Estado de Mato Grosso Fernando Corrêa da Costa, este nomeou comandante da

Polícia Militar o tenente-coronel Daniel de Queiroz, que assumiu o comando em l0 de

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fevereiro de l95l, com a meta de estabelecer o funcionamento do Centro de Instrução Militar

(C.I.M.) com o objetivo de formar oficiais e instruir a tropa (FREITAS apud GONÇALVES

2009).

A criação do C.I.M. foi fundamentada por uma proposta do comandante geral da Força

Pública, que encaminhou ao Governo do Estado a justificativa da ativação do Centro de

Instrução Militar, assim descrito:

Junto remeto a Vossa Excelência, um projeto de lei para a criação do Centro de

Instrução Militar. Conforme preceitua a Lei Federal n. 192 de 17 de janeiro de 1936,

que atualmente disciplina as promoções nas Policias Militares, nenhum candidato

pode ser nomeado ou promovido sem o curso de formação de oficiais. No tempo das

Interventorias os candidatos iam a São Paulo ou no Rio de Janeiro, por conta do

Estado, a fim de se habilitarem com esse curso. Embora esse sistema tivesse dado

bons resultados, trouxe inúmeras dificuldades, acarretando ônus para o Estado e

dando uma demonstração de parecer que não temos capacidade para ministrar os

conhecimentos necessários, quando se dá o contrário, pois temos elementos capazes

de ministrar com eficiência esse conhecimento. [...] Pelo exposto venho pedir a

Vossa Excelência, que se digne enviar, com mensagem à Assembleia legislativa,

para que seja convertida em lei, o projeto que junto, porque penso que satisfaz as

necessidades, recomenda a administração de Vossa Excelência e preenche os

requisitos legais. Valho-me desta oportunidade para apresentar a Vossa Excelência,

meus préstimos de elevada estima e distinta consideração. Daniel de Queiroz,

Coronel - Comandante Geral (1951).

O comandante Daniel de Queiroz demonstrou preocupação com a formação dos

policiais militares, mas parece que não se preocupou com a formação de soldados, pois a

ênfase se faz apenas aos oficiais, mesmo assim o governador do Estado encaminhou a

justificativa que contextualizou todo o processo que caracterizava a Força Pública até aquele

momento. A preocupação era disciplinar a tropa, melhorar a qualificação e restabelecer os

quadros de oficiais e, provavelmente, em relação às praças, manter o controle disciplinar.

O Projeto prossegue em seu trâmite [...] constata-se a necessidade de melhorar o

nível intelectual do quadro de Oficiais, [...]. Estamos prevendo para futuro próximo,

o preenchimento de claros no quadro de Oficiais, mormente subalternos e então a

complementação se fará com antigos Sargentos e Sub-Tenentes, [...]. Com a criação

do C.I.M. na Polícia Militar do Estado, não só se formará o nível intelectual dos

futuros Oficiais como se elevará o dos Oficiais da Corporação. Outrossim, o Art. 25º

da Lei Federal n. 192, de 17 de janeiro de 1936, em vigor, diz: “Cinco anos após a

publicação da presente Lei, só concorrerão ao provimento das vagas de 2º tenente,

nas Polícias Militares, os candidatos que possuírem o Curso de Aperfeiçoamento de

Oficiais ou de Formação de Oficiais da sua Corporação, ou da Polícia Militar do

Distrito Federal ou da Escola das Armas do Exército. Pois o que se não pode mais

conhecer é o preenchimento de claros no Quadro de Oficiais com a promoção de

antigos sargentos, na sua maior parte de abastarda mentalidade. Ainda mais, o

grande número de graduados analfabetos [erros da administração passada], é um

atestado eloquente do franco desprezo que se dava á educação e a formação dos

quadros de graduados da P.M., [...]. É, portanto, oportuno criar o C.I.M. na Polícia

Militar do Estado, instalando-o convenientemente, dando enfim cumprimento ao Art.

25º da Lei Federal n. 192” (MATO GROSSO, 1952).

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Essa iniciativa foi o início do processo para a criação do C.I.M., mesmo com essa

conquista é relevante verificar alguns recortes da mensagem em trâmite: curva-se mais uma

vez à formação de oficiais, sargentos, cabos e não de soldados. A impressão que ficou sobre a

formação do soldado é que ela simplesmente não é levada em conta, como prevê o recorte

abaixo:

A Polícia Militar destina-se à manutenção da ordem pública e é considerada reserva

do Exército Brasileiro, isto é, tem dupla missão a cumprir. Daí a necessidade de

preparar os seus quadros da maneira mais conveniente, mormente o de Oficiais, até

então sem bases sólidas em que se possa apoiar [...] (MATO GROSSO, 1952).

Outro aspecto observado foi a dimensão de pertencimento que surgiu no corpo da

justificativa do projeto como prioridade, cuja estrutura militar deve ser observada. Como o

soldado pertence à estrutura organizacional, esse grau de pertencimento também lhe é

destinado; mesmo que seja sem instrução, é preferível o soldado que pessoas estranhas à

corporação possam sugerir mudanças, de acordo com o recorte abaixo:

A situação pela circunstância de não ter a Milícia o seu Estatuto, regendo-se ora pelo

Estatuto do Exército, ora pelo Regulamento da Secretaria do Interior Justiça e

Finanças, ficando, quase todos os casos, de ordinário, à mercê de pareceres do Sr.

Dr. Consultor Jurídico ou de fatores políticos. Ora, toda Corporação se estriba na

disciplina, condições de igualdade e de direito, dentro da esfera a que pertence o

Oficial ou Praça e tem e teve como credo o absoluto em todos os tempos, os seus

próprios regulamentos, regendo-se por eles, não permitindo que terceiros se ponham

de permeio para elucidar o que claro deve estar [...] (MATO GROSSO, 1952).

Além disso, quando se refere à promoção de sargentos a oficiais para suprir as vagas

vazias do quadro de oficiais, atribui-se a essas praças tratamento pejorativo, como se não

tivessem nenhuma condição para ascender ao oficialato. No recorte abaixo o preconceito é

naturalizado pela corporação:

[...] o que não pode mais conceber é o preenchimento de claros no Quadro de

Oficiais com a promoção de antigos sargentos, na sua maior parte de abastarda

mentalidade (grifo nosso). Ainda mais, o grande número de graduados analfabetos

[erros da administração passada], é um atestado eloquente do franco desprezo que se

dava à educação e à formação dos quadros de graduados da P.M., o que vem

estabelecendo verdadeira confusão na reorganização do Corpo. [...] (MATO

GROSSO, 1952).

Essas ocorrências convergem para o que verifica Rangel apud Gonçalves (2009): de

acordo com os conceitos e imagens, estes vão sendo aceitos, naturalizados, considerados

verdadeiros, embora sejam apenas representações. Ainda assim, muitos dos preconceitos, dos

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estigmas, das exclusões de pessoas decorreram desse processo e dos equívocos que pode

gerar.

Mesmo com essas distorções, a dimensão do contexto da representação social levou o

governador de Mato Grosso a atender à solicitação do comandante geral que, motivado pela

necessidade de instruir a polícia, enfatizou apenas os oficiais. Com preconceito aos

subtenentes e sargentos, e com preconceito, discriminação e desprezo pelos soldados que nem

foram citados ou lembrados como profissionais da Polícia Militar, o projeto seguiu seu

encaminhamento enquanto projeto de lei à Assembleia Legislativa, através da Mensagem n.

72, de 22 de novembro de 1951, que segue:

Senhores Membros do Poder Legislativo, tenho a honra de submeter à consideração

dessa douta e ilustra da Assembleia Legislativa, o anexo projeto de lei, elaborado

pelo Comando Geral da Polícia Militar de Mato Grosso, acompanhado da

competente justificação, criando, naquela milícia, O Centro de Instrução Militar. Em

se tratando de uma medida necessária e que visa ao soerguimento do nível da nossa

Polícia Militar, encareço a VV. Excias. O acurado estudo da matéria em apreço.

Aproveito a oportunidade para renovar a VV. Excias, os protestos de minha alta

estima e mui distinta consideração (MATO GROSSO, 1951a).

A Assembleia Legislativa de Mato Grosso, ao receber a Mensagem de n. 72, datada de

22 de novembro de 1951 e assinada pelo governador Fernando Corrêa da Costa, bem como

todo o processo de justificativa por parte da Força Pública de Mato Grosso, referendou o

pedido da corporação e do governo, pois entendiam também que a mesma precisava se

reestruturar conforme entendimento exarado no Processo n. 378/51 e Parecer n. 184/51:

Processo. 378/51 - Mensagem do Poder Executivo - Com o projeto de lei mandando

criar na Polícia Militar do Estado o Centro de Instrução Militar e dá outras

providências. [...] II - Trata-se de cumprimento à lei federal 192, de 17 de janeiro de

1936, homologado em seus fins pela Constituição Federal vigente. A Lei 192 foi

cumprida pelo Governo Julio Muller, secundado pela alta visão de seu ilustre

auxiliar, o Dr. João Ponce de Arruda. Os governos que se sucederam a Julio Muller

relegaram as prescrições sábias e indispensáveis da Lei 192. Hoje, em nossa Polícia

Militar, o que nunca houve antes, figuram graduados analfabetos e outros absurdos,

injustiças e ilegais classificações. Felizmente ainda é tempo de remediar o desvio, e

para tanto oficiais de recomendável nível moral e intelectual mantém o bom conceito

de nossa Polícia Militar. III - O projeto de lei é constitucional. O parecer é pela

aprovação. S. M. J. Comissão de Constituição e Justiça, 29 de novembro de 1951

(MATO GROSSO, 1951b).

A criação do C.I.M. em Mato Grosso foi instituída primeiramente pelo Decreto-lei n.

778, de agosto de 1946, o referido processo de criação culminou com a promulgação da Lei n.

480, de 22 de agosto de 1952, pela qual, efetivamente, o governo do Estado instituiu o Centro

de Instrução Militar na Polícia Militar do Estado de Mato Grosso.

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Cria na Polícia Militar no Estado o Centro de Instrução Militar e dá outras

providências.

O GOVERNADO DO ESTADO DE MATO GROSSO.

Faço saber que a Assembleia Legislativa do Estado, decreta e eu sanciono a seguinte

lei:

Artigo 1 - Fica criada na Polícia Militar do Estado de Mato Grosso o Centro de

Instrução Militar que funcionara com os cursos de:

a) Formação de Oficiais Combatentes [C.O.C.]

b) Curso de Candidatos a Sargento [C.C.S.]

b) Curso de Candidatos a Cabo [C.C.C.]

[...] Artigo 2 - Fica o corpo docente do C.I.M., constituição de Oficiais da própria

Corporação, de Oficiais do Exército [da ativa ou reformados] e de civis designados,

os primeiros pelo Comando Geral e os demais nomeados pelo Governo do Estado.

Artigo 3 - O corpo discente do C.O.C. constituir-se-á de:

a) Alunos com curso ginasial;

b) Alunos 1º Sargentos e Subsargentos da Corporação, quando moral e

intelectualmente bem formados;

c) Alunos Oficiais [para Oficiais subalternos sem o curso de formação].

[...] Artigo 5 - Dentro de trinta [30] dias, a contar da data de publicação da presente

lei, o Governo do Estado regulamentará o novo Centro de Instrução da Polícia

Militar, instalando-o, a fim de entrar em funcionamento a partir de 1º de março de

1952, quando se iniciara o 1º ano letivo do C.I.M.

[...] (MATO GROSSO, 1952a).

A promulgação se deu em 22 de agosto de 1952, estabelecendo-se o prazo de 30 dias a

partir da data de publicação para o Estado regulamentar o novo Centro, que deveria entrar em

funcionamento em 1º de março de 1952. Nesse período, a Polícia Militar consolidou sua

estrutura de formação criando seu próprio espaço formativo, mas esse procedimento não era

aplicado ao soldado, a ele parece que ‘o corpo dócil’ é o que deveria prevalecer.

Os componentes da Polícia Militar foram forjados nos corpos dóceis, por meio do

controle disciplinar. Essa estratégia possibilitou a canalização dos dispositivos de processos de

sujeição impostos aos seus integrantes, em especial ao soldado, que é o elo mais frágil dessa

relação hierarquizada. É importante destacar que a formação do soldado policial militar é um

vetor importante ao profissional de segurança pública, porém há a sensação de que o soldado,

nesse percurso, não precisava de formação para se relacionar com a sociedade.

A formação do soldado policial militar em qualquer tempo é significativa. Esse

policial estará na ponta, nas vias públicas relacionando por meio de suas ações diretamente

com os cidadãos, especialmente aquelas camadas sociais estigmatizadas, a parcela negra,

pobre e excluída, usurpada em sua cidadania.

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3.2 O espaço físico como ambiente de formação

Para formar os policiais militares, exceto os soldados, era necessário organizar o

espaço físico, pois os moldes de formação deveriam ser como no Exército, já que a Polícia

Militar é força reserva auxiliar dessa instituição militarizada, portanto o quartel é esse espaço.

Desde sua organização em 1835, a maioria das instalações físicas da Polícia Militar era

alugada ou cedida por comodatos de outros órgãos públicos, pois a corporação tinha sérios

problemas de ordem financeiro-orçamentária e, consequentemente, de logística.

Conforme Monteiro (1985, p. 30), a Polícia Militar não possuía até a década de 1880

um aquartelamento definido. Entretanto, o autor informa que a corporação havia alugado um

sobrado, próximo da Santa Casa de Misericórdia, para ali fixar suas acomodações, isto é, um

quartel. O Arsenal de Guerra, numa atitude de camaradagem entre instituições, pôs à

disposição do comandante da corporação policial militar, o capitão João Augusto de Oliveira,

uma carroça para a realização da mudança, já que não dispunha desse meio de transporte.

Destaca-se que todos os móveis a serem transportados couberam na carroça.

Mais tarde, na República, a Força Policial de Mato Grosso foi reestruturada, teve seu

nome mudado e o efetivo de oficiais aumentado, além de o local de aquartelamento ter sido

instalado no casarão antigo que pertenceu a João Poupino Caldas, localizado ao lado da Praça

Ipiranga. As edificações do antigo quartel continuam no mesmo local (atual Ganha Tempo),

na Praça Ipiranga, antiga Praça Marquês de Aracati, denominado, no século XVIII, de Largo

da Cruz das Almas, por causa do córrego com esse nome que por lá passava.

Durante a Guerra da Paraguai (dezembro de 1864 a março de 1870) o referido quartel

da PM serviu de alojamento para as tropas da Guarda Nacional, e em fins de 1867, como

enfermaria militar. Em 1870, também abrigou por um curto período a Tesouraria Provincial.

A ocupação por repartições militares durou até fins do século XIX.

Por ordem do governo de Mato Grosso, novamente a Força Pública mudou suas

instalações, então se fixando na Rua 15 de Novembro, em frente à Igreja do São Gonçalo. As

novas dependências distribuíam-se em um espaço de 44 m x 121 m, incluindo a área coberta e

a descoberta. O quartel teve sua construção iniciada em 27 de março de 1882, para abrigar um

laboratório pirotécnico, sob a administração do presidente da Província José Maria Alencastro.

Anos mais tarde, alojaram-se nas novas instalações o Comando Geral da Força Pública, o 1º

Batalhão de Caçadores, a Banda de Música e, por fim, o Centro de Instrução Militar, que

ocupou a parte dos fundos do quartel.

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A partir dessa construção estava definido o ambiente de formação na Polícia Militar do

Estado de Mato Grosso. O quartel, para Foucault (1999), é o local para controlar o soldado de

forma fixa, já que essa categoria de massa é comparada à de vagabundos. Por isso essa

categoria deve permanecer em quartéis para serem controlados; nesse aspecto o autor

considera:

[...]. O encarceramento nele será estrito: o conjunto será fechado e cercado por uma

muralha de dez pés de altura que rodeará os ditos pavilhões, a trinta pés de distância

de todos os lados – e isto para manter as tropas em ordem e em disciplina e que o

oficial esteja em condições de responder por ela (FOUCAULT, 1999, p. 122).

Como o soldado tinha pouca ou nenhuma instrução e estava abaixo na hierarquia

funcional, estava propenso a cometer abusos, portanto as estruturas do C.I.M. refletiam as

características de um quartel, para manter seus componentes ocupados e controlados pela

cúpula da corporação. O C.I.M., no que diz respeito a sua função de formar seus policiais,

diga-se de passagem, futuros oficiais, pois, esse formato de formação se tratava de um grande

projeto institucional que tinha por estratégia mudar o nível profissional de seus componentes.

Dessa forma, sobre o corpo de alunos era exercido o controle, os oficiais do Batalhão e

os oficiais do Comando Geral, além do controle sobre os alunos por meio do diretor do

Centro, que, por sua vez, juntamente com seus instrutores, também era controlado, pois todos

se concentravam no mesmo espaço físico. Como a tropa precisa ser disciplinada, a estratégia

era o controle além do controle ou controle panóptico, como asseverou Foucault (1999):

Encontramos no programa do panóptico a preocupação [...] da observação

individualizante, da caracterização e da classificação, da organização analítica da

espécie. [...] O panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências,

modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos. [...] O panóptico pode

até constituir-se em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos [...] o

diretor pode espionar todos os empregados que tem a seu serviço: enfermeiros,

médicos, contramestres, professores, guardas; poderá julgá-los continuamente,

modificar seu comportamento, impor-lhes métodos que considerar melhores; e ele

mesmo, por sua vez, poderá ser facilmente observado. [...] Julgará com uma única

olhadela, e sem que se possa esconder nada dele, como funciona todo o

estabelecimento (FOUCAULT, 1999, p.168-169).

Com a estrutura física fechada, nenhum militar ficaria alheio ao corpo disciplinar, o

controle de todo o processo de formação era monitorado permanentemente no exercício da sua

formação. Assim, o espaço do quartel era perfeitamente condizente com as necessidades de

um centro de formação militar, haja vista a importância do controle disciplinar pretendido em

relação aos seus componentes.

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Os alunos, devido ao controle e a todo o trabalho de condicionamento disciplinar a que

eram submetidos, viam-se como referência e, como tal, não podiam errar, trazendo para si

próprios a responsabilidade da autocorreção, pois não mais precisavam dos oficiais para

exercê-la; os próprios alunos haviam-na incorporado.

Essa atitude nos leva a refletir sobre a eficácia e competência do poder panóptico,

demonstrado por Foucault (1999). Esse controle é o viés almejado do poder sobre o grupo,

mesmo que os cursos sejam para os oficiais, o “efeito cascata” será para os soldados, estes não

precisam de conhecimentos, basta o controle disciplinar para a sujeição militarizante.

As acomodações do C.I.M., no quartel do 1º Batalhão, mesmo sendo em um local

improvisado, serviram ao propósito de controlar, vigiar e fiscalizar a tudo e a todos que

estavam direta ou indiretamente envolvidos com a formação dos policiais da Força Pública.

Na década de 1960, o Centro de Instrução Militar extingue o Curso de Formação de Oficiais,

mas continuou formando sargentos e cabos, exceto os soldados, até a década de 1970.

Com relação à formação de praças, segundo Monteiro (1985), foi criada a Unidade

Escola de Praças da Polícia Militar, pelo Decreto-lei n. 1469 de 088 de maio de l973, com a

denominação de Centro de Formação e Aperfeiçoamento (CFA), iniciando suas atividades no

Quartel do 1º Batalhão de Polícia Militar (1º BPM), em substituição ao antigo C.I.M.,

passando a formar praças. Em l977 foi desativado. Nesse período, foi adaptado o Centro do

Quartel de Rosário Oeste, até o ano de l979, quando ocorreu a inauguração do quartel-escola,

em l8 de setembro de l979, com a denominação de Centro de Formação e Aperfeiçoamento de

Praças (CFAP), na cidade de Várzea Grande, onde formou soldados, cabos e sargentos.

Atualmente ali funciona a Academia da Polícia Militar, com assuntos pertinentes à formação

de oficiais e missões da Polícia Militar.

3.3 As competências na formação policial militar

O princípio de responsabilidade da Polícia Militar em formar seus componentes já

aparece na Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional (LDBN), que sugere à Polícia Militar do Estado de Mato Grosso manter seu próprio

Sistema de Ensino (art. 83, LDB/1996). Dessa forma, a Lei Complementar de Ensino da

Polícia Militar n. 408, de 1º de julho de 2010, em seu artigo 1º, reforça esse princípio:

“Manterá sistema próprio de ensino, com a finalidade de qualificar recursos humanos

necessários à ocupação de cargos e para o desempenho de funções previstas na Lei de

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Organização Básica (LOB) da Polícia e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Mato

Grosso”. O artigo 2º da mesma lei reitera esse princípio:

O Sistema de Ensino compreende as atividades de educação, instrução, pesquisa,

extensão, educação a distância e programas de pós-graduação realizadas nos

estabelecimentos de ensino e outras organizações militares do Estado com tais

incumbências e participação do desenvolvimento de atividades culturais. (MATO

GROSSO, 2010)

Diante desses princípios, fica estabelecido que a educação profissional na Polícia

Militar e no Corpo de Bombeiros Militar será ministrada pelas Unidades de Ensino das

Corporações, pelas unidades operacionais policiais e bombeiros militares e por órgãos de

ensino de outras corporações.

Mesmo com esses princípios funcionando na Instituição Policial Militar, mediante

propostas fundamentadas dos comandantes-gerais da Polícia Militar do Estado de Mato

Grosso (PMMT) e Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Mato Grosso (CBMMT),

poderão ser celebrados convênios ou termos de cooperação técnica com estabelecimentos da

rede de ensino públicos ou privados para a realização de cursos específicos de interesse das

corporações.

De posse dessa conduta normativa a Polícia Militar enfatiza que a Educação das

Instituições Militares Estaduais é um processo formativo desenvolvido por meio de ensino,

treinamento, pesquisa, extensão, e instrução integradas entre si que permitem aos servidores

militares estaduais adquirirem competências que os habilitem ao exercício da profissão. O

ensino na Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar tem como finalidade:

I - formação de oficiais, de sargentos, de cabos e de soldados, objetivando dar-lhes

condições de exercer as funções e atividades inerentes aos respectivos postos e

graduações através do Curso de Formação de Oficiais (CFO), do Curso de Formação

de Sargentos (CFS), do Curso de Formação de Cabos (CFC) e do Curso de

Formação de Soldados (CFSD) (MATO GROSSO, 2010).

Porém, esse Sistema de Ensino da Polícia Militar implica no estabelecimento de

estrutura física e outras necessárias à formação de seus componentes, cujos mecanismos

devem estar em conformidade com as normas federal e estadual de educação vigentes, mesmo

com as peculiaridades de uma estrutura militar.

Esses mecanismos educacionais ficam visíveis nos ajustes da organização institucional

no campo de formação. Em 1987, a Lei Estadual 5.177 criou a Academia de Polícia Militar

Costa Verde (APMCV). Em 1994, a Lei estadual n. 388 instituiu o Sistema de Ensino da

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Polícia Militar de Mato Grosso. A ativação da Academia de Polícia Militar Costa Verde, em

1993, foi seguida do primeiro convênio entre a Polícia Militar Estadual e a Universidade

Federal de Mato Grosso – UFMT (SANDES, 2005, p. 5). Em 1994, o Decreto Estadual n.

3144/93 inaugurou o Curso de Formação de Oficiais (CFO) da Polícia Militar do Estado de

Mato Grosso, em nível profissionalizante, destinado à formação do aspirante a tenente, com

duração de três anos.

Nesse mesmo ano, o Parecer n. 75/93 do Conselho Federal de Educação abriu a

possibilidade de equivalência acadêmica de cursos militares a cursos superiores civis. Isso

também possibilitou aos graduandos de estabelecimentos militares o aproveitamento de

estudos realizados em unidades de ensino superior civil, isto é, fora do âmbito militar.

O processo de equivalência se consolidou por meio da Resolução Estadual n. 253/96

que declarou a equivalência do profissionalizante CFO ao ensino de nível superior. Seguindo

as mencionadas Bases Curriculares Nacionais para Formação dos Profissionais da Segurança

do Cidadão, estabelecidas em 2000 pelo Ministério da Justiça para homogeneizar formação

dos agentes de segurança, e, em 2001, o Parecer n. 1295/01 do Conselho Nacional de

Educação (CNE) equipara as ciências militares ao rol das ciências estudadas no Brasil.

Para se adequar às Bases Curriculares Nacionais e ao Parecer n. 1295/01 do CNE, o

Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar do Estado de Mato

Grosso realizou revisão na Matriz Curricular do Curso de Formação de Soldados da Polícia

Militar para a adequação e modernização na formação policial militar.

Essa reformulação da educação policial militar não modificou a estrutura hierárquica

da corporação. Os oficiais subalternos, tenentes – bacharéis formados no CFO –, comandam

os praças: subtenentes, sargentos, cabos e soldados, que atuam no policiamento preventivo e

ostensivo da sociedade. O Bacharelado em Segurança Pública da Polícia Militar do Estado de

Mato Grosso (PMMT), equiparado às ciências convencionais, com fundamento nas Bases

Curriculares Nacionais estabelecidas pelo Ministério da Justiça, tem a pretensão de formar o

oficial mais cônscio de sua tarefa social, mais apurado tecnicamente, mais culto juridicamente,

mais eficaz, mais didático e comunicativo, mais saudável e com maior capacidade de

comando. Um servidor público com atitudes mais voltadas à segurança do cidadão, à proteção

da cidadania e à promoção da civilidade. (SANDES, 2005).

Nessa perspectiva também é a proposta para a formação do soldado da Polícia

Militar. Isso demonstra uma tentativa de superar a priorização da docilização do corpo na

formação policial militar. Nessa direção, aparece a valorização dos policiais militares que

estão na ocupação de direção nos órgãos de formação da Polícia Militar por militares com

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curso superior avançado, na modernização normativa e equivalência dos cursos de formação

profissional em nível de curso superior. Esperamos que esses avanços educacionais sejam

direcionados a todos os componentes da corporação.

Para que esse processo tome o rumo desejado, é importante ressaltar que a Instituição

Policial Militar tem em sua estrutura a Diretoria de Ensino, Instrução e Pesquisa (DEIP), para

supervisão, orientação e inspeção do ensino da Polícia Militar, além dessa função expede

normas diretrizes e demais instruções para o cumprimento das legislações vigentes.

3.4 A política nacional de segurança pública - Matriz Curricular Nacional - Diretrizes

O processo dessa reformulação na Polícia Militar no Brasil iniciou-se na década de

1990, quando foi possível observar o nascimento de importantes instrumentos de

enfrentamento às manifestações de violência, por meio dos movimentos sociais, para extirpar

a injustiça, o arbítrio e a impunidade. Com uma ação conjunta do governo e da sociedade civil

e de organismos internacionais, como é o caso da ONU, foram fortalecidas em suas metas de

desenvolvimento sustentável a prevenção e a cultura da paz. Neste contexto foi implantado o

primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (I PNDH) – Decreto n° 1.904, de 13 de

maio de 1996 e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em 17 de abril de 1997. O I

PNDH já assinalava a importância de se acrescentar às Academias de Polícia matérias

específicas de direitos humanos (BRASIL, 1996).

Com esses propósitos, em 2000 foi criado o primeiro Plano Nacional de Segurança

Pública (PNSP), o Governo Federal iniciou sua preocupação quanto à formação, qualificação

e valorização profissional dos agentes de segurança pública, propondo ações (reformas nas

polícias, prática da cultura da paz etc.) que pudessem garantir uma reforma substancial nas

polícias estaduais.

Essa preocupação também se fez presente na redação do segundo Programa Nacional

de Direitos Humanos (II PNDH), Brasil (2002), o qual marcava a necessidade de se modificar

o currículo nacional de formação dos operadores de segurança, acrescentando-lhe disciplinas

de cunho social e humano. Objetivava o Programa nessa área:

Estimular o aperfeiçoamento dos critérios para seleção e capacitação de policiais e

implantar, nas Academias de polícia, programas de educação e formação em direitos

humanos, em parceria com entidades não governamentais. Incluir no currículo dos

cursos de formação de policiais módulos específicos sobre direitos humanos, gênero

e raça, gerenciamento de crises, técnicas de investigação, técnicas não letais de

intervenção policial e mediação de conflitos (BRASIL, 2002, item 19, 20, p. 7).

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A partir daí foi criada a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do

Ministério da Justiça, que elaborou um documento para orientar a formação de agentes

policiais, denominado de Bases Curriculares para a Formação dos Profissionais de Segurança

do Cidadão. As Bases Curriculares passaram a servir como um mecanismo pedagógico para

nortear as instituições responsáveis pela formação do quadro de operadores da segurança

pública nos Estados, assim como “uma ferramenta de trabalho que auxilie a homogeneização

dos cursos de formação e o planejamento curricular” (BRASIL, 2000, p. 6).

Com as Bases Curriculares (Brasil, 2000), os cursos de formação passaram a seguir um

desenho básico curricular. Este currículo era composto por 29 disciplinas distribuídas em seis

áreas temáticas (Missão Policial, Técnica Policial, Cultura Jurídica, Saúde do Policial,

Eficácia Pessoal e Linguagem e Informação).

Essas disciplinas compunham um núcleo comum a todas as formações, denominado

“Base Comum”. Além desse núcleo comum, as Bases Curriculares estabeleciam que cada

centro de ensino estava apto a reunir um conjunto de disciplinas que atendessem “as

características específicas de cada curso de formação e as peculiaridades regionais” (idem, p.

19) para compor o que ela denominou por “Parte Diversificada” do currículo nacional.

Com essa configuração as Bases Curriculares constituíram um marco de referência

para as ações formativo-profissionais a serem empreendidas por todas as polícias do País,

quando foi elaborado o “Projeto Segurança Pública para o Brasil”. É o início de uma nova

maneira de se pensar e fazer segurança pública no Brasil.

O Projeto Segurança Pública para o Brasil sugere a educação das polícias como uma

das formas de superação do modelo tradicional implantado no País, por compreender que “a

atual formação das polícias é positivista, discriminatória e se funda na antiga Lei de Segurança

Nacional e, sobretudo, na Doutrina de Segurança Nacional, que entendiam o cidadão como

potencial inimigo interno” (BRASIL, 2003, p. 31).

O projeto de segurança pública foi um dos principais compromissos da Política

Nacional de Segurança Pública que estimulou a construção do Sistema Único de Segurança

Pública (SUSP) e a elaboração da Matriz Curricular Nacional que em sua expressão singular

corresponde à lógica da integração que se tornou um essencial instrumento de formação

policial.

A Matriz Curricular Nacional (MCN) tornou-se uma referência teórico-metodológica

que visa orientar o planejamento e a avaliação das atividades formativas dos profissionais da

área de Segurança Pública (Polícia Militar, Polícia Civil e Bombeiro Militar).

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Além de estabelecer princípios e objetivos essenciais à formação em segurança

pública, a MCN estabeleceu que as disciplinas que comporão uma nova malha curricular

devem versar sobre quatro grandes temas denominados “Eixos Articuladores” (Sujeito e as

Interações no contexto da Segurança Pública; Sociedade, Poder, Estado, Espaço Público e

Segurança Pública; Ética, Cidadania, Direitos Humanos e Segurança Pública; e Diversidade,

Conflitos e Segurança Pública) e divididas em oito “Áreas Temáticas” (Sistemas, Instituições

e Gestão Integrada em Segurança Pública; Violência, Crime e Controle Social; Cultura e

Conhecimentos Jurídicos; Modalidades de Gestão de Conflitos e Eventos Críticos;

Valorização Profissional e Saúde do Trabalhador; Comunicação, Informação e Tecnologias

em Segurança Pública; Cotidiano e Prática Policial Reflexiva; Funções, Técnicas e

Procedimentos em Segurança Pública) (BRASIL, 2009).

Além disso, a MCN seguiu como um de seus princípios básicos a lógica da integração,

justamente um dos principais compromissos estabelecidos pelo Projeto de Segurança Pública

para o Brasil. Sua utilização fomenta orientações e reflexões pedagógicas, com perspectiva de

garantir a coerência das políticas de melhoria da qualidade da Educação em Segurança Pública

e contribuir para a efetividade do desempenho profissional e institucional.

Em seu espaço de apresentação trouxe sua principal característica: que é ser um

referencial teórico-metodológico para orientar as Ações Formativas dos Profissionais da Área

de Segurança Pública, independentemente da instituição, nível ou modalidade de ensino que

se espera atender. Seus eixos articuladores e áreas temáticas norteiam, hoje, os mais diversos

programas e projetos executados pela SENASP (BRASIL, 2009, p. 2).

Com a Matriz Curricular Nacional na sua primeira revisão em 2005 foram agregados

ao trabalho realizado pela SENASP outros dois documentos: as “Diretrizes Pedagógicas para

as Atividades Formativas dos Profissionais da Área de Segurança Pública”, um conjunto de

orientações para o planejamento, acompanhamento e avaliação das Ações Formativas, e a

“Malha Curricular”, um núcleo comum composto por disciplinas que congregam conteúdos

conceituais, procedimentais e atitudinais, cujo objetivo é garantir a unidade de pensamento e

ação dos profissionais da área de Segurança Pública (BRASIL, 2009, p. 2).

No período de 2005 a 2007, a SENASP, em parceria com o Comitê Internacional da

Cruz Vermelha, realizou seis seminários regionais denominados Matriz Curricular em

Movimento, destinados à equipe técnica e aos docentes das academias e centros de formação.

As reflexões realizadas tiveram como base os três documentos citados anteriormente.

Esses seminários possibilitaram apresentar fundamentos didático-metodológicos

presentes na Matriz, a discussão sobre as disciplinas da Malha Curricular e a transversalidade

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dos Direitos Humanos, bem como reflexões sobre a prática pedagógica e sobre o papel

intencional do planejamento e execução das Ações Formativas (BRASIL, 2009).

Após esses procedimentos conjuntos, no ano de 2008 foi apresentada uma versão

modificada e ampliada da Matriz Curricular Nacional para ações formativas dos profissionais

da área de Segurança Pública, que traz também as Diretrizes Pedagógicas e a Malha

Curricular com alterações nas cargas horárias das disciplinas e o acréscimo de duas novas

disciplinas: Prevenção, Mediação e Resolução de Conflitos e Mobilização Comunitária.

Diante disso, os princípios apresentados pela Matriz foram preceitos que

fundamentaram a concepção das Ações Formativas para os profissionais da área de Segurança

Pública. Para efeito didático, eles estão classificados em três grandes grupos:

Ético – os princípios contidos neste grupo enfatizam a relação existente entre as

Ações Formativas e a transversalidade dos Direitos Humanos, contribuindo para

orientar as ações dos profissionais da área de Segurança Pública num Estado

Democrático de Direito.

Educacional – os princípios contidos neste grupo apresentam as linhas gerais sobre

as quais estarão fundamentadas as Ações Formativas dos Profissionais da Área de

Segurança Pública.

Didático-pedagógico – os princípios deste grupo orientam as ações e atividades

referentes aos processos de planejamento, execução e avaliação utilizados nas Ações

Formativas dos Profissionais da Área de Segurança Pública (BRASIL, 2009, p. 12).

Assim, essas proposições apresentadas trouxeram perspectivas para que o profissional

de Segurança Pública entenda que a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana é

uma obrigação do Estado e do governo em favor da sociedade e que o policial é um dos

agentes da promoção e proteção desses direitos.

Esses parâmetros das ações formativas de Segurança Pública, estabelecidos com base

na Matriz, têm como objetivo geral favorecer a compreensão do exercício da atividade de

Segurança Pública como prática da cidadania, da participação profissional, social e política

num Estado Democrático de Direito, estimulando a adoção de atitudes de justiça, cooperação,

respeito à lei, promoção humana e repúdio a qualquer forma de intolerância (BRASIL, 2009).

Diante desses propósitos, as áreas temáticas apresentaram os conteúdos indispensáveis

às ações formativas, que devem estar alinhados ao conjunto de competências conceituais,

procedimentais e atitudinais. Assim os mapas favorecem a identificação de:

Conteúdos conceituais (leis, teorias e princípios); disciplinas pautadas na dimensão

conceitual – Abordagem sócio-psicológica da violência e do crime, Criminologia Aplicada à

Segurança Pública, Fundamentos de Gestão Integrada e Comunitária, Sistema de Segurança

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Pública no Brasil, Fundamentos de Gestão Pública, Fundamentos dos Conhecimentos

Jurídicos, Gestão da Informação, isso equivale a 35% das pautas de formação policial.

Conteúdos procedimentais (habilidades técnicas, administrativas, interpessoais,

políticas e conceituais traduzidas em métodos, técnicas e procedimentos); disciplinas pautadas

na dimensão procedimental – Língua e Comunicação, Telecomunicações, Sistemas

Informatizados, Preservação e Valorização da Prova, Primeiros Socorros, Análise de Cenários

e Riscos, Prevenção, Mediação e Resolução de Conflitos, Mobilização Comunitária,

Gerenciamento Integrado de Crises e Desastres, Uso da Força, cujo total de conteúdo equivale

a 41% das pautas da formação policial.

Conteúdos atitudinais (valores, crenças, atitudes e normas); disciplinas pautadas na

dimensão atitudinal – Ética e Cidadania, Relações Humanas, Saúde e Segurança aplicada ao

Trabalho, Direitos Humanos, que equivale a 24% dos conteúdos de formação policial. Esses

percentuais das disciplinas, segundo a Matriz, procuram estabelecer possibilidades de

equilíbrio entre os conteúdos propostos e norteando o trabalho em sala de aula (BRASIL,

2009).

Mesmo com essas propostas de mudanças, ficou difícil observar uma transformação

nas práticas educativas dos policiais militares, pois o montante em percentual entre a situação

conceitual (leis, teorias e princípios – 35%); e procedimental (habilidades técnicas,

administrativas, interpessoais, políticas e conceituais traduzidas em métodos, técnicas e

procedimentos – 41%) é de 76%, isto corresponde às práticas de formação e qualificação no

patamar profissional/técnico enquanto a situação atitudinal (valores, crenças, atitudes e

normas, questões voltadas à ética, aos direitos humanos etc.), como possibilidade de

transformar o olhar policial, corresponde a 24% das ações formativas.

Mesmo com essas propostas de transformações na formação policial militar,

prescritas na Matriz Curricular Nacional, persiste a prática de uma formação técnico-

profissional, isto é, a potencialidade, a criatividade, a autonomia e a humanização das ações

policiais, provavelmente não irão avançar como devem ser no ambiente democrático.

Outra dimensão preocupante é o tratamento dado aos militares estaduais analisada pela

Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) do Ministério do Trabalho, utilizada pela Matriz

Curricular Nacional. A CBO classifica o cabo e soldado como homens de execução da Polícia

Militar que para o exercício dessas ocupações policiais militares precisam ter escolaridade de

nível médio e qualificação profissional de nível técnico (BRASIL, 2002a).

Na percepção dessas dimensões parece haver uma resistência em propor uma

formação mais aberta ao policial militar, apesar da boa vontade da política pública nacional e

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estadual. Mesmo com as mudanças propostas pela Matriz Curricular Nacional, o documento

mantém uma postura de formação no âmbito tradicional, corroborado pela análise da CBO em

uma formação técnica/profissional.

A CBO enfatiza as habilidades técnicas e as atividades a serem realizadas pelo

policial militar, porém não fornece alternativa para o militar pensar seu papel como sujeito

social e político no espaço que ocupa. Com esse referencial técnico-profissional, o policial

militar provavelmente continuará abordando a minoria, negros e pobres, com preconceito e

discriminação, agindo conforme o seu entendimento das normativas, por exemplo, o poder de

polícia.

Portanto, a prevalência apresentada nessa formação policial militar está em uma

circunstância de relação hierárquica verticalizada onde Ludwig (1998, p. 42), propõe uma

formação nas funções policiais sem o desenho da verticalização hierárquica: “Norberto

Bobbio, o grande pensador político da atualidade, ao defender o processo de alargamento da

democracia na sociedade contemporânea, propõe que ela deve alcançar as relações entre o

oficial e o soldado”.

Esse alcance entre essas funções está no princípio de que o oficial deve tratar o

soldado no campo funcional em relação à hierarquização vertilicalizada, mas na proposta

formativa a hierarquia permanecerá verticalizada, isto é, o oficial manda e o soldado obedece.

Nesse sentido, as dimensões dos saberes da Ética e dos Direitos Humanos tornam-se invisíveis

diante dos estudos técnicos e forenses, possibilitando a manutenção pedagógica centrada no

professor/instrutor que tem a tendência de valorizar as relações hierárquicas verticalizadas que

por sua vez mantêm a produção de soberanos. Nessa concepção, a arbitrariedade continuará

prevalecendo contra a sociedade, em especial o sujeito negro.

Nesse sentido, é possível observar que a educação desses policiais militares ainda se faz

pelo que Goldstein (2003, p. 362) denomina de “educar o recrutado e não recrutar o

candidato”. Essa colocação de Goldstein (2003) propõe uma perspectiva de análise voltada à

reflexão do saber democrático em relação ao saber técnico na formação do policial militar.

Essa questão do saber do recruta policial militar técnico ficará sem reflexão social, pois esse

recrutamento (concurso público) e consequentemente a formação ficará por conta desse

aparato técnico permanecendo a característica fundamental do militar, o controle por meio da

hierarquia e disciplina.

Essa reflexão nas análises de Goldstein (2003) tem como princípio a formação

reflexiva e de uma prática democrática entre o policial militar e a sociedade. Isso é possível

com uma formação de nível superior, já que esse tipo de formação adicionado à formação

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policial militar possibilitará o aumento do seu grau de abstração permitindo ações com

respeito às diferenças de gênero, classe, pensamento, crenças e etnia, possibilitando práticas

policiais de proteção aos direitos individuais dos cidadãos.

A respeito dessas questões formativas não há pretensão de negar a importância dos

procedimentos técnicos repassados durante a formação policial militar, no que concordamos

com Muniz (1999), mas enfatizar que, embora haja necessidade da utilização das técnicas

apreendidas na academia no cotidiano das ações e práticas policiais, não significa o uso dessas

ações de cunho permanente, algumas vezes é preciso uma nova “roupagem” que deve levar

em consideração, algumas características individuais do militar como a sua personalidade, a

sua vivência pessoal, o seu interesse, a sua disposição para o trabalho, os seus talentos. Essa

nova roupagem possibilitará outras reflexões sobre as abordagens ao sujeitos negros e pobres.

3.5 Como se tornar soldado na Polícia Militar

A seleção do candidato a policial militar é o primeiro passo para sua formação. Essa

seleção tem a característica de mexer com o imaginário do candidato a soldado, do uniforme e

da arma ao herói salvador. Essa imaginação fica mais fértil quando surge o edital para o

concurso policial militar, cujo documento parece indicar sua transformação em um novo Ser, a

quantidade elevada de candidatos, o processo com várias etapas, os vários lugares para servir,

enfim, tudo cria uma expectativa no candidato que imagina o mundo militar como uma

epopeia homérica, tanto que Rondon Filho (2011) expõe essa expectativa:

O mundo interno policial sempre permeou o imaginário popular quanto às técnicas

de ensino, currículo, meios auxiliares e outros aspectos empregados nos cursos de

formação profissional desse ‘ser policial’, em tese, preparado para lidar com

variados tipos de situações; estas oscilatórias, por exemplo, o chamado para a ajuda

em um parto e, logo em seguida, outro chamado onde pode acontecer até mesmo o

embate letal com um criminoso (RONDON FILHO, 2011, p. 118).

Essa dinâmica ofertada pela Polícia Militar torna-se a representação do candidato

desejoso de se tornar autoridade legitimado a portar arma de fogo, usar fardamento e outras

imagens “heroicas”, que na contribuição de Goffman (1992) pode-se perceber que há um

mecanismo de representação que é constituído de interações dos sujeitos por meio da

linguagem, gestos, olhares, verbalização e conduta, características de atitudes militares. Desse

modo, o autor utiliza a metáfora teatral, por considerar as pessoas como atores e define as

atuações dos indivíduos em suas interações, como se tratasse de uma obra de teatro. Enfim,

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utilizando da metáfora de Goffman (1992), o palco de formação policial militar torna o

ambiente que legitima o sujeito em uma nova expressão de representação social.

Essas impressões dos candidatos repousam nos requisitos para realizar o concurso de

soldado policial militar previsto em edital de concurso público que impregna a sensação de

“salvador da pátria” com as várias atividades como homens da lei. Nesse recente Edital de

Abertura n. 002/2013 - SAD/SESP/MT, de 18 de novembro de 2013, estão elencados alguns

pontos importantes desses requisitos para se tornar policial militar do Estado de Mato Grosso:

Algumas Atribuições: I - Atuar em alinhamento à missão, visão, valores, doutrinas,

diretrizes institucionais e legislação específica; [...] Realizar policiamento ostensivo

através das modalidades (policiamento: de trânsito, ostensivo geral, guarda,

ambiental etc. e processos a pé, montado, embarcado etc.); VI - Participar de ações

extraordinárias, quando solicitado, com o objetivo de promover a ordem e segurança

pública; [...] Realizar busca pessoal em caso de fundada suspeita e/ou flagrante

delito, se necessário conduzir à delegacia para realização dos trâmites legais; [...]

Manipular os armamentos através de procedimentos de segurança a fim de evitar

acidentes (MATO GROSSO, 2013).

Além disso, o edital deixa uma série de etapas para que o candidato se apresente nas

condições exigidas; esses procedimentos ativam a imaginação desses candidatos no exercício

de fazer cumprir as leis:

a) ter sido aprovado ou classificado no Concurso Público; b) ser brasileiro ou, em

caso de nacionalidade portuguesa, estar amparado pelo estatuto de igualdade entre

brasileiros e portugueses, c) possuir ilibada conduta pública e privada; d) estar quite

com as obrigações eleitorais; e) ser possuidor do Certificado de Dispensa de

Incorporação ou Certificado de Reservista das Forças Armadas, para os candidatos

do sexo masculino; f) não ter sofrido condenação criminal com pena privativa da

liberdade ou qualquer condenação incompatível com a função militar; g) não ter sido

isentado do serviço militar por incapacidade física definitiva; h) encontrar-se em

pleno gozo de seus direitos políticos e civis; j) apresentar diploma ou certificado,

devidamente registrado, de conclusão de ensino médio, fornecido por instituição de

ensino reconhecida pelo Ministério da Educação, comprovado através da

apresentação de original e cópia do respectivo documento; k) estar apto, física e

mentalmente, não apresentando deficiência que o incapacite para o exercício das

funções do cargo; l) ter idade mínima de 18 (anos) anos, na data da inclusão no

cargo, e máxima de 25 (vinte e cinco) anos até a data do encerramento das

inscrições; m) ter, descalço e descoberto, a altura mínima de 1,67m (um metro e

sessenta e sete centímetros), para os candidatos do sexo masculino e peso

proporcional à altura; [...] (MATO GROSSO, 2013).

Das Fases - O presente Concurso Público será composto de cinco fases distintas. São

elas:

1ª Fase: Exame Intelectual, de caráter classificatório e eliminatório; 2ª Fase: Teste de

Aptidão Física, de caráter unicamente eliminatório; 3ª Fase: Avaliação Psicológica,

de caráter unicamente eliminatório; 4ª Fase: Exame Médico-Odontológico, de caráter

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unicamente eliminatório; 5ª Fase: Investigação Documental e Funcional, de caráter

unicamente eliminatório (MATO GROSSO, 2013).

Os candidatos veem uma possibilidade de se tornarem especialistas em segurança

pública por meio do ensino padronizado e em suas ações incorporarem os papéis de suas

perspectivas representações sociais como combatentes do crime. Há uma ansiedade em ajustar

seus movimentos, sua conduta pessoal, sua fala com as particularidades do comportamento

militar. Essa representação, Berger e Luckman (2012) definem que para tornar-se policial é

necessário, em algum momento, romper com o universo primariamente construído.

3.6 O ambiente de formação policial militar: Centro de Formação e Aperfeiçoamento de

Praças

Após a seleção, cabe ao Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP)

propiciar a constante e adequada qualificação do policial militar, por meio do curso técnico

profissional e pelo treinamento, que visam à consolidação de valores sociais, morais e éticos;

compete-lhe, também, atualizar conhecimentos técnico-profissionais e conservar o vigor

físico, a agilidade e a destreza necessários ao desempenho da função policial militar.

O CFAP subordina-se à Diretoria de Ensino, Instrução e Pesquisa da Polícia Militar do

Estado de Mato Grosso e tem a responsabilidade da formação técnica e profissional, de nível

pós-médio, do quadro de praças da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso (PMMT), além

de desenvolver nos profissionais de Segurança Pública os seguintes valores:

I - integração permanente com a sociedade;

II - preservação das tradições e cultura policiais e bombeiros militares;

III - educação integral;

IV - assimilação e prática dos deveres, dos valores e das virtudes policiais e

bombeiros militares;

V - comportamento diferenciado dos reflexos e atitudes funcionais;

VI - atualização cientifica e tecnológica (MATO GROSSO, 2010).

O ensino no CFAP está inspirado nos preceitos constitucionais e ideais de

solidariedade humana, tem por finalidade o desenvolvimento e o preparo dos servidores

militares estaduais para o exercício da profissão, tendo como parâmetros os fundamentos da

hierarquia, disciplina, dos direitos humanos e da polícia comunitária.

A realização do treinamento policial militar assume fundamental importância para a

operacionalidade da corporação. A escola de formação deveria pautar pela necessidade de

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transpor paradigmas, possibilitar a ousadia de novas roupagens de formação, de currículo, de

novas perspectivas policiais militares. Neste formato, Cortella (2000) relata que:

assim como a dimensão pedagógica da capacidade de ensinar; a discussão sobre tal

dimensão envolve ainda temas mais amplos como a democratização da relação

professor-aluno, a democratização da relação dos educadores entre si e com as

instâncias dirigentes, a gestão democrática englobando as comunidades e, por fim,

como objetivo político-social mais equânime, a democratização do saber

(CORTELA, 2000, p.15).

O Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças como escola de formação deveria

apresentar essa formação democrática, porém permanece com uma formação do controle

disciplinar, e isso fica patente quando é apresentado ao aluno a soldado o Manual do

Aluno/CFAP/PMMT – reajustado em 2012, na qual estão os princípios militares que devem

ser cumpridas fielmente durante a formação.

Outros documentos são apresentados aos alunos: o Estatuto dos Servidores Militares

Estaduais (2005) e a Lei de Ensino da Polícia Militar de Mato Grosso (2010). Nesse primeiro

contato com a instituição, os alunos a soldado são submetidos à incorporação normativa na

intenção de traçar o perfil necessário para o desempenho das atividades inerentes à profissão

militar.

Além da normatização, outros comportamentos são demarcados: a parada diária – que

é uma formatura destinada à revista do pessoal, à verificação das alterações para o serviço

diário que é praticado todos os dias às 7h. Os integrantes da Divisão Administrativa (DIVA),

bem como o Corpo de Aluno do CFAP deverão ser postos em forma, para ser procedida a

revista às alterações (se está tudo bem ou não) pessoais [...] dos alunos em cursos.

Outro comportamento é o hasteamento e arreamento do Pavilhão Nacional – o

hasteamento do Pavilhão Nacional, símbolo da Pátria. É destinado a estimular, entre os que se

agrupam em torno dele, o elevado sentimento de sacrifício no cumprimento do dever de

cidadão e de policial militar. Diariamente ocorre o hasteamento da Bandeira Nacional [...]

com a participação de alunos em cursos.

O exercício desses comportamentos deve ser praticado cotidianamente, para que a

disciplina e a hierarquia sejam internalizadas no aluno: por exemplo, quando encontrar um

superior num local de circulação, o aluno saúda-o e cede-lhe o lugar; se o local de circulação

for estreito, o aluno franqueia a passagem ao superior, faz alto e permanece de frente para ele;

na entrada de uma porta, o aluno franqueia-a ao superior; se estiver fechada, abre-a, dando

passagem ao superior e torna a fechá-la depois e em local público onde não estiver sendo

realizada solenidade cívico-militar, bem como em reuniões sociais, o aluno cumprimenta, tão

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logo lhe seja possível, seus superiores hierárquicos; finalmente, havendo dificuldade para

aproximar-se dos superiores hierárquicos, o cumprimento deve ser feito mediante um

movimento de cabeça.

A prática desses comportamentos continua: o aluno, para falar a um superior, emprega

sempre o tratamento “Senhor” ou “Senhora”; todo aluno, quando for chamado por um

superior, deve atendê-lo o mais rápido possível, apressando o passo quando em deslocamento.

Ainda nesse quadro, as crenças religiosas, no CFAP, não podem ser exercidas em sua

plenitude. Na formação o aluno não deve ter tratamento diferenciado para os praticantes das

diversas religiões e crenças, nos cursos ministrados pela Unidade de Ensino da Polícia Militar

(UEPM). Os alunos praticantes de qualquer religião não deverão ser dispensados de qualquer

atividade escolar por motivo de religião ou crença. Qualquer falta ou atraso por motivo de

religião ou crença deverá ser apurado nos termos do Manual e do Regulamento Disciplinar da

Polícia Militar (RDPM).

O aprendizado não para durante o período de formação. O aluno tem muitos deveres,

conforme documentação do CFAP, perfazendo um total de 36, e alguns deles é importante

ressaltar: assistir integralmente a todas as atividades escolares previstas para seu curso,

capacitação ou estágio; cumprir os dispositivos regulamentares e as determinações superiores;

contribuir para o prestígio do CFAP; empenhar-se em práticas sadias, de higiene individual e

coletiva; servir na UEPM, com presteza, com correição de comportamento; respeitar a

hierarquia e a disciplina; agir com probidade e lealdade em todas as circunstâncias; valorizar

os símbolos nacionais e as tradições históricas das instituições militares estaduais; respeitar os

direitos e garantias dos pares, subordinados e superiores; dentre outros.

Diante dos deveres estão os direitos, sendo os direitos os maiores desafios dos alunos.

Ao todo são seis direitos e, dentre eles: ter acesso às verificações e aos trabalhos, realizados

logo que corrigido, dentro do prazo estipulado por este regimento e ainda solicitar revisão de

verificações ou trabalhos escolares; reunir-se com outros alunos para organizar, dentro do

CFAP, agremiações de cunho cultural, cívico, recreativo ou desportivo, nas condições

estabelecidas ou aprovadas pelo Comando.

O Centro de Formação deixa explícito que a disciplina e a hierarquia são pontos

fundamentais na formação profissional ligada à área militar. Torna-se necessário definir essa

pauta que constitui a base institucional da Polícia Militar.

Nesse aspecto, o policial militar em formação adentra uma nova perspectiva de vida, a

vida militar. Seus deveres são em número maior e seus direitos em número menor, e

provavelmente esses desencontros de foro íntimo e vivencial junto com as demais instruções

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irão romper com seu cotidiano habitual, colocando-o em um novo universo em construção.

Foucault (1999, p. 117) resume: “Foi expulso o camponês e lhe foi dada a fisionomia de

soldado” e Goffman (1992) sintetiza esse processo dizendo que é a mortificação do “eu”. Essa

é a configuração da experiência prática oferecida ao aluno a soldado no CFAP.

O Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças é lugar onde cotidianamente os

valores e símbolos da corporação são cultivados. No espaço de formação policial militar, a

primeira etapa de socialização do futuro policial se dá através do período de adaptação,

quando se realiza a socialização dos "recrutas", com a introdução de conhecimentos e

habilidades técnicas militares. Há o “conteúdo” de um processo profissional para "moldar" os

policiais, que inclui práticas de eventos ritualísticos e cerimoniais, uma espécie de estilo das

atividades a serem realizadas, e ideias comportamentais do mundo militar.

Nesse espaço educacional o relacionamento é hierarquizado, a violência (simbólica)

explicita-se na necessidade de obedecer a ordens, sem reflexão; no cumprimento de regras

discutíveis em um Estado Democrático de Direito, em “aceitar” comportamentos de

submissão em uma sociedade de iguais, mas que se mantêm nas relações internas das polícias.

No CFAP a atitude é de controle institucional que reflete sobre o aluno, de forma a

influenciar sua vida particular e sua vida familiar. O objetivo maior é fazê-lo perceber que se

trata de um indivíduo ligado a uma instituição diferente das outras, que sua vida depende de

seus colegas e, antes de tudo, eles são sua família. Família ordenada, regrada, por ordem,

hierarquia, companheirismo e horários determinados.

Na educação militar, destaca-se a importância da construção da identidade policial

militar, fundamentalmente como uma etapa que faz considerável diferença para a vida do

policial, na aquisição formal dos valores, normas e crenças próprias da profissão, das

competências e das habilidades para o campo de ação policial.

Nessa direção, é dispensado um excessivo tempo direcionado para atividade de Ordem

Unida e Educação Física Militar, e não por acaso, já que estas atividades desempenham papel

fundamental como exercício de internalização das regras e do ethos militar. Com a Ordem

Unida, o aluno soldado aprenderá os padrões coletivos de uniformidade, de sincronização e de

garbo militar.

A Educação Física Militar, que é outra preparação da condição física total do policial

militar, por meio de atividades físicas regulares e controladas pedagogicamente, passa a

mensagem de que para ser policial militar é preciso passar por provações, caracterizadas pelo

esgotamento e dor, sugerindo que esta será uma das condições para que os alunos possam se

tornar policiais militares, exercendo melhor sua profissão.

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Toda essa estrutura está voltada para a vida acadêmica dos alunos, interface com os

professores, instrutores e diálogo com a Diretoria de Ensino, Instrução e Pesquisa. Ainda, o

processo de avaliação de um aluno a soldado não se restringe ao seu bom desempenho

acadêmico no conjunto de disciplinas que é obrigado a cumprir. O processo de ensino-

aprendizagem na instituição carrega a marca militarista e implica sobretudo na internalização

do ethos militar, isto é, na disciplinarização (Foucault, 1999) dos alunos às regras desse

mundo, buscando efetivamente distanciá-lo das marcas que carrega do mundo civil.

Essa massificação de procedimentos legitima a configuração do corpo docente da

escola que é composto por professores e instrutores. Os primeiros assim classificados por

serem civis; os segundos são chamados de instrutores que são policiais militares e/ou militares

em geral. Destaca-se que no Curso de Formação de Soldado o corpo docente é composto

predominantemente por instrutores (policiais militares) indicados para ministrar as respectivas

aulas.

Essa prática educativa do CFAP ainda não contempla de forma satisfatória a

democratização na formação de soldado. Até este momento o desenho curricular permanece

ainda na envergadura tecnicista, prevalecendo a crença de que o controle, a coerção e a

suposta autoridade operacionaliza por meio da hierarquia e disciplina sobressaem sobre

quaisquer situações. Ainda, a formação continua fomentando uma educação de paradigma

militarista.

Esse paradigma desenha o currículo tradicional direcionando a formação policial

militar com o uso da força como prioridade. De acordo com Foucault (1999), as relações de

poder nas sociedades atuais têm essencialmente por base uma relação de força:

Em sua função une o poder absoluto do monarca às mínimas instâncias de poder

disseminadas na sociedade; pois, entre essas diversas instituições fechadas de

disciplina (oficinas, exércitos, escolas), estende uma rede intermediária, agindo onde

aquelas não podem intervir, disciplinando os espaços não disciplinares; mas que ela

recobre, liga entre si, garante com sua força armada; disciplina intersticial e

metadisciplina. “O soberano, com uma polícia disciplinada, acostuma o povo à

ordem e à obediência” (FOUCAULT, 1999, p. 177).

Nessa perspectiva, a formação do soldado policial militar no CFAP continua com

dificuldade em desconstruir o pensamento soberano, racista, que é a subjugação do “outro”,

postura antagônica à função de uma polícia cidadã. Nesse panorama da supremacia do ethos

militar, pressupõe-se que as abordagens policiais, consequência da formação, continuarão com

preconceito por parte de alguns policiais militares ao sujeito negro. Nessa concepção de

formação/técnica operacional, segundo Castilho (2011, p. 15), “não se contempla a história, a

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cultura, a religiosidade afro-brasileira e, quando o fazem [...] a abordagem tende a ser

distorcida, estereotipada e folclorizada”.

Outra questão que chamou a atenção foram os movimentos contraditórios sugerindo a

formação policial militar: a) a proposta da Matriz Curricular Nacional para um novo modo de

se pensar e fazer polícia; b) outro movimento, que é representado pela formação policial

militar de Mato Grosso e que ficou resistente às mudanças, apoderando-se do espaço

destinado pela regionalização contida na Matriz Nacional para o ensino em que prevalecem as

disciplinas técnicas, normalmente com carga horária superior, reproduzindo a polícia

tradicional, consubstanciando uma polícia de comportamento militarizante.

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CAPÍTULO IV - REFLEXÕES TEÓRICAS E ANALÍTICAS SOBRE RITOS,

HIERARQUIA, DISCIPLINA E PODER NA FORMAÇÃO E AÇÃO DO POLICIAL

MILITAR

4.1 Rituais de iniciação do policial militar

O objetivo deste capítulo é compreender as diretrizes utilizadas pelo militarismo como

mecanismo de transformação do sujeito, muitas vezes ‘ingênuo’, em ‘máquinas’ produtivas e

também subservientes em um contexto de prontidão permanente.

As diretrizes utilizadas pela estrutura militar como mecanismo de transformações são

os rituais que são realizados pelo Centro de Formação aos sujeitos para se tornar policial

militar e se constituem num momento de extraordinária repercussão para o aluno soldado, já

que a Polícia Militar oferece sua cultura, que nesta perspectiva torna-se um impressionante

ritual de passagem (GENNEP, 2011), celebrado no ambiente organizacional.

Os ritos se fazem presentes na caminhada do policial iniciante, no percurso de sua

formação: ritos de nivelamento (corte de cabelo e uniformização da indumentária) e ritos de

cerimônias. Entre estes, os momentos extracurriculares (treinamento repetitivo e permanente)

que sobressaem como um rito magno de passagem, pois este sintetiza o percurso do sujeito

civil para sua nova condição de identidade – policial militar.

Na formação policial militar o movimento de passagem é constituído por ações de

rotina e ações de ritual. Nesse sentido, os exames classificatórios, as cerimônias, os ritos

militares, as homenagens aos símbolos nacionais, estaduais e outros, podem ser considerados

rituais de formação. Segundo Roberto DaMatta (1997):

O ritual é a colocação em foco, em close up, de um elemento e de uma relação. [...]

E, de fato, entender as relações básicas do mundo social é, automática e

simultaneamente, entender o mundo ritual. Os rituais dizem as coisas tanto quanto as

relações sociais (sagradas ou profanas, locais ou nacionais, formais ou informais).

Tudo indica que o problema é que, no mundo ritual, as coisas são ditas com mais

veemência, com maior coerência e com maior consciência. Os rituais seriam

instrumentos que permitem maior clareza às mensagens sociais (DAMATTA, 1997,

p. 85).

O autor alerta que não há ritualização que não utilize um mecanismo cujas intenções

são neutralizar, reafirmar ou pôr tudo “de cabeça para baixo” (Idem, p. 85). Esses passos dos

rituais registram-se de forma marcante na vida do aluno e da instituição, porque os tiram do

dia a dia rotineiro que já consideravam habitual. Com o passar do tempo ganham uma

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importância para o aluno muito maior do que aquilo que foi propriamente ensinado como

conteúdo curricular.

Esses movimentos ritualísticos são assegurados na atividade policial militar, tanto que

Berger e Luckmann (2012) asseveram que toda atividade humana que prossegue no tempo é

sujeita à formação de hábitos, os quais constituem o primeiro passo em direção à

institucionalização. O aluno futuro soldado adentra em atividade intensa e repetitiva,

estabelecendo o vínculo com a instituição militar. Nesse processo ocorre uma padronização

tanto das ações quanto dos atores nelas envolvidas. A instituição policial militar nesse aspecto

comportamental padronizado tem a tendência de passar de uma geração para outra, isto é,

quando a ação é retomada por pessoas que não participaram diretamente da elaboração do

padrão.

Tem-se a impressão que esse processo de socialização a que são submetidos os alunos

a policiais militares é a construção de barreiras simbólicas com o mundo externo. A identidade

policial militar deve ser visualizada, portanto o ritual é fundamental no desenvolvimento dos

alunos para vivenciar o padrão militar (SOARES e MUSUMECI, 2005), tornando-se iguais

entre si e diferentes dos demais, incorporando devidamente o papel a ser representado em

sociedade, valorizando-se “a criação de relações solidárias internas e recusando exigências de

fora”, segundo Goffman (1992, p. 180), como meio de permanência, garantia e sustentação da

existência da corporação e de seus componentes.

O Manual do Aluno (2012) do CFAP instrui como deve ser a identidade do policial

militar, rompendo com sua construção cotidiana para reconstruir o que considera a introjeção

de novo universo simbólico, então em algum momento o sujeito irá romper com o universo

primariamente construído e reconstruído por sua subjetividade (BERGER e LUCKMAN,

2012). Nessa mesma linha, Silva (2006) indica para que sejam incorporados nos atores os

papéis que possibilitem a representação social que determinará o seu comportamento social e

o controle de suas atitudes. Esse processo, nas unidades policiais militares, nada mais é que a

doutrinação do indivíduo (MARTINS e BULGACOV, 2006). Essa doutrinação acontece

transmitindo a ideologia que se aplica naquele contexto, padronizando suas ações em

conformidade com os interesses organizacionais (SILVA, 2006).

Esse processo ritualístico, segundo Roux (1983), é manifestado por meio do controle

de comportamento, das atitudes, do uniforme, submetendo a particularidade de cada pessoa a

formas de controle e a padrões de conduta que idealizam a obediência irrestrita aos

regulamentos e códigos de uma corporação, neste caso, policial militar.

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Esse processo de ritos ocorre na iniciação do curso a soldado como fabricação do

formato de atuação profissional (CUNHA, 2004). A partir dos mais variados rituais de

exposição do indivíduo, demonstra-se o que se espera de um policial militar. O conjunto de

atitudes que não o exporá de forma negativa perante seus pares, subordinados e superiores de

representação. Demonstra, ainda, que o indivíduo, policial militar, fique em posição de

distanciamento em relação aos demais membros da sociedade, preservando, supostamente, a

instituição, seus componentes e os seus valores.

Ainda mais, com a iniciação o aluno policial militar é incluído no grupo social ao qual

pertence Goffman (1992), assumindo para si as interpretações e conclusões sobre o papel que

tem a desempenhar em sociedade. O soldado torna-se uma figura ideal, um homem

condicionado. Para tanto, a instituição corrige as posturas indesejadas e se apropria do

indivíduo (FOUCAULT, 1999). A conduta do soldado está pronta e em conformidade com as

normas descritas pelos códigos da Polícia Militar.

Os ritos têm maior importância que a aprendizagem de determinadas competências

para o exercício da profissão policial militar, assim, é necessária uma reconstrução do self

(SILVA, 2006), e mais a conversão identitária do sujeito social, transformando a si mesmo e

incorporando novo conjunto de ideias, concepções e valores a respeito do novo papel que

deverá desempenhar como policial militar.

Os rituais e as cerimônias são experiências transformadoras que imitam o suplício por

meio de castigo corporal, em que o superior hierárquico procura demover dos alunos a

vontade de questionar. Ordenados a participar dos ritos militares, os iniciados são obrigados a

assumir seu papel de policial militar. A sujeição do corpo é uma estratégia de enfrentamento

seguro ao inimigo. Essa sujeição está pautada na disciplina hierárquica, em que ficam

impressos os ritos e as cerimônias, desenvolvidos na jornada militar.

Como os ritos operam com o contexto onde tudo se aproveita, então há uma

prepotência representativa nessas ocasiões. Diante disso, nessas operações educativas os

instrutores militares não hesitam em “castigar”, especialmente na ordem unida e educação

física militar, aquele que problematiza sua validade ou sua condução. Conduta que não deve

ser questionada, portanto, essa ação educativa é o passaporte para o condicionamento presente

nas cerimônias e nos rituais contumazes, em que os recrutas recebem esse adestramento

corporal gratuito e sem sentido para a função policial, o que provavelmente será reproduzido

em uma das abordagens policiais.

Nesse sentido, a perspectiva da Polícia Militar, por meio da iniciação, é garantir o

sujeito em seu grupo de pertencimento tirando-o da sociedade com o objetivo de manipular

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sua consciência e alcançar o que Goffman (1992) considera como parte do processo de

ressocialização: que consiste na fragilização da identidade social do indivíduo, tornando-o

militar.

Mais tarde, provavelmente essa violência será confirmada na atitude de alguns

policiais que irá refletir na relação polícia e sociedade, em especial na parcela negra, pobre e

excluída, isto é, a minoria. Afinal de contas, os policiais militares aprenderam que alguma

violência pode compensar a sociedade em termos de segurança.

4.2 Manutenção da configuração militar: a disciplina

A característica militar se concretiza com alguns aspectos, dentre eles a disciplina,

além disso a utilização desse contexto militar se evidencia para além do uso da força ou de

qualquer outro tipo de violência ostensiva, pois a estratégia utilizada é o poder disciplinar que

é a vigilância total. A intenção dessa disciplina é atingir a vigilância produtiva, que é a técnica

capaz de efetuar manobras de poder; conforme Foucault (1999), uma espécie de observatório,

capaz de tornar visíveis os indivíduos sob vigilância.

A disciplina é muito eficaz como técnica de transformar indivíduos em objetos e em

instrumentos de combate. Daí que a ótica hierárquica dos indivíduos é uma ferramenta sutil

utilizada pelo poder disciplinar para transformar os sujeitos reféns do seu exercício policial

militar.

O poder disciplinar tem uma competência capaz de estar sempre alerta, visualizando e

sabendo de tudo, através do controle contínuo e esquadrinhamento dos indivíduos, pelo qual

todos exercem certa vigilância sobre todos. “[...] O sucesso do poder disciplinar se deve sem

dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua

combinação num procedimento que lhe é específico – o exame”, neste contexto com a função

de constantes inspeções e de manobras repetidas, para desenvolver um saber tático através da

disciplina/subjugação do corpo. Controlar a mente através do controle do corpo

(FOUCAULT, 1999, p. 143).

O mesmo autor enfatiza que as vigilâncias hierarquizadas encontram-se materializadas

nas arquiteturas. Para o olhar da vigilância só é possível por encontrar apoio na forma como

são dispostas espacialmente as instituições disciplinares. A configuração espacial é pensada

para tornar mais visíveis os que nela se encontram, e funciona como uma arquitetura cujo

objetivo é transformar os indivíduos em seu aspecto uniforme. A atitude que modifica os

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indivíduos, que produz efeito de poder sobre eles, que exerça domínio sobre os

comportamentos desses indivíduos.

É assim nos hospitais, asilos, prisões, escolas, acampamentos militares e outras

instituições totalitárias. Instituições que trazem “um modelo de estrutural ou, pelo menos, o

princípio de estrutura que as sustenta: o desenho espacial das vigilâncias hierarquizadas”

(FOUCAULT, 1999, p. 144). São, portanto, instituições disciplinares que produzem um

conjunto de controle de comportamento através da observação, do registro e treinamento

repetitivo dos indivíduos. Instituições que conformam o que Foucault (1999) denominou de

“estabelecimento circular”; tão circular que é capaz de fazer com que o olho do poder vigie

efetiva e permanentemente tudo.

Um elemento que maximiza os efeitos desse poder disciplinar é a estrutura piramidal/

hierarquizada da instituição Polícia Militar, pois permite a organização de uma vigilância

escalonada. Assim, o poder disciplinar amplia a sua prática sutil e, consequentemente, a sua

função produtiva. Isso porque torna a vigilância mais hierárquica e mais funcional, pois as

consequencias do olhar hierárquico são mais produtivas e eficientes nas instituições

disciplinares.

O exercício do poder disciplinar inicia-se com o condicionamento do corpo tornando-o

dócil e em máquina humana, utilizando o corpo como uma simbiose entre objeto e alvo de

poder. Uma instituição militar com base na disciplina não significa uma forma de organização

ou justaposição dos cargos policiais militares, mas formas de adestramento de pessoas ou

seres ditos racionais.

“O homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da

alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de

“docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que

pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e

aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de

ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder:

obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem

treinados e dos longos exercícios (FOUCAULT, 1999, p.118).

Foucault (1999) retrata a força que o poder exerce sobre o indivíduo e serve de

comprovação o domínio que esse mesmo indivíduo tem sobre seu corpo. Esse processo, na

Polícia Militar, inicia-se com a formação, nas práticas de educação física militar na condição

de testes de resistência física e mental e ordem unida, em que os alunos são submetidos e

mostram claramente o poder de persuasão que um indivíduo exerce sobre si mesmo e sobre

outros.

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Outro viés da disciplina é a hierarquia, que para Goffman (1999) é uma das

características das instituições totais que apresentam e reforça em seu interior, é a distinção

entre quem comanda e quem é comandado – em relação à Polícia Militar, seus dirigentes são

designados por postos (oficiais – coronel, tenente-coronel, major, capitão e tenente – homens

de comando), e os dirigidos, por graduações (praças – subtenentes, sargentos, cabos e

soldados – os dois últimos exclusivamente homens de execução). Uma das funções dessa

hierarquização é descaracterizar os subordinados de sua própria personalidade. Normalmente

esse intuito é alcançado por meio do controle das dimensões de vida desses profissionais.

Essas dimensões são pontuadas no Estatuto dos Militares do Estado de Mato Grosso.

Estatuto da Seção II - Das Carreiras Militares Estaduais - Subseção I - Do Nível Hierárquico

Superior:

Art. 12 - O nível hierárquico superior das carreiras militares é composto pelos

Oficiais das instituições militares estaduais.

§ 1º - O Aspirante-a-Oficial PM/BM, também denominado Praça Especial, para os

efeitos desta lei complementar, compõe nível hierárquico superior das carreiras

militares.

§ 2º - O ingresso no nível hierárquico superior das carreiras militares dar-se-á como

aluno-a-oficial da instituição militar estadual, para o Quadro de Oficiais Combatente

(QOCPM/QOCBM) e de Saúde (QOSPM/QOSBM).

Subseção II - Do Nível Hierárquico Médio

Art. 13 - O nível hierárquico médio das carreiras militares é formado por praças das

instituições militares estaduais.

Art. 39 Todo cidadão, ao ingressar nas instituições militares estaduais, prestará

compromisso de honra, no qual afirmará a sua aceitação consciente das obrigações e

dos deveres militares e manifestará a sua firme disposição de bem cumpri-los.

Art. 40 O compromisso a que se refere o artigo anterior terá caráter solene e será

prestado na presença de tropa, tão logo o militar estadual tenha adquirido um grau de

instrução compatível com o perfeito entendimento de seus deveres como integrante

das instituições militares estaduais, conforme os seguintes dizeres: Ao ingressar

na(o) Polícia Militar do Estado de Mato Grosso/Corpo de Bombeiros Militar do

Estado de Mato Grosso, prometo regular a minha conduta pelos preceitos da

moral, cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver

subordinado e dedicar-me inteiramente ao serviço militar estadual, à

preservação da ordem pública e a segurança da comunidade, mesmo com o

risco da própria vida (grifo nosso) (MATO GROSSO, 2005).

Essa dimensão assevera o fortalecimento da característica piramidal da disciplina e

hierarquia, cujo propósito firma o pacto de cooptação da Polícia Militar e seus componentes

que ficam cada vez mais patentes, conforme se observa no Juramento Policial Militar no

artigo 40 acima descrito.

O juramento institucional assegura a demarcação de duas dimensões na corporação

policial militar: a disciplina/hierarquia e o cumprimento da ordem, pois todo ato tem um

sentido de ser, tem uma explicação mínima às origens de sua causa, de maneira que acabam

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por moldar uma determinada ação institucional. Na concepção de Berger e Luckman (2012),

há uma “explicação aproximadamente adequada” como legitimação desse controle

institucional, e o “controle institucional” que representam o sistema sob o qual essas

dimensões encontram sustentação de sentido.

A legitimação “explica” a ordem institucional outorgando validade cognoscitiva a

seus significados objetivados. A legitimação justifica a ordem institucional dando

dignidade normativa a seus imperativos práticos. É importante compreender que a

legitimação tem um elemento cognoscitivo assim como um elemento normativo. Em

outras palavras, a legitimação não é apenas uma questão de “valores”. Sempre

implica também “conhecimento” (BERGER e LUCKMAN, 2012, p. 124).

Esses movimentos de legitimação dão a ideia das organizações totais em que se busca

uniformidade em tudo o que concerne à vida dos indivíduos, e isso nos leva a refletir sobre

essa legitimação na Polícia Militar, como o modo de se vestir profissionalmente, dos gestos

marciais, das posturas eretas etc., além das atividades diárias (a comida, o tempo de trabalho

etc.) é regulamentado no interior da instituição, e muitas vezes os policiais não têm como

dispor de liberdade pessoal para planejar suas vidas. A intenção militar é que corpos, gestos e

movimentos estejam em sincronia para que possam ser observados e disciplinados.

Essas atitudes hierárquicas fazem parte do funcionamento da Polícia Militar que são

exigências para o cumprimento disciplinar. Essas exigências muitas vezes levam ao

distanciamento no relacionamento cotidiano entre oficiais e praças, essa obrigatoriedade

exagerada em manter a postura corporal (o corpo sempre ereto, sempre a postos), usar a

formalidade militar sem estar atento às condições do sujeito no momento (psicológica,

emocional, clínica) e, ao utilizar essas formalidades, às vezes desnecessárias, tornam-se as

relações entre os componentes da Polícia Militar desgastadas, mantendo a imposição como

elemento regulador entre pessoas comprometidas em servir à sociedade como profisssionais

da Segurança Pública.

Mas, essas manifestações disciplinares tendem à observação e ao cumprimento de seus

deveres, conforme prescreve o Estatuto dos Militares, na subseção I – Dos Deveres

Fundamentais do Policial Militar do Estado de Mato Grosso:

Subseção I - Dos Deveres Fundamentais

§ 1º - O militar atua junto à comunidade e nunca deverá ser instrumento de grupos

ou instituições, devendo conhecer os limites que as leis impõem para o exercício de

suas atribuições.

§ 2º - São deveres fundamentais do militar estadual:

I - servir à comunidade e prestar-lhe segurança;

II - respeitar a hierarquia e a disciplina;

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IV - dedicar-se integralmente à atividade militar estadual e à Instituição a que

pertence, mesmo com o risco da própria vida;

V - exercer a atividade militar estadual com zelo e honestidade;

VII - valorizar os símbolos nacionais e as tradições históricas das instituições

militares estaduais;

[...]

XVII - tomar providências para reprimir atos ilegais, antiéticos, contrários à

disciplina ou que comprometam a hierarquia;

[...]

XXI - apresentar-se no trabalho com as vestimentas adequadas ao exercício de suas

atribuições;

XXII - manter-se atualizado com as instruções e normas de serviço, bem como a

legislação pertinente às instituições militares estaduais;

XXIII - cumprir, de acordo com as instruções e normas de serviço, suas atribuições;

XXIV - facilitar a fiscalização de seus atos por quem de direito;

[...]

XXVII - zelar pelo prestígio e pela dignidade da corporação;

XXVIII- cumprir as obrigações e ordens (MATO GROSSO, 2005).

A disciplina tem a intenção de homogeneizar a conduta do policial militar para que

haja compatibilidade administrativa, e que seja utilizada como ferramenta de excelência no

desenvolvimento funcional. Por isso, é necessária a disciplina nos atos e nos gestos para se

buscar resultados profissionais eficazes. Nessa direção Foucault (1999) diz que o poder

disciplinar é tão forte e eficaz nas instituições totalitárias que chega a promover indivíduos

que dela fazem parte em um espaço útil e, ao mesmo tempo, controlador e disciplinador.

Essa ação disciplinar “aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de

utilidade) e diminuem essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” a sua

sujeição e, principalmente, sua transformação em um corpo útil que, quanto mais útil se torne,

mais obediente se apresente (FOUCAULT, 1999, p. 119). [...] E acrescenta: “um corpo bem

disciplinado é a base do gesto eficiente” (Idem, p. 30).

Um corpo disciplinado, instrumentalizado, utiliza gestos e movimentos com a máxima

rapidez e eficiência. O corpo disciplinado produz um tempo disciplinado. Esse tempo

disciplinado é valorizado, o tempo é precioso na extração de mais forças úteis, portanto,

eficiência. Nesse sentido, os corpos são alvo de um poder disciplinar que os repartem e extrai

a máxima eficiência para alcançar com rapidez o resultado esperado nas funções

institucionais.

Essa característica disciplinar desejada pela Instituição Policial Militar é a

transformação do civil em militar, que preserva o corpo “sadio” e produz uma “identidade”

enquanto categoria social articulada em interesses corporativistas. Esse processo contribui

para o distanciamento do policial da sociedade, além de caracterizar uma instituição-exceção,

que garante a institucionalidade, mas que se reproduz para além de toda e qualquer ordem

institucional.

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Nessa relação da Polícia Militar com a sociedade, fica o poder estatal de um lado e a

obediência de outro. E, nessa perspectiva disciplinar, as ações policiais provavelmente

ocorrerão de forma estereotipada, pois a população classificada como minoria social sofrerá os

equívocos policiais militares.

4.3 A importância dos ornamentos no corpus policial militar

Parafraseando Foucault, o objetivo central da disciplina é fabricar pessoas aptas para

servir ao senhor, e isso causa um grande problema social e um grande conflito individual,

confundindo-se o objeto com o humano.

A disciplina surgiu simplesmente para adestrar o ser humano, legitimando o poder

através de suas instituições militares. O exemplo concreto desse fato são os policiais militares

que mantêm contato direto e imediato com toda a sociedade, com o escopo de usar a força

para manter a ordem e adestrar a sociedade com todos seus aparatos que simbolizam esse

poder.

Esse domínio disciplinar sobre o corpo o impulsiona ao campo político, além de

expandir o corpo. Essa expansão se fortalece por meio dos símbolos militares que se revelam

necessários e que criam um sentimento de pertencimento, fortalecendo a postura da

identidade: esse sentimento é recorrente já que a história estabelece a continuidade ou a

retomada desses heróis emblemáticos de virtudes nacionais, de monumentos culturais, de

lugares simbólicos, e de "representações oficiais como o hino e a bandeira", uma vez que

visualizam esses valores e seus conteúdos de autodefinição política e profissional, e é por

meio disso que suas identidades são reconhecidas. Por intermédio desses símbolos

onipresentes e facilmente identificáveis, "formam-se as almas" (JURT, 2014).

Nesse olhar sobre o simbólico e a formação das identidades, consta, em primeiro lugar,

que nas monarquias da Idade Média o rei representava a permanência da comunidade nacional

(JURT, 2014). Nesse viés elabora-se a reoria dos dois corpos do rei, nessa teoria, distinguia-se

entre o corpo natural e o corpo político. O primeiro era considerado submisso às leis

biológicas – indo da infância à velhice e, por fim, à morte –, ao passo que o corpo político era

invisível e onipresente. O rei como cabeça dessa comunidade encarnava tal continuidade

enquanto corpo político. A coroa simbolizava a instituição e não somente a pessoa do rei. A

máxima "O rei não morre jamais" era conhecida na França desde o século XVI e fora

traduzida em medalhas por meio da imagem da fênix que ressuscita das cinzas.

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Esses símbolos são necessários para permanecer fortemente na representação coletiva,

porque a nação não pode se reconhecer na pessoa do monarca que representa a autoridade da

comunidade política sem o símbolo do poder. Os soldados da Suíça republicana, por exemplo,

não podiam reivindicar os brasões de uma dinastia aristocrática sem portar como signo de

reconhecimento uma cruz branca que remetia a São Maurício, chefe da legião tebaica que

havia morrido como mártir. Esta imagem traduzia igualmente a autodefinição da

Confederação Helvética como "povo eleito" (CAPITANI apud JURT, 2014).

A elaboração da imagem, por meio dos símbolos, transforma a criatura dotando-a de

poderes divinos, tanto que Burke (1994) explica que o funcionamento de propaganda mostra

como a criação e a permanência da imagem ilumina a relação entre arte e poder. Os símbolos

são tão fortes, quando utilizados, que focalizam a imagem do indivíduo, possibilitando a

ocupação da imaginação coletiva. Quando se referiu ao Rei Luís XIV, o Rei Sol, essa relação

entre arte e poder foi disposta da seguinte maneira:

De um lado havia os escritores que pareciam conferir à imagem real seu valor

nominal, fossem eles poetas a escrever odes ao rei, historiadores a narrar suas

vitórias ou eruditos a descrever as decorações de Versailles. Descreviam estátuas e

outros monumentos como meios para “instruir o povo”, incentivando-o a amar seu

príncipe e obedecer-lhe (BURKE, 1994, p. 17).

Com a apropriação de símbolos se constrói a identidade de um grupo, de uma

comunidade, de um povo. Os símbolos são construídos para evidenciar uma proposta, para a

manutenção ideológica, perpetuação do poder, como se percebe nos símbolos militares.

Gonçalves (2014), na análise sobre a ditadura militar, esclareceu que as imagens foram

performances dos militares. A repressão e a presença ostensiva do Exército nas ruas

explicitam a construção de uma identidade urbana, em que as botas, o uniforme, os fuzis e os

capacetes passaram a ser símbolos da ordem e dos territórios controlados.

Esses aparatos utilizados pelo Exército também são utilizados pela Polícia Militar. A

espada – símbolo do oficialato, a farda, as insígnias (distintivos e condecorações), visam à

padronização da apresentação pessoal, à identificação do policial militar e seu respectivo grau

hierárquico. Esses símbolos determinam o grau da autoridade, constituem as características

marcantes da apresentação individual e coletiva. O uso desses ornamentos demonstra o alto

grau de disciplina e o orgulho pessoal do policial militar.

Esse ornamento corporal é tão importante na carreira do policial militar que há

regulamentação sobre o assunto. A Portaria n. 220/QCG/DGP, de 12 de agosto de 2013 –

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Aprova o Novo Regulamento de Uso de Insígnias, Distintivos e Condecorações na PMMT e

Dá Outras Providências, em seu Capítulo I – Das Normas Gerais, diz o seguinte:

Art. 1º O presente Regulamento tem por finalidade disciplinar o uso das insígnias,

dos distintivos e das condecorações na Polícia Militar do Estado de Mato Grosso.

Art. 2º O uso correto das peças citadas no artigo anterior é primordial à boa

apresentação individual e coletiva do pessoal da Polícia Militar, constituindo-se em

importante fator para o fortalecimento da disciplina, o desenvolvimento do espírito

de corpo e o bom conceito da corporação no seio da opinião pública [...].

Art. 3º As peças constantes deste regulamento são utilizadas para a composição dos

uniformes com vistas à identificação do usuário, distinção do seu círculo hierárquico,

posto ou graduação, sua condição em situações funcionais definidas, e, por vezes,

também para adequar o uniforme à operacionalidade da atividade específica.

Art. 4º As insígnias, distintivos e condecorações disciplinadas são as seguintes:

I – Insígnias – algumas delas:

a) Insígnias de postos ou graduações; e

II – Distintivos

b) Distintivo do brasão da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso;

c) Distintivo policial militar

f) Distintivo de comando, direção ou chefia;

g) Distintivos de curso ou estágio;

III – Condecorações.

a) Medalhas, colares, bandas e placas (PMMT, 2013).

As insígnias militares traduzem seus valores, e eles são estimados, conduzidos de tal

forma que refletem em seu comportamento, palavra e ação, a sua caracterização é a utilização

do poder coercitivo – o ethos. Esse aspecto é tão significativo que Geertz (2008, p. 93)

enfatiza: “O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e

estético [...] . O ethos representa um tipo de vida implícito no estado de coisas do qual esse

tipo de vida é uma expressão autêntica”.

Essa questão do símbolo é tão pertinente ao policial militar que torna uma relação

significativa entre os valores que se perpetuam em um povo e a “ordem geral da existência”

em que esse povo se encontra no fenômeno que supõe a participação de dimensões “implícitas

e diretamente sentidas”, orientadas para a “conservação da provisão de significados gerais em

termos dos quais cada indivíduo interpreta sua experiência e organiza sua conduta” (idem, p.

93).

Segundo Geertz (2012, p. 127), existe o reconhecimento de que as imagens de

governantes e deuses têm certas propriedades em comum, mas que atualmente tende a ser

chamado, de forma um tanto ou quanto vaga, de aspectos simbólicos do poder. Então, há um

estímulo na busca de universalidade do desejo dos presidentes, generais, policiais militares e

outras autoridades, desse poder através dos ritos e imagens em que ela se exerce: “o conteúdo

sagrado do poder soberano”.

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Esses símbolos fazem parte das imagens na demonstração de poder que fabrica reis.

Burke (1994, p. 78), ao relatar a organização de um espetáculo público na França em 1662,

descreveu a aparição do Rei Luís XIV montado em um cavalo como “imperador dos

romanos”, dentre outros símbolos, no seu escudo tinha a figura de um sol com a inscrição “tão

logo vi venci”. A figura do rei, por conta da indumentária e demais símbolos ornamentais, foi

bastante descrita nas memórias reais.

A utilização desses ornamentos pelo policial militar, por vezes, é um tanto similar a

essa representação da realeza, ainda mais por constituir uma camada de códigos na

supremacia da autoridade legitimada. Esses “ornamentos”: farda, insígnias, armas repousam

na construção/fabricação desse poder policial que é legitimado pelo Estado e a sociedade, e

essa oferta possibilita a crença de soberano.

Essa é a perspectiva do ethos militar que é identificado pelos símbolos regulamentares,

pelas condutas e pelos discursos atrelados a esferas morais, estéticas e afetivas, com feições

distintas e próprias, que norteiam as ações policiais e ajudam a conservar significados próprios

à função policial militar para agir e atuar com o poder constituído.

Esses símbolos seguidos dos códigos são particularidades do policial que são

adquiridos ao longo de seu processo de socialização. Essa manobra é tão persuasiva que em

determinado momento ninguém pode tocar em seus ornamentos sem sofrer repreensão. Essa

persuasão eficiente está na postura miliciana, já que a Polícia Militar pode-se dizer que foi e

continua sendo mais uma corporação militar do que uma organização policial.

Essa proximidade da Polícia Militar com o Exército, que é o meio de força

combatente, não se restringiu apenas à adoção do sobrenome "Militar", mas também como

organização paramilitar em defesa da hegemonia política e social. Por conta disso, a

importância e a imponência das “fardas” que representam trajes de combate. Além disso,

nessas fardas estão fixados diversos apetrechos, como uma tarja com o “nome de guerra”, as

divisas correspondentes aos graus hierárquicos e outras insígnias referentes à trajetória

institucional do policial. Essa configuração do guerreiro está travestida nos ornamentos que

representam o uso do poder, porém que muitas vezes é aplicado de forma arbitrária,

discriminatória e preconceituosa.

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CAPÍTULO V - O ESTADO E O PROCEDIMENTO POLICIAL MILITAR

Este capítulo tem o propósito de refletir sobre o exercício de poder utilizado pelo

Estado capitalista e sua influência em seus aparelhos estatais no sentido de perceber esses

reflexos nas ações policiais militares junto aos sujeitos brancos e negros.

O poder do Estado se manifesta por meio de mecanismos normativos e tem como

atributo a vigilância dos indivíduos e da massa. Nesta perspectiva, o domínio, a imposição do

medo tornam-se estratégias de controle. Dessa forma, segundo Elias (1994), o monopólio da

força física diminui o receio de um homem para outro, além de reduzir o temor a outros

homens.

Esse controle não é só monopólio da força física que irá modificar o comportamento

das pessoas, mas a modificação da estrutura de personalidade dos indivíduos, o aumento no

nível de controle dos impulsos individuais pode ser adequado pelo controle exercido pelo

Estado sobre o indivíduo, através de suas leis, ou também pelo controle exercido por outros

indivíduos no convívio social.

Esse controle do poder estatal é um viés apontado pela pesquisa crítica em educação

composto por diversas formas de pensamento e de análise dos fenômenos sociais, e levando-

se em conta as relações de poder nas ações de policiais militares no pensamento de Foucault e

visualizando a Polícia Militar como aparelho repressivo do Estado no pensamento marxista de

Althusser, há o entendimento da existência de uma aproximação entre o pensamento

foucaultiano e althusseriano. Daí a importância da presença de Althusser na pesquisa. Nessa

aproximação destacam-se, para o nosso interesse: a positividade do poder e a sutileza das

relações de poder.

A positividade do poder é uma característica marcante tanto no pensamento de

Althusser quanto no pensamento de Foucault. Ao analisar a divisão entre aparelhos

repressivos de Estado, que atuam com o predomínio da negação e da repressão, e os aparelhos

ideológicos de Estado, que agem muito mais de forma positiva pela utilização da ideologia,

demonstra-se que Althusser (2003) acredita que o poder pode ser exercido tanto de forma

negativa quanto positiva.

Contudo, Althusser (2003, p. 71) ao afirmar que “nenhuma classe pode duravelmente

deter o poder de Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia sobre e nos aparelhos

ideológicos de Estado”, bem como que a ideologia tem o papel de assegurar a harmonia entre

os aparelhos ideológicos de Estado e o aparelho repressivo de Estado, o filósofo está

afirmando a sua crença que o poder para ser eficaz necessita agir de forma muito mais positiva

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do que negativa por meio da ideologia e, consequentemente, dos aparelhos ideológicos de

Estado.

Foucault (1999) também demonstra que o poder para ser eficaz atua de uma forma

muito mais positiva do que negativa, isto é, o poder não quer somente negar e proibir, mas

produzir formas de vida, produzir corpos dóceis e úteis para a sociedade. Para o autor o poder

não pode ser explicado somente caracterizando-o como tendo uma função repressiva. O poder

não quer impedir que os homens exerçam suas atividades, mas sim gerenciar as atividades dos

homens.

Dessa forma, ambos os filósofos acreditam que o poder para ser eficaz age de uma

forma muito mais positiva do que negativa, contudo, para que esta positividade possa ser

exercida de forma a diminuir possíveis resistências dos homens ao exercício do poder, o poder

deve ser exercido de forma bem sutil.

Para Althusser (2003, p. 8-9) o Estado é o aparelho repressivo do próprio Estado; é

instrumento de manutenção da hegemonia. Althusser propõe um avanço na definição do

aparelho de Estado dividindo-o em repressivo e ideológico.

O aparelho repressivo de Estado (ARE) compreende: o governo, a administração, o

exército, a polícia, os tribunais, as prisões etc., que “funciona através da violência – ao menos

em situações-limite (pois a repressão administrativa, por exemplo, pode revestir-se de formas

não físicas)” (ALTHUSSER, 2003, p. 67-68). Os aparelhos ideológicos de Estado (AIE) se

apresentam através de instituições distintas (públicas e privadas) e especializadas tais como

igrejas, escolas, família, sistemas jurídico e político, sindicatos, veículos de comunicação,

cultura.

5.1 A Polícia Militar como aparelho do Estado

Em todas as sociedades existem sistemas estruturais básicos, condicionados por

injunções locais, espaciais e temporais do exercício sociopolítico. O Estado constitui um

desses sistemas e é uma figura abstrata criada pela sociedade. Também podemos entender que

o Estado é uma sociedade política criada pela vontade de unificação e desenvolvimento do

homem, com intuito de regulamentar, preservar o interesse público, e junto a ele se encontram

organizações instituídas para a execução de fins específicos. Neste caso, as ações da Polícia

Militar como controle individual e de massas na preservação da ordem.

Esse é o princípio que todo sistema tem para a manutenção de sua existência e por

onde deve reproduzir suas estratégias e condições na garantia e fortalecimento de sua

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existência. O objetivo permanente é “reproduzir as condições de produção ao mesmo tempo

que produz” (ALTHUSSER, 2003, p. 53), para que seja possível a existência desse sistema.

Essa é a essência pela qual toda luta em redor do poder de Estado se organiza.

É nesse sistema que o Estado, por meio desse aparelho, utiliza mecanismos legais,

tendo como atributo comum a vigilância da conduta dos indivíduos e da massa, onde,

paradoxalmente, o medo assegura a conduta socialmente correta. Sobre o medo, Elias (1994)

afirma que o processo civilizador avança na medida em que ocorre uma “limitação

progressiva de perigos externos”, tornando-os “mais calculáveis”, diminuindo e canalizando o

medo que eles provocam.

Uma vez que um grupo social detém o poder de gerenciar o aparelho de Estado, deve

articular estratégias para fomentar a manutenção desse poder e, para se livrar dos desvios de

comportamento que possam causar riscos, cria instituições fechadas para abrigar aqueles que

em virtude de uma atividade ou comportamento precisam ser isolados em manicômios e

prisões, definidas como instituições totais (GOFFMAN 1999).

Desse modo, todo processo de formação ideológica deve ser repassado aos grupos com

particularidades na medida de alcançar os objetivos, então:

Cada grupo dispõe da ideologia que convém ao papel que ele deve preencher na

sociedade de classe; papel de explorado (a consciência “profissional”, “moral”,

“cívica”, “nacional” e apolítica altamente “desenvolvida”); papel de agente de

exploração (saber comandar e dirigir-se aos operários: as “relações humanas”); de

agentes de repressão (saber comandar, fazer-se obedecer “sem discussão” ou saber

manipular a demagogia da retórica dos dirigentes políticos); ou de profissionais de

ideologia (saber tratar as consciências com o respeito, ou seja, o desprezo, a

chantagem, a demagogia que convém, com as ênfases na Moral, na Virtude, na

“transcendência”, na nação...) (GOFFMAN, 1999, p. 79-80).

O Estado é organizado por modelos que influenciam circunstâncias conjunturais. Ele

aparece como um sistema estrutural da sociedade, que interage com outro sistema constituído

por grupos militares, econômicos, sociais, ideológicos, religiosos, comunitários, culturais etc.

Esses grupos interagem também entre si e se estruturam, sobretudo, em organizações

hierarquizadas.

Assim, pode-se afirmar que este duplo funcionamento pela repressão ou pela ideologia

que se trata do aparelho de Estado ou dos aparelhos ideológicos de Estado, permite

compreender o fato de constantemente ocorrerem combinações sutis de forma explícita ou

implicita entre eles (ALTHUSSER, 2003).

Assim, o aparelho repressivo de Estado constitui um todo organizado no qual membros

diferentes encontram-se subordinados a uma unidade de comando. Na concepção de Althusser

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(2003), o Estado seria o instrumento de dominação de uma classe, e não lugar de contradição

e de luta. Ele aparece, portanto, como instância instrumental e exterior à luta de classes.

Althusser desloca a questão da instrumentalidade do Estado para a questão do seu

funcionamento.

A polícia militar enquanto aparelho de Estado não exerce função repressiva porque se

encontra em mãos de uma classe dominante ou de seus representantes, mas porque essa é a

sua essência, o seu próprio funcionamento é repressivo. É esse exercício sociopolítico que

corresponde à interação sociedade-Estado. À sociedade com a integração regulada de

indivíduos e grupos de indivíduos; ao Estado e suas instituições – inclusive a Polícia Militar –

cabe articular ações de como organizar a sociedade, codificar e decodificar suas regras,

identificar seus objetivos e atuar, neste caso, com as abordagens operacionais, em prol da

sociedade/Estado investida da devida autoridade.

Althusser (2003) traz o Estado e seus aparelhos ideológicos como “soberanos”. E os

sujeitos se submetem a esses senhores absolutos, ora por meio da repressão ora por meio da

ideologia. O agente, isto é, os integrantes do aparelho do Estado, se reconhecem enquanto

alguém que tem que se sujeitar por acreditar que há, naturalmente, um lugar determinado para

cada ator social na sociedade.

O agente se reconhece como sujeito e também se sujeita ao Estado e seus aparelhos

ideológicos. É que a sujeição, para Althusser (2003), é um mecanismo ideológico básico, por

isso a sujeição faz com que os sujeitos apareçam enquanto passivos aos aparelhos de Estado.

A sujeição referida por Althusser está no campo das ideias para apresentar-se como um

conjunto de práticas e rituais, que se encontra em um conjunto de instituições concretas. É

nesse ponto que a Polícia Militar se apresenta enquanto aparelho ideológico capaz de coagir

os indivíduos. A Polícia Militar, assim como todas as outras instituições (a escola, a igreja

etc.), tem a sua maneira peculiar de sujeitar os indivíduos à ideologia dominante.

Dessa forma, o Estado constrói o monopólio de força por meio de diversas práticas no

contexto social e, se é fato que se reafirma como ente de proteção da coletividade contra o

indivíduo, age com legitimidade decorrente do próprio indivíduo que receia ser alvo da

violência, assim também legitima o Poder do Estado, permitindo a criação de mecanismos de

controle e de sujeição.

Então a Polícia Militar evidencia uma representação do imaginário social que outorga

a legalidade atribuída ao Estado, isto é, o seu monopólio de força. “[...] se ele crê na justiça,

ele se submeterá sem discussão às regras do direito, e poderá mesmo protestar quando elas são

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violadas, assinar petições, tomar parte em uma manifestação etc.” (ALTHUSSER, 2003, p.

90).

Podemos perceber que essa outorga é uma constatação de que a representação

ideológica é reconhecida pelo sujeito que crê nessas ideias, aceitando-as sem pressão ou

imposição, assim intencionalmente ele as vai imprimir em seus gestos, palavras e ações

transformando as suas ideias em práticas cotidianas.

Por outro lado, essa intencionalidade será corroborada pela disciplina, contribuindo

para originar as chamadas instituições totais, por isso Goffman (1999) reafirma que a

disciplina funciona como instrumento de poder. Essa ideia possibilita compreender a Polícia

Militar enquanto instituição totalitária, em um processo de produção do poder disciplinar cujas

formas provavelmente estão longe de se extinguir em suas ações diante da sociedade

contemporânea.

Essa característica institucional dá abertura à existência de opressores e oprimidos,

sendo os opressores visualizados por meio de um sistema de regras formais explícitas que

apontam a direção burocrática de uns sobre outros e transformam os oprimidos em objeto de

procedimentos policiais (GOFFMAN, 1999). Nessa direção, a Polícia Militar, algumas vezes,

age como aparelho de coerção do Estado e cuja representação é a do opressor.

Nessa concepção de controle, ainda na perspectiva de opressor e oprimido, ao se

remeter à proposta de Agamben (2007) sobre o desenvolvimento do processo de genealogia

do estado de exceção, o autor identifica o fato de essas medidas excepcionais cada vez mais se

transformarem em técnicas normais de governo, e como resultado aparece um “espaço de

indeterminação” entre a democracia e o absolutismo, este em potência no estado de exceção.

“o paradigma da ditadura constitucional funciona, sobretudo, como uma fase de transição que

leva fatalmente à instauração de um regime totalitário” (AGAMBEN, 2007, p. 29).

É como se a normalidade do estado de exceção aumentasse progressivamente, sob a

determinação de um padrão de segurança à democracia, como técnica normal de governo.

Como se de certa forma o Poder Executivo se transformasse em Legislativo. Agamben (2007)

mostra com evidência que “o princípio democrático da divisão de poderes hoje está caduco e

que o Poder Executivo absorveu de fato, ao menos em parte, o Poder Legislativo” (Idem, p.

32).

Para Agamben (2007), se os Estados modernos agem conforme o modelo de governo

do estado de exceção, ao qual é inerente um caráter totalitário, o totalitarismo seria nada mais

que uma metamorfose, uma revelação dos próprios estados democráticos modernos.

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Nesse olhar, o poder de Estado parece expor determinada categoria de pessoas (negros,

pessoas em situação de rua, pobres, diferentes) que não coadunam, no plano dos regimes

democráticos, mas que são inerentes ao plano dos Estados absolutistas, como oprimidos.

Pensando nessa “guerra ofensiva” aos cidadãos discriminados, Bauman (1998) nos

estimula a compreender esse ambiente de exclusão literal, em que os judeus eram

considerados um perigo, contra o qual a nação alemã, chefiada por Hitler, tinha que lutar. O

Holocausto, o lado escuro de um mundo que lutava pela claridade, a ambiguidade de um

mundo ávido por certeza, foi, de fato, “construído como a viscosidade arquetípica do moderno

sonho de ordem e clareza, como o inimigo de toda ordem, velha, nova e, particularmente, a

ordem desejada” (BAUMAN, 1998, p. 78).

A crítica que Bauman (1998) faz à modernidade como excesso é mostrar-nos como o

sonho da razão legisladora produziu frutos amargos. Não há sociedade ordenada sem medo e

humilhação, não há domínio sobre o mundo sem que se pisoteie a dignidade e extermine a

liberdade, inexiste luta contra a desregrada contingência da condição humana que não faça

supérfluos, no final, os seres humanos.

Essa é a essência de um Estado totalitário, isto é, tornar os seres humanos redundantes,

dispensáveis como indivíduos, como seres privados da capacidade de pensar e escapar a

qualquer exercício classificatório que desconsidere a idiossincrasia e singularidade de cada

homem e mulher. A abordagem policial militar, ainda, carrega esses resquícios de Estado

totalitário diante do cidadão negro, pobre, mesmo na contemporaneidade.

5.2 A função policial militar e a sociedade

Apesar dessas práticas policiais, ainda, arbitrárias, Giddens apud Mainardi (2009),

nenhum Estado pré-moderno foi capaz de se aproximar do nível de concentração

administrativa dos Estados-Nação da modernidade, que se caracterizam pelas condições de

vigilância que têm para a supervisão das atividades da população, porque nem sempre o poder

político teve forças militares que o apoiassem de forma estável e nem sempre também

conseguiu manter o monopólio dos meios de violência, o que seria privilégio das civilizações

modernas. Sobre isso, Mainardi (2009) enfatiza que as polícias são como o olhar sem rosto do

poder político, que está em toda parte, colocando a população como se fosse a um único

campo de percepção.

As polícias fazem parte desse aparato e do controle dos meios de violência

funcionando como uma base do poder administrativo, enquanto os policiais se preocupam em

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manter o controle de “desvios” internos, além de serem utilizados (as polícias e os policiais)

para manter a ordem das relações internas de uma sociedade política.

Dessa forma, a Constituição brasileira traz em seu artigo 144, parágrafo 5°: “Às

polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública [...]”. Tornou-se

comum pensar polícia como organização que foi autorizada pelo Estado a fazer valer esse

monopólio político, por meio do uso da força – constrangimento físico. A polícia pode utilizar

a coerção física para manter a ordem e a segurança, dentro de um território político

determinado, através da aplicação de leis e regulação de conflitos interindividuais.

Por outro lado, os procedimentos policiais são realizados através de policiamento

ostensivo – aquele prestado por uma instituição pública que represente o Estado perante a

sociedade de maneira facilmente identificável, através de vestimenta e equipamentos próprios,

tendo como objetivos inibir a prática de ilícitos penais e desordens públicas de todo gênero,

bem como facilitar o acesso das ações policiais pelos usuários dos serviços que presta.

A Lei Complementar n. 386, de 5 de março de 2010, dispõe sobre a estrutura e

organização básica da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso. Em seu Capítulo I - Das

Generalidades - Seção I - Destinação, Subordinação e Competências, diz:

Art. 1º A Polícia Militar do Estado de Mato Grosso é força auxiliar e reserva do

Exército, organizada com base na hierarquia e na disciplina, [...] subordinada

diretamente ao Governador do Estado, [...] tendo por finalidade a polícia ostensiva, a

preservação da ordem pública, da vida, da liberdade, do patrimônio e do meio

ambiente, de modo a assegurar com equilíbrio e equidade, o bem-estar social, na

forma da Constituição Federal e da Constituição do Estado de Mato Grosso,

competindo-lhe:

I - executar com exclusividade, ressalvadas as missões peculiares das Forças

Armadas, e as ações investigativas inerentes à Polícia Judiciária Civil, o

policiamento ostensivo fardado, planejado pelas autoridades Policiais Militares

competentes, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a preservação da ordem

pública e o exercício dos poderes constituídos;

II - atuar de maneira preventiva, como força de dissuasão, em locais ou áreas

específicas, onde se presuma ser possível a perturbação da ordem pública;

III - atuar de maneira repressiva, em caso de perturbação da ordem pública e

precedendo o eventual emprego das Forças Armadas [...] (MATO GROSSO, 2010a).

Esses instrumentos, quando não compreendidos, normalmente são utilizados como

mecanismo de controle – a força, cuja ação encontra amparo no âmbito normativo: essa

legalidade está disposta na legislação internacional que trata do uso da força, a atenção está

voltada ao Código de Conduta para Encarregados de Aplicação da Lei (CCEAL) e aos

princípios básicos sobre o uso da força e armas de fogo (PBUFAF) por serem os instrumentos

internacionais de maior importância sobre o assunto.

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Sobre o CCEAL, foi adotado através da resolução 34/169 da Assembleia Geral das

Nações Unidas em 17 de dezembro de 1979. Esse código contém oito artigos que, de forma

resumida, dizem o seguinte:

Art. 1º – Os encarregados da aplicação da lei devem cumprir o que a lei lhes impõe,

protegendo todas as pessoas contra atos ilegais;

Art. 2º – Estes funcionários devem respeitar e proteger os direitos fundamentais e a

dignidade humana;

Art. 3º – Os encarregados de aplicação da lei somente poderão utilizar a força

quando for estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do

dever;

Art. 4º – Tratar corretamente com informações confidenciais;

Art. 5º – Proibição à tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos e

degradantes;

Art. 6º – Proteção da saúde das pessoas que se encontrarem sob a guarda dos

encarregados de aplicação da lei;

Art. 7º – Proibição da prática de atos de corrupção, bem como estes funcionários

deverão opor-se e combater tais práticas;

Art. 8º – Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem respeitar a lei e

este Código, bem como devem opor-se a quaisquer violações destes (ONU, 1979).

Os princípios básicos sobre o uso da força e armas de fogo – PBUFAF – foram

adotados no Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a “Prevenção do Crime e o

Tratamento dos Infratores”, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de

1990. Configuram-se no segundo instrumento internacional mais importante sobre o uso da

força e armas de fogo. Em suma, os PBUFAF destacam o seguinte:

1) Os governos deverão equipar os policiais com vários tipos de armas e munições,

permitindo um uso diferenciado de força e armas de fogo;

2) A necessidade de desenvolvimento de armas incapacitantes não letais para

restringir a aplicação de meios capazes de causar morte ou ferimentos;

3) O uso de armas de fogo com o intuito de atingir fins legítimos de aplicação da lei

deve ser considerado uma medida extrema;

4) Os policiais não usarão armas de fogo contra indivíduos, exceto em casos de

legítima defesa de outrem contra ameaça iminente de morte ou ferimento grave, para

impedir a perpetração de crime particularmente grave que envolva séria ameaça à

vida, para efetuar a prisão de alguém que resista à autoridade, ou para impedir a fuga

de alguém que represente risco de vida (ONU, 1990).

Na legislação nacional, o uso da força e, também, da arma de fogo vem regulado em

vários códigos, sendo eles os códigos Penal e de Processo Penal Brasileiro e os códigos Penal

e de Processo Penal Militar Brasileiro.

O Código Penal Brasileiro contém causas de exclusão da antijuridicidade, as quais se

encontram relacionadas no artigo 23: “Não há crime quando o agente pratica o fato: e seus

incisos: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento

do dever legal ou no exercício regular de direito”.

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O artigo 3º do CCEAL cuida especificamente do uso da força pela polícia. O artigo

explicita que os encarregados da aplicação da lei estão autorizados a fazer o emprego da força

quando estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever.

Enfatiza, ainda, que tal uso deve ser excepcional e nunca ultrapassar o nível razoavelmente

necessário para se atingir os objetivos legítimos da aplicação da lei. Neste sentido, entende-se

que o uso da arma de fogo é uma medida extrema.

O Código de Processo Penal Brasileiro traz os seguintes dispositivos relacionados ao

uso da força:

Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de

resistência ou de tentativa de fuga do preso.

Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em

flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor [...] poderá usar

dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência. [...].

O Código Penal Militar em vigor no país traz o artigo adiante: “Art. 42. Não há crime

quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em

estrito cumprimento do dever legal; IV - no exercício regular de direito”.

Por fim, o Código de Processo Penal Militar traz os seguintes dispositivos que tratam

do uso da força:

Art. 231. Se o executor verificar que o capturando se encontra em alguma casa,

ordenará ao dono dela que o entregue, exibindo-lhe o mandado de prisão.

Art. 232. Se não for atendido, o executor convocará duas testemunhas e procederá da

seguinte forma: sendo dia, entrará à força na casa, arrombando-lhe a porta, se

necessário; sendo noite, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável,

e, logo que amanheça, arrombar-lhe-á a porta e efetuará a prisão.

Art. 234. O emprego da força só é permitido quando indispensável, no caso de

desobediência, resistência ou tentativa de fuga. [...].

Esses instrumentos normativos foram formulados com o intuito de orientar, como

normas gerais, os Estados-membros quanto à conduta de suas forças policiais. É importante

frisar que ambos os instrumentos, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar,

sustentam ser legítimo o uso da força pelos policiais, mas desde que este uso seja pautado na

ética e na legalidade.

Para a preservação da ordem pública, Silva (2004) observa que dessa forma deveria ser

uma situação de pacífica convivência social, isenta de ameaça, de violência ou de sublevação

que tenha produzido ou que supostamente possa produzir, em curto prazo, a prática de crimes.

Com isso, o trabalho policial militar tem a finalidade de inibir o cometimento de delitos que se

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materializa na medida em que a presença do policial fardado, em tese, desestimula a ação de

criminosos por receio da intervenção imediata por parte da polícia.

Em relação ao estímulo à legalidade, a presença do policiamento ostensivo, em tese,

estimula os cidadãos a seguirem os caminhos legais, pela sensação de estarem sendo vigiados

e também porque se sentem mais seguros, tendo a quem procurar em casos de conflito, não

precisando agir por conta própria, atuando assim nos moldes legais.

Na prática, isso quer dizer que a polícia pode fazer uso de força ou demonstrar que tem

esse potencial suficiente contra qualquer pessoa ou grupo que tente desequilibrar as relações

sociais internas. Para melhor explicar essa definição: o policial militar, por exemplo, porta sua

arma de fogo, de maneira ostensiva, isto é, num coldre às vistas de todos, e se necessário,

poderá fazer uso dela.

Mesmo com a “autorização da sociedade” em legitimar o policiamento e a utilização

da força, é interessante notar que na análise de Monjardet (2003) sobre o trabalho de polícia

no patrulhamento de rotina ou o policiamento ostensivo motorizado, não modificaram a

sensação de insegurança, tanto que:

parece absolutamente evidente que o aumento ou a diminuição dos patrulhamentos

de rotina preventivos [...] não tem incidência alguma sobre a criminalidade, sobre o

medo dos cidadãos, sobre as atitudes da comunidade frente à polícia, nem sobre o

tempo de resposta ou sobre os acidentes de trânsito (MONJARDET, 2003, p. 259).

Percebe-se que mesmo com a presença ostensiva, com as armas à mostra e com o uso

da força, as estratégias adotadas nos muros do lado de fora da instituição ainda continuam

ineficazes no controle ao crime. A eficácia da Polícia Militar é questionada, e, mais que isso,

as ações nocivas de alguns policiais nas abordagens aos cidadãos são constantemente vistas

com críticas.

Por outro lado, é importante destacar que a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão – que consagrou um capítulo inteiro à força pública – diz em seu artigo 12: “A

garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública: esta é, portanto,

instituída em benefício de todos, e não para a utilidade particular daqueles a quem ela é

confiada”. Desse ponto de vista, as polícias, antes de atenderem aos interesses da autoridade

política, devem atender aos interesses dos cidadãos, isto é, devem salvaguardar os interesses

coletivos.

Porém, como a natureza do trabalho policial militar é complexa, no exercício da

função desempenhada pelos homens de execução – cabos e soldados – pode-se vislumbrar a

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possibilidade de resolução da ocorrência de conflitos, que algumas vezes somente podem ser

solucionados por intermédio da aplicação da força por parte desses atores policiais.

Essa complexidade pode ser visualizada por meio da função do policial militar como

instrumento de dominação por excelência do poder, isto é, do poder dominante. Monjardet

(2003, p.151) ressalta que essa questão é uma concepção que Engels chama de “origens de

família, da propriedade e do Estado, em que é regrada a questão dos aparatos policiais: dentre

vários aparatos, a dominação física pela força”.

Essa dimensão pode englobar a definição da função policial, que deve manter nas

relações entre policial e cidadão e nas relações que o policial deve manter com a lei. A relação

com o outro e a relação com a lei são dois princípios que devem ser levados em conta na

atividade policial, tratar o cidadão de acordo com a lei, no exercício de suas ações

profissionais.

A relação com a lei, diz Monjardet (2003, p. 169), é vista de bom grado pelos policiais,

pois é o mundo policial, e que mede um grau, postulado elevado, de submissão à regra do

direito. Para alguns, “a lei é apenas uma coerção, dotada de um forte aspecto de arbitrariedade,

e no mais das vezes um obstáculo à eficácia; para outros é um enquadramento necessário em

toda a sociedade”.

Segundo Monjardet (2003, p. 171), a função policial militar é definida com maior

restrição em relação ao sujeito não policial, até porque o Estado atribui à função policial a

condição de instrumento de poder. Nessa relação, a função policial está formulada em “toda

ordem que emana de uma autoridade, fundada em última instância na livre expressão do

sufrágio dos cidadãos, é ipso facto [pelo próprio fato] legitima e, portanto legal”.

Essa complexidade policial militar em sua função constitucional, polícia ostensiva e

preservação da ordem pública, e seus postulados hierarquia e disciplina especificam seus

valores instrumentais, porém esses valores são mais discriminantes, até porque o instrumento

policial não tem conteúdo próprio, pois a aplicação da força é pura relação entre poder e

autoridade.

Nessa perspectiva, em uma tentativa de comparação, pode-se dizer que o saber

transmitido pela escola é substancial, por exemplo, a saúde pública no processo de ensino-

aprendizagem contribui tanto na prevenção quanto no cuidar das doenças. Esses saberes

exigem um conteúdo com suplemento de valores. A polícia se cerca de conteúdos normativos

e técnicos. Essa acepção técnica policial favorece apreensões baseadas na experiência, no

tempo de serviço que sugere receitas nas práticas de abordagem policial, e isso sugere a falta

de conteúdo de valores humanísticos para a socialização entre policial e cidadão.

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Nesse sentido, os policiais vivem relações ambíguas com a lei e com o outro, por conta

das funções que assumem e dos meios dos quais devem se utilizar para tais funções. A

realização de ações, através de instrumentos que não contêm conteúdo, normalmente fica

comprometida. Monjardet (2003) corrobora:

[...] Não é de surpreender, portanto, que o código da profissão [militar] consagre,

assim – inconscientemente sem dúvida, mas é a critica mais radical que se pode opor

a suas condições de produção -, um dos traços mais poderosos da cultura policial: a

ideia de que a lei, reverenciada em princípio como o alfa e o ômega da função e da

legitimidade policiais, é, na pratica cotidiana um obstáculo à eficácia profissional, ao

bom termo de missões pragmáticas como prender delinquentes, prevenir

manifestações violentas ou colocar um grupo extremistas sob controle

(MONJARDET, 2003, p. 34).

Essa legitimidade policial acaba por gerar conflitos entre o policial e o cidadão, pois

enquanto a polícia acredita que sua função principal é a prevenção de crimes e a caça aos

criminosos, o cidadão imagina que o policial se faz presente para proteger e defender os seus

direitos com dignidade. Mas, devido à característica da subjetividade de seu objeto funcional:

a força – com predominância de informalidade –, o preconceito e a discriminação tornaram-se

fatos contundentes nas abordagens policiais.

Com esses ingredientes, torna-se necessário fortalecer a chamada técnica do trabalho

operacional do policial militar, pois as decisões nas ações são tomadas por meio do arbítrio

policial. Contudo, a prática policial, do ponto de vista histórico, é pautada essencialmente

como aparelho repressivo. Isso significa que as abordagens policiais tendem a manter suas

características equivocadas nas operações, tendo a força como instrumento de resolução de

problemas.

5.3 Abordagem operacional na dimensão da ação policial

A ação instrumental, isto é, o mecanismo de controle é utilizado tecnicamente como

abordagem operacional, cujo entendimento se trata de abordagem policial no aspecto

preventivo – ação no cotidiano, e aspecto repressivo – ação de aspecto específico, em que

prevalece a maneira de configurar juridicamente a busca pessoal, ato de procurar supostos

indícios para a prevenção de crime ou objeto obtido por meio criminoso de interesse judicial.

As abordagens operacionais são relações diretas entre o policial e o cidadão em um

contato imediato e independente da vontade do cidadão, sem informações seguras para

fundamentar a suspeita, estando, normalmente, em uma prática de ação na perspectiva de

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estereótipos e preconceitos. Em tese, qualquer cidadão na via pública, a pé ou motorizado,

pode ser abordado em uma ação policial preventiva ou repressivamente.

Ramos e Musumeci apud Dalmonech (2013, p. 21) definem abordagem policial como

“situações peculiares de encontro entre a polícia e a população, em princípio não relacionadas

ao contexto criminal”. E, ainda, esse procedimento representa uma intervenção da polícia

junto à sociedade e os procedimentos tomados pelo policial serão de acordo com a avaliação

subjetiva do operador de segurança pública.

Pinc (2006) acrescenta a essa definição que a abordagem representa um encontro da

polícia com o público e os procedimentos adotados pelos policiais variam de acordo com as

circunstâncias e com a avaliação feita pelo policial sobre a pessoa com que interage, podendo

estar relacionada ao crime ou não.

Até porque, diz Leal (2014), sabendo através da doutrina que não há ato propriamente

discricionário, isto é, ato desarraigado de uma norma elementar que o vincula a um parâmetro

legal, pode-se dizer então que o policial militar em sua atividade deve motivar seus atos e

arrazoá-los conforme o que predispõe a lei que o vincula no mínimo implicitamente. Pelo

menos em relação ao fim e à competência, o ato discricionário deve ser vinculado. Nos

ensinamentos de Bandeira de Mello apud Leal (2014) define-se a discricionariedade da

seguinte forma:

A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra

o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso

concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos

consagrados no sistema legal [...] em rigor, não há, realmente ato algum que possa

ser designado, com propriedade, como ato discricionário, pois nunca o administrador

desfruta de liberdade total (BANDEIRA DE MELO apud LEAL, 2014).

A interpretação da abordagem operacional é subjetiva, sendo que alguns policiais a

compreendem com a característica seletiva, a escolha do cidadão não é aleatória, e, de acordo

com critérios prévios compreendidos como suspeição (aparência física, vestimenta, cor da

pele, local, horário ou até combinações entre esses e outros fatores) a ação policial se

concretiza.

Mesmo com a constituição da República Federativa do Brasil/1988 que subordina o

Estado, e seus agentes, dentre eles – os policiais militares, o respeito à legalidade e a

dignidade humana, essa mesma Constituição brasileira classifica a segurança como um direito

social e dedica a esse assunto um capítulo intitulado “DA SEGURANÇA PÚBLICA”. No

tocante às Polícias Militares (art. 144, inciso V), estabelece sua competência para a execução

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da polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, com seu caráter militar, vinculada ao

Exército brasileiro como Força Auxiliar; e sua subordinação aos governadores dos Estados.

Capítulo III

DA SEGURANÇA PÚBLICA

Art. 144 – A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,

é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do

patrimônio, através dos seguintes órgãos:

[...]

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

[...]

§ 5º – Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem

pública; [...].

§ 6º – As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e

reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos

Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (BRASIL, 1988).

Nesse viés, a Constituição brasileira parece fortalecer a subjetividade da Polícia Militar

para cumprir suas missões, torna-se necessário que seus agentes tenham poderes especiais

para agir em nome do Estado, impondo normas e comportamentos. É o que se denomina

Poder de Polícia.

5.4 O poder de polícia na abordagem operacional

Nas abordagens operacionais, normalmente o uso da força é utilizado por meio de

palavras, gestos, e algumas vezes o uso de força letal (autodefesa, defesa de outrem e até

mesmo por equívoco). Cada intervenção nessas ações é única. A subjetividade e as

circunstâncias de cada ação serão o indicador do nível de força usada pelo policial militar. O

nível de força utilizado é o elaborado por Pinc (2006): 1. Nenhuma força; 2. Ação de presença

do policial uniformizado; 3. Comunicação verbal; 4. Condução de preso (uso de algemas e

outras técnicas de imobilização); 5. Uso de agentes químicos; 6. Táticas físicas e uso de armas

diferentes de substância química e de arma de fogo, e 7. Uso de arma de fogo e da força letal.

Porém, vale destacar que de acordo com Leal (2014) o pressuposto do uso da força é a

proporcionalidade entre o fato ensejador e a resposta policial. No Direito pátrio o princípio da

proporcionalidade já vigora há bastante tempo como diretriz inorgânica (não fixada em lei).

Há bem pouco tempo, com o advento da Lei Federal n° 9784/99 do Diário Oficial da União de

1/02/99 em seu art. 2°, adquiriu incontestável nascimento no Direito positivo nacional. Ainda

que desde a Carta Política de 1946 existissem acórdãos referenciando a proporcionalidade,

somente com o raiar da referida lei que a proporcionalidade adquiriu status indubitável.

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Então, o monopólio do uso da força é exercido pelo Estado por intermédio de seus

encarregados da aplicação da lei. No Brasil, em muitas situações esta prerrogativa é exercida

pelas Polícias Militares Estaduais, por possuírem um maior contingente policial, encontrarem-

se “capilarizadas” por todo o país e por constituírem-se no “braço visível do Estado”,

representando-o de imediato através da polícia ostensiva (DALMONECH, 2013).

Por essa singularidade, as Polícias Militares brasileiras são, dentre as instituições

estatais, as que mais atuam em situações de restrições dos direitos e liberdades individuais dos

cidadãos; tal peculiaridade, mesmo que pautada na legalidade e exercida em prol do bem da

coletividade, resulta que muitas das ações policiais têm características de instrumento

repressivo, fazendo-se às vezes extensão do Exército na perseguição aos inimigos do Estado.

Essa peculiaridade aumenta mais a responsabilidade dos membros da instituição ao

desempenhar suas atividades nas ruas, pois o uso da força é necessário para manter a ordem

dentro do Estado democrático de Direito, mas este uso não pode ser indiscriminado, devendo

o policial utilizá-la em último caso, somente quando necessária e indispensável. Então, essa

possibilidade ocorre através do poder de polícia.

Poder de Polícia – é uma doutrina que conceitua com riqueza o fundamento do poder

de polícia, e com grande magistério Cretella Júnior apud Boni (2006) assim o fez em seu

estudo histórico e de direito comparado, perenizado com a brilhante literatura “Do Poder de

Polícia”:

Poder de Polícia é a causa, o fundamento; a polícia é a sua consequência. O poder de

Polícia é algo impotentia, traduzindo in actu, pela ação policial. Poder de Polícia é a

faculdade discricionária da administração, de dentro da lei, limitar a liberdade

individual em prol do interesse coletivo (CRETELLA JÚNIOR apud BONI, 2006, p.

632-633).

Maria Sylvia Zanella Di Pietro apud Boni (2006) afirma que, pelo conceito moderno,

adotado no direito brasileiro, “o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em

limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público” (idem, p. 633).

A administração pública detém prerrogativas para o desempenho de suas atividades, ao passo

que sujeita o ato administrativo aos limites impostos pelo ordenamento jurídico, para a

garantia dos direitos dos cidadãos, colocando em lados opostos a autoridade da administração

e a liberdade individual.

O cidadão pode exercer plenamente os seus direitos, mas a administração pode

condicionar este exercício ao bem-estar coletivo, utilizando-se do poder de polícia, haja vista

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101

que se fundamenta no princípio da predominância do interesse público sobre o particular

(ibidem, loc cit.).

O poder de polícia traz consigo a evolução de uma época pretérita, a do “Estado de

Polícia”, que precedeu ao Estado de Direito. Traz consigo a suposição de

prerrogativas existentes em prol do “príncipe” e que se faz comunicar

inadvertidamente ao Poder Executivo. Em suma: raciocina-se como se existisse uma

“natural” titularidade de poderes em prol da Administração e como se dela emanasse

intrinsecamente, fruto de um abstrato “poder de polícia”. Daí imaginar-se algumas

vezes, e de modo mais ingênuo, que tal ou qual providência – mesmo carente de

supedâneo em lei que a preveja – pode ser tomada pelo Executivo por ser

manifestação de “poder de polícia”. (MELLO apud BONI, 2006, p. 634)

Além dos conceitos e entendimentos apresentados, Boni (2006) diz que se torna

imprescindível enunciar a regra do ordenamento jurídico brasileiro previsto no artigo 78 do

Código Tributário Nacional para consubstanciar o entendimento do tema, in verbis:

Art. 78. Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que,

limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou

abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene,

à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de

atividades econômicas dependentes de concessão ou de autorização do Poder

Público, à tranquilidade pública e ao respeito à propriedade e aos direitos individuais

ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando

desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância

do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem

abuso ou desvio de poder.

Ainda, conforme Boni (2006), o Código Tributário Nacional define o poder de polícia

como atividade administrativa que limita ou disciplina direitos e liberdades, em razão do

interesse público que abrange a segurança, a tranquilidade e a salubridade, por intermédio da

regular atuação dos órgãos competentes, nos limites da lei, respeitando o devido processo

legal, e nos casos discricionários, sem abuso ou desvio de poder.

O Poder de Polícia nas Polícias Militares foi ampliado pela Constituição vigente no

campo de ação ao atribuir à polícia atuação ostensiva enquanto preservação da ordem pública.

A expressão polícia ostensiva foi utilizada ao invés de policiamento ostensivo, e a antiga

designação de manutenção foi substituída por preservação da ordem pública.

No que concerne às ações de polícia ostensiva, segundo entendimento de Álvaro

Lazzarini apud Boni (2006), o policiamento ostensivo refere-se apenas a uma das ações de

polícia, a de fiscalização; por esse motivo, a expressão polícia ostensiva expande a atuação

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das Polícias Militares à integralidade das fases do poder de polícia, abrangendo a ordem de

polícia, o consentimento de polícia, a fiscalização de polícia e a sanção de polícia.

Nesse aspecto, Boni (2006) esclarece que a noção de polícia ostensiva abriga assim a

ordem de polícia que nasce da lei; o consentimento de polícia, que vinculado ou

discricionário, anui quando cabível; a fiscalização pela qual se verifica o cumprimento da

ordem de polícia ou quando atua no policiamento; e a sanção de polícia que se destina à

repressão da infração. A polícia de manutenção da ordem pública, a partir de 1988 passa a

deter o poder de polícia para a preservação da ordem pública, o que engloba tanto a

manutenção como a restauração.

A noção jurídica indeterminada que proporciona o conceito de ordem pública permite

o exercício discricionário da autoridade policial, dentro dos limites legais e morais, desde que

não abuse ou desvie da parcela do poder-dever que lhe é conferido legal e

constitucionalmente, demonstrando assim a interdependência do poder de polícia com a ação

policial de preservação da ordem pública, especificamente a atuação policial militar que

abrange tanto a prevenção como a repressão imediata para garantir os direitos, os bens e as

instituições sociais. A esse respeito, Álvaro Lazzarini apud Boni (2006) é esclarecedor:

Por isso tudo que entendemos, como fizemos em o Direito Administrativo da Ordem

Pública e outros trabalhos, ser denominada polícia de preservação da Ordem Pública

(de manutenção da Ordem Pública, na semântica Constitucional anterior), de que é

parte a polícia de segurança pública, exteriorização da polícia administrativa na exata

medida em que previne a desordem, mantendo a ordem pública nas suas múltiplas

facetas e procurando evitar a prática delituosa em sentido amplo (crimes e

contravenções penais), no que se exercita a atividade de polícia de segurança

pública. É, também, exteriorização da polícia judiciária, quando cuida da repressão

delitual, como auxiliar da Justiça Criminal, sob regência das normas de Direito

Processual Penal e assim, controlada e fiscalizada pela autoridade judiciária

competente, a que, sem que tenha natureza jurisdicional a sua atividade, deve

fornecer, na repressão imediata, um primeiro material de averiguação e exame

(LAZZARINI apud BONI, 2006, p. 637-638).

A acepção de segurança pública é mais restrita do que da ordem pública, sendo que a

preservação da ordem cabe às Polícias Militares, abrange tanto as atividades de polícia de

segurança ostensiva como de polícia da tranquilidade e da salubridade. Dentro da ótica

constitucional de Polícia Ostensiva e de Preservação da Ordem Pública, Lazzarini apud Boni

(2006, p. 637) afirma que a “competência policial militar abrange inclusive aquela residual,

obtida mediante remanência, competindo assim todo universo policial que não seja atribuição

constitucional dos demais órgãos previstos no art. 144 da Carta de 1988, e também a

competência específica na falência destes órgãos”.

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Nesse sentido, as abordagens policiais são práticas respaldadas no poder de polícia, e

utilizadas preventiva e repressivamente pelos seus agentes para o cumprimento da missão

constitucional de polícia ostensiva e preservação da ordem pública. Essas abordagens

operacionais frequentemente envolvem invasão da intimidade e privacidade das pessoas,

podendo produzir ações constrangedoras nos cidadãos abordados. É necessário que nessas

intervenções seja incorporado o respeito à dignidade humana às pessoas que estarão sob o

jugo do poder policial.

Diante disso, as ações policiais têm no campo jurídico sua legitimidade e no campo

social sua prática, por isso Bicalho (2005) afirma que as normas não garantem a prática, daí,

provavelmente, as ações de alguns policiais ainda serão constituídas por valores do grupo de

pertencimento, de táticas militares e não do modo racional-legal. Por essa ótica, Foucault

(1999) afirma que as relações de poder permitem que surjam umas e não outras maneiras de

ser policial.

Nesse entendimento, Bicalho (2005) afiança que entre normas e práticas é

indispensável compreender que as abordagens operacionais terão a percepção de quem é

aceitável, ameaçador ou perigoso (negros, homoafetivos, pobres, “vadios” etc.) que caberia à

polícia coibir e punir, implicando em produções de dicotomia como ordem/desordem,

certo/errado e bom/mau, conforme a lógica de que os indesejáveis colocam em risco a

segurança de todos os cidadãos.

Nesse panorama, o que está em questão é a vida nua do cidadão. Dessa maneira,

Agamben (2007a) apresenta o homo sacer que são as condições sobre as quais os grupos e os

indivíduos são lançados no sistema democrático vigente, que os desconsidera, mas que

também necessita deles para o seu funcionamento e reprodução. O autor mencionado se refere

ao verbete sacer descrito por Festo (tratado de Festo intitulado Sobre o Significado das

Palavras) que conserva a memória de uma figura do direito romano arcaico na qual o caráter

da sacralidade liga-se pela primeira vez a uma vida humana como tal.

Não obstante, mais do que tentar resolver a especificidade do homo sacer, o autor

procura interpretar a sacratio como uma figura autônoma, perguntando-se se ela não nos

permitiria, por acaso, lançar luz sobre a estrutura política originária, que tem seu lugar numa

zona que precede a distinção entre sacro e profano, entre religioso e jurídico.

Conforme Agamben (2007a), nos dois limites extremos do ordenamento, soberano e

homo sacer apresentam duas figuras simétricas, que têm a mesma estrutura e são correlatas,

no sentido de que soberano é aquele em relação aos quais todos os homens são potencialmente

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homines sacri, e homo sacer é aquele em relação aos quais todos os homens agem como

soberanos.

Em sua exposição, Agamben (2007a) procura advertir que, do ponto de vista da

soberania, somente a vida nua é autenticamente política. E o bando, por sua vez, é a força,

simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois polos da exceção: a vida nua e o poder,

o homo sacer e o soberano.

Então pode-se dizer que sacer seria aquele que está fora da jurisdição humana, sem

ultrapassar a condição humana; aquele cuja violência não é sacrifício, mas também não

caracteriza crime; uma das imagens oferecidas por Agamben (2007a) é a que compara a

condição de exclusão à de um sujeito em coma, isto é, nem vivo nem morto.

Podemos empreender que a proposta de Agamben (2007a) leva ao entendimento de

que a ação estereotipada de alguns policiais em suas abordagens tem como alvo o negro, o

pobre, o homossexual. Essa parcela social não precisa que uma autoridade declare

oficialmente o estado de exceção, cada policial se encarrega ele mesmo de declará-lo em suas

ações cotidianas. Diante dele os componentes dessa camada social – a minoria se torna vida

nua, cada um deles como um homo sacer.

Por outro lado, devemos enfatizar que estamos vivendo, constitucionalmente, o Estado

Democrático de Direito e que Democracia e Cidadania andam juntas e são inseparáveis. A

Constituição brasileira de 1988 contém a "iniciativa popular", através da manifestação do

eleitorado, mediante uma quantidade mínima de indivíduos. Essa iniciativa se expressa pela

cidadania, e cidadania se relaciona com educação, portanto a escola, a família e a sociedade

podem nos impregnar de responsabilidades ou de uma ideologia contrária à cidadania plena.

Mesmo assim, cidadania implica em responsabilidade social, fiscalização dos recursos

públicos, da atuação de cada político após a eleição, bem como da atuação e das ações dos

policiais militares.

Por conta dessa contextualização, faz-se necessária a fiscalização nas abordagens

policiais, pois na consecução dessas práticas parece não se perceber que o indivíduo deve

transpor um ambiente político ditatorial para um desiderato de democracia. Serra, Carvalho e

Carneiro (2012) dizem que há um aumento dos reclames sociais frente ao aparelho estatal, o

qual foi reestruturado buscando adequação aos novos tempos, mediante a adição de ilhas de

gerencialismo à burocracia preexistente e a adoção de novas formas de parceria com o

mercado e a sociedade, sob o argumento da busca pela eficiência.

Importa destacar, continuam os referidos autores, esse cenário de ebulição social,

porque a accountability deve ser compreendida dentro da ideia de Estado. As questões

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atinentes à representatividade, legitimidade do poder e accountability tendem a acompanhar o

avanço de valores democráticos. Ademais, é inquestionável que as transformações ocorridas

no aparelho do Estado brasileiro e que deságuam na gestão pública contemporânea interessam

ao estudo de todas as formas de accountability.

Os autores citados acima, referenciando Fonseca e Sanches, no Estado de Direito,

sustentam que os mecanismos de controle situam-se em duas esferas interdependentes de

ação: os mecanismos de accountability vertical – da sociedade em relação ao Estado – e os de

accountability horizontal – de um setor a outro na esfera pública.

Assim, accountability é valor de responsabilização decorrente da representação. Parece

simples, mas não é. Responsabilização é o ato de responsabilizar. Responsabilizar é impor

responsabilidades, é ser considerado responsável; é ficar sujeito à consequência de atos

próprios ou alheios; enfim, tornar-se responsável. Representação é o ato ou efeito de

representar. Representar é fazer ou tornar presente.

Embora o termo (accountability) seja de difícil transposição para o contexto brasileiro,

de maneira geral a accountability é definida como a obrigação dos agentes públicos de

responder por seus atos a instâncias internas ou externas. A utilização da expressão é no

sentido de responsabilização dos agentes políticos, dirigentes e servidores públicos pelo

resultado de sua gestão, perante os atores sociais e políticos aos quais prestam contas. Porém,

não é possível encontrar na literatura um consenso em sua definição quando o termo é

depurado.

Então, se o Estado é democrático, então o poder estatal tem origem no povo, na

sociedade, no cidadão. Assim, em ambiente democrático, todos aqueles que detêm poder

estatal, em sua trilogia (Executivo, Legislativo e Judiciário), exercem-no, de fato, em

representação ao poder oriundo, em última instância, do cidadão. Em razão de estar atuando

em representação a um poder que em origem não é seu, mas do cidadão, deve o representante

responsabilizar-se por todas as ações desempenhadas no exercício de tal poder, respondendo

por elas.

Assim, Azevedo e Anastasia (2002) afirmam que as formas e os graus de

accountability e de responsiveness da ordem política afetam, por sua vez, os padrões de

governabilidade vigentes nas diferentes sociedades, sustentando que a governabilidade

democrática é uma variável dependente da capacidade dos governos de serem responsáveis e

responsivos perante os governados.

Esse cenário também diz respeito às ações policiais, tanto que Muniz e Proença Junior

(2007), em relação à responsabilidade e responsabilização, têm o mandato como parâmetro de

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accountability policial que corresponde à busca de um determinado fim pela delegação de

poderes, identificando quem o outorga e quem o recebe. A finalidade de um mandato

determina os objetivos a serem atingidos, delimitando efeitos e resultados desejados.

A delegação de poderes corresponde à concessão de autorizações que circunscrevem

decisões, meios e ações compatíveis com a busca desses objetivos. Quem outorga um mandato

responde pelo conteúdo, contexto e controle dos poderes que delega. Quem recebe um

mandato responde pelo conteúdo, contexto e controle do exercício dos poderes recebidos. Na

exposição de Muniz e Proença Junior (2007) que se segue, foram mantidos diversos termos

em inglês, como forma de poupar a exposição do trabalho de uma revisão dos esforços

anteriores de Trad..

Vê-se que quando se recebe um mandato é accountable por ele, responsabilizável pelas

escolhas, resultados e consequências do exercício dos poderes delegados diante de quem os

outorgou. Vê-se que a materialidade do ser accountable corresponde à accountability, à

responsabilização, construída a partir da identificação de responsabilidades, isto é, pela feitura

de um determinado account. Vê-se que a accountability serve primeiramente ao

aperfeiçoamento do mandato concedido, permitindo reafirmar ou rever seus objetivos e

poderes. Vê-se, também, que ser accountable, fazer accounts e produzir accountability

corresponde, em sua totalidade, à contrapartida necessária do recebimento de poderes. Vê-se,

ainda, que a realidade da full responsibility corresponde a uma selective accountability, ou

melhor, a uma accountability do que é relevante no e para o exercício do mandato. Vê-se, por

fim, que é apenas diante da caracterização de um mandato concreto, isto é, da sua qualificação

em termos de âmbito, alcance e contornos, que se podem materializar cursos de

responsabilização, accountability, institucionalizando seus usos no mundo real.

O mais importante é destacar que, de acordo com o texto de Muniz e Proença Junior

(2007), a accountability policial não é, e se é accountability policial não pode ser algo “contra

a polícia”. Ao contrário, como se espera ter demonstrado, a accountability policial é a

contrapartida necessária aos poderes delegados do mandato policial. Seu uso e

aperfeiçoamento pertencem, também, ao exercício mesmo deste mandato. Dito de outra

forma: uma polícia que avalia a maneira pela qual exerce o seu mandato, como se pratica

discricionariedade em seu patrulhamento ou sua análise forense com vistas à melhora de seu

desempenho, está fazendo accountability, mesmo que não a chame assim. Porque é desta

forma que se pode apreciar as escolhas, resultados e consequências do exercício do mandato.

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107

CAPÍTULO VI - A ABORDAGEM POLICIAL E AS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS

O objetivo deste capítulo é compreender as razões ou ao menos rebuscar fontes

teóricas que discutam sobre a abordagem policial, em especial aos sujeitos negros, cuja

abordagem apresenta uma tendência diferenciada. Essas ações policiais normalmente

priorizam esse cidadão com a utilização do excesso de força, e muitas vezes sem o respeito à

dignidade humana que é necessária em quaisquer procedimentos operacionais.

Santos (2002) afirma que as grandes descobertas do século XV colocaram em dúvida a

origem comum da humanidade, provocando grandes discussões sobre a natureza dos povos

recém-descobertos: ameríndios e diversos grupos de negros africanos. Nessas discussões havia

os defensores da tese de que ameríndios e negros eram bestas e não seres humanos, e outros

que defendiam que eles eram seres humanos. Independente da tese abraçada, porém, a

celebração do reconhecimento da dignidade humana dos povos descobertos ficava

convencionada à conversão religiosa, isto é, o cristianismo.

A autora citada enfatiza que essas teses perduraram até o século XVII, quando essas

teorias foram questionadas pelos filósofos iluministas que inauguraram a racionalidade em

detrimento da explicação cíclica do mundo que a perspectiva teológica política até então

estabelecia. A ciência sobre os povos não europeus era dividida em duas linhas de

pensamento: os monogenistas – que afirmam a existência de uma única raça humana

descendente de Abraão, e praticamente não havia ainda a ideia de inferioridade racial; e os

poligenistas – que defendiam a existência de diversas raças humanas, e tais argumentos são

encontrados na utilização do conceito de raça transportado da zoologia e da botânica para a

nascente ciência do homem, classificando a humanidade em três raças hierarquizadas: branca,

negra e amarela; e nessa escala de valores a branca era a superior.

Santos (2002, p. 11) argumenta que o determinismo biológico fundamentou o caminho

do racialismo ou racismo científico que até os dias atuais pesa negativamente no futuro

coletivo dos povos não europeus, principalmente negros e índios e seus descendentes

mestiços. Esse pensamento europeu influenciou diretamente os intelectuais brasileiros dos

séculos XIX e XX que se apropriaram dos argumentos desenvolvidos na Europa aplicando-os

em um país composto majoritariamente por negros e mestiços, contribuindo para o surgimento

de outro perfil de racismo, que pode ser designado como “racismo à moda brasileira”.

A autora acima citada reafirma a existência dessas diferentes elaborações sobre a

questão racial, levando em conta que a cor é um valor e um símbolo próprio, inventou-se o

‘ser negro’ fazendo pensar em sua natural inferioridade ou em seu exotismo. Portanto, ser

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negro é uma invenção datada, apresenta-se como ontologia de um ser que sempre, sem

começo nem fim, foi inferior. A questão racial foi sombra e um aspecto negativo na sociedade

brasileira.

Na realização desse percurso é fundamental perceber que a origem do pensamento que

entende a humanidade a partir de raças diferentes está no século XVI e na formação dos

Estados nacionais europeus, que começaram a enfatizar as diferenças linguísticas e históricas

internas. Mas para Gislene Santos (2002), foram os iluministas que cunharam as primeiras

doutrinas racialistas, ou seja, as primeiras doutrinas para o estudo das diferentes raças

humanas. A autora distingue o racialismo, ou seja, a crença em raças humanas, do racismo que

seria o preconceito contra raças consideradas inferiores. E no século XVIII o racialismo não

era ainda racismo, pois as diferenças biológicas ainda não eram consideradas definitivas para

a evolução humana.

A partir dessas análises, o racismo e o racialismo foram considerados legítimos e

geraram desigualdades a partir de equívocos que permeiam as relações humanas e sociais. Os

apontamentos desta temática em grande parte estão apontados nos assentamentos de Todorov

(1993) que interroga vários pensadores (Buffon, Renan, Le Bon, Taine e Gobineau) que já

haviam discutido o assunto.

Para Todorov (1993), racismo é uma prática excludente enquanto o racialismo se

apresenta como teoria produzida a partir de diferenças constatadas. Tais diferenças

apresentam-se no campo biológico, cultural, linguístico e nos limites entre identidade e

diferença.

O racismo como prática excludente pode gerar uma catástrofe – como, por exemplo, o

regime do apharteid, o qual se utilizando do racialismo e de suas doutrinas classificou a

humanidade a partir de suas características fenotípicas e frenológicas (medida do crânio). O

racialismo iniciou-se na Europa Ocidental entre os séculos XVIII e XX, como movimento de

ideias voltadas para designar o “tipo ideal”. O uso e os sentidos desses conceitos foram

afirmados por intelectuais como François Bernier, que em 1684 “utiliza a palavra raça

(racismo) pela primeira vez em seu sentido moderno” (TODOROV, 1993, p. 113).

O estudo sobre a definição e a busca do tipo ideal humano levando em consideração as

características fenotípicas levou esses intelectuais do racismo científico a elegerem o homem

como seu principal objeto de pensamento. Todorov (1993, p. 113-114) corrobora essa

afirmação quando realiza a síntese de numerosos relatos de viagem entre os séculos XVII e

XVIII. Esses relatos exerceram influência decisiva sobre a literatura posterior, que busca

construir uma unidade do gênero humano.

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109

As ideias de Buffon propõem uma hierarquização entre os animais na natureza.

Considera que os homens pertencem a essa mesma e uma única espécie e pode-se julgá-los

utilizando os mesmos critérios. No entanto, esta posição afirma o caráter determinista sobre a

diferença e a superioridade entre uns e outros. Hierarquia e unidade se mensuram por

julgamentos de valor: a primeira, pela observação de outra característica humana; já a segunda

é provada pela fecundação mútua.

Outro nível de reconhecimento dessa hierarquia Todorov (1993) pode ser

compreendido através da sociabilidade. O autor afirma que o homem somente se pode manter

no topo da vida biológica e se distanciar de outros animais pelo fato de comandar a si mesmo,

domar-se, submeter-se a leis. Para concluir sobre o grau de civilidade que um povo pode

alcançar, relata ser necessário que haja a existência de leis, de ordem estabelecida, de usos

constantes e costumes fixos.

Portanto, racionalidade e sociabilidade são inerentes aos homens. Esse sentido

permitiu a Buffon gerar oposições como: civilização versus barbárie e selvageria. As

variedades da espécie humana se articulam nessa hierarquização. O autor acredita que no alto

da pirâmide estão as nações da Europa setentrional, abaixo, os outros europeus, em seguida, as

populações da Ásia e da África e, por fim, os selvagens americanos. A presença de qualquer

diferença social (de costumes e de técnicas), bem como em qualquer uso da razão, levou-o a

formular julgamentos de valor sobre os povos, colocando em questão a unidade do gênero

humano.

Por esse viés, Buffon enumera três parâmetros: a cor da pele, a forma e o tamanho do

corpo e o natural/costume. A cor da pele depende do clima e de outras causas que se

relacionam com a maneira de viver, o nível de civilização e a alimentação. Os civilizados

escapam da miséria, os selvagens sofrem a fome e as intempéries, levando-os a viverem como

animais.

Dessa forma, físico e moral são ligados na teoria racialista através desses escritos

todorov (1993), quando considera a existência das raças como uma evidência e afirma a

solidariedade do físico e da moral, subentendida segundo a determinação do indivíduo pelo

grupo, levando-o a proclamar um sistema único de valores. Entretanto, o ideal estético

proposto por Buffon é estritamente etnocêntrico em relação ao ético e ao cultural. O homem

europeu é o referencial e qualquer mudança de cor é considerada uma degenerescência. Seu

discurso chegou a ser parâmetro prestigiado pela ciência.

Como afirma Giarola (2013), se Buffon, por um lado, explicava a degeneração dos

negros pela “diferença de sangue”, por outro, parecia convicto de que essa degeneração não

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era irremediável, para os negros se reintegrarem à natureza do homem seria necessário um

grande número de séculos.

Não obstante, a perenidade e a extensão universal do racismo enquanto instrumentos

de dominação provocaram e provocam até os dias atuais imensos genocídios. O racialismo

tem sido o suporte “científico-ideológico” para opressão das comunidades étnicas

historicamente oprimidas. Essa doutrina surge de julgamentos de valor que são feitos após as

descrições sobre os outros encontrados pelos navegantes na África e na América. Tem entre os

seus representantes, além de Buffon, Renan, Le Bon, Taine e Gobineau (TODOROV, 1993, p.

107).

Todorov (1993) descreve o seu racialismo a partir da oposição entre arianos e semitas

e apresenta a definição de uma hierarquização dos indivíduos na categoria raça, através da

divisão da humanidade em grupos raciais: branco, amarelo e preto. Nessa estratificação racial,

elege uma raça inferior como sendo a constituída pelos negros da África, pelos nativos da

Austrália e pelos índios americanos. Renan considera que existem representantes dessas raças

por toda a terra, os quais são progressivamente eliminados por outras raças, afirmando que

essas raças inferiores são incivilizáveis e não suscetíveis ao progresso.

Todorov (1993) considera quatro graus de destaque na escala racial: no grau inferior,

estão as raças primitivas, constituídas pelos indígenas australianos; afirma que esse povo

estava fadado à não civilização e, no seu encontro com um povo superior, o seu destino seria o

desaparecimento em um processo natural, mas sem esclarecer a forma pela qual esse processo

aconteceria. Em seguida, encontram-se as raças inferiores e, como centro dessa raça, os

negros; como Renan, considera que eles não se aperfeiçoaram, possuem capacidades

rudimentares de civilização, são bárbaros por ter capacidade cerebral inferior à dos brancos,

condenados a permanecerem para sempre na barbárie.

Todorov (1993) tornou-se um importante intelectual na segunda metade do século

XIX, quando o assunto era o determinismo integral. Considerava que nenhum acontecimento

ocorre sem causa: nossas maneiras de pensar, sentir e nossos atos são ditados por causas

identificáveis; esse processo é integral, no sentido de tocar os menores elementos de cada

fenômeno. O feito total é um composto, determinado por inteiro pela grandeza e pela direção

das forças que o produzem. A procura das causas deve vir após a reunião dos fatos: sejam eles

físicos ou morais, têm sempre causas, comparáveis à ambição, à coragem, à veracidade e ao

movimento muscular para o calor animal.

Para descrever o mundo dos homens, Taine utiliza metáforas tiradas do Reino Vegetal:

“as obras de arte são sementes que caem sobre um certo solo, que o vento varre, que as neves

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congelam e em seguida brotam e florescem” (TODOROV, 1993, p. 130). A ciência tem o

papel de ser o guia social para a humanidade. Nas diferenças entre ciência natural e humana

está o funcionamento de suas respectivas matérias. Aceita, do Iluminismo, a fé no

determinismo, tudo que ele segue; o que recusa é o universalismo, a fé na unidade essencial da

espécie humana e na igualdade enquanto ideal.

As contribuições de Gobineau analisadas por Todorov (1993) para as teorias racialistas

se prendem ao determinismo, ao materialismo e à fé na ciência; para ele, o comportamento

dos homens é dependente da raça a que pertencem e se transmite pelo sangue. Sobre a teoria

das raças, ele se torna um racialista fiel à grande corrente de pensamento da época. Vê

diferença entre homens e animais, que consiste na presença ou na ausência da razão. Adere ao

poligenismo de Voltaire, embora pretenda respeitar o dogma cristão da monogênese: “Está

consciente da eterna separação das raças” (TODOROV, 1993, p. 143). Estas não são apenas

diferentes, são hierarquizadas, seguindo escala única.

As representações da diversidade humana, na hierarquização sobre as três raças (negra

ou melaniana, amarela ou finlandesa e branca), são identificadas por marcas físicas como a

carnação, o sistema piloso, a forma do crânio e da face. Foram avaliados como resultado dos

critérios de beleza, força física e capacidades intelectuais.

A raça branca é considerada ideal, a partir da relação estabelecida entre beleza e tipo

europeu, considerado como referência para os não brancos. Sobre força física, a raça amarela

é destacada como sendo fraca, e a dos negros tem menos rigor muscular em comparação com

a dos brancos, que ficam no topo da hierarquia racial, estabelecida pelo racialismo. Em

relação às capacidades intelectuais, os negros são considerados medíocres ou nulos, e os

amarelos tendem à mediocridade; isso prova a imensa superioridade dos brancos em todo o

campo da inteligência.

Essas ideias do racismo científico chegaram ao Brasil entre meados do século XIX e

início do XX, e foram adotadas pelos intelectuais brasileiros como meio de promover uma

ciência nacional própria, vista como teorias que poderiam servir para se pensar o progresso da

nação. Nesse sentido, a incorporação dessas ideias às instituições e aos espaços de saber foi

muito relevante para a promoção do racialismo e da hierarquização das raças na sociedade

brasileira.

Diante desse quadro, conforme Schwarcz (2014), no início do século XIX o termo

“raça” foi amplamente introduzido na literatura especializada por Georges Cuvier (1769-

1832), inaugurando a ideia da existência de heranças físicas permanentes entre os vários

grupos humanos. Então a ciência, nesse contexto, era vista como condição para o progresso e

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a modernização do país, via inevitável para o ensejo de um processo civilizador vislumbrado,

ainda que idealmente, em moldes eurocêntricos, mas, com seus dogmas deterministas, a

questão racial se tornou problema urgente para nossos homens de sciencia.

As teorizações de Charles Darwin, em A origem das espécies (1859), e Arthur de

Gobineau, em seu Ensaio sobre a desigualdade das raças (1853), possibilitaram que a

perspectiva biológico-racial de análise das diferenças humanas tomasse sua forma mais

acabada, tornando-se cada vez mais aceita e difundida. Para Gobineau, o maior empecilho

para o progresso seria a miscigenação racial, na medida em que o avanço da mistura de

sangues se constituía em perigo para as raças puras.

A mestiçagem teria por produto a degeneração racial, vista como o grande castigo da

civilização. A terminologia darwinista, associada às teses racialistas de Gobineau, ultrapassou

com certa rapidez os limites de sua disciplina de origem, favorecendo “a percepção da

“diferença” que é antiga, mas sua “naturalização” é recente, isto é, apenas no século XIX [...]

que a apreensão das “diferenças” transforma-se em projeto teórico de pretensão universal e

globalizante” (SCHWARCZ, 2014, p. 84-85).

Dessa forma, esse direcionamento do comportamento humano e do desenvolvimento

das sociedades como processos de evolução biológico-racial foi chamado de darwinismo

social. Para Schwarcz (2014, p. 78), os darwinistas sociais partiam de três pressupostos

básicos: a afirmação da realidade das raças, com a condenação do cruzamento racial –

miscigenação; a afirmação da continuidade entre caracteres físicos e morais, definindo a

diversidade cultural observada entre os grupos humanos; a afirmação da preponderância do

grupo “racio-cultural” ou étnico no comportamento do sujeito – corrente determinista.

Como apontou Schwarcz (2014, p. 54), aos intelectuais brasileiros interessou “adaptar

o que combinava [...] e descartar o que de certa maneira soava estranho”. Seduzidos pelo

racialismo, os estudiosos locais procuraram compreender a formação do Brasil através da

composição racial de sua população, produto da miscigenação entre as três matrizes étnico-

raciais: lusitana, africana e indígena. A mestiçagem racial ora era encarada como o maior

empecilho, como em Rodrigues, ora como a solução redentora, como em Romero, para que o

verdadeiro progresso se efetivasse.

Segundo Schwarcz (2014), com a criação dos centros de pesquisa, houve um modelo

para narrar a história e a formação da identidade brasileira. Corrobora essa tentativa o ideário

de formar um código jurídico brasileiro único. Inicialmente esse é o papel das escolas de

direito, situadas em Recife e São Paulo. Entretanto, as ideias racialistas ganham legitimidade

através do pensamento dos intelectuais dessas escolas.

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As escolas também legitimaram a ciência evolucionista, então presente nos museus e

nos institutos de pesquisa. Para a construção do código nacional, a Faculdade de Recife

adotou o referencial evolucionista. A percepção disso se deu na leitura que o intelectual

Tobias Barreto fez sobre filósofos alemães, como Haeckel e Buckle, e da difusão de ideias de

autores como Spencer, Darwin, Littré, Le Play, Le Bon e Gobineau. Sua leitura foi

considerada a mais atual e importante na época, a ponto de criar na faculdade um grupo de

cientistas que assumiram uma identidade chamada de “os renovadores da Escola de Recife”

(SCHWARCZ, 2014, p. 195).

Outro marco importante dessa discussão foi o campo da medicina. O primeiro espaço

dedicado ao ensino foi a Escola Cirúrgica da Bahia, criada por D. João VI, em 18 de fevereiro

de 1808, por sugestão do cirurgião-mor do reino, José Correia Picanço. Ao chegar ao Rio de

Janeiro, fundou, em 2 de abril de 1808, a Escola Cirúrgica do Rio de Janeiro. Ambas foram

denominadas, em seguida, faculdades de medicina. Na década de 1870, dois fatos ajudaram a

participação das instituições médicas na composição racial no Brasil: o primeiro, através do

surto de epidemias, como a cólera, a febre amarela e a varíola, dando origem à “missão

higienista” (SCHWARCZ, 2014, p. 259).

A eugenia (eu: boa; genus: geração), por sua vez, teve sua emergência intimamente

ligada aos dogmas do determinismo biológico. Ciência que postulava o melhoramento racial,

a eugenia foi delineada teoricamente pelo inglês Francis Galton em estudos publicados na

segunda metade do século XIX, logo encontrando adeptos no Brasil. O teórico vitoriano

definiu a eugenia como “a ciência que trata de todas as influências que melhoram as

qualidades inatas de uma raça, bem como das qualidades que se pode desenvolver até alcançar

a máxima superioridade” (GALTON, 1988, p. 165).

Essa proposição procurou demonstrar como as leis do evolucionismo biológico,

quando bem utilizadas, poderiam ser aplicadas na promoção de amplas reformas sociais. Isso

demonstra a necessidade de regenerar a população brasileira, pois os homens de sciencia

brasileiros clamavam por intervenções no sentido de modificar a constituição de uma

população vista como degenerada, tanto do ponto de vista biológico como do ponto de vista

psíquico. Tornara-se consenso entre os reformadores a ideia de que o progresso, tão necessário

para a modernização do país, dependia de um amplo processo de regeneração da nação.

Percebe-se que o pensamento europeu ganhou originalidade no Brasil. A eugenia

previa a saída para parte da população como sinal de desenvolvimento e civilização. A

intenção aponta o interesse de exterminar a população negra, extermínio este desejado pelos

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intelectuais brasileiros. A importância dada ao darwinismo social imputa a compreensão da

crença na raça forte, possuidora dos aspectos superiores de força e de saúde.

Outro aspecto a observar é o branqueamento, pois, ao eleger a diversidade racial

brasileira como o grande problema pelo atraso do país, Skidmore (1976) observa que o ideal

de branqueamento é caracterizado pela presença de ideias racialistas europeias que se

configuraram no período da promoção das ciências naturais no Brasil.

A teoria referida foi amplamente aceita entre 1889 e 1914, de maneira bastante

específica em nosso país, como tese baseada na promoção da superioridade branca, através do

uso de expressões como “raça mais adiantada” ou “menos adiantada”, atribuindo a fatores

inatos a causa da inferioridade de um grupo em relação a outro.

O branqueamento aconteceria por duas vias: primeiro, pela redução da população

negra em relação à branca, motivada pela baixa natalidade, pelas doenças e pelo descaso com

que os negros foram deixados, de parte do poder público da época; segundo, pela

miscigenação natural na produção de uma população com pele mais clara, através do

cruzamento da raça branca com a raça negra. Os intelectuais e os líderes políticos da época

consideravam, numa perspectiva determinista e evolucionista, que o gene branco fosse mais

forte do que o negro. Para Skidmore (1976) essa poderia ter sido a explicação para o seu real

interesse pela causa étnica.

Havia uma crença na capacidade apresentada pelo mestiço em civilizar-se de maneira

bem superior à do negro; o casamento inter-racial já não gera tanta desconfiança na população

como antes. Dessa maneira, profetizou que em cem anos, ou em três gerações, seria capaz de

não mais existirem mestiços e, paralelamente, desapareceria o negro, provando assim o valor

do branqueamento como fator de progresso para a população brasileira.

Racismo oriundo duma raiz sociocultural escravista, potencializado pelas distorções

das práticas sociais e manipulado pela hegemonia cultural de países, notadamente europeus.

Polícia militar e racismo estão indiscutivelmente entrelaçados, em especial nas abordagens

policiais, e isso é percebido pela preferência de alguns policiais em abordar sujeitos negros.

Esta é a prática pela qual não é difícil que, por exemplo, um sujeito branco, ao ser abordado

pela polícia militar, normalmente, reclamará e aplicará sua “superioridade” em relação à ação

policial, e ainda usando do velho jargão “sabe com quem está falando?”

Os policiais militares são oriundos da mesma sociedade em que os negros estão

marginalizados e, ainda, condenados à miséria social, talvez por falta de discussão dessa

questão na formação policial, a abordagem seja um reflexo e um sintoma, provavelmente, da

atitude social generalizada. Percebe-se que essa generalização social seja um instrumento

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facilitador para a polícia, em algumas abordagens, faça uso de uma prevalência da

sistematização racista, que vê o negro sempre como um criminoso.

Por conta dessas atitudes, o racismo movimenta as abordagens policiais como uma

crença de que os sujeitos podem ser divididos, naturalmente, em superiores e inferiores. Essa

ideologia ainda impõe aos policiais militares uma relação equivocada entre a autoridade e

autoritarismo policial, entre a periferia e o centro urbano, entre características sociais e cor da

pele das pessoas. O racismo, enfim, promove uma hierarquia de valores entre os seres

humanos. Nas abordagens policiais, principalmente pelo viés da cor da pele e da condição

social, o preconceito e a discriminação são literalmente evidenciados.

6.1 O sujeito negro: na concepção da ação policial

Vale lembrar que o processo de formação da nação brasileira tem a presença dos

negros, dos mulatos, dos africanos e de seus descendentes, em diferentes momentos, porém o

poder de dominação mobilizava atributos por meio de doutrinas racistas como um fator

socialmente fundamental para não permitir a integração do negro na constituição de um país

viável, como ficou evidente nas páginas precedentes.

A presença do sujeito negro na sociedade brasileira sempre esteve marcada pela

perspectiva negativa de sua contribuição na formação social, econômica, política e cultural. O

atraso brasileiro em relação ao mundo ocidental passava a ser justificado pela inferioridade

dos povos que aqui habitavam: os negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos,

portanto, constituíam-se as “classes perigosas” (SCHWARCH, 2014, p.38).

É nesse palco de lutas que os atores negros imprimem seus “valores”. O Brasil – como

assevera Souza (2006), foi abastecido de escravos negros para a produção de açúcar, tabaco,

algodão, ouro e diamante e, mais tarde, o café, porém quando os negros chegavam à colônia e

ainda não entendiam nem falavam o idioma local e nem conheciam os costumes eram

chamados de boçais – ideia de que negros pertenciam a culturas inferiores às europeias, tendo

comportamentos animalescos, como andar nus e praticar religiões reprováveis, características

que demonstravam a inferioridade do homem negro em relação ao branco europeu.

Nesse processo de produção oriundo da escravização negra está impregnada na

sociedade a estrutura racista que ganha consistência à medida que se inculcou nos africanos

sentimentos de inferioridade. Por conta disso, o jovem país brasileiro não foi visto como uma

região forte. De acordo com Gennari (2011) as diferenças de pigmentação da pele se tornaram

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um elemento distintivo que deu origem a uma hierarquia social. Adicionado a essa questão, o

trabalho manual foi considerado digno de seres inferiores.

A segurança pública, da mesma forma, se consolidou em uma construção de nomeação

hierárquica pelas autoridades existentes. Para a preservação dessa ordem foi fundamental a

constituição de milícia pautada na classificação social e racial. Portanto, os comandantes

dessas milícias eram os fidalgos e os comandados eram os trabalhadores pobres e negros,

fossem escravos ou livres.

Em Mato Grosso, região interiorana do país, não foi diferente: a polícia do século

XVIII foi forjada à força bruta com missão de manter a ordem, além de estar à disposição do

governo para caçar escravos fugitivos capturando e punindo-os para servir de exemplo àqueles

que tinham intenções de liberdade.

Como exemplo da missão policial, no ano de 1795 foi organizada uma bandeira

(milícia) para explorar e destruir quilombos na região de Vila Bela-MT, o Quilombo do Piolho

ou Quilombo do Quariterê. O quilombo foi abatido pela primeira vez em 1770, sua população

era de 79 negros e 30 índios. Porém, sobreviveu com alguns prisioneiros e vários mortos

quilombolas (MACHADO, 2006).

Além das missões escravistas e diante do surgimento das vilas e da descoberta de ouro,

os negros foram cooptados por uma ordem institucionalizada para compor a autoridade

miliciana em Mato Grosso que também nasceu com a intenção de classificar e controlar o

indivíduo sem a preocupação de entender o crime ou o criminoso.

Enfim, o negro foi concebido pelo corpo policial em uma concepção de ordem social,

isto é, o tornava súdito, sabedor que é depositário das leis e ordem do soberano. A meta era

conseguir que esse grupo se apropriasse dessa concepção, interiorizando-a e a ela adaptando

seu padrão de conduta. Dessa forma, o governo ficaria sossegado com indivíduos sujeitados e

prontos para agir em seu nome inclusive junto aos próprios negros. A estrutura escravista foi o

ideal para o corpo policial servir aos interesses da soberania e sobretudo à expansão da Coroa

portuguesa, que sugeriu a constituição do “ferro e fogo” do que se pode chamar força da

autoridade pelo braço policial.

Essa concepção de autoridade da soberania foi o viés perpetuado pela força pública de

Mato Grosso. Em seus primórdios se percebe essa alusão da força, prevalecendo suas práticas

de policiar os negros e pobres. Essas normatizações são pontos de legitimação desse modelo

policial na manutenção da ordem. Essa norma se maximiza no século XIX quando a legislação

policial, além de seus afazeres de policiar, continuou a caça aos escravizados como cotas dos

vencimentos. Isso fica patente nas normas que esclarecem: “Ficam pertencendo aos indivíduos

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deste Corpo as tomadas de escravos estipulados no antigo regimento de capitão do mato, que

lhes serão pagos pontualmente pelos respectivos senhores” (MONTEIRO, 1985, p. 14).

Nesse cenário constituído, a polícia tinha como prioridade a captura de pessoas negras,

independentemente se estes sujeitos se encontrassem em práticas delituosos ou não. Isto

denota que a polícia, em suas ações, sempre estabeleceu uma prática de opressão e de

perseguição em relação ao sujeito negro.

Por isso não é necessário um exame demorado para verificar que na organização deste

aparelho de Estado predominou o domínio e a preservação de interesses senhoriais. Com a

subordinação à Câmara Municipal que obviamente esteve vinculada às demais autoridades,

deixou evidências claras de divisão de categoria de classe – brancos e negros. Assim, criou-se

um instrumento militar específico dos grandes proprietários e de políticos para neutralizar em

quaisquer eventualidades aqueles protestos e algazarras promovidos pelos negros e pobres que

viessem a perturbar a ordem.

Por conta desse “domínio” que gerou preconceito, discriminação e outros fatores

sociais (categoria de classes, hierarquização etc.) observa-se que a criminalização preferencial

pelos negros foi e continua sendo uma das características predominantes na relação polícia e

sujeito negro na sociedade brasileira.

Esta tem sido uma realidade histórica do negro, identificado como personalidade

criminosa em potencial. Como escravo no Brasil colonial/imperial e marginalizado no Brasil

contemporâneo, de acordo com Bicalho (2005) controlar os negros e mantê-los em seu lugar é

o objetivo. Racismo e intolerância têm configurado a característica na ação da polícia a esses

“bandidos”, “perigosos” e “vagabundos”.

Nessa configuração do sujeito negro e polícia os resquícios preconceituosos

permanecem quase que nas mesmas condições do século XIX. Vejamos o exemplo desse

período: "A polícia das cidades, em obediência a dispositivos legais, agia no sentido de

prender qualquer escravo ou negro que andasse sem documento onde se provasse o seu direito

à livre circulação”. À menor suspeita, o negro era encarcerado. (COSTA, 1989, p. 315).

Esses procedimentos ficam claros na exposição de Bicalho (2005): esses indivíduos

eram retirados do meio social, pois tinham o comportamento considerado perigoso e

inaceitável, daí cabia à polícia coibir e controlar. Esse percurso histórico distorcido em relação

a este sujeito foi apresentado pelo autor acima citado (2005, p. 25), que relacionou fatos

jurídicos entre 1810 e 1821 que foram julgados pelo intendente de polícia do Rio de Janeiro.

Dessa relação apresentar-se-á alguns casos:

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a) Ofensa à ordem pública Número de casos Percentual

Capoeira 438 9,6

Desordem em grupo 283 6,2

Porte de arma 270 5,9

Suspeito 207 4,5

Desordem 160 3,5

Fora de hora nas ruas 123 2,7

Jogos proibidos 63 1,4

Insulto a policial 59 1,3

Vadiagem 51 1,1

Ajuntamento de negros 10 0,2

Insulto ao senhor O4 0,1

Porte de instrumento musical 04 0,1

Casos de fuga Número de casos Percentual

Fugas de escravos 751 16,4

Encontrado em quilombo 55 1,2

Conspiração contra o senhor 09 0,2

Possuir um esconderijo 06 0,1

Ofensa contra propriedade Número de casos Percentual

Roubo de roupa 223 4,9

Roubo de objetos 153 3,3

Roubo de animais 144 3,1

Roubo de comida 113 2,5

Roubo de dinheiro 86 1,9

Suspeita de ladrão 69 1,5

Roubo de escravos 31 0,7

Furto ao senhor 09 0,2

Ofensas com pessoas Número de casos Percentual

Briga 215 4,7

Atentado 137 3,0

Pancadas 73 1,6

Facadas 40 0,9

Agressão a transeunte 21 0,5

Tentativa de agressão 20 0,4

Tentativa de assassinato 16 0,3

Ataque ao senhor 15 0,3

Cabeçadas 14 0,3

Ofensas neutras Número de casos Percentual

A requerimento do senhor 134 2,9

A requerimento de terceiro 39 0,9

Já estar preso 15 0,3

Fuga de galés 11 0,2

Tentativa de suicídio 01 0,0

Total 4074 88.7

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Nos processos julgados no quadro acima, percebem-se atitudes suspeitas, por exemplo:

suspeito, porém não significa atitude criminal concreta. Outros exemplos: nos casos de

capoeira, desordens em grupo, não têm uma definição clara na concretização de crime. Outro

exemplo está no porte de arma, que além de não definir no processo a arma, não se percebe a

constatação se houve disparo ou perfuração em pessoas. Outras questões que evidenciam

preconceitos ao sujeito negro são: vadiagem, ajuntamento de negros, cujos aspectos, mesmo

para a época, são procedimentos de caráter vazio, vago.

A capoeira, por exemplo, só se tornou ilegal depois da promulgação do Código Penal

da República em 1890. O primeiro Código Criminal, que definiu os limites do comportamento

criminoso, é promulgado em 1830 (a pena mais severa, descrita neste código, era a morte por

enforcamento, aplicável somente a líderes de insurreição de escravos que envolvessem vinte

ou mais pessoas e a homicídio cometido em circunstâncias agravantes ou durante roubo), não

mencionando a capoeira – que mesmo não sendo tipificada como crime, é a segunda razão de

prisões (BICALHO, 2005).

Para o negro o crime já existia independentemente de existir normas reguladoras do

comportamento criminoso. Nessa perspectiva, a polícia foi constituída, militarmente, para

travar com estratégia aprimorada uma guerra social contra esses ‘perigosos adversários’ que

tinham rosto, utilizavam o espaço social e tinham identificação – o escravizado, bando de

capoeira, vagabundos.

O papel da polícia como aparelho de Estado e na condição de agente disciplinador

contra negros, livres ou escravos no Brasil existiu em seus vários períodos (GENNARI, 2011).

Essas ações policiais ao longo do tempo permitem compreender a existência de hostilidades

que permanecem sendo praticadas contra sujeitos negros, evidências de segregação racial e

social no país, resquícios ainda presentes na abordagem policial aos negros quando falta

dignidade humana (RIBEIRO, 2009).

A discussão da questão racial brasileira possibilita observação em diferentes momentos

históricos em que a Polícia Militar foi protagonista ativa na manutenção desse contexto racial

e desumano. Nesse sentido, as relações raciais se converteram em objeto de determinadas

racionalidades, tornando-se alvo de práticas políticas específicas. Afinal, como afirmou

Foucault (1999, p. 27), “não há relações de poder sem constituição correlata de um campo de

saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”. É

nessa perspectiva genealógica de entendimento que se deve empreender uma análise histórica

das políticas de possibilidades das discussões raciais e de suas relações com as ações policiais

militares.

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Nesse contexto, fica a impressão de que o preconceito racial se movimenta na

sociedade como uma herança política comportamental e insistentemente revivida em atos de

alguns policiais militares na relação com o cidadão. Neste viés, Guimarães (2004, p. 11) diz

que “o preconceito é visto como herança cultural ou como mecanismo de compensação

psicológica, sendo exemplos desta abordagem as conhecidas análises sobre a personalidade

autoritária ou as teorias de frustração-agressão”.

Guimarães (2004, p. 87) afirma que “o racismo brasileiro apenas torna-se visível na

medida em que a estrutura hierárquica da sociedade brasileira torna-se visível”. Essa

perspectiva nos remete às camadas sociais dominantes (política, eclesiástica e militar) no país

em sua estrada histórica. Daí provavelmente resulta de ações de policiais militares com esse

resquício cultural, autoridade e socialmente “acima” do cidadão, em especial do cidadão

negro, essa é a percepção que a polícia militar em algumas de suas abordagens tem do sujeito

negro. Nessa linha, Guimarães (2004) assinala que “o status social no Brasil ainda continua

sendo o grande fator impeditivo para a igualdade racial”.

6.2 Racismo institucional na Polícia Militar de Mato Grosso?

O racismo nasce quando se faz intervir caracteres biológicos como justificativa de tais

comportamentos. É justamente o estabelecimento da relação intrínseca entre caracteres

biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais que desemboca na

hierarquização das raças em superiores e inferiores.

Nessa dinâmica de raciocínio, dois países do Hemisfério Americano – Brasil e Estados

Unidos – guardariam modalidades específicas, tipo ideal, de relacionamentos entre negros e

brancos, como já mencionamos anteriormente. O Brasil portaria uma modalidade de

preconceito contra os negros classificado como preconceito racial de marca. Esta modalidade

seria diferente do que ocorreria nos EUA, onde o preconceito contra os negros foi classificado

como preconceito racial de origem (PAIXÃO, 2005).

Portanto, a discriminação seria uma perda de consciência, um desvio, ou seja, os

estereótipos, o preconceito e a discriminação são fenômenos que vêm sendo estudados desde a

década de 1920, segundo análise realizada por Lima e Pereira apud Santos (2009, p. 49), da

trajetória dessas categorias, da perspectiva sociológica, ao longo da história das ciências

sociais, com destaque para a psicologia. “A definição de preconceito procede

etimologicamente do termo latino Praejudicium, cuja significação original é julgamento

anterior, decisão ou sentença anterior”.

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O caráter cognitivo do preconceito e o papel do conhecimento para sua eliminação

passam a ser vistos com cautela. Os aspectos cognitivos podem ser condição necessária, mas

não suficiente para a compreensão e supressão de preconceitos. “Os preconceitos dispõem de

mecanismos individuais e sociais que impedem sua extinção via conhecimento e que,

portanto, escapam à crítica meramente racional” (Idem, 2009, p. 50).

Nesse sentido, os Direitos Humanos, enquanto cursos para policiais, não são

suficientes para suprimir seus preconceitos. Torna-se uma estratégia, porém duvidosa, já que

os resultados pautados em práticas sociais fortalecem os mecanismos individuais e

profissionais e dificultam a eliminação do preconceito via conhecimento.

Para inibir o racismo as duas medidas antirracistas mais difundidas pelas organizações

de Direitos Humanos para superação do preconceito são o conhecimento e a punição. O

conhecimento é necessário, mas não basta por si só. Quanto à punição, até os dias de hoje

também tem sido objeto de críticas.

Ainda segundo Santos (2009), os movimentos negros conviveram ao longo de quase

quatro décadas da vigência da legislação antidiscriminatória – a denominada Lei Afonso

Arinos – como o único instrumento para defender sua cidadania, numa situação hierarquizada

e com um regime autoritário que impossibilitava as manifestações públicas e as reivindicações

políticas que pudessem aproximá-la dos direitos proclamados na Declaração Universal dos

Direitos Humanos.

Em relação a outras reflexões, Santos (2009) enfatiza que na década de 1960 a luta

pelos direitos civis nos EUA, a luta contra o apartheid na África do Sul e o fim do

colonialismo nos países africanos e asiáticos representaram mudanças profundas nos estudos

sobre o racismo no mundo. Reconheceu-se que as instituições, práticas administrativas e

estruturas políticas e sociais podiam agir de maneira adversa e racialmente discriminatória ou

excludente. Também se reconhecia que os processos discriminatórios têm vida própria

causalmente, e isso independe da ação de uma pessoa individualmente racista.

O conceito de racismo foi ampliado para cobrir as formas de racismo institucional e

racismo estrutural. Conforme Ivair Santos (2009), o racismo passou a ser identificado como

uma situação que poderia ocorrer independentemente da vontade das pessoas, reconhecendo

que certas práticas, realizadas por instituições, não têm atitudes, mas podem certamente

discriminar, criar obstáculos, impedir e prejudicar os interesses de um grupo por causa de sua

raça, de sua cor. Mesmo que as instituições sejam administradas, governadas por pessoas não

racistas ou crentes em teorias racistas, elas podem estar sujeitas ao racismo inconsciente.

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A admissão da existência do racismo hoje é muito grande, mas prová-la é muito difícil.

Contudo, a prova mais importante da sua existência está na condição de inferioridade dos

negros, que pode ser evidenciada por qualquer indicador social que se escolha, em qualquer

período da história da República no Brasil.

Esta abordagem leva a se imaginar uma sociedade cujos segmentos dominantes não

tenham consciência do seu racismo e, no limite, aparentemente tenham até atitudes

antirracistas. O que asseguraria uma posição no mínimo confortável, um afastamento de

qualquer situação de mudança, e se conviveria com um racismo disfarçado, invisível, ao

mesmo tempo em que aquelas elites auferem vantagens dessas situações.

As causas do racismo são camufladas, não detectáveis aparentemente enquanto seus

efeitos são tangíveis. A força da ideia do racismo institucional está em denunciar a

discriminação racial dissimulada, e em levar à consciência de que não é possível esperar que,

espontaneamente e de maneira voluntária, ocorram mudanças nas condições sociais da

população negra; é preciso investimento das instituições.

A proposta do racismo institucional sugere que atravessa as estruturas sociais como,

por exemplo, o sistema de justiça, sem ter necessidade de uma forte estruturação ideológica ou

doutrinária, e pode ainda depender de mecanismos que funcionam sem atores sociais. Tendo o

mérito de acentuar as formas não flagrantes ou brutais do racismo, suas expressões “sutis”

circulam nas instituições (SANTOS, 2009).

O racismo institucional gera hierarquias através de práticas profissionais rotineiras,

ditas “neutras” e universalistas, dentro de instituições públicas ou privadas que controlam

espaços públicos, serviços ou imagens (lojas, bancos, supermercados, shoppings, empresas de

segurança privada).

Discutir a existência de racismo no Brasil ainda é um tema distante para parte

significativa da sociedade. Reconhecer que esse racismo possa ocorrer decorrente de práticas

ou omissão de instituições ainda não faz parte do conceito das agências do sistema de

policiamento policial militar, por exemplo.

É preciso refletir sobre o cotidiano institucional que é repleto de situações que servem

de objeto de arguição, em especial sobre abordagem operacional como resultante de um

comportamento normativo e disciplinar que consolida conceitos historicamente enraizados, os

quais se repassam de turma a turma. Sob o enfoque da tradição, é significativo visualizar a

contradição em sua função social na manutenção da ordem e da segurança delineadas por

princípios de Direitos Humanos. Portanto, é significativo a Corporação Policial Militar do

Estado de Mato Grosso refletir sobre o racismo institucional, pois, a sua relação é com a

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sociedade que é composta por pessoas negras, brancas, ricas, pobres, e em vários momentos as

ações policiais são demarcadaspor atitudes com características de preconceitos raciais.

6.3 Direitos do cidadão e a prática policial

A Instituição Policial Militar foi formada como instituição moderna através das

diversas práticas sociais e políticas marcadas pelas transformações da sociedade europeia,

principalmente com a consolidação do modelo urbano-industrial capitalista, que promoveu o

surgimento de toda uma rede de instituições de vigilância, controle, correção e adestramento

na formação da sociedade contemporânea (SALUSTRIANO, 2008).

Percebe-se que a Instituição Policial quer se apresentar à sociedade como protetora dos

direitos, da lei e da justiça, garantindo a segurança de todas as pessoas, porém ao mesmo

tempo sua imagem tem se tornado negativa, quando apenas não deixa de garantir a segurança

de todas as pessoas, mas quando passa a ser identificada como violenta, corrupta e

transgressora das leis.

No início do século XX, as favelas do Rio já eram consideradas pela polícia e pelos

setores conservadores como locais perigosos e refúgio de criminosos. Verifica-se, então, uma

forte discriminação da população residente nessas áreas. O preto, por exemplo, via de regra

não soube ou não pôde aproveitar a liberdade adquirida e a melhoria econômica que lhe

proporcionou o novo ambiente para conquistar bens de consumo capazes de lhe garantirem

nível decente de vida (SALUSTRIANO, 2008).

A favela, assim como a periferia, é frequentemente tomada, no senso comum, como

ocupação ilegal, somente morador negro e pobre é visto como local de vigência da

criminalidade violenta a ser civilizado, educado, regulamentado. Nela a violência tem cada

vez mais se tornado algo “normal”, e normalmente seus moradores estão sob pressão da

polícia.

Essa pressão é determinada pela frequência da abordagem policial a pessoas que

moram nas periferias, aos negros, aos tatuados, dentre outros. Essa seleção do abordado é

orientada pelo preconceito contra pobres e pelo racismo contra negros. Teoricamente, a

polícia tem o propósito de ser órgão democrático, que defende direitos e liberdades, prevenir

violações, em benefício dos direitos do cidadão e da disseminação dos princípios de

igualdade. Mas na prática a ação é outra. Do negro escravizado ao negro abordado.

Só para não esquecer que o negro na condição de escravo era coisa, eles eram

comercializados como se não tivessem valor algum, privados de direitos. O escravo não era

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pessoa, não era concebido como um ser racional. Ele não se pertencia. No Brasil, Skidmore

(1976) faz referência ao pensamento de Nina Rodrigues que foi dominante no pós-abolição,

no final do século XIX e início do XX. Skidmore (1976, p. 76) salienta esse pensamento na

ótica criminal e médica, esclarecendo que para Nina Rodrigues o germe da criminalidade era

fecundado pela tendência degenerativa da mestiçagem e pela impulsividade dominante das

“raças inferiores”, pois o “mestiço tem sempre o potencial para regredir”, e ainda considerou

que “um ex-escravo estava impossibilitado de se comportar como civilizado”.

De acordo com Ribeiro (2000, p. 113), os negros do Brasil foram trazidos

principalmente da costa ocidental africana [...], distingue, quanto aos tipos culturais, três

grandes grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente pelos

grupos Yoruba – o segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, os Peuhl, os

Mandinga e os Haussa do norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros malês e no

Rio de Janeiro como negros alufá, e o terceiro grupo era integrado por tribos Bantu, do grupo

congo-angolês, proveniente da área hoje compreendida por Angola e a contra Costa, hoje

território de Moçambique.

Ainda no processo histórico, no caso da população negra, foi a escravidão que

legitimou o castigo nos corpos negros nas casas-grandes e senzalas. O Brasil, por quase quatro

séculos, utilizou a chibata como método de disciplinamento e castigo. Logo no início do

Império, o Código Criminal de 1830, apesar de ser considerado “avançado” para a sua época

por prever garantias legais, tais garantias, no entanto, se referem basicamente à população

livre. Para os cativos, será um instrumento legal para a prática de penas e tratamentos cruéis.

Conforme os artigos 14 e 60:

Art. 14, § 6. É justificável o mal cometido no castigo moderado aplicado pelo senhor

ao escravo, ou o que dele resultar.

Art. 60. Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja capital ou de galés,

será condenado na de açoites e, depois de os sofrer, será entregue ao seu senhor, que

se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar.

Mesmo com as normativas escravistas, é necessário considerar o período pós-abolição,

o contexto republicano e suas diversas legislações penais, observamos a persistência de um

modelo de punibilidade e criminalização no sistema jurídico brasileiro que, não obstante as

alterações e as reformas, não sofreu modificações estruturais significativas. Segundo o jurista

Zaffaroni (2007):

Todas as sociedades contemporâneas que institucionalizam ou formalizam o poder

(Estado) selecionam um reduzido número de pessoas que submetem à sua coação

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com o fim de impor-lhes uma pena. Esta seleção penalizante se chama

criminalização e não se leva a cabo por acaso, mas como resultado da gestão de um

conjunto de agências que formam o chamado sistema penal (ZAFFARONI, 2007, p.

43).

Partindo deste princípio, a normativa do poder penal brasileiro não contempla de forma

satisfatória quando seleciona um grupo específico a ser penalizado. Muitos estudiosos do

direito crítico sustentam a posição de que não há estados de direito reais (históricos) perfeitos,

mas apenas estados de direito que contêm (mais ou menos eficientemente) os estados de

polícia (ZAFFARONI, 2007). Esta seletividade permite que os grupos mais vulneráveis da

sociedade sejam mais penalizados.

Nesse percurso normativo, diz Rondon Filho (2013), o negro é marcado pela infe-

riorização e pela estigmatização, variantes processadas nas espacialidades e nas

temporalidades, resultando em antagonismos e ambivalências entre o status quo em vigor e as

formas de resistência, individuais e coletivas, o que nos obriga a refletir sobre as

contingências desse fenômeno social.

O sentimento de pertencimento nos polos da relação polícia-sociedade normalmente se

perde ou se esvaece em razão do contraste “nós”/“outros”, marca de uma barreira entre o

mundo de dentro dos quartéis, cuja historicidade é beneditina e moduladora de corpos e

mentes, e o mundo da pólis, onde a civilidade deveria ser a regra mas que se transforma em

palco de desumanidades por parte de quem deveria promover os direitos humanos e bem

cuidar.

O autor ainda comenta que é a heresia etiológica, referenciando Thompson, um

resquício da teoria lombrosiana:

Mesmo de “alma limpa” um indivíduo pertencente aos estratos sociais mais baixos

tende a ser considerado perigoso, criminalmente falando, porque é desprovido de

valores externalizados (roupas, sapatos, carros etc.) aceitos pela ideologia

dominante. Há contra ele uma rejeição natural, pois é mais visível e acaba por ser

percebido como a violência encarnada; inclusive, quando pratica crimes, mesmo que

similares aos praticados por pessoas pertencentes às camadas mais altas da

sociedade, sua pena é mais rigorosa (RONDON FILHO, 2013, p. 270).

É nessa seara que o sujeito negro se encontra, na condição de abordado e autuado,

mesmo com o prescrito no artigo1º da Constituição Federal do Brasil de 1988 “[...] a

República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e

do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”, mesmo assim as pessoas

conceituadas de maneira estereotipada normalmente sofrem a ação policial mais rígida,

vigorosa e com preconceito racial e discriminação.

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Essa forma de intervenção negativa por parte de alguns policiais parece ter alguma

relação com as ideias de Foucault (1999) no sentido de internalizar a autoridade policial

militar diante do exercício do poder que é desenhado nessas ações: percebe-se que nessas

abordagens o ato é sobre o súdito/indivíduo. E o direito atua nesse quadro como o instrumento

destinado à legitimação dessa intervenção.

A soberania só é legítima quando exercida segundo os parâmetros que as regras

normativas lhe conferem. Fora desse perímetro (o da lei) há abuso, excesso, arbitrariedade,

tirania, como lembra Machado (1999a, p. XV). Convém levar em consideração que as teorias

que radicalizariam a crítica, do abuso de poder vão apresentá-lo (o poder) não como esse ente

que está em busca de transgressão das regras de direito, mas como sendo o próprio direito “um

modo de legalizar o exercício da violência e o Estado o órgão cujo papel é a realização da

repressão”. Assim, tanto na perspectiva a qual o direito deve ser um obstáculo ou uma forma

de mitigação dos excessos do poder soberano como naquelas que reconhece no direito o

instrumento pelo qual a violência se legaliza – vendo no Estado o instrumento dessa repressão

– estar-se-á pensando o tema do poder pela ótica do direito.

Seguindo esse percurso normativo, a primeira ação do Programa Nacional de

Segurança com Cidadania – Lei 11.707 de 19 de junho de 2008 que alterou a Lei 11.530 de 24

de outubro de 2007, expressa o compromisso do Brasil com a promoção dos direitos humanos,

intensificando a cultura de paz, de apoio ao desarmamento e de combate sistemático aos

preconceitos de gênero, étnico, racial, geracional, de orientação sexual e de diversidade

cultural. Mas, por parte de alguns policiais militares, casos de violações dos direitos humanos

continuam a acontecer nesse campo de trabalho. É relevante enfatizar que o Brasil é signatário

da maioria dos tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos.

No caminho desse tema, Santos (2013) observa que houve avanços na Constituição de

1988, sobretudo na prevalência dos princípios dos Direitos Humanos como paradigmática ao

ordenamento jurídico. A Constituição incorporou no art. 5º, inciso LXII: “a prática do racismo

constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei”.

Assim, ao transformar a discriminação racial e o preconceito de cor em crime inafiançável e

imprescritível (através do art. 20 da Lei n. 7716, de 1989), ensejou-se que esses avanços

fossem assimilados pelo sistema penal. No entanto, o sistema penal, na visão do autor, ainda

“exerce a função social de reproduzir as relações sociais e de manter a estrutura vertical da

sociedade e os processos de marginalização das populações negras” (SANTOS, 2009, p. 44).

Mesmo com avanços considerados significativos, o autor acima mencionado afirma

que a violência policial e os grupos de extermínio existentes que causam medo às pessoas

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pretas e pardas constituem-se no padrão de práticas policiais que remontam ao período da

ditadura militar no Brasil, as quais não estão ainda plenamente prescritas. No geral, a atuação

dos policiais ainda não deixa de levar em consideração a cor da população, isto é, em algumas

ações policiais as normatizações não são levadas em conta, “a cor da pele é a lei”, os direitos

individuais não são respeitados.

6.4 A confiança da população nas abordagens operacionais

Ainda nessa perspectiva, o mesmo autor apresenta a opinião da maioria das pessoas,

particularmente da população negra, que é desfavorável à forma de atuação das polícias. Os

motivos estão baseados na experiência própria ou no conhecimento do trato das forças

policiais. Em dezembro de 1995 o Instituto Datafolha iniciou pesquisa sobre a imagem da

polícia entre os moradores de São Paulo e do Rio de Janeiro, entrevistando 1.721 pessoas.

Logo após a televisão ter mostrado sucessivamente as imagens da violência cometida na

Favela Naval, em Diadema, outra pesquisa, com 1.080 paulistas, foi imediatamente aplicada

para conhecer os efeitos dessas imagens nas avaliações sobre o trabalho policial.

As diferenças nas opiniões se revelam quando é levada em conta a cor dos

entrevistados: os brancos referiram-se mais aos problemas da ineficiência e da corrupção

enquanto negros relacionavam a polícia à questão da violência por ela praticada. Somente

11% dos brancos, em contraste com 20% dos negros, revelaram sentir medo da polícia

(SANTOS, 2013).

Nas abordagens policiais na rua, situação em que a atuação dos agentes de segurança é

menos sujeita ao controle de outras esferas do Estado, surgem mais oportunidades para que

preconceitos relacionados com o fenótipo adquiram maior peso na aplicação da lei e da

ordem.

Santos (2013) corrobora essa questão através de uma pesquisa de 2003, feita com

2.250 cariocas na faixa etária entre 15 e 65 anos, que revelou que 37,8% dos entrevistados,

que eram negros, tinham sido parados alguma vez pela polícia. A mera incidência de

abordagens varia significativamente por sexo e por idade, mas não por cor ou raça

autodeclarada, nem por renda ou escolaridade.

No entanto, se todos são parados pela polícia com a mesma frequência, as pessoas

pretas e pardas são revistadas em maior proporção: dos cariocas que se autodeclararam pretos

e que haviam sido abordados pela polícia, a pé ou em outras situações, mais da metade (55%)

disse ter sofrido revista corporal, contra 38,8% dos pardos e 32,6% dos brancos. Os números

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indicam que os policiais, quando se deparam com transeuntes brancos, mais velhos e de classe

média (sobretudo quando circulam por áreas nobres do Rio de Janeiro), têm maior pudor em

revistá-los – procedimento fortemente associado à existência de suspeição e, em geral,

considerado em si mesmo humilhante.

Esse medo revelado na pesquisa estaria relacionado à opinião de que os policiais,

quando entram em ação, “são violentos”, “ferem pessoas inocentes nos tiroteios”, “abordam

qualquer pessoa e confundem bons cidadãos com bandidos” ou ainda “só abordam os negros”.

Finalmente, a pesquisa de vitimização de dezembro 1997, feita em conjunto pelo Datafolha e

o Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção ao Delito e Tratamento do

Delinquente (ILANUD), corrobora esses padrões: quando se conversa sobre violência, a

referência à polícia era maior entre os negros, especialmente no aspecto violência e abuso de

poder.

Com efeito, quando os entrevistados foram perguntados em 1995 pelo Datafolha se

sentiam mais confiança do que medo, ou mais medo do que confiança na polícia, os negros

apresentaram a maior taxa de “mais medo do que confiança”, no que se referia à Polícia

Militar. A mesma tendência se manteve quando a questão foi repetida em abril de 1997. Entre

os negros, aliás, muitos revelaram ter mais medo da polícia que dos próprios bandidos. A

proporção dos que disseram ter mais medo da polícia do que dos bandidos aumentava entre

aqueles que já haviam sido parados alguma vez para serem revistados. Os dados e, sobretudo,

as consequências eram ainda mais dramáticos quando se avaliava o fenótipo dos mortos pela

polícia.

Santos (2013) traz uma ocorrência em tramitação contra o Estado brasileiro na

Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que envolve violência policial e

racismo. É o caso de Wallace de Almeida, denunciado pelo Núcleo de Estudos Negros (NEN)

e pelo Centro de Justiça Global (CJG). Recebeu o n° 12.240/Wallace de Almeida, conforme o

disposto nos artigos 44 e 46, 2 alínea c da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e

26, 27 e 32 do Regulamento da Comissão.

Wallace de Almeida era um soldado do Exército, de 18 anos, que foi baleado pelas

costas por policiais, na porta da casa de sua mãe, dona Ivanilde, no Morro da Babilônia, Zona

Sul do Rio de Janeiro. Depois de invadirem a casa e insultar parentes do rapaz, os policiais

literalmente arrastaram-no morro abaixo. Wallace chegou ao hospital debilitado, vindo a

falecer em seguida.

O caso envolve circunstâncias como a relação entre violência policial e racismo, a

imparcialidade de inquéritos policiais em crimes do gênero, a capacidade sancionadora do

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aparelho judicial e, em última instância, os limites da tutela do Estado na punição de crimes

contra os Direitos Humanos.

O aumento de violência contra o negro ainda é uma realidade nos dias atuais, tanto que

o Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde Mapa da Violência/2013

oferece informações referentes à raça/cor das vítimas (WAISELFISZ, 2013). Pode-se observar

uma acentuada tendência de queda no número absoluto de homicídios na população branca e

de aumento nos números de vítimas na população negra.

Nos dados ofertados nas análises de Waiselfisz (2013) percebe-se que no conjunto da

população o número de vítimas brancas caiu de 18.867 em 2002 para 13.895 em 2011, o que

representou um significativo decréscimo: 26,4%. Já as vítimas negras cresceram de 26.952

para 35.207 no mesmo período, isto é, aumento de 30,6%. Assim, a participação branca no

total de homicídios do país cai de 41% em 2002 para 28,2% em 2011. Já a participação negra,

que já era elevada em 2002 (58,6%), cresceu mais ainda e vai para 71,4%. Com esse

diferencial a vitimização negra passa de 42,9% em 2002 – nesse ano morrem

proporcionalmente 42,9% mais vítimas negras que brancas – para 153,4% em 2011, em um

crescimento contínuo, ano a ano, dessa vitimização (WAISELFISZ, 2013).

Esse cenário também envolve a violência policial, ações policiais junto a população

negra e pobre, nos remete a um quadro de desconfiança, e, esse sentimento é demonstrado no

trabalho de Alcadipani (2013) que relata: a polícia ainda é comumente temida e vista enquanto

uma instituição que comete injustiças. Esse enunciado é constatado pelos dados produzidos

pela pesquisa Índice de Confiança na Justiça brasileira (ICJBrasil), realizada pela Escola de

Direito da Fundação Getulio Vargas e apresentados no Anuário Brasileiro de Segurança

Pública. A respeito da confiança nas instituições, revela que as polícias brasileiras estão entre

as instituições menos confiáveis do país. O dado é alarmante: 70% dos entrevistados, pela

pesquisa realizada em sete Estados brasileiros e no Distrito Federal, disseram não confiar nas

polícias brasileiras.

6.5 As normas para policiais e cidadãos

Uma das características mais marcantes da nossa vida social e política é falar sobre

direitos e, no entanto, sem a compreensão necessária. Isso está claro na Constituição Federal

de 1988 que em seu art. 3º- item III traz como objetivos fundamentais da República a

erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais.

Em seu art. 5º – Dos Direitos e Garantias Fundamentais: “Todos são iguais perante a lei, sem

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distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no

País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Esses artigos da nossa legislação asseguram a todos o direito à vida, à igualdade e à

segurança. Esses deveres do Estado têm sido violados constantemente, e isso impede a

efetivação da cidadania.

Racismo, tortura e extermínio são as consequências desse abandono que resulta no não

cumprimento da lei, sem que se promova o bem de todos no que diz respeito a origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º - item IV).

Ainda neste aspecto, a Declaração de Viena e o Programa de Ação, adotados pela

Conferência Mundial de Direitos Humanos em junho de 1993, clamam pela rápida e

abrangente eliminação de todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e

intolerância correlata na Declaração e Programa de Ação adotada em 8 de setembro de 2001

em Durban, África do Sul.

Certamente que a luta por um ideal comum, como Symonides (2003) diz, começa pelo

reconhecimento do direito de todas as pessoas ao patrimônio comum de conhecimentos

historicamente produzidos pela humanidade, e que deve possibilitar a todos padrões mínimos

que qualificam a existência. Configura-se, portanto, como uma luta incessante em que cada

um cotidianamente deverá dar sua contribuição. Daí a importância de um processo

permanente de educação que acompanhe toda a vida.

Além disso, Rabenhorst (2008, p. 14) afirma que uma das características mais

marcantes da nossa vida social e política é que estamos sempre a falar sobre direitos. De fato,

raros são os dias em que não dizemos ou ouvimos alguém dizer frases do tipo “você não tem o

direito de fazer isso comigo!”; “eu tenho o direito de ser feliz!”; “temos o direito de ir e vir

livremente”, e assim por diante.

Durante séculos, milhões de seres humanos, nos mais diversos lugares do mundo,

inclusive no Brasil, foram reduzidos à condição de escravos e submetidos aos tratamentos

mais cruéis e degradantes que podemos imaginar (RABENHORST, 2008). Até bem pouco

tempo atrás, a violência contra a mulher e o abuso sexual de crianças despertavam apenas

indignação moral. Hoje acarretam punições jurídicas.

O autor acima citado (p. 14) afirma que direitos não são apenas demandas por justiça.

Eles são, também, o reconhecimento de que algo nos é devido. Nesse sentido, direitos não são

favores, súplicas ou gentilezas. Se existe um direito, é porque há um débito e uma obrigação

correlata. Por conseguinte, não se pede um direito, luta-se por ele. Quando reivindicamos algo

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que nos é devido, não estamos rogando um favor, mas exigindo que justiça seja feita, que o

nosso direito seja reconhecido.

Ainda mais: os direitos não são apenas frases escritas em um pedaço de papel, mas é

preciso que se convertam em obrigações plenamente realizadas e para isso faz-se necessária a

existência de dois grandes instrumentos. Em primeiro lugar, os instrumentos jurídicos, que são

as leis, no sentido mais amplo da palavra (declarações, tratados, pactos, convenções,

constituições etc.), e as instituições responsáveis por sua aplicação. Em seguida, os

instrumentos extrajurídicos resultantes do poder social, isto é, da própria capacidade de

organização e de reivindicação (movimentos sociais, associações de moradores, partidos

políticos, sindicatos etc.).

E o mais importante, reafirma Rabenhorst (2008) diante da observação do filósofo

alemão Immanuel Kant: podemos avaliar as coisas pelo preço ou pela dignidade. Tudo aquilo

que pode ser substituído por algo equivalente tem um preço. Um objeto, um produto, um

serviço, tudo isso pode receber um preço econômico ou um valor afetivo. Contudo, existe algo

que não pode ser substituído por nada de equivalente e que é a própria vida humana.

Por essas e outras razões é que se convencionou usar a expressão direitos humanos.

Direitos humanos são exatamente os direitos correspondentes à dignidade dos seres humanos.

São direitos que temos não porque o Estado assim decidiu através de suas leis, ou porque nós

mesmos assim o fizemos por intermédio dos nossos acordos. Direitos humanos, por mais

pleonástico que isso possa parecer, “são direitos que temos pelo simples fato de que somos

humanos” (RABENHORST, 2008, p. 15).

Os direitos humanos, de acordo com Pequeno (2008), são aqueles princípios ou valores

que permitem a uma pessoa afirmar sua condição humana e participar plenamente da vida.

Tais direitos fazem com que o indivíduo possa vivenciar plenamente sua condição biológica,

psicológica, econômica, social cultural e política. Os direitos humanos se aplicam a todos os

homens e servem para proteger a pessoa de tudo que possa negar sua condição humana. Com

isso, eles aparecem como um instrumento de proteção do sujeito contra todo tipo de violência.

Pretende-se com isso afirmar que eles têm, pelo menos teoricamente, valor universal, ou seja,

devem ser reconhecidos e respeitados por todos os homens, em todos os tempos e sociedades

(PEQUENO, 2008).

Nessa perspectiva de fundamentar os direitos humanos Tosi (2008, p. 49) elabora que

após a experiência terrível dos horrores das duas guerras mundiais, dos regimes liberticidas e

totalitários, das tentativas “científicas”, em escala industrial, de extermínio dos judeus e dos

“povos inferiores”, época que culminará com o lançamento da bomba atômica sobre

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Hiroshima e Nagasaki – os líderes políticos das grandes potências vencedoras criaram, em 26

de junho de 1945, em São Francisco, a Organização das Nações Unidas (ONU) e confiaram-

lhe a tarefa de evitar uma terceira guerra mundial e de promover a paz entre as nações.

Consideraram que a promoção dos “direitos naturais” do homem fosse a condição necessária

para uma paz duradoura. Por isso, um dos primeiros atos da Assembleia Geral das Nações

Unidas foi a proclamação, em 10 de dezembro de 1948, de uma Declaração Universal dos

Direitos Humanos, cujo primeiro artigo reza: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em

dignidade e em direitos. São dotadas de razão e de consciência e devem agir em relação umas

às outras com espírito de fraternidade”.

A declaração não esconde, desde o seu primeiro artigo, a referência e a homenagem à

tradição dos direitos naturais: “Todas as pessoas nascem livres e iguais”. Ela pode ser lida

assim como uma revanche histórica do direito natural, uma exemplificação do “eterno retorno

do direito natural”, promovida pelos políticos e diplomatas, na tentativa de encontrar

“amparo” contra a volta da barbárie.

Pequeno (2008) também crê que a atribuição de direitos naturais ao indivíduo se

inspira na ideia de que o homem é um ser provido de sensibilidade e razão, capaz de se

relacionar com o seu semelhante e de constituir as bases do seu próprio viver. Além disso, ele

é também caracterizado pela sua tendência à sociabilidade, autonomia da vontade, capacidade

de dominar os instintos e de seguir normas de conduta moral. Todos esses elementos

caracterizam a sua humanidade e servem para justificar aquilo que marca a sua essência

fundamental: a dignidade. O fundamento dos direitos humanos está baseado na ideia de

dignidade.

A dignidade é a qualidade que define a essência da pessoa humana, ou ainda é o valor

que confere humanidade ao sujeito. Trata-se daquilo que existe no ser humano pelo simples

fato de ele ser humano. Cada homem traz consigo a forma inteira da condição humana,

afirmava o filósofo francês Montaigne apud Pequeno (2008), ao se referir a esse elemento que

nos define em nossa condição própria de ser.

A ideia de dignidade deve, pois, garantir a liberdade e a autonomia do sujeito. Tal

noção nos permite afirmar que todo ser humano tem um valor primordial, independentemente

de sua vida particular ou de sua posição social. Eis por que o homem deve ser considerado

como um fim em si mesmo, jamais como um meio ou instrumento para a realização de algo

(KANT apud PEQUENO, 2008). O homem é um ser cuja existência constitui um valor

absoluto, ou seja, nada do que existe no mundo lhe é superior ou equivalente.

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Marconi Pequeno enfatiza que a dignidade é um valor incondicional (ela deve existir

independentemente de qualquer coisa), incomensurável (não se pode medir ou avaliar sua

extensão), insubstituível (nada pode ocupar seu lugar de importância na nossa vida), e não

admite equivalente (ela está acima de qualquer outro princípio ou ideia). Trata-se de algo que

tem uma dimensão qualitativa, jamais quantitativa. A dignidade tem um valor intrínseco, por

isso uma pessoa não pode ter mais dignidade do que outra.

Diante disso, Pequeno (2008a) define que a noção de sujeito surge com a filosofia

moderna. Trata-se de uma das noções fundadoras do humanismo e de alguns dos principais

valores do mundo ocidental. Ela aparece, inicialmente, com o filósofo francês René Descartes

(1596-1650), que concebe o sujeito como um ser dotado de consciência e razão, instrumentos

que lhe permitem conhecer o mundo e a si mesmo.

Ainda segundo Pequeno (2008a, p. 29), o sujeito funda o conhecimento a partir da

faculdade que lhe é superior: o pensamento. O pensamento ou o uso da razão destina-se não

apenas a fazer o sujeito chegar ao conhecimento, mas também impede que ele seja dominado

por suas paixões e desejos. O sujeito existe, primeiramente, como um ser dotado de

pensamento e sua existência decorre do fato de ele pensar. Descartes é o autor da famosa

frase: penso, logo existo. Aos poucos, essa noção será enriquecida pela ideia de que o sujeito

não apenas pensa, mas também tem sua existência determinada por sentimentos e emoções.

O sujeito é, pois, concebido como uma pessoa que existe no tempo e no espaço, e que

tem pensamentos, percepções, sentimentos, desejos e motivações, cuja existência encontra na

convivência com o outro a sua plena realização. Trata-se de um ser complexo formado por

diversas esferas como a biológica, a psicológica, a cultural, a moral e a política, sendo que o

desenvolvimento dessas dimensões determinou o progresso e os rumos da nossa civilização.

Com esta noção, prossegue Pequeno (2008a) também surgem alguns dos princípios

fundamentais da vida social, como a definição do direito como uma qualidade moral e a

caracterização do indivíduo como uma pessoa detentora de dignidade. O termo pessoa nos

conduz à ideia de um sujeito moral dotado de autonomia, liberdade e responsabilidade. A

pessoa humana é também o sujeito central dos direitos humanos. O sujeito, ao ser apresentado

sob a forma de pessoa humana, terá agora um instrumento privilegiado de defesa, promoção e

realização de sua dignidade: os direitos humanos. Ao sujeito de direitos acrescenta-se agora o

fato de ele ser, igualmente, um sujeito de direitos humanos.

Por causa de deploráveis práticas de violações contra o ser humano é que foi

construído o consenso de que os seres humanos devem ser reconhecidos como detentores de

direitos inatos, ainda que seja do ponto de vista filosófico e causando controvérsias. Por isso

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mesmo, pode-se dizer que os direitos humanos guardam relação com valores e interesses que

são fundamentais e que não podem ser barganhados por outros valores ou interesses

secundários.

Percebe-se que a Polícia Militar ao longo do tempo teve seu papel fundamental em

defender uma categoria, obviamente que esse comportamento classifica as pessoas como

inferiores e superiores, perigosas ou não, além da sustentação de que o sujeito negro sempre

foi escravo e devia ser capturado, castigado e morto, independente de estar livre ou

escravizado, de ser criminoso ou não. Portanto, ser abordado é o estigma.

Por outro lado, existe a tentativa de humanizar a Polícia Militar com políticas públicas,

pelo menos, com a criação da Matriz Curricular Nacional com a proposta de formar policiais

no contexto democrático. Essa iniciativa deve ser fortalecida, pois há o consenso humanitário

de que as práticas discriminatórias continuam sendo reproduzidas (intencionalmente ou não)

nas rotinas operacionais, preventivas ou repressivas da Polícia Militar. O hábito da seleção dos

suspeitos continua, em vários momentos, sendo orientado pelo preconceito ao Ser Humano,

pelo estigma da pobreza e pelo racismo contra os negros. Todos devem ser tratados, nas ações

policiais militares, com dignidade humana.

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CAPÍTULO VII – RESULTADOS DA PESQUISA

Este capítulo tem como objetivo apresentar os resultados da pesquisa de campo,

resultante de: a) análise dos documentos tais como: o projeto político pedagógico; Manual do

Aluno; Lei de Ensino da Polícia Militar e Estatuto dos Militares do Estado de Mato Grosso; e

Matrizes Curriculares de 2003, 2005, 2008 e 2011 do Curso de Formação de Soldado PMMT,

com o propósito de ampliar a compreensão sobre a formação policial militar e a prática de

abordagem; b) apresentar também os resultados do questionário aplicado e das entrevistas

feitas aos policiais militares operacionais para compreender suas crenças, valores, critérios de

seleção de suspeição, a percepção do preconceito racial em suas abordagens; c) analisar as

entrevistas feitas com os abordados para compreender suas percepções a respeito das ações

policiais; d) descrever cenas de abordagens, fruto de observação participante realizada com o

objetivo de apreender como ocorre a ação dos policiais, em especial na relação com o sujeito

negro. A observação foi realizada na Arena Pantanal, por ocasião da Copa do Mundo, nos dias

17, 21 e 24 de junho de 2014, e do policiamento ostensivo motorizado nos dias 14/10/2014,

período noturno; 23/10/2014, período vespertino; 24/10/2014, período matutino; 31/10/2014 e

22/11/2014 – operações específicas de abordagens.

7.1 Apresentação das análises

7.1.1 Projeto Político Pedagógico

O Projeto Político Pedagógico (PPP) foi instituído pela Lei n. 408/10 (Lei de Ensino

da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso). Art. 1º: a Polícia Militar do Estado de Mato

Grosso, tendo em vista o disposto no Art. 83 da Lei Federal 9.394, de 20 de dezembro de

1996, “manterá sistema próprio de ensino, com a finalidade de proporcionar ao respectivo

pessoal a capacitação para o exercício dos cargos e funções previstos em sua organização”

(MATO GROSSO, 2010).

O projeto busca um rumo, uma direção. É uma ação intencional, com sentido explícito,

com um compromisso definido coletivamente. Por isso, todo projeto pedagógico da escola é,

também, um projeto político por estar intimamente articulado ao compromisso sociopolítico

com os interesses reais e coletivos da população majoritária. É político no sentido de

compromisso com a formação do cidadão para um tipo de sociedade. Na dimensão

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pedagógica reside a possibilidade da efetivação da intencionalidade da escola, que é a

formação do cidadão participativo, responsável, compromissado, crítico e criativo.

Pedagógico, no sentido de definir as ações educativas e as características necessárias às

escolas de cumprirem seus propósitos e sua intencionalidade (VEIGA, 2002).

O Projeto Político Pedagógico da Polícia Militar está vinculado à implantação das

Bases Curriculares para a Formação dos Profissionais da Área de Segurança do Cidadão,

utilizando recursos estaduais e do Fundo Nacional de Segurança Pública para a readequação

do ensino policial em Mato Grosso, tendo como referência o documento publicado pelo

Ministério da Justiça em 2000, denominado "Bases Curriculares para Formação dos

Profissionais de Segurança do Cidadão" (BRASIL, 2000, p. 06).

Diante disso, o projeto político tem a finalidade de constituir um instrumento de

concretização e gestão da autonomia, se for entendido na sua elaboração como um documento

gerador de perspectivas, de culturas e saberes profissionais com a participação da comunidade

(LEITE, 2001). Partindo desse princípio, a formação policial militar que é realizada no Centro

de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) deveria vislumbrar essas dimensões

social, cultural e estrutural.

O Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças é o órgão responsável pela

formação de sargentos, cabos e soldados. Ao iniciar o curso, os princípios de autonomia e de

cidadania que o documento sugere perdem essas dimensões. O aluno deverá comprovar que

tem qualidades e atributos essenciais à função policial militar, isto é, apreender a

hierarquização, superar o esforço físico, atingir o amadurecimento militar. É o momento dos

rituais, das cerimônias e da iniciação do policial militar.

A dimensão militar constitui-se, assim, nos propósitos do Projeto Político Pedagógico

como um dos eixos fundamentais requeridos para o êxito da formação policial militar. Isso

fica claro ao verificar seus objetivos:

Geral - Orientar as atividades e execução do Curso de Formação de Soldados da

Polícia Militar do Estado de Mato Grosso no ano de 2010/2011. Específicos -

Promover uma formação técnica voltada para a atividade fim do policial militar,

respeitando o propósito constitucional ancorado no culto aos valores estatuídos nos

regulamentos e normas bem como preservar a ética militar; Elevar o nível de

profissionalização do Soldado respeitando sua dignidade enquanto ser humano e sua

missão enquanto profissional de Segurança Pública; Disseminar um ideal de culto à

profissionalização, às normas e regulamentos bem como de respeito aos desígnios

humanísticos (PPP, 2011, p. 5).

Outra perspectiva do projeto é parte técnica explicitada no desenho do projeto na

condição de esquema: primeira etapa do curso: Formação Profissional Básica, conteúdo com

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ênfase (área): Sistemas, Instituições de Segurança Pública; Atividades Curriculares

Complementares (ênfase: Ordem Unida, Educação Física Militar). Segunda etapa: Formação

Técnica Profissional I. Terceira etapa: Estágio Supervisionado. Quarta etapa: Formação

Técnica Profissional II (PPP, 2011).

O PPP (2011) oferece uma descrição das atividades na formação do soldado; vejamos:

Formação Profissional PM I – Palestras - Sistemas, Instituições de Segurança Pública;

História da Polícia Militar de Mato Grosso; Sistema de Segurança Pública no Brasil; Relações

Interpessoais; Fundamentos de Gestão; Saúde e Segurança; Ética e Cidadania e Fundamentos

de Gestão Integrada e Comunitária – cada assunto correspondeu a 5h/a. Enfatiza que há

disciplinas distribuídas em todas as etapas do curso: Educação Física Policial Militar e Ordem

Unida. Técnicas Gerais de Policiamento com Fundamento no Manual do Procedimento

Operacional Padrão (POP) e, Técnicas Gerais de Policiamento.

Na análise do Projeto Político Pedagógico, consideramos alguns aspectos

problemáticos na formação do policial militar. Essas caracterizações foram elaboradas no

quadro abaixo (Quadro 1)

Quadro 01

Dados de Caracterização de alunos e do curso de formação

Levantamento de problemas detectados – sociais, pedagógicos, didáticos...

Dificuldade dos alunos no meio social;

Dificuldade de expressão nas atividades pedagógicas, enquanto indivíduo;

Prevalência de atividades militares sobre atividades acadêmicas;

Formação técnica como caminho do bom policial;

Condicionamento como didática de aprendizagem;

Instrutores, praticamente, policiais militares;

Imposição, de cima para baixo, dificuldade de democracia;

Insuficiência de conhecimentos humanísticos

Silenciamento sobre questões étnicorraciais. Quadro 1: Problemáticas levantada no Projeto Político Pedagógico

Nota: Quadro elaborado pelo autor

Além dos problemas evidenciados, os fatores ambientais da escola têm característica

de quartel deixando emergir a imagem do militar. A estrutura física da escola é estritamente

um quartel, pois há sentinelas permanentes na entrada, armas de fogo, símbolos, dentre outros,

que afirmam uma educação militar a que os alunos são submetidos, e consequentemente essa

estratégia é uma ferramenta para a manutenção desse padrão ideológico.

Essa estrutura militar na condição de escola de formação faz lembrar o currículo

oculto Silva (1999), embora não faça parte do currículo escolar, encontra-se presente nos

aspectos pertencentes ao ambiente escolar e que influem na aprendizagem dos alunos. Na

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visão crítica, o currículo oculto forma atitudes, comportamentos, valores, orientações etc., que

permitem o ajustamento dos sujeitos às estruturas da sociedade capitalista.

Essa forma militar enfatiza a prioridade de atividades militares sobre atividades

acadêmicas, o condicionamento como didática de aprendizagem, e a imposição de cima para

baixo. Além desses fatores, há a insuficiência de conhecimentos humanísticos, o

silenciamento sobre questões etnicorraciais que são exemplos de problemas detectados. Essa

maneira de formação inclui a falta de hábitos e métodos mais democráticos aos policiais

militares que devem servir à sociedade.

Outro fator enfatizado na organização das estruturas didático-pedagógicas nessa

formação é o elevado número de atividades repetitivas, como Ordem Unida e Educação Física

Militar. Esses ordenamentos engessam o processo de apreender o significado de estado

democrático de direito com vistas à promoção de competências na relação de igualdade

profissional de direitos entre policiais e cidadãos. Portanto, o Projeto Político Pedagógico

consigna as finalidades de formar técnicos profissionais em um desenho militar, estabelecendo

as perspectivas ideológicas de relações de poder em todo o tempo de formação.

7.1.2 Documentos Curriculares

Neste tópico estão sendo analisados os seguintes documentos: a) Manual do Aluno; b)

Lei de Ensino da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso; e, c) Estatuto dos Militares do

Estado de Mato Grosso, por se tratarem de normativas básicas que acompanham os policiais

militares desde sua iniciação até o término de sua carreira como profissional de segurança

pública.

O Manual do Aluno no Curso de Formação

O Manual do Aluno (2012, p. 8) “tem por finalidade o desenvolvimento e o preparo

dos servidores militares estaduais para o exercício da profissão, tendo como parâmetros os

fundamentos da hierarquia, disciplina, dos direitos humanos e da polícia comunitária”.

Mas, ao verificar seu conteúdo, percebe-se que os policiais militares devem observar

os valores militares: patriotismo, civismo, amor à profissão, espírito de corpo, fé na missão da

Polícia Militar e disciplina, que devem ser cultuados permanentemente. Outros aspectos

também chamam a atenção: probidade e lealdade, disciplina e respeito à hierarquia, rigoroso

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cumprimento dos deveres e ordens, trato do subordinado entre pares e superiores com respeito

e dignidade. São deveres a serem observados e praticados pelos policiais militares.

Os alunos soldados deverão praticar a vivacidade militar como a atividade que visa

adaptar e construir reflexos no neófito de polícia frente a situações estressantes, preparando-os

para as atividades do profissional de segurança pública no atendimento de ocorrências

policiais militares de alta complexidade. O trabalho em equipe reflete o espírito de corpo, a

moral e a disciplina do Corpo de Alunos, que serão desenvolvidas com os seguintes objetivos:

I - Desenvolver os reflexos e poder de tomada de decisão em tempo real dos alunos,

tornando-os aptos a atividades práticas curriculares.

II - Despertar o espírito de união, companheirismo e espírito de corpo, que

cumprirão metas preestabelecidas;

III - Forjar a disciplina do Corpo de Alunos, através da assimilação dos valores a

costumes da caserna;

IV - Demonstrar aos alunos as virtudes necessárias à carreira policial militar;

V - Realizar Alongamento e aquecimento antes e após a execução do serviço como

forma de evitar lesões, bem como contribuir para o ganho de condicionamento físico

ao futuro policial militar (PMMT, 2012).

Nessa direção, o Manual (2012) apresenta os valores militares aos novos integrantes da

corporação em formação:

Dos Valores Militares, Reflexos a Situações de Crise e Dinâmicas de Grupos - O

patriotismo, civismo, amor a profissão, espírito de corpo, aprimoramento técnico

profissional, fé na missão da PMMT, disciplina são valores a serem cultuados pelos

Policiais Militares.

A dedicação à pátria, respeito aos símbolos nacionais, probidade e lealdade,

disciplina e respeito à hierarquia, rigoroso cumprimento dos deveres e ordens, trato

do subordinado, pares e superiores, com respeito e dignidade, são deveres a serem

observados e praticados pelos policiais militares.

Os alunos deverão praticar a vivacidade Militar como a atividade que visa adaptar e

construir reflexos no neófito de polícia frente a situações estressantes, preparando-os

para as atividades do profissional policial militar no atendimento de ocorrências

policiais militares de alta complexidade.

A hierarquia e a disciplina são as bases institucionais das corporações militares

estaduais: a hierarquia militar é a ordenação da autoridade em níveis diferentes,

dentro da estrutura das instituições militares estaduais; a autoridade e a

responsabilidade do militar estadual crescem juntamente com o grau hierárquico

(PMMT, 2012).

Após essas ordenações, o documento designa a postura, o uniforme e outras ações

peculiares à estrutura militar:

[...] ao ser designados a apresentar no CFAP, deverão adquirir: Camiseta branca,

apta a ter identificação do aluno na altura do centro do peito; camisa de frio de cor

preta (sem identificação) nos tempos de frio; calça jeans azul; cinto preto de nylon

sem identificação; tênis de cor preta; meias de cores brancas (longas).

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Sobre do corte de cabelo, da barba e bigode - deverão usar seus cabelos aparados, em

corte formal tipo militar, por máquina de corte de cabelo n. 2 (dois), desbastando

gradualmente o volume de baixo para cima, mantendo bem nítidos os contornos

junto às orelhas e, o pescoço em corte quadrado.

É vedado rapar a cabeça por lâmina ou máquina no número zero, salvo nos casos de

calvície avançada na parte superior da cabeça, e com solicitação via parte e

autorização do Comandante de Pelotão. Para a manutenção do corte no padrão acima

descrito, o Policial Militar deverá cortar o cabelo em períodos de no máximo de 10

dias, devendo cada Unidade Escola adotar uma ficha de controle de corte de cabelo

para cada aluno em formação. Não será permitido o uso de penteados extravagantes,

com topetes e/ou desfiados. É vedado o uso da barba, bigode, costeletas e

cavanhaque, que deverá ser mantidos raspados (PMMT, 2012).

O Manual do Aluno (2012) também regulamenta o uso de adereços. É vedado aos

alunos o uso de joias, bijuterias, contas, miçangas ou patuás, quando uniformizado, assim

como o uso de brincos, piercings ou similares de qualquer natureza, uniformizado ou em trajes

civis.

Até a postura em sala de aula é regulamentada. Os alunos deverão se sentar com a

postura correta e manter a compostura, evitando conversas paralelas ou algazarras que possam

desviar a atenção das atividades desenvolvidas, devendo também ser observado o seguinte: os

alunos só poderão manusear materiais pertinentes à instrução que estiver sendo ministrada;

todos os alunos que não estiverem em atividades deverão permanecer nas respectivas salas de

aula, respeitando o silêncio.

No que concerne ao Manual do Aluno, percebem-se outros problemas, como as

dificuldades nas relações sociais. Para além dessa questão, foi inventariado: a iniciação do

devir militar, a ênfase nos ritos e cerimônias, o cumprimento das regras e consequentemente a

falta de autonomia, conforme se percebe abaixo:

Art. 66 – Formatura é toda reunião do pessoal em forma, armado ou desarmado [...],

com a finalidade de ouvir as palavras proferidas pelo Comandante da Unidade, [...]

será cantado o Hino Nacional ou o Hino da PMMT, bem como cultivar os valores

militares, praticar comandos de ordem unida e a aprimorar a disciplina.

Art. 76 - A Parada diária é uma formatura destinada à revista do pessoal, e verificar

as alterações para o serviço diário que é contado de Parada à Parada, todos os dias às

07h00min.

Art. 136 – Os alunos deverão usar seus cabelos aparados, em corte formal tipo

militar, por máquina de corte de cabelo ou tesoura, desbastando gradualmente o

volume de baixo para cima, mantendo bem nítidos os contornos junto às orelhas e o

pescoço.

§ 1º - É obrigatória a manutenção do comprimento curto para os cabelos, devendo

estes ficar, no máximo, com um volume que não se pronuncie para além da borda da

cobertura, findando na parte superior do pescoço em corte redondo ou quadrado;

(PMMT, 2012).

Percebe-se que os problemas existentes na escola expressam o retrato de uma

comunidade educativa direcionada para as aprendizagens diretivas, isso propõe uma tendência

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de alunos com dificuldades de relacionamentos sociais. Essa tendência se percebe no

ordenamento de como o aluno deve se comportar na escola de formação:

Art. 81 - Nas salas de aula, os alunos deverão se sentar com a postura correta e

manter a compostura, evitando conversas paralelas ou algazarras que possam desviar

a atenção das atividades desenvolvidas, devendo também ser observado o seguinte:

I – Os alunos só poderão manusear materiais pertinentes à instrução que estiver

sendo ministrada;

[...]

III – Todos os alunos que não estiverem em atividades, deverão permanecer nas

respectivas salas de aula, respeitando o silêncio.

Art. 82 – É vedada a prática de quaisquer tipos de jogos, utilização de aparelhos

eletroeletrônicos, revistas, livros, gibis, celulares, notebooks, ipad, aphone não

pertinentes à atividade desenvolvida em sala de aula, ou qualquer outra atividades

escolares, salvo quando autorizado pelo professor, instrutor ou monitor. (PMMT,

2012)

Nessa questão particular da formação policial militar do Estado de Mato Grosso, o

Manual do Aluno (2012) promove estímulos a serem seguidos pelos alunos a soldado, em que

se reflete uma formação voltada unicamente aos valores militares: patriotismo, civismo, amor

à profissão, espírito de corpo, aprimoramento técnico-profissional, fé na missão da Polícia

Militar, disciplina, sem fazer interface com outros conteúdos formativos que os preparem para

as relações humanas, com sua diversidade e seus dilemas, em suma, com a população que será

de fato atendida por eles, ou a quem eles devem servir.

A Lei de Ensino da Polícia Militar

Esse documento busca promover o sucesso educativo e a integração social e escolar

dos alunos policiais. É a organização de Turmas de Percursos Curriculares com alunos da

escola de formação policial militar, tendo por base o disposto no Art. 83 da Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional n. 9.394, de 20 de dezembro de l996, que manterá sistema

próprio de ensino com a finalidade de qualificar recursos humanos necessários à ocupação de

cargos e para o desempenho de funções previstas na Lei de Organização Básica (LOB) da

Polícia Militar do Estado de Mato Grosso.

Na continuidade da promoção do sucesso educativo militar, no Art. 2º da Lei de

ensino, o Sistema de Ensino compreende as atividades de educação, instrução, pesquisa,

extensão, educação a distância e programas de pós-graduação realizadas nos estabelecimentos

de ensino e outras organizações militares do Estado com tais incumbências e participação do

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desenvolvimento de atividades culturais. A Lei de Ensino fixa os princípios e os valores

policiais militares:

Art. 6º São princípios da educação nas Instituições Militares Estaduais:

I - integração a educação nacional;

II - seleção pelo mérito;

III - profissionalização continuada e progressiva;

IV - avaliação integral, contínua e cumulativa;

V - pluralismo pedagógico;

VI - aperfeiçoamento constante dos padrões éticos, morais, culturais e de eficiência;

VII - titulações e certificações próprias ou equivalentes as do sistema de ensino civil.

(MATO GROSSO, 2010).

Esses valores apontados na Lei de Ensino (avaliação integral continua e cumulativa;

pluralismo pedagógico; aperfeiçoamento constante [...] éticos, morais, culturais e de

eficiência) parecem uma tentativa de democratização no ensino militar, mas a priorização da

formação militar continua sendo pautada na pedagogia do corpo direcionada apenas ao

formato técnico. Essa formação militar demonstra resistência ao estado democrático de

direito, se afasta de uma realidade social contemporânea, permanecendo distante de uma

convivência de diversidade cultural, dificultando a compreensão de direitos individuais de

sujeitos na condição de minoria – negros, pobres, dentre outros.

Esse viés apontado na Lei de Ensino é um paradoxo quanto à prática policial: a lei

aponta condições para o policial participar dos cursos, porém as características do documento

são desenhos totalitários que incluem a promoção do militarismo como direção unilateral no

ensino de formação.

Art. 7º A Educação Militar Estadual valoriza as seguintes atitudes e comportamentos

nos concludentes de suas modalidades de ensino:

I - integração permanente com a sociedade;

II - preservação das tradições e cultura policiais e bombeiros militares;

III - educação integral;

IV - assimilação e prática dos deveres, dos valores e das virtudes policiais e

bombeiros militares;

V - comportamento diferenciado dos reflexos e atitudes funcionais;

VI - atualização cientifica e tecnológica (MATO GROSSO, 2010).

Ainda mais: a Lei de Ensino aponta caminhos teóricos para a formação e ao mesmo

tempo reforça o valor disciplinar em uma postura de valorização do paradigma militar.

Art. 56 Aplica-se ao regime disciplinar do corpo discente, nos cursos previstos nesta

lei complementar, o que dispõe a legislação na PMMT e CBMMT, especificamente

o Regulamento Disciplinar, Estatuto dos Militares Estaduais, além do que dispuser o

Regimento Interno de cada Unidade Escola (MATO GROSSO, 2010).

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A Lei de Ensino da Polícia Militar enquanto direcionamento de formação afigura-se

em um sistema que não realiza a socialização democrática, sendo necessários esforço e

disciplina compatíveis com um clima de relações interpessoais (SACRISTAN, 1998). Para

isso, é preciso insistir numa “cultura de motivação”, em que a comunidade escolar se esforce

para estimular uma formação aberta.

O Estatuto dos Militares do Estado de Mato Grosso

O Estatuto dos Militares do Estado de Mato Grosso foi instituído pela Lei

Complementar n. 231, de 15 de dezembro de 2005, publicada em Diário Oficial do dia 15 de

dezembro de 2005. Estabelece que o ensino nas instituições militares do Estado deve ser

mantido por sistemas próprios e, nesse sentido, define o órgão responsável pela formação no

âmbito da instituição.

Art. 160 As instituições militares do Estado de Mato Grosso manterão sistemas

próprios de ensino, com a finalidade de formar, capacitar, preparar, especializar,

aperfeiçoar e treinar os militares estaduais, bem como proporcionar assistência

educacional aos seus dependentes.

[...] § 2º O Centro de Formação de Praças é o órgão responsável pela formação,

aperfeiçoamento e capacitação dos praças da Polícia Militar do Estado de Mato

Grosso (MATO GROSSO, 2005).

Nesta dimensão de análise, o enfoque continua para as ações e estratégias militares,

cujas finalidades são as linhas normativas orientadoras. Nesta dimensão se pode verificar, de

uma forma mais lúcida, a operacionalização dos pressupostos que presidem à dinâmica que a

instituição militar deseja manter. O estatuto sugere as intencionalidades e perspectivas neste

âmbito:

Art. 22 A hierarquia e a disciplina são as bases institucionais das corporações

militares estaduais.

Art. 23 A hierarquia militar é a ordenação da autoridade em níveis diferentes, dentro

da estrutura das instituições militares estaduais.

Art. 24 A disciplina militar estadual consiste no exato cumprimento dos deveres,

traduzindo-se na rigorosa observância e acatamento integral das leis, regulamentos,

normas e ordens, por todos os integrantes das instituições militares estaduais

(MATO GROSSO, 2005).

Percebe-se que as intenções normativas delineadas são apresentadas para que seja

mantido o militarismo ao longo da jornada policial militar que é, em nossa análise, o

fortalecimento de comportamentos e atitudes de um grupo especial de pertencimento por parte

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da corporação, com vistas à promoção e ao sucesso do modelo militar e, consequentemente,

ao silenciamento de referências sociais e humanísticas, permanecendo uma direção focalizada

no indivíduo sujeitado pelo corpo dócil.

Os documentos curriculares trazem uma perspectiva do ethos militar, privilegiando

aspectos técnicos (técnicas de policiamento) em detrimento de aspectos humanísticos

(compreensão da diversidade cultural, étnica, social). Essa valorização militarizante tem

aspectos que dificultam uma abertura de expressão dos formandos, além de reduzir o exercício

de liberdade dos policiais em formação. Esses problemas foram relacionados com a

intencionalidade de uma reconstrução profissional, conforme descreve o Quadro 02.

Quadro 02

Problemas detectados nos documentos curriculares

Postulado central: Hierarquia e Disciplina

Disciplina, ainda rígida, dificulta a democracia;

Paradoxo: Valores de formação/Condições para formação

Relação interpessoal limitada;

Dificuldade de autonomia em iniciativa;

A força em detrimento de outras ferramentas;

Dificuldade de diálogo prevalece repreensão e arbitrariedade. Quadro 1: Problemáticas levantada nos documentos curriculares

Nota: Quadro elaborado pelo autor

Pode-se afirmar que a hierarquização verticalizada na conjuntura policial militar

proporciona enfaticamente a internalização do comportamento individual, priorizando a cada

sujeito ficar estagnado em seu grau hierárquico (posto ou graduação), dificultando uma

convivência democrática entre esses graus hierárquicos, além de possibilitar a permanência de

uma ideologia fechada, essas variáveis dificultam uma abertura nas relações individual e

profissional, bem como uma harmonia na formação dos grupos profissionais.

Nesta perspectiva, há evidências de que o currículo é um campo permeado de

ideologia, cultura e relações de poder. Ideologia, segundo Moreira e Silva (2002, p. 23), “é a

veiculação de ideias que transmitem uma visão do mundo social vinculada aos interesses dos

grupos situados em uma posição de vantagem na organização social”. Desse modo, é uma das

maneiras pela qual a linguagem produz o mundo social, constituindo e definindo a realidade e,

por isso o aspecto ideológico deve ser considerado nas discussões sobre currículo.

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7.2 As Matrizes Curriculares dos Cursos de Formação de Soldado de 2003, 2005, 2008 e

2011

As Matrizes Curriculares dos Cursos de Formação de Soldados dos anos de 2003,

2005, 2008 e 2011 seguem uma orientação global da Matriz Curricular Nacional para o

estabelecimento de ensino policial militar. Nas orientações normativas há uma predominância

nas diretrizes de núcleo comum, recomendado pelo Ministério da Justiça, por intermédio da

SENASP, e de acordo com o documento da Matriz Curricular Nacional, é composto por

disciplinas que congreguem conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, cujo objetivo

é a garantia de unidade de pensamento e ação dos profissionais da área de segurança pública

(BRASIL, 2009).

As Matrizes Curriculares e seus respectivos anos acima citados seguem um desenho

similar entre si. Por conta dessa configuração, praticamente igual, apresentaremos

detalhadamente a Matriz Curricular do ano de 2003, seus eixos, módulos, suas disciplinas,

carga horária por disciplina, carga horária total do módulo, carga horária total do curso. Nos

anos de 2005, 2008 e 2001, apresentaremos quantidade de módulos e suas disciplinas, carga

horária menor e maior das disciplinas e carga horária total dos cursos, destacando pontos

relevantes para a pesquisa.

No ano de 2003, a Matriz Curricular apresentou carga horária total de 1010h/a, seguida

de dois eixos disciplinares: a) disciplinas curriculares e, b) atividades curriculares

complementares, sendo que o eixo de disciplinas curriculares foi composto de oito módulos

com suas respectivas disciplinas, assim definidos: Módulo I – (Missão do profissional de

segurança do cidadão), seis disciplinas: Fundamentos: Estado, Política de Segurança

Pública, História e Ofício de Policial, 20h/; Sociologia do Crime e da Violência, 10h/a;

Psicologia Social da Violência, 10h/a; Gestão de Qualidade, 10h/; Fundamentos de Polícia

Comunitária, 20h/a; Ética e Cidadania, 15h/a, totalizando 85h/a. Módulo II – (Técnica do

Profissional de Segurança do Cidadão), 22 disciplinas: Criminalística, 10h/a; Arma de

Fogo, Munições e Explosivos, 30h/a; Tiro Policial, 40h/a; Defesa Pessoal, 40h/a; Medicina

Legal Aplicada, 10h/a; Noções de Bombeiro Militar e Defesa Civil, 10h/a; Emergências e

Traumas, 10h/a; Inteligência Policial, 15h/a; Policiamento Ostensivo Geral, 20h/a;

Policiamento Ambiental, 10h/a; Policiamento Turístico, 10h/a; Policiamento Escolar, 10h/a;

Policiamento Comunitário, 10h/a; Policiamento em Estabelecimento Prisional, 10h/a;

Policiamento Trânsito e Legislação de Trânsito, 20h/a; Controle de Distúrbios Civis, 10h/a;

Operações Helitransportado, 10h/a; Operações Táticas Móveis, 10h/a; Operações com Cães,

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10h/a; Patrulhamento Rural Comunitário de Fronteira, 10h/a; Instrução Técnica e Tática de

Combate (Maneabilidade e Topografia), 20h/a; Segurança Física de Instalações e Dignitários,

10h/a, totalizando 315h/a. Módulo III – (Cultura Jurídica Aplicada), 13 disciplinas:

Introdução ao Estudo de Direito, 10h/a; Ciências Políticas, 10h/a; Direito Constitucional,

20h/a; Direitos Humanos e Cidadania, 20h/a; Regulamentos e Normas, 25h/a; Direito Civil,

10h/a; Direito Penal, 10h/a; Direito Processual Penal, 10h/a; Direito Ambiental, 10h/a; Direito

da Criança e do Adolescente, 20h/a; Direito Penal Militar, 10h/a; Criminologia, 10h/a;

Legislação Especial, 50h/a, totalizando 215h/a. Módulo IV – (Saúde do Profissional de

Segurança do Cidadão), quatro disciplinas: Educação Física Militar, 30h/a; Natação

Utilitária, 20h/a; Saúde Física – Desenvolvimento Humano, 10h/a; Saúde Psicológica –

Desenvolvimento Humano, 10h/a, totalizando 70h/a. Módulo V – (Eficácia Pessoal), quatro

disciplinas: Relações Interpessoais, 20h/a; Processo de Tomada de Decisão, 15h/a;

Gerenciamento de Crise, 20h/a; Cerimonial e Protocolo, 10h/a, totalizando 65h/a. Módulo VI

– (Linguagem e Informação), cinco disciplinas: Português Instrumental e Correspondência

Oficial, 20h/a; Comunicações Operacionais, 10h/a; Comunicação Social, 10h/a; Estatística,

10h/a; Informática, 20h/a, totalizando 70h/a. Módulo VII – (Estágio), duas disciplinas:

Estágio Supervisionado, 100h/a; Análise de Resultados do Estágio, 10h/a, totalizando

110h/a. O eixo de Atividades Curriculares Complementares foi formado de um módulo.

Módulo I – (Atividades Curriculares Complementares), quatro disciplinas: Orientação

Educacional e Psicológica, 10h/a; Atividades de Ensino e Palestras, 10h/a; Ordem Unida,

50h/a, Jogos Internos, 10h/a, totalizando, 80h/a.

No ano de 2005, a Matriz Curricular apresentou carga horária total de 865h/a e dois

eixos disciplinares: a) disciplinas curriculares, com sete módulos, sendo o Módulo I (Gestão

Integrada em Segurança Pública) – quatro disciplinas: dentre as disciplinas estava Ética e

Cidadania, 10h/a, totalizando 55h/a. Módulo II (Violência, Crime e Controle Social) – duas

disciplinas, totalizando 20h/a. Módulo III (Cultura e Conhecimento Jurídico) – 13

disciplinas, totalizando 195h/a. Módulo IV (Gestão Administrativa) – duas disciplinas,

totalizando 30h/a. Módulo V (Valorização Profissional e Saúde do Trabalhador) – uma

disciplina: Educação Física Militar, 40h/a. Módulo VI (Comunicação, Informação e

Tecnologia) – quatro disciplinas, totalizando 50h/a. Módulo VII (Técnicas e Procedimentos

em Segurança Pública) – 16 disciplinas, sobre técnicas policiais, totalizando 315h/a.

Estagio Supervisionado e Análise de Resultados do Estágio, com 60h/a e, b) Atividades

Curriculares Complementares, sendo composto por cinco disciplinas: dentre as disciplinas

Ordem Unida, 40h/a, totalizando 80h/a.

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Em 2008 apresenta carga horária total de 974h/a e dois eixos disciplinares: a) disciplinas

curriculares, com nove módulos, sendo o módulo I (Sistemas, Instituições de Segurança

Pública) – três disciplinas, totalizando 57h/a. Módulo II (Violência, Crimes e controle

social) – três disciplinas, totalizando 67h/a. Módulo III (Cultura e Conhecimento Jurídico)

– 13 disciplinas, totalizando 245/a. Módulo IV (Modalidades de Gestão de Conflitos e

Eventos Críticos) – uma disciplina: 20h/a. Módulo V (Valorização Profissional e Saúde do

Trabalhador) – quatro disciplinas: dentre elas, Educação Física Policial Militar, 30h/a,

totalizando 80h/a. Módulo VI (Comunicação, Informação e Tecnologia em Segurança

Pública) – cinco disciplinas, totalizando 90h/a. Módulo VII (Cotidiano e Prática Reflexiva)

– uma disciplina: Ética e Cidadania, 20h/a. Módulo VIII (Funções Técnicas e

Procedimentos em Segurança Pública) – 11 disciplinas: Técnicas Gerais de Policiamento,

totalizando 265h/a. Módulo IX (Gestão Integrada de Segurança Pública) – uma disciplina:

Fundamentos de Gestão Pública, 20h/a. Estágio Supervisionado – três disciplinas, totalizando

50h/a e, b) Atividades Curriculares Complementares, quatro disciplinas: dentre elas,

Ordem Unida, 20h/a, totalizando 60h/a.

No ano de 2011, a carga horária total foi de 1040h/a, e também dois eixos disciplinares:

a) disciplinas curriculares, com sete módulos, sendo o módulo I (Sistemas, Instituições de

Segurança Pública) – três disciplinas, com 15h/a. Módulo II (Violência, Crimes e controle

social) – treze disciplinas, com 190h/a. Módulo III (Modalidades de Gestão de Conflitos e

Eventos Críticos) – uma disciplina, 15/a. Módulo IV (Valorização Profissional e Saúde do

Trabalhador) – quatro disciplinas, com 50h/a. Módulo V (Comunicação, Informação e

tecnologias em Segurança Pública) – quatro disciplinas, com 55h/a. Módulo VI (Cotidiano

e Prática Reflexiva) – sete disciplinas, com 70h/a. Módulo VII (Gestão Integrada de

Segurança Pública) – uma disciplina, com palestra; Estágio supervisionado, com 100h/a; e,

b) Atividades Curriculares Complementares, quatro disciplinas, com 115h/a. Além do

complemento de curso por meio de: Método de Tiro Defensivo “método Giraldi”, com 60h/a;

Técnicas Gerais de Policiamento (procedimento Operacional Padrão), com 210h/a; Curso

EaD/SENASP, com 140h/a.

No Curso de Formação de Soldado do ano de 2003 o Módulo I – (Missão do

profissional de segurança do cidadão), composto por seis disciplinas, com carga horária

total do módulo de 85h/a, estava contida a disciplina Ética e Cidadania com apenas 15h/a, que

chamou a atenção pelo tempo reduzido de aula pela importância que a disciplina tem na

compreensão da garantia dos direitos individuais. Por outro lado, observa-se que as maiores

cargas horárias ficaram por conta do Módulo II – (Técnica do Profissional de Segurança do

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Cidadão), com 22 disciplinas e carga horária total do módulo de 315h/a e o Módulo III –

(Cultura Jurídica Aplicada), com 13 disciplinas e carga horária total do módulo de 215h/a.

Neste módulo estava contida a disciplina Direitos Humanos e Cidadania com apenas 20h/a,

um conteúdo da paz sem a importância merecida no curso de formação. No eixo das

Atividades Curriculares Complementares, foram dispensados 50h/a para o treinamento de

Ordem Unida.

No ano de 2005, a matriz curricular apresentou o Módulo I (Gestão Integrada em

Segurança Pública) – com quatro disciplinas, distinguindo a disciplina Ética e Cidadania,

com apenas 10h/a, reduziu a carga horária em relação ao curso de 2003. Já o Módulo III

(Cultura e Conhecimento Jurídico), assim como o Módulo VII (Técnicas e Procedimentos

em Segurança Pública), com 16 disciplinas e carga horária total de 315h/a. A presença

constante de Educação Física Militar, 40h/a e Ordem Unida, 40h/a. Uma novidade apareceu

no Módulo II (Violência, Crime e Controle Social), duas disciplinas: Psicologia Social com

apenas 10h/a e Sociologia do Crime e da Violência também 10h/a. A Ordem Unida esteve

presente com 40h/a.

Ao verificar as Matrizes Curriculares dos Cursos de Formação de Soldados de 2008 e

2011, quase não se nota diferença estrutural, são dois eixos disciplinares: Disciplinas

Curriculares e Atividades Curriculares Complementares. Curso de Formação de 2008, o

Módulo III (Cultura e Conhecimento Jurídico), com treze disciplinas: totalizou a carga

horária de 245/a. O Módulo VIII (Funções Técnicas e Procedimentos em Segurança

Pública), com 11 disciplinas: técnicas gerais de policiamento, totalizando 265h/a. Nesse ano

de curso percebe-se uma importância no Módulo VI (Comunicação, Informação e

Tecnologia em Segurança Pública), com cinco disciplinas, totalizando 90h/a. O Módulo

VII (Cotidiano e Prática Reflexiva) – uma disciplina: Ética e Cidadania a que são

dedicadas apenas 20h/a, portanto estes importantes campos do saber, indispensáveis,

continuam sem importância na formação policial.

No curso de 2011, o Módulo II (Violência, Crimes e controle social), com 13

disciplinas, em que se encontram embutidas as questões jurídicas, e 190h/a. Além do

complemento de curso por meio de: Método de Tiro Defensivo “método Giraldi”, com 60h/a;

Técnicas Gerais de Policiamento (procedimento Operacional Padrão), com 210h/a e Curso

EaD/SENASP, com 140h/a. Nesse ano Ética e Cidadania perdeu sua carga horária, fez parte

das atividades acadêmicas como assunto de palestras.

Nos cursos de formação de soldados, a ênfase ficou nos aparatos técnicos seguido das

questões normativas – em 2003, 51,49%; em 2005, 58,96%; em 2008, 52,36%, e em 2011,

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149

76,92%. Esses percentuais correspondem às disciplinas técnicas e forenses, dando mostras de

que a essência não é humanizar, é fazer prevalecer o preparo técnico e de instruções jurídicas.

Isto limita o profissional na relação com o seu próprio saber e em sua relação com a

sociedade, pois essa relação com a sociedade torna-se complexada por ser em momentos de

conflitos, por isso, exige uma qualificação para além das condições técnicas e forenses.

A proposta das Matrizes Curriculares dos Cursos de Soldados da Polícia Militar

analisadas, mesmo seguindo as orientações da Matriz Curricular Nacional, não contemplou

em sua plenitude a formação de uma polícia próxima da sociedade. A prevalência do ethos

militar ainda redundou numa estrita obediência, praticamente cega, e, nesse sentido, gera a

negação da autonomia do sujeito, que é um obstáculo importante na atuação do policial

militar. A Polícia Militar ainda se posiciona como aparelho repressivo de Estado, na postura

classificatória que seleciona os sujeitos a serem abordados, em especial a denominada classe

perigosa – negros e pobres.

As análises dessas Matrizes Curriculares de Formação de Soldados indicam que

prevaleceu a formação tecnicista dada a razão instrumental presente nos textos, representada

pelas disciplinas tidas como indispensáveis, e pela carga horária a qual revela que os alunos

devem dedicar mais tempo às disciplinas militares, isto é, àquilo que é mais importante para a

formação. O ensino é apenas uma questão de estímulo da autoridade, o que dificulta o

equilíbrio das reações emocionais, do despertar de valores humanísticos, do saber dialogar e

interagir com equilíbrio e a forma como o policial vê o outro.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a concepção presente nos currículos acerca da

formação do policial militar baseou-se essencialmente na ordem, na disciplina e na

“intimidação” do aluno a soldado, dessa forma, negligencia o enfoque da interação com o

cidadão no desenvolvimento das tarefas relacionadas à manutenção da ordem. A formação

policial também silenciou sobre atividades que devem prevalecer sempre: as diferenças de

ordem étnica, racial, social, política, histórica e cultural.

Essas ações curriculares são consequência da prioridade regional do programa de

formação policial em detrimento da amplitude dessa mesma formação. Nesse aspecto, o

currículo ligado à questão regional, segundo Pacheco (2013) é uma caminhada política, pois a

educação e o currículo são profundamente políticos e culturais. O currículo regional é um

documento de trabalho em permanente elaboração, pois não é possível definir a aprendizagem

a partir nem de um receituário nem de uma única perspectiva. Para além do conflito, o

currículo regional só se torna possível se rompermos com os processos uniformes e

estandardizados de decisão curricular.

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150

A regionalização curricular do programa de formação policial favoreceu uma educação

tradicional, pois, segundo reflexões de Silva (1999), o currículo nos tempos atuais ainda dá a

possibilidade de que as teorias antigas continuem a ser pano de fundo na educação de muitos

lugares. As teorias tradicionais aceitavam as coisas como estavam, e os conhecimentos

concentravam-se nas questões técnicas, no preparo do indivíduo para a sociedade, e não o

viam como agente transformador de nada, mas como sujeito de trabalho, como sistema de

massa geradora de produtos.

Seguindo essas reflexões do autor acima citado, as teorias críticas apontavam a escola

como transmissora de ideologias através das disciplinas, e dizia serem as ideologias

constituídas por crenças que auxiliam o indivíduo a aceitar as coisas como estão, e que por

isso deviam ser derrubadas, dando espaço para debates mais reflexivos acerca da sociedade e

da função real do indivíduo.

Nessa perspectiva de reprodução, as análises de Bourdieu e Passeron (2011) nos

oferecem condições de afirmar que a formação do policial militar preenche duas funções

importantes para a sociedade capitalista: a reprodução da cultura e a reprodução da estrutura

de classes. No caso do sistema de formação dos soldados, vê-se que o currículo funciona

como um mecanismo de dominação simbólica sobre os alunos a soldados. Através dos seus

mecanismos de sacralização da hierarquia, marcação dos corpos, e, até mesmo da

disponibilização das cargas horárias das disciplinas, definindo qual conhecimento será

ministrado por mais tempo, qual conhecimento é relevante, qual não é, acaba por reproduzir a

cultura que é considerada como verdadeira na Polícia Militar. Possivelmente essa condição de

formação deforma o sujeito policial não só na relação consigo mesmo como também com os

outros.

A configuração desse currículo pode ser reveladora quando se busca uma resposta às

tensões que permeiam a ação policial junto à sociedade, sobretudo quando se trata dos modos

de tratamento dos policiais direcionado aos grupos tidos como minoria. Não que um currículo

de formação tenha poder, sozinho, de construir caráter e moldar comportamentos, mas é

reconhecido que o espaço de formação pode ser importante na construção de valores mais

humanos e humanizantes, como acreditou Paulo Freire (1987).

É salutar repensar o currículo da formação policial militar em outra perspectiva,

conforme Apple (2002, p. 77), “tratamento igual” de sexo, raça, etnia e classe é necessário

para amenizar as desigualdades. “Um currículo e uma pedagogia democráticos devem

começar pelo reconhecimento dos diferentes posicionamentos sociais [...] bem como das

relações de poder entre eles”.

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Nesse viés, a formação policial militar, na perspectiva de Freire (1987), possibilita

caminhos para a liberdade, cuja atitude requer conhecer as relações econômicas, políticas e

educacionais da sociedade. Isto é: a possibilidade de o homem policial ter consciência das

relações sociais para fazer de si indivíduo livre, conhecedor e além de tudo crítico.

A formação policial nesse percurso deve vislumbrar ao militar o valor e respeito

necessário, não apenas de pensar que para ser moderno é preciso se tornar um depósito que

receba tudo que um “superior” ordena. Freire (1987) infere que

não é de estranhar, pois que nesta visão “bancária” da educação, os homens sejam

vistos como seres da adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os

educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos

desenvolverão em si a consciência critica de que resultaria a sua inserção no mundo,

como transformadores dele. Como sujeitos (FREIRE, 1987, p. 34).

Ademais, a formação policial militar deve ser democrática, e para isso Silva (1999)

atenta para o fenômeno chamado multiculturalismo que representa um importante instrumento

de luta política. Ele lembra que “a igualdade não se obtém simplesmente através da igualdade

de acesso ao currículo hegemônico”, sendo preciso mudança substancial no currículo existente

(SILVA, 1999, p. 90).

Assim, Silva (1999) aborda o currículo como narrativa étnica e racial, reafirmando

uma superação e ampliação do pensamento curricular crítico que aponta a dinâmica de classe

como única no processo de reprodução das desigualdades sociais. O autor ainda alerta para

questões como etnia, raça e gênero, configurando um novo repertório educacional

significativo.

7.3 Questionários e entrevistas

O contato com os participantes da pesquisa ocorreu com uma pitada de tensão. Parecia

pairar uma desconfiança na expressão daqueles operadores de segurança pública, uma espécie

de invasão de território. Após alguns momentos de conversa, a tensão inicial diminuiu e a

relação entre pesquisador e policiais ficou mais tranquila. Mesmo com essas dificuldades

iniciais, foi possível obter por meio de questionário o perfil de vinte policiais militares

(Quadro 03). As informações aqui consideradas têm a importância de contextualizar o policial

dentro do seu trabalho, no sentido de evitar explicações unilaterais, sem considerar o conjunto

de fatos que contribuíram na construção desses sujeitos.

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Quadro 03 Características dos policiais participantes

Média de idade de 36;

A maioria é casado

A maioria tem formação superior;

A maioria professa a religião católica;

A maioria tem de 10 a 15 anos de tempo de serviço

A maioria se autoidentificou com cor parda. Quadro 3: Características dos policiais militares

Nota: Quadro elaborado pelo autor

Acerca da média de idade dos policiais militares, pode-se dizer que há experiência

profissional, isso coaduna com o tempo de profissão como operador de segurança pública que

é de dez anos ou mais. Outro ponto de constatação desse amadurecimento profissional e

pessoal é deduzido pela constituição familiar: os policiais em sua a maioria têm família, são

casados. O grau de instrução da maioria desses policiais é o nível superior.

Vale realçar que com a experiência profissional e pessoal, e com formação superior, a

maioria se autodeclarou pardo, remetendo o grupo à dinâmica racial brasileira onde alguns

indivíduos mais pigmentados na sociedade por vezes conseguem transpor as barreiras raciais e

econômicas, é um fenomeno que ocorre com os componentes da Polícia Militar, todavia, em

suas ações a cor da pele e a dimensão social remetem-os a uma atitude racial de maneira

depreciativa.

Nesse sentido, a aparência profissional e a cor da pele inscrevem o indivíduo policial

militar em um status, com a incorporação de alguns "direitos", na forma de privilégios em

relação aos civis, neste caso, a autoridade policial, que está sempre associada a um status quo

ou a um status da cor, os efeitos de sua prática profissional “permite” autuações aos sujeitos

negros com postura de posições sociais proeminentes.

Os dados apontam que os policiais militares compõem-se de indivíduos caracterizados

como pardos, contudo essas características apontadas pelos participantes estão mais próximas

dos brancos, traços fisionômicos do europeu. Então podemos apontar que existe uma

tendência negativa para a presença de policiais mais escuros. Há um efeito através do sistema

de valores e dos padrões estéticos que demandam para qualificação da aparência, que talvez

não se coadune com um negro.

Esses dados demonstram a consequencia da manifestação própria do racismo

brasileiro, absorver indivíduos de caracteres mais próximos do "padrão branco". Os indivíduos

pardos com traços mais afastados dos mais escuros são os mais absorvidos simbolicamente na

ordem racial vigente. A ausência do negro e a alta representatividade dos pardos repercutem

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na ocupação do espaço na Polícia Militar, mantendo o tradicional sistema de status quo como

representações do legado da civilização branca.

7.4 Estratégia de análise das perguntas elaboradas no questionário

As perguntas direcionadas aos policiais versam sobre três categorias: I – a importância

de ser policial; II – a prática de abordagem policial; III – o preconceito/discriminação ou

estereótipo racista.

Na primeira dimensão de análise, a importância de ser policial militar em sua

construção profissional diz respeito ao dever de assegurar o bem-estar da sociedade. Na

segunda dimensão as ideias enunciadas pelos policiais são a discricionariedade, a coerção, isto

é, o agir policial em seu cotidiano. Na terceira dimensão, são expressos os entendimentos

relativos às ações policiais, isto é, os atos contidos na abordagem no contexto etnicorracial.

7.4.1 A importância de ser policial militar

A primeira categoria de análise incide nas concepções sobre o significado, a

importância de ser policial militar. Percebe-se nos discursos a existência de um imaginário do

policial militar como um ser protetor. As considerações e expressões dos respondentes

remetem também à ideia de heroísmo.

Fica expresso que essa importância mítica está presente na expectativa do policial

militar nas atividades do policiamento, e esse heroísmo militar se expressaria: ser participante

da sociedade (01); servir e proteger a sociedade legitimado no que preceitua o art. 144 da

cf/88 (02); resguardar a segurança do cidadão (04); é ser um servidor público diferenciado,

cumpridor dos seus deveres, honesto, sabedor de suas obrigações (05); zelar pela ordem

pública (07); dedicação total a manutenção da ordem (08); herói (11); defender a sociedade,

servindo e protegendo (12); é servir e proteger a sociedade, ser motivo de orgulho para a

família [...] (13); alguém pronto para ajudar o próximo (14); minha vida (15); é a função

primordial em se colocar a disposição para servir a comunidade/sociedade (17).

Entendemos que os “discursos organizacionais” são múltiplos, pois incluem os

discursos produzidos pelos indivíduos e os “discursos institucionais”, que denotam o discurso

proferido “oficialmente” pela organização. Sendo assim, os discursos, ao focar a análise no

sujeito policial militar, traz reflexões iniciais do processo de identificação de um salvador.

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154

Ser servidor público em uma corporação como a Polícia Militar de Mato Grosso

apresenta essas peculiaridades heroicos que devem ser consideradas. Nogueira e Moreira

(1999) ressaltam que as regras de convivência e ideais militares permeiam as relações de e no

trabalho. A socialização do policial militar é centrada em princípios rígidos, padronização das

condutas, comportamentos, atos e fardamentos instituídos pela doutrina explicitada em

documentos tais como o Estatuto dos Militares de Mato Grosso e outras normas. Esse

processo do corpo dócil tende a facilitar o aparecimento do individual herói.

Os discursos são cheios de fragmentos revelados pela presença de vozes representantes

de ideologias e interesses particulares. Por meio das vozes, é possível observar nas

intencionalidades dos locutores que trazem explícitos seu engajamento e posicionamento de

um grupo fechado. Dentro desse contexto, a análise dos relatos que se segue, destaca-se a

presença da voz institucionalizada da Polícia Militar. Nesse sentido, pode-se dizer que o

significado do que é ser policial militar para os sujeitos participantes revelou a introjeção dos

valores técnico/profissionais alicerda nos valores militares.

Os participantes ressaltaram que os “valores de servir e proteger, cumpridor de seus

deveres, ser herói” demonstram a presença de um sujeito com condições específicas em lutar

contra o mal. Isso desencadeia ações involuntárias no policial militar, cujos valores

profissionais são reforçados em suas práticas cotidianas. Essas práticas são importantes para o

policial militar, pois representa a operacionalidade do “homem da lei”, ser operacional é ser

policial de rua, é ser protetor, é enfrentar o crime com o risco da própria vida, e isso é manter

a ordem, é manter o criminoso afastado.

Portanto, ser operacional é ser guerreiro, forte e cumpridor de seus deveres, é a atitude

conectada com a ordem e a manutenção da harmonia social que para Geertz (2012, p. 65) “é o

alus que significa “puro”, “refinado”, “polido”, “civilizado”, pois a meta do ser humano é ser

alus nas duas esferas do “eu”, a esfera interior – através da disciplina e exterior – através da

etiqueta”. A importância de ser policial é ser diferente, provavelmente, melhor que o civil.

Os valores verbalizados ressaltam os arquétipos da postura tradicional, autoridade

manda, sem expressão democrática. É importante, pois é aí que se desenvolvem as ações

preventivas de segurança pública (04); combate à criminalidade, bem como inibição do crime

propriamente dito (06); evitar que o crime aconteça (08); fundamental para manter a ordem

pública (09); importantíssimo para a manutenção da ordem (12); combater a criminalidade

de frente, com o policiamento ostensivo, para dar sensação de segurança e proteger a

sociedade (13); fundamental ao funcionamento da sociedade (15); ostensividade e repressão

quando necessário (16).

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155

Ressalta-se que as vozes dos policiais servem de fontes de identificação profissional

para seus membros. Nos fragmentos destaca-se que os policiais se sentem identificados com

os fins da instituição militar, com os meios utilizados para atingir estes fins: combater a

criminalidade de frente, ostensividade e repressão. Os instrumentos profissionais estão

evidenciados pelos fragmentos e pelas contradições marcadas “sensação de segurança e

proteger a sociedade”, conforme utilizado nos relatos.

Diante da ambivalência do processo da importância de ser policial militar, os policiais

deixaram explícito que os valores e princípios considerados são os atributos da Polícia Militar

de Mato Grosso. Esses atributos estão atrelados a princípios que, na visão dos participantes,

reforçam a congruência de identificação militar. Ao elencarem estes valores e princípios como

importantes para sua profissão, os locutores deixam marcas indeléveis de comprometimento

com essa configuração profissional. Com essa concordância, suas ações continuarão pautadas

em abordagens operacionais estereotipadas com preconceito e discriminação junto à minoria –

negros, pobres, dentre outros.

7.4.2 A prática de abordagem policial

Esta é a segunda categoria de análise para verificar a percepção do policial em sua

prática de abordagem, fato primordial no desenvolvimento da atividade das instituições

policiais. A abordagem, por si só, provoca reações no cidadão, nos espectadores do ato e,

eventualmente, na corporação policial. Dessa forma, a abordagem policial deve ser com

respeito aos direitos dos cidadãos, para assim cumprir sua função social.

Os discursos também constituem maneiras peculiares de representar os elementos

sociais. Os fragmentos das vozes dos policiais militares trazem percepções profissionais,

atreladas às relações sociais por meio das abordagens policiais: dizem os participantes: é

importante, pois é onde se desenvolve as ações preventivas de segurança pública (04); a

inibição de roubos, furtos e outros crimes (05); evitar que o crime aconteça (06); promover a

sensação de segurança (08); garantir a ordem pública, prevenir crimes (09).

Os policiais participantes conjugam aspectos pessoais/profissionais, “evitar que o

crime aconteça promover a sensação de segurança”. Percebe-se, dessa forma, que o processo

profissional é um campo em que atuam muitas forças, tais como a dos próprios indivíduos em

suas ações por meio das práticas de abordagens executadas no respaldo do âmbito

institucional.

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156

Os discursos também se vinculam a pensamentos de transformação do mundo:

“garantir a ordem pública, prevenir o crime”. Os modos de representar a abordagem policial

articulam-se aos posicionamentos basilares da Polícia Militar ou afins frente ao próprio desejo

individual de ajustar a sociedade. Os dilemas encontrados nos relatos dos participantes trazem

em si os significados compatíveis para resolução de problemas, independente das ferramentas

utilizadas, e isso proporciona em alguns casos, a ação arbitrária.

Partindo dessas percepções, a abordagem policial pautada nesses princípios de ajuste

social revela uma ação policial inadequada. Ribeiro (2009), referenciando o Supremo Tribunal

Federal no ano de 2002, reconhece que quando a polícia submete alguém à abordagem

policial, na rua, ofende a sua dignidade, violando a sua intimidade, vida privada, honra e

imagem, no entanto o policial aprende que a abordagem deve ser sempre enérgica, inclusive

para a sua própria segurança, e muitas vezes atua como se todos fossem bandidos até prova

em contrário.

As práticas democráticas deveriam constituir premissa fundamental na qualidade das

ações policiais militares. Por isso a atividade de abordagem deveria resultar em contributos

verdadeiramente eficazes no tratamento com a sociedade. Porém, a prática de abordagem,

verbalizada pelos profissionais consiste em: colocar o suspeito em posição desconfortável

(12); no mínimo estar em dois PMs, estar de posse de todos os equipamentos de segurança

(colete balístico etc.) (14); que dê segurança ao policial (15); no momento em que ele estiver

distraído ou em posição desfavorável (16); sempre prezando pela segurança da guarnição

(17); de surpresa, de forma inesperada (18).

O entendimento dos profissionais sobre a prática de abordagem policial parte da

percepção de que a Polícia Militar está alicerçada pela legalidade e pela legitimação do Estado

no trabalho de preservação da ordem pública. Daí, o cidadão que sofre a ação policial deve ser

um sujeito passivo a essas abordagens. Percebe-se que não se esboça nenhuma preocupação

favorável ou positiva com o abordado, pelo contrário, ele necessariamente tem que ser

colocado em situação desconfortável. A preocupação maior é com a própria guarnição.

As vozes evidenciaram a comparação entre os valores que ele atribui como sendo

policiais militares e seus próprios valores, repassados e assimilados pela própria instituição.

Ressalta-se que as falas ficaram pautadas em suas próprias percepções do que é a prática de

abordagem segura. Quanto maior a ênfase do processo operacional eles se sentem

profissionais altivos, por isso esses sujeitos não se colocaram na condição de sacrificar seu

lado profissional e pessoal em prol da coletividade, pois suas percepções estão baseadas em

ganho, perder jamais. O chamado espírito de corpo.

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Essas condições de prática de abordagem policial nos leva a considerar que essas

atitudes e ações podem resultar em preconceito e discriminação, além da possibilidade em

causar outras violências como lesão e morte. Nessas atitudes está implícito o conceito de

legalidade, mesmo que essa legalidade seja relativa na ação. Essas concepções destacam a

possibilidade de vários tipos de abusos, praticados por alguns policiais durante as abordagens

operacionais, que podem estar relacionadas em sua contundência militar.

7.4.3 O preconceito/discriminação ou estereótipo racista

Na terceira categoria, sobre a suspeição do sujeito abordado, o senhor(a) acha que a

cor do suspeito influencia no tratamento do policial no momento da abordagem? Os

participantes declaram que nas relações profissionais o racismo é velado, mas presentes nas

abordagens policiais. Essa percepção fica visível nas falas a seguir: Não sou racista, mas acho

que os negros tiveram menos oportunidades na sociedade (01); o negro é a maior camada do

fazer classe social, mas nem por isso já é um suspeito. O que determina o suspeito é o seu

modo de agir (04); para mim a cor não influencia, no entanto para a maioria dos

companheiros de profissão vê que a cor influencia (05); a cor não influencia, pois a cor nada

mais é que racismo, mas quando fala de segurança pública isso foge da realidade (06); por

mim, a cor não influencia (10); o que determina esse perfil é o local onde o suspeito está,

porém há uma visão de suspeito da cor preta e mal vestido (11); infelizmente é uma cultura

que indica não, mas qualquer um pode ser suspeito, independente da cor, mas influencia mais

a cor negra (17).

As falas deixam transparecer que de fato o negro para a polícia militar é um suspeito

em potencial. Essa prática policial aponta para a hierarquia social, Guimarães (2004, p. 27)

afirma que em nossos “grupos de prestígios” está a raiz do racismo cotidiano, isto é, do

tratamento desigual de pessoas baseado na cor. O preconceito racial, sem dúvida, constitui

uma violência física, moral, constrangedora, e, mesmo com a exigência de diversos segmentos

sociais para o reconhecimento e a proteção dos direitos humanos, alguns policiais militares,

em suas abordagens, estigmatizam e, ainda reproduzem o preconceito racial.

Nesse contexto, Goffman (1988) afirma que o estigma oculta uma dupla perspectiva:

do desacreditado e do desacreditável. O primeiro é aquele ser estigmatizado que carrega uma

marca visível. Por sua vez, o outro é aquele sujeito que, de imediato, não é possível perceber a

sua marca, mas é desacreditável porque não é conhecido pelos que o visualizam. Esta dupla

perspectiva está em consonância com o preconceito de marca e de origem apresentado por

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Nogueira (1985). Portanto, a abordagem policial ao sujeito negro ocorre independente das

normas e regras escritas, mas por hábitos preconceituosos presentes nas relações sociais que

se reproduzem nos espaços institucionais.

Em relação às pessoas (negras, mal vestidas etc.), as ações são sempre mais rigorosas.

As características para abordar um suspeito são, apesar de não exclusivas, fortemente

associadas à classe social e à questão racial dos sujeitos, e isso fica patente nos fragmentos

ditos pelos policiais militares: Sim, nós carregamos um estigma de que a cor influencia no

caráter (01); de cor, sem qualificação educacional ou profissional (02); roupas que vestem

(03); situação social, no entanto devemos tomar cuidado ao analisar, pois sabemos que os

mais favorecidos também cometem crimes (5); mal vestida, andar, vestir etc. (09); qual

estiver em situação menos privilegiada (10); sim, a cor influencia (12); classe média baixa,

entre 12 e 30 anos (13); sim, vivemos num país racista (14); magro, moreno, orelhudo (em

geral); gordo/forte, branco, boa pinta (raramente) (16); chama a atenção como suspeito

roupas e tatuagens (18); homem, jovem, magro de pele escura (19).

Nos discursos dos policiais ser preconceituoso/discriminatório fica visível quando

seleciona o suspeito com base em estereótipos que têm na cor da pele e nas roupas os

princípios de suspeição. Percebe-se claramente que os policiais categorizam os suspeitos com

base em estigmas e estereótipos. As marcas corporais e estéticas são elementos que levam o

policial também a julgar o caráter desses indivíduos classificando-os entre bons ou maus,

operacionalizando assim o processo de discriminação.

Nas vozes dos fragmentos verifica-se que as proporções referentes a abordar o negro é

bem marcante: “Um estigma de que a cor influencia no caráter, a cor influencia, Sim,

vivemos num país racista, homem, jovem, magro de pele escura”. Entretanto, a situação social

também está presente: “Roupas que vestem, mal vestido, andar, vestir etc. Chama a atenção

como suspeito roupas e tatuagens”. Nesse sentido, o racismo violenta os direitos individuais.

Essas práticas racistas destacam uma maior “identificação da intencionalidade do racismo”

nas abordagens operacionais. Essas particularidades militares geram a possibilidade de uma

abordagem policial com estereótipo em relação ao sujeito negro que na ação policial é

interpretado como sujeito perigoso transformando em processo de preconceito e

discriminação.

Vale reforçar, mesmo em forma de pergunta: como desconstruir essa concepção que

os policiais carregam sobre o negro, o pobre, o residente em periferia? Seria importante que a

Polícia Militar incluísse no seu currículo a proposta das leis 10.639/2003/ 11.645/08, o que

abriria espaço no processo formativo para dialogar com os movimentos sociais que

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representam os grupos por eles estigmatizados. Isso porque acreditamos que o conhecimento

liberta da ignorância, tornando o homem consciente de suas virtudes.

7.5 As entrevistas – policiais militares

Entre os policiais militares entrevistados a maioria absoluta tem formação no ensino

superior, todos os policiais militares são colegas de Curso de Formação de Soldado de 2011,

têm média de trabalho na Polícia Militar de três anos. Neste aspecto, diferem daqueles que

responderam ao questionário que têm um tempo maior de serviço na corporação, como

também de vida profissional e pessoal. Por conta dessas “diferenças”, foi traçado o perfil dos

policiais entrevistados (Quadro 04).

Quando 04

Perfil dos entrevistados/policiais militares

Gênero masculino

Idade Média dos colaboradores é de 26 anos

Maioria tem curso de nível superior

A média de tempo de experiência profissional é de 3 anos

Os respondentes pertence à turma de 2011 Quadro 4: Perfil dos policiais militares entrevistados

Nota: Quadro elaborado pelo autor

Na caracterização dos respondentes, verificou-se que o grupo foi constituído de um

único gênero, o masculino, com alta representação de jovens. Em relação à patente, verifica-se

que corresponde à graduação de soldados. Tais características, são sui generis, demonstram

uma interessante associação entre as variáveis, experiência, grau de escolaridade e tempo de

serviço. Nestas questões, os policiais são muito jovens, com possibilidades maiores de serem

influenciados institucionalmente, o grau de escolaridade deixa transparecer o discernimento

legal, mas a experiência, ainda pouca, direciona o imaginário deles para o que se costuma

pensar a respeito de si mesmos, e dos outros, no geral influenciados pelos antigos, o de

“protetor da sociedade”, impulso que tende a reproduzir estereótipos, tanto de si como dos

outros envolvidos cotidianamente em seu trabalho.

Os depoimentos dos entrevistados estão divididos em três categorias: I – O papel do

policial militar; II – Preferência de abordagem policial; III – Percepção da Polícia Militar em

suas práticas de abordagens.

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160

7.5.1 O papel do policial militar

Quando se pergunta aos entrevistados sobre o papel do policial militar, verificou-se

que entre as características mais apontadas estão aquelas pautadas no dever de proteção da

sociedade, legitimada pelas normativas. No entanto, afirmaram que isso não é possível devido

ao pouco efetivo e horas em excesso de trabalho, como podemos confirmar em suas próprias

percepções: como vamos servir e proteger se o crime acontece em local e hora que não

sabemos, sem efetivo não dá para estar em todos os lugares, além disso, estamos sempre

cansados, como resolver isso?(02); ser participante ativo da sociedade enquanto guardião

(04); resguardar a segurança do cidadão (03); trabalhar em turnos absurdos em defesa de

uma sociedade que sequer sabe reconhecer o esforço que o policial faz para manutenção da

ordem (05); zelar pela ordem pública (07); dedicação total a manutenção da ordem (09).

Essa percepção policial merece uma reflexão mais acurada, os entrevistados já

percebem um grau de complexidade da profissão policial militar. Bem como, percebem os

estereótipos no imaginário do policial sobre a manutenção da ordem a qualquer preço, essa

visualização foi apontada por algumas variáveis, por exemplo, a condição de trabalho,

formação adequada etc., mesmo assim as missões devem ser cumpridas, é uma ótica

compartilhada por Monjardet (2003) que afirma “não há delimitação do trabalho policial” e,

por conta disso, os policiais se veem obrigados a recorrer aos mais variados critérios de

seleção de ocorrências, sejam eles formais ou informais, no desempenho de suas atividades.

Por essas razões, podemos afiançar que há contradições nos discursos e práticas desses

policiais entre o conhecimento apreendido durante sua formação, que inclui atividades

militares como prioridade, e as exigências que lhe impõem as práticas de atividades de

policiamento de rotina. Essas contradições podem ser chamadas de impacto de realidade

social, que contribui para ações arbitrárias por parte desses policiais, isso significa que o

conteúdo militar estudado não se nivela ao ponto de vista da compreensão social com a

realidade concreta dos policiamentos preventivos ou repressivos.

Os relatos desses policiais remetem a situações que se veem obrigados a realizar ações

independentes das situações adversas como falta de efetivo e falta de descanso. Por conta

dessas situações prevalecem a experiência policial e a intuição na prática policial militar; em

momentos distintos o policial militar decide a maneira de controle que considera adequado à

ocorrência a ser enfrentada. A ocorrência policial, é complexa, requer exercício de julgamento

e habilidade, por isso, somente a configuração militarizada não contempla essa habilidade de

discernimento. Daí o imaginário policial militar é resultado do seu status quo. Quando ele se

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161

dá conta da pressão, da incerteza, perceberá que estará mais na condição de vulnerável do que

na condição de protetor.

Nesse sentido, concordamos com o pensamento de Monjardet (2003), quando afirma

que o trabalho do policial não é uma soma de tarefas prescritas, isto é, não existe um manual

indicando o que seja ou não tarefa de polícia, mesmo assim o policial militar aprende que é

preciso identificar uma situação de crime, uma infração ou um conflito de menor intensidade.

Nos fragmentos discursivos dos policiais fica a impressão de que a percepção policial não foi

suficiente para compreender essa complexidade das ruas. Dessa forma, com a postura de

servir sem refletir, a minoria social continuará sentindo a arbitrariedade policial militar.

Esse excesso na ação policial é exercido por mecanismos localizados tanto dentro

quanto fora da polícia e varia de acordo com as especificidades de cada país. Como o Brasil

tem tradições de subserviência, paternalismo, serviços civis elitistas, burocracia em excesso e

autoridade autoritária, esse prática policial continuará de maneira estereotipada em relação a

essa minoria social.

Esses discursos analisados demonstram a tendência de ações arbitrárias por parte de

alguns policiais militares na sociedade brasileira que historicamente tem escassa tradição

democrática e étnica. A organização policial militar segue linhas tradicionais de segurança

pública, reproduzindo práticas desiguais, discriminatórias e excludentes sobre uma parcela da

população colocada à margem social.

7.5.2 Preferência de abordagem operacional

Na categoria de preferência na abordagem operacional, verifica-se que as

características dos sujeitos que são prioritariamente alvo das abordagens sobressaem aqueles

que na percepção da guarnição esboçam atitudes de insegurança pessoal e social; os que têm

certas aparências físicas tais como cor da pele (negra), tatuagens e vestimentas ditas

diferentes, uso de alguns acessórios; e tem influência também o local onde a pessoa se

encontra. Essas são as características apontadas pelos policiais como indícios de suspeição.

Vejamos o que dizem: o local onde o indivíduo está, local deserto, periferia indica que ele

está aprontando (09); se ele ficar nervoso na presença da guarnição, é suspeito, deve ser

abordado (02); a cor da pele influencia na abordagem, ainda existe isso na abordagem (04);

para mim, a abordagem só funciona com fundada suspeita, mas dependendo da guarnição a

roupa grande, boné, tatuagem deve abordar (07); o racismo ainda é praticado, indivíduo

preto em local suspeito... é abordado com frequência (5); vestido de qualquer jeito [fora do

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162

convencional] é suspeito (01); roupa larga, andando com gingado, brinco, pode abordar, e se

for preto... (01).

As vozes dos policiais militares estão carregadas de valores de cunho discriminatório.

Isto porque a “suspeição” constitui-se em atitude de caráter subjetivo. As circunstâncias mais

comuns de suspeição ditas pelos policiais são: “O local onde o indivíduo está, a roupa

grande, boné, tatuagem deve abordar roupa larga, andando com gingado”. Os entrevistados,

nesta perspectiva, não hesitam em enfatizar o poder ao abordar nessas situações consideradas

suspeitas.

Verificou-se que a preferência na abordagem dita pelos policiais militares aos

indivíduos foi a roupa, a aparência nervosa, o local e a cor da pele. Ao levarmos em conta a

diferença de idade e o tempo de serviço dos policiais dos dois grupos participantes da

pesquisa, observa-se que não se nota diferença nas abordagens. Portanto, pode-se afirmar que

tempo de serviço, curso superior, idade dos policiais militares, dentre outras variáveis, a

abordagem continua impregnada de atos arbitrários. Percebe-se que os elementos que definem

a suspeição são mais comumente encontrados entre os negros, pobres e periferias.

Podemos inferir que independente do grau de instrução, da idade ou tempo de serviço,

esses dados são indicadores de uma prática que tem influência na formação e socialização da

instituição policial militar, já que o currículo silencia sobre o assunto etnicorracial no

programa de formação policial. Portanto, o argumento normativo e militar no curso não é

suficiente para a compreensão racial. Outra questão é a experiência do “mais antigo”,

hierarquicamente falando, “faça como eu faço”. Em algum grau esses jovens atores aceitam e

praticam essa visão.

Essa socialização diz respeito à influência que o policial mais antigo exerce sobre o

policial novo (mais recente na carreira profissional). Essa influência se reproduz sem críticas

ou questionamentos, e muitas das vezes a ação equivocada se perpetua. Em resumo, as

práticas viciosas, sem fundamento teórico/técnico ou legislativo, permanecem no cotidiano

policial militar.

A rotina policial militar está pautada na doutrina jurídica que preconiza que todos os

policiais efetivamente voltados para a manutenção da ordem e da segurança pública devem

exercer suas funções sob a égide constitucional, com os sentidos voltados para os

mandamentos da lei. Entretanto, embora ordenados pela cartilha constitucional, nem sempre

atuam fundamentados na aplicabilidade e julgamento de acordo com o que preceitua a

legislação.

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163

Nesse sentido, Monjardet (2003) afirma que o trabalho nas instituições policiais, assim

como em todas as outras instituições, é composto de duas faces: uma face formal e outra

informal; esta última é definida como o conjunto de comportamentos e normas observáveis

segundo os quais a organização realmente funciona. Continua o mesmo autor afirmando que

essa face informal está relacionada com o fato de que toda instituição tem regras que

necessitam de interpretação e adaptação para funcionar, pois nenhuma delas funciona somente

com as regras formais que a dirigem.

Nesse contexto, pode-se inferir que o comportamento dos policiais, quando de seus

julgamentos arbitrários em relação à suspeição, no mais das vezes compõe a face informal da

instituição policial que está relacionada à forma como eles interpretam as regras, as normas e

seus papéis em relação a eles próprios.

Então a “experiência” policial é uma ferramenta, e deve-se considerar que o

comportamento suspeito é tudo aquilo que se visualiza diante de uma situação, principalmente

observado pelo comportamento pessoal dos indivíduos. Nesse contexto observa e analisa todo

o conteúdo acerca de uma pessoa, desde a maneira das amarrações do cadarço até a cor da

pele e o seu estilo de penteado. A conduta de um suspeito é completamente oposta da

regularidade e aflora pelo temor de ser descoberto, de ser desmascarado.

Nesse sentido Monjardet (2003), a cultura, nas instituições policiais militares, pode ser

compreendida como o exercício e o compartilhamento, na prática, de um código consensual

não escrito no qual estão cruzadas as práticas cotidianas de policiamento, a legalidade e os

regulamentos, bem como os supostos projetos e objetivos do Estado, além das pressões vindas

da sociedade. O leque dessas características indica que a valorização da experiência e da

aprendizagem no trabalho policial, especialmente em sua relação com o público, atesta a

insistência nas qualidades pessoais de cada um que estão inseridas nos valores de

solidariedade da corporação.

Reiner (2004) aponta que uma das características marcantes da cultura policial em

geral sobre o sentido de “missão” está presa ao sentimento de que o policiamento não é apenas

um trabalho e sim um meio de vida com propósito útil e especial, pelo menos em princípio.

Outra característica que este autor também identifica é a “suspeição”, que na visão dos

profissionais é definida como a existência de certo conjunto de estereótipos de possíveis

criminosos, que está inevitavelmente presente, de forma endêmica, em várias instituições e é

reforçada diariamente no cotidiano do trabalho policial. Ele ainda destaca o

“isolamento/solidariedade” entre as características mais acentuadas, pois expressa uma

demarcação nítida entre “eles” (sociedade civil) e “nós” (policiais militares).

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164

Essas características de abordagem policial militar estão na priorização do tirocínio

policial que está carregado de resquícios de autoridade/autoritária enraizada de preconceito e

discriminação que vêm se repetindo ao longo da história e têm sido reproduzidos pelas novas

gerações de policiais. O estudo indica que a instituição precisa repensar novos aspectos da

formação desses profissionais, e com isso possa romper esse círculo vicioso de práticas que

têm violentado os cidadãos desrespeitando sua dignidade e direitos consolidados.

7.5.3 Percepção da Polícia Militar em suas práticas de abordagens

A percepção dos policiais militares nas abordagens, como já percebido e mencionado,

está centrada no vestuário, nas marcas sociais, na questão racial dos sujeitos e na localização

geográfica onde se encontram. Embora as entrevistas pertençam a outro grupo de policiais em

relação àqueles que responderam ao questionário, persiste a mesma concepção, e isso leva a

crer que há uma visão praticamente padrão de se julgar o suspeito. Aos olhos do policial

militar, suspeita-se de: seu comportamento diante da presença da Polícia Militar (10); as

roupas que veste (07); vários fatores poderão influenciar na escolha, sua situação social, o

lugar onde está, as roupas que veste, outros fatores (08); primeiro social, depois racial (09);

situação social e situação racial (06);a situação social predomina (02). É uma relação tênue

entre social e racial na segurança pública (01).

Pela característica militar pode-se afirmar que as instituições policiais militares têm

uma formação disciplinar padronizadora de conduta, comportamentos e, inclusive, vestuário

(fardamento para educação física, atividades sociais e atividades-fim), que tendem a

estabelecer limites à expressão do que seja individual e singular. Por conta desse

enquadramento, avulta a característica de os policiais cultivarem essa conduta,

comportamentos e vestuário. Portanto, uma despadronização parece causar um desconforto

nos policiais “certinhos” e, provavelmente, deduzirão que a padronização é o correto e moral.

Tudo que foge dessa uniformidade causa suspeição, como evidenciam as falas dos policiais

militares: “As roupas que vestem, sua situação social, o lugar onde está, a situação social

predomina”.

O estereótipo dos policiais militares, em relação à roupa, à condição social, ocorre a

partir de sua visão padronizada. O que difere desse quadro linear provoca com facilidade uma

geratriz de processos de conflito, violência e discriminação. Nessas relações com os cidadãos,

em especial o sujeito negro com seu modo peculiar de se vestir sente a arbitrariedade rigorosa

dessa ação policial. Rondon Filho (2013) corrobora essa interpretação afirmando que,

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a identidade policial brasileira, principalmente a militar, é forjada na tônica

foucaultiana dos corpos dóceis, o que pode canalizar seus escapes advindos de

disposições incorporadas e dos processos de sujeição impostos aos seus integrantes

para o elo mais frágil da relação, a sociedade e, em especial, a parcela negra, pobre e

excluída, usurpada em sua cidadania e violada em sua confiança, em seu respeito e

em sua estima (RONDON FILHO, 2013, p. 269).

O mesmo autor afirma que as minorias sociais são discriminadas e estigmatizadas,

consubstanciando um quadro de subordinação cultural, política ou socioeconômica a um

grupo de domínio, como é o caso de idosos, negros, indígenas, mulheres, homossexuais etc.

Essa visão do policial militar é marcada pela inferiorização e pela estigmatização do outro,

que resulta em antagonismos e ambivalências entre o status quo em vigor e as formas de

resistência, individuais e coletivas, o que nos obriga a refletir sobre as contingências desse

fenômeno social.

Essas percepções dos policiais em relação aos sujeitos, em especial os sujeitos negros,

são ilustradas por meio de lentes desfavoráveis, que geram uma relação instável e muito

complexa na relação na figura do Estado com a sociedade. É uma percepção categorizada, isto

é, a categoria chamada minoria social (pobres, pretos, homossexuais, periféricos) é composta

de suspeitos, isto é, essa minoria é uma categoria perigosa.

Vale ressaltar que nenhum policial militar participante da pesquisa afirmou que a cor

da pessoa foi determinante para ele na escolha do sujeito a ser abordado. Mas grande parte dos

participantes afirmou que, outros policiais, ou dependendo da guarnição de serviço, a cor da

pele é uma das principais características de suspeição. Isso demonstra uma tentativa de alguns

policiais militares se isentarem de qualquer contestação que se venha a fazer, no sentido de

que a abordagem tenha sido discriminação com base na cor da pele. Afinal, racista é sempre o

outro.

7.6 As entrevistas – Sujeitos abordados

Vale registrar que, quando as pessoas que foram convidadas a falar de suas

experiências na relação com a Polícia Militar por meio de abordagem policial, as expressões

faciais denotaram medo, revolta e indignação. Dentre os convidados, dois deles deixaram de

comparecer ao local combinado com o pesquisador e não retornaram as ligações feitas nem

responderam aos emails enviados. Antes de iniciar a entrevistas, alguns desses sujeitos

demonstraram desconfiança, sendo necessárias algumas explicações, como, por exemplo,

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166

garantindo que não seriam identificados em nenhum momento; enfim, a tranquilidade no

ambiente prevaleceu.

As respostas dadas tiveram a entonação de desabafo, e muitas vezes “surgiu” a

imagem da humilhação. Apesar das “sombras” visualizadas, apenas um desses sujeitos

impetrou denúncia por preconceito e humilhação na Corregedoria da Polícia Militar, mas

relatou que várias vezes foi percebida a presença de carros de polícia rondando nas

proximidades de sua residência. Na opinião desse sujeito, ele era uma espécie de caça. Por

conta dessa frequência incomum de viaturas próximo à sua residência, quase ficou paranoico,

não podia ver viatura policial que se escondia. Para ele muitas vezes foi necessário repetir

algumas perguntas. Essas respostas possibilitaram traçar o perfil dos colaboradores (Quadro

05).

Quadro 05

Perfil dos entrevistados - abordados

Gênero masculino/feminino

Idade Média dos colaboradores é de 27,9 anos

Maioria tem curso de nível superior completo/incompleto

A maioria são trabalhadores profissionais

A maioria é negra*

A totalidade é católica Quadro 5: Perfil dos sujeitos abordados

Nota: Quadro elaborado pelo autor *Neste caso, estamos levando em conta a somatória de autodeclaração (moreno, pardo)

Os caracteres dos colaboradores abordados foram constituídos dos dois gêneros, com

alta representação de masculino. A média de idade é uma representação de jovens e o nível de

escolarização é nível superior completo/incompleto.

A totalidade é de trabalhador(a), um indicador de que esses cidadãos precisam estar

percorrendo as vias públicas da cidade, isto é, sujeitos a abordagens policiais. Não se percebeu

nesse grupo nenhuma relação religiosa ou cultural com a ancestralidade africana. A análise

das entrevistas com os abordados foi constituída em duas categorias I – A abordagem policial

militar na ótica do abordado; II – O sentimento do abordado sobre as abordagens policiais.

7.6.1 A abordagem policial militar na ótica do abordado

Nesta dimensão, a abordagem policial na ótica do abordado tem um sentido mais de

confronto do que uma relação de segurança ao cidadão. Na percepção dos entrevistados a

abordagem policial é inadequada. O encontro com o sujeito negro nas ações policiais ainda

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carece de humanização, pois os negros como cidadãos continuam sendo desumanizados, e

essa inadequação da ação policial fica patente nos discursos: a abordagem entre o branco e o

negro é diferenciada, o negro é tratado com mais violência (02); não houve motivo para ser

abordado, não tinha nada de anormal, penso que foi uma brincadeira para a polícia (06);

não sei o motivo pelo qual fui abordado, estava parado, só ouvi a voz “mão na cabeça e de

frente para a parede” mesmo assim, virei, vi a polícia e obedeci (03); estava no carro como

passageiro, fomos parados: “Desligue o carro e saiam, mãos na cabeça!”, foi a ordem, fomos

revistados, eu não fui revistado, mas o motorista foi, meu amigo de cor parda foi tirado seus

pertences do carro e dos bolsos e jogados ao chão (01); tenho medo de ser parado pela

polícia outra vez, fico tremendo quando passa um policial por perto de mim, sabe por quê?

fui tratado com violência sem dever nada a ninguém (07); fui abordado porque eu estava

parado em um local que não sabia que era proibido, era uma calçada onde todos passavam,

mas eu fui abordado, foi dito para pôr as mãos para cima, ficar de frente para a parede e não

falar nada, fui revistado, minhas pernas foram chutadas para dar mais abertura. Depois disso

foram embora, não falaram mais nada, simplesmente foram embora (08).

As vozes desses fragmentos demonstram que há o preconceito policial já que todo

negro é um suspeito em potencial. Na atividade de polícia ostensiva manifesta-se a atitude

racista, isto é, o policial na abordagem escolhe diretamente a pessoa negra.

Além do critério negro, outro fator fica claro nos fragmentos: “Tenho medo de ser

parado pela polícia outra vez. Fui tratado com violência sem dever nada a ninguém; fui

revistado, minhas pernas foram chutadas para dar mais abertura. Depois disso foram

embora, não falaram mais nada, simplesmente foram embora”. Além de escolherem os

negros com frequência nas abordagens, as atitudes e ações dos policiais quando se dirigem a

estes são mais agressivas e violentas, e isso se percebe quando abordam pessoas brancas.

Percebe-se nas falas que os negros são tratados como sujeitos muito perigosos, “Não

houve motivo para ser abordado, não tinha nada de anormal, penso que foi uma brincadeira

para a polícia; não sei o motivo pelo qual fui abordado, estava parado, só ouvi a voz “mão

na cabeça e de frente para a parede” mesmo assim, virei, vi a polícia e obedeci”. Os

policiais, aos negros, não dão explicação sobre os procedimentos e nem justificam as razões

das abordagens, ao término dos procedimentos não agradecem nem pedem desculpas,

simplesmente vão embora. Vejam o que se diz a última entrevista: “Depois disso foram

embora, não falaram nada!”.

Isso nos permite asseverar que nas práticas policiais, em especial a abordagem é um

tipo de atitude cotidiana e na maioria das vezes é reprodução de conceitos instituídos aos

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ditames hierárquicos e ditatoriais, construída e reconstruída ao longo da história policial como

mecanismo de controle social a serviço da classe elitizada.

Ribeiro (2009), em seu estudo denominado “O negro é escolhido”, sustenta que é na

prática cotidiana de policiamento que se manifesta a individualização dos pensamentos do

policial e de seus preceitos humanos, isto é, estando o policial de serviço na viatura, sozinho

ou com um companheiro, ele escolhe diretamente a pessoa a ser abordada ou influencia o

outro policial a abordar, tendo como base a sua concepção pessoal. Isso fica claro na fala (em

itálico) de seus colaboradores policiais militares.

E nesse contexto a escolha da pessoa a ser abordada recai sobre o negro em qualquer

situação, em sutilezas que tomam conta das condutas dos policiais no exercício do

policiamento, sutilezas que influenciam na abordagem policial e em seu principal

vetor, a suspeita: simplesmente por ser negro: – tem gente que faz abordagem

diferente, sim, como se o preto fosse mais suspeito que outros, ou suspeito

simplesmente por ser preto. Tinha um colega que não deixava um homem preto

passar e logo falava: “vamos pegar o negão”. - em situações de demonstração de

poder aquisitivo: No comando de equipes operacionais era perceptível a tensão e

cumplicidade de olhares quando deparávamos com veículos novos ocupados ou

conduzidos por negros. - pela vestimenta e acessórios: a verdade é que nas

abordagens o policial militar acaba confundindo calça de boca larga, boné, óculos

de sol, com pessoa em atitude suspeita, somado à “cor da pele” e ao fator

discriminatório. Nesse processo de escolha, quando tem que se explicar, o policial

diz que o tirocínio é que decide a quem abordar ou não, num procedimento

padronizado. É importante conhecer os mecanismos e critérios de construção da

atitude suspeita, de modo a identificar a influência do que os sociólogos denominam

filtros sociais e raciais na formação desse conceito, que se forma basicamente sob

critérios subjetivos e intuitivos do policial militar. (RIBEIRO, 2009, p. 83)

O abordado negro sente que seu espaço social em relação à polícia é diferente dos

demais cidadãos, pois para outras pessoas parece não ter lugar e hora proibida. Para o sujeito

negro parece ter proibição em tudo, tanto que é temerosa a aproximação do negro ao policial

militar.

O que se percebe na administração da polícia e na formação dos policiais militares é

uma conduta tradicional cuja operacionalização desses valores não é o suficiente para

neutralizar o viés da atuação repressiva. Portanto, as abordagens policiais continuam sendo

desenvolvidas por ações caracterizadas por uma miopia criminal que impede de enxergar os

resultados desfavoráveis do enfoque reativo, bem como o comprometimento do atendimento e

relacionamento com a população (SOUZA, 2012).

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7.6.2 O sentimento do abordado sobre as abordagens policiais

Nesta categoria o abordado tem a polícia como representação social àqueles que mais

desrespeitam os direitos fundamentais do cidadão. O sujeito negro parece ser naturalmente

desvirtuado, discriminado, provocando com frequência situações de constrangimento,

humilhação e medo. Há o entendimento de que a abordagem policial militar é uma atividade

fundamental na função de polícia. Porém, essa ação policial deve ser realizada com respeito à

pessoa humana, independente de sua cor, condição social, credo, que são fundamentos

constitucionais do Brasil. Senão vejamos: Estava trafegando de moto, quando veio a viatura

da polícia em alta velocidade passando na minha frente. Parei de imediato. Fui tratado com

rigidez, e quando fui tirar o capacete, o policial falou alto: – não mandei tirar o capacete!, e

ao me revistar levei um soco no saco, foi uma covardia (01); estávamos em três no carro, eles

[policiais] acharam que éramos assaltantes, mas não era nada disso, somos trabalhadores,

foi humilhante, as pessoas que passavam achavam que éramos criminosos fomos tratados

com muita rigidez. Chutes e humilhações, eu e meus amigos (03); estava em uma borracharia

anexo a um posto de combustível arrumando o pneu da minha moto, estava sentado de costas

para a rua, de repente fui empurrado, caí do banco de barriga para o chão, com muita

violência, era a polícia com uma arma comprida apontando para minha cabeça, e eu sem

saber o que estava acontecendo. Como a viatura estava parada próxima eu ouvi pelo rádio da

viatura que já haviam recuperado a moto roubada e o ladrão fora detido. Uma humilhação

sem tamanho, sou trabalhador. Acredito que essa violência comigo aconteceu porque tenho a

cor da pele parda. Após a saída do policial fiquei mais ou menos 10 minutos para levantar do

chão, sem saber o que fazer. Nunca mais esqueço esse trauma (05); difícil generalizar uma

afirmação de preconceito entre preto e branco na abordagem policial. No entanto, presenciei

duas situações de abordagem onde ficou explícito o tratamento diferenciado em desfavor de

pessoas negras (10); fui abordado como suspeito, perguntou se eu uso drogas, se eu consumia, se

vendia etc. Eu falei que não era usuário, aí eles bateram na minha cabeça, e perguntando por que

eu estava andando tarde na rua, bateram nas minhas pernas e mandaram ir embora (06);

algumas abordagens foram dentro do que considero normal. Em outras situações, me pareceram

abusivas e preconceituosas (10); gostaria que os policiais tratassem os cidadãos com mais

respeito, nós [negros] também somos cidadãos (08).

Os discursos dos abordados expressam seus sentimentos em relação à abordagem

sofrida. São momentos de angústia, de revolta, de tensão, de raiva, de humilhação. Ser

abordado em voz alta, quase gritando, cercado pelo menos por dois policiais, um vigiando

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com a mão na arma de fogo e outro apalpando o corpo, de pernas abertas, mãos na cabeça, na

parede ou no muro aos olhos de todos não é nada bom.

Outro viés sentido, além da violência física, foi a violência psicológica: “Nunca mais

esqueço esse trauma”. São tratamentos cruéis. Os negros abordados têm consciência de que

estão sendo vítimas de racismo e preconceito, embora alguns considerem essas atitudes

normais. Se há uma política estatal da qual o povo negro não precisa de ações afirmativas, é a

política de abordagem policial ao sujeito negro. Os efeitos perversos de tais práticas policiais

podem ser notados nos fragmentos dos discursos: “Acredito que essa violência comigo

aconteceu porque tenho a cor da pele parda”. Não se pode perder de vista o fato de que a

prática policial militar é o fortalecimento da produção de desigualdade e discriminação que se

volta contra os sujeitos negros.

Essa perspectiva de abordagem denuncia a necessidade de a instituição repensar as

formas de atuação desses profissionais junto à população. O Estado parece estar ausente ou

silencioso quanto às abordagens discriminatórias; da forma como foi narrada pelos

entrevistados, a ação policial se assemelha às práticas do vigilantismo que se refere aos

movimentos extralegais, organizados para manter a ordem ou a lei pelos seus próprios meios.

Sinhoretto (2001) nessa perspectiva possibilitou uma comparação entre os Estados

Unidos da América e o Brasil. Sobre os vigilantes americanos, diz a autora, realizavam sua

vigília em áreas inseguras das cidades, onde moram membros da classe trabalhadora branca.

Nesses locais predominava um entendimento racista do crime, cuja penalidade era o

linchamento, utilizada como ferramenta de manter a ordem. Mas é importante destacar que era

uma estratégia utilizada pelos brancos para manter a população negra enquadrada, isto é, em

seu lugar.

A respeito do Brasil, a autora acima mencionada conceitua que o vigilantismo é

conservador para criar, manter ou recriar uma ordem sociopolítica estabelecida. No caso

brasileiro que vivenciou uma ordem ditatorial militar, as autoridades mantêm uma postura

conservadora, violenta e autoritária, permanecendo com resquícios de eliminação daqueles

pobres, negros e outros, que são considerados perigosos.

Essa postura discriminatória em relação ao sujeito negro também se evidencia por

dados estatísticos apresentados no Fórum Brasileiro de Segurança Pública no Anuário

Brasileiro de Segurança Pública 2014, que nos dados gerais (p. 6) indica que “negros são

18,4% mais encarcerados e 30,5% mais vítimas de homicídio no Brasil”.

Outro estudo revela que o índice de negros mortos em decorrência de ações policiais a

cada 100 mil habitantes em São Paulo é quase três vezes o registrado para a população branca

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e a taxa de prisões em flagrante de negros é duas vezes e meia a verificada para os brancos. É

o que mostra um estudo da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Os dados revelam

que 61% das vítimas da polícia no estado são negras, 97% são homens e 77% têm de 15 a 29

anos. Já os policiais envolvidos são, em sua maioria, brancos (79%), sendo 96% da Polícia

Militar.

A coordenadora dessa pesquisa, Jacqueline Sinhoretto, diz que existe hoje um

“racismo institucional”. “Não é que o policial como pessoa tenha preconceito. É o modo como

o sistema de segurança pública opera, identificando os jovens negros como perigosos e os

colocando como alvos de uma política violenta, fatal”. O estudo sobre a letalidade policial,

feito pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade,

levou em conta 734 processos da Ouvidoria, de 2009 a 2011, com 939 vítimas.

A violência perpetrada pelo Estado contra a minoria social, composta pela maioria de

negros, que sofrem abordagem policial de forma truculenta, revela como a instituição policial

militar, ao longo da história, lida com as diferenças etnicorraciais e de classe. A ação policial

repressiva viola os direitos civis, políticos, sociais e humanos dos cidadãos, bem como a

integridade do corpo e da própria vida. Essa situação de maus-tratos e humilhação sumária

configura uma destruição das garantias dos direitos fundamentais do indivíduo.

Por esse prisma, é preciso pensar nas proposições de Agamben (2007) sobre estado de

exceção, em que a figura do homo sacer se relaciona às pessoas que podem ter suas vidas

aniquiladas pela vontade do soberano e aglutinadas em grupo sem direitos: “[...] aquele que é

banido [e não apenas posto fora da lei ou indiferente a ela], mas abandonado por ela, isto é,

exposto e colocado em risco no limiar em que a vida e o direito, externo e interno, se

confundem” (AGAMBEN, 2007, p. 36). Isto acontece porque “[...] não é classificável nem

como sacrifício nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como

sacrilégio [...]. Esta esfera é da decisão soberana que suspende a lei no estado de exceção e

assim implica nele a vida nua” (idem, p. 90). Sou seu dono e faço o que quero a seu respeito

sem cometer qualquer arbítrio. Assim é a abordagem policial militar ao sujeito negro.

A percepção dos abordados é a mais negativa possível, pois são evidentes as

humilhações, os traumas provocados através de abordagens violentas que ocorrem nessas

relações entre sujeitos negros e a polícia, cujo encontro persiste à sombra da hierarquia social

e a truculência policial. Assim, fica evidente a sobrevivência da dominação e da violência de

representantes do Estado, em nome da manutenção da ordem pública, mas que de fato são

ações que contribuem para a manutenção do racismo, do preconceito e da brutalidade contra

cidadãos negros e pobres.

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7.7 Observação de policiamento - Procedimentos e Direcionamento

A observação de policiamento constitui-se como um levantamento de situações que

ocorrem num determinado contexto. Situa-se numa perspectiva caracterizada pela unicidade

da ação, o que lhe confere uma identidade muito própria. Neste caso específico, a observação

participante pretende analisar uma dada realidade de forma que permita um trabalho de

profundidade, todavia limitado a um tempo de recolhimento de dados.

O objetivo da observação foi apreender os comportamentos no momento em que eles

se geram ou no desenrolar de um conjunto de acontecimentos – comportamentos, trocas

verbais – que se produzem durante um período, permitindo ao investigador descobrir como

acontecem determinadas ocorrências. A observação focalizou-se no desenvolvimento da

intervenção policial junto ao cidadão, através da abordagem policial; posteriormente buscou-

se compreender a percepção do policial sobre sua ação.

A observação, neste momento, foi centralizada na Arena Pantanal onde se constatou

um aparato militar tanto em efetivo como em material bélico. O efetivo foi observado nas

datas dos Jogos da Copa do Mundo (17, 21 e 24 de junho/2014). O evento mobilizou

aproximadamente 350 policiais/dia, praticamente todos portavam armas de fogo nos coldres,

calibre 38 ou 380. Nas diversas viaturas das unidades convencionais, das unidades de

operações especiais e da força nacional, pôde-se perceber armas de cano longo,

provavelmente de calibre maior; coletes à prova de balas – é o ethos militar que tem definido a

atuação das polícias militares, tradicionalmente organizadas como exércitos.

Esses procedimentos têm, sobretudo, a função de demonstrar o poder e a força como

mecanismos fundamentais para imprimir na percepção social a capacidade de repressão da

instituição. O aparato utilizado demonstra o poder de guerra silenciosa, pois a guerra, nessa

concepção, faz reinar ou tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil. Mas por outro lado não

há preocupação em suspender os efeitos da guerra ou neutralizar o desequilíbrio que se

manifestou na batalha final (FOUCAULT, 2005).

Para os policiais militares esses aparatos bélicos têm que ser levados a sério, um

trabalho desta envergadura é praticamente “uma guerra”, e politicamente esta guerra tem que

ser ganha. Há essa insistência por parte dos operadores de segurança pública, mesmo não

sendo uma guerra literal existe a possibilidade de um enfrentamento em grande escala, então a

percepção desse possível confronto é uma relação entre adversários comuns:

polícia/sociedade.

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Nesse sentido, atenta-se para o fato de que o significado da guerra é produzido e

reproduzido dentro de determinada cultura. Para o policial militar, este conjunto bélico forma

o sentido de ação, pois está incorporado no sujeito capaz de criar e agir sobre as coisas, neste

caso, no policiamento.

Desse modo, apropriando-se do pensamento de Geertz (2008), é possível afirmar que

esse hábito é uma teia de significados que os policiais tecem e a ela se prendem, à medida que

mantêm interações cotidianas que influem diretamente nas suas ações sociais. Igualmente, ela

é como um texto ou um conjunto de textos que os indivíduos leem e interpretam ao longo dos

acontecimentos sociais.

Nessa conjuntura de policiamento no entorno e nas proximidades do estádio não se

percebeu uma relação dos policiais militares com a comunidade, permaneciam sempre

precavidos, localizados em pequenos grupos, parados ou caminhando, sempre eretos,

fardamento muito arrumado, em postura de defesa, esperando algum ataque surpresa. Esse

comportamento indica que os policiais militares se perfilam de maneira diferente de outros

profissionais, mas é possível perceber nessa observação que há uma demonstração de que

também se sentem orgulhosos.

Outras variáveis foram constatadas no policiamento ostensivo: os policiais

apresentaram, em vários momentos, características de cansaço, provavelmente pelas várias

horas de trabalho ininterruptas. Mesmo nessa situação desgastante, o maior realce foi a

comunicação e instrução direta na vertente de feedback entre os policiais, nas atitudes

marciais, na minimização nas relações interpessoais com os cidadãos e comportamentos

agitados no meio policial em várias ocasiões.

As abordagens policiais a pessoas, no entorno da Arena Pantanal, foram realizadas

dentro dos procedimentos legais. Nessas observações foram presenciadas cinco abordagens,

sendo duas a pessoas e três veiculares.

As abordagens pessoais foram realizadas em quatro sujeitos pardos e um negro, as

ações foram idênticas; duas dessas pessoas estavam caminhando nas imediações do estádio

sozinhas, próximo ao posto de combustível (Av. Agrícola Paes de Barros/Av. São Sebastião),

no dia 17 de junho de 2014, aproximadamente às 20h20. A abordagem foi realizada por dois

policiais que ao avistarem os sujeitos, um deles comentou: “O que aqueles ‘corrós’ estão

fazendo por aqui?”, então se aproximaram e determinaram que parassem: “Encostem na

parede, mãos para cima, pernas abertas e fiquem quietos!”. Um policial ficou a poucos metros,

arma de fogo na mão, atento ao procedimento. A revista foi feita, batidas fortes nas pernas e

no tórax procurando alguma coisa, as perguntas de sempre: “O que faz por aqui?”, “seus

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documentos”, enfim nada encontrando, foram liberados, sem nenhum registro. Uma

abordagem sem motivo que justificasse a intervenção policial exceto a cor negra dos sujeitos.

Outra abordagem ocorreu no cruzamento da Av. Ipiranga/Av. Oito de abril também

após o jogo do dia 21 de junho de 2014. Quatro policiais realizaram a abordagem, dentre os

três abordados, o primeiro a sofrer a intervenção foi o sujeito negro, depois os demais foram

revistados; nada encontrando com aquelas pessoas, foram advertidos pelos policiais que por

aquela região não seria bom andar em grupo, seria perigoso: “Vão embora, se estiverem por

aqui nesses cinco minutos serão detidos”. Da mesma maneira, sem registro e sem motivo

aparente para a intervenção policial.

Essas experiências tornam-se inócuas nessa relação policial e cidadão, abordar as

pessoas somente para afirmar a identidade militar ou para demonstrar a autoridade policial

junto aos cidadãos, pois nesses casos cada uma daquelas pessoas foi abordada por ser, na

linguagem policial militar, um “corró”, uma denominação utilizada para fazer a diferença

entre o eu militar e o outro civil. Essa entonação ser militar transforma-se em um atributo

importante para esse operador de segurança pública: é “corró”, então deve ser abordado.

Corró: designação comum a pequenos peixes sem valor, de rios e açudes. 2 P. ext.

indivíduos de baixa estatura. Palavra depreciativa, negativa, designando o que não é esperto;

tonto. Jargão policial militar.

As abordagens em veículos ocorreram quando, por algum motivo, os condutores

desses carros queriam adentrar em área interditada, e ao se depararem com os policiais que

estavam em praticamente todos os cruzamentos próximos ao estádio, paravam, saltavam ao

chão, indo solicitar autorização para atravessar essas áreas. Nos dois primeiros casos de

abordagem veicular, eram duas pessoas pardas conduzindo veículos populares; aproximaram-

se dos policiais, solicitaram autorização para atravessar as vias interditadas. Os policiais

negaram seus pedidos e determinaram que os condutores retornassem e buscassem alternativas

diferentes. Nesses casos, a voz e a postura do policial deixaram claro que sua vontade deveria

prevalecer, apesar de existir uma regra de interdição, neste caso, quando há a presença física

do policial, segundo as normas viárias, a sinalização perde sua função em detrimento da

vontade policial, e ele não possibilitou nenhum argumento por parte dos condutores.

Na terceira abordagem, o veículo era de luxo, a situação era parecida com a situação

anterior, mas o condutor, branco, saltou do carro, antes que caminhasse até o policial, a

autoridade se aproximou solícita do cidadão para ouvir suas razões de estar em local

interditado para o tráfego; houve uma atenção por parte do policial que o orientou como

chegar ao seu destino. O condutor do carro de luxo também não teve autorizada sua passagem

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por aquela interdição, mas foi atendido de maneira atenciosa, como todos deveriam ser

tratados naquela situação.

A análise das observações sobre abordagem policial é essencialmente para verificar

se nessas ações há prática de preconceito e racismo, é também verdadeira a preferência dos

policiais militares de Mato Grosso em abordar pessoas negras. As atitudes diferentes em

abordar o sujeito negro é o costume naturalizado que é difícil mencionar um policial

preconceituoso, pois segundo o corporativismo, “o outro pratica preconceito”, nesse olhar

sempre haverá a contribuição para a manutenção desse fenômeno discriminatório. Há policiais

que não são racistas, há policiais racistas, há policiais negros nos vários escalões funcionais,

mas não vão demonstrar essas aptidões com receio da coação moral.

As observações reiteram as afirmativas da prática de abordagem policial racista e

discriminatória, cujos policiais que deveriam prestar serviços à sociedade sem distinções de

raça, cor, religião, dentre outros, mas acabam sendo instrumentos dessas arbitrariedades que

visualizam o negro e o pobre como ameaças sistêmicas.

7.7.1 Observação do policiamento ostensivo motorizado

As observações foram feitas nos bairros: Centro e Porto, da cidade de Cuiabá, cuja

responsabilidade de policiamento ostensivo e repressivo é de um dos Batalhões da Polícia

Militar de Cuiabá.

As observações do policiamento motorizado foram realizadas por turnos, que foram

separados por datas diferentes e períodos diversos matutino, vespertino e noturno e as

operações repressivas no período noturno. As datas diferentes foram selecionadas no sentido

de acompanhar um maior efetivo de policiais em suas abordagens.

Naquele dia 14 de outubro de 2014, ao chegar ao quartel, procuramos pelo oficial de

área que nos levou e apresentou a alguns policiais de serviço, esclarecendo o motivo da nossa

presença e o objetivo de compormos a guarnição de serviço que estaríamos observando. Após

essas falas iniciais, fomos encaminhados ao almoxarifado para apanhar e fazer uso do colete à

prova de bala durante a nossa permanência junto à guarnição.

O quartel no período noturno parece impor uma impressão de encastelamento nos

indivíduos, aspecto sombrio, um relativo silêncio e uma espécie de enclausuramento em um

espaço geográfico “inviolável”. A construção é do século XIX, à frente cones que demarcam a

restrição de espaço público e internamente as viaturas militares e outros veículos,

provavelmente dos operadores de segurança pública. A fachada é composta de tijolos maciços

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assentados com agregados miúdos do tipo argiloso, portão de ferro, a cobertura de telhas de

barro completando o seu quadrante de muros altos.

Os policiais de serviço se encaminham para o almoxarifado da unidade para cautelar

(apanhar os instrumentos de trabalho – arma de fogo, colete à prova de bala), anotando seus

nomes e assinando num grande caderno, tornando-se responsáveis pelos materiais sob seus

cuidados. Nesse momento, há uma situação peculiar: ao receberem seus instrumentos de

trabalho, paira certo silêncio no manuseio das ferramentas, após a constatação de que está

tudo bem, último ajuste no uniforme, o silêncio é quebrado e o “barulho” das conversas

reaparece, como se essas ferramentas unidas ao uniforme fossem revestidas de autoridade

vigorosa, isto é, tornando-os “indestrutíveis”.

Nos momentos iniciais das observações, ocorreram situações recorrentes, como as

tentativas de “dissuasão”, geralmente com a preocupação que a corporação militar tem com

sua imagem. Algumas vezes, antes de sair à rua, os policiais militares tentaram “isolar- me”,

remetendo ao silêncio em alguma parte do quartel. Passados esses momentos, alguns policiais

que me conheciam ou ficavam sabendo da minha condição de policial da reserva remunerada

e componente de Associação Policial Militar era “reintroduzido” ao grupo como uma espécie

de “canal” para dar voz às dificuldades profissionais por que passavam, horas de trabalho em

excesso, alimentação, enfim condições de trabalho.

Essas espécies de obstáculos simbólicos deixaram transparecer barreiras em um olhar

de estranhamento, daqueles militares que estavam de trabalho e que de certa forma estavam

expostos a uma situação não habitual, um pesquisador em seu campo de ação gera

desconfiança, provavelmente se perguntavam “o que fazia um ‘estranho’ na viatura

operacional sem estar fardado”.

Esse quadro de comportamento militarista acaba realimentando a manutenção de uma

grade classificatória em que a categoria militar aparece como grupo restrito e hierarquizado,

como preceitua a própria instituição: entre os próprios policiais militares, militares da ativa, os

da reserva remunerada, os inativos; e, reconhecendo-se como um grupo distinto do resto da

sociedade, nessa categorização distingue o “corró” (pesquisador) intrometido, invasor do

policiamento ostensivo, mesmo sendo militar da reserva remunerada.

Esses cruzamentos de “saberes e práticas” são também o fio condutor dessas relações

hierarquizadas entre os policiais militares e os cidadãos. Uma característica de constituição de

grupo com tendência para divisões e/ou oposição, para fortalecer a fusão entre pessoas de sua

própria ordem em oposição a “segmentos contrários” à sua função de manutenção da ordem.

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Essas características foram observadas durante a permanência no quartel, bem como

durante as operações rotineiras, isto é, no policiamento motorizado e nas operações

repressivas de abordagens onde os trabalhos foram realizados.

Essas percepções culturais das relações policiais com outras pessoas, em especial com

o pesquisador, e, a sensação da interferência do outro em sua missão de segurança e

manutenção da ordem foram de encontro com o pensamento de Geertz (2008, p. 66-67) "[...] o

ethos de um povo. [...] De um lado, objetivam preferências morais e estéticas [...] de outro [...]

como provas experimentais da sua verdade". Essa valorização militar é o reflexo do

deslocamento do imaginário, pois eles "corporificam" o Estado e a manutenção da ordem.

Eles materializam o papel do Estado provedor – por meio do policiamento ostensivo

preventivo. Essas ferramentas fazem parte de seu corpo, esse imaginário policial fortalece o

imaginário do guerreiro, o militar.

Esse estado corporificado de manutenção da ordem tem sempre uma rota a patrulhar, e

a rota percorrida foi o Bairro Centro e o Porto da cidade de Cuiabá, realizamos trajetos

aleatórios por boa parte da região de competência do batalhão, não houve parada durante esse

percurso que foi de aproximadamente uma hora e meia de tráfego sem interrupção. Enfim, às

20h, ocorreu nossa primeira abordagem, na Rua 13 de Junho, próximo à Feira do Porto: “Olha

aquele cara na moto, vamos abordar”, disse o policial motorista. Era um jovem negro que

estava embarcando em sua motocicleta, em frente à sua residência. Os policiais pararam a

viatura bruscamente, próxima ao rapaz. “Parado, mão na cabeça!”, falaram os policiais com

as armas em punho. O jovem atendeu prontamente à determinação, ficou em pé, sofreu a

revista pessoal, nada de irregular foi localizado, a conversa se arrastou por mais alguns

minutos e o abordado foi identificado como morador daquela residência e futuro policial

militar, já que havia sido aprovado em concurso público para a Polícia Militar e ingressaria

em breve como aluno a soldado da corporação.

De volta ao patrulhamento, percorrendo as ruas, indagamos se foi percebido algum

motivo para a realização daquela abordagem. “Sim, um jovem saindo de uma residência com

moto naquele local e naquele horário – o Porto é perigoso, pode ser tráfico de drogas – boca

de fumo, roubo da moto. É preciso checar”. A partir deste momento as relações entre

pesquisador e policiais se tornaram mais tranquilas.

Outra abordagem ocorreu no Centro, Rua 13 de Junho com a Travessa Desembargador

Lobo - Praça Ipiranga, aproximadamente às 22h50; dois sujeitos negros saíram da Praça

Ipiranga, atravessaram a 13 de Junho e estavam seguindo pela Travessa Desembargador Lobo,

na esquina entre as vias citadas foram abordados: com as armas em punho direcionadas para

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os suspeitos: “Parados, mão na cabeça, de frente para a parede com as pernas abertas!”. As

duas pessoas obedeceram prontamente, as revistas foram realizadas, seus pertences foram

retirados dos bolsos, jogados ao chão, foi localizada uma “cabecinha” de maconha. Diante

desse achado, as vozes dos policiais ficaram mais fortes: “O que é isso?”, perguntou um

policial, um dos suspeitos respondeu: “É maconha, senhor, sou usuário”, “eu só carrego esse

pouquinho para usar quando o vício aperta”. Para onde está indo?, perguntou outro policial.

“Estou indo para casa, senhor, trabalho até as 10h da noite”. “E esse outro?”, indagou o

mesmo policial. “É meu amigo, moramos na mesma república”. “Cata tudo que é seu e vaza,

não quero ver nenhum dos dois por aqui”, finalizou o policial.

“Neste local [Praça Ipiranga] sempre tem drogado e viciado, é um local perigoso, se

passarmos por aqui toda hora, sempre haverá abordagem”, disse o policial motorista como

se quisesse justificar aquela ação. Perguntamos à guarnição qual o entendimento que tinham

sobre o significado de perigoso. “Ora, perigoso para a população que circula pelo local,

trabalhadores, familiares e outros, que podem ser roubados ou até violentados quando estão

indo para o trabalho ou para suas casas”, disse outro policial.

A impressão dessas abordagens tipificou uma manifestação de estigmatização das

classes populares: os suspeitos eram sujeitos negros, trabalhadores e documentados. Nessa

postura policial militar ficou patente a resistência de democratização, pois naquele mesmo

momento outras pessoas atravessaram a avenida, saíram da praça etc., mas o fato demonstrado

foi a manutenção de práticas seletivas nas abordagens policiais, manifestando uma relação

discriminatória contra os componentes das camadas populares, e a atitude de jogar seus

pertences na calçada sem o menor cuidado caracterizou a presença do autoritarismo em sua

faceta mais danosa no campo da segurança pública.

No dia seguinte, o itinerário foi o mesmo, não houve mudança alguma. Aliás, em todos

os momentos de observação no policiamento de rotina e na operação repressiva o roteiro foi o

mesmo. No bairro do Porto, o foco maior foi no quadrante que envolve a Avenida Beira Rio

(Museu do Rio, Aquário Municipal, Praça Luiz de Albuquerque), Rua Comandante Suído e

Rua 13 de |Junho (próximo à Feira do Porto). Na parte central da cidade o enfoque foi nos

bares do Beco do Candeeiro, Praça Maria Taquara e Praça Ipiranga – nesta praça a frequência

do policiamento foi no período noturno.

Na observação, no período vespertino foi realizada abordagem veicular em uma

motocicleta no cruzamento da Av. Tenente-coronel Duarte com a Rua Major Gama (provido

de sinalização luminosa – semáforo), onde todos os veículos aguardavam o sinal verde

acender para seguir viagem, na Avenida Tenente-coronel Duarte, foi quando a motocicleta

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avançou o sinal vermelho – parada obrigatória. Os policiais demonstraram uma indignação

diante daquele fato. “Vamos abordá-lo, imagine avançar o sinal proibido na frente da

polícia; se não tomarmos atitude, o respeito acabará”, falou o policial passageiro.

A partir de então, a moto passou a ser o alvo da guarnição, até que foi abordada na

mesma Avenida Tenente-coronel Duarte, próximo à Praça Ipiranga. Os procedimentos padrão

foram adotados, armas na mão, em voz potente: “Encoste, desligue a motocicleta e passe os

documentos!”. Enquanto um policial verificava os documentos, o motociclista ficava em

situação desconfortável, pois não devia demonstrar movimento que os policiais poderiam

caracterizar como resistência.

O veículo estava com a documentação atrasada, isto é, seu licenciamento não estava

quitado para o ano de 2014, além de ter avançado o sinal vermelho. O policial que estava

verificando a documentação passou a preencher o auto de infração – conhecido como

notificação, multa. O condutor do veículo tentou argumentar, porém sem sucesso: o policial

em determinado instante tirou a cobertura (bibico, boné), passou os dedos sobre a testa

retirando o suor que brotava abundantemente, era aproximadamente 15h10. Nesse momento, o

policial teve uma atitude comum, humana, sentiu calor e desconforto e seu corpo respondeu

por meio da transpiração. Ao terminar o ato de impor a penalidade, retornou à viatura e o

primeiro movimento foi ajustar a pistola e comentou: “Espero que ninguém hoje me faça suar,

o sol está muito quente”. Pensamos que se outra abordagem acontecesse tendo o mesmo

policial como protagonista, pelo tom da voz do policial o abordado poderia sofrer uma

penalidade mais rigorosa, talvez uma arbitrariedade. Outra reflexão sobre a mesma ação foi a

abordagem à motocicleta, a aproximação não foi ocasionada pela infração de trânsito ou pela

segurança do condutor e de outras pessoas, mas sim pelo desrespeito à autoridade policial que

deve ser mantida sem questionamento.

Nessa mesma tarde, ao passar pelo bairro do Porto, olhando para aquele público em

frente aos bares, indagamos: “Como vocês olham para essas pessoas?”. “Essas pessoas são

esquecidas pelo poder público, apenas nós [policiais] é que olhamos para elas; se não fosse a

polícia, essas pessoas já teriam tomado outro rumo”, respondeu o policial passageiro. “Como

assim? Causam problemas?”, inquirimos. “Tem que ser mantida a ordem”, foi a resposta.

Aqui se faz presente o fenômeno do controle de massa, em especial a classe popular.

Esses moradores são pobres, moradores de rua e esquecidos pelo Estado, na percepção

policial, continuam perigosos e devem ser vigiados para não causar danos a outras pessoas,

principalmente às pessoas que não moram na região. Assim, a missão policial estará além de

um conceito simbólico do valor militar. O policial foi mais que um soldado no sentido estrito

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da palavra, e graças às suas virtudes militares, cumpre sua tarefa sem ao menos refletir sobre

discriminação ou preconceito racial.

Pensando nesse controle das pessoas consideradas perigosas (pobres e pretos) as

observações continuaram e em uma dessas manhãs, ao passar pela Praça Alencastro, no

coração de Cuiabá, a viatura que estávamos parou repentinamente, no meio da rua. “Veja, é

João (fictício), vamos falar com ele”, disse o policial motorista. João foi abordado, de uma

forma mais branda, talvez por ser um “cliente” da polícia. “Fica tranquilo, só queremos saber

como estão as coisas”, disse o policial. “Está tudo ok, estou trabalhando com o Sr. X, na

garagem, Podem perguntar”. Respondeu João. “Onde Maria (fictício) está? Sabemos que foi

solta”. Inquiriu o policial. “Não sei, não vejo ela há tempos”. Foi a resposta de João. “Muito

bem, diga a ela que queremos saber onde está o produto, estamos de olho nela”. Foi a

mensagem policial.

João, um cidadão branco, portava vestimentas surradas, tinha alguma dificuldade

psicológica ou neurológica, não conseguia controlar a saliva excessiva, constantemente

precisava estar secando a boca para que esse excesso não molhasse suas vestes. Seu andar

também não era regular, parecia que em alguns momentos não conseguiria controlar seus

passos. Essas observações nos impulsionaram a indagar aos policiais: “Como é o contato da

polícia com pessoas com características parecidas com o João?”.

“Isso dependendo do comandante essas pessoas que frequentam a Praça Alencastro

[skatistas, moradores de rua, usuários] devem ser abordadas e retiradas deste local para não

causar transtornos, roubos, violência às pessoas que passam por aqui”, disse o policial

passageiro no interior da viatura. Aproveitando a fala do policial, acrescentamos outra

pergunta. “Quem brinca com skate, morador de rua não pode fazer uso do espaço público?”.

“Podem usar sim, mas nas condições em que eles se encontram é provável que irão

incomodar outras pessoas, e para prevenir...”, foi a resposta do policial, deixando espaço

para várias interpretações, dentre essas percepções o entendimento que ficou foi de, podem

usar o espaço público, mas sob vigilância, e abordados a qualquer momento.

Em outra noite de observação, o itinerário foi pelos mesmos pontos já percorridos

anteriormente, e no cruzamento da Avenida Tenente-coronel Duarte com a Rua Campo

Grande, aproximadamente às 20h30 um veículo de passeio avançou o sinal vermelho, a

viatura sinalizou imediatamente com a sirene, o carro infrator parou rapidamente logo à frente.

Era, uma condutora, uma senhora branca, com idade aproximada entre 45 e 50 anos; a

documentação pessoal e do veículo foram solicitadas pelos policiais. Os documentos foram

apresentados, mas, a carteira de habilitação, não conseguia encontrar, e a senhora passou a

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procurá-la, o tempo de procura foi de aproximadamente uns trinta minutos e os policiais

pacientemente aguardaram, até que ela a localizou. A documentação foi checada, não foram

constatadas irregularidades, sendo a condutora apenas orientada para não cometer infrações e

em seguida liberada.

Após essa abordagem, na mesma proximidade, próximo ao cruzamento da Avenida

Tenente-coronel Duarte com a Avenida Coronel Escolástico, vários veículos encontravam-se

parados por conta da sinalização luminosa [semáforo] vermelha, os policiais aproveitaram o

momento para selecionar, com o olhar, um possível infrator de trânsito, e o encontraram. O

policial motorista comentou: “Aquele Gol vermelho, o condutor está nos olhando, deve ter

alguma coisa errada com ele, vamos abordar?”. “Vamos”, respondeu o policial passageiro,

“tem dois passageiros, pode ser que tenha alguma coisa errada”. Procurei visualizar os

personagens, o condutor era um sujeito negro, pois as janelas do carro estavam com os vidros

abaixados, sendo possível visualizar as pessoas no interior do automóvel.

O veículo selecionado foi seguido e na primeira oportunidade recebeu ordem de

parada, isso ocorreu próximo ao ponto de ônibus onde havia várias pessoas aguardando o

coletivo. “Saia do carro, mão na cabeça, encostem ao muro”. Disse o policial passageiro.

Obviamente que as armas estavam em punho. O condutor tentou argumentar sem sucesso.

“Fique quieto, no muro, no muro”. Respondeu um dos policiais. Diante daquela ação, foi

percebido que algumas pessoas do ponto de ônibus procuraram se esconder ou se proteger

atrás de outras pessoas; foi possível perceber pessoas no ponto de ônibus com certo espanto e

até com expressão de indignação. Indiferente a presença de outras pessoas, as revistas pessoal

e veicular foram realizadas pelos policiais, e nada de irregular foi encontrado, sendo o carro e

as pessoas liberados, após os procedimentos policiais.

O veículo abordado era ocupado por três pessoas, duas pardas e uma branca, que em

obediência à determinação policial desembarcaram, e ao desembarcarem, imediatamente

foram encostados ao muro para a revista pessoal. A abordagem policial foi realizada com tal

rigor que os sujeitos sentiram-se constrangidos, a voz alta e a atitude autoritária dos policiais

foram os instrumentos utilizados na abordagem; outro fator da arbitrariedade foi a ação

praticada em ambiente pública na presença de muitas pessoas e sem nenhuma constatação de

delitos.

A ação policial teve características de preconceito e discriminação, o motivo da

abordagem foi o condutor ter olhado para a viatura policial e a subjetividade desse

profissional foi achar que tinha alguma coisa errada com aquelas pessoas ou com o veículo.

Provavelmente, o erro maior foi o condutor ter a pele escura e ser classificado como perigoso.

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Na abordagem, as pessoas do veículo abordado foram expostas em público, isto é, sofreram

violência física e simbólica, sem motivo aparente. O olhar do motorista para a viatura poderia

estar vinculada aos temores que a população negra tem da polícia ou devido às experiências

amargas que esse grupo vive na relação com esse profissional.

Esse temor foi mencionado pelos discursos dos abordados nas entrevistas, descritos em

páginas anteriores. É importante também mencionar a forma como os policiais decidiram

abordar, acharam que o modo de olhar do condutor negro o delatava como criminoso,

simplesmente pelo “achismo”: “O condutor está nos olhando, pode ser que tenha alguma

coisa errada”. Esse procedimento certamente está relacionado à sua subjetividade

preconceituosa e racista, que no íntimo pensa: na dúvida, seja violento, afinal é um negro.

Nas observações realizadas a maioria das pessoas abordados eram negras. Apenas uma

senhora branca foi parada. E nessa relação foi percebido tratamento diferente: o tratamento da

polícia com a pessoa branca foi mais paciente, mais respeitoso, mais atencioso, como deveria

ser com todos. Os negros receberam tratamentos bruscos, desrespeitosos e até mesmo

violentos. Essas constatações permitem afirmar que as ações desses policiais foram permeadas

do início ao fim por preconceito e racismo.

Durante as observações, perguntamos aos componentes das guarnições se a formação

policial militar contemplava a complexidade do trabalho de segurança pública nas relações

sociais, raciais ou econômicas. A maioria das guarnições que acompanhamos respondeu com

uma expressão de pesar que a formação não contemplou essas questões: “Foi uma formação

que machucava, mais de ralação (termo militar usado na sujeição de seus componentes),

ordem unida e humilhação”. E a inovação do curso do Procedimento Operacional Padrão

(POP), não é uma ajuda aos policiais militares em sua rotina? “É mais um elemento técnico

com a intenção de auxiliar, mas percebe-se que mais atrapalha. Veja, a guarnição deve ser de

no mínimo três policiais, conforme o POP, mas somos somente em dois. Qualquer alteração

em desacordo com o POP já vamos responder a procedimento administrativo” – investigação

administrativa para apurar responsabilidade de falha ou possível falha. Em um dos momentos

dessas confabulações, um policial fez o seguinte comentário: “Essas questões raciais e sociais

devem ser resolvidas pela prefeitura, quem usa drogas são doentes, dizem algumas pessoas;

para mim são sem- vergonhas”.

Essas razões expressas pelos discursos desses policiais, durante as observações, são

reproduções de uma formação com limitações cuja prática aparece nas abordagens, onde cujos

policiais se apropriaram, talvez inconscientemente, dos saberes baseados em conceitos de

classificação social que têm a crença das “classes perigosas”, que estão associadas à pobreza e

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cor da pele, portanto, onde há negros e pobres devem ser considerados “ociosos” que, por não

pertencerem ao mundo do trabalho, e por viverem no ócio, são portadores de delinquência, são

libertinos, são vadios.

Portanto, as observações das ações policiais nos remetem a um sistema discriminatório

e preconceituoso, uma poderosa arma de sujeição étnica, racial e social (MIR, 2004). Um

trabalho sem perspectiva universal e sem democracia, em que prevalece a divisão de classes e

o etnicismo como matriz de predomínio e privilégio.

7.7.2 Observação – operação repressiva

No dia 31 de outubro de 2014 estávamos “escalados” para acompanhar a operação

(blitz) – seriam abordados apenas veículos. Estávamos prontos no batalhão responsável às

19h, o encontro com o oficial de área foi aproximadamente às 20h. Nem sempre o oficial de

área fica estático no batalhão, muitas vezes percorre a área de responsabilidade da Unidade

Militar. Após o diálogo inicial, o oficial pediu que nos deslocássemos para a Base

Comunitária Beira Rio que fica localizada entre os bairros São Mateus e Jardim Europa na

cidade de Cuiabá. A operação seria comandada por outro oficial.

Deslocamo-nos para a Base Comunitária citada, lá chegando encontramos um policial

de plantão; era um conhecido. Começamos o diálogo sobre a nossa presença, o que estávamos

realizando, enfim, relatando ao policial nossos objetivos. Ele demonstrou admiração pelo

trabalho e também fez alguns comentários: “O major Antonio (fictício) comentou que tinha

um corró lá no 1º Batalhão fazendo pesquisa e que iria ficar conosco esta noite. O senhor

conhece o major”. Continuou o policial com seus comentários: “Ouvi por aqui [comunicação

pelo rádio transmissor] que o corró quer atrapalhar nosso trabalho”. Outra coisa que ouvi de

uma guarnição continuou o companheiro: “Mande ele [pesquisador] para nossa viatura que

em cinco minutos ele sairá correndo para não voltar mais. Com certeza, eles não estão

sabendo que o senhor é policial militar”.

Ficamos conversando outros assuntos, aguardando os policiais chegarem para dar

início à operação. “O comandante da operação deverá chegar a qualquer momento, mas

tenho a impressão que vai te dar um ‘chá de cadeira’, mas a operação está planejada”, disse

o colega de plantão. O comandante da operação chegou, realmente era um conhecido.

Apresentamo-nos, de acordo com os ritos militares, conversamos, esclarecemos sobre a

pesquisa, sobre as autorizações para a coleta de dados, enfim, ficando no aguardo do início

dos trabalhos. Já passava das 23h, continuamos aguardando e uns trinta minutos depois o

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oficial nos disse que não teria mais a operação, pois a chuva atrapalharia no manuseio de

documentos. Havia começado uma chuva fina alguns minutos antes. Fomos dispensados às

23h40 aproximadamente.

Parece que neste momento a presença do pesquisador criou uma desordem social

militar, foram feitos discursos retóricos ou preconceituosos, ou discriminatórios ou talvez

apenas uma demonstração de afirmação do grupo ou sobre a força do poder institucional. O

que ficou claro é que apesar de a relação interpessoal (no pátio dos quartéis) representar uma

aparência democrática, a legitimidade do poder disciplinador foi predominante.

No dia 22 de novembro de 2014, estávamos “escalados” para observar a operação

integrada, no Batalhão Sede prevista para começar às 19h. Às 20h a operação teve início,

composta por 15 profissionais de segurança pública entre policiais e bombeiros militares,

tendo como objetivo abordar pessoas nos lugares a serem visitados, além de verificar a

segurança das estruturas desses locais, função dos bombeiros militares. Outros componentes

da operação não compareceram: Conselho Tutelar, Polícia Judiciária Civil, dentre outros.

A operação integrada seguiu o mesmo itinerário do policiamento motorizado de rotina,

os bares do bairro do Porto: Avenida Beira Rio nas proximidades do Museu do Rio e Praça

Luiz de Albuquerque. No Centro, os bares da Avenida Tenente-coronel Duarte fundos do

Beco do Candeeiro. Sempre em comboio, com as luzes intermitentes ligadas, quatro viaturas

da Polícia Militar e duas do Corpo de Bombeiros Militar – neste caso, uma viatura automóvel

e um caminhão furgão médio.

Nos locais selecionados a abordagem era padrão, policiais com armas na mão com o

jargão policial: “Todos em pé, mão na cabeça, de frente para a parede e pernas abertas”. Após

estas determinações começava a revista pessoal em todos os frequentadores. Em postura

estratégica ficava um policial com arma em punho enquanto os outros realizavam a revista.

Ao nosso lado permanecia o comandante da operação fazendo alguns relatos: “Hoje

tem poucos frequentadores, está com jeito de chuva. Se o tempo estivesse bom, mais quente,

aqui teria um número maior de pessoas. Este local é muito frequentado por usuários, bêbados

e pessoas de rua que moram por esta redondeza”. No local seguinte, durante as revistas foi

encontrado um “cachimbo” para uso de crack e uma faca de mesa, cujo material o oficial nos

repassou como comprovação de ser um local perigoso. “Leve esse material”, disse o oficial,

“quem sabe possa ser anexado ao seu trabalho”.

Nos bares do Centro, os procedimentos não foram diferentes, todas as pessoas

presentes sofreram a revista pessoal, o som dos aparelhos musicais era diminuído, as pessoas

eram encaminhadas para a parede e as ações realizadas. Em nenhum momento houve

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resistência por parte das pessoas abordadas. O oficial comandante da operação queria

assegurar que os valorosos policiais militares estavam sempre prontos para controlar as

pessoas, dizendo que nos locais selecionados só há problema, estes ambientes são revestidos

de “violência”, é o significado de uma luta social permanente. Manter a ordem é essencial.

As observações ilustram como no seio de um grupo [grupo policial militar] há um

sistema compartilhado de crenças e valores que se desenvolve, assim como uma identidade

comum e solidária. Para Goffman (1988), esse compartilhamento possibilita a constituição de

uma identidade social, impregnada de estigmas negativos, em resposta à manipulação da

própria sociedade. Segundo o mesmo autor, mais do que se referir a um atributo

profundamente depreciativo, o estigma se relaciona a uma linguagem de relações, e não de

atributos; refere-se a uma forma particular de relação entre atributo e estereótipo.

Essa representação do grupo policial militar em suas operações demonstrou essa

premissa depreciativa, os fiscalizados foram pessoas e comércios considerados pelos policiais

como locais de pessoas perigosas. Nota-se, porém, que são pessoas com características de

serem moradores de/na rua, usuários e excluídas socialmente, além de negros e pardos. Em

nenhum momento as operações se realizaram em locais ou comércios socialmente ou

economicamente abastados.

Ao se apropriar de uma perspectiva médica, é possível entender que os sujeitos que

não fazem parte desses grupos, policiais e classe elevada, são vistos de forma estigmatizante;

assim, surge o desviante que será distinguido do sujeito “normal” do “anormal”. Então a

solução seria uma questão de diagnóstico e cura (GOFFMAN, 1988).

Dentro dessa oposição “normal-anormal”, aquilo que é esperado, que está de acordo

com uma ordenação, é o normal. Percebe-se então que a questão de manutenção de uma

“ordem” é central na classificação dos comportamentos socialmente desviantes. De acordo

com Goffman (1988, p. 151) pode-se chamar “destoante” qualquer membro individual que

não adere às normas, e denominar “desvio” a sua peculiaridade. Para esse autor, a questão das

normas sociais é extremamente importante, pois a compreensão da diferença é alcançada

olhando para o comum, observando o que é consenso e a partir daí ver que o que escapa desse

consenso normativo é rejeitado, tratado como desviante.

Para Goffman (1988, p. 138), uma condição necessária para a vida social é que todos

os participantes compartilhem um único conjunto de expectativas normativas, sendo as

normas sustentadas em parte porque foram incorporadas. “Quando uma regra é quebrada,

surgem medidas restauradoras; o dano termina e o prejuízo é reparado, quer por agentes de

controle, quer pelo próprio culpado”.

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Nota-se na perspectiva de Goffman (1988) que aquele que “transgride” as normas

representa uma ameaça para a sociedade organizada, uma ameaça à ordem estabelecida. E

essa “sociedade ameaçada” acaba tendo que se “defender” de alguma maneira, muitas vezes

produzindo estigmatização e consequente exclusão desses indivíduos tidos como desviantes.

O policiamento repressivo observado percorreu essas perspectivas, a desordem estava

naqueles “julgados” como causadores de problemas – a classe popular, daí o uniforme, a arma

letal, o poder de polícia e a padronização de suas ações estejam sujeitas a esses resultados em

desfavor dos desviantes, dos culpados, dos pobres e dos negros. Essas representações policiais

militares são mecanismos que potencializam os efeitos estereotipados dessas ações

inadequadas no cotidiano dos cidadãos.

Nesses procedimentos na configuração de segurança pública (GUIMARÃES, 2004),

compreende-se que a discriminação social e racial consistiria no ato de “invocar a raça para

fazer prevalecer uma hierarquia de status de classe” (Idem, p. 62), ou seja, a “utilização do

racismo para manter uma hierarquia entre brancos e negros (de classe e status social) já dada e

aceita como natural” (Ibidem, p. 68). O autor defende que a principal característica do

“racismo à brasileira” é que ele é “confundido, justificado e legitimado como uma

discriminação de posições sociais” (Ibidem, p. 75), o que lhe dá certa invisibilidade e o torna

naturalizado. Dessa forma, invisível e natural, a abordagem policial é praticada por alguns

policiais como “normal” nessa categoria de pessoas “anormais” – pobres e pretos.

A prática das ações da Polícia Militar está pautada em parâmetros da discriminação

sócio-racial e funda-se na ausência de limites ao uso da força letal e do poder de polícia. O

controle da força é um problema que se vincula aos limites legais do poder do Estado sobre o

corpo das pessoas na condição de minoria.

Esses parâmetros das práticas policiais são reflexos estruturais da instituição policial

(prioridade militar em detrimento da prioridade policial, formação profissional, dentre outras

questões). A pesquisa em tela teve seu término em dezembro de 2014, e nesse mês de

dezembro do mesmo ano citado a Polícia Militar reajustou seu Estatuto (Lei Complementar

231 de 15 de dezembro de 2005) por meio da Lei Complementar 555 de 29 de dezembro de

2014, cujas alterações em seus textos trouxeram alguns avanços, dentre eles no art. 11 -

requisitos para ingresso de soldado; inciso XIII - ter graduação nível superior (bacharel,

licenciatura ou tecnólogo) reconhecido pelo sistema de ensino federal e estadual para o curso

de formação de soldado. Espera-se que essas alterações normativas possibilitem novas

perspectivas para a corporação, porém somente novas pesquisas poderão avaliar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, a proposta foi analisar a prática de abordagem policial militar no

contexto da relação etnicorracial, por meio das percepções dos participantes da pesquisa. A

prática operacional está relacionada à sua formação policial, neste caso, à formação do

soldado policial militar. É também legítimo considerar no conjunto de suas variáveis

historicidade, saberes, conjuntura policial, políticas de formação profissional e racial, os

possíveis aspectos que norteiam o comportamento e a profissão policial militar, e das

características e expectativas dos policiais militares.

No percurso da história da Polícia Militar, evidencia-se, sobremaneira, que a polícia

brasileira surgiu com o objetivo de garantir os interesses dos mais privilegiados

economicamente, protegendo seu patrimônio, com aspectos vinculados à divisão de classes e à

militarização, cujos traços permearam a construção de um modelo policial marcado por uma

herança escravocrata, clientelista e autoritária.

Constata-se que a partir do século XIX o corpo policial ficou mais definido em relação

a períodos anteriores, porém com o mesmo enfoque, a preservação e atenção à elite, pressão

sobre o povo e o aspecto militar. A militarização das instituições policiais parece que foi a

solução encontrada para a contextualização das corporações no Brasil.

Em Mato Grosso o modelo é o mesmo: a força policial serviu para consolidar as

hierarquias sociais então existentes. Sua prática também esteve pautada na caça aos sujeitos

escravizados. Consequentemente, prossegue no formato militar, postulados nos pilares da

hierarquia e disciplina na mesma direção de hierarquização social, suas ações são pautadas,

por alguns policiais, pela violência e a predominância de separação de classes, em especial em

suas abordagens operacionais com um olhar na pele dos sujeitos.

Essa configuração de marca militar ficou constatada na análise do Projeto Político

Pedagógico que consigna as finalidades de formar técnicos profissionais em um desenho

militar, estabelecendo as perspectivas ideológicas em todo o tempo de formação.

Esse contexto militarizante da Polícia Militar de Mato Grosso se consumou por meio

da análise dos documentos curriculares que a base da estrutura policial militar é orientada

pelos princípios e métodos disciplinares e hierárquicos, pela aplicação de treinamento

repetitivo, pela filosofia militarista e pelos códigos de pertencimento militar.

Essa configuração também se constatou nas análises das Matrizes Curriculares dos

cursos de soldados policiais militares de 2003, 2005, 2008 e 2011, que possibilitaram uma

visualização desse ordenamento policial militar, demonstrando que a formação policial tem o

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cunho jurídico, isto é, as maiores cargas horárias dos cursos em questão estão nessas

disciplinas. Outro ponto constatado foi o relativo às disciplinas Ordem Unida e Educação

Física Militar, com carga horária definida e com presença obrigatória em todos os cursos.

As análises evidenciaram que essa formação propicia ao policial ser um aplicador

imparcial da lei, relacionando-se, por meio de abordagens, com os cidadãos friamente, sem a

percepção do “outro”. O policial segue em condições neutras e distantes, seguindo os

procedimentos apreendidos. Os policiais são encorajados a controlar situações comuns como

se fossem questões de aplicação da lei, ao invés de manutenção da ordem, mesmo em uma

revista pessoal de rotina.

Outro ponto da análise constatou que a formação do policial militar tem um perfil

eminentemente técnico, com ênfase na preparação física, sugerindo que para a preservação da

ordem a essência está na força física em detrimento de uma reflexão que enfoque o

relacionamento direto com a etnia, gênero e outras dimensões sociais, além de constatar um

silenciamento sobre racismo.

Outra questão peculiar evidenciada na formação policial é a etapa da socialização que

se dá através da formalidade social dos recrutas, com a introdução de conhecimentos,

habilidades e técnicas militares. O conteúdo é de um processo formal de socialização

profissional para disciplinar os futuros policiais, que inclui a seleção de disciplinas teóricas e

práticas de cunho repetitivo, além de uma padronização de falar, se vestir, andar e

principalmente obedecer. É a passagem do civil para o policial militar, torna-se um

impressionante ritual de passagem (GENNEP, 2011), celebrado no ambiente organizacional.

A análise sobre a formação do soldado também evidenciou o privilégio de uma visão

tecnicista e dogmática cujo quadro silencia, nega e exclui. Na formação policial militar é

necessário apreender os caminhos para a liberdade, segundo Freire (1987) é atitude que requer

conhecer as relações econômicas, políticas e educacionais da sociedade. Isto é, para Freire o

fato de o homem ter consciência das relações sociais faz de si indivíduo livre, conhecedor e

além de tudo crítico.

Nesse sentido, partimos de uma busca textual em diversas obras, também se mostrou a

constituição do aparelho policial militar como um instrumento repressivo de Estado e a

serviço das classes hegemônicas, articulando a necessidade de formação de um Estado

nacional, aberto e dinâmico à manutenção do controle social de determinados grupos

humanos.

Como a organização do pensamento é dinâmica, e as transformações históricas,

econômicas, políticas e sociais refletem na maneira de pensar da sociedade, consideramos

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importante assinalar as particularidades desse pensamento social brasileiro, como também

mostrar que os próprios modelos de pensamento adotados no Brasil estiveram imbricados com

processos históricos e políticos vigentes em determinadas épocas, marcando, assim, a

realidade nacional ao longo de sua constituição e contribuindo para a formação de um sujeito

perigoso, criminoso – o negro.

Por intermédio das interrogações aos pensadores franceses estabelecidos por Tzvetan

Todorov (1993), e outros estudiosos, rastreamos a consolidação de uma visão determinista e

marginalizadora capaz de produzir sobre a imagem do negro a visão de que este era inferior,

dada sua natureza criminosa e a degeneração contida em sua “raça”.

Desse modo, os policiais militares foram compreendidos e interpretados como sujeitos

resultantes de uma história, constituindo-se, assim, como fruto de uma sociedade e de uma

instituição nas quais o preconceito etnicorracial vigora em muitas instâncias.

Nesse sentido, os relatos proporcionados pelo conjunto do questionário e entrevistas

realizadas com os policiais militares foram fundamentais para esclarecer as dimensões

tomadas pelos preconceitos contidos em membros de uma instituição que deveriam apresentar

sua corporação como isenta de juízos de valor.

A partir dos dados contidos nas falas dos policiais militares, conseguimos visualizar a

relação estabelecida entre ser negro e ser pobre, corroborando para a sustentação de que a

ideia de uma suspeição ao sujeito negro ainda orienta as atitudes policiais no momento da

abordagem.

O discurso que aponta para a atitude suspeita, como justificativa da técnica de

abordagem policial amparada pela lei, oculta discriminações e preconceitos percebidos a partir

da relação estabelecida entre o policiamento ostensivo e o possível delito relacionado com a

pobreza e a cor da pele, delimitado por áreas consideradas perigosas, em geral associadas à

periferia.

Nas palavras dos abordados sobre as abordagens policiais, podemos inferir que há uma

relação entre aprendizagem institucional e as práticas policias no cotidiano. Essas abordagens

fazem com que o suspeito ainda seja visto na imagem do negro e na imagem do pobre. Na

maioria das vezes sem motivo algum, o que constitui uma violência que, muitas vezes, não

apresenta a visibilidade necessária para ser identificada. Essa vinculação de se sentir

criminoso, provavelmente, está no silêncio dos abordados que não denunciam.

Enquanto não se pensar na reformulação sobre a formação policial militar,

continuaremos presenciando a disseminação de uma cultura policial que fabrica sujeitos

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suspeitos conforme suas opiniões profissionais e/ou pessoais de acordo com o que alguns

chamaram de “tirocínio policial”.

O trabalho de campo nos possibilitou compartilhar as experiências policiais,

mostrando-nos, ao mesmo tempo, as dificuldades dos policiais no desenvolvimento do

policiamento ostensivo e a resistência com seu próprio trabalho na compreensão de sua

relação histórica e política com a sociedade.

Nessa perspectiva, as operações foram desenvolvidas nos bairros Centro e Porto,

regiões escolhidas para as operações preventivas ou repressivas, sendo o Centro o “coração”

da cidade de Cuiabá e o Porto, periferia da referida cidade. As abordagens realizadas foram

com pessoas com características de moradores de rua, frequentadores de praças e de bares

populares.

Essas regiões percorridas pelas várias guarnições são locais que os policiais percebem

como a “pulsação dos delitos”. Durante as observações, não foi percebido local ou pessoa

abordada que pudesse representar um poder econômico maior. Esses locais são percebidos

pelos policiais como perigosos, frequentados por pessoas violentas – negros, pobres e

bêbados. São locais esquecidos pelo poder público, mas não esquecidos pela polícia.

Nesse contexto, percebe-se que as escolhas policiais ocorreram pela subjetividade dos

profissionais, acreditando que sua presença é obrigatória para manter a ordem. É uma

justificativa para a prática do racismo e da discriminação. Essa prática policial estimula a

instalação de efeitos que dificultam percepções mais justas.

A ausência de conhecimentos, inclusive históricos, sociais e políticos, faz com que o

policial militar, ao associar a abordagem à pobreza e à cor da pele, continue empregando,

legitimamente, seu poder de polícia, impondo e reconhecendo significações em grupos sociais

marginalizados, por uma tradição que remonta ao pensamento social do século XIX,

perpetuando um estigma social, descrito por Goffman (1988).

Enfim, é lamentável que os sujeitos negros, pobres e tatuados tenham suas cidadanias

negadas durante as abordagens policiais, por parte de alguns militares, o que dificulta a

consolidação da representatividade e responsabilidade de uma polícia cidadã. Nessa

perspectiva, é pertinente estimular a realização de formação democrática, a fim de evitar

práticas de abordagem policial atentatórias à cidadania. Preconceito racial e social deve ser

motivo de estudo, objetivando a consolidação democrática às ações policiais.

Por isso, este assunto não se esgota, mas descortina um eco de inquietação. A

abordagem policial tem como parâmetro a natureza militar que excede por parte de alguns de

seus componentes, com o poder de soberania assentado no estereótipo, nas atitudes de

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preconceito racial e discriminação. Nessa concepção, a ação policial está baseada na aparência

física das pessoas, na cor da pele, na tatuagem, na condição social desfavorável, sobretudo nos

bairros de periferia, praças e bares populares. Por isso, acreditamos que as ações policiais são

configuradas por seleção de castas e segregação racial. Caso não haja modificações na

formação e práticas profissionais, continuarão com ações de desrespeito pela dignidade

humana.

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