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Janaína Pereira de Oliveira O Futuro Aberto: Jacob Burckhardt, G.W. F. Hegel e o Problema da Continuidade Histórica Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Orientador: Profº Marcelo Gantus Jasmin Rio de Janeiro Dezembro de 2006

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Janaína Pereira de Oliveira

O Futuro Aberto:

Jacob Burckhardt, G.W. F. Hegel e o Problema da Continuidade Histórica

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Orientador: Profº Marcelo Gantus Jasmin

Rio de Janeiro Dezembro de 2006

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Janaína Pereira de Oliveira

O Futuro Aberto: Jacob Burckhardt, G.W. F. Hegel e o Problema da

Continuidade Histórica

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profº. Marcelo Gantus Jasmin

Orientador Departamento de História - PUC-Rio

Profº Cássio da Silva Fernandes Instituto de Ciências Humanas e Letras - UFJF

Profº Pedro Spínola Pereira Caldas Instituto de História – UFU

Profº James Bastos Arêas Instituto de Filosofia – UERJ

Profº Antonio Edmilson Martins Rodrigues Departamento de História – PUC-Rio

Prof. João Pontes Nogueira Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

PUC-Rio

Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2006.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, da autora e do orientador.

Janaína Pereira de Oliveira

Graduou-se em História (bacharel) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 1997. Obteve o título de Mestre em História Social da Cultura em 2001 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde defendeu a dissertação “A História da Cultura como Crítica à Modernidade: Jacob Burckhardt e a Historiografia do Século XIX”.

Ficha Catalográfica CDD: 900

Oliveira, Janaína Pereira de O futuro aberto: Jacob Burckhardt, G. W. F. Hegel e o problema da continuidade histórica / Janaína Pereira de Oliveira ; orientador: Marcelo Gantus Jasmin. – 2006. 195 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Burckhardt. 4. Hegel. 5. Continuidade histórica. 6. Teoria da história. 7. História da cultura. 8. Filosofia da história. I. Jasmin, Marcelo Gantus. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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Para Ivanda e Antonio, meus pais e companheiros

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Agradecimentos

Agradeço ao meu orientador Prof. Marcelo Gantus Jasmin pelo diálogo,

pelas aulas, conversas, livros, paciência e, principalmente, pela confiança.

Passaram-se onze anos desde o nosso primeiro encontro quando, ainda estudante

na graduação, assisti como ouvinte suas aulas sobre Burckhardt. Muita coisa

aconteceu em nossas vidas neste tempo. Poder desfrutar de sua amizade,

companheirismo e carinho foi, sem dúvida, uma das melhores experiências que o

estudo da obra de Burckhardt me proporcionou.

Agradeço aos professores que compõem a banca examinadora pelo aceite.

E fico feliz em dizer que todos, de alguma forma, foram interlocutores ao longo

da realização da pesquisa que venho realizando sobre a historiografia de

Burckhardt desde a graduação. Ao Prof. James Arêas, agradeço “empréstimo

eterno” de A Cultura do Renascimento na Itália – primeiro livro de Burckhardt

que li –, pelos grupos de estudo de filosofia, pela amizade. Ao Prof. Pedro Caldas,

agradeço pela participação na banca de exame de qualificação e pelas indicações

dadas naquela ocasião. Ao Prof. Cássio Fernandes, agradeço a interlocução sobre

a obra de Burckhardt. Ao Prof. Antonio Edmilson. Rodrigues, agradeço pelo

acompanhamento das questões desde o curso de mestrado. Pelo mesmo motivo

sou grata ao Prof. Ricardo Benzaquén, cujas aulas, sobretudo, as que assisti como

ouvinte no ultimo semestre de 2006, assim como as participações em todas as

bancas por que passei desde o mestrado serviram de estímulo para o trabalho. Ao

Prof. Noéli Correia de Melo Sobrinho, sou grata pelos cursos sobre a filosofia de

Nietzsche, por ter me falado de Burckhardt, pelos livros, pelo carinho.

Agradeço a CAPES pela bolsa sem a qual não seria possível a

permanência do curso de doutorado.

À querida Edna Timbó, agradeço pela presteza e paciência com que

sempre me atendeu. Agradeço também a Anair, Cleusa e Cláudio, pelo carinho.

A Gabriel Paschoal, agradeço pelas aulas de alemão e pelas dúvidas tiradas

mesmo estando distante.

A Andréa Carneiro e Aniela Manço, agradeço pela convivência animada e

intensa que tivemos ao longo de mais de três anos em nossa casa no 447.

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Ao querido Luiz Antonio Silva, agradeço pela amizade desde os tempos de

UERJ e pelos textos tão prontamente enviados quando de sua estadia na

Universidade de Brown.

Agradeço a Thiago Florêncio, Alessandro Ventura, Joana Saraiva, Murilo

Mehy, Daniel Pinha e Amanda Danelli, pelos momentos de alegria.

A Érica Leonardo, Stephanie Reis, Janaina Garcia, Romulo Baptista, Omar

Nicolau, André Nader, Roberto Mosca Jr., e aos demais amigos da Difusora

Gambiarra agradeço pela amizade, pelo apoio e pela paciência.

A Valéria Monã, Tatiana Lobo e Andréa, sou grata pelo contraponto

fundamental proporcionado nas aulas de dança afro.

Às queridas Carol Amettla e Laura Mostafa, agradeço pela presença

constante neste último e difícil ano de tese, pelas risadas, pela falação sem fim.

A Fernando Gonçalves, por ter estado ao meu lado em momentos críticos

da realização desta tese.

A Bernardo Carvalho, pela leitura de algumas partes da tese.

A Fabrina Magalhães Pinto, pela companhia quase diária na realização

desta tese. Estivemos juntas em todos os momentos: nos felizes, nos preocupantes,

nos desesperadores! Entramos juntas no mestrado, no doutorado e permanecemos

assim até o momento de colocar o ponto final. Sem sua amizade, todo este

processo teria sido mais sofrido e menos divertido.

A Laura Nery por ter estado comigo ao longo da redação final do texto.

Sua leitura foi definitiva para a qualidade do trabalho. Agradeço pela atenção,

pelo apoio, pelo carinho, pelo bom humor.

A Julieta Matos Freschi, melhor amiga que alguém poderia querer na vida,

agradeço pelo amor, pelas palavras de conforto, pela presença.

Para agradecer a Antonio Soares de Oliveira e Ivanda Pereira da Silva

simplesmente não encontro palavras para expressar minha gratidão. A eles devo a

vida, a inspiração, a coragem, a alegria, o Norte.

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Resumo

OLIVEIRA, Janaína Pereira de. JASMIN, Marcelo Gantus (orientador). O

Futuro Aberto: Jacob Burckhardt, G.W.F. Hegel e o Problema da Continuidade Histórica. Rio de Janeiro, 2006. 195p. Tese de Doutorado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A modernidade tem na noção de contingência um de seus atributos mais

marcantes. Isso significa que, na era moderna, vacilam os modos tradicionais de

atribuição de sentido às coisas do mundo. É possível afirmar que tal situação

ocorre em virtude, principalmente, da alteração que a idéia de progresso promove

nas formas de apreensão da temporalidade histórica. O progresso, enquanto

qualidade de aperfeiçoamento ilimitado do homem, afasta ao infinito o horizonte

teológico que, até então, determinava o futuro. Assim, na modernidade, o futuro

se torna aberto à indeterminação, situação que se traduz no rompimento dos elos

que mantinham unidos passado, presente e futuro, tal como se pode perceber na

perda de validade do tradicional topos Historia Magistra Vitae. Para o historiador

Reinhart Koselleck, este momento, que equivale ao descompasso definitivo entre

as categorias espaço de experiência e horizonte de expectativa, tem na Revolução

Francesa seu apogeu. A partir da Revolução o homem moderno se vê forçado a

buscar um elenco alternativo de explicações para os acontecimentos, capaz de

lidar com a aceleração do tempo, com a transitoriedade instalada em um presente

cada vez mais fugaz, com a contingência. A tese toma o problema da continuidade

histórica como ponto de partida para refletir sobre os modos pelos quais, no

período pós-revolucionário, passou-se a estabelecer a relação entre futuro,

presente e passado, considerando o atributo da contingência que permeia a vida

moderna. Para tanto, elegemos como objetos de análise e comparação duas

perspectivas sobre a história: aquela elaborada por Jacob Burckhardt em sua

historiografia da cultura; e aquela formulada por G.W.F Hegel em sua filosofia da

história.

Palavras-chave

Burckhardt, Hegel, continuidade histórica, teoria da história, filosofia da

história, história da cultura.

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Abstract

OLIVEIRA, Janaína Pereira de. JASMIN, Marcelo Gantus (advisor). The

Open Future: Jacob Burckhardt, G.W.F. Hegel and the Problem of Historical Continuity. Rio de Janeiro, 2006. 195p. PhD dissertation – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Modernity has in the idea of contingency one of its most defining

attributes. This means that the traditional modes of assign sense for things of the

world hesitate at modern age. One can say that this situation occurs mainly in face

of the modification the idea of progress causes on the apprehending modes of

historical temporality. Progress, as the quality of man’s unlimited improvement,

removes to the infinite the theological horizon that until then determined the

future. In this manner, at modernity, the future becomes opened to

indetermination, a situation translated as the rupture of the links that had kept

together past, present and future as it can be perceived in the loss of validity of the

traditional topos Historia Magistra Vitae. This moment, which is to the historian

Reinhart Koselleck equal to the definitive disagreement between the categories

space of experience and horizon of expectation, has its culmination in the French

Revolution. From the Revolution on, man is forced to find out an alternative cast

of explanations for the events, capable to deal with the temporal acceleration, with

the trasitoriness settled at a present more and more ephemeral, with the

contingency. The dissertation takes the problem of historical continuity as a

starting point to the reflection on the ways in which the relation between future,

present and past occurred at the post-revolutionary period, taking into

consideration the attribute of contingency that permeates modern life. Therefore

we choose as objects for analysis and comparison two perspectives about history:

the one elaborated by Jacob Burckhardt in his cultural historiography; and that

formulated by G.W.F. Hegel on his philosophy of history.

Key-words

Burckhardt, Hegel, historical continuity, theory of history, philosophy of

history, cultural history

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Sumário

1. Introdução 10 2. A continuidade histórica como um problema moderno 17

2.1 A reformulação do topos da Historia Magistra Vitae 17 2.2 Cai o véu 22 2.3 O futuro aberto 29 2.4 A história no tempo: a questão da contingência 35 2.5. Revolução, contingência e necessidade 44

3. A primazia do futuro: continuidade e reconciliação na filosofia da história de Hegel 71

3.1 O sentido trágico da modernidade: a solução estética de Hölderlin 71 3.2 O sentido trágico da modernidade: a solução filosófica de Hegel 79 3.3 A inquietude do instante 90 3.4 A primazia do futuro 96 3.5 Continuidade e reconciliação: a filosofia da história de Hegel 99

3.6 O paradoxal vôo da coruja de Minerva: a modernidade

como realização do espírito 121

4. A eternidade no efêmero:

a continuidade como resistência na historiografia de Burckhardt 129

4.1 O sentido trágico da modernidade:

Burckhardt e a opção pela história 129

4.2 Berlim, o caminho para a história da cultura 140

4.3 O ponto arquimediano 152

4.4 A história como coordenação, a recusa em teorizar 161

4.5. A eternidade no efêmero: a continuidade histórica de Burckhardt 176

5. Considerações Finais 185

6. Bibliografia 187

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Introdução

Foi a partir do interesse pela obra de Jacob Burckhardt que a continuidade

histórica transformou-se em uma chave de leitura para nossas considerações acerca da

teoria e da escrita da história. Decerto que a preocupação de Burckhardt com a

continuidade não era uma exclusividade sua, pois, como aponta Reinhart Koselleck,

após a eclosão da Revolução Francesa, a continuidade histórica, mais exatamente, a

ruptura na continuidade havia se tornado um dos topoi correntes na modernidade. Tal

como deixa transparecer a afirmação de 1799 do poeta e historiador Karl von

Woltmann:

A Revolução Francesa foi para o mundo um fenômeno que pareceu desafiar toda a sabedoria histórica, e a partir dela desenvolveram-se a cada dia novos fenômenos, que cada vez menos podiam ser objeto de indagações à história.1

Assim, fica claro que ao falar-se em ruptura na continuidade histórica, alude-se

não somente à quebra nos modos convencionais de governos e na organização dos

estratos sociais: a ruptura com a tradição apontava, na verdade, para um impasse com

relação ao conhecimento histórico, surgido com a constatação da ausência de

referencialidade no passado para os eventos deflagrados desde 1789. Deste modo, a

Revolução Francesa – marca indelével do descompasso definitivo entre espaço de

experiência e horizonte de expectativa – conduzia a uma reavaliação da relação dos

homens com o passado. Pois, “temporalizada e processualizada em uma unicidade

contínua, a história não podia ser mais ensinada como exemplo”, de tal forma que “a

experiência histórica tradicional não podia ser estendida diretamente à expectativa.”2

Fazia-se necessário, então, revalorar e resignificar as experiências da história.

Tal necessidade impõe-se a partir das alterações nos modos de apreensão do

tempo com o deslocamento da linha do horizonte de expectativa para o indefinido,

abrindo, desta forma, o futuro à indeterminação. Pois a longevidade do topos historia

magistra vitae só era possível porque existia um campo comum de experiências que

1K.L.WOLTMANN, apud Reinhart KOSELLECK, “’Espaço de Experiência’ e ‘Horizonte de Expectativa’: duas categorias históricas”, Futuro Passado, p.319. 2 Ibid..

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garantia a validade do topos até o século XVIII. Tal comunhão de experiências só era

possível porque apreensão da temporalidade histórica ocorria de forma relativamente

mais lenta do que viria suceder na modernidade, de maneira que diante das mudanças,

ou estas quase não eram de fato notadas, ou quando o eram, encontravam justificativa

nos pressupostos teológicos da escatologia cristã. Desta forma, nada de realmente novo,

inédito e, conseqüentemente, abrupto acontecia na história.

Quando, no século XVIII, juntou-se o grande número de experiências

acontecidas nos três séculos anteriores sob a égide da noção de progresso, as mudanças

– cada vez mais presentes por conta dos avanços da ciência e da técnica – passaram a

ser observadas com mais clareza no dia-a-dia das pessoas. Estas experiências, a saber:

“a revolução copernicana, o lento desenvolvimento da técnica, o descobrimento do

globo terrestre e suas populações vivendo em diferentes fases de desenvolvimento, e por

último a dissolução do mundo feudal pela indústria e o capital”3, fragmentavam as

expectativas à medida que tornavam possível ao homem perceber a contemporaneidade

do não-contemporâneo, ou, ao contrário, a não-contemporaneidade do contemporâneo,

tornada evidente desde o contato, ou o conhecimento, da diversidade entre as

populações das diferentes partes do planeta. Portanto, constatava-se que

o que o progresso havia tornado possível no domínio dos conceitos – de, em poucas palavras, o velho e o novo entrarem em choque, nas ciências e nas artes, de país a país, de classe para classe –, tudo isso, a partir da Revolução Francesa, se converteu em experiência cotidiana. (...) Sabia-se, e se continuou a saber desde então, que se vive num tempo de transição, o qual ordena de maneira temporalmente diversa a diferença entre experiência e expectativa.4

Assim sendo, o que se rompe, de fato, em 1789 é o continuum da apreensão

temporal, antes equilibrada na equivalência entre experiência e expectativa que permitia

aos acontecimentos históricos servir de exemplo para diferentes gerações. Porém, a

singularização da história como processo, exacerbada com o advento da Revolução,

destitui os usos e apropriações do conhecimento histórico até então empregadas, sem,

contudo, decretar “a morte definitiva do passado.” O que se dá é “a emergência de um

outro elenco alternativo para o uso dos fatos pregressos.” 5 Um elenco que

invariavelmente se vê forçado a lidar com a aceleração do tempo, com a transitoriedade

instalada em um presente cada vez mais fugaz, com a contingência. Isto é, apresentava-

3 Ibid., p.317. 4 Ibid., p.320. 5 Marcelo JASMIN. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política, p. 25.

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se a necessidade de forjar concepções de história adequadas, ou que oferecessem meios

para compreensão dos novos atributos característicos da modernidade.

“A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente” 6, afirmou Baudelaire

em seu artigo sobre a obra de Constantin Guys. E foi para lidar com estes predicados e

seguir como um conhecimento positivo que a história precisou reformular o velho

topos. É neste prisma sobre a modernidade que compreendemos a importância da tese

central de Koselleck acerca do surgimento da modernidade (Neuzeit) associada ao

descompasso entre experiência e expectativa e o topos da continuidade. Pois, a

continuidade histórica, tal como compreendemos, aponta para um movimento de

constante reapropriação do passado pelo presente, visto que o que se faz contínuo na

modernidade é o transitório.

Pensar sobre a continuidade histórica, portanto, é pensar sobre os modos pelos

quais os homens estabelecem relação entre presente, passado e futuro, tendo em conta

o atributo da contingência que permeia a vida moderna. Assim, continuidade é também

o par-conceitual de ruptura, relacionada à quebra na organização política-social

estamental, como logo vem à mente, mas não só. Tampouco não se restringe à

obliteração e substituição dos hábitos e costumes tradicionais. E, também, queremos

evitar, ao menos neste momento, a associação direta entre a idéia de continuidade e a

noção de sentido. Isto porque, como diz Karl Löwith, “arriscar uma afirmação sobre o

sentido dos acontecimentos históricos só e possível quando surge o seu télos”7 e, por

seu turno, a consagração de um télos para a história constitui uma característica das

filosofias da história dos séculos XVIII e XIX. Tal como podemos perceber na definição

do termo filosofia da história proposta por Löwith. Diz o autor:

o termo “filosofia da história” é usado para significar uma interpretação sistemática da história universal de acordo com um princípio segundo o qual os acontecimentos e sucessões históricos são unificados e dirigidos em direção a um sentido final. 8

Quase invariavelmente acontece, então, das remissões ao “sentido da história”

acabarem se vinculando às tentativas propostas pela filosofia para a história – dentre as

quais a mais representativa é a instituição por Hegel de um princípio que é, ao mesmo

tempo, sentido e fim para a história. E a filosofia da história fornece uma dentre outras

possibilidades para a consideração do topos da continuidade histórica. É por isto que,

6 Charles BAUDELAIRE, “O Pintor da Vida Moderna.” In Sobre a Modernidade. São Paulo: Paz e Terra, s/d, p.25. 7 Karl LÖWITH, Meaning in History, p.5.

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voltamos a frisar, propomos que consideremos a noção de continuidade histórica de

uma forma mais ampla. De uma maneira não associada exclusivamente a nenhuma

forma de história específica, e sim como um tipo de ferramenta que possibilita a

observação e análise das histórias surgidas no esteio do período revolucionário, com a

atenção voltada para as “soluções” engendradas para a questão da contingência. Assim,

a continuidade histórica constitui um meio para compreendermos o tratamento

dispensado aos dilemas que despontam com os tempos modernos. Conseqüentemente, a

continuidade constitui um duplo indicador: tanto diz da forma com que os homens

lidam com o presente no enfrentamento da contingência, como das alternativas de

história surgidas neste confronto.

Deste modo, para a consideração da continuidade histórica como um problema

para a historiografia e teoria da história que diz respeito às mudanças nas formas de

compreensão e assimilação do passado no presente, a tese tem início na construção do

quadro em que o problema se apresenta. O primeiro capítulo, portanto, acompanha a

transformação nos modos de apreensão da temporalidade histórica que conduziram à

necessidade de reformulação do topos da história mestra da vida. Ou seja, observamos

as mudanças que levaram ao surgimento de um elenco alternativo de explicações para

os acontecimentos históricos, capaz de lidar com a aceleração do tempo e com a

transitoriedade instalada em um presente cada vez mais fugaz.

No segundo capítulo, nos dedicamos à análise das proposições do filósofo Georg

Wilhelm Friedrich Hegel para o que estamos chamando de problema da continuidade

histórica. Hegel ao fazer da história parte fundamental de sua filosofia, necessariamente,

esbarrou na problemática a continuidade. Para compreendermos a relação entre a

filosofia da história de Hegel e a continuidade, partimos de apresentação de um quadro

para compreensão da concepção de história hegeliana. De início, entretanto, nos

permitimos uma breve digressão: ao invés de principiarmos pela análise da obra do

filósofo, optamos por chamar atenção para o sentido trágico presente na forma de

apreensão da temporalidade histórica moderna a partir do afastamento da dimensão

teológica como instância totalizante. Tal sentimento constitui a base para a reflexão do

homem moderno sobre si mesmo. Para tanto, elegemos apresentar as considerações do

poeta Friedrich Hölderlin sobre o tema. Hölderlin fora colega de Hegel na juventude e

partilhava com ele os anseios e angústias de seu tempo.

8 Ibid., p.1.

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Na seqüência, acompanhamos o caminho percorrido por Hegel da teologia à

filosofia e da filosofia à história (filosófica, é claro). Observamos, então, como Hegel

alterou a ordem tradicional das categorias temporais, instaurando a primazia do futuro

sobre o presente e o passado, no intuito de afirmar a realização do espírito absoluto no

desenvolvimento da história universal. Hegel fez do caminho da história não só uma

teleologia como um a teodicéia.

No terceiro capítulo, tratamos da proposta de Jacob Burckhardt para o

conhecimento histórico. Da mesma forma que no capítulo sobre a filosofia da história

de Hegel, partimos do sentido trágico da modernidade para compreender o caminho que

levou Burckhardt a abandonar os estudos teológicos e dedicar-se à história. Tanto em

um como no outro, o interessante foi notar não em que medida Hegel e Burckhardt

negavam ou combatiam o pensamento teológico, e sim como se relacionavam com o

universo de postulados e problemas deixados sem resposta pela teologia na realidade

em que viviam. A ênfase, desse modo, recaiu muito mais em perceber onde a herança

teológica está presente do que onde ela não está ou tenha sido superada.

Em seguida, tratou-se dos anos de formação de Burckhardt enquanto historiador

da cultura, considerando sua relação com o campo da história da arte e também a

influência das tradições de sua cidade natal, a Basiléia, em sua concepção acerca da

história e da vida no século XIX. O capítulo termina com uma reflexão sobre do

pensamento de Burckhardt sobre a história, tendo em conta sua preocupação com o

problema da continuidade histórica. Buscou-se, assim, compreender a singularidade de

sua proposta tanto com respeito ao cânone historiográfico vigente em seu tempo, como

em relação com a filosofia da história de Hegel.

Por fim, resta-nos fazer um último comentário sobre a opção de considerarmos a

continuidade história com um problema tal como apontado no título deste trabalho.

Segundo definição de J. Nadal na Encyclopédie Philosophique Universelle, podemos

entender por problema “um programa de pesquisas, isto é, o estado de uma questão, o

conjunto de dados e métodos disponíveis”9 em um determinado momento. Aplicando

esta definição ao nosso estudo, compreendemos que o que intentamos ao longo deste

trabalho foi, precisamente, apontar o estado da questão da continuidade histórica,

apoiado nas categorias epistemológicas de espaço de experiência e horizonte de

9 J. NADAL, “Problème”, Encyclopédie Philosophique Universelle, vol. II, p.20-49.

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expectativa. Justificando-se assim nosso esboço das modificações na apreensão da

temporalidade histórica dos gregos até a modernidade após a Revolução Francesa.

Há, todavia, outra motivação metodológica para a afirmação da continuidade

histórica como um problema. Ela se refere à abordagem não sistemática que assumimos

para nosso trabalho. Não desejamos, em momento algum, dar conta da totalidade de

assuntos e questões possíveis relacionadas à continuidade, por entendermos que tratar

sistematicamente um assunto implica em eleger o objeto e, a partir dele, “tentar resolver

os problemas que este coloca.”10 Tal como sucede, por exemplo, quando

tradicionalmente se opta por investigar um dado período histórico. Pois, como diz

Michel Foucault em célebre debate com o historiador Jacques Leonard, a este tipo de

abordagem se impõem duas regras antes de mais nada: o “tratamento exaustivo de todo

material e [a] distribuição cronológica eqüitativa do exame.”

Já assumir a tarefa de tratar de um problema segue outras regras, a saber:

eleição do material em função dos dados do problema; focalização da análise sobre os elementos suscetíveis de resolvê-lo; estabelecimento de relações que permitem essa solução. E, portanto, indiferença à obrigação de dizer tudo, inclusive para satisfazer ao júri de especialistas.11 Assim, ao assumir uma questão como um problema, percorre-se o caminho

inverso à sistematização: primeiramente determina-se o problema e a partir dele

estipula-se o “âmbito do objeto” a que se pode recorrer no intuito de apontar soluções

possíveis, ao invés “da” solução única, definitiva, verdadeira12. Como se pode deduzir,

com respeito ao nosso estudo, abrimos mão de qualquer pretensão à declaração de

verdades sobre o tema da continuidade histórica ou sobre as considerações sobre a

concepções de história da Hegel e Burckhardt, ou ainda de realizarmos a história da

continuidade histórica. Neste sentido, nos alinhamos à perspectiva subjetiva que todo

trabalho histórico possui para Burckhardt. Tal como refletido nas seguintes palavras que

lemos logo na introdução de A Cultura do Renascimento na Itália:

No vasto mar ao qual nos encontramos, são muitas as direções possíveis; os mesmos estudos realizados para este trabalho poderiam, nas mãos de outrem, facilmente experimentar não apenas utilização e tratamento totalmente distintos, como também ensejar conclusões substancialmente diversas.13

10 Michel FOUCAULT, “El polvo e la nube”, in La impossíble Prision: debate con Michel Foucault, p.43. 11 Ibid., p.42. [grifos nossos] 12 Ibid., p.43. 13Jacob BURCKHARDT, A Cultura do Renascimento na Itália, p.21.

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Ressalvamos que esta perspectiva não diminui em nada o valor do que está

sendo dito, ao contrário, potencializa as considerações à medida que se pretende um

estímulo à reflexão sobre a teoria e a escrita da história.

Portanto, ao tomarmos a continuidade histórica como um problema para a

história na modernidade, nossa intenção é assinalar um conjunto de questões e

posicionamentos que julgamos importantes para a empreitada de se pensar a história,

sua produção e utilidade nos dias de hoje. Entendemos que o problema da continuidade

histórica nos ajuda a pensar acerca da possibilidade do conhecimento histórico não ser

teleologicamente orientado – uma vez que a partir da instauração de um futuro aberto à

indeterminação tornou-se difícil, para não dizer insustentável, o estabelecimento de um

télos para a história – e ao mesmo tempo útil para a vida, de forma próxima àquela

apontada por Nietzsche em sua Segunda Consideração Intempestiva.14 Pois,

certamente, temos necessidade de história, mas, ao contrário, não temos necessidade dela do modo como tem o ocioso refinado dos jardins do saber, por mais que este olhe com altaneiro desdém os nossos infortúnios e nossas privações prosaicas e sem atrativo. Temos necessidade dela para viver e para agir, não para nos afastarmos comodamente da vida e da ação e ainda menos para enfeitar uma vida egoísta e ações desprezíveis e funestas. Não queremos servir à história senão na medida em que ela sirva à vida.15

* * *

14Friedrich NIETZSCHE, “Segunda Consideração Intempestiva sobre a Utilidade e os Inconvenientes da História para a Vida”, in Escritos sobre a História, p.67-178. 15 Ibid., p.68.

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2 A continuidade histórica como um problema moderno

2.1 A reformulação do topos da Historia Magistra Vitae

Remonto de século em século até a antiguidade mais remota; não percebo nada que se assemelhe ao que está sob meus olhos. Quando o passado deixa de iluminar o futuro, o espírito caminha na escuridão.1

Alexis de Tocqueville

A epígrafe, extraída de um trecho do último capítulo de Da Democracia

na América de Alexis de Tocqueville, testemunha a consolidação de uma forma

inédita de apreensão da temporalidade histórica. O estabelecimento do regime

democrático nos Estados Unidos apontava para a gradual alteração da perspectiva

que o homem tinha de si mesmo e, portanto, da história. Constatada a ausência de

precedentes históricos para compreensão dos acontecimentos, o homem moderno

se viu forçado a procurar não mais no passado, mas em si próprio e em sua

situação, modos possíveis para compreensão e explicação dos eventos ocorridos.

O recurso explicativo usual à história pregressa já não era mais satisfatório. O

topos ciceroniano da historia magistra vitae, que por muito tempo permaneceu

como guia para a relação entre passado, presente e futuro, dissolvia-se na falta de

referencialidade histórica, uma vez que a função exemplar da história apenas pode

funcionar enquanto persiste a crença na existência de um universo comum de

condições, ou seja, enquanto se confia na permanência de traços compartilhados

entre diferentes épocas.

Assim, a longevidade de quase dezoito séculos do topos cunhado por

Cícero no século I a.C. encontrava justificativa na possibilidade de existência de

certa comunhão de experiências. A sobrevivência e a elasticidade da fórmula

“história mestra da vida” se relacionam com a validez de sua aplicação que, por

sua vez, está vinculada ao fato da temporalidade histórica ter sido assimilada de 1 Alexis de TOCQUEVILLE, De la Démocratie em Amérique, II, “Vue générale du sujet”, p. 279.

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uma forma mais lenta do que aconteceria após as últimas décadas do século

XVIII. Até então, as modificações ocorridas nas diversas esferas da vida se davam

e eram apreendidas em um ritmo tal que os exemplos do passado ainda se

mostravam pertinentes e a analogia era prontamente possível. Neste sentido,

podemos afirmar que passado, presente e futuro encontravam-se nitidamente

vinculados.

Os elos que uniam a cadeia tradicional da temporalidade histórica seriam

dissolvidos pelo golpe definitivo da Revolução Francesa e dos eventos que a

sucederam. Tal dissolução, no entanto, não significou a abolição e o esquecimento

da história como um conhecimento útil para a ação e para a vida. Ao contrário, a

história permaneceu e se fortaleceu como modelo de reflexão indispensável para o

agir no momento pós-revolucionário, afinal não podemos esquecer que o século

XIX ficaria conhecido como “o século da história”, como o período em que a

“história emerge ao mesmo tempo como saber e como modo de ser da

empiricidade”2, para usar as palavras de Michel Foucault. Ocorre então uma

necessária reestruturação do topos historia magistra vitae. A necessidade de

reformulação dos modos de tratamento do passado, decorre, portanto, da perda da

característica de exemplaridade da história no sentido clássico.

O caminho escolhido para compreensão de tal reestruturação se apóia,

principalmente, nas considerações de Reinhart Koselleck sobre a Modernidade.

Em suas investigações sobre a história dos conceitos, o historiador alemão cunhou

duas categorias epistemológicas cuja aplicabilidade fornece meios para análise

tanto dos modos de apreensão da temporalidade histórica, assim como das

alternativas de história surgidas no período moderno. Segundo o autor, estas

categorias constituem meios apropriados de tratar o tempo histórico exatamente

pela forma como associam passado e futuro às noções de experiência e

expectativa, e de espaço e horizonte. Assim, de acordo com as formulações de

Koselleck, o passado é compreendido como espaço de experiência e o futuro

como horizonte de expectativa.3

Por espaço de experiência entende-se o passado tornado presente no

interior de uma totalidade onde não há antes e depois, onde os acontecimentos são

2 Michel FOUCAULT, As Palavras e As Coisas, p.235. 3KOSELLECK, “‘Espaço de experiência’ e ‘Horizonte de Expectativa’: Duas Categorias Históricas.” In Futuro Passado, p.305 e ss.

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agrupados e assim recordados. Já o horizonte de expectativa constituí o futuro

feito presente, alinhado na união de medos, esperanças, deduções racionais,

desejos e aspirações. Percebe-se deste modo que experiência e expectativa

denotam formas estendidas de compreensão de passado e futuro, uma vez que o

passado não é apenas o acontecido, mas também a memória que disto se tem, não

se tratando, portanto, somente do vivido, mas do meio pelo qual este se tornou

conhecido e lembrado. O mesmo se pode dizer do futuro, que, necessariamente, se

dá a conhecer quando sabemos o que dele se esperava no presente, ou seja,

quando é futuro do passado. Um dos pontos que ganham relevo a partir das

categorias de Koselleck é o fato das condições de uma dada história expressarem

ao mesmo tempo as condições de seu conhecimento. Expectativa e experiência

são as condições de conhecimento das esperanças e memórias dos homens. Por

conseguinte, se concordamos com Koselleck, aceitamos que a partir da tensão

entre experiência e expectativa podemos notar a fundação de possibilidades de

história, pois, por reunirem, em certo grau, eventos pregressos, lembranças e

aspirações, as categorias epistemológicas representam indicativos de “um dado

antropológico prévio, sem o qual a história não seria possível, ou não poderia

sequer ser imaginada.”4

Podemos retornar, então, a argumentação acerca da apreensão da

temporalidade da história anterior às últimas três décadas do século XVIII com

base nas categorias koselleckianas, considerando que, até aquele momento,

passado e futuro achavam-se ligados porque havia uma correspondência entre

espaço de experiência e horizonte de expectativa. Tal correspondência garantia o

olhar para o passado em busca da exemplaridade, a analogia sustentada na idéia

da “contemporaneidade do não contemporâneo” – qualidade herdada da forma

grega de compreender a história que permaneceu até a época moderna. Para os

gregos, registrar os atos do passado, para que as conquistas e a glória dos homens

não fossem perdidas na eternidade tal como afirmou Heródoto no proêmio de suas

Histórias, transformava o passado em atualidade no presente.5 Os gregos, assim

4 Ibid., p.308. 5 Corrobora esta percepção da existência de uma não-contemporaneirdade no momento contemporâneo, a concepção de bárbaro que tinham os gregos. Como mostra Catherine Peschaski, a designação de bárbaro não se deve a uma distinção espacial como tradicionalmente se deduz. Os bárbaros são definidos devido a sua relação com o tempo: são bárbaros porque estão na pré-história grega, ainda que vivos na mesma época. Também a este respeito comentam Bárbara Cassin e Nicole Loraux no prefácio do livro: “O tempo, longe de ser uma categoria a priori

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como os romanos posteriormente, não possuíam a concepção de uma totalidade

histórica, mas, da mesma forma que temos hoje em dia, tinham noções de

contexto e causalidade. Entretanto, como diz Hanna Arendt em seu texto sobre o

conceito de história6, contexto e causalidade ganhavam sentido exclusivamente na

relação com o evento, não em algum motivo transcendente. “Tudo que era dado

ou acontecia mantinha sua cota de sentido ‘geral’ dentro dos confins de sua forma

individual e aí a revelava, não necessitando de um processo envolvente e

engolfante para se tornar significativo”, diz Arendt. Isoladamente percebidos, os

eventos mantinham a possibilidade de suceder novamente como um atributo.

O início da era cristã inaugura um novo espaço de experiência que realiza

um movimento de transcendência em relação à historiografia grego-romana. Dali

em diante, o tempo deixaria de ser concebido ciclicamente para ser apreendido de

forma retilínea, principiando junto o nascimento de Cristo e com término marcado

para o dia o Juízo Final. As considerações de Santo Agostinho em Civitas Dei

corroboram este movimento. De acordo com Arendt, mesmo que encontremos em

Agostinho uma noção de história com sentido e significações, cujo encadeamento

refuta aquele proposto por uma temporalidade cíclica e que possa eventualmente

configurar o surgimento da história como algo em si, ainda assim, não seria neste

momento que a história adquiriria o caráter de processo. E o motivo para isto

reside no fato de que para Agostinho, a história como algo em si mesmo é um

assunto divino. Diz Agostinho: “embora as instituições passadas dos homens

sejam relatadas na narrativa histórica, a história mesma não deve ser incluída entre

as instituições humanas.”7 Além disto, segundo a filósofa, com respeito à negação

do tempo cíclico, a postura agostiniana não representava nada além de um gesto

esperado de um cristão que em hipótese alguma poderia aceitar tal tipo de

temporalidade, por conta da afirmação singularidade da vida de Cristo.

comum a todos os homens, é tanto o contrário que, nos bárbaros, não é submetido às mesmas categorias que nos gregos, não há passado, só um tempo antes do tempo (pré-história que pode valorizá-los mesmo como educadores); não há futuro, mas um devir grego, como se o tempos só pudesse servir exatamente aos gregos.” Cf. C. PESCHANSKI, “Os bárbaros em confronto com o tempo (Heródoto, Tucídides, Xenofonte).” In Bárbara CASSIN, Nicole LORAUX, Catherine PESCHANSKI. Gregos, Bárbaros, Estrangeiros. A cidade e seus outros. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. 6 Hanna ARENDT, “O conceito de História – Antigo e Moderno.” In Entre o Passado e o Futuro, p.96. 7 AGOSTINHO, De doctrina Christiana, 2,28,44. Apud Hanna ARENDT, op.cit., p.97-8.

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Esta breve reflexão apóia o argumento de que o topos da história mestra da

vida ainda mantinha sua validade na era cristã, mesmo que tenha se firmado um

novo espaço de experiência com um novo horizonte de expectativa. Pois é

enganoso pensar que a cristandade tenha impingido a marca da singularidade à

história como um todo, já que os eventos ainda permanecem como passíveis de

exemplo. Singulares na história cristã e que, em decorrência disto, não suscetíveis

à repetição, são os acontecimentos que vão da criação de Adão até a ressurreição

de Jesus. A história secular continua a exercer sua função exemplar, tal como na

Antiguidade e nos tempos do Império Romano. Seguindo ainda as indicações de

Arendt, a história secular não era nem mesmo parte do interesse de Agostinho,

pois, para ele, não havia justificativa para compreender algo secular como

relevante para o homem. Assim, a coexistência das fórmulas pagã e sagrada de

história se fez possível à medida que a primeira se associou ao horizonte de

expectativa da salvação da segunda. Deste modo, a história possuía uma unidade,

ainda que teológica, e o tempo corria de forma sucessiva sem margem para

reversibilidade, mas passível de prognóstico, uma vez que estando o horizonte de

expectativa fixado no dia do Juízo Final, o futuro seguia ligado ao passado. O

futuro era algo delimitado, pois pertencia, em último caso, a Deus.

O status do futuro a respeito de sua delimitação é fundamental para o

equilíbrio ou não entre as categorias epistemológicas de espaço de experiência e

horizonte de expectativa. E o que determina o descompasso anteriormente

mencionado, são mudanças que dizem respeito ao deslocamento da linha do

horizonte de expectativa, ou seja, da alteração do status do futuro. Tanto é assim

que, como assevera Koselleck, “não é o passado, mas o futuro do tempo histórico

que torna a similitude dissimilar”8, na medida em que ele se torna indeterminado,

rompe-se a cadeia da compreensão tradicional da história e o passado perde sua

capacidade de servir como base para analogia. Por isso o futuro do presente é tão

importante: é ele que dá o tom das histórias possíveis.

A esta altura é inevitável perguntar sobre o que teria provocado tal

descompasso. Como se deu o desalinhamento entre as experiências e as

expectativas? Como se pode notar, as possíveis repostas coincidem com a própria

origem da modernidade. Pois, o que faz da modernidade (Neuzeit) um novo tempo

8Id., “KOSELECK, “Historia Magistra Vitae. Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento”, p.44.

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(neue Zeit) é justamente o gradual desencontro entre experiência e expectativa.9

Esta é, aliás, a tese central na investigação de Koselleck sobre o aparecimento do

conceito de modernidade. Porém, dada a complexidade que envolve as

concepções da amplitude da modernidade, antes de prosseguir, faz-se necessário

elucidar um pouco mais o caminho escolhido para a pesquisa daqui em diante.

Nosso tema, como sugere o título deste capitulo, não é exatamente a

modernidade, mas sim a continuidade como um problema característico da

história e da historiografia na época moderna. A compreensão do problema,

portanto, pede a delimitação do que estamos entendendo por modernidade,

sobretudo na sua relação com a história. É neste sentido que se justifica a opção

por usar as categorias epistemológicas propostas por Koselleck e também, em

certa medida, sua proposta para a compreensão da modernidade. Mas este não é

um ponto de vista exclusivo. Concordamos também com Hans Gumbrecht, para

quem a busca estrita da definição do termo, não constitui a forma mais

interessante de reflexão sobre um tema como a modernidade. Isto porque quando

se trata de investigar um problema relacionado à história e não de analisar uma

noção sistemática, firmar um consenso pode não ser o caso mais apropriado10,

sendo mais proveitoso procurar expressar e, se possível, expandir, um leque de

questões. Assim sendo, não nos interessa propor, ou mesmo optar por uma noção

que julguemos ser, “a” definição de modernidade – mesmo se entendêssemos que

assim fosse possível – mas, tentar esboçar uma imagem, quem sabe imagens do

período em foco, de modo a contribuir de forma mais fértil para a reflexão sobre a

escrita da história.

2.2 Cai o véu

Do ponto de vista epistemológico, o processo de descompasso entre

espaço de experiência e horizonte de expectativa corresponde ao surgimento de

um tipo de posicionamento sobre o conhecimento definidor do homem moderno.

Quanto à história, esta passa a ser percebida como um processo no qual, a partir

de um determinado momento, todos os eventos serão considerados singulares e,

9Id ,“‘Espaço de experiência’ e ‘Horizonte de Expectativa’: Duas Categorias Históricas.”,p.314. 10 Hans U. GUMBRECHT, Modernização dos Sentidos, p.10-1.

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mais uma vez, a percepção da temporalidade passará por uma modificação que

fará do tempo algo eminentemente da ordem do histórico.

Com respeito ao homem, esta é uma marcação clássica dos escritos sobre a

modernidade. A pedra fundamental da era moderna reside no surgimento de um

tipo distinto de consciência humana. Sobre isto, o historiador Jacob Burckhardt

escreve:

Na Idade Média, ambas as faces da consciência – aquela voltada para o mundo exterior e a outra, para o interior do próprio homem – jaziam, sonhando ou em estado de vigília ou em estado de semi-vigília, como que envoltas por um véu comum. De fé, de uma prevenção infantil e de ilusão tecera-se esse véu – através do qual se viam o mundo e a história com uma coloração extraordinária; o homem reconhecia-se a si próprio apenas enquanto raça, povo, partido, corporação, família ou sob qualquer outra das demais formas do coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao vento; desperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo do Estado e das coisas do mundo. Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se reconhece enquanto tal. 11

A tese de que a modernidade iniciou-se na Itália a partir do surgimento da

consciência individual forma o argumento principal de Burckhardt em A Cultura

do Renascimento na Itália. Se antes o homem se reconhecia apenas como membro

de uma coletividade, na modernidade se reconhece como um ser dotado de

individualidade, que lhe permitia um duplo olhar: objetivo para o mundo e

subjetivo para si. Daí em diante o homem firma-se como produtor de

conhecimento e não apenas como o responsável pela manutenção e propagação

dos dogmas cristãos, tal como se dava na Idade Média. Nesse limiar da

modernidade, o homem desempenha o papel que Hans Gumbrecht chamou de

“observador de primeira ordem.”12

O aparecimento deste observador é impulsionado por uma série de

inovações e acontecimentos que ao longo dos séculos XV e XVI13, cindiram de

uma vez por todas o conhecimento que até então se tinha do mundo. A fabricação

11 Jacob BURCKHARDT, A Cultura do Renascimento na Itália, p.111. 12 GUMBRECHT, op. cit., p.12. 13Ao que diz respeito a datação da origem da modernidade, temos consciência da volatilidade do tema. Autores recuam ou adiantam o marco dependendo da argumentação a ser defendida. Um bom exemplo da dificuldade de estabelecer a data exata do início da era moderna encontra-se na A Cultura do Renascimento, pois ainda que boa parte dos eventos ali tratados transcorram entre os século XIV e XVI, “o primeiro homem moderno a subir num trono”, nas palavras do próprio Burckhardt, foi Frederico II, que viveu no século XIII. Portanto, é possível afirmar que a modernidade teria principiado ao menos um século antes do que tradicionalmente se costuma apontar. Cf. Jacob BURCKHARDT, A Cultura do Renascimento na Itália, p.27.

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do telescópio por Galileu Galilei e a invenção da imprensa por Johannes

Gutenberg, como a descoberta das Américas por Cristóvão Colombo e, mais

tarde, a Reforma Protestante levada a cabo por Martin Lutero foram novidades,

dentre outras de menor escala, que fizeram cair gradualmente “o véu da

consciência”, para empregar a metáfora de Burckhardt, promovendo mudanças na

percepção do homem acerca de si mesmo, do mundo e da história – frisamos mais

uma vez que a visão que os homens têm da história e de sua temporalidade se

relaciona diretamente com o modo pelo qual enxergam a si mesmos. Tais

mudanças, é verdade, não implicaram em ruptura com o passado, uma vez que os

acontecimentos que as geraram tinham os pés fincados na tradição14, mas fizeram

com que o homem ocupasse este novo lugar epistemológico, tornando-se, assim,

moderno.

O breve exame de um desses acontecimentos dimensiona melhor o

impacto na relação entre homem e conhecimento.15 Ao formular a teoria

heliocêntrica, Nicolai Copérnico desbancou as afirmações de Aristóteles e

Ptolomeu sobre a Terra ser o centro em torno do qual giravam os outros astros e

abriu caminho para o despertar desta nova consciência epistemológica. Todavia,

como se sabe, as considerações copernicanas baseavam-se na observação a olho

nu e na capacidade imaginativa de seu autor, que se “deslocou” da Terra para

contemplá-la do ponto de vista do Sol. Ainda que Copérnico represente de forma

singular a figura desse novo observador, sua teoria só recebeu o crédito merecido

anos mais tarde quando Galileu fabricou o seu próprio telescópio em 1609 e com

ele realizou as primeiras observações dos astros que comprovavam a revolução da

teoria copernicana. De tal modo, “que os segredos do universo foram revelados à

cognição humana ‘com a certeza da percepção sensorial’.”16 Entretanto, a certeza

dada pela observação através de um instrumento, lançava uma dúvida aterradora

sobre a capacidade que os sentidos humanos possuíam de produzir um

conhecimento seguro da realidade e, mais, indicavam a possibilidade de alcance

deste conhecimento pela transcendência das barreiras empíricas – tal como se dera

com Copérnico –, isto é, através do exercício da razão.

14 Hanna ARENDT, “A alienação do mundo.” In A Condição Humana, p.261. 15 É interessante notar que o exemplo do impacto da teoria copernicana é comum tanto a Arendt, como a Gumbrecht, aparecendo também em Koselleck. Por este motivo, julgamos adequado elege-lo dentre os outros possíveis. 16 Ibid., “A descoberta do ponto de vista arquimediano”, p. 272.

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O exemplo integra o quadro que tornou possível a emergência da filosofia

moderna, na qual a razão passa a ter a aptidão de dizer a verdade acerca das coisas

do mundo. O Cogito cartesiano é o maior representante deste evento. Assim, este

homem que duvida e experimenta, “desvia” o foco de seu olhar de Deus e coloca-

se como o irradiador do conhecimento sobre o universo. E, deste ponto de vista,

interpreta o mundo.

Neste contexto, as ciências naturais também floresceram no cruzamento

entre o campo físico-matemático e o campo da experimentação, passando a

ocupar um lugar fundamental na produção do conhecimento. Para evitar as

possíveis falhas da percepção, a ciência, cuja linguagem simbólica ideal era

matemática, passou a constituir o modo de conhecimento por excelência. A

história, contudo, seguia como lugar da analogia, onde era possível encontrar uma

vasta coleção de fatos equacionados em uma relação direta de causa e efeito.

Enquanto vigorava o ideal matemático de ciência, fundado sobre o imperativo de

transformar em verdade coerente tudo aquilo que fosse da ordem do contingente,

o conhecimento proveniente da história representava apenas o mero conhecimento

dos fatos e, portanto, situava-se em um lugar inferior na hierarquia dos saberes.17

Aqui a temporalidade continuava regulada por classificações que seguiam a

ordem natural do tempo18, seja pelos ciclos das estrelas e dos planetas, seja com

base na sucessão de governantes e dinastias. Estamos, todavia nos primeiros

tempos da era moderna e ainda um pouco distantes da alteração que resultaria na

percepção do tempo como algo da ordem do histórico, não natural.

A aproximação da metade do século XVIII traz consigo o anúncio da

mudança epistemológica que ocorreria. A partir deste momento, é possível

identificar uma crescente insatisfação por parte dos pensadores com os modelos

de raciocínio e demonstração fornecidos pela matemática e pela mecânica. Este é

o sinal do começo de uma nova sensibilidade científica. É contra a compreensão

dos modelos tradicionais da natureza como algo estático e, por extensão, sem

vida, que os pensadores dirigiriam sua crítica. A tentativa então se dava na direção

de construir uma nova ordem das coisas, uma nova forma de compreensão mais

dinâmica que substituísse os modelos estáticos, pois a realidade já era entendida 17Cf. Peter Hanns REILL, “Narration and Structure in the late eighteenth century historical thought”, p. 288. 18KOSELECK, “Historia Magistra Vitae. Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento”, p.54.

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como uma complexa rede de interconexões.19 A realidade, concebida nesse grau

de complexidade, passava a requerer uma outra forma de representação. Daí a

necessidade de alteração da noção de sistema. Antes entendida como a ordenação

lógica de variáveis independentes pautadas por um encadeamento causal direto, a

noção de sistema passava a configurar um quadro de relações cujos componentes

são sim independentes, porém ligados em uma espécie de simbiose. A concepção

da natureza como a unidade na multiplicidade encontra embasamento nesta nova

sensibilidade científica, de modo que a alteração ou a subtração de um dos

elementos modificaria o quadro totalmente. Pois, como argumenta Reill, “por

conta das possibilidades quase infinitas de combinação e interação, a vida não

poderia ser abarcada em categorias simples e uniformes.”20

Nada mais poderia continuar sendo simplesmente o que aparentava ser. A

identidade havia escapulido da esfera dos caracteres aparentes, de modo que os

significados das representações não se encontravam mais no nível da superfície. A

correspondência entre as palavras e as coisas, parafraseando o título do livro

famoso de Foucault, não era mais direta. A realidade, compreendida como um

quadro complexo de relações em constante movimento, alterava a forma de

representar das coisas no mundo. Mais que isso, clamava por uma reformulação

do campo representacional. É em nome desta mudança iminente que Foucault

compreende este momento como uma “crise da representação.” “Como ocorre” –

pergunta-se Foucault – “que o pensamento se desprenda daquelas plagas que

habitava outrora (...) e deixe oscilar no erro, na quimera, no não-saber aquilo

mesmo que, menos de vinte anos antes estava estabelecido e firmado no espaço

luminoso do conhecimento?”21

Para responder a esta indagação o filósofo recorre à análise das

modificações ocorridas em domínios como o do trabalho (especificamente na 19 REILL, op. cit. P.287. 20 Ibid., p.289. 21 Michel FOUCAULT, As Palavras e As Coisas, p.231. Alguns anos mais tarde, nas lições proferidas na Universidade de Berlim por volta de 1830 sobre a filosofia da história, Hegel mencionaria claramente esta “interiorização” – no sentido de saída da superficialidade – do conhecimento e a necessidade de um conhecimento histórico de cunho científico. Na crítica do filósofo ao tipo de história produzida pelos historiadores de então lemos: “O historiógrafo atual, médio, que acredita e pretende conduzir-se receptivamente, entregando-se aos meros fatos, não é em realidade passivo no seu pensar. Traz consigo suas categorias e vê, através delas o existente. O verdadeiro não se encontra na superfície visível. Singularmente no que deve ser científico, a razão não pode dormir e é preciso empregar a reflexão. Quem olha racionalmente o mundo, o vê racional. Ambas as coisas se determinam mutuamente.”[grifos nossos]. G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p. 23 (tr.pt., p. 18; tr.esp., p.45).

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teoria de economia política de Adam Smith), da história natural e da gramática

geral. Não percorreremos aqui o caminho de Foucault. Para nosso estudo é

suficiente registrar que tais modificações têm em comum o deslocamento das

respectivas representações no interior de seus domínios para características, ou

funções, que não encontramos na simples observação externa, tal como

assinalamos anteriormente ao nos referirmos à noção de sistema na área das

ciências naturais. Assim sendo, “o que mudou, na curva do século, e sofreu uma

alteração irreparável, foi o próprio saber como ser prévio e indiviso entre sujeito

que conhece e o objeto do conhecimento.”22 Mas como fica a história neste

cenário? O domínio da história, é claro, não poderia ficar de fora destas

transformações.

A nova sensibilidade científica do Iluminismo também provocaria

modificações na concepção de história. Como afirmou Ernest Cassirer23, tendo

conquistado o mundo da física, tratava-se então de conquistar o mundo da

história. A aproximação dos preceitos da história natural fornecia à história os

ares de ciência. E assim como a aceitação na ciência natural da existência de

forças não visíveis – a gravidade, a eletricidade ou o magnetismo – consagrou

uma concepção de organismo constituído por etapas sucessivas, nas quais a etapa

anterior conecta-se com a seguinte que traz em si uma alteração que equivale a um

novo passo no desenvolvimento daquele sistema orgânico em particular, do

mesmo modo se dava no domínio da história. Portanto, os eventos históricos não

eram mais compreendidos como séries de eventos isolados, mas como estágios no

desenvolvimento de um “sistema”, isto é, de uma totalidade: a humanidade.

Assim, a história se transforma em um processo, constituído de fatos individuais

encadeados de maneira sucessiva – porém, não simplesmente linear como fora

enquanto reinava a perspectiva da ciência calcada na relação direta entre causa e

efeito – e possuidor de caráter universal embutido na noção de humanidade,

assimilando aí, de certa forma, a idéia de unidade na multiplicidade.

Não é a toa que este período coincide com um deslocamento

terminológico, acompanhado por Koselleck no universo lingüístico alemão,

resultante da reunião em um só termo dos significados de história como relato

(Historie) e da história como acontecimento (Geschichte). Por volta das últimas

22Ibid., p.267 23 Ernest CASSIRER, “A Conquista do Mundo Histórico”, in A Filosofia do Iluminismo.

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duas décadas do século XVIII, demonstra Koselleck, deixa-se progressivamente

de usar “as histórias” e surge o emprego freqüente de “a História”: a história passa

a constituir assim um coletivo singular. A existência anterior dos dois significados

é indicativa de um tipo de compreensão histórica na qual o vivido distingue-se do

que dele se conta, de modo que o registro que se tem do passado são histórias,

exemplos de feitos individuais, coletâneas de vidas. A singularização das histórias

se dá em função da compreensão processual da realidade vivida. A história,

entendida como um processo faz dos feitos individuais fatos singulares inseridos

em um fluxo contínuo de sucessão, reconcilia o vivido ao narrado. Dito de outra

forma, o evento funde-se à sua representação, na medida em que a história se

torna um longo processo desenvolvido no tempo. Geschichte refere-se tanto ao

acontecimento quanto à sua explicação. Trata-se de um evento semântico que

revela a própria experiência que temos de modernidade.

Simultaneamente às modificações nos parâmetros científicos e à

singularização da história em um coletivo, ocorre o surgimento de uma noção em

muito responsável pelas alterações epistemológicas então postas em marcha: trata-

se da noção de progresso. Sua disseminação pelas áreas mais diversas da

compreensão humana, consagrou uma nova visão de mundo. Visão que

suplantava aquela sancionada pela escatologia cristã, ao abrir a temporalidade à

indeterminação colocando ao futuro a possibilidade de aperfeiçoamento ilimitado,

afastando assim o desfecho assinalado pelo dia do Juízo Final. Com as mudanças

efetivadas pelo descobrimento de outro continente e os avanços científicos antes

mencionados, a crença no dia do Julgamento como fim dos tempos deslocou-se

cada vez mais do raio de preocupações dos homens, até o ponto de não constituir

mais uma preocupação. A idéia de progresso, reforçada pelas transformações da

paisagem e do cotidiano promovidas pelos avanços do setor industrial, assumiu

uma importância tal no pensamento do século XVIII que acabou por enfraquecer a

crença no que seria o destino inevitável, e também no início da história de todos

os homens segundo os preceitos da doutrina cristã. Pois, apreender a história em

uma unidade processual dotada da possibilidade ilimitada de progressão, tanto

afastava o fim previsto na escatologia, como o seu começo: o nascimento de

Cristo seguia como marco importante na história, porém, o passado, assim como

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futuro, também adquiria a partir a daí a qualidade da infinitude.24 Liberadas as

amarras das limitações do passado e do futuro, a história se transforma cada vez

mais num domínio independente do pensamento teológico.

Vejamos, mais detidamente, a inserção da noção de progresso no domínio

do pensamento histórico. Afinal, ela vai estar presente, seja como alicerce, seja

como motivo de crítica, senão em todas, sem dúvida na maioria das considerações

sobre a história na Era Moderna, não raramente chamada de Era do Progresso.

2.3 O futuro aberto

Koselleck diz que o filósofo Immanuel Kant pode ter sido o primeiro a

utilizar a palavra progresso. Mas, o que de fato nos interessa não é tanto a

primazia no uso do termo, mas o modo como foi empregado, relacionando a idéia

de progresso à história. É sabido que Kant relutou em inserir uma reflexão sobre a

história em sua filosofia25 e que a história nela não ocupa um lugar central.

Entendemos, contudo, que sua reflexão sobre o assunto representa um passo

importante para compreensão da consolidação de certa perspectiva da histórica no

mundo moderno. Ressalvemos ainda que acreditamos que filósofo estava em

pleno gozo de suas faculdades mentais quando escreveu Idéia de História

Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita e, posteriormente, quando redigiu O

Conflito das Faculdades26, textos nos quais se pode entrever sua concepção de

história. Há, entre a publicação dos dois textos, um intervalo de quatorze anos e

uma revolução.

24 ARENDT, “O conceito de História: Antigo e Moderno.” In Entre o Passado e o Futuro, p.101. 25 Ver ARENDT, “O Conceito de História”, p.119. 26 Kant está entre os filósofos cuja biografia às vezes inclui uma série acontecimentos que, verídicos ou não, passam a constituir parte da imagem que relacionam vida e obra do biografado nem sempre de forma positiva. É conhecida história, por exemplo, que versa sobre a pontualidade de Kant, segundo a qual os habitantes de Könisberg acertavam as horas do relógio a partir dos passeios que o filósofo realizava cotidianamente sempre no mesmo horário. Já com respeito aos textos acima citados, o fato de Kant ter morrido em 1804 com sintomas do que hoje em dia classificaríamos possivelmente como Mal de Alzheimer, teria dado margem a boatos de que o filósofo quando redigiu estes textos, em 1784 e 1798 respectivamente, já estaria sofrendo da doença que o mataria anos mais tarde. Acreditamos que tais rumores se devam ao fato destes textos, principalmente, O Conflito, não possuírem o mesmo tipo de sistematicidade consagrada em outras obras do filósofo. Cf. Immanuel KANT, Idéia de História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita e também Le Conflit des Facultés.

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Idéia de História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, foi um

artigo publicado pela primeira vez em 1784 no Berlinische Monatsschrift como

esclarecimento a uma nota divulgada em outro periódico que continha o trecho de

uma conversa entre Kant e um outro acadêmico na qual o filósofo teria esboçado

uma concepção de história. Já O Conflito das Faculdades é um texto que resulta

da reunião de três artigos escritos em momentos diferentes e que Kant juntou em

um mesmo volume no ano de 1798. Deste interessa-nos a segunda seção,

intitulada “O Conflito da Faculdade de Filosofia com a Faculdade de Direito.” Em

comum, ambos possuem o anseio de encontrar um fio condutor que alinhave os

acontecimentos históricos, isto é, a intenção de estabelecer um sentido que, com

base na razão, ordene a massa de eventos a princípios desconexos e aponte para o

aperfeiçoamento progressivo do homem em sua coletividade.

O argumento kantiano em Idéia de História Universal para explicação dos

caminhos da história é relativamente simples: os homens fazem parte da natureza

– natureza esta que mais adiante no texto será substituída pela Providência – e,

portanto, suas ações também se encontram na ordem do natural. Assim como os

outros elementos da natureza, os homens e suas ações estão sujeitos a leis e

regularidades de validade universal, de modo que a história, enquanto lugar onde

transcorrem as manifestações dos homens, também deve conter algo que permita

reconhecer o curso regular do conjunto da espécie humana ainda que de forma

geral.27 Reconhecer este plano da natureza em meio ao “absurdo das coisas

humanas” é tarefa de que deve ocupar-se a filosofia, já escrevê-la caberá a um

historiador que a natureza mesma se encarregará de criar.28

A idéia de relacionar assim homem e natureza fornece a Kant os meios de

determinação do princípio e do modus operandi da história. O princípio reside na

disposição da natureza segundo a qual todas as criaturas têm como destino

necessário o desenvolvimento total de suas aptidões. Tal é a finalidade que a

natureza designa aos seres. E, no caso dos homens em particular, o uso da razão e

a liberdade de vontade são os atributos naturais a serem desenvolvidos. Porém, tal 27 KANT, Idéia de História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, p.9. 28 Esta argumentação sobre a função da filosofia é, aliás, o tema que Kant desenvolverá de um modo geral em O Conflito das Faculdades. Pois, promover a filosofia ao papel de guia para o pensamento é o eixo comum das três seções do livro. De modo que o conflito das faculdades, nada mais é que a luta pelo reconhecimento e elevação da filosofia ao nível de faculdade superior – tais como eram as de teologia, direito e medicina. Sendo que a filosofia, segundo Kant, por constituir a única livre de cânones dogmáticos específicos, deveria se sobrepor às outras três em última instância coordenando-as. Ver Le Conflit des Facultés, p. 12 e ss.

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desenvolvimento não se dá de forma individual, o que significa dizer que razão e

liberdade aperfeiçoam-se no homem enquanto espécie. A este respeito, Kant

afirma que os homens, em suas esferas individuais, ao perseguirem seus

propósitos particulares estão em realidade seguindo “inadvertidamente, como fio

condutor, o propósito da natureza que lhes é desconhecido.”29

O antagonismo, por sua vez, é o modus operandi para a realização das

disposições naturais da espécie humana: é o caminho eleito pela natureza para o

aperfeiçoamento da humanidade. O antagonismo, tal como Kant denomina a

“insociável sociabilidade” dos homens, gera situações paradoxais que, por sua

vez, levam ao desenvolvimento, forçando o homem a dar passos que o conduzirão

“da rudeza à cultura.” A insociável sociabilidade a que se remete o filósofo, nada

mais é que a constatação de que à tendência que o homem possui de viver de

forma gregária corresponde uma forte vontade de isolamento. Assim, neste

conflito entre demandas individuais e coletivas, o homem, enquanto espécie,

aprimora suas aptidões de razão e liberdade. Criar e manter um ambiente onde

seja possível a superação cada vez maior dos antagonismos constitui o grande

desafio imposto pela natureza à humanidade. Tal desafio, conforme o colocado

nas proposições kantianas, implicará na criação de “um estado cosmopolita

universal, como o seio no qual podem se desenvolver as disposições gerais da

espécie humana.”30 É também nesta equação que afirma a positividade do conflito

que o autor justifica a legitimidade das guerras. As guerras são os motores do

desenvolvimento no âmbito dos Estados. É a natureza mais uma vez fazendo uso

do antagonismo, da “incompatibilidade entre os homens”, para estabelecer a paz e

a tranqüilidade. Por fim, chamamos atenção que, no tema do antagonismo, já é

possível observar um movimento dialético, ainda que rudimentar, aplicado à

funcionalidade da história tal como desenvolverá Hegel posteriormente em sua

filosofia da história.31

29Id., Idéia de História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, p.10 O argumento kantiano sobre este “ardil da natureza”, nos lembra àquele que anos mais tarde Hegel empregará na sua filosofia da história ao abordar o tema da astúcia da razão, de acordo com o qual os homens fazem a história, mas não sabem que a fazem, isto é, ao agirem no mundo o fazem de forma individual e segundo suas vontades, mas na realidade estão a efetivar os planos da razão. Mas, por ora, deixemos Hegel de lado – sua filosofia da história será assunto a ser visto mais adiante na tese – e voltemos a Kant. 30 Ibid., p.22. 31Ver ARENDT, “O conceito de história”, p.118.

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Firma-se assim o papel da história para a filosofia kantiana. Cabe à história

dar sentido aos conflitos, fazer a síntese da superação dos antagonismos,

mostrando o caminho trilhado pelos homens na construção deste estado

cosmopolita em que as liberdades das vontades individuais conviveriam

racionalmente em harmonia. Kant reconheceu a dificuldade desta tarefa, mas

mesmo assim manteve de pé a proposta. E afirmou:

É um projeto estranho e aparentemente absurdo querer redigir uma

história (Geschichte) segundo uma idéia de como deveria ser o curso do mundo, como se ele fosse adequado a certos fins racionais – um tal propósito parece somente poder resultar num romance. Se, entretanto, se pode aceitar que a natureza, mesmo no jogo da liberdade humana, não procede sem um propósito final, então esta idéia poderia bem tornar-se útil; e (...) poderá nos servir como um fio condutor para expor, ao menos em linhas gerais, como um sistema, aquilo que de outro modo seria um agregado sem plano das ações humanas.32

Enunciada como um sistema dotado de sentido universal, a história

encontra, deste modo, sua primeira formulação filosófica. Kant leva essas as

considerações adiante no artigo escrito em 1797. Ali, sem grandes volteios, o

filósofo lança a pergunta: “o gênero humano está em progresso constante em

direção ao melhor?”33 No momento em que Kant escreve este texto, oito anos

haviam transcorrido desde a eclosão da Revolução Francesa e o cenário de

otimismo que inicialmente prevalecia, principalmente entre aqueles que a

observavam de fora, começava a esvanescer. Kant, todavia, permanece entre

aqueles que entendiam positivamente os acontecimentos recentes. A segunda

seção de O Conflito pode ser lida, em verdade, como um tipo de testemunho do

filósofo sobre seu tempo no qual ele ratifica a idéia de progresso em direção ao

melhor como destino da humanidade. Assim, a pergunta apresentada no início do

texto não representa de fato uma dúvida, mas sim uma espécie de artifício na

construção da argumentação para que o filósofo afirme o progresso. “Esta

revolução”, confessa Kant, encontra “entre os espíritos de todos os expectadores

(que não estão engajados no jogo) uma simpatia de aspiração que toca de perto ao

entusiasmo.”34

Se no texto de 1784 Kant clamava pelo fio condutor da história, aqui ele já

o indica: a Revolução Francesa é a experiência histórica definitiva na afirmação

32 KANT, Idéia de História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, p.22. 33 KANT, Le Conflit des Facultés, p.93. 34 Ibid., p.101.

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de um sentido para a história. Não a revolução em si mesma, mas a revolução

como “signo histórico” (Geschichtszeichen) que manifesta de forma inegável a

tendência da humanidade de caminhar para o melhor. A revolução é para Kant o

indicativo da disposição moral do gênero o humano em sua busca para engendrar

o espaço público propício para o desenvolvimento de suas aptidões naturais. Ele

compreende que neste momento explicita-se a tendência a procurar a melhor

forma de constituição política com base no direito e na moral. Tal forma é para o

autor a constituição republicana que, ao menos teoricamente, representa a

maneira mais propícia a descartar as guerras e possibilitar o progresso.

Ao tratar do tema da guerra, Kant, se mostra mais cauteloso.

Provavelmente por conta das circunstâncias de conturbação do momento, ele

afirma que elas são as fontes de todos os males e de toda a corrupção dos valores.

Porém, como dissemos anteriormente, este texto testemunha o otimismo do

filósofo de Könisberg diante de seu tempo. E mesmo as conturbações do período

não abalaram a sua certeza no progresso contínuo da humanidade, como podemos

ler no trecho a seguir:

Mesmo sem espírito profético, sustento que posso predizer ao gênero humano, segundo seus aspectos e os signos precursores de nossa época, que ele terá esse fim [do progresso rumo ao melhor] e, ao mesmo tempo também, que sua marcha avante em direção ao melhor não conhecerá regressão total. (...)

Entretanto, mesmo se o objetivo visado por este evento não for alcançado, ou mesmo se a revolução ou a reforma da constituição de um povo fracassasse finalmente, ou se após uma duração qualquer de tempo, tudo recair na rotina primitiva (como agora os políticos anunciam), esta predição filosófica, todavia, não perde nada de sua força.35

Com as proposições de Kant sobre a história, podemos observar o

desenrolar das mudanças epistemológicas que alteravam o estatuto da

temporalidade histórica na era moderna cujo processo que descrevemos

anteriormente. Do ponto de vista da apreensão do conhecimento de que é capaz o

homem moderno, Kant pode ser enquadrado na categoria gumbrechtiana do

“observador de primeira ordem”, ou seja, como aquele que compreende o mundo

como algo diferente de si e, portanto, sobre o qual é possível refletir de modo

racional sem precisar recorrer à experiência empírica. Kant chega mesmo a citar o

exemplo de Copérnico a certa altura de sua argumentação sobre a possibilidade de

35 Ibid., p.104-5

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compreender-se a história como um sistema. Isto porque, segundo ele, a

responsabilidade por não se enxergar no curso das atividades humanas nada além

de um conjunto de atitudes insensatas reside na escolha de um ponto de vista

inadequado para consideração do passado. “Mas”, adverte o filósofo, “se nosso

ponto de vista é tomado do Sol, o que só a razão pode fazer, seu curso se efetua

regularmente seguindo a hipótese de Copérnico.”36 Justificando-se desta forma a

necessidade de uma idéia de história concebida a partir de um ponto de vista

cosmopolita: para que se possa observar no passado as regularidades que lhe

consagram um sentido, um fio condutor para as ações humanas. Pois, tal como

Kant já havia afirmado no texto de 1784, não era possível que a história fosse tão

só o resultado da “contingência desconsoladora” (trostlose Ungefähr)37 apontada

nos acontecimentos.

Contudo, ainda que se estabeleça tal sentido, para Kant não significa que

seja possível vaticinar sobre o futuro. Prever o futuro de homens dotados de

liberdade de ação é algo que pertence à esfera da Providência, e, como ele mesmo

diz “o olho de Deus não faz a diferença aqui.” Portanto, do ponto de vista de uma

concepção de história, o que lemos em Kant pode ser interpretado como uma

espécie de “teleologia sem télos”, uma vez que a orientação para o progresso

contínuo – que ele diz já “estar em perspectiva” ao final da segunda seção de O

Conflito – não tem mesmo na Revolução ou na consagração da constituição

republicana exatamente um fim. O futuro encontra-se de tal modo aberto ao

desenvolvimento progressivo que a consolidação de um estado calcado em uma

constituição republicana mantenedora da paz entre os homens representa, em suas

considerações, muito mais uma ambição que uma certeza. Kant anseia pela

existência de sentido para as ações humanas.

Assim, se é possível afirmar que Kant realizou uma espécie de filosofia da

história – na medida em que fornece à história um sentido –, esta distingue-se das

demais por não possuir um fim dado a priori. Há um sentido, mas não um fim.

Em Kant, diferentemente do que aconteceria mais tarde com Hegel, sentido e fim 36 Ibid., p.98. [grifos nossos] 37 Id. Idéia de História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, p.11. Nesta edição “trostlose Ungefähr”, foi traduzida por “indeterminação desconsoladora.” Já na edição brasileira do texto de Hanna Arendt sobre o conceito de história, a expressão é traduzida por “melancólica casualidade.” Ungefähr é um termo antigo, fora de uso no léxico alemão atual, que pode ser considerado como sinônimo de Zufall. Assim, para mantermos o alinhamento entre os termos abordados aqui, optamos por traduzir tanto Zufall como Ungefähr por contingência. Ver Hanna ARENDT, “O conceito de história”, p.119.

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não se encontram fundidos de tal modo que não sejam separáveis. O sentido é

dado pela concepção de que o homem progride constantemente em direção ao

melhor, o fim é a realização das aptidões naturais, as quais não são determinadas

de forma específica pelo filósofo. Nesta perspectiva, podemos afirmar que a

concepção de história de Kant tende à superfície, uma história que possui senão

uma “vocação” para imanência, ao menos um afastamento da pretensão,

característica das filosofias ao lidarem com a história, de estabelecer um

fundamento a partir do qual tudo acontece.38 Há, assim, uma dose de risco, de

erro, de insucesso, de contingência aceitável, presente na sua forma de apreensão

da história e Kant estava ciente disto já quando escreveu o texto de 1784. Ali ele

diz que talvez seja preciso

uma série (...) indefinida de gerações para que transmitam uma às outras

as suas luzes para finalmente conduzir, em nossa espécie, o germe da natureza àquele grau de desenvolvimento que é completamente adequado ao seu propósito.39

Apesar de Kant tratar de despistá-lo com seu otimismo afirmativo do

progresso, já estava aberto o caminho para as transformações nos modos de se

pensar e apreender a história, transformações decorrentes de uma noção de tempo

que tem no futuro uma indeterminação. Em outras palavras, o futuro aberto ao

indeterminado, ao imprevisível, ao inédito, ganha com Kant sua primeira

formulação histórica.

2.4 A história no tempo: a questão da contingência

Koselleck diz que só foi possível a Kant realizar tais considerações porque

a história como Geschichte já havia sido criada e vivida como única, no sentido de

38 Acreditamos que o tema da história como uma “teologia sem télos” constitui uma questão instigante que merece um desenvolvimento mais profundo, mas que por ora podemos apenas apresentar como um insight para um ensaio futuro. Corrobora com esta idéia a seguinte afirmação de Koselleck: “Quando Kant objetou a maneira pela qual, até então, a história se arranjava com a cronologia, ele estava criticando a concepção teológica de tempo como plano providencial ao qual todas as histórias tinham que aderir. Seria muito mais apropriado, argumentava Kant, se a cronologia seguisse a história. Kant suscitou a demanda por um critério temporal imanente historicamente.” In KOSELLECK, “Neuzeit”, p.246. 39KANT, Idéia de História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, p.11.

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uma “totalidade aberta para um futuro portador de progresso”40. Pensada no

âmbito das categorias epistemológicas, a introdução da noção de progresso

equivale à abertura de um novo horizonte de expectativa. Motivo pelo qual, daí

em diante, a “história pôde ser observada como um processo de longa duração em

crescente realização que, apesar dos reveses e dos desvios, era no final das contas

planejado e conduzido pelos homens.”41 A vontade, o arbítrio humano,

encontrava-se de fato liberada, mas, em contrapartida, o homem via-se

desprotegido de qualquer Providência, sem nenhuma orientação divina.42 “Sem tal

esperança de um Além”, diz Arendt, “até mesmo Kant julgava a vida infeliz

demais, por demais destituída de sentido para ser suportada.”43 O homem se vê,

então, fadado a buscar em si mesmo a responsabilidade e explicação para suas

ações e aspirações.

A compreensão da temporalidade histórica passava assim por mais uma

modificação: o horizonte de expectativa, o futuro e o que dele se espera, passava a

conter a mudança – trazida pela inserção da concepção de progresso contínuo –

como uma condição sine qua non. Aquilo que na aurora dos tempos modernos era

um pequeno descompasso entre experiência e expectativa convertia-se agora em

ruptura. O tempo da história ganhava enfim o caráter de histórico. Pela primeira

vez, a história tornava-se ao mesmo tempo sujeito e objeto, passando a ser então

em si e para si na medida em que precisava que encontrar em si mesma sua

referência temporal e não mais no tempo da natureza ou da teologia. Desta forma,

a história deixa de acontecer através do tempo, para de dar no tempo. É isto que

Koselleck chama de temporalização da história e que Gumbrecht diz ser próprio

da temporalidade histórica na era moderna. Decerto, que

não é exato, ou ao menos é necessário um cuidado especial, para se falar de uma temporalização da história, pois todas as histórias têm a ver com o tempo. Mas o uso da expressão como termo científico parece conveniente e justificado, uma vez que (...) a experiência “moderna” [neuzeitliche] produziu conceitos temporais

40 KOSELLECK, “‘Espaço de experiência’ e ‘Horizonte de Expectativa’: Duas Categorias Históricas.”, p.319. 41 Idem. 42 ARENDT. “A Vontade e a Era Moderna.” In A Vida do Espírito, p.201. De acordo com Arendt a faculdade da Vontade, marcada por esta característica de “abandono” do divino, digamos assim, foi aceita com grande relutância pelos homens e que “foi somente na última fase da Era Moderna que a Vontade começou a substituir a Razão como a mais alta faculdade do Espírito.” 43 Ibid., p.207.

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37

teoricamente mais ricos, que exigem interpretar a história segundo uma estrutura temporal.44

E, segundo nosso entendimento, a maior modificação que o evento da

temporalização produz é a subjetivação do próprio sujeito moderno. Com a

introdução do coeficiente de mudança, ou seja, com a consciência de que tudo está

em um processo de constante modificação, o homem também passa se ver como

submetido à história. Compreende que sua experiência também está na história, e

sendo deste modo por ela balizada, ele relativiza a perspectiva do sujeito produtor

de conhecimento e, conseqüentemente, relativiza, como não poderia deixar de ser,

o próprio conhecimento. A dúvida, que antes se limitava ao conhecimento do

objeto, recai agora também sobre o sujeito. Trata-se de um longo e complexo

processo de transformação cujo epicentro situa-se aproximadamente no período

entre as duas últimas décadas do século XVIII e as três primeiras do século

seguinte. Este processo foi chamado por Gumbrecht de modernização

epistemológica45, designação que o autor elabora a partir do seu entendimento da

modernidade sob a perspectiva metafórica das cascatas, processo que coincide

também, como nos lembra o próprio autor, com a descrição que Foucault faz da

virada do século XVIII para o XIX da qual resultaria a fundação das assim

chamadas Ciências Humanas.

O processo de modernização epistemológica, nos chama atenção

Gumbrecht, marca também a afloração um outro tipo de observador: o de segunda

ordem.46 Trata-se de um observador que realiza um duplo movimento de

observação, isto é, que observa o mundo tal como o faz o de primeira ordem, mas,

ao fazê-lo não consegue deixar de notar a si mesmo. Referida ao campo da

história, a emergência deste observador traz consigo o agravante da perda de

referência: o observador de segunda ordem, ao olhar para o passado,

inevitavelmente também se observa, e não encontra semelhança em lugar algum,

pois tudo o que vê na esteira do processo histórico é singular e transitório. E se 44 KOSELLECK, “‘Modernidade’. Sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade.”, in op. cit., p.293. 45 Ver GUMBRECHT, Modernização dos Sentidos, p.9. 46 Gumbrecht tomou de empréstimos as concepções de observador de primeira e segunda ordem das reflexões do sociólogo alemão Niklas Luhmann sobre a sociedade moderna. Luhmann, entretanto, apesar de apontar uma série de direções possíveis – tais como, educação, economia, família, entre outras – para a compreensão desta mudança histórica ocorrida na sociedade a partir do século XVIII da qual decorre o surgimento do observador de segunda ordem, não mostra interesse na historicização destes conceitos de observação, tal como ressalta Gumbrecht. Ver também LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity.

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nos recordarmos do que disse Tocqueville em 1840, no trecho de Da Democracia

na América citado na epígrafe deste capítulo, podemos constatar que o que o

pensador francês estava testemunhando era justamente a perda da certeza no

passado como referência.

No âmbito da modernidade de uma forma geral, a modernização

epistemológica caracteriza-se pela consolidação de uma nova forma de

temporalidade histórica marcada pela concepção de um futuro aberto ao

desenvolvimento progressivo que, por sua vez, impinge a mudança como uma

presença constante na observação que homens fazem de si mesmos e do mundo.

Este quadro torna a contingência um atributo definidor da sociedade moderna,

parafraseando o título de uma conferência do sociólogo alemão Niklas Luhmann.

Aliás, como diz o próprio Luhmann, “a característica mais comum das descrições

da sociedade moderna refere-se repetidamente a uma medida incomum de

contingência.”47

Entretanto, não é somente na modernidade que a contingência surge como

uma questão para o homem. Na verdade, a contingência tem lugar na reflexão

humana desde os primórdios do pensamento ocidental. Pois, com a descoberta da

perenidade do Ser pela filosofia clássica, ou seja, com a instauração filosófica da

existência de um Ser eterno e imortal48 na origem de tudo, surge também

necessidade de explicar o movimento da vida em seu constante ir e vir. Era

preciso compreender a mudança das coisas no tempo no interior do conjunto de

perenidade do Ser.

Aristóteles em sua Metafísica afirmou que aquilo que se dá por acaso, a

contingência (kata symbebekos), opõe-se ao que é e não pode não ser

(hypokeimenon). A contingência é tudo que não é necessário nem habitual porém

possível de acontecer.49 Como se trata de um contexto baseado na existência de

um Ser perene, onde há uma substância (tradução latina de hypokeimenon) na

origem das coisas, a contingência constitui uma espécie de variação no atributo do

que é e não pode deixar de ser, como um tipo de qualidade secundária. A

aplicação deste modelo de pensamento às manifestações da natureza é mais fácil

47 LUHMANN, “Contingency as Modern’s Society Defining Attribute.” op. cit, p. 41. 48 Ou seja, de um Ser que não tem nascimento nem morte. 49 “‘Acidente’ significa (...) o que adere a uma coisa e dela pode ser afirmado como verdade, porém não necessariamente, nem habitualmente.” ARISTÓTELES. Metafísica. Livro V, capitulo 30, p. 140. Tomamos de empréstimo as traduções de Hanna Arendt dos termos em gregos.

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de ser compreendida, basta que para isso visualizemos variações de cores,

tamanhos, odores, etc. que encontramos nas coisas. Porém, transferida para a

esfera humana, a determinação daquilo que é já não se mostra tão simples, pois,

quando se trata de ações livres, a problemática da contingência aparece de

maneira mais sutil e mesmo paradoxal, tal como podemos ler em Aristóteles: “o

que vem a ser através de uma ação é aquilo que poderia ser também outro.”50

Assim, no que diz respeito aos assuntos dos homens tudo é, de certa forma,

contingente. Com base em tal constatação, podemos compreender o movimento

que conduz a filosofia a se preocupar em estabelecer o que é próprio da

substância, ou se preferirmos, do substrato51 do homem, como uma forma de

livrar a existência humana dos aspectos contingentes.

É neste intuito de afirmação do que há de essencial nos homens que

Aristóteles, segundo Arendt, compreende os atos humanos na mesma chave

movimento cíclico que atinge tudo que vive. Pois, uma vez que tudo que pode

“vir-a-ser” no mundo já está contido potencialmente em espírito (nous), pode-se

dizer que “todo fim é um começo e todo começo é um fim”, sendo, desta forma,

capaz de ser repetido. Aliás, de acordo com a autora, esse modo de conceber as

ações humanas não era exclusividade do pensamento filosófico. Também a

pretensão de Tucídides de registrar para a posteridade os feitos e as glórias dos

homens ocorridos na Guerra do Peloponeso, “baseava-se implicitamente a mesma

convicção de um movimento recorrente dos assuntos humanos.”52 Como se pode

perceber, as considerações feitas anteriormente sobre temporalidade cíclica da

antiguidade clássica, só vêm a reforçar esta perspectiva acerca da questão da

contingência no cenário do pensamento grego.

No universo da filosofia cristã, a noção de contingência advinda da

filosofia clássica sofrerá o acréscimo de uma característica: a indeterminação. De

tal maneira que, no conjunto do pensamento teológico, a contingência passa a

compreender não só o que não é nem habitual nem necessário e, contudo, possível

de acontecer, como também aquilo cuja determinação, isto é, a causa, os homens

não são capazes de compreender, por tratar-se de um atributo que cabe somente à

instância divina. Logo, concluí-se que, na explicação da teologia, a 50 ARISTOTELES, “De Anima”, 433a. Apud, ARENDT, A Vida do Espírito, p.197-8. 51 Por substrato Aristóteles define “aquilo de que se predica tudo mais, mas que não é predicado de nenhuma outra coisa.” ARISTÓTELES. Metafísica. Livro VII, capítulo 3, p. 149. 52 Ibid., p.199.

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indeterminação que marca o que é contingente, justifica-se por meio do mistério

divino da criação.53

Uma possibilidade de percebermos a assimilação da contingência pelos

desígnios da Providência Divina é através da transposição da Fortuna, divindade

pagã, da Antiguidade para o mundo da cristandade54. A Fortuna chegou ao

pensamento cristão principalmente através da obra Consolatio Philosophiae [A

Consolação da Filosofia], do filósofo romano Severino Boécio (480 / 524-5 d.C.).

Esta obra, que segundo consta era a mais conhecida no mundo medievo depois da

Bíblia e da Regra de São Bento55, foi escrita entre sessões de tortura nos anos em

que o autor esperava por sua morte na prisão. Escrevendo em forma de diálogo

realizado entre ele próprio e a Filosofia, Boécio tem como tema central a questão

da Fortuna, sua influência maléfica ou benéfica no destino dos homens,

investigando, sobretudo, o motivo de sua inconstância. O filósofo afirma que a

dualidade da Fortuna, possuidora de uma parte boa e outra má, existe para enganar

e instruir os homens, e que Deus envia o mal juntamente com o bem para que os

que bons não se corrompam ou para neles reforçar as virtudes. Percebe-se, então,

que a aceitação do acaso se mantém por conta de sua submissão aos desejos da

Providência. E assim acontece, seja devido à tradição decorrente de Boécio, seja

pela crença popular, porque, em sua ambigüidade, a Fortuna proporcionava “um

elemento estrutural para a representação das histórias [Historien]. Ela indicava

que existência de mudanças que ultrapassavam os indivíduos e escapavam do

alcance dos homens”56, e que, contudo, ainda estavam situadas no raio de atuação

divina. Exemplo disto é a metáfora da Roda da Fortuna, que possibilitava, ao

mesmo tempo, a idéia de existência do acaso e, também, de que os

acontecimentos são capazes de algum nível de repetição, “de modo que, ao longo

dos altos e baixos do percurso até o Juízo Final, nada de fundamentalmente novo

pudesse acontecer neste mundo.”57

Em realidade, a absorção da noção de Fortuna no conjunto da concepção

teológica cristã nada mais é do que a forma pela qual o topos da Historia 53 LUHMANN, op. cit., p.46. 54 KOSELLECK, “O acaso como resíduo de motivação historiográfica.” In KOSELLECK, Op.cit, p. 148-9. 55 COSTA, Ricardo. ZIERER, Adriana. “Boécio e Ramon Llull: A Roda da Fortuna, princípio e fim dos homens”, p. 4. In http://www.hottopos.com/convenit5/08.htm 56 KOSELLECK, “O acaso como resíduo de motivação historiográfica.” In KOSELLECK, Op.cit, p. 148 57 Ibid., p.149

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Magistra Vitae ganhou força para sobreviver na história cristã, perseverando até

os tempos modernos.58 E, da mesma forma que se observou no contexto do

pensamento na Antiguidade clássica, aqui também podemos tentar compreender

esta nova forma de conceber o acaso relacionando-a à maneira cristã de apreensão

do tempo. Uma vez que o passado como um todo não pode mais se repetir –

lembremos aqui do abandono parcial da temporalidade cíclica dos antigos a que a

filosofia cristã precisou recorrer por conta da manifestação da singularidade

histórica que começa com a expulsão de Adão do paraíso e termina na

ressurreição de Cristo –, a explicação da contingência passa a projetar-se no futuro

cujo conhecimento e domínio, através da concepção de Fortuna, pertencem

exclusivamente a Deus.

Já na época moderna, as modificações das relações entre homem e

conhecimento, juntamente com o afastamento crescente e gradual das

pressuposições e dogmas da teologia e escatologia cristãs, afastam a possibilidade

de justificativa na vontade divina à medida que exigem explicações empíricas e

pragmáticas para as coisas deste mundo. Conseqüentemente, a indeterminação

característica da contingência – projetada no futuro – fica sem respaldo

explicativo. Em outras palavras, a indeterminação que assinala a contingência é

exatamente a característica que o futuro aberto pela a introdução da perspectiva de

progresso infinito da humanidade coloca no cerne das questões vividas no

presente. E mais: se temos em mente a categorias de observador de segunda

ordem e aceitamos a afirmação de que tudo se torna contingente quando o que

está sendo observado depende de quem está observando, a contingência pode ser

compreendida como o verdadeiro “toque de Midas” da modernidade.59 Visto que

até mesmo o passado, que até então constituía um alicerce para as convicções,

torna-se também contingente quando o presente e o futuro se tornam relativos.

Assim sendo, consideramos que a questão da contingência constitui um

elemento fundamental – e bastante instigante, em realidade – para a reflexão sobre

as formas de apreensão da temporalidade da história. Creditamos isto ao fato da

contingência estar ligada intimamente ao futuro e o que se espera dele no

presente, ou seja, ao horizonte de expectativa existente em um determinado

período. Pois à medida que a linha do horizonte de expectativa se desloca altera

58 Lembremos aqui da importância que a noção de Fortuna possui nas reflexões de Maquiavel. 59 LUHMANN, op. cit., p 48.

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com ela o “grau” da contingência.60 Tal como se buscou observar na análise geral

da questão nos três momentos expostos aqui, o estatuto daquilo que é contingente

transita de algo que não é de fato relevante (no caso grego), passando pela

justificação providencial (no caso cristão) até a indeterminação absoluta (no caso

moderno), variando conforme o estatuto do futuro. De maneira resumida,

podemos afirmar que na forma grega de percepção da temporalidade, o tempo

concebido de modo cíclico esvazia a futuro de sua propriedade verbal, pois se o

que acontece, ainda que acidental, já está dado em essência no passado, o futuro

nada mais é que um “era para ter sido” e não um “será.” Neste caso, não há lugar

para o surgimento do novo61, pois, uma vez que tudo já existe potencialmente, o

futuro está contido de antemão no passado ou, como foi dito, o começo traz

consigo o fim e vice-versa. Com o tempo concebido a partir da filosofia cristã, o

horizonte de expectativa desprende-se do “era para ter sido” apontado no passado

e o futuro assume os atributos que o tempo verbal de fato deve exprimir. O futuro

se torna um “será” que traz consigo a diferenciação do que aconteceu no passado,

mas que, todavia, possui um agente limitador. O futuro aqui equivale a um “será”

delimitado pela Providência divina. Já com a introdução da noção de progresso

que marca a era moderna, o horizonte de expectativas transfere-se para um ponto

tão afastado do espaço de experiências – do passado e da memória que se tem

deste passado –, ou seja, tão distante de qualquer parâmetro pré-existente que

provoca a sensação que o contingente tomou definitivamente o lugar do

necessário. Aliás, diante deste quadro das relações temporais que se configura na

modernidade, a pergunta sobre o que, enfim, é da ordem do necessário em se

tratando dos assuntos humanos se torna cada vez mais relevante. De tal modo que

chega a lançar dúvida, sobretudo para os observadores atuais, se há mesmo algo

que permaneça nesta categoria. Talvez seja este um indicativo do caminho de

60 Koselleck nos lembra que depois que Raymond Aron, na introdução de sua Filosofia da História, postulou o acaso como “essência de toda história” – diluindo assim a oposição entre acaso e necessidade e fazendo com que algo seja ou não acaso dependendo do ponto de vista do observador –, a reflexão sobre o tema do acaso adquiriu um patamar metodológico eficiente. Porém, “isso não é óbvio, e nem sempre foi assim” e, por este motivo, falamos em gradação da contingência.” Soma-se a isto o fato de entendermos que o alargamento do horizonte de expectativa acontece em ritmo relativamente lento, alcançando seu clímax somente em 1789. Ver KOSELLECK, “O acaso como resíduo de motivação historiográfica.” In KOSELLECK, op.cit, p. 147 e também p.343, nota n°1. 61 Novo no sentido de algo inédito, inteiramente originário.

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escuridão pelo qual o espírito moderno vagueie. O tema do necessário, contudo,

será abordado logo mais à frente.

A contingência, na perspectiva histórica modernidade, se transforma em

uma questão que subjaz, quase necessariamente, à reflexão. Isto porque a

contingência obriga os historiadores ou os filósofos da história – para limitarmos

assim o raio de nossa reflexão – a lidar com o fracasso, com o insucesso, com o

que foi mas não era para ter sido, pois não havia qualquer indicativo no passado a

respeito. Força, portanto, àquele que se interessa a produzir qualquer tipo de

reflexão sobre os eventos pregressos a considerar elementos que não se encaixam

prontamente nos elos até então estabelecidos na cadeia do processo histórico. A

contingência é de certa forma a insinuação – ou a ênfase dependendo da

intensidade do impacto dos acontecimentos – do que há de descontínuo na relação

entre os modos temporais. Ou, como disse David Wellbery a propósito da fórmula

da contingência no drama de Lessing “Natã, o sábio”: a contingência “é a seleção

feita pelo acaso.”62

Por estes motivos, no trato da história, a contingência configura a princípio

um entrave para a realização de sínteses que visam à totalidade ou à

universalidade, que lançam mão do recurso de estabelecer sentidos e fins a priori

para o processo histórico. Também apresenta dificuldade para aqueles que

desejam instituir verdades, certezas ou ainda regularidades históricas. E, até

mesmo para os que desejam simplesmente compreender o que há de típico nas

manifestações do passado, os elementos que possuem o caráter de contingentes

impõem a necessidade de refletir sobre o assunto. De tal modo que é possível

afirmar, por exemplo, que foi no intuito de resolver, contornar ou mesmo eclipsar

as incertezas que a questão da contingência trouxe para o pensamento sobre a

história que a filosofia da história buscou determinar sentidos e finalidades a

priori com base na convicção da melhoria contínua trazida pelo progresso; ou que

no campo da história como disciplina acadêmica se criaram e organizaram

metodologias críticas para afirmar um conhecimento positivo sobre o passado

(pois, como nos lembra Koselleck, as mesmas circunstâncias que colocaram o

progresso no futuro e que, por conseqüência, semearam o solo para o

62David E WELLBERY, “O acaso da nascimento. A poética da contingência de Sterne.” Ibid. Neo-retórica e desconstrução. COSTA LIMA, Luiz; KRESTCHMER, Joahnnes (Orgs). EDUERJ, 1998. p. 154.

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fortalecimento da contingência como um atributo na era moderna, também

possibilitaram a reelaboração crítica realizada pela Escola Histórica).63 Mais

ainda: se concordarmos com Luhmann acerca da referência praticamente

instintiva que o pensamento moderno faz à contingência, constatamos que,

todavia nos dias de hoje, a temática do contingente se mostra presente e atual. É

sob o tema da preocupação com a contingência que reunimos numa primeira

abordagem os dois autores cujas concepções de história são objeto da reflexão que

se segue.

2.5. Revolução, contingência e necessidade

Não há dúvida que tanto Hegel, quanto Burckhardt lidaram com a questão

da contingência em suas considerações sobre história. Entretanto, não resta dúvida

também de que isto não era em nada uma característica exclusiva do pensamento

dos dois autores. As considerações sobre a história de Alexis Tocqueville, de

Leopold von Ranke – de quem Burckhardt fora aluno em Berlim –, e de tantos

outros também poderiam figurar como exemplos para análise. Assim

consideramos possível compreender as perspectivas destes homens sobre a

história, de um modo geral, e sobre sua própria época, especificamente, a partir do

tratamento dispensado à questão da contingência em suas considerações. Isto

porque ao afirmarmos que a contingência é uma característica intimamente ligada

ao horizonte de expectativa por conta da indeterminação do futuro, estamos

aceitando que, do ponto de vista temporal, ela constitui uma categoria “puramente

contemporânea”64, nos termos de Koselleck. Ou seja: a contingência diz acerca do

presente de uma época. Pois, a contingência

não é dedutível a partir do horizonte de esperança que se volta para o futuro – a não ser como fissura repentina desse mesmo horizonte – e tampouco pode ser percebida como resultado de causas passadas: se assim fosse deixaria de ser contingência.65

63KOSELLECK, “’Espaço de Experiência’ e ‘Horizonte de Expectativa’: duas categorias históricas”, Op. cit., p.319. 64KOSELLECK, “O acaso como resíduo de motivação historiográfica.” In KOSELLECK, op.cit, p. 147. 65 Idem. Koselleck emprega o termo Zufall, que foi traduzido para a edição brasileira de Futuro Passado como acaso. Mais uma vez, optamos pelo uso da palavra contingência pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, para mantermos o alinhamento de termos ao longo do trabalho. Em

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E, contrariamente ao que pode parecer, sobretudo por conta da abordagem

um tanto quanto teórico-especulativa que até agora dispensamos à questão, a

contingência se tornou inerente ao pensamento histórico para os homens de então

a partir de uma experiência bastante concreta: a Revolução Francesa.

A Revolução Francesa impeliu os homens a enfrentar o inaudito. Ao

estender as mudanças do campo político para o social, pondo em andamento

mudanças que atingiam diversas camadas da população, a Revolução dava

mostras de ser realmente um momento inédito na história. Colocava, desta forma,

frente a seus contemporâneos o problema do surgimento do inteiramente novo,

ainda que apenas em um primeiro momento, como mais tarde argumentaria

Tocqueville. De tal modo, a Revolução constituiu o apogeu das mudanças que

alteraram a percepção da temporalidade histórica, que pode ser entendida como o

símbolo mais marcante do movimento de singularização, no qual a história passou

a ser compreendida como um coletivo singular e, portanto, como um processo. A

alteração semântica por que passa a própria noção de revolução, configurando

também um coletivo singular, é igualmente um indicador desse mesmo

movimento. Ou seja, da mesma forma que os termos que designavam a história

como experiência (Geschichte) e a história como representação desta experiência

(Historie), se unificaram sob a noção de História (Geschichte), também as

diversas maneiras de definir revolução – portanto, as revoluções – foram

suplantadas pela Revolução.66 Aliás, estas singularizações encontram-se tão

intimamente relacionadas que, ao acompanharmos as alterações semânticas que

resultaram no conceito moderno de revolução, entrevemos a consolidação da

forma moderna de apreensão da temporalidade histórica.

segundo lugar, porque, em português, acaso possuí a palavra destino como sinonímia, ou seja, o acaso pode ser considerado, em certo sentido, como um fim. E, como nossas considerações se guiam, sobretudo, a partir da noção de que a finalidade é afastada à indeterminação, entendemos que contingência sirva melhor aos nossos propósitos. Soma-se a isto o fato da noção de destino ser importante no âmbito da filosofia de Hegel (ver Cap.3, 3.2), o que reforça nossa insistência no uso do termo contingência. 66 A propósito, esta é uma época que pode ser compreendida, segundo Koselleck, como “a grande época das singularizações, das simplificações, que se voltavam social e politicamente contra a sociedade estamental.” É um período no qual “das liberdades se fez Liberdade, das justiças fez-se Justiça, dos progressos o Progresso e das muitas revoluções ‘La Révolution’.” O autor chama ainda a atenção para o fato que, no Ocidente, a Revolução Francesa em sua singularidade, desempenhou o mesmo papel que a noção de Geschichte cumpriu na Alemanha. KOSELLECK, “Historia Magistra Vitae. Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento.” In. KOSELLECK, Op.cit, p.53.

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Foi em 1543, com Copérnico, que pela primeira vez o termo foi

empregado. Revolução, no contexto de De revolutionibus orbium coelestium

[Sobre a revolução dos orbes celestes], é utilizada para explicar o curso regular e

rotativo que um corpo celeste realiza. A palavra mantém assim a origem

etimológica do termo em latim “revolvère”, que significa rolar para trás, e indica,

portanto, também uma repetição, um movimento cíclico.67 E, nesta noção

científica de revolução como algo da ordem do circular, subjaz a idéia de que o

movimento dos astros é irreversível, uma vez que há uma necessidade de

efetivação que transcende qualquer tipo de ingerência humana, pois, não podemos

esquecer que “todo movimento cíclico é por definição um movimento

necessário.”68 Primordialmente, então, revolução designa um movimento circular

repetitivo e irreversível (por ocorrer necessariamente e sem influência humana).

Quando da transposição para a esfera dos assuntos humanos, o termo levou

consigo estes atributos. Por conseguinte, aplicado a esta esfera, o termo revolução

passa a ser uma metáfora que transmite “a idéia de uma moção irresistível e

eterna, repetindo sempre os movimentos casuais, os altos e baixos do destino

humano”, que, por sua vez, “têm sido comparados ao nascer e ao pôr do sol, da

lua e das estrelas desde tempos imemoriais.”69 Vem à mente a imagem da roda,

tanto a da Fortuna, como a da natureza e seus ciclos, na qual o novo, o inédito,

ainda não se apresenta como uma possibilidade uma vez que, seguindo os

pressupostos que acompanham a idéia de natureza desde os gregos, todo o

processo já está contido na essência daquilo que é. Quando falamos do uso do

termo em assuntos humanos, é preciso, todavia, ressaltar dois aspectos. Em

primeiro lugar, o caráter de volta, de retorno à situação original. Em segundo

lugar, é preciso destacar que há uma ambigüidade na concepção originária da

palavra revolução aplicada aos corpos celestes: trata-se dela designar

simultaneamente um movimento que, apesar de irresistível e independente dos

gestos dos homens, é capaz de influenciar suas vidas.

67 Hanna ARENDT, “O significado da Revolução.” In AREDNT. Sobre a Revolução. pp.21-57 Neste primeiro capítulo, Arendt procura compreender o significado da Revolução a partir das transformações pelas quais o termo passa longo da era moderna e, de maneira próxima a que Koselleck faria posteriormente nos artigos publicados em Futuro Passado, Arendt identifica o movimento destas transformações (que resultariam na concepção de Revolução como “coletivo singular” kosellekiano) com o surgimento da moderna concepção de história como processo. 68 Ibid., p.54. 69 Ibid., p.41.

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Tanto Arendt quanto Koselleck identificam o primeiro uso político do

termo revolução com os acontecimentos que tiveram lugar na Inglaterra do século

XVII, com os vinte anos de rebeliões, entre 1640 e 1660, que resultaram na subida

de Cromwell ao poder, alguns anos de governo republicano e a volta ao regime

monárquico.70 Neste contexto, a ênfase da metáfora política de revolução recaía

sobre o prefixo re-, isto é, incidia na idéia de uma volta ao ponto anterior. Assim,

a idéia de que se vivera uma revolução na Inglaterra Seiscentista remetia à noção

de restauração, tal como ficou conhecido o período posterior a 1660. Revolução

significava, portanto, a restituição de modelos governantes preexistentes, após

épocas de conturbações e rebeliões. O exemplo apontado pelos dois autores

permite enfocar o fato de que, inicialmente, a noção de revolução política não

trazia consigo a idéia de novidade e só poderia ser assim concebida, justamente,

por pressupor uma noção de tempo histórico cíclico, onde, em razão disto, os

eventos são passíveis de repetição.

É importante notar que mesmo a Revolução Americana e, num primeiro

momento, também a Revolução Francesa, estavam imbuídas desta idéia de

revolução como restauração. Não se tratava, é claro, de restaurar uma ordem

política imediatamente anterior, mas de estabelecer formas políticas já conhecidas

pela história. Tratava-se, então, no caso americano, de firmar o regime

democrático e, no caso francês, a república. Comum aos dois momentos está o

anseio subjacente por liberdade. E este desejo de liberdade seria justamente o

responsável pela introdução da perspectiva do novo, a qual culminaria na

alteração da concepção vigente de revolução. Pois não se lutava apenas pela

liberação de antigos regimes de governo que haviam excedido seus poderes,

tolhendo os direitos civis de seus cidadãos, mas também pela liberdade individual,

liberdade de pensar, agir e criar publicamente. Como diz Arendt:

O que a revolução tornou evidente foi essa experiência de se ser livre,

que era uma experiência nova, não, certamente, na história da humanidade ocidental – pois foi bastante vulgar na antiguidade grega e romana – mas relativamente aos séculos que separam a queda do Império Romano do início da

70 “Neste sentido”, diz Koselleck, “Hobbes descreveu o período (...): ‘I have seen in this a circular motion’(...). Ele viu um movimento circular, cuja trajetória iniciava-se na monarquia absoluta, passando pelo Long Parliament em direção ao Rump Parliament, a partir daí em direção à ditadura de Cromwell, retrocedendo finalmente, passando por formas oligárquicas intermediárias, à monarquia renovada de Charles II.” Reinhart Koselleck, “Critérios históricos do conceito moderno de revolução”, in KOSELLECK, op.cit, p.65. Ver também Cf. ARENDT, “O significado da Revolução”, p.42.

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Idade Moderna. E esta experiência era, ao mesmo tempo, a experiência que revelava a capacidade humana de começar algo de novo. Estas duas coisas juntas (...) estão na base do tom enfático que se encontra na Revolução Americana e na Revolução Francesa, essa insistência constantemente repetida de que, em grandeza e significado, jamais em toda a história da humanidade existira algo de comparável.71

A revelação desta habilidade de criar o novo transformou o termo

revolução na encarnação do sentimento que se tornaria comum de que os homens

fazem a história. Segundo Koselleck, este sentimento ocorre como uma espécie de

desdobramento do processo de singularização da história. É um “passo além” que

o coletivo singular produz ao tornar possível

que se atribuísse à história aquela força que reside no interior de cada acontecimento que afeta a humanidade, aquele poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, um poder frente ao qual o homem pôde acreditar-se responsável ou em cujo nome pôde acreditar estar agindo.72

Neste sentido, a Revolução Americana foi, indubitavelmente, o marco

histórico fundamental. Porém, o fato dela ter se dado a um oceano de distância,

talvez tenha atenuado o impacto da novidade. De tal modo que os rumos tomados

pelos acontecimentos em 1789 logo passaram a assinalar a possibilidade concreta

de criação do novo. Ocorrida em plena Europa, face a face às instituições e

tradições, a Revolução Francesa mostrou que não era necessário um “novo

continente” para o surgimento de um novo homem. Quando nos referimos aos

rumos de 1789, temos especialmente em vista o impacto das mudanças no arranjo

das camadas sociais a partir da participação popular. Lembremos que, até então,

nenhuma revolução por mais que tenha alterado os modelos de governos e mesmo

as instituições de poder, havia alcançado a proeza de empreender modificações na

organização social.

A partir de 1789, o termo revolução, que já era corrente no vocabulário

iluminista, incorporou a característica da novidade e tornou-se também um

coletivo singular. Assim, a aplicação de revolução ao campo das atividades

humanas passou a significar a emergência do novo, do não previsto e, por

extensão, do contingente. Até mesmo os revolucionários foram, de certa maneira,

surpreendidos pela ausência de uma referência pregressa para os acontecimentos. 71 ARENDT, “O significado da Revolução”, p.33. 72 KOSELECK, “Historia Magistra Vitae. Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento”, p.52.

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Somente com os desdobramentos das revoluções os homens puderam se dar conta

de que suas ações desencadeavam o começo de um novo evento político.

Contudo, o fato deste aspecto ter levado um par de séculos para se firmar na

acepção da palavra revolução, não impediu que o novo fosse desde então

incorporado com toda força ao pensamento dos homens. A novidade decorrente

das mudanças conjunturais passava a constituir o lema da recente ordem das

coisas do mundo. Pois, como afirmou Robespierre em um de seus famosos

discursos: “Tout a changé dans l’ordre physique; et tout doit changer dans

l’ordre moral et politique.”73

A perspectiva da revolução como algo jamais visto extinguia do

significado político da palavra a noção de movimento circular e, com ele, a

possibilidade de repetição. A Revolução de 1789 era um evento único na história,

bem como tudo que ocorreu e ocorreria desde então. Logo, não se tratava mais

daquele movimento de retorno ao mesmo lugar, nem tampouco da volta a algo

previamente conhecido. Tratava-se enfim de um caminho que conduzia a um

lugar desconhecido, a um futuro ignorado. Este era, portanto, o momento

inaugural de um novo horizonte de expectativa que já não correspondia mais ao

espaço pregresso de experiência. A Revolução Francesa marca o descompasso

definitivo entre as categorias epistemológicas concebidas por Koselleck, tal como

foi referido no começo deste capítulo.

Com o descompasso vêm a insegurança e a instabilidade que caracterizam

a vida em um presente cujo futuro é indeterminado. Ao apontar a Revolução como

símbolo histórico do avanço do progresso contínuo em direção ao melhor, Kant já

acusava a expectativa de um futuro aberto, incapaz de ser prognosticado, e,

portanto, mostrava a ruptura com passado. A Revolução parecia trazer consigo a

possibilidade efetiva do novo sem a qualidade do “era para ter sido” da história

nos moldes da Antiguidade e também sem os traços de um acontecimento

marcado pela realização da vontade oculta de Deus. Aliás, a tentativa de

afirmação do novo constituiu de fato um esforço empreendido pelos

revolucionários, tal como indica a instituição do calendário republicano que por

doze anos diferenciou a marcação do tempo nos territórios dominados pela

França. O que poderia significar o uso de um novo calendário senão a tentativa de

73 “Tudo mudou na ordem física e tudo deve mudar na ordem moral e política.” Apud Hanna ARENDT, “O significado da Revolução”, p.45.

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instauração de uma nova era na história na qual, além da imposição de uma forma

original de organização política e social, pretendia-se também criar novos valores

e costumes para a sociedade?

Contudo, como o próprio Kant havia afirmado, era preciso prover os

acontecimentos de um fio condutor para dar sentido à “contingência

desconsoladora” que parecia conformá-los. Pois, o que o espetáculo da Revolução

tornava explícito era o fato de que “nenhum dos seus atores podia dominar o curso

dos acontecimentos.” Mais ainda, deixava claro “que este curso tomara uma

direção que pouco ou nada tinha ver com as intenções e objetivos voluntários dos

homens que, pelo contrário, se viam obrigados a submeter a sua vontade e

objetivos à força anônima da revolução.”74 Os homens fazem a história mas não

sabem por que a fazem, argumentaria mais tarde Hegel em sua filosofia da

história. Diante deste quadro, vemos que a noção de revolução, calcada no

ineditismo dos acontecimentos, abandona da antiga concepção a circularidade,

mas mantém o caráter de inevitabilidade, de irresistibilidade, que permeava

outrora o conceito. Assim como os movimentos das estrelas, a Revolução seguia

seu curso de forma independente das vontades e ações dos homens.

Um diálogo ocorrido entre Luís XVI e o Duque de La Rochefoucald-

Liancourt, ocorrido em 14 de junho de 1789, marca, na opinião de Hanna Arendt,

o momento em que a irreversibilidade se acentua como uma característica no

emprego do termo revolução. Segundo se conta, ao tomar conhecimento da

tomada da Bastilha pelos revolucionários, Luís XVI teria exclamado “C'est une

revolte!.” Na ocasião, Liancourt o teria corrigido dizendo “Non, Sire c'est une

révolution.”75 A retificação do Duque indicava que o avanço da massa de

populares pelas ruas de Paris estava além de uma simples sublevação que poderia

ser abafada pelos esforços da realeza, ao contrário, era um processo irreversível

que obrigava a partir de então que o espaço público comportasse também a

opinião da maioria. O processo revolucionário, guiado pela vontade de liberdade e

igualdade, parecia agora governado por uma lei própria.

Se reunirmos o clamor por sentido para esta nova história que despontava

no horizonte com a idéia de que a Revolução seguia guiada por uma vontade

própria, podemos compreender de que maneira surgiu a noção de necessidade

74 Idem, p.50. 75 Idem, p.46.

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histórica que se tornaria cara ao século XIX. A noção de necessidade histórica

corresponde à conceitualização que o século XIX fez da idéia da Revolução como

um movimento irreversível. Ou seja, tal como afirmamos no inicio do tópico, é a

partir de um evento concreto e não de uma especulação teórica que a contingência

se torna inerente ao pensamento moderno. Isso se verifica, contudo, não através

de um pensamento acerca da contingência de algum modo afirmativo, mas sim

através da consagração de seu oposto conceitual, a necessidade. A Revolução

Francesa fez a concepção de necessidade sobreviver à extinção do ciclo de

repetições, transformando-a em uma característica histórica. Pois os eventos que

sucederam a Queda da Bastilha – como, por exemplo, as guerras de anexação

territorial, as diferentes Constituições, a perseguição ao clero, o período

sanguinário do Terror – fomentavam um sentimento inverso àquele em que os

homens são senhores de sua própria história. Se em algum momento julgavam-se

detentores do controle do destino de suas vidas, os homens passavam então a ser

assaltados pela seqüência de surpresas resultantes dos desdobramentos da

Revolução apontavam. Como escreve Marcelo Jasmin, “se poucas décadas antes

os revolucionários viam-se como construtores da história, agora apareciam como

seus agentes impulsionados por sua irresistibilidade.”76

À medida que os acontecimentos destoavam cada vez mais do que

teoricamente os homens haviam planejado, consolidava-se a interpretação da

Revolução como dotada de uma força singular que determinava o sentido da

história. Ainda na perspectiva das alterações semânticas do termo, a ênfase neste

atributo da irresistibilidade, que sustenta a noção de necessidade histórica,

forneceria à metáfora política sinônimos como “tempestade”, “torrente”, “vaga”,

“fluxo”, “marcha”, entre outros. Neste aspecto, interessa particularmente o fato de

tais sinônimos terem passado prontamente a designar também o processo

histórico. Assim, não só o processo revolucionário era compreendido como um

fluxo, ou torrente, mas também o próprio processo da história.

Entendemos que tais transformações no significado do termo revolução

apontam para algumas das formas encontradas para lidar com a questão da

contingência na história. E, de um modo geral, a eliminação, ou ao menos o

esvaziamento do sentido de fortuito, passará a ser a tendência no tratamento da

76 Marcelo JASMIN, Racionalidade e História na Teoria Política, p.89.

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história a partir de então. Aliás, desde o inicio do século XVIII, recusava-se o

acaso como possibilidade de explicação, pois a noção de progresso fornecia um

sentido para a história e, indiretamente, fazia do avanço crescente da humanidade

uma finalidade, mesmo que inexata. Tendo isto em conta, podemos mesmo

afirmar que a filosofia Iluminista primava pela anulação do contingente. Como

chama atenção Koselleck, à medida que se desenvolve um pensamento moderno

sobre a história, lentamente percebe-se a exclusão da contingência como uma

possibilidade de motivação. Em suma, a “história, na sua singularidade, devorou e

incorporou o acaso.”77 e, para tanto, a idéia de necessidade histórica constituiu

um valioso instrumento.

A história universal de Hegel é o grande exemplo desta assimilação – ou

enfraquecimento – do papel da questão da contingência na história. Hegel, logo no

princípio de suas lições sobre a filosofia da história afirma explicitamente que a

prioridade da filosofia é eliminar a contingência das sendas da história. Diz ele:

A consideração filosófica não tem outro objetivo que eliminar o

contingente. A contingência é o mesmo que a necessidade externa, isto é, uma necessidade que remonta a causas, as quais são só circunstâncias externas. Devemos buscar na história um fim universal, o fim último do mundo, não um particular do espírito subjetivo ou do ânimo. E devemos apreendê-lo pela razão, que não pode por interesse em nenhum fim particular e finito e sim só no fim absoluto78. [grifos nossos]

Para Koselleck, este trecho das aulas de Hegel demonstra “o quanto ele já

havia ultrapassado a racionalização do acaso, na forma em que ela se dera no

século anterior” e também “o quanto a coesão e a unidade teleológica da história

universal excluiu o acaso de maneira muito mais conseqüente do que jamais fora

possível ao Iluminismo”79. Se do ponto de vista do pensamento, os atos

revolucionários representavam a consagração dos ideais que alçavam o homem e

razão ao posto de irradiador dos movimentos do mundo, tal como difundido pela

filosofia Iluminista, em relação à história não seria diferente. Para tanto, bastava

banir qualquer possibilidade de considerar a Revolução como contingente,

77 KOSELLECK, “O acaso como resíduo de motivação historiográfica”, p.158 78 HEGEL, Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p.44. A tradução espanhola possui uma “Introdução Geral”, na qual se encontram trechos das aulas extraídos das anotações de alunos de Hegel que não constam na edição em português e nem na edição em alemão que consultamos. Quando nos referirmos a estes trechos, citaremos apenas a edição espanhola, já para trechos comuns, citaremos respectivamente a localização das páginas da versão em alemão, em português e em espanhol, tal como se encontra na nota de n° 20. 79 KOSELLECK, “O acaso como resíduo de motivação historiográfica”, p.159.

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ratificando o otimismo em relação ao futuro com base na idéia de progresso.

Ouvimos o eco da razão iluminista ressoar claramente no entusiasmo com que

Hegel saudou estes eventos que tiveram lugar na França ao final do século XVIII.

É o que se observa na passagem que se encontra na última parte de suas Lições

sobre a Filosofia da História:

Nunca, desde que o Sol começou a brilhar no firmamento e os planetas

começaram a girar ao seu redor se havia percebido que a existência do homem esta centrada em sua cabeça, isto é, no pensamento, a partir do qual ele constrói o mundo real. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o nous rege o mundo; mas só agora o homem percebeu que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Assim se deu um glorioso amanhecer. Todos os seres vivos pensantes comemoram essa época. Naquele período, reinou um sublime entusiasmo, um entusiasmo do espírito, que estremeceu o mundo como se só agora tivesse acontecido a verdadeira reconciliação do divino com o mundo80.

Hegel, como se pode notar, caminha pelo mesmo viés otimista adotado por

Kant. Mas, se ao avaliar os acontecimentos de 1789, Kant reivindicava a

necessidade de um fio condutor que fornecesse sentido ao aspecto contingente dos

atos humanos, Hegel estabeleceu esse fio condutor. Se Kant, mesmo sustentando

obstinadamente uma posição otimista, deixava de certo modo o futuro aberto à

indeterminação, Hegel fechou as portas do indeterminado ao postular uma

teleologia para a história. Note-se que, o fato de Kant não ter postulado uma

finalidade a priori para a história foi criticado por Hegel, pois segundo ele, teria

faltando a Kant uma compreensão mais aprofundada dos acontecimentos. Como

veremos adiante, uma vez afastadas as certezas teológicas, este é um momento em

que tanto a história como a modernidade necessitavam de fundamentação. Para

Hegel este era o papel da filosofia e daí a crítica a Kant. A este respeito comenta

Jürgen Habermas em O Discurso Filosófico da Modernidade:

Kant exprime o mundo moderno num edifício de pensamentos. Isto quer apenas dizer que na filosofia kantiana se refletem, tal como num espelho, os traços essenciais da sua época sem que Kant tivesse apreendido a modernidade como tal. É só retrospectivamente que Hegel pode compreender a filosofia kantiana como auto-interpretação determinante da modernidade; ele julga apreender

80G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p.529 (tr.pt., p. 366). Esta é uma passagem importante das lições de Hegel sobre filosofia da história, tanto que com freqüência aparece citada por comentadores de sua obra ao tratar da questão da Revolução Francesa. Como, por exemplo, em: Charles TAYLOR, Hegel, p.424. Luc FERRY, “Hegel.” In François FURET et Mona OZOUF. Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 966. Hanna ARENDT, “A solução de Hegel: a filosofia da História.” In A Vida do Espírito, p.220

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também mesmo o que ficou por compreender nessa obra, a expressão mais refletida da sua época.81

Posto desta forma, é possível aceitar que Hegel, ao instituir de forma

objetiva um télos para o processo histórico, acabava por abafar, ou eclipsar, a

questão da contingência, acrescentando um passo à concepção de história de Kant.

Portanto, se Kant hesitou em ceder um lugar para a história em sua filosofia

política, Hegel, por sua vez, a acomodou no primeiro plano da cena de seu sistema

filosófico, de tal maneira que à frente da história posta-se somente, é claro, a

filosofia. Para Hegel, a Revolução significava de fato a consagração do primado

da razão, a consumação definitiva dos preceitos iluministas. E mais: significava o

momento de efetivação do Espírito Absoluto – leia-se, a razão – no mundo, a

concretização do princípio central de seu sistema filosófico.

Hegel foi o primeiro filósofo moderno a atribuir à história um papel central

em um sistema filosófico. E estava ciente disto. Tanto que logo na apresentação

do curso sobre a filosofia da história, ao apresentar seu objeto – a filosofia da

história universal – ele entendia que não era necessário explicar o que era história,

nem tampouco o que era história universal. O que carecia de explicação para ele

era o fato do objeto do curso ser uma filosofia da história, ou seja, de pretender

dar à história um tratamento filosófico. Diz Hegel logo na apresentação do curso:

Senhores, o objeto destas lições é a filosofia da história universal. Não

necessito dizer o que é história, nem o que é história universal. A representação geral é suficiente e concordamos mais ou menos com ela. Mas o que pode surpreender, já no título destas lições e o que pode parecer carente de explicação, ou melhor, de justificação é que o objeto de nosso estudo seja uma filosofia da história universal e que pretendemos tratar filosoficamente a história.82

De acordo com Arendt, esta inserção da filosofia no domínio do histórico

dificilmente teria acontecido se não fosse o evento da Revolução Francesa. A

autora chega mesmo a afirmar que do ponto de vista teórico, o desdobramento

mais importante da Revolução foi o aparecimento do conceito moderno de

história segundo o molde da filosofia de Hegel. “A idéia revolucionária de

Hegel”, argumenta Arendt, “era de que o antigo absoluto dos filósofos se revelava

no domínio dos assuntos humanos, isto é, precisamente naquele domínio dos

assuntos humanos que os filósofos unanimemente tinham excluído como origem

81 Jürgen HABERMAS, O Discurso Filosófico da Modernidade, p.30. 82 HEGEL, Lecciones sobre la Filosofía de la Historia Universal, p.41.

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ou fonte dos moldes do absoluto” 83. É assim, então, que a história em Hegel

torna-se o lugar do desenvolvimento da razão. A razão necessita da história para

realmente acontecer. Dito de outro modo, a razão faz uso do curso da história para

efetivar o potencial presente em sua substância; para sair do plano especulativo e

tornar-se o que ela é. Em uma frase: no sistema filosófico hegeliano, a história

transforma-se na história da razão.

Em sua Filosofia do Direito, Hegel escreve um trecho dedicado à história

universal e nele apresenta os elementos através dos quais o Espírito se manifesta

no mundo. De acordo com o filósofo, na arte o Espírito se mostra como a

imaginação e intuição; na religião, mostra-se como sentimento e pensamento

representativo; na filosofia como pura liberdade de pensamento; e, na história

universal, manifesta-se como “realidade espiritual em ato, em toda a sua acepção:

interioridade e exterioridade.”84 Como se pode notar, penetramos lugares

especulativos que não são muito freqüentemente abordados por historiadores. O

nível de complexidade que salta aos olhos na aproximação da filosofia hegeliana,

faz lembrar das palavras de Alexander Koyré no início de artigo intitulado “Hegel

à Iena” 85. Nele, Koyré afirma que, de certa forma, é no mínimo intrigante que

com um pensamento tão “extraordinariamente difícil”, Hegel tenha se tornado um

verdadeiro mestre de toda uma geração, o chefe de uma escola cuja “influência,

no curso do século XIX, foi sem par tanto na Alemanha como no estrangeiro.”

Compartilhamos também com Koyré a descrição que ele faz do sentimento que se

tem ao encontrar com a filosofia de Hegel:

Dissemos em um outro lugar [referindo-se ao artigo de 1931], algumas razões que tornam Hegel tão difícil para nós. Dificuldades de linguagem; de terminologia; de atitude mental... Mas, existem outras. Talvez mais profundas ainda; mais íntimas. O pensamento de Hegel é muito abrupto. Ele vai aos saltos; e vê relações lá onde nós não chegamos a perceber. Ele passa por vias que, com bastante freqüência, para nós são impraticáveis, sem nos fazer ver porque ele as escolheu em

83 ARENDT, Sobre a Revolução, p.50. 84 Hegel, The Philosophy of Right, p. 110. Nos parágrafos 341 ao 360, Hegel apresenta um resumo de sua filosofia da história. 85Alexander KOYRÉ, “Hegel à Iena”, p.148. Koyré, que foi colega em Paris de Alexander Kojéve durante o tempo que este proferiu suas famosas aulas sobre a filosofia hegeliana, possui dois artigos que nos ajudaram consideravelmente a entrar, de algum modo, no universo do pensamento hegeliano. Um, talvez o mais significativo para este trabalho é este que já foi citado; o outro se chama “Note sur la langue et la terminologie hégéliennes.” Ambos foram publicados em periódicos em 1934 e 1931, respectivamente, e em 1961 por Koyré, juntamente com outros artigos de sua autoria no livro Études d’histoire de la pensée philosophique.

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preferência de outras. Na maioria das vezes, ele passa por caminhos que nos ficam desconhecidos.86

Em contrapartida à perplexidade que nos assalta ao nos depararmos com

esta filosofia, existe, ainda, o fato da relevância que o pensamento hegeliano

ocupa não apenas na história da filosofia, mas também em outras áreas do

conhecimento, como, por exemplo, a história. Neste aspecto, interessa recordar a

afirmação de um outro comentador importante da obra de Hegel, Walter

Kaufmann, segundo a qual “melhor maneira de entender muitos aspectos da

história intelectual a partir dos tempos de Hegel, é [tomá-la] como uma série de

rebeliões contra sua influência.”87 É de fato inegável que o pensamento do

filósofo constitui uma pedra angular na era moderna. Kaufmann enfatiza que

pensar a modernidade em sua relação com a filosofia hegeliana, ajuda no

entendimento de muitos dos seus movimentos E, acrescentaríamos,

especialmente, na compreensão da própria consolidação da moderna concepção de

história.

Decerto, a filosofia da Hegel constitui um campo complexo de reflexão,

que muitas vezes se mostra hermético, quando não soa mesmo paradoxal. No que

diz respeito à história, por exemplo, quando Hegel declara que história universal

equivale à “realidade espiritual em ato”, ou seja, equivale à história das

manifestações da razão no mundo, logo surge a pergunta sobre o porquê desta

necessidade. Por que a razão precisa ir até à história para efetivar-se? Pois, se a

razão constitui um princípio a priori e absoluto, que, portanto, basta a si própria –

sendo em si e por si tal como Hegel proclama na introdução de suas Lições sobre

a Filosofia da História88 – por que motivo ela precisaria do caminho histórico

para se concretizar? A razão, neste sentido, equivale ao fio condutor clamado por

Kant, e a história, para continuarmos com esta metáfora, é seu novelo. Mas,

insistimos em perguntar, por quê? As formulações de Hegel a este respeito não

facilitam a compreensão da relação entre razão e história. Sendo esta relação um

dos temas centrais da presente pesquisa89, consideramos importante elencar desde

86 Alexander KOYRÉ, “Hegel à Iena”, p.149. 87 Walter KAUFMANN, Hegel, p.278. 88Diz Hegel: “O racional é o que ser é em si e por si, mediante o qual tudo tem seu valor.” HEGEL, Lecciones sobre la Filosofía de la Historia Universal, p.44. 89 Cf. Capítulo 3 desta tese, “A primazia do futuro”.

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já alguns pontos centrais da filosofia da história na intenção de indicar, ao menos,

como é tratada a questão da contingência em Hegel.

Podemos considerar a conhecida concepção hegeliana de astúcia da razão

como “resposta” possível à pergunta sobre o porquê do recurso à história para a

realização dos pressupostos da razão. Hegel atribui o encontro entre razão e

história a um gesto de astúcia da razão, um artifício segundo o qual o Espírito

Absoluto “passeia” pelo mundo na intenção de tomar conhecimento de si próprio.

Assim, a razão, por uma questão da astúcia, vai à história em busca da consciência

de si mesma. Os homens, em suas paixões e ações – das quais a história resulta –,

funcionam como um veículo para a razão e, por este motivo, a afirmação da

ignorância humana em relação à verdadeira motivação de suas ações. Ao agir de

acordo com o que pensam e sentem, os homens estão, de fato, efetivando os

pressupostos da razão, de forma similar a que se dava com os pressupostos na

natureza na perspectiva histórica de Kant. Como lemos nas palavras do próprio

Hegel:

(...) na história universal, resulta das ações humanas algo além do que foi intencionado. Por meio de suas ações os seres humanos conseguem o que querem de imediato, Porém, ao concretizar seus interesses, eles realizam algo mais abrangente; algo que se oculta no interior de suas ações, mas que não está em sua consciência ou intenção.90

Tendo apontado o fundamento (a razão) e o caminho (a história), é preciso

assinalar, então, o meio, isto é, o modus operandi da realização da razão na

história, pois é neste ponto, especificamente, que figura o papel da contingência.

A razão se realiza na história através de um movimento dialético. A dialética

hegeliana, contudo, não é idêntica ao modelo pedagógico empregado na maiêutica

de Sócrates. No modelo clássico, firmava-se o argumento (tese) para em seguida

negá-lo (antítese), de modo a reafirmar o argumento inicial no embate dos dois

termos (síntese), constituindo a partir daí uma nova tese, da qual surgirá uma

antítese e, novamente, resultará uma síntese e assim sucessivamente sempre em

busca da obtenção da verdade. Já no método dialético de Hegel o terceiro termo

(síntese) não equivale ao retorno ao começo e sim à suprassunção (Aufhebung)91

90 HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p. 43-4. (tr.pt., p.31) 91 Aufheben, como afirma Walter Kaufmann, “já foi o desespero dos tradutores” de Hegel, pois “se trata de uma palavra corrente que pode significar ‘cancelar’ (e na utilização de Hegel quase sempre quer dizer ao menos isto), mas também pode significar ‘conservar’ e, em terceiro lugar, ‘elevar’; e muito frequentemente Hegel usa aufheben para sugerir os três sentidos ao mesmo tempo.” Walter

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da situação precedente. Assim, ao invés verificar-se o esquema afirmação-

negação-afirmação, na filosofia de Hegel, se dá a afirmação-negação-

suprassunção. Aqui, portanto, tal como no movimento da própria noção de

temporalidade da história na modernidade, a circularidade dá lugar a uma outra

forma, que, ainda que não configure diretamente uma linha reta, ao menos, se

apresenta como uma espiral. Espiral que, alavancada pela idéia de progresso

presente na forma de suprassunção dos termos, representa o avanço do Espírito no

percurso de sua efetivação. De estágio em estágio, a razão segue tomando

consciência de si até chegar ao reconhecimento pleno de sua própria essência.92

Tendo em vista o momento específico da Revolução, podemos propor o

seguinte exemplo para melhor compreensão da dialética histórica de Hegel: 1789

representaria o primeiro termo do movimento dialético, a tese; os eventos que

decorreram a partir daí – e que podem ser caracterizados como contingentes, uma

vez que pareciam escapar às vontades e ações revolucionárias –, representam o

elemento negativo, designando a antítese; e, por fim, a situação pós 1815,

caracterizada sobretudo pelo fortalecimento do Estado prussiano, como a

superação dos termos anteriores, equivaleria assim à síntese. É assim que, grosso

modo, podemos compreender a Revolução na visão hegeliana da história. “A

Revolução Francesa não era certamente um atraso” aos seus olhos, como diz

Charles Taylor, e sim “um evento histórico mundial que inaugurava a conclusão

do estado moderno.”93 Ao enquadrar o evento da Revolução no esteio da

necessidade histórica de realização do Espírito, Hegel neutralizava assim qualquer

aspecto de contingência que ela pudesse apresentar. Portanto, na dialética do

movimento da história hegeliana, a contingência havia se transformado em uma

necessidade à medida que representava um elemento negativo no processo. Sob o

prisma das categorias cunhadas por Koselleck de espaço de experiência e

horizonte de expectativa, entendemos que a filosofia da história de Hegel,

KAUFMANN, Hegel, p.45. Já Karl Löwih em seu artigo sobre Hegel fala em “elevação e transporte adiante” ao definir o termo. Karl LÖWITH, Meaning in History, p.54. Seguimos aqui a opção de Paulo Meneses, tradutor para o português da Fenomenologia do Espírito, e empregamos suprassumir (aufheben) e suprassunção (Aufhebung). 92Tal como veremos mais adiante, aqui reside uma questão paradoxal na filosofia da história de Hegel, pois se por princípio o progresso da humanidade é infinito, como seria possível que a neste movimento a razão alcance seu apogeu? O apogeu da razão neste sentido configuraria, portanto, o fim da história. Hegel, entretanto, não fala em fim da história, apesar de apontar o Estado moderno germânico pós-Revolução como este momento de apoteose da razão. 93 Charles TAYLOR, Hegel, p.424.

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promove a reconciliação entre as partes, reunindo esperanças e expectativas sob o

princípio e fim da razão.

Porém, esta forma de conceber a história é uma entre outras surgidas no

período da Revolução. Pois, se por um lado os eventos revolucionários foram

interpretados por alguns como um acontecimento necessário no processo

histórico, a exemplo de Hegel, por outro lado, havia quem tomasse as

circunstâncias deflagradas a partir de 1789 pela ótica senão do puramente

contingente, ao menos com ênfase na instabilidade da situação como algo que

reforçava o aspecto de contingência, estimulando, por sua vez, a sensação de

transitoriedade como marca da modernidade. Portanto, se o passado sustentava

alguma segurança, decorrente de séculos sob o jugo da monarquia, a nova

organização político-social tinha na transitoriedade de suas instituições um selo de

identidade. Os revolucionários franceses, sobretudo na década inicial, criaram

instituições e leis que freqüentemente vigoraram apenas em curto prazo. Assim,

do mesmo modo que parecia ter surgido na história de forma não prevista, a

revolução também parecia seguir seu curso pelo caminho marcado pela

indeterminação no que tange aos desdobramentos futuros. Mantém-se, nesta

perspectiva, a noção de necessidade histórica na idéia de que a Revolução é

detentora de uma força singular que se impõe sobre os homens arrastando seus

destinos, sem, contudo, determinar-se um fim último para os eventos. E é nesta

chave procuraremos compreender a perspectiva do historiador da Basiléia sobre a

história.

O tom de Burckhardt ao tratar da Revolução nos cursos ministrados na

Universidade da Basiléia a partir de 1867 é explicitamente distinto daquele com

que décadas antes o filósofo da história saudara os mesmos acontecimentos. Ao

invés da euforia observada em Hegel, ouvimos, na fala de Burckhardt, um tom de

grave de preocupação, muitas vezes pessimista94, de quem observava com reserva

o desenrolar dos acontecimentos. Lemos logo no início da aula de 6 de novembro

de 1867:

O tempo no qual este curso se realiza modifica-se a cada vez, por isso ele é como nenhum outro curso. Ele se ocupa com o começo do que ainda está ativo e

94 A este respeito diz Thomas Howard: “Em nenhum outro lugar, os comentários de Burckhardt são mais caracteristicamente pessimistas que em sua declamação contra a civilização européia que veio a existência depois da Revolução Francesa.” Thomas HOWARD, Religion and the Rise of Historicism, p.162-3.

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continuará assim, com a era mundial cujo desenvolvimento nós não sabemos ainda. Neste exato momento, os eventos estão sendo moldados e, no horizonte, num futuro próximo ou distante, há uma grande guerra européia como conseqüência de tudo que aconteceu antes.95

A Revolução, portanto, não representava o símbolo de efetivação de um

processo, nem tampouco se restringia aos acontecimentos subseqüentes a 1789.

Quase oitenta anos depois da tomada da Bastilha, a Europa ainda vivia de acordo

com o movimento outrora principiado e que, segundo Burckhardt, não dava

mostras de estar chegando ao fim: ao contrário, uma guerra decorrente do

caminho tomado pelos acontecimentos estava prestes a acontecer. E de fato

aconteceu, quatro anos mais tarde, com a eclosão da Guerra Franco-Prussiana. Por

ocasião da apresentação deste mesmo curso no outono de 1871, Burckhardt

confirmava o anúncio que a era da Revolução ainda estava em andamento e que

aquilo que se viveu tinha sido tão somente o “primeiro ato” de um grande drama

ainda em cartaz, cujos trinta anos de “aparente calmaria” entre 1815 e 1848

significaram apenas um entreato. “Nestas três décadas em que nascemos e

crescemos”, afirmava Burckhardt, “foi possível acreditar que a revolução era algo

terminado” e, mais ainda, se acreditou que uma “ponte entre o velho e o novo”

havia sido erguida através do estabelecimento da monarquia constitucional.96

Contudo, “agora (...) nós sabemos que a mesma tempestade que sacudiu a

humanidade desde 1789 também nos atinge de frente.”97

Mas não era estritamente a ameaça de guerra que o preocupava. A guerra,

que em sua opinião é sempre mestra da violência98, representa apenas um aspecto

da crise pela qual passava a Europa, a “grande crise da cultura moderna”

começada no século XVIII e que prosseguia “desde 1815 em passos largos”99. E

esta crise sim era o foco da apreensão de Burckhardt. É fato que, no entendimento

do historiador, as crises de um modo geral são movimentos integrantes e

fundamentais na história, pois se caracterizam pela fusão do antigo com o novo,

sendo responsáveis desta forma pela renovação da vida. Contudo, a gravidade

manifesta nas considerações sobre sua época residia no fato da Revolução apontar

95 Jacob BURCKHARDT, Historische Fragmente (de agora em diante HF), p.195. (Na versão em inglês Judgements on History and Historians, de agora em diante JHH, p.217.) 96 Id, HF, p.200 (JHH, p.224) 97 Id., HF p.201 (JHH,p.225) 98 Id., Weltgeschichtliche Betrachtungen (de agora em diante WB), p.274. (Na versão em espanhol Reflexiones sobre la Historia Universal, (de agora em diante RHU), p.203. 99 Id., WB, p.211-13. (JHH, p.183)

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para a possibilidade de falência da tradição diante do novo, representando a

emergência de uma circunstância onde o passado seria destituído de sua

importância. Ou seja, a Revolução Francesa equivaleria ao surgimento de uma

situação marcada pela perda de referência na tradição. Burckhardt pensava desta

maneira não por ter se impressionado com a radicalidade do novo. Pois, a este

respeito, seu pensamento se aproxima da avaliação de Tocqueville em O Antigo

Regime e a Revolução na qual apesar do grande empenho em se afastar da

tradição, os revolucionários franceses não foram totalmente bem sucedidos e, com

o passar do tempo, os traços de permanência foram se mostrando cada vez mais

evidentes100. O que preocupava Burckhardt era a instabilidade que a tudo rondava,

inclusive às próprias instituições e leis pós-revolucionárias. Tamanha

instabilidade fez do sentimento de provisório (das Gefühl des Provisorischen)

uma constante, transformando-se, segundo Burckhardt, no principal fenômeno de

então101. Neste quadro, não só se plantava na vida de cada individuo a semente da

incerteza acerca de seu próprio destino, como também se postulava para a história

o desafio de seguir fornecendo um conhecimento do passado que fosse relevante

para a vida.

Burckhardt, diante da transitoriedade das circunstâncias, mostrava-se

ciente do esvaziamento de sentido da validade exemplar que o topos historia

magistra vitae tradicionalmente proporcionava e julgava necessário transformar o

conhecimento histórico em um modo distinto de saber. Compreendia que o

ceticismo era inevitável em um mundo onde os começos e o fim estavam em

constante movimento e, por isso mesmo, os homens eram desafiados a dar à frase

“‘a história é mestra da vida’ um significado superior e ao mesmo tempo mais

100 Alexis de TOCQUEVILLE, O Antigo Regime e a Revolução. Diz Tocqueville: “Os franceses fizeram em 1789, o maior esforço no qual povo algum jamais se empenhou para cortar seu destino em dois, por assim dizer, e separar por um abismo o que tinham sido até então do que queriam ser de agora em diante. Com esta finalidade tomaram toda espécie de precauções para que nada do passado sobrevivesse em sua nova condição e impuseram-se toda espécie de coerções para moldar-se de uma outra maneira que seus pais, tornando-se irreconhecíveis. Sempre achei que foram muito menos bem sucedidos neste empreendimento do que se pensava lá fora e de que eles próprios pensavam no início. Eu tinha a convicção de que, sem sabê-lo, retiveram do antigo regime a melhor parte dos sentimentos, dos hábitos e das próprias idéias que os levaram a conduzir a Revolução que o destruiu e que, sem querer, serviram-se de seus destroços para construir o edifício da nova sociedade.” p. 44. 101 BURCKHARDT, HF, p.195 (JHH, p.218).

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modesto. Se trata de ser, graças à experiência, mais prudentes (para uma outra

vez) e mais sábios (para sempre).”102

Detentor de uma postura crítica em relação ao rumo dos acontecimentos,

Burckhardt via na história e, por extensão, no papel desempenhado por ele e seus

pares, elementos decisivos para resistir ao “turbilhão” que atingia todas as esferas

da vida moderna. Com respeito especificamente ao cânone historiográfico vigente,

para ele a escrita da história não poderia mais seguir mostrando, com reverência,

como tudo contribui para um suposto grande desígnio histórico, em uma alusão à

história política realizada por seu antigo professor Leopold von Ranke103. Em

realidade, este posicionamento justificaria em grande parte sua opção pela

historiografia da cultura, tal como desenvolvemos A História da Cultura como

Crítica à Modernidade104, dissertação de mestrado defendida no ano de 2001. Ali

tínhamos como argumento central a idéia de que Burckhardt, ao optar por ser um

historiador da cultura, mais que uma mudança no enfoque metodológico, realizava

uma crítica aos valores da época e, também, uma tentativa de garantir a

continuidade da tradição européia da qual ele acreditava ser um dos últimos

representantes. Nesta perspectiva, tornou-se possível compreender história da

cultura de Burckhardt como uma forma de lutar, de criticar e de resistir contra a

instabilidade que rondava seu tempo. Era a forma que encontrara de garantir

alguma permanência para além da experiência da crise e da descontinuidade,

como podemos ler na carta enviada a seu amigo Friedrich von Preen na véspera

do Ano Novo de 1870, alguns meses após a eclosão da guerra franco-prussiana.

Nela, Burckhardt fez uma avaliação do momento e afirmava a abordagem

histórico-cultural como a melhor maneira de lidar com passado. Diz ele: O que não aconteceu nos últimos três meses! Quem poderia imaginar que

a batalha iria prolongar-se por este horrível inverno, sem dar sinais de acabar ainda no último dia do ano? Lembrar-me-ei do fim deste ano por toda minha

102 Id., WB, p.51 103 Diz Ranke em As Grandes Potências: “(...) a História Universal não apresenta apenas o espetáculo de combates fortuitos, ataques recíprocos, Estados e povos se sucedem, como pode parecer à primeira vista. Nem consiste apenas na imposição tantas vezes duvidosas de valores da cultura. O que vemos evoluir são forças, espirituais em verdade, forças geradoras da vida, forças criadores e, em suma, a própria vida. São energias morais. Não podem ser definidas por meio de abstrações, mas contempladas e captadas; podemos senti-las e compreendê-las. Elas florescem, conquistam o mundo, manifestam-se em múltiplas expressões, entrechocam-se, defendem-se, subjugam-se umas as outras, em seu agir e seu reagir em seu viver (...). Aqui está o segredo da História Universal.” Leopold von RANKE, “As Grandes Potências”, in História, p.179. 104 Janaína Pereira de OLIVEIRA, A História da Cultura como Crítica à Modernidade: Jacob Burckhardt e a Historiografia do Século XIX, dissertação de mestrado defendida em abril de 2001.

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vida! E não por causa do meu próprio destino. Os dois povos intelectualmente mais importantes do continente estão degradando suas culturas, e uma enorme porção de tudo que encantava e interessava a homem antes de 1870 dificilmente comoverá o homem de 1871 – mas que tremendo espetáculo se um mundo novo nascer de tanto sofrimento. (...) O pior de tudo isso não é a guerra atual, mas a era de guerras em que entramos, e à qual a nova mentalidade terá de adaptar-se. (...) Qualquer coisa capaz de continuar existindo deve conter uma boa porção de eterno. E se qualquer coisa duradoura vier a ser criada, isso só poderá acontecer através de um esforço sobre-humano da verdadeira poesia. Como professor de história, dei-me conta de um fenômeno muito curioso: a súbita desvalorização de todos os meros “acontecimentos” do passado. De agora em diante, em minhas aulas, enfatizarei a história cultural, e manterei apenas, da estrutura externa, o que for absolutamente indispensável. Pense um pouco em todas as batalhas mortas e sepultadas nos cadernos de anotações de todos Viri Eruditissimi em suas cátedras universitárias! Felizmente para mim, nunca me aprofundei muito nesse tipo de coisa.105

Cidadão da Basiléia, última cidade estado da Europa a resistir às ondas de

unificação e anexação pela qual passava a Europa, Burckhardt crescera em um

ambiente cosmopolita de extrema valorização dos preceitos humanistas, nos quais

a formação dos homens é o elemento central para a criação e manutenção da

cultura. Na realidade, a relação existente na triangulação cidade-estado da Basiléia

(Kleinstaat)106, cultura (Kultur) e formação individual (Bildung)107 é vital para a

compreensão tanto da visão que Burckhardt possuía sobre seu tempo, como da sua

concepção de história e sua opção pela historiografia da cultura. Este é um ponto

crucial que apenas alguns poucos comentadores de sua obra e até da historiografia

dos Oitocentos levam em conta. Entre aqueles que chamam a atenção para esta

chave interpretativa da obra de Burckhardt a partir de sua relação com a sua terra

natal, está Friedrich Meinecke, historiador mais conhecido da tradição historicista

no século XX, que em um artigo de 1947, intitulado “Ranke e Burckhardt” sugere,

entre outras coisas, que

Alguém, algum dia, deveria fazer um livro sobre Berlim e Basiléia – suas [de Ranke e Burckhardt] cidades – na era da fundação do Reich de Bismarck, indicando como os estudiosos destas duas cidades, tendo levado suas realizações

105 BURCKHARDT, Brife, p.293-5 (Cartas, p. 276-7) 106 Literalmente estado pequeno. 107 Sobre a relação entre Kultur e Bildung, ver: Raymond GEUSS, “Kultur, Bildung¸ Geist”; Rosana SUAREZ, “Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural).” Neste artigo, Suarez apresenta o conceito de Bildung com base nas cinco etapas apontadas e desenvolvidas por Antoine Berman em “Bildung et Bildungsroman”, são elas: Bildung como trabalho, como viagem, como tradução, como viagem à Antiguidade e como prática filológica. Infelizmente, não tivemos acesso direto ao artigo de Berman, mas vale deixar registrada a referência: Antoine BERMAN,“Bildung et Bildungsroman”, Le Temps de la Refléxion, v.4, Paris, 1984.

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a um ponto de culminação, entraram em um conflito mútuo. (...) Um livro como esse pode se tornar um símbolo de nosso destino espiritual108. Já havíamos caminhado nesta linha interpretativa quando da realização da

dissertação de mestrado, uma vez que, naquela ocasião, a comparação entre as

concepções de história de Ranke e Burckhardt, desejávamos escapar à tradicional

linha de abordagem dessas perspectivas históricas a partir das diferenças

metodológicas entre história política e história cultural. Agora, no estudo que se

apresenta, a relação de Burckhardt com a Basiléia também constitui parte central

da argumentação no intuito de aprofundarmos a compreensão acerca de sua

perspectiva histórica e historiográfica. A este respeito, é suficiente, por ora, que

tenhamos em mente a idéia de que Burckhardt fora fortemente influenciado pelos

ideais neo-humanistas que determinavam a educação na Basiléia. Ideais que estão

na origem da perspectiva de valorização da cultura e do indivíduo adotada por

Burckhardt, e, também, estão presentes na sua preocupação com os eventos da

história recente. Pois, segundo sua compreensão do momento em que vivia, dos

desdobramentos da Revolução Francesa, isto é, da conjunção entre militarização

dos Estados e o nacionalismo exacerbado, da associação entre uma opinião

pública formada por pontos de vista homogeneizados e o processo de

industrialização modificador da paisagem e dos costumes, não poderia resultar

outra coisa senão a alienação e “domesticação” deste indivíduo. E aqui se mostra

a importância que a concepção de Bildung, compreendida aqui como processo de

formação109, exerce na reflexão do historiador: a Bildung atua como um fator

108 Friedrich MEINECKE, “Ranke and Burckhardt”, p.142. Também se aproximam deste viés interpretativo sobre a obra de Burckhardt, as análises de Lionel Gossman, John Hinde e Thomas Howard. Gossman possui, inclusive, um capítulo homônimo em seu livro “Basel in the age of Burckhardt.” E, ainda que neste trecho do livro Gossman não “execute” exatamente a sugestão interpretativa de Meinecke – pois o que ele faz é mais uma espécie de analise da questão incluindo a perspectiva apresentada no próprio artigo de Meinecke –, podemos afirmar que a relação de Burckhardt com a Basiléia encontra-se na base de seus estudos sobre a obra do historiador da cultura, mais do que em nenhum outro comentador. É preciso lembra que antes de Meinecke, Werner Kaegi, autor da biografia de Buckhardt em sete volumes, proferiu em 1938 três conferencias em Lucerna sob o título de Der Kleinstaat im europäischen Denken (O pequeno estado no pensamento Europeu), nas quais também assinala a importância do pequeno estado na obra de Burckhardt, “um fio vermelho” que, em sua opinião, atravessa toda a obra do historiador. Werner KAEGI, Der Kleinstaat im europäischen Denken, apud Cássio FERNANDES, A Figura do Homem entre Palavra e Imagem, p.196 e ss. 109 Nos baseamos aqui, sobretudo, na ênfase pedagógica fornecida pela seguinte definição de Antoine Berman: “A palavra alemã Bildung significa genericamente, ‘cultura’ e pode ser considerado o duplo germânico da palavra Kultur, de origem latina. Porém, Bildung remete a vários outros registros, em virtude, antes de tudo, de seu riquíssimo campo semântico: Bild, imagem, Einbildungskraft, imaginação, Ausbildung, desenvolvimento, Bildsamkeit, flexibilidade ou plasticidade, Vorbild, modelo, Nachbild, cópia, e Urbild, arquétipo. Utilizamos Bildung para

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decisivo no estabelecimento da relação moderna entre indivíduo e cultura. Assim,

“em uma era na qual tanto a mente quanto o corpo estavam sendo incrivelmente

conduzidos por uma sociedade que estava refinando seus controles sobre o

sujeito”110, a formação individual se transformava em uma fonte genuína para

liberdade individual. Liberdade esta que, por sua vez, Burckhardt pensava ser

possível somente no interior de um estado que não se impusesse coercitivamente

na vida de seus cidadãos. Daí a defesa que Burckhardt faz de estados menores

como locais mais adequados para a vida individual e a manutenção da cultura. O

historiador tinha claro que não era possível formar-se livremente no interior de um

estado centralizado, com forte militarismo, cuja existência guiava-se pelo foco na

expansão territorial e na consolidação enquanto potência internacional. “Estados

pequenos existem tão somente enquanto nenhum homem mais forte permite a

outro homem mais forte possuí-lo”111, diz Burckhardt, relacionando assim os

estados menores o surgimento de figuras centralizadoras e usurpadoras do poder

(podemos pensar aqui, por exemplo, em Napoleão III e Bismarck), os “terribles

simplificateurs.” Não há dúvida de que, neste aspecto, a base de sua argumentação

reside na comparação da rotina na pacata Basiléia, sobretudo antes da grande onda

de industrialização que a atingiria após meados do século, com as mudanças

ocorridas, sobretudo, no estado prussiano no mesmo período.

Para Burckhardt, a Revolução era resultado de uma série de questões e

posicionamentos postos para humanidade pelo século XVIII, e seus

desenvolvimentos indubitavelmente passaram a integrar consciência dos homens.

E é nesta conexão com os postulados do século XVIII que se encontra a chave

para a compreensão da crítica e do distanciamento burckhardtiano em relação ao

pensamento dominante em seu tempo, uma vez que, para Burckhardt, toda a

mudança e novidade não implicavam em um progresso necessário do homem na

história. De fato, para ele as noções de progresso e perfectibilidade da

humanidade, em que se baseiam as afirmações sobre a superioridade da época

falar no grau de ‘formação’ de um indivíduo, um povo, uma língua, uma arte: e é a partir do horizonte da arte que se determina, no mais das vezes, Bildung. Sobretudo, a palavra alemã tem uma forte conotação pedagógica e designa a formação como processo. Por exemplo, os anos de juventude de Wilhelm Meister, no romance de Goethe, são seus Lehrjahre, seus anos de aprendizado, onde ele aprende somente uma coisa, sem dúvida decisiva: aprende a formar-se (sich bilden).” (grifos do autor) Antoine BERMAN, “Bildung et Bildungsroman”, p.142, apud Rosane SUAREZ, Op.Cit, p. 2. 110 HINDE, Op. cit., p. 136. 111 BURCKHARDT, HF, p. (JHH, p.241)

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moderna em detrimento das anteriores, representavam as piores criações

realizadas pelo século XVIII. “O grande dano”, afirmava, “teve início no século

passado, principalmente através de Rousseau, com sua doutrina da natureza

humana”, desde então,

a idéia da bondade natural do homem transformou-se, entre o estrato inteligente da Europa, na idéia de progresso, isto é, fazer dinheiro e desfrutar dos confortos modernos sem preocupação, com a filantropia para acalmar a consciência. (...) A única saída concebível seria que esse insano otimismo, em maior ou menor grau, desaparecesse do cérebro das pessoas.112

Se fosse possível apontar um responsável pelo “insano otimismo” que

passa a habitar o cotidiano, na opinião de Burckhardt, esse alguém seria

Rousseau. Em verdade, na maioria das vezes em que trata da questão do

progresso, seja em suas palestras ou nas cartas, o historiador comenta

negativamente os fundamentos da filosofia contratualista rousseuniana.

Burckhardt compreende que a natureza humana não é necessariamente boa em sua

origem113 e, com base nisto, entende que Rousseau permaneceu, todavia, um

utópico num mundo onde a “maioria dos desejos são materiais por natureza”,

onde as pessoas estão prontamente dispostas a esquecer os objetivos ideais

postulados pelo contratualismo ao gênero humano (“genre humain”, diz

Burckhardt, não sem ironia).114 Portanto, ao criticar esta “vontade otimista”, fonte

da esperança de que as mudanças trariam “um crescente e definitivo bem-

estar”115, Burckhardt se afastava da opinião geral que seu tempo tinha sobre si

mesmo. Mas não só com relação ao progresso e a noção de perfectibilidade que

Burckhardt se distancia de seus contemporâneos: também recusava qualquer

postulado a priori, qualquer espécie de sentido e finalidade impostos por preceitos

filosóficos à história. Assim, talvez com mais veemência do que quando dirigia

suas críticas ao contratualismo de Rousseau, Burckhardt negava a filosofia da

história de matriz hegeliana. Para ele, a crença em valores absolutos e no

progresso parecia a expressão última não apenas da condescendência do indivíduo

112 Carta a Von Preen de 02 de Julho de 1871. BURCKHARDT, Briefe, p.302. (Cartas, p.280-1). 113 Pois, a este respeito, como nos alerta Thomas Howard, ainda marcado por sua formação religiosa, Burckhardt percebe a natureza humana ainda na perspectiva do pecado original.Thomas HOWARD, “History without centaurs”, in Op. cit, p.137-169. 114 BURCKHARDT, HF, p. (JHH, p.230) 115 Ibid.

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moderno com o passado, mas também a presunção da era moderna116,

constituindo um erro compreender seu tempo como a realização de todos os

tempos, sendo igualmente equivocado afirmar que tudo que aconteceu

anteriormente na história tenha sido em virtude do presente e do futuro.117

Declaradamente avesso a qualquer tipo de especulação filosófica – tendo

reiterado algumas vezes julgar-se incapaz de pensamentos desta natureza –,

Burckhardt, assim como Ranke118, compreendia que o conhecimento histórico não

poderia ser de modo algum dado a priori. Por isso, afirmava que a filosofia da

história constituía “uma espécie de centauro, uma contradictio in adjecto

[contradição em termos], pois a história, ou seja, a coordenação, não é filosofia, e

a filosofia, ou seja, a subordinação, não é história.”119 Enquanto os filósofos

interpretam o passado como “antítese” e etapa anterior na evolução da

humanidade, Burckhardt considera que o historiador deve voltar-se para a história

com um olhar que ao mesmo tempo em que aceita a singularidade dos

acontecimentos, assume a tarefa de, ainda assim, buscar ali o que há de constante

e típico. Pois, ainda que os eventos sejam únicos, eles são frutos das ações do

homem que, por seu turno, constitui o único ponto de partida permanente e

possível para o estudo da história. É neste sentido que ele afirma que seu método

histórico é de certa maneira “patológico”, pois o que lhe interessa contemplar é o

“homem que sofre, aspira e atua; o homem tal como é, como foi sempre e sempre

será.”120

Tendo em vista esta primeira abordagem da obra de Burckhardt, podemos

afirmar seguramente que ele postava-se na contracorrente de seu tempo.

Definitivamente, o historiador da Basiléia não se alinhava à perspectiva comum à

maioria de seus contemporâneos segundo a qual o século XIX era tomando como

o melhor dos tempos, como o estágio mais avançado da humanidade, como a

apoteose da realização de um princípio a priori, ou mesmo como um momento

positivo na história universal. “O espírito já estava completo há muito!”121,

ironizava o historiador. Para Burckhardt, se fosse o caso de estabelecer momentos

116 John R. HINDE, Jacob Burckhardt and the Crisis of Modernity, p.164. 117 BURCKHARDT, WB, p. 45 (RHU, p.45) 118“Todas as minhas conclusões são a posteriori”, afirmou Ranke em carta datada de 28/12/1823. Apud Leonard KRIEGER, Ranke: The Meaning of History, p.6. 119 BURCKHARDT, WB, p. 44 (RHU, p.43) 120 Id., WB, p. 45 (RHU, p.46) 121 “Der Geist war schon früh komplett!.” Ibid., p.375. (RHU. 315).

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de apogeu da história universal, certamente ele escolheria entre o Renascimento,

ou a Antiguidade, ou mesmo qualquer outro período de florescimento da cultura,

mas não o seu próprio tempo.

Portanto, tendo em vista a recusa do progresso e do sentido a priori como

determinações absolutas para a história, é possível perceber que o que Burckhardt

via na Revolução não era seu aspecto enquanto elemento necessário, seja para

confirmação do avanço da humanidade em direção ao melhor, seja para a

efetivação do espírito na história, e sim, a marca da contingência e da

descontinuidade que permeia os eventos históricos. Assim, ao invés de se

justificar como necessidade, isto é, como elemento necessário para e no

desenvolvimento histórico, a Revolução, na concepção de Burckhardt impunha

um necessidade: a de restabelecer a relação do presente com o passado. Em outras

palavras, Revolução Francesa colocava a necessidade de (re)afirmar a

continuidade da história com base em uma outra relação com o conhecimento

histórico. Se Kant via na Revolução o símbolo histórico da existência contínua da

noção de progresso; se Hegel a saudava como a consolidação dos pressupostos da

razão; se Ranke a entendia como um evento, antes de mais nada, peculiar daquele

país, tal como ele expressou em sua História da França, na mesma medida que a

Revolução Industrial fora um fenômeno caracteristicamente inglês; para

Burckhardt a Revolução manifestava a contingência percebida na transitoriedade

dos fenômenos. Nos termos das categorias epistemológicas de Koselleck,

Burckhardt sentira, com toda a força e angústia, o que uma ruptura dessa ordem

pode causar: o descompasso entre experiências e expectativas, entre o passado e o

presente. E, desta forma, a continuidade histórica se instala no cerne de suas

preocupações acerca da história como conhecimento.

Tanto que muito antes do despontar do Reich de Bismarck, Burckhardt já

fizera da continuidade histórica o eixo de suas preocupações, se posicionando em

favor da preservação da tradição e da cultura. Em sua juventude, durante um

período de um ano e meio, ele tivera a oportunidade de experimentar uma forma

mais ativa de participação política. Burckhardt atuara neste tempo como editor de

um importante jornal conservador local, o Basler Zeitung, e tinha como obrigação

acompanhar de perto os conflitos políticos que então ocorriam na Basiléia, cujos

desdobramentos cerca de três anos depois resultariam numa guerra civil e,

posteriormente, na separação da área rural da área urbana do cantão. A

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experiência como editor não lhe estimulara em nada a ingressar no mundo da

política. Ao contrário, convencera-o de vez que agir tão perto desta esfera não era

para ele. Nesse período, ele havia se tornado também professor honorário da

Universidade da Basiléia, atividade da qual realmente gostava e motivo pelo qual

reclamava que o trabalho jornalístico tomava por demais o tempo que deveria ser

reservado ao estudo. Assim, ele trabalhou no jornal tempo apenas tempo

suficiente para juntar algum dinheiro e poder viajar para a Itália por alguns meses.

Dizia então estar cansado do presente e que ansiava por se ver livre de toda

espécie de “-ismos” e “-istas” que o rondavam.122 Sabia muito bem que esta

atitude não seria bem interpretada por seus concidadãos, mas não se importava.

“Liberdade e Estado não perderam nada comigo. Estados não são construídos por

homens como eu”, afirmava.123 Julgava que seria mais útil em sua terra natal após

passado o momento de conturbação. E estava tão cônscio a este respeito que em

uma carta escrita em 1846, então com 28 anos, Burckhardt tentava dissuadir seu

amigo Hermann Schauenburg de qualquer espécie de militância política. “Livre-se

dessas ilusões Hermann!”, insistia Burckhardt, “depois da tempestade uma nova

existência surgirá, erguida sobre velhas e novas fundações; este é o seu lugar, e

não na linha de frente de ações irresponsáveis. Nosso destino é ajudar a construir

mais uma vez quando a crise tiver passado.”124

Burckhardt posicionava-se, então, não no front, mas na retaguarda dos

eventos que agitavam a Europa nos Oitocentos. Ele pressentia a mudança e a

necessidade de resistir. Assim sendo, mais do que uma mudança de enfoque, a

história da cultura representava para historiador da Basiléia, como sintetiza Lionel

Gossman, “um kit de sobrevivência para tempos difíceis”, uma forma de

salvaguardar o que fosse da ordem do “essencialmente humano e humanamente

essencial” a respeito do passado e da tradição.125 E, provavelmente em razão da

emergência dos valores que presenciava na modernidade, ele recusava-se a

valorizar uma vida acadêmica stricto sensu, fato que o fez declinar alguns

convites para lecionar em universidades que lhe renderiam muito mais prestígio e 122Em carta de 28 de fevereiro de 1846, lemos: “Sim, eu quero escapar de todos eles, dos radicais, dos comunistas, dos industrialistas, dos intelectuais, dos pretensiosos, dos racionais, dos abstratos, do absoluto, dos filósofos, dos sofistas, dos fanáticos pelo Estado, dos idealistas, dos ‘istas’ e ‘ismos’ de todo tipo.” In BURCKHARDT, Briefe, pp.143-4 (Cartas, p. 198). 123Idem, p.199 124Idem, p.200-1.[grifos nossos] 125 Lionel GOSSMAN, “Cultural History and Crisis: Burckhardt’s Civilization of the Renaissance in Italy”, in Michael ROTH (org.) Rediscovering History, p.427.

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fama. Em nenhum momento, desejou juntar-se àqueles que, ironicamente,

chamava de Viri Eruditissimi. Regozijava-se com as aulas e, principalmente, com

as palestras proferidas para uma audiência diversificada, não necessariamente

acadêmica. Burckhardt era, sobretudo, um professor de história e era assim que

travaria sua batalha contra o esquecimento do passado.

* * *

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3 A primazia do futuro: continuidade e reconciliação na filosofia da história de Hegel 3.1 O sentido trágico da modernidade: a solução estética de Hölderlin

Por três vezes o poeta alemão Friedrich Hölderlin tentou escrever uma

tragédia moderna e não conseguiu. Às tentativas, reunidas em sob o título de

Fundamento para Empédocles, seguiram-se as traduções das tragédias de

Sófocles Édipo-Rei e Antígona, e dois textos onde o poeta refletia acerca da

questão do trágico e seu efeito, intitulados Observações sobre o Édipo e

Observações sobre a Antígona. Estes escritos não são de fácil compreensão, seja

pela complexidade do que é proposto, seja pelo fato do próprio Hölderlin ter

deixado inacabada a maioria de suas considerações. A tarefa de ler estes textos

curtos e consideravelmente herméticos é, porém, válida: nesses escritos encontra-

se uma concepção de modernidade que acreditamos proporcionar um caminho

interessante para a compreensão do cenário no qual se forma a filosofia hegeliana

e sua posterior guinada em direção à história.

Hölderlin e Hegel foram colegas no Seminário de Tübingen, juntamente

com Schelling.1 Através de Hölderlin, Hegel saiu do isolamento imposto por sua

primeira ocupação como preceptor após a saída do Seminário, em Berna. Em

1796, o poeta lhe conseguiu uma colocação em Frankfurt que, embora não fosse

um centro acadêmico tão prestigioso como o eram Iena ou Weimer, era já um

posto que proporcionaria um grau maior de interlocução. A função, obtida através

da influência do dono da casa onde Hölderlin era também preceptor, o banqueiro

Gontard – cuja esposa, Susette, fora o grande amor da vida do poeta e sua

inspiração para a personagem Diotima que vemos no romance de formação

1Segundo se conta, inflamados pela Revolução Francesa, em Julho de 1792, Hegel, Hölderlin e Schelling, que havia acabado de traduzir La Marselhesa para o alemão, teriam plantado uma árvore como emblema da Liberdade apregoada pela Revolução, em um campo próximo ao Stift, E, mesmo que não se saiba se a história é ou não verídica, ela ilustra bem a disposição política que possuíam à época, diz-se mesmo que Hegel e Hölderlin eram chamados de “jacobinos toscos” por seus opositores.

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[Bildungsroman] Hyperion2 – estreitou os laços de amizade entre os ex-colegas

seminaristas. Nesta época os dois partilhavam os mesmos conflitos sobre as

questões que figuravam no cerne da modernidade, sobretudo, acerca da aspiração

à totalidade, encarnada, especialmente, na relação entre o humano e o divino, tal

como veremos a seguir.

Hölderlin abordou o tema da modernidade exclusivamente em sua relação

com a Antigüidade clássica. Françoise Dastur3 afirma que inicialmente temos a

impressão de tratar-se de uma volta à “Querela dos Antigos e Modernos”,

ocorrida na final do século XVII e retomada na Alemanha do século XVIII no

período denominado Sturm und Drang. De forma bastante sintética, pode-se dizer

que o centro da contenda consistia em decidir acerca da questão da imitação ou

não dos gregos. De um lado, estavam os defensores da Antigüidade como

parâmetro ideal da arte considerando-se que aquele momento representava o

apogeu na história da realização estética, de outro lado, aqueles que defendiam os

progressos e inovações da modernidade como sinais de um período independente

do passado clássico. Segundo Philippe Lacoue-Labarthe, a imitação dos gregos

configurava um fantasma à época que Hölderlin começara a escrever. “Em

nenhum outro lugar”, afirma Lacoue-Labarthe, “os gregos foram a tal ponto uma

obsessão. As Luzes, na Alemanha pensante dos anos noventa, em virtude dessa

sombra trazida dos gregos para um mundo socialmente cortado, rígido e fechado,

são antes crepusculares.”4

2 Hölderlin, Hipérion, ou, o Eremita na Grécia. Petrópólis: Ed. Vozes, 1994. Hölderlin e Susette, segundo se conta, separaram-se pela primeira vez em 1798, pois Hölderlin fora obrigado a deixar a casa dos Gontard. Os dois continuaram se encontrando secretamente por mais dois anos e já nesta época o poeta começava a manifestar sintomas de uma desordem mental, um estado de demetia precox, tal como foi diagnosticado à época. Seu estado agravou-se com o afastamento de Susette. No final de 1801, Hölderlin partiu em viagem a pé para França e lá tornou-se preceptor na casa do cônsul de Hamburgo em Bordeaux. A estadia, contudo, durou menos de um ano e Hölderlin retornou para casa de sua mãe em Nürtingen, apresentando sinais de alteração mental. No mês seguinte à sua volta, tomou conhecimento da morte de Susette. A partir daí os sintomas da doença se tornaram ainda mais sérios e, com o tempo, impediram a seqüência de seu trabalho intelectual. Em 1807, como resultado da doença, Hölderlin passou a viver (como pensionista) sob os cuidados de Ernest Zimmer, um marceneiro de Tübingen e fã de Hipérion. Hölderlin ficou ali o restante de sua vida – exatos trinta e seis anos –, vivendo em uma torre na casa dos Zimmer, às margens do rio Neckar. 3Françoise DASTUR, “Hölderlin, Tragédia e Modernidade”, in HÖLDERLIN, F. Reflexões, pp.150 -202. 4 Philippe LACOUE-LABARTHE, “Hölderlin e os Gregos”, in A Imitação dos Modernos, pp.211-212.

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Para Hölderlin, no entanto, o posicionamento em favor da Antigüidade não

dizia respeito à imitação dos gregos. O poeta lamentava o fato de que o desejo

moderno por autonomia, isto é, pela instauração do novo, do original, se revelasse

como uma espécie de vingança em relação à Antigüidade. Pois, tal como

expressou no artigo inacabado de somente duas páginas intitulado “O ponto de

vista sob o qual devemos encarar a Antigüidade”, a relação entre antigos e

modernos se assemelhava quase à uma escravidão por conta da forte influência

dos primeiros. Tanto que, diz Hölderlin,

parece que, realmente, quase não se oferece uma outra escolha senão deixar-se soterrar pelo já assumido, pelo positivo ou, com mais a mais violenta soberba, contrapor a vida de nossas forças a tudo que o que foi dado, aprendido, a todo positivo. O mais difícil é que a Antigüidade parece opor-se inteiramente ao nosso instinto originário de dar forma ao informe, de aperfeiçoar o originário e o natural.5

Mas esta era tão somente uma aparência dada pelo conflito da época que

se põe a debater sobre a primazia do originário. Pois, para o poeta tal conflito não

constitui a questão a ser colocada. Hölderlin não julgava necessário ter que optar

entre o passado clássico ou o presente moderno. Para ele não havia dúvida: “os

gregos são imprescindíveis para nós”, afirmou. Contudo, tal imprescindibilidade

não se respaldava numa possível exemplaridade, compreendida como modelo

estático para reprodução, e sim como exemplo dinâmico para a reflexão moderna

acerca da relação entre natureza (physis) e cultura (techné). Por este motivo,

Hölderlin chama atenção para a necessidade de se distinguir o modelo do exemplo

“o que existe para ser imitado em sentido estático e reprodutivo, do que pode ser

seguido de forma dinâmica e autêntica.”6 Portanto, a oposição entre gregos e

modernos como equivalente às oposições entre estático e dinâmico ou mesmo

passado e futuro, não é levada adiante por Hölderlin. Para ele, assim como seria

para Nietzsche posteriormente, os gregos eram vistos mais como

“contemporâneos” do que como parte de um passado acabado. Tal como

Hölderlin afirmara a um amigo em carta de dezembro de 1802: “Sei agora que não

devemos tentar igualar em nada aos gregos, a não ser o que tanto para os gregos

5 HÖLDERLIN, “O ponto de vista segundo o qual devemos encarar a Antigüidade”, in op. cit., p.21. 6 DASTUR, op. cit, p. 156.

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como para nós deve constitui o mais elevado, a saber, a relação da vida e do

destino.”7

É, portanto, na articulação entre vida e destino que se enquadra a

semelhança entre gregos e modernos: a relação entre aquilo que é oferecido pela

vida e a vida que se planeja construir para si, entre a realidade finita da existência

e a aspiração à totalidade na comunhão com o divino. Ou, como diz Hölderlin nas

Observações sobre Antígona, trata-se do “retorno ao pátrio” que, sem grandes

desdobramentos filosóficos, podemos tomar aqui pelo reencontro do elemento

original, o qual transposto para a modernidade pode ser equiparado à busca por

seu próprio fundamento. E a partir desta tensão entre vida e destino se torna

possível aproximar as considerações de Hölderlin daquelas desenvolvidas por

Hegel poucos anos antes, ao longo de sua estadia em Frankfurt. Pois, como

teremos oportunidade de observar adiante, para Hegel o destino também constitui

uma categoria fundamental na qual se entrecruzam a vontade humana com a

totalidade divina, formando a base para a construção de uma teleologia para a

vida.

Retomando-se, ainda, o ponto de vista hölderliniano, pode-se constatar que

o que realmente interessava ao poeta era refletir sobre a tensão entre natureza e

cultura, comum a gregos e modernos. Como enfatiza Dastur, na concepção de

Hölderlin os gregos “não foram, simplesmente, os que produziram obras para

serem imitadas, mas sim os que abriram possibilidades de vida.”8 Hölderlin

entendia que esta relação é em si mesma paradoxal, pois a aparição da totalidade

(natureza) só era possível graças à sua efetivação pela parte (cultura) – e, nesta

conjunção, ele compreendia a necessidade que faz surgir a arte. Assim, verifica-se

uma analogia entre o conflito natureza e cultura e aquele existente entre parte e

todo, particular e universal. Mas, lembramos, com Dastur, que “a questão

filosófica da concepção do todo não é, na verdade, um problema exclusivamente

hölderliniano”9: a aspiração à totalidade, isto é, a resolução da cisão trágica

imposta pela consciência da finitude do homem, era um tema presente para

Novalis, Schlegel, Schelling e, também, Hegel. Assim sendo, ao tratar-se da

7 HÖLDERLIN, op. cit., p.132. 8 DASTUR, op. cit, p. 156. 9 Ibid., p.164.

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Antigüidade, a questão deveria ser deslocada para as possibilidades criadas pelos

gregos quanto a reconciliação com natureza.

Hölderlin buscou uma solução estética para abordar a questão da

reconciliação com a totalidade e fez isto com base na relação entre o homem e os

deuses tal como encarnada na tragédia através do destino do herói trágico.

Expressão por excelência da tensão entre natureza e cultura, é na tragédia grega,

principalmente com Sófocles10, que, no entendimento de Hölderlin, ocorre, ainda

que momentaneamente, a reconciliação entre a techné e physis, entre o finito e o

infinito, entre homens e deuses. Segundo Peter Szondi

Hölderlin interpreta a tragédia como sacrifício que o homem oferece à

natureza, a fim de viabilizar, assim, seu aparecer adequado. Sua tragidicidade consiste em que ele pode realizar esta função, que confere significação à sua existência, somente na morte (...). De acordo com Hölderlin, este conflito de natureza e arte – cujo objetivo é a conciliação entre ambos -, realiza-se na tragédia como tal.11

Na teoria do trágico12 de Hölderlin a reconciliação acontece através da

morte do herói. E Édipo representa o herói trágico por excelência. Édipo excede

sua natureza humana através de seu ímpeto especulativo e, querendo controlar seu

destino, acabar realizando o destino que lhe foi imposto pelos deuses. Eis como

surge em cena o conflito entre vida e destino. Na busca de sua origem, o herói

negligencia a advertência do adivinho Tirésias. “Seja o que dever ser. Minha raça

é o que quero. Seja ela reduzida, quero saber. (...) E assim nascido, não quero

tornar-me aquele que não investiga inteiramente o que sou”13, diz Édipo numa de

suas falas traduzidas por Hölderlin. A interpretação ininterrupta do vaticínio

oracular, (este é seu excesso, sua hybris) o leva a esquecer-se da admoestação do

profeta de não desejar descobrir sua proveniência. Neste movimento de anseio

pela compreensão total, Édipo abandona sua origem humana, e, portanto, limitada

10 Diz Dastur a este respeito: “O trágico em Sófocles – que é, ele mesmo, contemporâneo ao declínio da cidade grega – é aquele em que se torna problemático o limite entre o humano e o divino, arte e natureza”. Ibid., p.183. 11 SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico, p.20. 12 É preciso distinguir entre uma teoria do trágico de uma teoria da tragédia. Na última, o objeto de investigação é o efeito da catarse sobre o espectador, tal como feito por Aristóteles em sua Poética; na primeira, objeto passa as ser uma interpretação do próprio drama, ou seja, não mais o efeito, mas o fenômeno trágico. Neste sentido, Schelling foi o primeiro, antes de Hölderlin, a propor uma teoria especulativa do trágico. Para Schelling, no entanto, a tragédia trata do conflito entre o homem e seu destino, enquanto em Hölderlin a luta se dá entre physis e techné. SZONDI, op. cit., p.14 e ss. 13HÖLDERLIN, “Observações sobre o Édipo”, in Reflexões, p.99

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e equipara-se aos deuses. Como castigo, é por eles abandonado. A reconciliação,

por sua vez, só será possível através do cumprimento de destino: é no

cumprimento daquilo que de algum modo lhe era predestinado, mas ao mesmo

tempo constitui uma escolha sua, que o homem, encarnado da figura de Édipo, se

reconcilia com os deuses. O destino retém, portanto, a dimensão trágica. Como se

sabe, no caso da trilogia de Sófocles, a reconciliação de Édipo com o divino só se

consumará de fato em sua terceira parte, isto é, quando o herói cego morre em

Colono.

Tendo em vista este breve esboço, é possível afirmar que, para Hölderlin,

na Antigüidade clássica, consciente de sua finitude e impulsionado pela hybris, o

homem almeja equiparar-se aos deuses e tal fato por si só constitui uma ofensa,

uma traição. Os deuses, por sua vez, se afastam no intuito de punir os homens por

essa sublevação. Configura-se aí a dupla infidelidade apontada pelo poeta, o duplo

virar de faces. A revolta divina, isto é, a infidelidade que leva ao abandono dos

homens é, para Hölderlin, fundamental, pois essa infidelidade compartilhada é o

que mantém unidos homem e deuses.

Nas cenas, as formas que festejam o pavor, o drama, como um processo

de heresia, como a língua para um mundo onde, sob a peste, a loucura e um espírito vaticinador, a toda parte exacerbado, onde num tempo de ócio deus e homem se compartilham na forma da infidelidade, essa que tudo pode esquecer, pois a infidelidade divina é o que há de melhor para se preservar a fim de que o transcurso do mundo não possua nenhuma lacuna e a memória do celeste não escape. 14

É o ato de dupla traição que, paradoxalmente, os mantém unidos, de

maneira que a afirmação da separação é a afirmação da presença na ausência.

Pois, como diz o próprio Hölderlin,

a apresentação do trágico repousa, predominantemente, no fato de que o

monstruoso, surgido quando deus e homem se pareiam ilimitadamente, quando, na ira, a força da natureza e a interioridade humana se tornam uma só, concebe que o ilimitado de tornar-se um apenas se unifica mediante a separação ilimitada.15

É assim que para Hölderlin na Antigüidade, os homens mantêm-se ligados

ao divino através da separação ilimitada. Pois a união de fato só acontece quando

14HÖLDERLIN, “Observações sobre o Édipo”, in Reflexões, p.100. 15Ibid., p.99.

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da realização do destino. Em última instância, isso significa dizer que somente

através da morte do indivíduo (ainda que na tragédia) se alcança à reconciliação.

Pois, “no elo da natureza, fidelidade não é sonho. Separamo-nos apenas para

sermos intimamente mais próprios, divinamente pacíficos com tudo, e conosco.

Morremos para viver”16, diz Hipérion em uma de suas cartas.

Já na modernidade o homem se vê só. De fato, só consigo mesmo. É desta

forma que podemos compreender a situação do homem com relação a instância do

divino, a partir da perspectiva de Hölderlin. Isto porque a característica do homem

moderno é “a sobriedade própria a uma individualidade fechada sobre si

mesma.”17 Na modernidade, os deuses se distanciaram a um tal ponto que não há

mais presença na ausência. O fundamento agora tem de ser buscado no próprio

homem. O homem moderno, neste sentido, é sem Deus. Não como Édipo, que é

atheos por ter sido abandonado. Afastado da crença em um Deus salvador,

consciente mais do que nunca de sua finitude, o homem moderno se vê forçado a

buscar no mundo imanente o fundamento para sua existência. Diz Hölderlin, nas

Observações sobre Antígona:

As representações gregas se distinguem por sua tendência principal de

poder apreender de si mesmas porque isto constitui sua fraqueza, enquanto que a tendência principal de nosso tempo é poder atingir uma outra coisa, é ter destinação, já que ser sem destino, o dýsmoron, é a nossa fraqueza.18

Portanto, na modernidade, só resta ao homem sua própria imanência como

fonte explicativa para a existência, pois, como afirma Lacoue-Labarthe, “nosso

reino é o da finitude.”19 Entendemos que, por este motivo, Hölderlin julgava

indispensável aprender com os gregos como retornar ao pátrio, no sentido de

(re)constituir seu próprio fundamento, o elemento próprio de sua natureza,

perdido quando da realização do destino, tal como ocorria na tragédia. Decorre daí

o desejo do poeta de conceber uma tragédia moderna, isto é, de realizar

esteticamente na modernidade o retorno do homem à sua origem, reconciliando-o

com o todo.

Hölderlin, entretanto, não conseguiu escrever a tragédia moderna que

planejara. Dela tem-se somente o plano intitulado “Fundamento para

16 Id., Hipérion, p.164. 17 DASTUR, op. cit., p.154. 18 HÖLDERLIN, “Observações sobre Antígona”, in Reflexões, p.106. [grifos nossos] 19 LACOUE-LABARTHE, “Hölderlin e os Gregos”, in op. cit., p221.

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Empédocles”, o filósofo pré-socrático que pensava a constituição do mundo a

partir da combinação entre reunião (amor) e separação (ódio) dos quatro

elementos da natureza. Em busca da união com o todo, Empédocles teria se

atirado no Etna por compreender que ali, no vulcão, os elementos estavam unidos

em sua essência – a escolha do filósofo como herói já aponta para a questão

central que o poeta desejava tratar. Empédocles no plano de Hölderlin, é “a

própria figura do desejo especulativo e da nostalgia do Um-Todo, sofrendo da

limitação temporal e querendo se arrancar à finitude.”20 E, uma vez que Hölderlin

compreendia a tragédia como a metáfora do sentimento total21, ao escrevê-la o

poeta deveria necessariamente estar em contato com as contradições de seu

próprio tema, a composição da trama contada deve servir como metáfora para a

reconciliação, como mediação entre os elementos apartados. O autor trágico “deve

tentar reconciliar as contradições de sua época, utilizando-se da mediação de uma

fábula, de uma história que lhe seja estranha” mas que seja capaz de mostrar-se

atual no presente. É isto que leva Hölderlin a eleger Empédocles como herói. Pois

o célebre filósofo de Agrigento viveu, como escreve Dastur, “em um tempo

caracterizado pela oposição externa entre natureza e cultura, como é também o

caso da modernidade. Sob este ponto de vista, Empédocles é o próprio

Hölderlin.”22

O fracasso de Hölderlin é um dos temas analisados por Dastur na série de

conferências que formam o texto já citado. Alguns pontos desta interpretação nos

auxiliam na formação de uma imagem possível da modernidade a partir da

proposta existente na trajetória intelectual de Hölderlin, isto é, considerando não

só seu pensamento sobre a modernidade, mas a sua própria condição de homem

moderno. A delimitação do tema, dispensa, nesse caso, a recuperação integral da

análise de Dastur

A partir da indagação sobre a desistência de Hölderlin de completar a

tragédia, Dastur argumenta: “podemos compreender que Hölderlin abandonou seu

projeto precisamente porque, durante a elaboração da tragédia, a ele se revelou a

necessidade de sustentar a separação e de compreender que os hespéricos devem

20 Philippe LACOUE-LABARTHE, “A Cesura do Especulativo”, in op. cit., p201. 21 DASTUR, op. cit., p.170. 22 Ibid., p.70.

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retornar à sua sobriedade natural”23, isto é, à individualidade fechada sobre si

mesma antes referida. Deste modo, pensamos que a desistência de Hölderlin pode

ser atribuída ao fato de o poeta ter compreendido que, na modernidade, a

reconciliação entre homens e deuses não era mais possível.

Agora, a cesura não constitui mais uma forma de retorno ao original, mas

quebra definitiva, irreconciliável. Ou, para falarmos em termos mais próximos da

presente investigação, levando em conta que se trata de um momento de alteração

nos modos de apreensão da temporalidade histórica, a reflexão sobre a tragédia e a

modernidade pode ser considerada como a forma pela qual o poeta se manifestou

diante da compreensão da ruptura definitiva entre espaço de experiência e

horizonte de expectativas, diante da compreensão da impossibilidade de retorno

ao passado – seja na busca do exemplo ou da origem –, imposta a partir do

momento em que o futuro, aberto ao desenvolvimento progressivo, tornou-se

indeterminado.

As considerações de Hölderlin constituem, portanto, uma dentre as

diversas possibilidades de compreensão da modernidade como um momento

cesurado, no qual se dera uma ruptura irrevogável com o passado. Um momento a

partir do qual o homem é levado a buscar em si mesmo a fundamentação de sua

existência, ou seja, como um instante de auto-fundamentação, ocorrido em estreita

relação com o afastamento (ou enfraquecimento) da explicação teológica do

mundo. A reconciliação entre parte e todo, particular e universal, o espírito e suas

manifestações, o humano e o divino: são estas as bases sobre as quais se

desenvolvem as reflexões que na modernidade os homens realizam sobre si

mesmos.

3.2 O sentido trágico da modernidade: a solução filosófica de Hegel

Em uma carta de setembro de 1795 endereçada a Schiller, diz Hölderlin:

O descontentamento comigo mesmo e com o que me cerca lançou-me no

reino das abstrações. Busco desenvolver a idéia de um progresso infinito da filosofia e mostrar a exigência que se deve impor, inexoravelmente, a todo

23 Ibid., p.78. Hespérico é como Hölderlin chama o homem moderno.

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sistema de reunir sujeito e objeto num eu absoluto, ou como se queira chamar, só é possível, esteticamente, na intuição intelectual. Teoricamente, porém só é possível por meio de uma aproximação infinita.24

Aquilo que Hölderlin buscara na solução estética da tragédia é o que Hegel

veria na solução conceitual da filosofia. Já na época de Tübingen, os colegas

partilhavam os dilemas que envolvem a aspiração de conhecimento da vida em

sua totalidade. Pois, não esqueçamos que estes homens estavam vivendo um

momento cujas certezas, calcadas nos pressupostos racionais do iluminismo,

confrontavam-se com a intensa agitação política e social que, iniciada no território

francês, espalhava-se pelo restante do continente. Hegel entrara em Tübingen

exatamente um ano antes da eclosão da Revolução, e já em 1792, um ano após ter

concluído a licenciatura em filosofia, os franceses iniciavam sua incursão no

território alemão. Tinha início então o aparecimento de dúvidas, senão de críticas

negativas, sobre o otimismo que até então pairara em relação aos recentes

acontecimentos. Em verdade, ocorria era que, à medida que o tempo passava, a

Revolução se transformava em sinônimo de incerteza. Com a instauração do

período do Terror e a emblemática decapitação de Robespierre, a realidade se

apresentava, cada vez mais, de forma fragmentária, marcada pela contingência e,

portanto, pela ausência de sentido. Lembremos ainda que neste mesmo período,

Kant escreveria os textos que comporiam O Conflito das Faculdades e também o

artigo Idéia de História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. Neles, o

filósofo já clamava pela necessidade de sentido para a história, ratificando a

sensação de que o mundo não poderia ser simplesmente resultante da

contingência desconsoladora que parecia caracterizar a tudo.

A necessidade de união, isto é, a necessidade de formulação de um sentido

capaz de unir os fenômenos em uma totalidade, constituiu um traço comum do

pensamento no período subseqüente aos primeiros anos da Revolução. E, ao

contrário do que se poderia deduzir, as reflexões acerca da união, ou de sua falta,

não se dirigiram, neste primeiro momento, para o mundo dos fenômenos

propriamente ditos, mas sim em direção à antiga fonte de fundamento. Assim, não

foi considerando diretamente os acontecimentos na vida política, e mesmo na

24 HÖLDERLIN, “Cartas”, in Reflexões, pp.111-112. [grifos nossos]

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história, que as reflexões buscaram compreender, e solucionar, a aparente

ausência de sentido: elas se voltaram, sobretudo, para os pressupostos da religião.

“O desdobramento da vida em uma pluralidade de esferas concretamente

pessoais, separadas umas das outras, é o fato que serve de ponto de partida para

toda religião”, afirma Cassirer, completando que “a restauração da vida como uma

totalidade do ser espiritual, na qual se superou e se reconciliou toda a diferença,

[é] a meta a que toda religião tende.”25 Seguindo essa argumentação, torna-se

mais evidente o motivo pelo qual a crítica se dirige para o campo teológico. Caso

estivessem satisfeitos com as soluções dadas pela teologia, especificamente, e pela

religião, como um todo, os homens não seriam atormentados pela sensação de

contingência que inevitavelmente conduziria ao questionamento acerca do sentido

dos acontecimentos do passado e do presente.

Hegel, neste caso, não seria uma exceção. Tanto que, com base neste traço

comum, Karl Löwith pôde afirmar que a juventude de Hegel fora profundamente

marcada por uma “crise da desunião”.26 E, de fato, a preocupação com a

eliminação da ausência de sentido para os fenômenos do mundo – marca da

contingência dos tempos – se fixaria no cerne de suas considerações filosóficas

até as obras de maturidade. Esta crise pode parecer, em uma primeira

aproximação, como uma crise de fé ou uma crise religiosa, uma vez que muitos

pensadores dos séculos XVIII e XIX, que começaram a vida intelectual pela

formação teológica, viriam a se esquivar, de alguma forma, dos pressupostos da

religião cristã como guia para reflexão. Este fora o caso dos colegas seminaristas

de Tübingen e, também, de Burckhardt e Nietzsche, por exemplo. Neste sentido,

concordamos com Thomas Nipperdey quando afirma que “o pensamento moderno

na Alemanha não coexistiu ou conflitou com a teologia, mas habitava nas longas

sombras dos problemas por ela postulados, pela ‘totalidade’ que ela

reivindicava.”27 Portanto, o interessante aqui é notar não em que medida estes

25 Ernerst CASSIRER, “Hegel”, in El Problema del Conocimiento, v.III, p.351. 26 Karl LÖWITH, “La conciliation hegéliénne”, in Von Hegel zu Nietzsche, p.528. 27Thomas NIPPERDEY, German from Napoleon to Bismarck, 1800-1866. Princeton: Princeton University Press, 1996, p. 466. Apud Thomas HOWARD, Religion in the rise of Historicism, p.5. Esta é também a perspectiva da pesquisa de Howard, que, ao invés de partir da noção amplamente aceita de que a consciência histórica Oitocentista teria surgido em oposição ao pensamento teológico, opta por centrar-se no impacto que a teologia exerceu sobre o desenvolvimento do pensamento secular. De certa forma, também se encontra nesta linha de raciocínio a compreensão que Peter Hanns Reill fornece em seu livro sobre o Iluminismo alemão. Cf. Peter Hanns Reill, The German Enlightenment and the Rise of Historicism.

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homens – sobretudo, Hegel e Burckhardt – negavam ou combatiam o pensamento

teológico, e sim como se relacionavam com o universo de postulados e problemas

deixados pela teologia na realidade em que viviam. A ênfase, desse modo, reside

muito mais em perceber onde a herança teológica está presente do que onde ela

não está ou tenha sido superada.

Assim, especificamente no caso de Hegel, seria possível relacionar à “crise

da desunião”, à crítica da religião cristã,28 os primeiros passos do filósofo rumo à

construção de seu sistema de pensamento. Sua crise, entretanto, não possuía

aspectos de ordem pessoal, tal como uma crise calcada em sentimento de dúvida

capaz de fazer vacilar a fé: “não existe vestígio algum de crise religiosa em seu

desenvolvimento intelectual: [Hegel] não era crente, em absoluto”, informa

Walter Kaufmann.29 O que constituía o alicerce de sua crise era uma análise de

seu tempo: a constatação de que vivia em uma época sem precedentes na história

e de que, portanto, os modos de conhecimento da vida do homem disponíveis até

então não eram suficientes para responder à demanda por uma compreensão dos

fenômenos em sua totalidade. É a partir desta constatação que Hegel postulou a

origem da necessidade de filosofia: ou seja, a filosofia – segundo os moldes de

seu sistema – se apresentava, neste momento, como meio para compreensão do

mundo, dada a ausência de modelos referenciais na modernidade. Portanto, Hegel

foi o primeiro a colocar como um problema eminentemente filosófico a questão

da auto-fundamentação do novo tempo (neue Zeit) que a modernidade (Neuzeit)

constitui. E isto só foi possível porque compreendia seu tempo como novo e, a

partir daí, atribuiu à (sua) filosofia a tarefa de tratá-lo adequadamente, isto é,

tendo como fundamento a razão.

Os períodos que Hegel viveu em Berna entre 1793 e1796, e depois em

Frankfurt de 1797 a 1800, podem ser identificados como a fase em que o filósofo

passou por esta crise da desunião, momento no qual a maioria de seus escritos tem

por objeto a religião cristã.30 Entre estes textos, conhecidos como Escritos de

Juventude, está aquele ao qual o editor atribuiu o nome de O Espírito do

28 Ainda que também tenha se dedicado à crítica do judaísmo. 29 Walter KAUFMANN, Hegel, p.34. 30 Cf. HEGEL, Werke, Band I, Fhüe Schriften.

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Cristianismo e seu Destino31 e que nos interessa particularmente, porque pertmite

entrever o esboço do que trinta anos mais tarde encontraríamos expresso em suas

Lições sobre a Filosofia da História: a afirmação do campo do divino como

objeto de conhecimento humano, ou seja, a dissipação da ruptura entre deuses e

homens realizada no plano da história pela razão.

Esta articulação entre os Escritos de Juventude e os textos da maturidade é

fundamental para a compreensão do pensamento hegeliano, mas exige cuidado

como adverte Alexander Koyré. Não há dúvida que nos textos produzidos por

Hegel nas décadas finais do século XVIII, já se encontra formulada a chave de sua

filosofia, tanto que, na opinião de Koyré, boa parte da exegese moderna do

hegelianismo foi influenciada pela impressão produzida a partir dos Escritos de

Juventude. Ali, vemos um “Hegel humano, vibrante, sofredor”, diz Koyré, “um

Hegel que encontra seu lugar no movimento espiritual da época e não somente no

quadro, cronológico e sistemático, dos sistemas.”32 Este Hegel, caso se aceite

repartição de sua obra em momentos diferentes, é, decerto, mais atraente do que

aquele filósofo que mais tarde viria a se tornar ideólogo do Estado prussiano. “Ele

é mais próximo de nós; ele busca, ele é inquieto, como nós. E nós o

compreendemos. Além disso, ele é menos difícil. Mais acessível. Menos

abrupto”33, admite Koyré. E, por este motivo, deva-se cuidar para não

negligenciar sua obra de maturidade, pois caso assim aconteça, corre-se o risco de

interpretar mal o Hegel “hegeliano”, isto é, aquele que começou a elaborar seu

sistema filosófico em 1800, que sete anos depois apresentaria a Fenomenologia do

Espírito e a primeira parte Lógica em 1811. Aceitamos o aviso de Koyré no que

diz respeito à concepção de história formulada por Hegel, porém, acreditamos que

ao menos a apresentação, ainda que breve, de alguns pontos dos Escritos de

Juventude, mas especificamente de O Espírito do Cristianismo, se faz aqui

necessária.

Na opinião de Wilhelm Dilthey – a quem, aliás, Koyré atribui, em grande

parte, a fama dos textos escritos por Hegel em sua juventude –, O Espírito do

Cristianismo e seu Destino foi o mais belo texto escrito pelo filósofo. Para

31Escrito entre 1798 e 1799, este texto, juntamente com outros textos de juventude de Hegel, só foram publicados em 1905 sob o título de Hegels theologische Jugendschriften, edição de responsabilidade de Hermann Nohl, um ex-aluno de Wilhelm Dilthey. 32 Alexander KOYRÉ, “Hegel à Iena”, p.149. 33 Ibid., p.150.

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Dilthey, ali é possível perceber a manifestação do gênio filosófico de Hegel “em

seu primeiro frescor e livre ainda dos entraves do sistema.”34 O texto, escrito ao

longo do segundo preceptorado do filósofo em Frankfurt, tem como questão

central de investigação o próprio espírito do Cristianismo. Neste momento, Hegel

encontrava-se sob inspiração das concepções kantianas de uma religião e uma

moral35 baseadas na razão – isto é, considerando-as como meios de realização

daquilo que foi deliberado pela razão –, e também dos ideais políticos

revolucionários. Com este embasamento teórico, Hegel desejava compreender

como as religiões perderam a capacidade de fornecer um princípio capaz de guiar

a vida dos homens. A este respeito, diz Koyré: “a hora da filosofia soou para

Hegel. A união viva dos contrários, a reintegração da totalidade viva, ele

procurou, inicialmente, como Schelling, como Hölderlin, na Vida, no Amor, na Fé

religiosa.”36

No entanto, não se tratava de um dilema de fé: o que intrigava ao filósofo

dizia respeito, sobretudo, ao papel desempenhado pela religião na vida prática do

homem. Pois, para que a religião, baseada no que fora outorgado pela razão, possa

ser efetiva, ela precisa estar presente na vida do homem publicamente. Não

podendo apenas existir de modo subjetivo e privado, a religião racional, portanto,

necessita estar de acordo com o espírito deste povo, manifestando-se em seus

hábitos e costumes, cristalizando-se em suas instituições, sobretudo, na figura do

Estado. Segundo Olivier Depré, tradutor para o francês da versão recente de O

Espírito do Cristianismo e responsável pela introdução da mesma, o que o

filósofo buscava era compreender “a origem da positividade que gangrenava as

religiões e que as impediam de ser um vetor de moralização.”37

Hegel considera positiva toda religião cuja lei ou moral condutora seja

exterior ao homem. No seio de uma religião positiva, por sua vez, o homem, em

sua vida, não faz outra coisa senão zelar por uma moral que lhe é estranha à

medida que imposta. Em seu entendimento, uma religião é positiva quando não

coloca no homem o valor de sua moral, portanto, quando a moral religiosa se

34 Wilhelm DILTHEY, Gesammelte Schriften IV. Die Jugendgeschichte Hegels. Stuttgart> Teubner, 1959, p.68. Apud Olivier DEPRÉ, “Avertissement”, in HEGEL, L’Esprit du Christianisme et son Destin, p.7. 35 É preciso ressaltar que nos textos de juventude,o filósofo não faz distinção entre moralidade (Moralität) e eticidade (Sittlichkeit), tal como podemos ler nos textos posteriores. 36 KOYRÉ, op. cit., p.156. 37 Olivier Depré, “Introduction”, in HEGEL, L’Esprit du Christianisme et son Destin, p.25.

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fundamenta exclusivamente na autoridade de Deus. Como sintetiza Habermas no

capítulo de O Discurso Filosófico da Modernidade em que trata do conceito

hegeliano de modernidade, na compreensão de Hegel são positivas

[as] prescrições segundo as quais os crentes devem poder obter a graça de Deus por meio de obras em vez de pelo agir moral (...); positiva é a esperança de uma indenização no além, positivo é o alheamento em uma doutrina concentrada nas mãos de alguns da vida e da propriedade de todos; positivo é o apartamento do saber dos sacerdotes das crenças fetichistas das massas (...); positivas são as asseverações e ameaças que visam a mera legalidade no agir; positiva é, por fim e antes de mais, a separação da religião privada da vida pública.38

É sob este prisma de crítica à positividade que o filósofo inicia sua análise

em O Espírito do Cristianismo, tratando da ocasião em que Jesus apareceu na

história do povo judeu. “O povo judeu, à época de Jesus, não nos dá uma imagem

de um todo”, afirma Hegel. Segundo ele, no momento em que Jesus surge no seio

de sua nação, os judeus encontravam-se num estado em que, cedo ou tarde,

eclodiria uma revolução, a qual “tem sempre os mesmo traços de característica

universal.” Pois, não pode ser de outra maneira quando o “espírito desapareceu da

constituição ou das leis”. A partir daí, “abre-se o caminho para a busca, [para] a

aspiração a qualquer coisa outra, que cada um encontra logo em qualquer coisa de

outro”, gerando então uma série de outras “imagens, modos de vida, exigências e

necessidades que acabam por gerar uma ruptura, e dão existência a uma nova

forma universal, a uma nova ligação entre os homens.”

Entretanto, como não tem origem no espírito próprio do povo, persistindo

na exterioridade que marcava a situação precedente, “essa ligação se afrouxa e

deixa [as coisas] desunidas, e mais, encontra-se ali o germe de novas ilegalidades

e futuras explosões.”39 Deste modo, segundo Hegel, o aparecimento de Jesus

representa para a religião judaica a abertura de um caminho para uma

fundamentação em si mesma, isto é, em uma moral fundada em seu próprio

espírito. “A raiz do judaísmo”, diz Hegel, “é objetiva, quer dizer, o serviço, a

servidão com respeito a um estranho (Fremden). É contra isto que Jesus que se

declarava.”40 Pois,

38 HABERMAS, O Discurso Filosófico da Modernidade, p.35. 39 HEGEL, Der Geist der Christentums und sein Schicksal, pp.297-8 (tr. fr., pp.95-6). 40 Ibid., p.298 (tr.fr., p.97).

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ao mandamento, Jesus opõe moral, isto é, uma propensão a agir desta ou daquela maneira; a inclinação é fundada em si, ela tem seu objeto ideal nela mesma e não em um estranho(...). Ele não diz ‘cumpram tais mandamentos porque eles são os mandamentos de vossos espíritos – não porque eles lhes foram dados pelos vossos ancestrais, mas porque vós vos destes a vós mesmos’. Ele não fala assim! Ele opõe [ao mandamento] a atitude moral, a propensão a agir moralmente.41

Servir a uma lei estranha, imprópria ao espírito, equivale assim, na

concepção de Hegel, a ser escravo da vontade de um senhor. Tal submissão, por

sua vez, ao significar a negação da própria vontade impossibilita a existência de

uma moral. Se a moral se afirma na oposição entre a vontade do indivíduo e

vontade universal e se não há a primeira, a segunda constitui tão somente uma

dominação. 42 Portanto, para que haja moral é preciso que o indivíduo possua

liberdade para escolher, por isso, “na religião judaica, a moralidade era

impossível, porque ela não tinha liberdade em si, mas antes [era objeto de] uma

dominação total.” Assim, se para Kant a moralidade é “a submissão do individual

ao universal, a vitória do universal sobre o individual que a ele é oposto – ou

antes, [se] ela é a elevação do individual ao universal, unificação – supressão dos

dois opostos pela unificação,” também para Hegel ela é “a conformidade, a

unificação com a lei da vida”43, mas não é ainda a união total, a reconciliação com

a totalidade. A moralidade representa a superação da positividade à medida que

pressupõe a existência de um termo que diga da essência, isto é, que participe do

espírito. Tal termo caracteriza-se pela existência da vontade individual, de forma

que, em prol do estabelecimento da moral universal é necessário que o querer para

si exista como oposição. Neste sentido, agir moralmente é um ato limitado e

incompleto e que constitui apenas o primeiro momento em direção à totalidade.

Vemos surgir, neste ponto da argumentação, o que pode ser considerado

um esboço do movimento dialético, uma protodialética, ou mesmo uma dialética 41 Ibid., p.303 (tr.fr., p.101). 42 Na Fenomenologia do Espírito, Hegel tratará, em termos mais abstratos, deste movimento que leva à consciência-de-si através de uma relação de dominação com a alteridade. Diz Hegel: “A consciência-de-si é em si e para si quando e por que é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido. (...) Assim seus momentos devem, em uma parte, ser mantidos rigorosamente separados, e de outra parte, nessa diferença, devem ser retomados ao mesmo tempo como não diferentes, ou seja, devem sempre ser retomados e reconhecidos em sua significação oposta. (...) Devem travar essa luta porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, suas certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se comprova]; (...) O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como um consciência-de-si independente.” In “Independência e Dependência da Consciência-de-Si: Dominação e Escravidão”, Fenomenologia do Espírito, pp.145-147. 43 HEGEL, Der Geist der Christentums und sein Schicksal, p.299 (tr.fr., p.98).

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teológica, que posteriormente se tornaria instrumento fundamental no sistema

filosófico hegeliano. Pois Hegel instaura uma espécie de caminho de

suprassunção44 para o estabelecimento da união das partes opostas com o todo,

levando em conta três elementos: a moralidade, o amor e a religião. Assim, após

tratar longamente a relação entre as características da religião positiva, tomando

como questão principal a consideração da legislação judaica baseada nos

mandamentos entregues por Deus (Jeová) a Moisés, e a moralidade advinda da

atitude apregoada por Jesus, Hegel introduz o tema do amor como passo seguinte

em direção a união total entre homem e Deus. “Deus é o amor, o amor é Deus,

não há outra divindade senão o amor”, afirma. “A atitude moral suprassume a

positividade, a objetividade dos mandamentos; o amor suprassume os limites da

atitude moral, a religião suprassume os limites do amor”45, ou como formulado

adiante: “a lei como [elemento] dominador é suprimido pela virtude. A limitação

da virtude pelo amor – porém o amor é ele mesmo um sentimento, a reflexão não

é unificada com ele”46, fazendo-se portanto necessária a união final na religião,

isto é, no “Reino de Deus”.

É possível perceber também como Hegel encontrava-se embebido pelo

pensamento de sua época ao expressar-se em termos tais como amor, vida,

espírito47, havendo mesmo uma espécie de analogia entre eles, marcada,

sobretudo, pela identificação de todos com Deus. O amor, desta forma, pode ser

compreendido como a fé na unidade do filho com o Pai, de Cristo com Deus. É

assim, através do amor, que a moralidade conseguiria deixar para trás uma

religião fundada em costumes impostos por uma autoridade externa – o “Senhor

Invisível”, tal como Hegel chama Jeová em certo momento – e realizar a união

das vontades individuais e universais.

Há, ainda, em meio a este desenvolvimento da moral em direção à

afirmação do Reino de Deus através do amor, um elemento que é significativo

para a concepção teleológica de história que Hegel apresentaria três décadas mais

44E aqui Hegel utiliza o verbo aufheben, característico do movimento dialético de seu sistema filosófico posterior. E, tal como fizemos no capítulo anterior, seguimos aqui a opção de Paulo Meneses, tradutor para o português da Fenomenologia, empregamos suprassumir (aufheben) e suprassunção (Aufhebung). 45 HEGEL, Der Geist der Christentums und sein Schicksal, p.304 (tr.fr., p.105). 46 Ibid., p.308. (tr.fr., p.107). 47 Ver Alexander KOYRÉ, op. cit., p.156.

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tarde, ao proferir as aulas sobre a filosofia da história. Trata-se da noção de

destino. “O destino”, afirma Hegel, “pode ser reconciliado”, uma vez que

ele é a lei em si que eu formulei na ação (seja ela a transgressão de uma outra lei

ou não), na sua ação de retorno sobre mim. (...) O destino (...), isto é, a lei reativa

em si, pode ser suprassumida; pois eu posso aniquilar uma lei que eu mesmo

formulei, uma separação que eu causei a mim mesmo. – Pois, a ação e a reação

não fazem senão o um. (...) O castigo é a consciência de um poder estranho, de

uma hostilidade. (...) O destino é a consciência de si (não da ação), de si mesmo

como um todo, é a consciência do todo refletida, objetivada; como este todo é

algo vivo que se violou, ele pode retornar à vida, ao amor; sua consciência poderá

se tornar novamente fé em si mesmo e a intuição de si é transformada em outra, e

o destino é reconciliado.48

É deste modo que o destino, como escolha e ao mesmo tempo como

imposição (oculta), constituiria base da estrutura teleológica da história hegeliana,

cumprindo a reconciliação do homem em vida. Como diz Depré, “a idéia de

destino não é nada mais nada menos que a prefiguração da filosofia da história”49,

pois nela apresenta-se a dupla função da ação do homem no mundo. Ao cumprir

seu destino, o homem age para si e por si próprio, ao mesmo tempo em que realiza

os desígnios do espírito, leia-se: da razão.

O papel exercido pela noção de destino, é próximo àquele que, na filosofia

da história, desempenharia a realização das paixões humanas. Para Hegel, a

paixão constitui o impulso gerador da própria atividade do homem, o motor da

efetivação de uma vontade particular. E, para o filósofo, na articulação das

oposições – as vontades particular (do homem) e universal (do espírito) não são

contrárias e sim complementares –, a paixão funciona como um instrumento

utilizado pelo espírito no caminho de tomada de consciência de si. Na realização

da paixão, assim como na realização do destino, vontade e necessidade convergem

para o mesmo fim, ainda que, em ambos os casos, o homem que concretiza a ação

não tenha consciência da amplitude de seus atos. Dito de outra forma, a razão, isto

48 HEGEL, Der Geist der Christentums und sein Schicksal, pp. 306-7 (tr.fr., pp.107-8). 49 Olivier DEPRÉ, “Introduction”, in HEGEL, L’Esprit du Christianisme et son Destin, p.31. A este respeito ver também : Pedro CALDAS, “A Filosofia da História de Hegel: Brilho e Miséria da Vontade”, in O que significa pensar historicamente, pp.45-67.

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é, o télos da vontade universal, se realiza na ação do homem, ainda que não se

encontre disponível conscientemente para ele.

Não podemos esquecer que o contexto em que o destino aparece

teleologicamente orientado tem como meta a síntese na religião da razão e não na

razão propriamente dita. Nos últimos anos do século XVIII, entretanto, Hegel

creditava à verdade religiosa a capacidade de guiar o mundo a partir de uma

moralidade designada pelo espírito. Porém, a religião se mostrou inadequada para

a realização desta tarefa, uma vez que o conhecimento de Deus por ela

proporcionado permanecia geral, isto é, como fé pura na divindade e não como

princípio racional capaz de regular a vida de um modo coletivo. O Cristianismo

constituía, sem dúvida, um momento de suma importância, posto que nele Deus se

dera a conhecer ao homem. Entretanto, era sobre o modo de conhecimento que o

filósofo começava a modificar sua concepção. Anos mais tarde, em suas preleções

sobre a filosofia da história, Hegel afirmaria claramente o lugar do Cristianismo

como ponto de partida para a filosofia:

No cristianismo há um conhecimento determinado da Providência e seu

plano. No cristianismo é doutrina capital que a Providência regeu e rege o mundo. (...) Há um fim último, universal, que existe em si e por si. A religião não ultrapassa esta representação geral. A religião se atém a esta generalidade. Mas, esta fé universal, a crença de que a história universal é um produto da razão eterna, é o ponto de partida necessário da filosofia em geral e da filosofia da história universal.50

Àquela época, porém, o pensamento hegeliano ainda não se expressava

desta forma e o que se vê ali é apenas o começo das reflexões que encontramos

consolidadas nas aulas da década de 1820. Naquele momento, Hegel compreendia

que o problema da união com o todo permanecia na preponderância do finito

sobre o infinito, do subjetivo sobre o objetivo: ou seja, faltava estabelecer uma

reflexão adequada sobre o mundo, isto é, uma reflexão que, tendo como ponto de

partida exclusivamente a consideração racional, fosse capaz eliminar o atributo de

contingência dos fenômenos. “Eu devo necessariamente ser impelido em direção à

ciência e o ideal de minha juventude deve necessariamente tornar-se uma forma

de reflexão, transformar-se em um sistema”51, disse Hegel em uma carta a

50 HEGEL, Volersungen über diePhilposphie der Geschichte (daqui em diante VG), p. 28.[tr. pt., p.21; tr.esp., p.56]. [grifos nossos] 51 Carta a Schelling de 2 de novembro de 1800. Apud Olivier DEPRÉ, “Introduction”, in HEGEL, L’Esprit du Christianisme et son Destin, p.31. [grifos nossos]

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Schelling, asseverando sua convicção sobre a necessidade de instauração de um

sistema filosófico. Havia então chegado o momento de edificar um sistema de

pensamento capaz de solucionar a crise da desunião tal como traduzida nos

fenômenos do mundo. É assim que se impõe, segundo Hegel, a necessidade de

filosofia.

3.3 A inquietude do instante

Com o falecimento de seu pai, em janeiro de 1799, Hegel herdou uma

quantia suficiente para que pudesse deixar o trabalho como preceptor. Passados

dois anos, o filósofo mudou-se para Iena com o intuito de ingressar firmemente na

carreira acadêmica. Lá, retomou a amizade com Schelling e juntos editaram uma

nova revista, a Kritisches Journal der Philosophie. Foi também em Iena que

Hegel publicou seus primeiros textos – “Diferença entre os sistemas filosóficos de

Fichte e Schelling” e “Fé e Saber”52 – e começou a lecionar na universidade.

Nesse intervalo, entre os escritos de juventude e a publicação em 1807 de seu

livro mais famoso, A Fenomenologia do Espírito, situa-se o momento em que o

filósofo elaborou sua metodologia. Os artigos e os cursos de Iena, constituem, por

assim dizer, o laboratório do pensamento de Hegel, o espaço no qual forjou suas

armas, como diz Koyré.53 Para o problema da continuidade histórica, analisado a

partir da perspectiva de história do filósofo, a consideração deste momento

importa por três motivos: em primeiro lugar, porque nos ajuda a perceber como

Hegel articulou sua filosofia tanto com seu pensamento de juventude, quanto com

os outros sistemas filosóficos então existentes; em segundo lugar, porque na

realização desta articulação se mostra a compreensão que ele possuía de sua

própria época e da temática da contingência; e, por fim, porque nos permite

entrever como a necessidade de dar conta filosoficamente do atributo de

contingência dos fenômenos conduziu Hegel a colocar a história no centro de suas

reflexões. Nesse sentido, Hegel à Iena constitui um texto fundamental para a

52 Respectivamente Differenz des Fichtesches und Schellingschen Systems der Philosophie e Glauben und Wissen (no qual Hegel se dedica a analisar a filosofia de Kant, Jacobi e Fichte). Aqui utilizamos a versão francesa, traduzida por Marcel Méry, publicada com o título de Premières Publications. Différence des Systemes Philosophiques de Fichte et Schelling. Foi et Savoir. 53 KOYRÉ, op. cit., p.151.

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presente argumentação, pois sua leitura forneceu a chave interpretativa para a

filosofia da história hegeliana que se ajusta a este estudo sobre os modos de

apreensão e escrita da história surgidos marcadamente após a eclosão da

Revolução Francesa, momento em que se verifica a ruptura definitiva entre espaço

de experiência e horizonte de expectativa. Isto porque Koyré tem como ponto

central em sua análise o fato de que, nestes cursos, Hegel, ao postular a primazia

do devir sobre o ser, retirava a prioridade do passado, transferindo-a para futuro.

Hegel instaurava assim a primazia do futuro: era no futuro e não no passado que

se encontrava a meta da realização do espírito e, conseqüentemente, sobre o devir

recaía a ênfase não apenas de sua filosofia da história, mas de seu sistema de

pensamento.

Ao final do século XVIII, a idéia de sistema se estabeleceu no cerne das

preocupações de Hegel. Como ele próprio dissera em carta a Schelling, fazia-se

necessário transformar sua preocupação de juventude em um sistema, ou seja, em

uma totalidade.54 Para tanto, era preciso encaminhar suas considerações sobre a

cisão entre particular e universal para o campo exclusivo da razão, isto é, para a

filosofia. Com esta intenção, uma vez em Iena, Hegel dedicou-se, principalmente,

ao estudo dos principais sistemas filosóficos então em voga: os de Kant, de Fichte

e de Schelling.

Seria possível pensar que neste momento ocorre uma ruptura com o

pensamento que Hegel vinha desenvolvendo até então, entendendo-se a escolha

do filósofo como um movimento de deixar para trás todo o questionamento acerca

da necessidade de um pensamento efetivo, capaz de dar conta objetivamente da

multiplicidade de manifestações, dirigindo-se para a área da reflexão puramente

especulativa. Esta é, por exemplo, a interpretação que nos fornece H. Ehrenberg,

primeiro editor que os textos produzidos em Iena tiveram no século XX. Para

Ehrenberg, segundo conta Koyré, Hegel, impressionado com os acontecimentos

históricos de sua época, teria desistido da possibilidade de agir no mundo, optando

54“Sistema tornou-se, na nossa época, uma palavra de reprovação porque se lhe associa a noção de que ele se atém a um princípio unilateral. Mas o significado genuíno do sistema é a totalidade, e ele só é verdadeiro enquanto tal totalidade, a qual começa no mais simples e, mediante o desdobramento, se faz sempre mais concreta.”, afirmaria Hegel na década de 1820 em uma das introduções para as lições sobre a história da filosofia. Cf. HEGEL, Introdução à História da Filosofia, p.97.

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então somente por explicá-lo.55 Não há dúvidas de que o filósofo possuía uma

percepção aguçada de seu tempo. Ele havia compreendido com clareza o caráter

transitório que permeava o cotidiano dos eventos. Em um trecho conhecido do

Prefácio da Fenomenologia, vemos a expressão tanto dessa sensação de

transitoriedade como do movimento constante em direção ao futuro na realização

do espírito. Diz Hegel :

Não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e trânsito

para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua transformação. Certamente, o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para frente. Na criança, depois de um longo período de nutrição tranqüila, a primeira respiração – um salto qualitativo – interrompe o lento processo do puro crescimento quantitativo; e a criança está nascida. Do mesmo modo, o espírito que se forma lentamente, tranquilamente, em direção à sua nova figura. Vai desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu mundo anterior. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido são os sinais precursores de algo diverso que se avizinha. Esse desmoronar-se gradual, que não alterava a fisionomia do todo, é interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo.56

Deste modo, como afirma Koyré, a idéia de uma filosofia que renuncia ao

mundo parecer pouco hegeliana. Hegel, de fato, não abandonou sua reflexão de

juventude. Assim, é preferível, e também mais coerente, interpretar-se a ruptura

apontada por Ehrenberg como um passo necessário na construção de seu sistema,

isto é, uma espécie de degrau galgado pela razão na superação de si mesma (ou

suprassunção para empregar-se o termo hegeliano): transformar disse o filósofo

na carta a Schelling, e não abandonar ou mesmo rechaçar. Desse modo, se torna

plausível a afirmação de que, já nesta ocasião, Hegel compreendia seu próprio

pensamento segundo um movimento dialético, de forma que os estudos sobre a

positividade da religião cristã se convertem em elemento necessário para a

edificação de seu sistema filosófico.

55Ehrenberg refere-se a esta ruptura comparando, sobretudo, os textos de Iena a um primeiro esboço de 1800 que Hegel fez de um sistema filosófico, cujo texto apenas se conhece um fragmento, o assim chamado Systemfragment. Cf. KOYRÉ, op. cit., pp.153-4. Entendemos que os Escritos de Juventude também podem ser incluídos nesta comparação, uma vez que neles também a busca de Hegel por uma moralidade que sirva de guia para as ações dos homens neste mundo encontra-se presente. 56 HEGEL, Fenomenologia do Espírito, p.31.

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Ao observarmos as considerações de Hegel anos mais tarde, na época em

que ministrou a disciplina sobre a história da filosofia – disciplina, aliás, que ele

mesmo criou –, logo na introdução do curso, é possível notar que ele não só iria

aperfeiçoar a maneira dialética de compreender a sua filosofia, bem como a

estenderia à filosofia como um todo. Já como ocupante da cátedra de filosofia

mais importante das universidades germânicas, a da Universidade de Berlim,

afirmava Hegel:

Na filosofia enquanto tal, na filosofia de hoje, a última, está contido tudo

o que o trabalho de milênios produziu; ela é o resultado de tudo que a precedeu. E este mesmo desenvolvimento do espírito, historicamente considerado, é a história da filosofia. Ela é uma história de todos os desenvolvimentos do espírito a partir de si, uma exposição destes momentos, estágios, como se sucederam uns aos outros no tempo. A filosofia é a exposição do desenvolvimento do pensamento, como ele é em si e para si, sem acessórios; a história da filosofia é este desdobramento no tempo.57

Hegel estava ciente do momento de transição em que vivia. Tanto que,

cônscio de estar presenciando uma época na qual todos os modelos tradicionais de

apreensão da multiplicidade estavam desmoronando, o filósofo argumentaria em

favor da necessidade de filosofia. A “harmonia despedaçada”, a “cisão” ocorrida

na cultura de uma época é que faz surgir a necessidade de filosofia: ela é sua

fonte. Portanto, na perspectiva hegeliana, a filosofia nasce em função de uma

situação dada historicamente e, neste sentido, contingente.

O que se percebe no período de Iena é ainda o despontar dessa construção

sistemática do pensamento.Em correspondência a Schelling, ainda em 1795,

Hegel já apontava para esta ligação entre os acontecimentos históricos e o papel

da filosofia: “nestes dias de reviravoltas políticas, a filosofia encontra seu lugar; é 57 HEGEL, Introdução à História da Filosofia, p.97. Também na divisão da história da filosofia proposta por Hegel é possível entrever a dimensão que a noção de sistema ganha em sua filosofia. Hegel divide a história da filosofia em três períodos, a saber: de Tales de Mileto a Proclus, marcando respectivamente o início e o fim do mundo antigo; a época cristã até a Reforma; e, por fim, o período que inicia com Descartes e termina em sua própria filosofia. A este respeito, ainda, lembramos da famosa referência ao vôo no anoitecer da coruja de Minerva, no prefácio de 1820 da Filosofia do Direito, na qual Hegel afirma que a filosofia só aparece quando a realidade está formada em sua totalidade, ou seja, a filosofia só se torna de fato reflexiva, consciente de si, na modernidade, mais especificamente, com o próprio Hegel. “Apenas mais uma palavra com respeito ao desejo de ensinar ao mundo o que deve ser”, diz Hegel, “para tal propósito a filosofia quase sempre vem muito tarde. A filosofia, como pensamento do mundo, não aparece até que a realidade tenha completado seu processo formativo (...). A história, então, corrobora o ensinamento da concepção de que somente na maturidade da realidade o ideal aparece como contraposição do real, apreende o mundo real em sua substância e o modela em um domínio intelectual. (...) A coruja de Minerva levanta seu vôo apenas quando as sombras da noite estão se reunindo”. [grifos nossos] HEGEL, “Preface”, Philosophy of Right, p.25

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aí que o pensamento procede e molda a realidade”, isto porque “quando uma

forma do espírito não traz mais satisfação, a filosofia presta rapidamente atenção e

procura compreender o descontentamento”58, alegava então o jovem filósofo.

Encontramos afirmação análoga, porém agora estruturada dentro da análise

filosófica, em um tópico intitulado “A Necessidade da Filosofia”, presente na

introdução do artigo sobre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling:

Quando o poder de unificação desaparece da vida dos homens e quando

as oposições, tendo perdido sua relação viva e ação recíproca, adquiriram sua independência, então nasce a necessidade de filosofia. Nesta medida, essa necessidade é algo de contingente, mas, sob a cisão dada, ela é também a experiência necessária para suprimir a oposição da subjetividade e da objetividade antes fixadas.59

Mais uma vez retornamos ao ponto que assinala a presença do tema da

contingência na filosofia de Hegel desde os primeiros tempos de sua construção.

Hegel havia mudado a ênfase dada à religião nos Escritos de Juventude, sem

contudo alterar a compreensão que tinha de seu tempo. Assim sendo, a percepção

da instabilidade do presente, relacionada à indeterminação do futuro tal como

vimos no primeiro capítulo desta pesquisa e apontamos no tópico anterior, é

fundamental para compreensão do caminho trilhado pela reflexão hegeliana rumo

à conexão do pensamento abstrato com a temporalidade e, assim, com a questão

da história. Pois foi no intuito de criar um sistema filosófico, ao mesmo tempo,

móvel e acabado, que deixasse para trás noções que se mostravam estáticas e, por

conseguinte, incapazes de realizar a síntese que reuniria as oposições, que Hegel

deslocaria o problema do campo do conhecimento abstrato para o campo da vida

espiritual concreta, em suas manifestações60. Assim, o dedicar-se à análise dos

sistemas filosóficos de seus predecessores, fortaleceria, na perspectiva da Hegel, a

necessidade do pensamento objetivar-se no mundo. Ao invés de simplesmente

influenciar-se pelas filosofias de seus antecessores e de se encaminhar ainda mais

ao pensamento abstrato, Hegel dirigiria sua filosofia à concretude da história. Isto

porque, para ele, as formulações sistêmicas de Fichte e de Schelling, assim como

58 Carta da Schelling de 16 /04/1795. Apud Hanna ARENDT, “A solução de Hegel”, in A Vida do Espírito, p.220. 59 HEGEl, Différence des Systemes Philosophiques de Fichte et Schelling, p.88. Em nota sobre esta passagem, diz Koyré : “A aparição da filosofia é mesma da necessidade de filosofia, são contingentes e imprevisíveis. Porém, onde aparece, a filosofia é sempre filosofia”. KOYRÉ, op. cit.,p.155. 60 Cf. CASSIRER, Hegel”, in El Problema del Conocimiento, v.III, p.351.

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as de Kant, não foram capazes de promover a união dos opostos, permanecendo,

todavia, transcendentes com relação à razão e, por conseguinte, com relação ao

espírito. “Permaneceram imóveis e inconscientes”, como escreve Koyré, e

Hegel pensa que ele precisa ir mais longe, mais alto. Colocar o não no

sim; fazer ver o múltiplo no um em si. Fazer ver no infinito mesmo, o finito; no eterno, o tempo, o movimento, a inquietude, que é, para ele, a essência mesma do real.61

Portanto, foi baseado na inquietude do instante que Hegel ergueu seu

sistema filosófico. Ou seja, a partir da consciência de que tudo que vive é efêmero

e está em constante movimento. “O determinado não tem, enquanto tal, alguma

outra essência que esta inquietude absoluta de que não é o que é”, anotou Hegel

em um dos cadernos dos cursos de Iena.62 O ser de tudo aquilo que é, é

movimento, pois sua essência não repousa em si mesmo, mas no processo de

transformação de si. Recordemos do movimento dialético e da necessidade de

existência de um termo de negação para a realização do espírito. Tendo a

inquietude essencial do ser em mente, o filósofo determina-se a refundir os

conceitos, a torná-los mais dinâmicos. Assim instaura a razão como princípio,

como essência para o Absoluto mas, à diferença das outras filosofias, este

princípio era móvel, pois se desenvolvia ao longo do tempo, e tinha na efetivação

da consciência-de-si sua meta. O espírito é, neste sentido, essencialmente

histórico, temporal.

Esta percepção da inquietude, isto é, de que na essência do ser o que existe

é movimento, é enfatizada por Koyré no artigo em que trata dos cursos que Hegel

ministrou neste período em Iena, como a intuição metafísica mais profunda

concebida pelo filósofo. Para o comentador, Hegel não fez em seus cursos do

período de Iena outra coisa que tentar fazer “ver” a inquietude. “A percepção

desta inquietude (...) está na base do que chamamos dinamismo hegeliano, a

primazia do tornar-se sobre o ser” 63, afirma Koyré.

61 KOYRÉ, op. cit.,p. 162. 62 HEGEL, Jeneser Logik, ed. Lasson, vol. XVIII, p. 146. Apud, KOYRÉ, op. cit., p.165. 63 Idem, nota n°3. Diz Koyré: “A inquietude do ser (...) tal parece ser ter sido a intuição metafísica mais profunda de Hegel. (...) O ser é inquieto, isto é, ele não repousa em si mesmo, ele não é ele mesmo; ele é outra coisa que ele mesmo, não satisfeito de si; mais ainda: o ser não repousa em si mesmo, mas se evita e se nega para tornar-se um outro que ele mesmo e, ao mesmo tempo, se realizar na negação de si. (...) esta intuição, nos parecer ser essencialmente aquela do homem, e também essencialmente, aquela do tempo.” [grifos nossos]

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3.4 A primazia do futuro

“É a insistência sobre o futuro, a primazia do porvir sobre o passado, que

constitui (...) a maior originalidade de Hegel”64, afirma Koyré. Embora não seja o

objetivo dessa reflexão verificar se, com efeito, tal insistência constitui ou não “a

maior originalidade” da filosofia hegeliana. Compreendemos que o fato de Hegel

ter tido a percepção de que a questão central de sua época residia na abertura do

futuro à indeterminação e ter direcionado seus esforços não somente para

compreender o devir, como também para determiná-lo, lhe garantiu um lugar sui

generis não só na história do pensamento como na história do pensamento sobre a

história. Com isto, sugerimos que a consideração da filosofia de Hegel a partir da

primazia concedida por ele ao futuro e, por extensão, à questão do devir e à

tentativa de eliminação da contingência do mundo fenomênico, possa constar

entre os principais motivos que justificam não só a influência do filósofo em sua

época e como a sua permanência como interlocutor até os dias de hoje – pois

basta lembrar o quanto é recorrente, para aqueles que se dedicam à análise de

questões referentes à modernidade, encontrar menções aos pressupostos

hegelianos.

Esta mudança de ênfase do passado para o futuro se mostra nas passagens

em que Hegel analisa a questão do tempo. E, se o que interessa é compreender o

devir, abordar a questão do tempo se torna, portanto, imprescindível. Como

vimos, de acordo com Koyré, o devir representa um aspecto decisivo no

pensamento hegeliano, pois revela a historicidade do espírito e também o caráter

dialético que a dimensão temporal tem para Hegel. Ou seja, o espírito se revela no

tempo e este, por sua vez, transcorre de forma dialética: desta maneira, na

conjunção de espírito e tempo, Hegel constrói a dialética do espírito. Para o

filósofo, o tempo não é apenas uma moldura, algo vazio.

Com base nas traduções que Koyré faz dos trechos que tratam da questão

do tempo nos cursos de Iena, pode-se dizer, resumidamente, que na reflexão

hegeliana o tempo encontra-se estruturado em três dimensões: agora, porvir e

passado. O presente, ou o agora, é a determinação imediata do tempo, ou seja,

aquilo que é, e constitui sua primeira dimensão. A segunda dimensão do tempo é 64 KOYRÉ, “Hegel à Iena”, p.177.

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o porvir, o futuro. O futuro é a alteridade do presente e, portanto, sua negação. A

essência do futuro é a mesma do presente, porém ela só existe como

representação, não existe de fato. É enquanto outro, isto é, como negação, que o

futuro se torna o gerador do movimento do tempo e, daí, advém seu papel como

detentor de primazia no sistema hegeliano. Já o passado é o tempo concluído,

completo, que se totaliza no presente para que o espírito possa seguir avançando

em seu processo de auto-consciência. Pois se o passado não for absorvido e, como

afirma Koyré, sublimado pelo presente, a progressão do espírito no tempo não se

verificará. Assim, ainda que prevaleça a divisão em três partes, as dimensões se

unem no presente, pois o espírito necessita de um momento de efetivação – neste

sentido, de um momento de eternidade. Entretanto, ao mesmo tempo, o agora

constitui um ainda não, um instante dirigido ao porvir65, porque o movimento de

realização do espírito precisa continuar. Desse modo, não é do passado e sim do

futuro que provém o tempo: “a ‘dimensão’ prevalecente do tempo é o futuro que

é, de certo modo, anterior ao passado.”66

Talvez a compreensão do que representa a inversão que coloca o futuro

como guia da temporalidade se torne mais clara, e também mais interessante, se a

considerarmos não só em termos do que o futuro representa para a realização do

espírito, mas, sobretudo, o que representa para o homem. Para o homem, o futuro

pode também ser compreendido como lugar da negação do presente, à medida em

que nele se depositam as esperanças e expectativas, ou seja, aquilo que no agora

ainda não é. Neste sentido, nos ampara a argumentação de Koyré, quando este

afirma que

o tempo hegeliano é, antes de tudo um tempo humano, o tempo do homem, ele mesmo este ser estranho que ‘é o que não é e não é o que é’ (...); ser que não existe senão nesta transformação contínua de porvir em agora, e que cessa de ser no dia onde não haja mais, ou nada não está mais porvir, ou tudo já tenha vindo, onde tudo já está ‘completo’. E é porque o tempo hegeliano é humano que é também dialético, como é porque ele é um e outro que é, essencialmente, histórico.67

65 Tal como reforçado pela etimologia das palavras que designam o futuro seja em português onde porvir é proveniente de por vir, seja em francês que avernir origina-se de à venir, seja em alemão que Zukunft vem de zu kommen. 66 KOYRÉ, op. cit., p.177. A este respeito dirá Hegel em 1820 na Filosofia do Direito: “O tempo encontra sua verdade no futuro, já que é o futuro que terminará e realizará o Ser. Mas o Ser, terminado e realizado, pertence como tal ao passado.” HEGEL, Philosophy of Right, p.178. 67 KOYRÉ, op. cit., p.177.

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“Essa reversão da seqüência de tempo mais comum – passado-presente-

futuro – é causada pela negação que o homem faz de seu tempo presente: ele ‘diz

não ao seu Agora’, criando assim seu próprio futuro,”68 afirma Arendt sobre a

faculdade da vontade em sua articulação com o futuro. Portanto, nesta perspectiva

relacionada ao homem, é possível se perceber melhor a conexão entre tempo,

espírito e história tal como efetuada por Hegel. Nesta consideração sobre como a

prevalência da dimensão temporal do futuro afetaria a noção de história formulada

por Hegel, ou mesmo o quanto ele teria sido responsável pela consecução desta,

fizemos o exame sobre o modo como o postulado da primazia do futuro se

apresentou em relação ao momento histórico no qual Hegel o concebeu, ou seja,

tomando como pano de fundo o período em que ocorre o descompasso definitivo

entre as categorias epistemológicas espaço de experiência e horizonte de

expectativa.

Desta forma, entendemos que o postulado da primazia do futuro marca o

alinhamento da filosofia de Hegel com as transformações ocorridas em seu tempo,

sobretudo aquelas que dizem respeito à apreensão da temporalidade da história.

Pois, um dos principais traços da modernidade – compreendida como um novo

tempo que reconhece em si mesmo o caráter de novo – reside justamente no fato

das expectativas sobre o futuro terem se desvinculado de tal forma das

experiências, que os homens viram-se diante de uma incógnita no que diz respeito

ao porvir. Assim, enfatizar o futuro corresponde ao anseio de Hegel de solucionar

tal incógnita, mas também à tentativa de extirpar a indeterminação surgida em

função da noção de progresso ilimitado69, uma vez que o gesto hegeliano possui

na determinação do espírito sua finalidade.

Transposta para a história – a qual Hegel, assim como Kant, já havia

compreendido como um processo de eventos singulares – a formulação da

primazia do futuro elide a contingência presente na efemeridade dos fenômenos,

instituindo-lhes um télos. Em outras palavras, a prioridade do futuro em relação

ao passado nos leva a perceber como, na filosofia da história hegeliana, a

68 ARENDT, A Vida do Espírito, p.217. 69 Pois, lembramos aqui quando Koselleck diz que “o futuro desse progresso é caracterizado por dois momentos: por um lado, pela aceleração com que se põe à nossa frente; por outro lado, pelo seu caráter de desconhecido.” In KOSELLECK, “O futuro passado dos tempos modernos”, p.36.

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teleologia viria a ser a mais forte característica.70 Desse ponto de vista é possível

compreender Walter Kaufmann, quando este chama atenção para o fato de que na

obra de maturidade de Hegel, a meta transformar-se cada vez mais em agente

movente da reflexão. A meta é questão, não a própria atividade. Hegel, nas

palavras de Kaufmann, insiste na meta “mais que nos sacrifícios, na crescente

aceitação da liberdade, mais que na lentidão de seu cumprimento, na razão mais

do que na ‘desrazão’”71. Ou no futuro mais que no passado, acrescentaríamos.

Ainda no eixo de análise da primazia do futuro, a ênfase na meta

representa outra característica desta modernidade segundo a qual o presente se

manifesta cada vez mais senão como um não lugar, ao menos como um lugar de

transição. Algo que, pensado nos termos das três dimensões temporais, de Hegel

pode ser compreendido como aquele momento em que o espírito ainda não se

realizou.

Pretendemos até aqui apontar como se forjou o caminho para que a história

viesse a ocupar o lugar central que Hegel lhe destina em suas reflexões. Foi

justamente baseado na inquietude contida no instante, que se manifesta na

consciência da finitude e que concedeu ao futuro a responsabilidade pelo

movimento dialético do tempo, que Hegel formulou a indagação que serviria de

guia para a sua consideração sobre a história: afinal, qual é o fim último de todas

estas manifestações que assistimos na história? Ou seja, qual o sentido de todas

estas singularidades? A pergunta pelo sentido da história, que a filosofia hegeliana

se propôs a responder, dirige-se, portanto, ao futuro e não ao passado.

3.5 Continuidade e reconciliação: a filosofia da história de Hegel

Se consideramos o mal, a perversidade e a decadência dos impérios mais

florescentes que o espírito humano produziu; se olhamos aos indivíduos com a mais profunda piedade por sua indizível miséria, havemos de acabar lamentando com dor esta caducidade (...). Sem nenhum exagero retórico, simplesmente

70 Sob este prisma, compreendemos a afirmação de Caldas em sua análise da filosofia da história de Hegel, quando o autor declara que a noção de “télos como elemento central do pensamento hegeliano, não é sinônimo de repouso, mas sim de reconhecimento de que não há outra essência na vida humana do que o movimento.” Pedro CALDAS, O que Significa Pensar Historicamente, pp.56-7. 71 KAUFMANN, Hegel, p.248.

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recopilando com exatidão as desgraças que sofreram as criações nacionais e políticas e as virtudes privadas mais excelsas ou, ao menos, a inocência, poderíamos pintar o quadro mais pavoroso e exaltar o sentimento até o luto mais profundo e inconsolável, que nenhum resultado compensador seria capaz de contrapesar. (...) Mas ainda quando consideremos a história o altar diante do qual foram sacrificadas a sorte dos povos, a sabedoria dos Estados e a virtude dos indivíduos, surge sempre ao pensamento, necessariamente, a pergunta: a quem?A que fim último se ofereceu este enorme sacrifício?72

É desta forma que a pergunta sobre o fim último para o movimento

incessante de surgimento e decadência dos fenômenos aparece nas lições de Hegel

sobre a filosofia da história. Esta questão, como afirma o próprio autor na

seqüência da argumentação, é o problema presente desde o começo do

pensamento sobre o tema da história. Mas não só. Tal como se procurou indicar

no percurso desta investigação, a busca do filósofo por um sentido para os

acontecimentos ao longo do tempo é anterior à formulação explícita que o tema

ganharia nas lições sobre a filosofia da história. É o que se lê, por exemplo, em

carta de 1810, na qual Hegel afirmara que preferia enfrentar a miséria da

humanidade com sua filosofia, ao invés de fechar seus olhos para os

acontecimentos. Era preciso, portanto, justificar os sofrimentos registrados na

história, não sendo admissível, em sua opinião, que tivessem ocorrido em vão.73

A certa altura de sua analise sobre a visão do filósofo sobre a história,

Walter Kaufmann utiliza-se de um viés psicológico, na tentativa de compreender

este posicionamento de Hegel. A opção, contudo, não chega a justificar o

pensamento do filósofo. Kaufmann recorda que a aflição humana é um tema

recorrente na própria vida de Hegel: Hölderlin, seu amigo mais íntimo na

juventude, vivera os últimos trinta e seis anos de sua vida isolado em uma torre,

acometido de um forte desequilíbrio mental; sua única irmã também vivera à beira

demência; seu único irmão morrera nas guerras napoleônicas; e, por fim, sua mãe

falecera quando o filósofo ainda era apenas uma criança de três anos.74 O

interesse dessa análise, segundo entendemos, é o modo como o comentador

relaciona tais desventuras pessoais à questão de Hegel não partilhar da noção

corrente de otimismo. Isto porque o otimismo do filósofo não estava associado à

compreensão de que o progresso remete à felicidade. Se Hegel era otimista, não

era o porque julgava seu tempo um momento mais feliz na história universal, e

72 Id.., VG, p. 35 (tr. esp., p.80) 73 Cf. Walter KAUFMANN, Hegel, p. 248. 74 Id., pp.248-9.

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sim porque esta representava o sucesso da efetivação do espírito. Na história,

afirma, “períodos felizes são páginas em branco”. Pois estar feliz, em sua

concepção, é sinônimo de estar em harmonia consigo mesmo, o que em se

tratando do espírito, representa épocas em que cessam as oposições e, portanto,

onde não há movimento. “Se pode tomar também a felicidade como ponto de vista

para a consideração da história”, argumenta, “mas a história não é o terreno para a

felicidade.”75

Existe, todavia, possibilidade de satisfação na história, mas tais momentos

não equivalem àqueles que normalmente se compreendem como felizes, pois estes

são particulares e na história só há espaço o que é universal. Épocas de satisfação,

repetimos, estão relacionadas a períodos em que as oposições cessam. E o

cessamento das oposições, indica que um determinado espírito chegou ao apogeu,

ao máximo da realização de si. Porém, o apogeu é também decadência, é também

o início da estagnação ou do declínio deste espírito. Tanto um momento quanto o

outro representam a morte do ponto de vista da história universal. Assim, é

possível compreender que há um tom de tragédia, marcado pela consciência da

finitude, presente na compreensão de Hegel sobre o desenrolar dos

acontecimentos.76 O ponto será retomando mais adiante, por ora basta ter em

mente que a morte constitui um elemento fundamental no processo de

desenvolvimento do espírito absoluto. É mesmo possível afirmar que a partir desta

consciência da finitude Hegel transforma a história no palco da reconciliação do

particular com universal, ou, do humano com o divino. E é este papel

reconciliador que faz da filosofia da história, segundo o nosso entendimento, uma

espécie de corolário da filosofia de hegeliana.

Cronologicamente, as lições sobre a filosofia da história constam entre as

últimas atividades acadêmicas realizadas por Hegel em vida. O curso foi repetido

algumas vezes a partir de 1822, sendo que o último manuscrito de autoria do

próprio Hegel data de outubro de 1830. No começo de 1831, ano em que Hegel

faleceu, as aulas sobre o tema da história foram ministradas pela última vez. De

fato, do ponto de vista cronológico, este momento pode ser interpretado como o

trabalho final de sua vida. Mas desejamos compreendê-lo com o corolário de seu

75 HEGEL, VG, pp. 41-2 (tr. pt.,p.30; tr. esp., p.88) 76 Sobre a compreensão da filosofia da história de Hegel como tragédia ver Pedro CALDAS, “A Filosofia da História de Hegel: Brilho e Miséria da Vontade”, in op. cit., pp.45-67

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pensamento a partir de uma consideração hegeliana de sua filosofia. Adotando o

ponto de vista que o filósofo tributou a si mesmo, a filosofia da história reúne em

uma totalidade e, portanto, como um sistema, os conceitos e formulações

principais de sua reflexão. Visto que é através dela, da consideração racional da

história, que o espírito atinge sua realização.

Neste tópico, procuraremos mostrar como se configura a filosofia da

história hegeliana e como nela se desenvolve o espírito, levando em conta,

portanto, o movimento progressivo e dialético por ele realizado no intuito de

alcançar a consciência-de-si. É neste movimento que Hegel subverte a tradicional

ordem temporal passado-presente-futuro e instaura a primazia do porvir, na qual

tanto se elimina a questão da contingência, como se desfazem as oposições entre

parte-todo, particular-universal, homem-divindade. É assim que, adiantamos, a

filosofia da história hegeliana, com respeito à solução proposta para o problema

da continuidade histórica, pode ser compreendida como reconciliação, ainda que

ao mesmo tempo seja geradora de uma situação paradoxal.

O espírito absoluto necessita da história para efetivar-se no mundo. Mas

não de uma história qualquer e sim daquela observada de acordo com os

pressupostos da razão. Para tanto, no sistema hegeliano, os pontos de vista não

apenas da história mas também os da religião, os do pensamento filosófico que os

antecedem e de sua própria filosofia, encontram-se ali reunidos sob o propósito de

efetivação do espírito absoluto. Na filosofia da história, Hegel, explicitamente,

advoga para si a responsabilidade de saber o todo, tal como declarou aos seus

ouvintes:

O que disse até agora, e direi, todavia, não deve tomar-se como uma suposição – nem sequer pelo que se refere a nossa ciência –, mas sim como uma sinopsis do conjunto, como se o resultado da consideração que havemos de fazer – resultado que me é conhecido, porque conheço o conjunto.77

A história é a primeira a ser abarcada nesta totalidade. Logo na

apresentação do curso Hegel dedica-se a explicar o porquê da necessidade de

considerar-se a história filosoficamente. A filosofia não requer maiores

77 HEGEL, VG, p.22 (tr. pt., pp.17-8; tr. esp., p.44).

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determinações, pois, estas já foram tratadas em outros lugares de sua obra. O

relevante, naquele momento, é justificar a entrada da filosofia no campo da

história – gesto que Hanna Arendt compreende como um dos desdobramentos

mais importantes da Revolução Francesa, tal como mencionado no capítulo

anterior. Para Hegel, a história, da forma que os historiadores abordavam a

Revolução, se limitava à consideração do particular. Assim, a história sem a

abordagem racional da filosofia não faz outra coisa senão tratar do que é, em

último caso, contingente. “O mundo se vê segundo se lhe considera”, afirma o

filósofo. Por isto é necessário encará-lo com os olhos da razão, pois o conteúdo da

história universal é “racional e tem que ser racional”.78 De maneira que a inserção

da filosofia como guia para a reflexão histórica diz respeito, justamente, à

elevação do olhar sobre a história a uma categoria de observação do universal. Diz

Hegel:

A filosofia, pois, ao ocupar-se da história, toma por objeto o que o objeto

concreto é, em sua figura concreta e considera sua evolução necessária. Por isso, para ela primeiro não são os destinos, nem as paixões, nem as energias dos povos, junto às quais se empurram os acontecimentos; mas sim o que o primeiro é o espírito dos acontecimentos, que faz surgir os acontecimentos, este é Mercúrio, o guia dos povos.79

A filosofia história é, assim, este ponto de vista total. Não apenas uma

perspectiva possível, mas “a” perspectiva. Ela constitui a totalidade dos pontos de

vista e não uma idéia retirada a partir da abstração ou da desconsideração dos

demais. Mas haveria uma contradição na relação entre história e filosofia e Hegel

se mostrou ciente disto. “A história se refere ao que aconteceu,” afirmou, já o

“conceito, que se determina essencialmente por si mesmo, parece, pois, contrário

a sua consideração”, de modo que “o acontecido e a independência do conceito se

opõe mutuamente.”80 Porém, ele trata esta contradição, comumente pressuposta

entre os campos, como algo aparente. Contradição, aliás, que posteriormente

configuraria um dos argumentos de Burckhardt em sua rejeição à filosofia da

história por considerá-la uma contradição em termos, pois, tal como o historiador

declarara na introdução de sua palestra sobre o estudo do histórico, “a história, ou

seja a coordenação não é filosofia, e a filosofia, ou seja a subordinação não é

78 Id., Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universa, p.45 79 Ibid., p.46 80 Ibid., pp.41-2.

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história”81 Porém, na concepção hegeliana, o movimento de trazer a história para

o cerne do percurso para a efetivação do espírito, esvazia a contradição de sentido.

Pois,

à filosofia lhe são atribuídos pensamentos próprios, que a especulação produz por si mesma, sem consideração ao que existe; e, com esses pensamentos se dirige à história, tratando-a como um material e não a deixando tal como é, mas dispondo-a com a ordem do pensamento e construindo a priori uma história. 82

Assim sendo, para Hegel, o deslocamento da história para um lugar central

em sua reflexão, a coloca, de uma vez por todas, à serviço da filosofia. É na

temporalidade histórica que se desvelam as características do espírito absoluto; é

na história que o espírito se dá a conhecer ao longo do processo em que se

reconhece a si mesmo. “A filosofia da história não é outra coisa que a

consideração pensante da história.”83 É deste modo que a relação entre filosofia e

história encontra-se definida já nas primeiras sentenças das Lições. De maneira

que se o único pensamento que a filosofia traz consigo, segundo o filósofo, é o da

razão, isto é, o da convicção que a razão rege o mundo, por conseguinte, a história

universal também se desenvolveu racionalmente. Portanto, se o pressuposto da

razão para a história representava somente uma hipótese, com a filosofia da

história ele transforma-se uma certeza.

Considerando que o princípio da razão já tinha sido demonstrado no

campo da especulação filosófica, Hegel entendia ser necessário realizar o mesmo

no mundo dos eventos. Ou seja, tratava-se de expor a história segundo o princípio

da razão, no intuito de compreender as dores e sofrimentos do mundo, as

desventuras do mundo dos homens. Pois somente a partir de uma observação

racional seria possível separar o que é de fato importante, o que era em si

significativo para o desenvolvimento do espírito, e excluir tudo o que for não

essencial e contingente. Recordamos aqui que foi na introdução das Lições que o

filósofo afirmou que o objetivo da consideração racional da história não é outro

senão a eliminação do contingente, pois, esta “é o mesmo que a necessidade

externa, isto é, uma necessidade que remonta a causas, as quais são só

81 Jacob BURCKHARDT, Weltgeschichtliche Betrachtungen, p. 44 (Reflexiones sobre la historia universal, p.44.) 82 HEGEl, Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p. 41. [grifos do autor] 83 Ibid.

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circunstâncias externas.”84 Hegel passa, assim, à consideração do mundo dos

eventos.

Em suas lições, inicialmente, o filósofo trata das faces através das quais

compreende que a história se apresenta no mundo. Para Hegel, o espírito se

apresenta ao pensamento no mundo histórico segundo três categorias. A primeira

delas é a da variação. Nela, a história universal se mostra como teatro de formas

infinitas, na qual os acontecimentos se apresentam em uma sucessão incessante e

múltipla de figuras de indivíduos, povos e estados. É na categoria da variação que

se percebe o caráter negativo contido na temporalidade, pois na variedade de

manifestações do espírito, a fugacidade dos fenômenos históricos torna-se

explícita. “Tudo parece passar e nada permanecer”, e “quando uma coisa

desaparece vem outra no mesmo instante ocupar seu lugar”, diz Hegel. Sempre

que se encontra algo de belo que se possa contemplar no passado, saber que tal

fato é finito traz ao homem uma sensação de pesar e “o que oprime é que a mais

rica figura, a vida mais bela, encontra seu ocaso na história.”85 Esta situação, diz

ele, gera uma melancolia que todo viajante já sentiu. Melancolia que se assemelha

àquela sentida por Kant ao clamar por um sentido para o aspecto contingente dos

acontecimentos históricos. Manifesta-se aqui, portanto, o pesar, o luto, decorrente

da consciência da finitude.

Porém, ligado à variação, há um outro aspecto, dessa vez positivo, pois,

“uma nova vida surge da morte.”86 Trata-se da segunda categoria segundo a qual

a história se apresenta e que Hegel chamou de rejuvenescimento. Inspirada na

imagem oriental da fênix, isto é, no mito da transmigração das almas, a categoria

do rejuvenescimento é onde aparece assinalado pela primeira vez o movimento

dialético realizado pelo espírito. O mito da transmigração das almas é, na

concepção de Hegel,o pensamento mais alto produzido pela metafísica oriental. A

fênix descreve o movimento de uma vida que se prepara para a morte, construindo

para si mesma a pira onde se consumirá em chamas, para depois ressurgir das

cinzas em uma nova vida, mais jovem e fresca. Entretanto, essa imagem não serve

para o espírito, pois, segundo Hegel, ela diz respeito somente ao corpo. Por isto,

produz-se uma mudança quando, no ocidente, tal imagem se transpõe para a

84 Ibid., p.44. 85 Ibid., p.47. 86 Ibid.

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filosofia do espírito. No ocidente, ao renascer o espírito não só rejuvenesce mas

ressurge sublimado, esclarecido. Portanto, em verdade, essa segunda categoria de

apresentação do espírito na história mostra-se não só como rejuvenescimento mas

também como purificação e elaboração de si mesmo. Uma vez que o

rejuvenescimento do espírito, mais que um retorno à figura histórica anterior é

uma purificação desta e uma elaboração de si.

Assim é como na história vemos o espírito propagar-se em uma multidão inesgotável de aspectos, e gozar-se e satisfazer-se neles. Mas seu trabalho tem sempre o mesmo resultado: aumentar de novo sua atividade e consumir-se de novo. Cada uma das criações, em que se satisfez, se lhe apresenta como uma nova matéria que exige nova elaboração. A forma que recebeu se converte em material que o trabalho do espírito eleva a uma nova forma. Deste modo o espírito manifesta todas as suas forças em todas as direções.87

Entretanto, esta proliferação de manifestações particulares incessantes

conduz invariavelmente a uma situação fatigante e, na qual, mais uma vez surge a

pergunta: “qual é o fim de todas essas formas e criações?”. Como afirmamos, para

Hegel não é possível que tudo isto esteja a serviço de fins particulares, limitados

no interior de uma subjetividade qualquer. Todo este movimento deve ter como

resultado uma obra, mesmo que os antagonismos e a diversidade dos conteúdos

causem perplexidade ao observador. O questionamento acerca da finalidade dessa

intensa atividade do espírito de produzir figuras históricas e consumir-se nelas,

conduz à terceira e última categoria de apresentação apontada por Hegel. “É a

categoria da razão mesma, que existe na consciência, como fé na razão que rege o

mundo”88, cuja demonstração consiste no desenrolar da história universal.

Assim, tendo a razão como fim e, ao mesmo tempo, princípio, Hegel

concilia as particularidades representadas nas variações históricas em sua contínua

diversidade no tempo, com a universalidade do espírito absoluto. Desta maneira, o

que num primeiro momento pode parecer contingente transforma-se em um

elemento necessário no desenvolvimento do espírito. Pois o aspecto negativo

contido na categoria da variação gera o movimento, de forma análoga ao que

acontece com o futuro enquanto negativa do presente. A meta da efetivação do

espírito suprassume o negativo e o torna positivo, transforma em realização. Nesta

perspectiva, o ininterrupto processo de nascimento e morte de indivíduos

87 Ibid., p.48. 88 Ibid.

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históricos – um determinado povo, por exemplo – constitui o movimento do

espírito na realização de sua meta: conhecer-se no mundo.

Para respaldar sua argumentação, Hegel se propõe a “recordar” dois

momentos históricos em que a certeza de que há um princípio racional que

comanda o mundo e, por extensão, a história universal, se manifesta. Interessante

notar que, em ambos os exemplos, tal manifestação se afirma pela necessidade

que o espírito universal tem de expressar-se concretamente. Em primeiro lugar,

Hegel remete-se a Anaxágoras, filósofo grego pré-socrático. Anaxágoras teria sido

o primeiro pensador a falar que uma forma geral de inteligência, o nous, rege o

mundo. Não se tratava entretanto de um modo consciente de inteligência: o nous

de Anaxágoras, que também pode ser traduzido por espírito, ainda não é uma

razão ciente de si. O nous é o princípio pelo qual as matérias se compõem no

universo, através da união ou separação dos elementos (ar, água, terra e fogo),

limitando-se a isto. Assim em Anaxágoras, que Aristóteles descreveu como um

sóbrio entre ébrios, apesar de indicar-se que o espírito (nous) é o princípio gerador

dos fenômenos, não se encontra uma formulação sobre a relação de causalidade

entre tais fenômenos a partir do espírito. Como aponta Hegel, no Fédon de Platão,

Sócrates criticou o princípio de Anaxágoras por sua insuficiência de aplicação

concreta. Diz então Sócrates:

Certo dia ouvi alguém que lia um livro de Anaxágoras. Dizia este que “o

espírito é o ordenador e a causa de todas as coisas.” Isso me causou alegria. (...) À medida que avança e ia estudando mais e mais, notava que esse homem [Anaxágoras] não fazia nenhum uso do espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na ordem do universo, indo procurar tal causalidade no éter, no ar, na água, em muitas outras coisas absurdas!89

Sócrates censurava em Anaxágoras, a consideração de que, após o

momento de criação das coisas (a matéria), o universo teria permanecido

abandonado à atuação de forças mecânicas. Por este motivo, o nous seguia como

uma abstração, pois dele não derivava nenhum plano para o desenvolvimento das

coisas no mundo. Como Sócrates, Hegel clamava pelo desenvolvimento concreto

do princípio racional no mundo. O filósofo alemão recorre a este momento na

história do pensamento justamente para destacar o fato de que, já por volta do

século VI a.C., está presente a necessidade de uma unidade subjacente para 89 PLATÃO, “Fédon”, in Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1972, p.110, § 97-98.

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explicar as coisas do mundo, como também já se pode observar a constatação da

diferença que existe entre proferir uma definição ou um princípio, e o

desdobramento destes em uma determinação concreta. Neste ponto acerca da

necessidade de determinação do espírito no mundo, ou seja, da saída do campo

abstrato para o concreto, reside motivo da entrada da história na filosofia

hegeliana. Afirma Hegel:

Chamo atenção, desde agora, sobre a diferença que há entre estabelecer

uma definição, princípio ou verdade, de um modo meramente abstrato,ou levá-lo [evoluir para] a uma determinação mais precisa e a um desenvolvimento concreto. Esta diferença é fundamental e, entre outras coisas, a encontraremos principalmente no fim de nossa história universal quando trataremos da novíssima situação política.90

O segundo exemplo histórico considerado por ele nesta introdução pode

ser compreendido como o momento em que sua filosofia engloba as questões

religiosas. O filósofo passa, então, a abordar o tema da relação entre razão e

religião, a partir do surgimento do Cristianismo. Hegel recorda que há uma outra

fórmula bem mais conhecida acerca do postulado da razão como governante do

mundo: é aquela que diz que “o mundo não está entregue à contingência [Zufall],

nem a causas exteriores, contingentes [zufälligen], mas que uma Providência rege

o mundo”91. Diferentemente do nous de Anaxágoras, ele considera que a verdade

da religião cristã contida no princípio da Providência não se limita apenas a

justificar a origem das coisas, pois traça para elas um plano de desenvolvimento.

Assim, no âmbito da fé não apenas a origem tem justificação, mas a própria

existência no mundo tem uma finalidade última que serve de guia para seu

desenvolvimento. Entretanto, ainda se mantém o problema relacionado à

concretude, uma vez que, do ponto de vista da religião cristã, tanto Deus como

Seu plano não podem ser conhecidos pelo homem. Assim, a impossibilidade de

conhecer o divino coloca o princípio providencial no campo da abstração de

maneira análoga ao nous do grego Anaxágoras. Para a efetivação do espírito não

adianta apenas sentir ou intuir a existência de um princípio, é preciso conhecer sua

forma concreta no mundo pelo viés da razão.

90 HEGEL, VG, p.24 (tr.pt., p.19; tr.esp., p.50). [grifos nossos] 91 Id., VG, p.25 (tr.pt., p.19; tr.esp., p.50).

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A correspondência entre Deus e razão é central na reflexão de Hegel desde

a juventude. Kaufmann aventa mesmo a possibilidade de Hegel ter efetuado a

escolha do termo espírito [Geist] como princípio para a sua filosofia a partir desta

correspondência. Segundo autor, o filósofo teria sido influenciado, sobretudo, pela

conotação religiosa contida no termo, pois ao elegê-lo desejava nomear a força

geradora das diversas manifestações que desejava averiguar nos campos da ética,

da história, da arte, da filosofia e da religião. Geist serviria não só a tal propósito,

como também, vincularia, de uma só vez, as formulações de Hegel tanto à

tradição cristã como a poesia humanista de Goethe, Schiller e Hölderlin.92

Kaufmann recorda ainda que Geist – que equivale aos termos spiritus em latim,

pneuma em grego e ruaj em hebreu – pode ter também outros significados

interessantes que se relacionam com a idéia da filosofia de Hegel, como

respiração e vento, tendo um sentido de força móvel e essência da vida. Já do

ponto de vista da etimologia Geist é próximo a Yeast que em alemão quer dizer

fermento, levedura, algo que interessa pela perspectiva da significação conceitual,

pois se o compreendermos também como “força eruptiva”. Tendo eleito esta

palavra tão fortemente sugestiva, Hegel não teria resistido, em certas ocasiões, à

tentação de equipará-la a Deus, e teria dito: “não acredito em Deus, me basta o

espírito.”93

“A Providência divina é, com efeito, a sabedoria segundo uma potência

infinita que realiza seus fins, isto é, o fim último, absoluto e racional no mundo”,

afirma o filósofo. E, em virtude disto, também necessita ser considerado segundo

os critérios da razão. Deus é razão e, como tal, é passível de ser conhecido

racionalmente. Com base nesta certeza, Hegel declara que é chegado o momento

da filosofia fazer-se responsável pelo conteúdo da religião, mesmo que para isso

tenha que ir contra a algumas formas de teologia. Segundo a opinião do filósofo,

“há que refugiar-se na filosofia se se quer conhecer a Deus.”94 Por isso, reconhece

Hegel:

Poderia não ter dito que nossa afirmação de que a razão rege e regeu o mundo, se expressa na forma religiosa, quando afirmamos que a Providência rege o mundo.

92 KAUFMANN, Op.cit, p.267. 93 Ibid., p.268. 94 Id., Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p. 52.

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Assim não haveria recordado esta questão da possibilidade de conhecer Deus. Mas não quis deixar de fazê-lo,

Mesmo ciente de estar indo contra o axioma quase universal sobre o não

conhecimento de Deus, Hegel opta por manter sua posição. Tal atitude renderia ao

filósofo uma forte oposição e a acusação de panteísmo por parte dos defensores

do cânone religioso. Entretanto, para ele, se Deus não pudesse ser conhecido,

apenas aquilo que não é divino, ou seja, aquilo que é limitado e finito seria do

interesse do espírito e, por extensão, do homem. O sentimento e a intuição –

formas através das quais, tradicionalmente, se afirma conhecer Deus –, também

são “pensamentos”, pois lembre-se que, segundo Hegel, o homem pensa mesmo

quando não tem consciência disto. Porém é preciso tornar objetivo o

conhecimento fornecido pela fé, pois, ainda que se conheça Deus pela via do

sentir, deve-se buscar o conhecimento pela razão, visto que “Deus é o ser eterno

em si e por si; e o que é em si e por si é universal, é objeto do pensamento e não

do sentimento”.95 O sentimento é o modo mais inferior que um conteúdo pode ter,

por ser pura subjetividade particular. E, como o que é verdadeiro é em si algo

universal e este por sua vez só existe no e para o pensamento, é chegado o

momento em que é preciso superar o modo do sentimento e encarar racionalmente

a possibilidade de conhecer tanto Deus como seu plano providencial para a

história universal.

Seu argumento constrói-se sobre o fato de Deus ter se revelado ao homem

na religião Cristã. “Na religião cristã é que se sabe o que é Deus”, afirma Hegel

completando que “foi nela que se manifestou aos homens a natureza e a essência

de Deus” e por isso “Deus já não é agora um desconhecido.”96 Por isso,

Cristianismo mereceu um lugar especial na filosofia hegeliana, sendo considerado

a forma suprema que uma religião pode tomar, visto que a sua verdade (a

Providência rege o mundo) corresponde à verdade de sua filosofia (a Razão rege o

mundo). Portanto, como declara o filósofo, “os cristãos estão, pois, iniciados nos

mistérios de Deus e deste modo nos foi dada a chave para a história universal. No

Cristianismo há um conhecimento determinado da Providência e seu plano.”97

95 Ibid., p.53. 96 Ibid., p.55 97 Ibid.

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Também é nesse sentido, inclusive, que os mitos cristãos se mostram

apropriados para a sua filosofia, representando formas de antecipação dos

pressupostos da razão. Com a união entre Deus e homem na figura de Jesus

Cristo, por exemplo, a temporalidade histórica se torna preenchida e dotada de

sentido. De tal maneira que, como afirma Karl Löwith, na filosofia da história de

Hegel a história universal é dividida em antes e depois de Cristo não por mera

convenção, mas porque está em sua essência. Foi unicamente devido aos

pressupostos da religião cristã que Hegel pode, segundo Löwith, construir de

modo tão sistemático a história universal da China até a Revolução Francesa.98

É desta forma que o cristianismo equivale a um ponto fundamental no

caminho do auto-conhecimento do espírito. Mas o espírito necessitava seguir

adiante e fazer dele um momento superado, uma vez que em seu constante

movimento, não basta ao espírito a sabedoria subjetiva da fé. É o que se lê na

seguinte passagem:

A fé não é apta para desenrolar este conteúdo, a intuição da necessidade

esta dada só pelo conhecimento, o motivo pelo qual este tempo há de chegar é que o espírito não repousa; o ápice supremo do espírito, o pensamento, o conceito demanda seu direito; sua essência universalíssima e essencial é a natureza própria do espírito.99

Portanto, é preciso que haja também o conhecimento pela razão para que o

derradeiro desígnio do mundo seja perceptível. Como diz Kaufmann, “na filosofia

se transcendem as noções míticas e o sentimento subjetivo, assim como a intuição,

para chegar por fim a uma genuína compreensão.”100 Foi através da analogia com

o plano da providência para a história dos homens na terra, característico da

religião cristã, que a filosofia da história hegeliana uniu religião e razão, tornando

possível a elevação da fé ao modo racional de conhecimento. O plano da

Providência é o plano da razão. Em decorrência desta constatação, a história

hegeliana é compreendida como o desenvolvimento da natureza divina em um

elemento particular e determinado. E é assim também que o percurso desse

elemento particular e determinado é considerado como teodicéia. Portanto, para

Hegel, a história universal é uma teodicéia, ou seja, uma forma de justificação de

Deus. Afirma ele: 98 LÖWITH, O sentido da história, p.63-4. 99 HEGEL, Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p. 55 100 KAUFMANN, Op.cit, p.265.

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112

Nosso conhecimento aspira conseguir a evidência que os fins da

sabedoria eterna se cumpriram no terreno do espírito, real e ativo no mundo, da mesma forma que na natureza. Nossa consideração é, portanto, uma Teodicéia, uma justificação de Deus, como a que Leibniz tentou metafisicamente, a seu modo, em categorias ainda abstratas e indeterminadas: se propôs a conceber o mal existente no mundo, incluindo o mal moral, e reconciliar o espírito pensante com o negativo. (...) Na realidade, em nenhuma parte há maior estímulo para tal conhecimento conciliador que na história universal.

Esta reconciliação só pode ser alcançada mediante o conhecimento do afirmativo – no qual o negativo desaparece como algo subordinado ou superado – mediante a consciência do que é em verdade o fim último do mundo; e também de que este fim está realizado no mundo e de que o mal moral não prevaleceu na mesma medida que este fim último.101

Após o anúncio da reconciliação do espírito na história compreendida

como uma teodicéia, Hegel, por uma questão de coerência, não poderia

permanecer no mesmo patamar subjetivo da constatação da fé religiosa, e

contentar-se com apenas declarar tais correlações entre religião e filosofia. “Não

basta a mera crença no nous e na Providência”, disse Hegel, ciente de que razão

pode ser uma palavra tão indeterminada quanto Providência. Tendo tal questão em

vista, o filósofo se propõe a tratar da determinação, isto é, do conteúdo do espírito

no mundo, como passo seguinte de suas Lições.

A primeira forma de determinação do espírito é abstrata. Isto é, a

determinação da razão em si equivale a definir o fim último do mundo, a

finalidade que deve ser realizada na história. E o fim último da história

é que se produza um mundo espiritual conforme o conceito de si mesmo,

que cumpra e realize sua verdade, que produza a religião e o Estado de tal modo que sejam conforme seu conceito, que sejam seus na verdade ou na idéia de si mesmo (…) – a idéia é a realidade como espelho e expressão do conceito. 102

O espírito ganha, neste ponto da reflexão hegeliana, mais um termo que

lhe equivale. Se na perspectiva da religião o espírito é Deus e a Sua vontade, no

campo do pensamento filosófico ele passa a se chamar Idéia. E é a Idéia que deve

ser contemplada na história universal, porém, não em sua forma especulativa mas

em seu rebatimento sobre o espírito humano, isto é, na idéia de liberdade do

homem. “A existência do espírito consiste em ter a si mesmo como objeto”, de

forma que, de acordo com sua própria natureza, o espírito está em si próprio e, por

isto é livre. Assim, a liberdade do homem é a forma particular que o espírito toma 101 HEGEL, VG, p. 28 (tr.pt.,p.21; tr.esp., p.56-7). 102 HEGEL, Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p. 67.

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113

na história e que serve para medir o grau do desenvolvimento da consciência que

este tem de si mesmo. Não se trata, porém, da liberdade do homem enquanto

sujeito subjetivo, mas daquela que o homem possui por viver segundo sua própria

essência.

De acordo com Hegel, a liberdade é também a substância do espírito. Ela é

parte fundamental da natureza espiritual, e pode ser concebida através da

apreensão de seu contrário, isto é, a matéria. Na mesma medida que a gravidade é

a substância da matéria, a liberdade é a substância do espírito. A matéria não

possui seu centro em si mesma, necessitando da gravidade para manter a sua

unidade, que por seu turno é apenas ideal uma vez que resulta da junção de uma

multiplicidade de partes singulares agregadas pela força (externa) da gravidade.

De modo que a substância da matéria encontra-se fora de si mesma;

diferentemente do que ocorre com espírito cujo centro reside em si mesmo. E ter o

centro em si mesmo, significa dizer que o espírito é uma consciência que tem a si

próprio como objeto. Tal independência de elementos externos é a liberdade de

que se falou. “Pois se sou dependente, me refiro a outra coisa que não sou eu e

não posso existir sem essa coisa externa. Sou livre quando estou em mim

mesmo”103, explica o filósofo, complementando que “a independência do homem

consiste nisto: saber o que o determina.”104

A partir desta determinação abstrata do espírito se estipula o conteúdo da

história universal, pois esta é a exposição de “como o espírito trabalha para saber

o que é em si. E, como a semente carrega em si a natureza da árvore, o sabor e a

forma dos frutos, os primeiros traços do espírito contêm também, virtualmente,

toda a história.”105 E aqui Hegel profere o famoso trecho, citado até mesmo por

Burckhardt, acerca do caminho percorrido pelo espírito na história rumo à

efetivação de si, indo do Oriente para o Ocidente, do lugar onde um homem era

livre para aquele em que todos os homens são livres e, portanto, onde a liberdade

é plena. Diz o filósofo:

Os orientais ainda não sabem que o espírito, ou o homem como tal, é

livre em si mesmo; e porque não sabem, eles não o são. Eles sabem apenas que só um ser humano é livre, mas por isso mesmo tal liberdade é apenas arbitrariedade, barbárie e embrutecimento reprimidos, ou suavidade da paixão, mansidão dessa

103 Ibid., p.61 104 Ibid., p.64. 105 HEGEL, VG, p. 31 (tr.pt.,p.24; tr.esp., p.67).

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mesma paixão, que é apenas contingência da natureza ou capricho. Esse único é, consequentemente, um déspota, e não um homem livre. Só entre os gregos é que surgiu a consciência da liberdade, e por isso eles foram livres; mas eles, bem os romanos, sabiam somente que alguns eram livres, e não o homem como tal. Nem mesmo Platão ou Aristóteles o sabiam. Destarte, os gregos não apenas tiveram escravos, como suas vidas e a existência agradável liberdade estavam ligadas a isso. Além disso, sua liberdade não era senão uma flor ocasional, passageira e limitada (...). Só as nações germânicas, no cristianismo, tomaram consciência de que o homem é livre como homem, que liberdade do espírito constitui sua natureza mais intrínseca.106

Portanto, o movimento do espírito em direção ao centro, nada mais é que

sua tendência essencial para aperfeiçoar-se rumo à liberdade. Porém, o fato do

espírito ter a si mesmo como objeto e, por isso, desde o começo já encontrar-se

pronto, não implica que ele seja inerte. Ao contrário, o espírito está sempre em

atividade, sempre no movimento de contínua negação daquilo que ameaça sua

liberdade. E, por conta disto, a direção da história acompanha o desenvolvimento

da liberdade, indo do oriente para o ocidente. Assim, “esta aplicação do princípio

ao mundo temporal, a penetração e organização do mundo pelo dito espírito é o

longo processo que constitui a história universal”. A história universal é, portanto,

a história do “progresso da consciência de liberdade.”107 Tal constatação leva à

consideração dos meios pelos quais o princípio de liberdade se manifesta na

história, ou seja, para observação dos fenômenos históricos.

Neste sentido, o indivíduo aparece como primeira resposta à pergunta

sobre os meios de que a Idéia se prevalece para sua realização no mundo,

constituindo assim a segunda determinação do espírito. Pois, o que se mostra no

primeiro plano da história são as ações individuais dos homens, surgidas,

aparentemente, da necessidade de satisfação de suas paixões. “Essas ações se nos

apresentam de tal modo”, afirma Hegel, “que neste espetáculo da atividade, essas

necessidades, paixões, interesses, etc., aparecem como únicos motores” da

história.108 Idéia e paixões constituem, respectivamente, a trama e os fios da

história universal. Representam o confronto mesmo da vontade particular com a

vontade universal, enfrentamento que serve de impulso para o movimento da

liberdade no mundo. Consideradas de forma objetiva, as duas vontades equivalem

ao confronto entre a necessidade (universal) e a liberdade (particular), “a luta do

106 Idem. Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p.83. 107 Id, VG, p. 31 (tr.pt.,p.24; tr.esp., p.67). 108 Ibid., p.34 (tr.pt.,p.26; tr.esp., p.79)

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homem contra sua sina”, nas palavras de Hegel, que conduz inevitavelmente ao

questionamento sobre como conciliar a idéia com a liberdade do homem. Ou seja,

é uma maneira análoga de perguntar acerca do fim ultimo para a multiplicidade de

eventos.

A chave para essa conciliação reside no fato de que a paixão, para Hegel, é

apenas aparentemente restrita ao âmbito do particular. O filósofo entende que a

paixão é “determinação particular do caráter” que não possui exclusivamente um

conteúdo privado, ao contrario, é “o elemento impulsor e ativo de atos

universais.”109 Pois, afirma Hegel, na história universal,

mediante às ações dos homens, surge algo além do que eles se propõem e alcançam; algo além do que ele sabem e querem imediatamente. Os homens satisfazem seu interesse, mas ao fazê-lo, produzem algo mais, que está no que fazem, mas não está em sua consciência nem em sua intenção.110

Neste momento, é possível recuperar a relação do herói trágico com seu

destino, abordada anteriormente. Assim como o herói, o homem, no quadro de

realização do espírito, ao cumprir um destino que julga ser proveniente de seu

livre arbítrio, na verdade está realizando um télos determinado pela razão. Desta

forma se relacionam particular e universal: assim a diversidade das manifestações,

ou “espetáculo das paixões” como diz Hegel, se reconcilia com a totalidade

espiritual. Saber como ocorre este processo através do qual o universal se

manifesta no particular é um ponto importante na compreensão da filosofia da

história, pois é relacionada a ele que Hegel introduz a célebre noção de astúcia da

razão [List der Verkunft]:

A idéia universal não se entrega à oposição e à luta, não se expõe ao

perigo; permanece intangível e ilesa no fundo, e envia o particular da paixão para que receba os golpes na luta. Se pode chamar a isto de astúcia da razão; a razão faz com que as paixões trabalhem por ela e que aquilo mediante ao qual a razão chega a existência, se perca e sofra danos. Pois o fenômeno tem uma parte nula e outra parte afirmativa, O particular é, a maioria das vezes, bastante mesquinho frente ao universal. Os indivíduos são sacrificados e abandonados. A idéia não paga por si o tributo da existência e da caducidade; o paga com as paixões dos indivíduos. César teve que realizar o necessário, o desmoronamento da liberdade podre. Pereceu na luta; mas o necessário subsistiu: a liberdade sucumbiu, conforme a idéia, sob os sucessos externos.111

109 Id., Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p.83. 110 Ibid., p.85 111 Id., VG, p. 49 (tr.pt.,p.35; tr.esp., p.97).

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116

A astúcia da razão é, então, o que faz com que um homem haja

historicamente a favor do espírito universal. É o impulso que conduz Sócrates, no

exemplo dos gregos. É aquilo que mobiliza a ação individual, não em seu próprio

bem, mas para a realização do Espírito. Os homens não sabem o que fazem na

história, isto é, desconhecem o resultado mesmo de suas ações. Isso é um artifício

da razão que “usa” os homens através de suas paixões para realizar seu propósito.

Na história são os homens particulares que guerreiam, lutam e sofrem, enquanto o

espírito segue seu destino incólume, esse é o papel da astúcia da razão. Entretanto,

não se deve considerar a astúcia da razão somente como uma categoria, ou uma

idéia abstrata de Hegel para conseguir justificar o encadeamento de sua história

filosófica. Longe disto. Ela pode ser entendida também como um instrumento

fundamental para qualquer teoria da história que deseje fornecer um papel a uma

motivação inconsciente para as ações humanas.

A astúcia da razão nada mais é do que a expressão racional da Providência.

O que significa dizer que o resultado último das atitudes humanas não é

proveniente do planejamento do homem, porém de um princípio que impulsiona

as atitudes dos indivíduos. A liberdade individual é neste sentido apenas aparente,.

Por este motivo, afirma Hegel que quando trata da “idéia de liberdade dos

homens” não está se referindo ao livre arbítrio em particular, mas à possibilidade

de efetuar-se uma escolha em consonância com os preceitos da razão naquele

instante do desenvolvimento do espírito na história.

Para Charles Taylor, os homens, ainda que desconheçam a verdade última

a que se destinam suas ações, podem possuir alguma idéia acerca do porquê agem

de uma determinada maneira. Assim, para Taylor, a expressão “astúcia da razão”

não deve ser levada ao pé-da-letra, isto é, não se deve simplesmente aceitar que os

homens não sabem da verdadeira motivação dos seus atos. Pois os homens, até

nos estágios primordiais da história, mesmo que de forma nebulosa, têm algum

sentido da existência do espírito, uma vez que eles também são veículos

(inconscientes ou conscientes) do espírito na história – lembre-se afirmação de

que os homens são racionais mesmo sem o saberem. Portanto, conclui Taylor,

“não é apenas uma questão das ambições individuais dos homens sendo usadas

para um propósito exterior. Antes, trata-se de que aqueles homens cuja ambição

individual coincide com os interesses do espírito são preenchidos com o sentido

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de missão”112. Estes são, para Hegel, os grandes homens da história, os indivíduos

histórico-universais.

Os grandes homens são aqueles capazes de catalisar o princípio que dirige

o espírito do povo, convertendo-o em atos. Estes homens, afirma Hegel, “são

aqueles que conhecem o espírito de um povo e sabem dirigir-se por ele. Estes são

os grandes homens de um povo, que guiam o povo, conforme o espírito

universal”113. Eles mostram aos homens sua própria tendência interior e a

realizam e, além disto, são também os que, em primeiro lugar, sentem e articulam

as tendências de um próximo estágio da história universal. Assim o fez Sócrates

em Atenas e também César que morreu após levar a República ao fim. Também,

muitas vezes, a conduta destes indivíduos históricos diverge da moralidade

dominante. Pois, “atentos a seus grandes interesses, trataram, sem dúvida, [de

forma] ligeira, frívola e atropeladamente e sem consideração, outros interesses e

direitos sagrados”, expuseram-se à censura tanto por parte de seus

contemporâneos como por parte daqueles que observaram retrospectivamente suas

ações. Mas para Hegel é preciso compreender estes indivíduos a partir de uma

outra perspectiva, sob a ótica da realização do espírito. Neste contexto, segundo o

filósofo, é possível compreendermos que “uma figura que caminha,em seu passo,

esmaga muitas flores inocentes, destrói muitas coisas pela força.”114

Após a determinação da instância individual em que o espírito se

manifesta, Hegel apresenta a sua terceira determinação. No processo de

reconciliação do espírito consigo mesmo, para que na história se efetive é

necessária então uma categoria universal em que possa ser apreendido o

desenvolvimento da razão, ou seja, é preciso um indivíduo de cunho universal.

Este encontra-se representado na filosofia da história hegeliana na figura do

Volksgeist, do espírito do povo: “em Hegel, o espírito do povo é sempre a

individuação histórica do espírito.”115 Os espíritos dos povos representam, então,

as diversas fases da realização do espírito absoluto no mundo, e também uma das

formas que este possui para tomar consciência de si ao longo do processo

histórico. Tal como declara Hegel:

112Charles TAYLOR, Hegel, p.391 113 HEGEL, Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p.66. 114 Ibid., p.97. 115 Pedro CALDAS, op. cit.,p.56.

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A história universal é a exposição do processo divino e absoluto do

espírito em suas formas supremas; a exposição da série de fases através das quais o espírito alcança sua verdade, a consciência de si mesmo. As formas destas fases são os espíritos dos povos históricos, as determinações de sua vida moral, de sua constituição, de sua arte, de sua religião e sua ciência. Realizar estas fases é a infinita aspiração do espírito universal, seu impulso irresistível, pois esta articulação, assim como sua realização, é seu conceito.116

Os espíritos dos povos históricos117 cumprem então um duplo papel na

filosofia da história de Hegel. Ao mesmo tempo em que são responsáveis pelo

cumprimento da “infinita aspiração do espírito universal” no seu movimento de

reconciliação consigo mesmo na história universal, realizam também suas

próprias tendências interiores, seus objetivos próprios enquanto comunidade,

enquanto Estado (como se deduz da sentença: “as determinações de sua vida

moral, de sua constituição, de sua arte, de sua religião e sua ciência”). De tal

maneira que o espírito de um povo é, simultaneamente, particular e universal, ou,

nas palavras Hegel: “o espírito do povo é (…) o espírito universal traduzido em

uma forma particular.”118 Cada espírito do povo corresponde a uma determinada

fase no processo de desenvolvimento do espírito, a um elo na cadeia histórica. É

um indivíduo de natureza universal, trabalhando para realizar a idéia daquela fase

em particular. Assim a marcha da história pode ser vista como uma sucessão no

tempo de espíritos dos povos, mais especificamente, de espíritos dos povos

cristalizados em Estados.

Assim, a relação entre particular e universal ocorre a partir de um

movimento que tem por base uma contradição entre o princípio que rege um

determinado povo interiormente e a realidade exterior a que este está sujeito. Pois

o espírito do povo para atingir a meta a que se destina, necessita superar a

oposição que encontra no mundo. No momento em que supera a oposição, o

princípio se estabelece, chegando ao seu apogeu. Nesse instante, o espírito do

povo realiza sua participação no plano universal, dando sua contribuição para a

auto-efetivação do espírito absoluto. E, a partir daí, inicia sua decadência. Isto

porque o espírito de um povo, do mesmo modo que o de um indivíduo natural, é 116 HEGEL, Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p.76. 117 Para Hegel são povos históricos aqueles que têm estados constituídos. Os estados são a matéria do espírito. Ou como se lê no terceiro capítulo das lições: “Um povo pertence à história universal quando em seu elemento e fim fundamental há um princípio universal, quando a obra que nele produz o espírito é uma organização moral e política”. Cf. Ibid., p. 145. 118 Ibid., p.66.

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finito, limitado. Como tudo o que nasce, este espírito também floresce,

amadurece, decai e morre. A realização da compreensão de si implica, portanto,

em sua decadência. Quando cessa a oposição, quando aquilo que contradiz o

princípio deixa de existir, ele se realiza. Tem início então um momento sem

necessidades na vida do espírito do povo. Ainda que o povo continue a existir, sua

utilidade para o plano da história universal se encerrou. Portanto, como diz

Charles Taylor, “a dialética da história deve ser entendida como refletindo os

estágios necessários conceitualmente na auto-revelação da Idéia.”119

Tome-se, por exemplo, no caso dos gregos na Antigüidade clássica. No

contexto da filosofia da história de Hegel, o surgimento e desenvolvimento da

pólis grega vêm a responder a necessidade do espírito do conhecimento de si. Pois

ali, pela primeira vez na história universal a idéia de liberdade do homem se

manifesta. Com os gregos, Deus, ou o Espírito absoluto, deixa de habitar o terreno

da total subjetividade religiosa para interceder enquanto sujeito na organização da

vida política. Deus, ou melhor, os Deuses são humanos também. É o conceito que

os gregos têm do divino que lhes concede o alvará de sua liberdade, de acordo

com Taylor:

no sentido que o divino não é totalmente outro, que uma subjetividade

finita tem ali seu lugar. E este é o sentido de liberdade, que o homem não é escravo do absoluto, de algo que lhe é completamente estranho a sua vontade. Por isso, a política grega será a primeira morada da liberdade.120

Assim, a percepção da existência de Deus em uma forma humana

possibilitou a fundação de uma vida pública tecida ao redor da divindade, onde os

homens se reconheciam a si mesmos.

Lembramos aqui a definição de sobre o espírito do povo como uma figura

particular do espírito universal cuja meta é produzir uma religião e um Estado

segundo seu conceito. Asserção da qual Taylor se aproxima quando afirma: “a

história alcança sua culminação com uma comunidade que está em conformidade

com a razão.”121 Algo que a experiência grega realizou, embora só em parte, uma

vez que se tratava de uma liberdade limitada aos cidadãos de uma certa pólis e

servidores daquele Deus. Estrangeiros, mulheres e escravos não tinham direito à

liberdade. Os gregos não possuíam a idéia de liberdade do homem enquanto tal. 119 Charles TAYLOR, Hegel, p.391 120Ibid. p.395. 121 Charles TAYLOR, Hegel, p.390.

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Ser livre era apenas privilégio de alguns, como registra a célebre passagem da

filosofia da história mencionada tantas vezes. Portanto, quando o Estado grego

alcança seu apogeu por volta do século V a.C., com a democracia da pólis

ateniense, de acordo com o pensamento hegeliano chega ao fim sua atuação na

história universal. Pois o espírito é universal e está em constante atividade, não

podendo deter-se na limitação da unidade do Estado grego. Tal como adverte

Hegel,

[a] realização [do espírito do povo] é, por sua vez, sua decadência e esta

[é] a aparição de um novo estado, de um novo espírito. O espírito de um povo servindo de trânsito para o princípio de um outro povo. E, deste modo, os princípios se sucedem, surgem e desaparecem. Mostrar em que consiste a conexão desse movimento é a tarefa própria da história universal.122

Ou seja, a história universal é a demonstração do progresso do Espírito

absoluto no tempo, passando de um espírito do povo ao outro, de um estágio

anterior de sua consciência de si para outro mais adiantado.

No caso dos gregos, esta passagem se dá com o advento da filosofia

socrática, que oferece a transição do espírito para um novo estágio. Pois, ainda

que desejasse permanecer fiel ao regimento da pólis, Sócrates tinha consciência da

universalidade da razão. E, por mais que fosse fiel à cidade-estado ateniense, seus

ensinamentos ultrapassaram suas fronteiras rumo à próxima morada do espírito,

onde o indivíduo sabe-se sujeito de uma razão universal não identificada à vida

pública de sua cidade. O período subseqüente é o de decadência dessa forma de

constituição do Estado grego até o surgimento de outra forma, de outro espírito do

povo que incorpore a razão. E assim a história universal transcorre de acordo com

os pressupostos da razão: indo, sucessivamente, do Império Romano ao

Cristianismo, deste até a Reforma, e, por fim, até o estabelecimento do estado

prussiano na era moderna.

122 HEGEL, Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p.69.

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3.6 O paradoxal vôo da coruja de Minerva: a modernidade como realização do espírito

É na modernidade que o espírito atinge o apogeu de sua realização. O

espírito, em seu caminho pelo mundo histórico, parte do Oriente – onde a razão

não é consciente de si –, para o Ocidente, onde ela alcança a plenitude de sua

consciência. A partir dessa premissa, Hegel divide história universal em quatro

partes de acordo com os avanços da idéia de liberdade cristalizada nos estados. Ao

mundo oriental, segue-se o mundo grego; uma terceira parte tem existência no

Império Romano e uma quarta e última parte é formada pelo mundo germânico.

Desta forma, se o Oriente “é a infância da história”, o mundo germânico

corresponde à sua velhice. Note-se que, apesar afirmar que “espírito germânico é

o espírito do mundo moderno”, do ponto de vista cronológico, a descrição de

Hegel acerca do período moderno remonta ao Império Romano e perdura até os

tempos em que o próprio filósofo viveu.

Observe-se que o filósofo não denomina todo este intervalo de

modernidade, mas aponta a origem do espírito moderno no surgimento do

Cristianismo ainda sob o Império Romano. Este é, aliás, o primeiro dos três

períodos em que se dividem o mundo germânico, que tem início com o

surgimento das nações germânicas no Império Romano e se estende até a época de

Carlos Magno. A ascensão de Carlos Magno marca, por seu turno, o começo do

segundo período descrito por Hegel na última parte de suas lições. Iniciado na

época carolíngia, este período estende-se até a primeira metade do século XVI,

com o reinado de Carlos V. A modernidade propriamente dita principia somente

no terceiro período do mundo germânico, a partir da Reforma Protestante e se

prolonga até o instante em que foram proferidas estas lições.

É possível perceber o estatuto diferenciado que Hegel confere ao mundo

germânico em relação aos outros períodos tratados em suas considerações: o

mundo germânico, enquanto fase do surgimento do espírito livre, funciona como

uma espécie de totalidade que abrange os aspectos anteriores do espírito, tanto os

abstratos quanto os empíricos. De tal forma que o filósofo produz duas analogias

entre os três períodos do mundo germânico. A primeira destas analogias refere-se

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aos dogmas da religião, como se lê nesta comparação com a quarta parte de suas

lições com a Trindade:

Podemos diferenciar esses três períodos como os reinos do Pai, do Filho e

do Espírito. O do Pai é a massa substancial, indivisível, em transição como o domínio de Saturno, que engole seus filhos. O do Filho é o surgimento de Deus somente em relação à existência temporal, refletindo-se nela como algo alheio. O reino do Espírito é a reconciliação.123

A segunda analogia diz respeito à comparação com os momentos

históricos anteriores, Hegel refaz o percurso do espírito na história universal,

equiparando as fases do espírito aos períodos em que se dividem o mundo

germânico. Diz o filósofo:

Considerando o império germânico como o da totalidade, vemos no

mesmo a repetição de épocas anteriores, Pode-se comparar o período de Carlos Magno ao império persa. É o período da unidade substancial baseada no interior, na alma, e que é ainda ingênua no que se refere à relação do espírito com o temporal.

Ao mundo grego e à sua unidade ideal corresponde o período anterior a Carlos V, no qual não mais existe a unidade real, porque todas as particularidades foram fixadas nos privilégios e direitos especiais. Assim como no âmago dos Estados, as diversas estirpes estão isoladas em seus direitos especiais, os Estados particulares também se relacionam de forma exterior. Sobrevém uma política diplomática que no interesse do equilíbrio da Europa une os Estados entre e contra si. É o período em que o mundo se torna consciente de si (descoberta da América). Também a consciência torna-se lúcida dentro e além do mundo supra-sensível: a religião substancial e real desenvolve-se para a clareza sensível dos elementos da percepção (a arte cristã na era do Papa Leão) e torna-se real no elemento da verdade mais intrínseca. Pode-se comparar esse período com o de Péricles. Tem início a interiorização do espírito (Sócrates/Lutero); todavia, falta Péricles nesse período. Carlos V teve imensa disponibilidade de meios externos e seu poder parece absoluto, mas falta-lhe o espírito interior de Péricles e, com isso, o meio absoluto do livre domínio. Essa é a época do espírito que se torna claro para si, mesmo na separação real; aqui aparecem as diferenças do mundo germânico que se manifestam em sua essência.

Podemos comparar o terceiro período ao mundo romano. A unidade do universal existe nele, não como a unidade do domínio mundial abstrato, mas como a hegemonia do pensamento consciente de si. Vigora o fim do sensato; privilégios e particularidades dispersam-se perante a finalidade do Estado. Os povos querem em si e por si o direito; não vigoram só os tratados particulares, e os princípios determinam o conteúdo da diplomacia. A religião também não consegue se sustentar sem o pensamento e parte para o conceito, tornando-se crença intensa, porque o próprio pensamento o exige, e superstição, por desespero quanto ao pensamento, ao fugir totalmente dele.124

123 HEGEL, VG, p. 417. (tr.pt.,p.293). 124 Ibid., pp.417-8 (tr.pt.,pp.293-4).

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123

Além da divisão do mundo germânico, Hegel também reparte em três

momentos a modernidade [Die neue Zeit], a saber: o momento da Reforma; os

fatos que lhe sucederam e, por fim, os novos tempos a partir do final do século

XVIII. No conjunto da filosofia da história hegeliana, o Renascimento – embora o

termo ainda não tivesse sido cunhado – configura tão somente um período de

transição para a era moderna: a modernidade hegeliana começa com a Reforma.

Tanto que, na disposição dos assuntos nas aulas, este período é descrito por Hegel

em apenas alguns parágrafos na parte final da Idade Média, sob o título “A arte e a

ciência como dissolução da Idade Média”.125 Como se pode notar, sobre o período

histórico a que Burckhardt dedicaria a maior parte de seus estudos e ao qual

atribuiria o início da modernidade, o filósofo da história contentou-se em destacar

que se tratava de uma época de transição, onde pela primeira vez a universalidade

da razão se mostrava após as “trevas” medievais, como a “aurora que, depois de

uma longa tempestade, pela primeira vez anuncia um novo dia.”126 Sobre época,

Hegel se satisfaz com a menção à importância que o florescimento das belas-artes,

a restauração das ciências e a descoberta da América, assim como da rota para as

Índias, exerceram para o movimento do espírito na superação de um estágio

anterior de seu desenvolvimento. O raiar deste novo dia na vida do espírito é

atribuído por Hegel, sobretudo, ao arrefecimento do papel da Igreja em virtude da

corrupção que vigorava em seu interior. A questão da proliferação dos Estados no

território italiano, que na interpretação burckhardtiana constitui um dos fatores

centrais para o surgimento da individualidade característica da era moderna, é

apenas citada por Hegel como uma das oposições à Igreja. Nestes Estados, o fim

universal justificado em si mesmo estava presente, mas este fim sucumbiu à

individualidade, se submetendo à vontade, ao apetite e à arbitrariedade do

indivíduo que havia se liberado do rigor da disciplina eclesiástica.127 Em um

trecho já na parte sobre a modernidade, Hegel deixa claro seu pensamento sobre o

que acontecia na Itália:

A desunião absoluta e o desmembramento sempre constituíram o caráter

fundamental dos habitantes da Itália, tanto na Antiguidade quanto nos tempos mais modernos. A intransigência da individualidade foi substituída por uma união

125 Ibid., p.488 (tr.pt.,p.339). Na edição espanhola possui o título: “O trânsito à Idade Moderna”, p.649 e ss. 126 Ibid., p.491 (tr,pt., p.341). 127 Id., Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal, p.654.

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124

realizada à força, sob o domínio romano; quando essa união foi desfeita, ressurgiu bruscamente o caráter original. Mais tarde, os italianos conseguiram usufruir das belas-artes, atingindo uma unidade; depois de haverem vencido o mais terrível egoísmo e eliminado o crime, a cultura e a suavização do egoísmo conseguiram chegar à beleza, mas não à racionalidade – a sublime unidade do pensamento. Por isso, a poesia e a música de origem italiana são diferentes das nossas. Os italianos são de natureza imprevisível, voltados para a arte e para o prazer da alma. Em tal natureza artística, o Estado tem que ser ocasional.128

Assim sendo, é possível compreender porque o Renascimento, apesar de

importante, não constituiu um momento marcante na história do espírito. Para

tanto, basta levar em conta o fato daquela não caracterizar uma época de definição

de uma formação estatal consistente e tampouco de vigor religioso. Corrobora

também com interpretação, a afirmação de Hegel de que a história da Europa se

desenvolve entre a oposição de Igreja e Estado. Já que, sobretudo neste novo

espírito que aflora na modernidade, “por uma parte, desenvolve-se a Igreja como a

existência da verdade absoluta; pois a Igreja é a consciência da verdade e,

simultaneamente, a causa de que o sujeito seja conforme ela” e, por outro lado,

“se encontra a consciência temporal, arraigada com seus fins no mundo, no

Estado, que nasce do sentimento, da lealdade, da subjetividade em geral.”129 A

cultura – que na compreensão histórica de Burckhardt representa, como veremos,

o elemento favorecido pela não consolidação da presença do Estado e da Igreja e

que floresce expressivamente no período –, não é levada em conta por Hegel, ao

menos não nas lições da filosofia da história.

Já a ênfase do mundo germânico recai sobre o último dos três momentos

em que Hegel dividiu a modernidade. O apogeu desta reside no período

deflagrado pela Revolução Francesa. E, não por coincidência, todo o sistema

filosófico de Hegel atinge seu clímax neste período. Lembremos que é na

modernidade também que a história da filosofia atinge seu ápice, que a coruja de

Minerva levanta vôo. Visto que somente quando a história se torna reflexiva, e

isto só acontece, segundo Hegel, com a sua filosofia, é que o espírito passa a ser

capaz de reconhecer suas formas anteriores e atuais. Como afirmado no prefácio

da Filosofia do Direito, a história “corrobora o ensinamento da concepção de que

somente na maturidade da realidade o ideal aparece como contraposição do real,

128 Id., VG, p. 512. (tr.pt.,p.355). [Grifos nossos] 129 Ibid., p.568.

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125

apreende o mundo real em sua substância e o modela em um domínio

intelectual.”130

Após Lutero ter aberto o caminho para a liberdade espiritual e, assim, para

a reconciliação concreta através da religião, a razão pôde consolidar seu conteúdo

no mundo. No Iluminismo, o pensamento passou a ser o novo estágio do espírito,

do qual a Revolução constituiria o momento máximo. É assim que a Revolução se

torna para Hegel o “glorioso amanhecer” no qual, pela primeira vez na história

universal, “se havia percebido que a existência do homem esta centrada em sua

cabeça, isto é, no pensamento, a partir do qual ele constrói o mundo real”,

encarnando assim o momento inicial da “verdadeira reconciliação do divino com

o mundo.”131 Seus desdobramentos, sobretudo, aqueles que desembocaram no

fortalecimento do estado prussiano após as investidas francesas, ratificavam o

mundo germânico como apoteose do desenvolvimento do espírito na história

universal. O momento final das aulas sobre a filosofia da história universal é

dedicado justamente ao instante em que a liberdade se concretiza no contexto

alemão. “A Alemanha foi atravessada pelos vitoriosos exércitos franceses”, afirma

Hegel, “mas a nacionalidade alemã livrou-se dessa pressão”. Isto porque,

um momento fundamental na Alemanha foram as leis do direito,

incentivadas, aliás, pela pressão francesa (...). A mentira do império finalmente desapareceu. Ruiu em Estados soberanos. Foram abolidas as relações feudais; os princípios da liberdade, da propriedade e da pessoa tornaram-se princípios fundamentais. Todo cidadão tem acesso a cargos estatais; todavia, talento e habilidade são condições indispensáveis. O governo repousa no funcionalismo, mas a decisão pessoal do monarca está acima de tudo (...). No entanto, nas leis fixas e na organização definida do Estado, a decisão única do monarca foi abandonada, dando-se pouca atenção ao substancial. (...)

Hegel, então, retoma os pontos principais expostos ao longo das preleções:

A consciência chegou até aqui, e esse é o principal momento da forma na

qual o princípio da liberdade se concretizou, pois a história universal nada mais é que o conceito de liberdade. Todavia, a liberdade objetiva – as leis da liberdade real – exige a submissão da vontade fortuita, pois esta última é meramente formal. Quando a objetividade é racional em si mesma, a visão da razão tem que lhe corresponder, e assim existe também o momento essencial da liberdade subjetiva. Observamos apenas esse progresso no conceito, tendo que renunciar à tentação de abordar mais detalhadamente a felicidade, os períodos de florescimento dos povos, a beleza e a grandeza dos indivíduos, os interesses relacionados ao seu destino, no sofrimento e na alegria. A filosofia diz respeito ao

130 Ver nota 57 deste capítulo. 131 HEGEL, VG, p.529 (tr.pt., p.366).

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esplendor da idéia que se reflete na história universal. Na realidade, ela tem que se abster dos movimentos tediosos das paixões. Seu interesse e conhecer o processo de desenvolvimento da verdadeira idéia, ou seja, da idéia de liberdade que somente é a consciência da liberdade.

E, por fim, conclui, ratificando a história universal como teodicéia e,

portanto, resolvendo à questão da continuidade histórica através da reconciliação

do espírito com o mundo. Diz Hegel:

A história universal é o processo desse desenvolvimento e do devir real

do espírito no palco mutável de seus acontecimentos – eis aí a verdadeira teodicéia, a justificação de Deus na história. Só a percepção disso poder reconciliar a história universal com a realidade: a certeza de que aquilo que aconteceu, e que acontece todos os dias, não apenas não se faz sem Deus, mas é essencialmente a Sua obra.132

Assim, ao final da década de 1820, Hegel considerava que a meta do

espírito absoluto havia sido atingida na história. De fato, suas últimas palavras

com respeito a história, e, como se vê, terminam na reconciliação. Entretanto,

após a efetivação, surge um paradoxo que não é levando em conta pelo o filósofo:

referimo-nos ao fato de que todo este movimento da história, que tem na meta, ou

seja, no futuro, sua primazia, sustenta-se na noção de progresso que, por

definição, é infinita. Pois a rigor, o progresso, quando rebatido na lógica dialética

do tempo, segue reproduzindo o movimento continuamente ao infinito. Isto

porque, invariavelmente, do movimento de tese para antítese resulta uma síntese

(ou suprassunção, na terminologia hegeliana), que logo se estabelece como uma

nova tese a qual se segue nova antítese e nova síntese, e assim sucessivamente. E,

como afirma Arendt, “embora o movimento original não seja de forma alguma

progressivo, mas gire para trás e retorne sobre si, o movimento de tese para tese se

estabelece por trás desses círculos e constitui uma linha retilínea de progresso”.

“A vantagem desse esquema como um todo”, continua Arendt, “é que ele

assegura o progresso e, sem quebrar o contínuo do tempo, pode ainda dar conta do

inegável fato da ascensão e queda das civilizações”133. Desta forma, o movimento

dialético, tal como empregado no sistema hegeliano, transforma a temporalidade

cíclica em uma espiral. A adequação entre a lógica dialética e a filosofia da

história seria perfeita não fosse o fato de Hegel acreditar na interrupção do

132 Ibid., pp.539-540 (tr.pt.,p.372-73) 133 ARENDT, A Vida do Espírito,p.223.

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127

processo, uma vez que para ele, no terceiro e último período da história universal

se realiza a efetivação da razão. Ao final de suas reflexões, portanto, a filosofia de

Hegel gera uma situação paradoxal.

“Pois, se o tempo é dialético se ele se constrói a partir do futuro, ele é

eternamente inacabado”134 e quando o espírito atinge seu apogeu, quando se

depara com a sua essência e a reconhece, o movimento dialético do tempo se

interrompe. Desta maneira, o presente – que ao longo da história universal sempre

foi um instante de certo modo vazio, um “ainda não”, pois se encontrava

completamente voltado e impulsionado para o futuro –, se preenche de sentido. O

presente se torna permanente e, portanto, ocasiona o fim da primazia do futuro. Se

cessa a oposição, cessa o movimento e, assim, cessa a história. Por este motivo é

possível falar do fim da história, não porque Hegel o tenha determinado, mas

porque é a esta conclusão que se chega se seguimos a lógica que ele mesmo

imputou ao desenvolvimento histórico.

A questão é que a condição que possibilita o desenvolvimento da filosofia

da história, isto é, o movimento dialético do tempo, ao mesmo tempo, a torna

impossível, uma vez que a progressão infinita que rege o movimento inviabiliza a

teleologia que constitui seu alicerce. Pois, “a filosofia da história – e da mesma

forma a filosofia hegeliana, o ‘sistema’, – seriam possíveis somente se a história

estivesse terminada; se não houvesse mais futuro; se o tempo pudesse se deter.”135

Como aventa Koyré, pode ser mesmo que Hegel tenha acreditado que o

fim da história estivesse acontecendo e, neste sentido, que a realização plena do

espírito e do conseqüente término do movimento de progressão dialética, não só

fosse “a condição essencial do sistema – é apenas ao anoitecer que a coruja de

Minerva começa seu vôo –, como também a condição essencial estivesse já

realizada.” E, somente por isso que “ele próprio foi capaz – ou fora capaz –de

completá-la”. 136 Portanto, é possível afirmarmos que Hegel pôde desenvolver o

plano para a história, somente porque tinha a pressuposição de que há um espírito

universal capaz de conduzir as vontades humanas ao longo do tempo. Em última

instância, é a fé inabalável na razão como origem e governante do mundo que

sustenta todo o sistema filosófico hegeliano.

134 KOYRÉ, op. cit., pp.188-9. 135 Ibid., p.189. 136 Ibid.

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Tal pressuposição acerca existência de um princípio racional permaneceu

intocada durante bastante tempo. E, mesmo após a morte de Hegel, seu

pensamento continuou presente no cenário intelectual através de seus discípulos.

Porém, com o passar do tempo, a hegemonia do hegelianismo foi se

enfraquecendo e, em seu lugar, a história passou a servir de guia para a reflexão

no panteão dos saberes. A este respeito comenta Timothy Bathi:

Após a (...) morte [de Hegel] em 1831, um funeral lisonjeante e a reunião

e edição devotadas de todas as suas palestras na década de 30, as ‘duas décadas’ de hegelianos em Berlin estavam visivelmente acabadas. Quando em 1841, o rei Friedrich Wilhelm IV substitui Altenstein por Eichorn no Kulturministerium, para administrar a universidade e resistir ao ‘Hegelschen Pantheismus’, e Eichorn chama Schelling – nesse momento um cristão conservador – para a cadeira de filosofia, Søren Kierkegaard, Jacob Burckhardt e Friedrich Engels estavam na platéia para aula inaugural e parecia um tempo diferente, pós-hegeliano. Max Lenz escreve sobre isto como a “era não-filosófica” [das unphilosophische Zeitalter]: “depois da morte do mestre, o princípio histórico [veio] ainda mais fortemente para a linha de frente das Geistwissenschaften, e nelas encontraram uma unidade tal como a filosofia nunca foi capaz de oferecer-lhes. Esta era então a tendência universal da época(...). A era não-filosófica tinha chegado137.

* * *

137 Timothy BAHTI, Allegories of History., p.66.

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4 A eternidade no efêmero: continuidade como resistência na historiografia de Burckhardt 4.1 O sentido trágico da modernidade: Burckhardt, teologia e história

A sensação de crise, marcada pela consciência da finitude e da

efemeridade dos fenômenos do mundo, que caracteriza o tempo moderno, também

esteve presente na decisão de Burckhardt de dedicar-se à investigação histórica. O

caminho para a história, entretanto, não foi percorrido sem sofrimento.

Burckhardt, ao contrário de Hegel, viveu uma crise de fé e dela partiu sua

principal motivação para a escolha da história como campo de atuação e reflexão.

Entretanto, é preciso ressaltar que Burckhardt não buscava uma solução para a

crise de seu tempo e sim um modo de compreendê-la e de sobreviver a ela.

Como muitos de seus contemporâneos, Burckhardt começou sua vida

intelectual pelos estudos teológicos. No seu caso, contudo, além de um caminho

comum aos jovens de então, a formação teológica significava também a

continuação de uma tradição familiar. Os Burckhardt se estabeleceram na Basiléia

por volta de 1500, vindos na segunda onda imigratória despertada pelo novo papel

que a cidade-estado ocupava na Confederação Suíça como centro urbano

independente e comercial. Ao final do século XVII, a família já figurava entre as

mais proeminentes do patriciado local: “entre 1655 e 1798 não houve um ano em

que um dos dois Bürgmeisters da Basiléia não fosse um Burckhardt ou o marido

de uma Burckhardt.”1 Também no mesmo período, integravam freqüentemente o

quadro de professores da Universidade. Na época em que Burckhardt completara

os estudos básicos e estava prestes a entrar na universidade, seu pai foi nomeado

Antistes, o que significava que ele era tanto o principal ministro da mais

importante Igreja da Basiléia, como também o líder do clero protestante da

cidade-estado. Portanto, era esperado que o jovem Burckhardt seguisse os passos

do pai e se tornasse um pastor a serviço de sua comunidade.

1 GOSSMAN, Basel in the Age of Burckhardt,p.205.

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Entre 1838 e 1839, Burckhardt freqüentou o curso de teologia na

Universidade da Basiléia. Entretanto, ao assistir as aulas do teólogo e crítico da

Bíblia W.M.L. Dewette, sua convicção religiosa, que já se distanciava da

ortodoxia, sofreu um abalo de tal ordem que o levou à conclusão de que não era

suficientemente crédulo para levar adiante a carreira teológica.2 A perspectiva não

tradicional da teologia ensinada por Dewette veio ao encontro de suas dúvidas. O

teólogo foi um dos pioneiros no emprego do método de crítica histórica na

avaliação dos textos bíblicos e, como muitos protestantes críticos, acreditava dar

seqüência à obra da Reforma já que, ao empregar o tratamento histórico, estaria

colaborando para a descoberta do âmago do verdadeiro Cristianismo. A postura

crítica de Dewette acerca dos postulados teológicos tradicionais serviu de

inspiração para que Burckhardt deixasse a teologia e se encaminhasse para a

história. Em carta ao amigo Johannes Riggenbach, escrita em 28 de agosto de

1838, Burckhardt, então com 20 anos, comenta sua crise religiosa e a decisão de

tornar-se um professor:

Se vou aceitar responsabilidades, quero então suportá-las por mim

mesmo, sozinho, não pelos outros. Aos meus olhos, o sistema de Dewette cresce em estatura a cada dia. Simplesmente há de segui-lo, não há alternativa; mas a cada dia uma parte de nossa tradicional Doutrina se desfaz sobre suas mãos. Hoje, finalmente, compreendi que ele vê o nascimento de Cristo como um mito – e isso eu também o faço. E estremeci ao colidir com uma série de razões pelas quais isso quase tinha de ser assim. A divindade de Cristo consiste, é claro, em sua simples humanidade.3

2 Sobre a obra de Dewette e sua relação com Burckhardt, ver Thomas HOWARD, Religion in the rise of Historicism: W.M.L. Dewette, Jacob Burckhardt and the Theological Origins of Nineteenth-Century Historical Consciousness. Em 1810, Dewette tornou-se professor na Universidade de Berlim por indicação de Schleiermacher. Lá elaborou um programa que se opunha ao posicionamento de seu antigo mestre, acusando uma forte influência de matriz kantiana. Além disso, Dewette envolveu-se na disputa política sobre a ocupação da cátedra da filosofia deixada vaga por Fichte em 1814. O teólogo desejava trazer seu amigo, também kantiano, Jakob Friedrich Fries para Berlim, enfrentando a oposição de Schleiermacher que, por sua vez, temia o fortalecimento do kantismo em virtude de uma possível aliança entre Dewette e Fries. A vaga foi, finalmente, ocupada por Hegel que, junto, com Schleiermacher se tornaram os marca-passos, nas palavras de Howard, dos cânones filosófico e teológico, respectivamente. A permanência de Dewette em Berlin se tornou insustentável e, em 1819, ele foi demitido de sua função. Sobre Dewette diz Howard: “No século XIX, Dewette foi, de fato, um titã teológico e crítico-bíblico. Mesmo depois em 1910, a Encyclopedia Britannica mencionou que a ‘tendência a libertar a pesquisa crítica’ de Dewette e seu ‘espírito livre em direção à história’, o permitiu ‘ocupar (...) uma posição quase solitária entre os teólogos alemães’”. HOWARD, op. cit., p.7-8 e também o cap.1. 3 Carta de 28 de agosto de 1839 a Johannes Riggenbach, in BURCKHARDT, Briefe, pp. 21-24 (Cartas, pp.104-5). [Grifos do autor]

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Burckhardt vivia então o auge da crise de sua fé. O jovem estudante de

teologia via-se então confuso: não tinha convicção acerca do caminho a seguir e,

tampouco, sobre o que exatamente estava deixando para trás. Estava ciente do

abandono da ortodoxia, mas não desejava se tornar totalmente cético. “Refugio-

me na idéia de que uma vida simples, mortal, pode compensar o ceticismo de

alguém e transformá-lo em pelagianismo,” afirmava. Portanto, por mais que não

acreditasse na religião como revelação e, ainda, que Jesus Cristo para ele

representasse uma espécie de mito,4 Burckhardt não havia rompido totalmente

com a teologia, buscando como remédio “fixar firmemente os pensamentos na

Providência.”5

Burckhardt experimentava então o conflito entre a formação no seio de

uma família religiosa e a construção de suas próprias formulações para apreensão

do mundo. Ele não desejava, a princípio, romper com a teologia, pois sabia que tal

divergência acarretaria, como de fato aconteceu, um desentendimento com o pai.

Por este motivo, Burckhardt aventava mesmo a possibilidade de encontrar um

meio termo, algo como, por exemplo, uma colocação como professor em algum

departamento de teologia no qual pudesse se esquivar dos dilemas que o afligiam.

Acreditava ser possível permanecer no campo teológico e não ser incomodado

pelos defensores da ortodoxia, caso se limitasse a realizar estudos sobre a

Antigüidade e línguas, uma vez que já reconhecia sua inclinação para estas áreas.

“Estou tentando deixar a porta aberta”, explicava Burckhardt a Riggenbach:

no momento, não posso encarar as ruínas de minhas convicções. Dewette está, com certeza, em guarda para não se envolver demasiadamente a fundo nas conclusões de seu argumento, e posso apenas seguir seu exemplo de não demolir meramente, mas também de reconstruir, apesar de que o resultado é menos tranqüilizador do que aquilo que foi destruído. (...) Orar é ainda uma opção para mim, mas não há revelação, isso sei com certeza.6

Menos de um ano depois, Burckhardt já havia acertado sua ida para Berlim

e se definido pela a história. A ajuda decisiva para a opção veio através do

historiador Heinrich Schreiber, para quem ele havia realizado pesquisas no

4 Anos mais tarde, Burckhardt confessaria que Cristo permaneceria como uma referência fundamental em sua vida, não pelo seu papel religioso na Trindade, mas como exemplo histórico, “a mais bela figura histórica”, diria o historiador. 5 Carta de 28 de agosto de 1838 a Johannes Riggenbach, in BURCKHARDT, Briefe, pp. 21-24 (Cartas, pp.104-5) 6 Ibid..

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arquivo da Basiléia. Foi Schreiber quem chamou atenção de Burckhardt para sua

vocação como historiador, servindo-lhe, ao mesmo tempo, de exemplo, uma vez

que ele próprio percorrera o caminho da teologia para a história. Assim, ao final

de 1839, após a conclusão dos estudos teológicos e já com o devido

consentimento de seu pai para tornar-se professor de história, transfere-se para

Berlim, centro da vida acadêmica alemã, e lugar por excelência da história. De lá,

Burckhardt manteria o contato com Schreiber, contando-lhe suas impressões sobre

os novos professores, sobre a história e também acerca dos rumos que a pesquisa

acadêmica tomava em sua nova vida. Logo após o início das aulas, ele escreveu a

Schreiber:

Se a alguém neste mundo devo prestar contas de minha vida, esse alguém é você. (...) Meus olhos arregalaram-se de espanto com as primeiras palestras que ouvi de Ranke, Droysen e Böckh. Percebi que se me havia passado a mesma coisa que sucedeu ao Cavalheiro em Dom Quixote: eu amara rumores de minha ciência e, de repente lá estava ela diante de mim em proporções gigantescas – e tive de baixar meus olhos. Agora estou real e firmemente determinado a devotar minha vida a ela.7

Burckhardt havia compreendido que a religião não era mais capaz de

fornecer a fundamentação necessária para a vida dos homens na modernidade.8

Ao olhar retroativamente para a época em que rompera com os dogmas do

protestantismo ortodoxo, ele não só afirma a ausência de significação pessoal que

a Igreja adquiriu, como também considera sua experiência particular uma

conseqüência do momento de dissolução enfrentado pela Igreja, em referência ao

processo de secularização.9 O Cristianismo já tinha passado por seu apogeu e, no

século XIX, poderia ser considerado unicamente em sua relevância histórica.

“Que o Cristianismo tem atrás de si suas grandes eras é tão evidente quanto o fato

que dois e dois são quatro; de forma que seus conteúdos serão ensinados pela

7 Carta de 15 de Janeiro de 1840. Ibid., p.42 (Cartas,pp.124-5) 8 Lembramos aqui que, a partir da mesma constatação, Hegel se propôs a analisar o espírito do Cristianismo em seus textos de juventude. Ver o capítulo 3 desta tese, o tópico 3.2. 9 Diz Burckhardt em carta de 14 de janeiro de 1844 a Willibald Beyschlag: “Eu rompi com a Igreja para sempre, por motivos demais pessoais, uma vez que, literalmente, não consigo encontrar sentido nela. Minha vida moral, sit venia verbo [com o perdão da palavra], segue em frente sem a ajuda da Igreja, e recua sem o agulhão da consciência eclesiástica. A Igreja perdeu todo poder sobre mim, assim como sobre muitos outros, o que, num período de dissolução seria mais que do que esperado.” In BURCKHARDT, Briefe, pp.113-4 (Cartas, p.186). [Grifos nossos]

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história ao longo de seu curso,” escreveu Burckhardt a Gottfried Kinkel.10 Esta,

segundo Burckhardt, constituía não apenas uma opinião pessoal, mas também

aquela que era comum aos demais viri eruditissimi11 que não tinham coragem de

assumir publicamente. O Cristianismo havia, portanto, entrado no “domínio de

períodos puramente humanos na história.” Absorvida no processo de

secularização, a religião cristã não possuía mais recursos objetivos para servir de

guia para as ações dos homens. Burckhardt considerava vão o esforço

empreendido por aqueles que desejavam promover a restauração do poder

eclesiástico. Para ele estava clara a separação entre Igreja e religião: a primeira

permaneceria presente em suas reflexões como um dos elementos – potências,

como ele mesmo diria12 – importantes para a consideração histórica; enquanto a

segunda, relacionava-se com a instância da fé, algo que ele julgava não mais

possuir. Entretanto, ainda que afirmasse ter perdido a fé, alguns aspectos de sua

formação religiosa permaneceriam com o historiador ao longo de sua vida,

influenciando, inclusive, sua relação com a história.

É neste sentido que Thomas Howard interpreta a opção de Burckhardt pela

história. Para o autor, tal opção representa uma tentativa de preenchimento do

lugar deixado vago pela religião, configurando mesmo algo como uma resposta a

uma segunda vocação, quase no sentido de um segundo chamamento. De tal modo

que Burckhardt teria dirigido suas incertezas para “uma preocupação intensa com

a história esperando encontrar soluções para o problema da individualidade, da

vocação e do significado [dos acontecimentos], que anteriormente foram tornados

incertos pela teologia crítica de Dewette”, argumenta Howard. Chamando também

a atenção para o fato de Burckhardt, no início da década de 1840, ter afirmado que

a história constituía uma cura, um remédio não só para o ceticismo como também

para o fatalismo que permeavam sua compreensão do mundo. A palavra

10 No verão de 1841, Burckhardt foi para Bonn, para cursar as aulas de Direito Canônico com Ferdinand Wolner e também por conta das visitas que desejava que fazer a catedral de Colônia para escrever um ensaio para o seminário de Ranke. Lá conheceu Kinkel, teólogo de posicionamento declaradamente anti-prussiano e que, nas palavras de Alexander Dru, se tornaria “o centro do novo universo de Burckhardt” nesta época de sua vida. Burckhardt estabeleceu um laço de amizade estreito com ele e sua esposa, Joahanna Matthieux, com quem também viria a se corresponder. Burckhardt retornou a Bonn em 1844 para ser padrinho de casamento dos dois. Através deles, o historiador conheceria também outra figura que se lhe tornaria cara: Bettina von Armin, sua “benfeitora” em Berlim, e cuja convivência lhe proporcionara momentos de uma vida cultural mais intensa. 11 Modo pelo qual Burckhardt chamava, não sem ironia, os membros da academia.

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Heilmittel, que pode significar remédio ou cura, é um termo que, decomposto,

pode ser interpretado também como meio (mittel) para a salvação (Heil), o que

possibilita a Howard sugerir uma ligação entre a opção pela história e uma busca

pela salvação. Howard acrescenta, inclusive, que Burckhardt, apesar de ter

seguido adiante após a crise religiosa, manteve em suas cartas da época um tom

de tristeza, denotando a desconforto decorrente da ausência da certeza da fé. Isto

porque “embora convencido pelos resultados negativos da teologia moderna e do

criticismo bíblico, Burckhardt nunca celebrou a crítica do Cristianismo

tradicional. Ele julgava que o fim do Cristianismo levaria a uma enorme sensação

de perda espiritual.” Daí, afirma Howard, o motivo pelo qual podemos perceber

“um forte elemento nostálgico em suas reflexões iniciais; imagens de ruínas e

reconstruções ocorrem periodicamente como um meio de expressar seu estado

espiritual.”13 Tal como confessava Burckhardt ao amigo Von Tschudi logo nos

primeiros tempos berlinenses: “Eis-me aqui, revolvendo as ruínas de minha antiga

maneira de ver a vida, tentando descobrir o que ainda há de útil nas velhas

fundações. (...) Abismo após abismo abrem-se a meus pés.”14

Mas não é exatamente neste sentido que aqui interessa ressaltar esta fase

da vida de Burckhardt. Na verdade, do período em que a teologia esteve presente

em suas considerações, seja ainda como estudante na Basiléia, seja como iniciante

nos estudos históricos, Burckhardt manteve algumas convicções que resultaram

em posicionamentos que lhe acompanhariam ao longo de sua vida, influenciando,

inclusive, alguns aspectos de sua concepção de história. Faz-se necessário

salientar, contudo, que o papel da teologia na formação de Burckhardt não é

considerado nas análises sobre sua historiografia com muita constância. Não raras

vezes, a relevância da formação teológica é ofuscada pela fase que Burckhardt

esteve em Berlim, sendo assim considerada somente como uma etapa de transição

para a história, sem levar em conta o que dela permaneceu como influência para o

futuro historiador. Isso provavelmente sucede em virtude do período de sua

formação stricto sensu como historiador ter sido povoado pela presença de figuras

de renome no meio acadêmico da época, tais como Gustav Droysen, Franz

Kugler, Jacob Grimm, além de Leopold von Ranke, é claro. O contato com esses e

12 BURCKHARDT, “Von den drei Potenzen”, in WB, pp.74-247.(“Das três potências”, RHU, pp.70-210) 13 Thomas HOWARD, op. cit.,pp.142-3.

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outros pensadores, somado à empolgação com que o próprio Burckhardt

mencionava sua estadia em Berlim – em alguns momentos ele se referiria a ela

como uma época gloriosa em sua vida – acabaram obscurecendo a influência

exercida pela teologia sobre o pensamento histórico de Burckhardt.15

Porém, a leitura do trabalho de Thomas Howard sugere uma reavaliação da

importância da herança teológica. Nesse sentido, interessa-nos chamar atenção

sobre os seguintes aspectos: em primeiro lugar, para o fato de Burckhardt ter

forjado o modelo para a postura que tomaria ao longo de sua vida a partir de sua

compreensão e afirmação de Cristo enquanto figura histórica. Acreditamos que

aqui resida uma das chaves para sua atitude de resignação diante dos eventos. Em

algumas cartas para sua irmã Louise podemos entrever a fonte de inspiração do

historiador. Diz Burckhardt:

Querida Louise, ouça o que tenho a dizer com toda sinceridade. Ao que tudo indica, um dia viveremos juntos. Devemos cuidar para que a amizade sincera e as bênçãos de uma cultura profunda adocem nossas vidas. O homem pode significar muito para si próprio, e quanto mais ele significa para si, mais para os outros. (...) Vamos, então, construir um novo edifício de nossos sonhos despedaçados e destroços de todo tipo.

(...) o homem significa pouco ou nada para si mesmo se ele não é para os outros. Vamos, querida Louise, viver para os outros, e para o outro, em primeiro lugar, e então a resignação virá com facilidade. A soma dos ensinamentos de Cristo é certamente a lei do amor e do sacrifício pelos outros. Vejo diante de mim um indefinido período de ensinamento: que meu princípio guia possa permanecer para sempre o mesmo!16

A resignação de Burckhardt, portanto, não tem como origem o pessimismo

ou algum tipo de niilismo relacionado a seu próprio tempo, como argumenta

Hayden White, por exemplo, no capítulo dedicado ao historiador da cultura em

14 BURCKHARDT, Briefe, pp.40-1 (Cartas, p.123). 15 Mesmo na investigação anterior sobre a historiografia da cultura de Burckhardt, realizada durante o mestrado, também consideramos este período como fase de transição da qual o único resultado era uma negação veemente da questão religiosa, não levando em conta a contribuição teológica para a postura de Burckhardt diante da história. Um exemplo disto pode ser visto na compreensão da afirmação feita por Alexander Dru na Introdução para a seleção de cartas que fez para língua inglesa, quando afirmou que “o trabalho de Burckhardt demorou a amadurecer, demorou para aparecer e demorou ao ser entendido” (Cf. Burckhardt, Cartas, p. 51). A afirmação de Dru foi tomada como uma confirmação do reconhecimento tardio da obra do historiador, o que significava optar pela compreensão da obra de Burckhardt a partir de sua relação com o cânone historiográfico vigente, assinalado pela figura de Ranke. No presente estudo,entretanto, desejamos não só admitir, como aprofundar a importância da teologia, ampliando o raio de compreensão da formação da história de Burckhardt. Ver Janaína OLIVEIRA, A História da Cultura como Crítica à Modernidade: Jacob Burckhardt e a Historiografia do século XIX.

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Meta-História. Para White, por conta de seu pessimismo Burckhardt teria

preferido “fugir do mundo em vez de enfrentá-lo e atuar nele para salvar aquelas

coisas que mais prezava nele.”17 Pensamos de forma diferente: foi por amor ao

próximo, e, por extensão, à cultura que prezava, que Burckhardt comportou-se

resignadamente. Da resignação do período de juventude, surgiria a “resistência

serena”18 com que buscou combater a instabilidade que marcava a vida moderna.

Afirmaria Burckhardt, anos mais tarde, em suas aulas sobre a Era da Revolução:

Nós temos antes um pedido ao destino: um pedido por um sentimento de dever para o que se encontra diante de nós a cada vez, [de] submissão ao inevitável e, quando um grande problema da existência nos confrontar, [termos] uma constatação clara, sem ambigüidade, disto; finalmente, um pedido por tantos raios de sol quanto necessários na vida de um indivíduo para mantê-lo alerta para realização de seu dever e na consideração do mundo.19

Nesta perspectiva, compreende-se melhor, por exemplo, o consolo e a

inspiração encontrados por Burckhardt na figura de São Severino. O historiador,

ao longo de sua vida, remeteu-se algumas vezes à figura serena e perseverante

deste abade para expressar como se sentia no contexto de sua época. “Se você

quer ler algo consolador”, aconselhou o historiador a um amigo, “dê uma olhada

na Vida de São Severino em Pez. Lá você verá um homem que resistiu em meio

do colapso de tudo”20. Isto porque São Severino, no final do século V d.C.,

enquanto o Império Romano vivia seus derradeiros momentos, seguia fundando

monastérios ao longo do vale entres os rios Inn e Danúbio. Diante da onda

crescente das invasões bárbaras, aumentava no religioso a percepção de que o

momento representava o início de uma nova fase na história. Para São Severino,

fazia-se necessário assegurar que algo do mundo a que pertencia fosse transmitido

para as gerações vindouras. Do mesmo modo que o abade, Burckhardt julgava

viver em uma época “do colapso de tudo,” e, como veremos adiante, em razão

disto optou por dedicar-se à história da cultura e também à história da arte como

forma de lutar para que algo da cultura a que pertencia continuasse existindo no

16 Carta de 16 de julho de 1840 a Louise Burckhardt, in BURCKHARDT, Briefe, pp.53-55 (Cartas, pp.133-5) 17 Hayden WHITE, Meta-História, p.274. 18 Cf. Lionel GOSSMAN, Basel in the Age of Buckhardt, p.204 e ss. 19 Burckhardt, Historiche Fragmente, p.211 (Judgements on History and Historians, p.236) 20 Carta de 4 de março de 1856, a Heusler-Rhyner, apud Lionel GOSSMAN, Basel in the Age of Burckhardt, p.231.

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mundo. Por ora, entretanto, basta que reter a idéia de que a resignação de

Burckhardt tem origem na compreensão formada à época que estudava teologia e

não simplesmente no pessimismo diante de seu tempo.

Aliás, o pessimismo tantas vezes enfatizado nas descrições sobre

Burckhardt também pode ter fundamentação neste mesmo período, e este constitui

o outro ponto que gostaríamos de destacar aqui. Burckhardt de fato era pessimista

em relação ao seu tempo: progresso, industrialização, centralização política, e

tudo quanto caracterizava o mundo moderno, não constituíam, sob seu ponto de

vista, sinais de um momento positivo na história do homem. Ao contrário:

representavam ameaças à cultura e, desse modo, a tudo que Burckhardt julgava

valioso e digno de preservação. De uma forma geral, atribui-se a perspectiva

pessimista de Burckhardt à influência que a obra do filósofo Arthur Schopenhauer

teria exercido sobre seu pensamento. A admiração é, de fato, notória: em algumas

de suas cartas, o historiador se refere a ele como “o filósofo.” A este respeito

White argumenta que Burckhardt – “esse pessimista schopenhauriano que via a

história como exercício egoísta”21 – teria encontrado na filosofia de Schopenhauer

o respaldo para sua atitude, tal é o modo como White compreende a resignação de

Burckhardt, repetimos. Isto porque a visão de mundo do filósofo, afirma White,

“ajustava-se perfeitamente às necessidades daqueles segmentos da sociedade que

queriam ignorar por completo as questões sociais.”22

Do mesmo modo que divergimos da opinião de White sobre a fonte da

resignação burckhardtiana, discordamos também de sua interpretação sobre o

pessimismo de Burckhardt. A busca de refúgio na arte renascentista e na

Antigüidade empreendida pelo historiador contrastava com a insistência no

exercício de seu ofício como professor. Burckhardt acreditava que esse era o papel

que deveria desempenhar na sociedade, em defesa da preservação da cultura,

convicção que contraria, portanto, a afirmação de sua ignorância acerca das

questões sociais. Tanto ele estava a par dos acontecimentos de seu tempo, que em

virtude deles, elegeu o magistério, formal e informal, como modo de atuação.

Acreditamos, desse modo, que White compreende mal a postura de

Burckhardt com respeito a sua contemporaneidade, e relaciona seu pessimismo

estritamente à filosofia de Schopenhauer. Corrobora com esta afirmação o fato da

21 Hayden WHITE, op. cit, p.254. 22 Ibid.

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menção ao filósofo não surgir na correspondência de Burckhardt antes de 1870.

Considere-se ainda que o historiador já teria assumido o pessimismo como um

traço de sua personalidade muito antes disto, como chama atenção Howard. Estes

motivos bastam para julgar equivocada a asseveração de que a fonte do

pessimismo do historiador foi a filosofia schopenhauriana. Segundo Howard,

Burckhardt teria encontrado em Schopenhauer muito mais uma afinidade

espiritual, do que uma profunda influência. Ao pessimismo de Burckhardt é

possível atribuir outra proveniência, com base em sua formação protestante.

Portanto, afirma Howard,

Enraizado na tradição conservadora e religiosa da Basiléia, o pessimismo

de Burckhardt tinha, de fato, um pedigree profundamente cristão – e explicitamente cristão pré-moderno. Ele pode ser descrito como uma continuação secularizada da idéia do pecado original, um vínculo permanente com o mundo ortodoxo de seu pai. Burckhardt não expressa a base ontológica dessa idéia – a culpa humana e a consciência do pecado – mas sim suas conseqüências sociais – a noção (...) [de] que todo pensamento e ação humanos provém de ‘uma natureza herdada, negra e danificada que distorceu e perverteu suas vontades e desejos.’23

Da compreensão secularizada do pecado original deriva a percepção

negativa que Burckhardt tem do poder: por conta de sua natureza, os homens

tendem sempre a abusar do poder. Anos mais tarde, na série de conferências Das

Três Potências, Burckhardt declararia na apresentação do Estado: “O que a

história nos ensina – basta pensar em Luís XIV, em Napoleão e em todos os

governos do povo – que o poder em si é maligno.”24 Howard tributa, ainda, a este

“pedigree profundamente cristão” do pessimismo do historiador o seu “realismo

antropológico e [sua] modéstia intelectual”, característica que o distinguiria entre

seus contemporâneos.

Como se pode perceber, a importância da teologia na formação de

Burckhardt não foi pequena. Traços marcantes de sua postura foram em certa

medida originados nesta fase de sua vida. Ao termos em mente que o processo de

consolidação da maturidade intelectual de Burckhardt foi relativamente lento,

torna-se claro que tais traços foram tomando forma e se acentuando ao longo do

tempo. Mas, repetimos, eles têm em sua origem uma relação estreita com a

23 HOWARD, op. cit., p.158. 24 “dass die Macht an sich böse ist”, in BURCKHARDT, WB, p.83 (RHU,p.78)

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influência da teologia no seu pensamento. Resignação, pessimismo e crítica são

sem dúvidas características presentes na vida de Burckhardt até o fim.

Lionel Gossman usa como epígrafe da parte de seu livro em que trata da

obra de Burckhardt, uma descrição que Carl Spitteler, poeta, romancista e

ensaísta, faz do historiador. Spitteler, ganhador do prêmio Nobel de literatura em

1919, estudou na Universidade da Basiléia e não só foi aluno de Burckhardt como

o visitava com freqüência em seu modesto apartamento. Sua descrição reforça a

imagem de Burckhardt que tentamos esboçar até agora. Diz Spitteler:

O dito que eu mais ouvia de seus lábios era: “O mundo é totalmente mal.”

Cada vez que ele o proferia, era com a mais profunda, íntima convicção; de vez em quando ele o diria repetidamente, ou sem nenhuma razão em particular, sempre com um suspiro profundo, pio (...) Ele rejeitava o conceito de um Deus pessoal. Uma vez eu o ouvi exclamar asperamente, com um encolhimento de ombros: “A idéia de Deus?! Quando um animal devora o outro?!” Entretanto, ele não dizia isto despreocupadamente, mas sim à força de uma convicção séria e melancólica (...) O filho do pastor principal da cidade da Basiléia estava tão distante da cristandade que ele apenas poderia apreciá-la histórica e antropologicamente. Naturalmente, daquele ponto de vista, o cristão mais atraente é o mais autêntico e descompromissado (...) No topo da lista daqueles que Burckhardt sentia simpatia estavam monges e ascetas, os únicos que ele aceitava como cristãos puros. (...) Um dia ele me deu uma incumbência na forma de autorização: “Espalhe, sem qualquer hesitação, diga sem medo, conte em seu círculo de estudantes, que eu não acredito em nada. Não me importa que as pessoas saibam disto. Estou bastante feliz pelos jovens que sabem disto.”(...) Quando se pensa em um livre-pensador, comumente se imagina uma pessoa cética e frívola. Burckhardt era com certeza cético, ao menos em algumas de suas formas de expressão (...). Por outro lado, ele era o oposto de frívolo. Ele foi um dos pensadores mais sérios que eu conheci em minha vida. Quem quer que tenha ouvido uma única de suas palestras sabe o que quero dizer. Tenho em mente a seriedade cósmica que pulsava ao longo de suas palestras e as alçava a uma forma de devoção cerimonial (...) Conversas privadas com ele reforçavam aquela impressão de seriedade, apesar de todo o humor que ele expressava em palavras e gestos. Era possível mesmo detectar no espírito de Burckhardt um traço que normalmente se encontra somente em conexão com a religião: ele era mistérico. Mesmo se não acreditasse em uma Providência guia, ele ainda acreditava nos impulsos misteriosos por trás [e] em direção a um objetivo de algum tipo (...) Como ele pode ter concebido este impulso misterioso na ausência de um Deus, ninguém senão ele poderia saber, é claro, e, muito provavelmente, nem ele mesmo soubesse.25

25 Carl SPITTELER, “Jacob Burckhardt und der Student”, apud Lionel GOSSMAN, Basel in the Age of Burckhardt, p. 201. Spittler usa o termo alemão mystersich, que Gossman traduziu por mysterical e aqui nós traduzimos por mistérico. Sobre o termo diz Gossman em nota: “é uma invenção de Spitteler; provavelmente ele queria dizer com ele: ‘pronto a aceitar um certo mistério das coisas, embora não em um sentido cristão.” Ibid., p.510.

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4.2 Berlim, o caminho para a história da cultura

Em Berlim, Burckhardt elaborou as bases de sua concepção de história.

Fez isto tanto a partir das aulas e palestras que assistiu, como também do diálogo

com as pessoas que faziam parte de seu universo de relações. Enquanto cidadão

da Basiléia, também sua compreensão dos acontecimentos políticos de então foi

fundamental na escolha da história da cultura como campo de pesquisa.

Curiosamente, este era o momento em que a história, com ênfase na perspectiva

política, alcançava um lugar central não somente entre as disciplinas acadêmicas,

mas como verdadeiro guia para o entendimento que os homens tinham do mundo.

Isto porque, dos desdobramentos da Revolução Francesa ao longo das primeiras

décadas do século XIX, resultara a certeza de que a organização política e social

da Europa havia sido alterada para além das fronteiras do território francês. E

mais: continuava em mutação. Felix Gilbert, em artigo sobre os anos de

Burckhardt como estudante, descreve da seguinte forma a situação que faria da

história o centro do debate intelectual alemão:

Certamente, a relação entre passado e futuro era uma preocupação

dominante na Alemanha, onde a antiga constituição imperial havia sido extinta, a influência social dos estados e a autonomia destruídas, onde novas unidades políticas foram criadas arbitrariamente e onde uma nova sociedade estava claramente em um estado transitório.26

A indagação sobre quanto tempo ainda duraria a tormenta que extirpou o

antigo regime e sobre o que aconteceria depois, caso ela passasse, colocou a

história no centro dos interesses intelectuais. Ou seja, o que tornou a história o

foco reflexivo dos homens oitocentistas foi a crescente compreensão de que o

velho topos historia magistra vitae não possuía a mesma validade de outrora e

que necessitava de uma reformulação. Cabia à história encontrar uma nova

explicação para os acontecimentos: sua tarefa consistia em fazer do passado

novamente uma referência para o presente. Este quadro, portanto, corresponde

àquele que se apresentou no início deste trabalho: em virtude da indeterminação

do futuro, a contingência surge como um elemento presente no cotidiano dos

homens. Retomando as considerações de Koselleck, este momento equivale à

26 Felix GILBERT, “Jacob Burckhardt’s Student Years”, p.251.

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situação em que ao espaço de experiência não corresponde mais o horizonte de

expectativa e, portanto, a história passa ter como desafio a eliminação da

contingência e o restabelecimento de sentido para o passado. O próprio

Burckhardt, já assinalando uma visão perspicaz sobre os eventos de seu tempo,

demonstrava uma clara percepção do que acontecia do ponto de vista da história e

fez o seguinte diagnóstico:

Praticamente todos os povos europeus tiveram seus pés removidos do

chamado terreno histórico, incluindo a Prússia. A completa negação em assuntos de Estado, Igreja, Arte e Vida que ocorreu no fim do século passado [entre os melhores, desenvolveu] tamanha massa de conhecimento objetivo (...) que uma restauração do antigo status, no qual o povo era realmente secundário, é impensável. (...) Restaurações, por mais bem intencionadas que sejam, e por mais que pareçam ser a única saída, não podem obscurecer o fato de que o século XIX começou como uma tabula rasa em relação a tudo. Eu nem elogio nem aponto falhas nisso, é simplesmente um fato.27

Neste momento, em que a Revolução afastara a possibilidade explicativa

dos fundamentos teológicos, também a filosofia já não se mostrava tão

satisfatória, uma vez que, sobretudo, após a morte de Hegel, o domínio filosófico

começava também a enfraquecer, dado o combate que sofria das mais diversas

áreas acadêmicas. O fim da era filosófica, anunciado por Max Lenz quando

Schelling assumiu a cátedra que pertencera a Hegel em 1841 – com a famosa aula

inaugural em que Burckhardt, Kierkegaard e Engels estavam na audiência –

equivale ao processo de emergência da história como guia entre os saberes. E,

como não poderia deixar de ser, corresponde também ao processo que fez de

Ranke o símbolo da forma histórica de apreensão do mundo, motivo que, aliás,

levara Burckhardt à Berlim.

A importância de Ranke na formação de Burckhardt como historiador é

inegável. Desde o primeiro momento, Ranke causara em Burckhardt uma

profunda impressão. “Lembro-me muito bem do modo como ele começou as aulas

sobre a história da Alemanha: ‘Cavalheiros, as nações são pensamentos de

Deus!’”, contou Burckhardt em uma de suas cartas à sua irmã Louise.28 Porém,

logo Burckhardt percebeu que não teria uma ligação tão estreita com o renomado

historiador como a estabelecera com Heirich Schreiber. A ausência de um mentor,

27 Carta de 13 de junho de 1842 a Gottfried Kinkel, in BURCKHARDT, Briefe, p.78 (Cartas, p.158) 28 “Meine Herrn, Völker sind Gedanken Gottes!”, in BURCKHARDT, Briefe, p.57 (Cartas,p.139)

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não apenas acadêmico, foi motivo de lamento nos primeiros tempos berlinenses.

Por Ranke, Burckhardt nutria apenas uma admiração profissional. Admirava sua

seriedade no tratamento da história, sua erudição, o método crítico e estimava sua

escrita, principalmente em A História do Papas e o primeiro volume da História

da Alemanha na Era da Reforma; considerava-as verdadeiras obras de arte. Tanto

que mais de trinta anos depois, em dezembro de 1874, ao saber que só então seu

amigo Friedrich von Preen estava lendo a obra, Burckhardt comentou que havia

“devorado” este livro em seus tempos estudantis, sabendo, inclusive, muitos

trechos de cor.29

Ao nível pessoal, entretanto, Burckhardt tinha dúvidas sobre a

personalidade de Ranke. Considerava o renomado historiador “um tipo estranho”,

de quem nunca se podia ter certeza do que esperar. Algumas vezes chegou a

narrar para sua irmã Louise episódios em que Ranke teria dado mostras de um

caráter duvidoso. “É realmente uma pena que, com toda sua colossal erudição e

suas grandes qualidades sociais (é também muito cortês comigo), ele tenha de ser

também tão privado de caráter”30, comentou certa vez Burckhardt. A este respeito,

Gilbert chama atenção para o fato de Burckhardt freqüentar um círculo de

amizades marcado por uma atitude politicamente liberal, no qual, portanto, as

pretensões políticas de Ranke eram criticadas e de onde, provavelmente, seriam

oriundas grande parte das histórias e anedotas sobre ele.

Entretanto, tal desconfiança pessoal não se estendeu à sua opinião acerca

do aspecto intelectual, tanto que considerar Burckhardt um discípulo da escola

rankeana não constituí. Com Ranke, ele afirmava ter compreendido o que é o

método histórico. Seus dois primeiros trabalhos acadêmicos – o ensaio sobre

Carlos Martel, de 1840, e o trabalho sobre Conrad von Hochstaden, Arcebispo e

fundador da Catedral de Colônia, de 1843 – foram produzidos para os seminários

de Ranke e continham claramente o traço da perspectiva histórica do mestre.

Neles, como chama atenção Gilbert, estão presentes elementos característicos da

historiografia de Ranke, termos como a Europa cristã, a separações de várias

nações, a existência de um espírito individual nacional, isto é, um Volksgeist.31

Ainda que mais tarde tenha abandonado tais expressões, Burckhardt manteve de

29 Ibid., p. 341 (Cartas, p.301). Sobre a relação entre Ranke e Burckhardt, ver também Janaína OLIVEIRA, op. cit., p.48 e ss. 30 Ibid., p.56. (Cartas,p.138)

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Ranke o exemplo sobre seriedade do tratamento da história, a escrita como fator

importante e o valor da erudição. Em verdade, o historiador da Basiléia sempre

afirmou a notoriedade de seu antigo professor e seu débito para com ele. Assim o

fez oficialmente em ao menos duas ocasiões. No curriculum vitae que

acompanhava a tese que encaminhara à Universidade da Basiléia, escreveu

Burckhardt:

Foi minha grande sorte ter tido como professor em história Leopold von Ranke, um erudito a quem nunca será demais saudar. Ele foi bondoso para meus estudos posteriores não apenas pelos seus ensinamentos, mas também por sua sempre útil orientação.

Burckhardt também dedicou algumas palavras ao mestre no breve resumo

de vida que, na tradição da Basiléia, era costume fazer para leitura no próprio

funeral: “Tive a boa sorte de apresentar dois estudos substanciais nos seminários

de Ranke e ser recompensado com a aprovação do grande professor.”32

Porém, não foram somente a metodologia e a atitude de Ranke que

influíram na concepção de história que Burckhardt consolidaria em Berlim.

Também a história da arte foi outro fator de decisivo em sua formação. O contato

com a disciplina se fez através das aulas de Franz Kugler.33 De Kugler,

Burckhardt conta que, desde o começo, foi muito bem recebido pelo historiador

da arte e, de fato, constituiu com ele um relacionamento bastante próximo. Esta

amizade foi responsável por estimular e refinar o interesse de Burckhardt sobre a

arte, assim como do seu encaminhamento para a história da cultura. Isto porque,

no início do século, o processo de emancipação da história da arte dos domínios

da estética especulativa da filosofia acabou por transformá-la em uma parte de

disciplina histórica, mais especificamente, como uma área da história da cultura.34

Mas a independência da história da arte foi, a princípio, paradoxal, pois

emancipava-se por um lado e mantinha-se dependente por outro, fato que se

31 GILBERT, “Jacob Burckhardt’s Student Years”, p.258. 32 Ibid., p,261. 33 Sobre a relação entre Burckhardt, Franz Kugler e a história da arte, além do artigo de Gilbert, ver também: Cássio FERNANDES, “Do Manual de História da Arte de Franz Kugler ao Cicerone de Burckhardt”, in A Figura do Homem entre Palavra e Imagem: Autobiografia e Retrato Pictórico no Renascimento de Burckhardt; Lionel GOSSMAN, “‘Second Creation’. The History of Art”, in Basel in the Age of Burckhardt, pp.347-405; John HINDE, “In the Search of an Autonomous History of Art”, in Jacob Burckhardt and the Crisis of Modernity, pp.270-297. 34 Lembremos que a esta época a história da cultura também era uma área ainda em formação no interior da disciplina histórica cuja linha principal era a história política. Sobre o status da

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refletia no dilema enfrentado por seus historiadores, que tendiam a contextualizar

a arte para evitar um formalismo extremado, caso deixassem o campo da história.

Kugler representa um dos nomes mais importantes deste movimento que

fez da história da arte uma área independente da filosofia e parte integrante da

história da cultura. Ele fazia parte de uma geração de jovens intelectuais da

Universidade de Berlim que se rebelou contra a influência do hegelianismo nas

diversas áreas de conhecimento. No caso da arte, mesmo sem ocupar um tema

central na filosofia de Hegel, ela também foi englobada entre as manifestações do

espírito absoluto. Kugler, como afirma Hinde, recusava-se a aceitar que o objeto

de arte fosse, em sua essência, uma parte de um campo ideal do pensamento, “que

pudesse ser reduzido simplesmente a uma representação simbólica e uma

encarnação do espírito universal.”35 Por este motivo, desde o início de sua

carreira, o historiador da arte consagrou suas energias à compilação de dados

sobre os mais diversos artefatos culturais e artísticos, na intenção de afastar os

modos de interpretação da filosofia especulativa. Sua metodologia tinha na

apreciação direta das obras de arte e de arquitetura sua característica principal, o

que significa dizer que a base de seu método repousava na contemplação

(Anschauung). Com base neste procedimento, Kugler conduzia projetos que

pretendiam proporcionar a compreensão da história a partir das manifestações

artísticas dos homens em diferentes épocas. Pois, para ele, a arte constituía um

elemento necessário da existência humana e, portanto, mantinha estreita relação

com a história.

Burckhardt, por seu turno, mesmo antes de Berlim, nutria grande interesse

pelas diversas manifestações artísticas, de modo que sentiu-se atraído pela

perspectiva apresentada por Kugler logo de início. Gilbert comenta a este respeito

que, mesmo sem ter se sentido obrigado pela indicação que possuía para as aulas

do historiador da arte, Burckhardt as teria preferido em detrimento das de

Ranke.36 Seja com for, em 1842, já ao final da redação do manuscrito de Conrad

von Hochstaden, Burckhardt declarava sua intenção de dedicar-se à história da

historiografia da cultura quando Burckhardt era estudante em Berlim, ver Felix GILBERT, “Burckhardt and the Cultural History of his Time”, in History: Politcs or Culture, pp.81-92 35 John HINDE, op. cit., pp.283-4 36 No primeiro semestre em Berlim, Burckhardt se matriculou nas aulas de Kugler antes mesmo do que nas de Ranke. Isto porque os dois professores ministravam seus cursos no mesmo horário e como Burckhardt possuía uma indicação para as aulas de Kugler, julgou adequado dar a ele

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cultura. Isto significava que, do mesmo modo que Kugler, Burckhardt

confirmaria, inicialmente, a história da arte como um campo subordinado à

historiografia da cultura. Influenciado pelos projetos totalizantes de Kugler de

análise das manifestações artísticas no interior da história da cultura,37 o jovem

aluno assinalava o desejo de escrever “uma história da arte de Constantino aos

Otto ou aos Hohenstaufen,”38 e, para tanto, planejava passar uma temporada em

Paris e outra na Itália, para pesquisar nas bibliotecas e museus.

Em março de 1843, Burckhardt encerrou sua estadia como estudante em

Berlim, partindo então para Paris, onde ficaria por alguns meses antes do retorno a

Basiléia. Nesta época começava também a desligar-se intelectualmente de Kugler,

sinalizando desde então seu interesse por uma outra abordagem da história da arte,

mais independente da história. Isso, entretanto, em nada diminuiria sua afeição

pelo historiador da arte. De Paris, na mesma carta a Kinkel em que mencionaria a

curiosidade a respeito da perspectiva sobre a história da arte de Karl Schnasse,39

contava com alegria ter recebido uma carta de Kugler. “Oh, que carta adorável

recebi de Kugler! Ele me oferece sua amizade!”, exultava Burckhardt. De fato,

sentia-se gratificado pelo privilégio do afeto de Kugler, pois sabia que se tratava

de uma regalia concedida a poucos estudantes de fora de Berlim.

Ele sempre me tratou com indulgência e, ainda assim, sempre me disse a

verdade (isto é, sobre meus poemas), e agora, espontaneamente, me dá um sinal de sua amizade, que muito significa vindo de um homem tão reservado e, pelo que as aparências indicam, frio. 40

contava Burckhardt, que nos anos seguintes ainda realizaria alguns

trabalhos sob a supervisão de Kugler. Tal como ocorrera com Ranke, a

importância de Kugler, nunca seria esquecida por Burckhardt. A dedicatória do

livro que assinala sua mudança de abordagem na história da arte expressa esse

reconhecimento. Assim, em 1855, na abertura de Cicerone: Einlentung zum

prioridade, assistindo apenas esporadicamente as preleções de Ranke ao longo deste primeiro semestre em Berlim. 37 Kugler, em seus manuais de história da arte, perseguia o objetivo de uma abordagem totalizante dos fenômenos artísticos, presente, por exemplo, desde 1837 na edição em dois volumes do “Manual da História da Pintura de Constantino, o Grande à Época moderna” e também no “Manual da História da Arte”, editado em 1842. Entre 1846 e 1847, Kugler convidaria Burckhardt para trabalhar na reedição das duas obras. 38 Carta de 1 de julho de 1842 a Schreiber, in BURCKHARDT, Cartas,p.167. 39 Karl Schnasse era um dos representantes mais importantes da tendência que buscava estabelecer a autonomia no estudo da história da arte da história em geral. 40 Carta de 20 de Agosto de 1843 a Kinkel, in BURCKHARDT, Briefe,p.102. (Cartas, p.181).

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Genuss der Kunstwerke Italiens (“Cicerone: Introdução para a Fruição das Obras

de Arte da Itália”), declarou Burckhardt:

A Franz Kugler em Berlim O fruto de uma nova e prolongada estadia na Itália, que aqui te entrego,

caro amigo, pertence-te por direito. Poderia haver-te dedicado, porque durante quatro anos vivi em Berlim como um filho em tua casa e me confiaste trabalhos importantes, ou porque sou a ti devedor da melhor parte da minha cultura, prefiro, porém, que esta dedicatória faça recordar-te dos nossos passeios tranqüilos pela areia de verão e pela humildade da neve invernal dos arredores. Sei que jamais existirá algo que possa compensar-te da comunhão espiritual de que desfrutei naquele período. Também neste livro, o que há de bom é de sua influência. De todo o resto gostaria de tornar-me pessoalmente responsável. Verás como combati com a nossa linguagem estética já um pouco antiquada, para suscitar-lhe uma vida própria.41

Porém, o fato é que ao longo de sua vida profissional, Burckhardt buscou

estabelecer uma visão própria da história da arte equilibrada entre o

contextualismo de Kugler e a autonomia radical de Schnasse. Se nos anos

subseqüentes à sua saída da Universidade de Berlim, Burckhardt manteve a noção

de que a história da arte constituía uma área que pertencia à esfera da história da

cultura, ao final da década de 1840, sobretudo após o agitado ano de 1848, a sua

concepção já não seria mais a mesma: a história da arte se tornaria para ele um

campo autônomo da história da cultura. Em 1852, observando retrospectivamente

seu posicionamento, Burckhardt comentava as mudanças com Paul Heyse. Sua

visão havia se modificado não somente em relação à história da arte, mas também

quanto ao rumo dos estudos históricos propriamente ditos:

Já faz algum agora tempo que minhas opiniões sobre arte (en bloc)

sofreram uma completa metamorfose, a respeito da qual terei muito a contar quando você estiver aqui. Eu nunca imaginaria que um velho e rançoso historiador como eu, que se achava capaz de avaliar cada época e cada ponto de vista, pudesse, no fim, se tornar tão parcial como me tornei. Mas a venda está caindo de meus olhos (...). há também algumas palavras a serem ditas sobre a pesquisa histórica e a maneira como é conduzida, estou gradualmente adquirindo o direito de dizê-las.42

As transformações na compreensão sobre a história e a história da arte

possuem estreita relação com os acontecimentos políticos ocorridos ao longo dos

41 BURCKHARDT, Gesammelte Werke. Band IX. Der Cicerone. Erster Band. Basel/Stuttgart:Schwabe & Co. Verlag, 1978, p.XII. Apud Cássio FERNANDES, op. cit,pp.46-7.[grifos nossos]

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anos quarenta. No seu retorno à Basiléia, Burckhardt reencontra a tradicional

cidade-estado num processo de intensas modificações, desencadeadas pelo

crescimento da indústria local. Surgia então uma nova classe de trabalhadores,

que, encorajados pelo crescimento da burguesia, imigraram para a cidade. Como

acontecia na Europa de um modo geral, a elite local perdia poder para a classe

média que, por sua vez, começava a reivindicar maior participação no universo de

decisões políticas. Paralelamente, despontavam no horizonte suíço distúrbios entre

os cantões católicos e protestantes. Na Basiléia, como na Suíça como um todo,

aquele fora um período marcado por mudanças na dinâmica da sociedade,

permeado por uma crescente instabilidade política.

Apesar de nunca ter sido adepto de partidarismos de espécie alguma,

Burckhardt viu-se diante da necessidade de se posicionar.43 Isto porque, com o

intuito de juntar algum dinheiro para uma nova viagem à Itália, ele aceitara o

cargo de editor em um jornal conservador local, de modo que, querendo ou não,

era obrigado a presenciar, relativamente de perto, tudo que acontecia e a emitir

opiniões. Por cerca de um ano e meio, a partir do verão de 1844, o historiador

atuou como jornalista. A atribuição era sempre encarada com um ar de

descontentamento, pois também nesta época Burckhardt começara a dar palestras

na Universidade da Basiléia e o trabalho jornalístico tomava-lhe um tempo tal que

o impedia de dedicar-se plenamente aos afazeres de docente.

A experiência como editor serviu como reiteração à convicção de que

atuar politicamente, no front dos acontecimentos, não era para ele. Burckhardt

vislumbrava no horizonte a eclosão de conflitos sérios – tal como aconteceria em

1847 com a guerra civil no território suíço da qual resultaria a separação entre os

cantões. É desta época a carta famosa, e já mencionada aqui, em que Burckhardt

afirmava a seu amigo Hermann Schauenburg que não via a hora de partir para a

Itália e deixar para trás todas as formas de partidarismos. Na correspondência,

declarava que seu lugar era na retaguarda dos eventos, para que pudesse ajudar a

reconstruir a cultura depois que a tormenta tivesse passado.44

42 Carta de 18 de Dezembro de 1852 a Paul Heyse, ibid., p.179 (Cartas, p.222). 43 Sobre a relação de Burckhardt com a política, ver John HINDE, “Jacob Burckhardt’s Political Thought” e também Richard SIGURDSON, “Jacob Burckhardt: The Cultural Hisorian as a Political Thinker.” 44 Dizia Burckhardt então: “Nosso destino é ajudar a construir mais uma vez quando a crise tiver passado.” In BURCKHARDT, Briefe, pp.143-4 (Cartas, p. 198)

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O historiador passaria uma breve temporada na Itália em 1846 e para lá

retornaria uma vez mais no inverno de 1847, ficando até 1848. Apesar de ter se

esquivado dos distúrbios políticos na Suíça, Burckhardt acabou testemunhando

conturbações políticas muito mais graves em sua estadia italiana. Este período foi

definido por ele como uma época de verdadeira meditação em sua vida, fase na

qual se confirmaria a “sensação de transitório” como uma característica de seu

tempo. Diante da situação caótica que se instaurara, Burckhardt abandona a

simpatia inicial quantos às reivindicações políticas italianas e passa a considerar

as palavras de ordem que clamavam por liberdade e progresso desprovidas de um

conteúdo real.

Segundo Hinde, esse foi “um ponto de virada muito importante” na vida

pessoal e profissional de Burckhardt, tornando-se, ao fim, um momento muito

proveitoso. Naquele momento, o historiador não apenas “abandonou seus amigos

liberais radicais, como também se convenceu da necessidade de escrever história

da cultura em oposição à história puramente nacionalista e política associada com

Ranke e Berlim.” Esta época também coincidiu com uma mudança de

reorientação ao mesmo tempo simbólica e real, “do norte, associado à Alemanha e

Berlim, para o sul da Itália e Roma.”45 Tanto que, ainda da Itália, Burckhardt

escreve a Andreas Heusler contando do plano que havia elaborado, “grande plano

literário” (einen großen literalischen Plan) dizia, para a montagem de uma

biblioteca de história da cultura.46 O projeto era composto das seguintes partes: a

época de Péricles; a época do Império Romano tardio; o século VIII; a época dos

Hochenstaufen; a vida alemã no século XV; e, por fim, a era de Rafael. Contudo,

entre a 1852 e 1860, Burckhardt realizou apenas parcialmente seu plano, com a

publicação da parte inicial – A Era de Constantino, o Grande – e da parte final,

isto é, a “era de Rafael”, intitulada A Cultura do Renascimento na Itália. Como o

próprio Burckhardt reconhecera, ficara ausente nesta obra a parte específica sobre

a história da arte no Renascimento. Declara o historiador na introdução do livro:

“era nossa intenção, a princípio suprir a maior lacuna deste livro mediante uma

obra especial tratando da ‘arte do Renascimento’, propósito que minimamente

45John HINDE, “Jacob Burckhardt’s Political Thought”, p.434. 46 Carta de 19 de Janeiro de 1848 a Andreas Heusler-Ryhiner, in BURCKHARDT, Briefe, pp.165-68.

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pôde ser realizado.”47 Hinde aventa como uma razão possível para Burckhardt

não ter levado adiante seu projeto, o fato de já em Constantino não ter conseguido

abordar a questão da arte de maneira que julgasse satisfatória. No fim, argumenta

ainda Hinde, Constantino “não era nem uma apresentação do desenvolvimento

artístico nem um exame do estilo e da forma” e, ao contrário, “a história da arte

foi subordinada a desenvolvimentos mais amplos da história da cultura e assumiu

uma função auxiliar.”48

A mudança no tratamento das duas formas de história, contudo, não se deu

de uma hora para outra. No caso da história da arte, a independência da

historiografia da cultura seria alcançada à medida que Burckhardt passou a balizar

suas análises não só por questões como estilo e forma, mas também de acordo

com o gênero das manifestações artísticas. Neste sentido, o Cicerone pode mesmo

ser considerada a obra que assinala a transição rumo à autonomia da história da

arte: o exemplo onde esta concepção se cristaliza. No Cicerone, que não é um

manual aos moldes de Kugler, mas um guia para a fruição da obras de arte

italianas, como indica o próprio subtítulo, a disposição da matéria não é

diacrônica. O guia é dividido apenas entre arte antiga e arte moderna e as obras de

arte encontram-se separadas, respectivamente, em arquitetura, escultura e pintura.

No caso da história da cultura, a arte permanecia o objeto privilegiado para o

estudo de uma determinada época, deixando para trás a primazia dada às fontes de

origem oficial empregadas na historiografia tradicional. Além disto, também a

organização cronológica seria aqui abandonada. A especificidade da historiografia

da Burckhardt com relação ao cânone historiográfico será aprofundada mais

adiante, mas, desde já, deve-se assinalar que o período em que o historiador

mudou sua posição em relação a história da arte também estava relacionado a uma

alteração de sua visão acerca da tradicional ênfase empregada na linha

historiográfica de matriz rankeana.

Do ponto de vista historiográfico, a separação que o próprio Burckhardt

promoveu entre história da arte e história da cultura, resultou em uma bifurcação

47 BURCKHARDT, A Cultura do Renascimento na Itália, pp.21-2. O texto seria publicado posteriormente no volume quatro de Geschichte der Baunkunst,organizado por Kugler. 48 John HINDE, “In the Search of an Autonomous History of Art, in Jacob Burckhardt and the Crisis of Modernity, p.286.

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dos caminhos interpretativos de sua historiografia.49 É como se Burckhardt, ao

tornar a história da arte uma disciplina autônoma, seguindo seu próprio caminho e

não aquele representado por Schnasse, tivesse também promovido a

independência do historiador da arte em relação ao historiador da cultura. Ao

longo de sua vida a história da arte sempre teve papel fundamental: iniciou sua

carreira como historiador da arte; fundou a disciplina na Universidade da Basiléia;

levou adiante o projeto sobre a “era de Rafael” em palestras proferidas até o fim

de sua vida. Ao mesmo tempo, enquanto historiador da cultura, também seguiu

ministrando cursos, veja-se, por exemplo, aquele sobre a história da cultura grega.

O enfoque histórico-cultural era, enfim, predominante no ensino de todos os

cursos e palestras de história que executou ao longo de sua vida: tanto naqueles

em que abordava da Antigüidade à era da Revolução, tal como podemos observar

na reunião de suas anotações de aulas publicados após sua morte sob o título de

Historische Fragmente;50 como na série de conferências que se propusera realizar

sob o título de Über das Studium der Geschichte (Sobre o Estudo da História),

publicada também após sua morte, sob o título de Weltgeschichtliche

Betrachtungen (Considerações sobre a História Universal).51

A “divisão” historiográfica realizada pelo próprio Burckhardt, em que

ressaltava a estreita ligação entre história da cultura e história da arte, a acuidade

da análise do historiador em suas considerações sobre a história de um modo geral

e, principalmente sobre sua própria época, fez com que a sua obra recebesse uma

fervorosa acolhida no século XX, sobretudo, a partir de 1943, quando começaram

a circular as traduções para o inglês de Sobre o Estudo da História,

simultaneamente em Londres e na Inglaterra.52 Em virtude de sua compreensão

crítica e dos diagnósticos certeiros acerca dos movimentos desencadeados a partir

49 Está em andamento um grande projeto de reedição crítica das obras completas de Burckhardt – Jacob Burckhardt Werke – realizado por duas editoras, uma suíça (Schwabe) e outra alemã (C.H.Beck) e um grupo composto por trinta e cinco estudiosos de dez universidades européias. O projeto prevê a publicação de vinte e sete volumes e atualmente está no nono. Em virtude da quantidade de material, entendemos que, futuramente, seja mesmo possível a ampliação das possibilidades de investigação da historiografia de Burckhardt em sentidos outros além da arte e cultura. 50 Publicado em inglês sob o título de Judgements on Historyand Historians em 1958 com introdução de H. R. Trevor-Hoper. 51 Reflections on History na versão em inglês; Reflexiones sobre la Historia Universal, na versão espanhola. 52 Lionel Gossman, em uma conferência em comemoração aos oitenta e cinco anos de Carl Schorske, faz uma análise detalhada desta recepção da obra de Burckhardt no momento

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do período da Revolução Francesa, Burckhardt foi alçado a um lugar de destaque

no mundo intelectual, num contexto dominado pela Guerra Fria. A este respeito

Gossman argumenta que as traduções, surgidas quase quarenta anos depois do

aparecimento do texto original em alemão,

causaram sensação nos países de língua inglesa ao revelar um Burckhardt, inimaginável, surpreendentemente atual – um observador sábio de seu próprio tempo, notavelmente independente das correntes dominantes de pensamento de sua era e um diagnosticador profético das tendências fundamentais do mundo moderno.53

A ênfase, na presente investigação, sobre Burckhardt enquanto historiador

da cultura não poderia deixar de se relacionar com esse aspecto do “observador

sábio de seu próprio tempo.” Entretanto, o que orientou o interesse por sua obra

não foi, em absoluto, a bibliografia produzida no momento pós-Segunda Guerra,

mas as considerações que Nietzsche tecera sobre a história, inspiradas nas aulas de

Burckhardt que filósofo assistira quando da sua estadia na Basiléia como

professor de filologia. O foco da análise ora apresentada recai sobre sua

preocupação com o problema da continuidade histórica, sendo a crítica de

Burckhardt à modernidade seu pano de fundo. Portanto, interessa pensar como o

historiador se posicionou, do ponto de vista historiográfico, com respeito à

questão da contingência que marca a época moderna até os dias de hoje. Pois, o

fato é que, ainda que tenha se consolidado lentamente,54 a perspectiva histórica de

Burckhardt desde o primeiro momento indica a presença da questão a

continuidade histórica na base de suas preocupações. Karl Löwith chega mesmo a

afirmar que, se há algum princípio possível de ser detectado nas reflexões de

Burckhardt sobre a história, este é o da continuidade.55

subseqüente à Segunda Guerra Mundial, reconstruindo, inclusive, o contexto literário em que Burckhardt fora publicado e lido. Cf. Lionel GOSSMAN, “Jacob Burckhardt: Cold War Liberal?” 53 Lionel GOSSMAN, “Jacob Burckhardt: Cold War Liberal?, p.538. 54 Tanto a herança da formação teológica, como as experiências afetaram Burckhardt de maneiras distintas em sua formação como historiador. Se fosse possível estabelecer um limite temporal para o amadurecimento de sua concepção de história, ele poderia ser balizado entre a ruptura com os estudos teológicos até o momento que Burckhardt organiza os manuscritos de A Cultura do Renascimento na Itália.54 Assim, não seria de todo um exagero se considerássemos que Burckhardt levou vinte anos para amadurecer sua concepção de história, diferentemente, por exemplo, de Hegel que, ao que parece, já havia dimensionado o sistema que queria formular desde os tempos de juventude. 55 Cf. Karl LÖWITH, “Burckhardt”, in Meaning in History, p.20 e ss.

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Tendo feito essas observações, com respeito aos aspectos que contribuíram

para a formação da concepção de história de Burckhardt resta ainda abordarmos o

papel que nela desempenha a sua origem enquanto cidadão da Basiléia.

4.3 O ponto arquimediano

Eu não iria para Berlim por dinheiro algum; deixar a Basiléia atrairia uma maldição sobre mim. Nem tampouco é grande o meu mérito no que tange a esse assunto; para nada serviria um homem de cinqüenta e quatro anos que não soubesse onde reside sua modesta porção de (relativa) boa sorte. Tivesse eu aceitado, estaria em um estado de espírito suicida; em vez disso, porém, as pessoas se sentem agradecidas em relação a mim e, aqui e ali, cumprimentam-me discretamente. Oficialmente nada se sabe sobre o assunto, pois eu queria evitar qualquer estardalhaço.56

Com estas palavras, Burckhardt confirmava ao amigo Von Preen, os

boatos que circulavam no meio acadêmico: era verdade o que diziam a respeito do

convite que recebera. Cerca de dois meses antes, Ernest Curtius, conhecido

arqueólogo e historiador, estivera em sua casa em uma visita extra-oficial para

sondar a possibilidade de ele assumir a principal cátedra de história existente na

época: aquela que pertencera a Ranke na Universidade de Berlim. Ranke, que

ocupara esta cátedra desde o primeiro momento em que a história passou a ser

uma disciplina acadêmica autônoma, havia indicado Burckhardt como seu

substituto. O historiador da Basiléia esforçou-se ao máximo em manter absoluta

discrição sobre o convite e também sobre o enfático “não” que dera em resposta.

Esta não fora a primeira vez que Burckhardt preferira permanecer na sua cidade

natal, declinando convites para lecionar em outros lugares. Cinco anos antes o

historiador recusara a colocação nas cátedras das Universidades de Tübingen e

Heidelberg. Entretanto, o convite de Curtius dizia respeito a nada menos do que a

cadeira do professor e pesquisador de história de maior mérito de então. Mas, para

Burckhardt aceitar tal honra era intolerável. As razões dessa recusa tão veemente

nunca ficaram claras. Segundo Alexander Dru, o historiador apenas teria

argumentado que “na Basiléia, posso dizer o que me agrada.”57

56 Carta de 28 de junho de 1872 a Friedrich von Preen, in BURCKHARDT, Briefe, p.313. (Cartas, p.287). 57Alexander DRU, “Introdução.” In BURCKHARDT, Cartas, p.50.

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De um modo geral, os estudiosos da historiografia do século XIX tendem a

encarar a decisão de não deixar a Basiléia como uma espécie de “paroquialismo”,

isto é, um tipo de interesse limitado à vida local. Esta linha de raciocínio atribui a

um pessimismo manifesto a recusa de Burckhardt em deixar sua cidade natal.

Movida pelo pessimismo estaria a convicção de que o mundo do século XIX

caminhava inexoravelmente rumo ao abismo, para usar uma descrição feita pelo

próprio historiador. Mas, como argumentamos anteriormente, o pessimismo, ainda

que definitivo para a avaliação de sua época, não deve ser considerado como o

fator principal que o leva a agir no mundo. Por esta razão, somos levados à busca

de outros caminhos para entender a insistência do historiador em permanecer na

Basiléia. Nesse sentido, as considerações de Lionel Gossman58 sobre a relação de

Burckhardt com a cidade-estado fornecem um caminho possível.

Gossman aponta para o fato de algumas características que configuram as

tradições da cidade-estado terem influenciado o pensamento de Burckhardt acerca

da vida e da história. A ênfase dessa influência recai sobre três aspectos: em

primeiro lugar, o autor ressalta a própria tradição do protestantismo ortodoxo –

que, tal como indicamos no início deste capítulo, fora fortemente abalada em

Burckhardt após as aulas de Dewette. A crise de fé conduzira o estudante a

abandonar os planos de se tornar pastor, seguindo os passos do pai, e o levara a

Berlim a fim de estudar história. A este respeito John Hinde afirma que a “história

fornecera-lhe a solução para sua crise imediata de fé e se tornara uma forma de

terapia a longo prazo para a crise que ele acreditava caracterizar o mundo

moderno.”59

Em segundo lugar, o ideal de republicanismo cívico resultante de uma

mistura excêntrica, porém pragmática, de cosmopolitismo e particularismo, que

tornava a Basiléia protestante um local mais palatável. E, por fim, a reputação da

cidade como um centro de comércio e negócios. “Estas tradições foram reforçadas

e não enfraquecidas pela experiência de Burckhardt da modernidade e da mudança

política”,60 escreve Hinde corroborando o argumento de Gossman. Tanto é assim

que a elas justamente somaram-se os elementos que atravessavam a perspectiva

do historiador acerca dos acontecimentos políticos, tais como o receio com que o

58 Lionel GOSSMAN, Basel in the Age of Burckhardt, p.91 e ss. 59 HINDE, op. cit, p.67. 60 Ibid.

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historiador observava a centralização do poder político, o potencial revolucionário

das massas, o impacto social da industrialização e o materialismo e a acomodação

da arte e da cultura nas mãos da burguesia. Também deve ser destacada a

exaltação que Burckhardt fazia dos benefícios do estado pequeno (Kleinstaat)

para fomento da Bildung, e sua crença na capacidade de redenção da educação, da

cultura e da tradição.

A Basiléia fora a última cidade-estado a resistir à onda de unificação e

anexação pela qual passou a Europa a partir de meados do século XIX. Nessa

época a cidade já não gozava do prestígio que havia tido outrora, fosse como

importante pólo comercial às margens do Reno nos séculos XV e XVI ou como

referência para o comércio e manufaturas de renda tal como fora no século XVIII.

Mas ainda sim, representava um foco tradicional de resistência aos objetivos do

forte estado-nação germânico que despontava no horizonte. Toda a movimentação

a partir do século XV dera à cultura local características cosmopolitas e

humanistas, que se combinavam, paradoxalmente com o particularismo da política

dominante do patriciado local, que durante séculos controlou a imigração e o

acesso à cidadania. Na Basiléia, durante muito tempo, para ser cidadão era

necessário ser membro de uma das corporações lá existentes que, no século XVII,

somavam dezoito61. Essa combinação excêntrica, como já foi chamada aqui a

convivência entre cosmopolitismo e particularismo, se mostrara bastante atrativa

para a produção intelectual e artística.

É isto que nos indica Gossman em seu estudo sobre a Basiléia dos tempos

de Burckhardt. Para o autor esta característica, ao mesmo tempo cosmopolita e

conservadora, era o que mantinha a Basiléia simultaneamente “aberta”, pelo

humanismo valorizado em sua cultura, porém “fechada” e independente em

termos políticos – mantinha-se distante até da Confederação Suíça. Esse grau de

liberdade tornava a cidade-estado um lugar atraente para livres-pensadores,

artistas, filólogos e teólogos, que, por razões diversas, não haviam encontrado

tranqüilidade em outros lugares. Erasmo de Rotterdam, por exemplo, morou por

muitos anos na Basiléia e lá foi enterrado. O pintor alemão Hans Holbein também

mudou-se para a cidade e integrou uma de suas corporações. Dois séculos mais

tarde, Dewette iria para lá após a demissão de Berlim e Friedrich Nietzsche teria

61Lionel GOSSMAN, Basel in the Age of Burckhardt, p.18.

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na sua Pedagogium sua primeira experiência como professor na cadeira de

filologia. Da lista expressiva apresentada por Gossman constam nomes que vão

das artes à teologia. Se aceitamos esta imagem da cidade-estado da Basiléia,

temos a visão de que aquele representava um lugar atípico no cenário europeu,

favorável ao surgimento e cultivo de idéias “intempestivas”, tal como sugerido no

subtítulo do livro de Gossman (Basel in the Age of Burckhardt: an Study on

Unseasonable Ideas).

Carl Schorske, em artigo sobre a vocação da Basiléia para a história,

corrobora esta imagem, declarando que, no século XIX, quando a política pós-

napoleônica começou a sufocar a vida intelectual na Alemanha,

à medida que professores liberais eram demitidos ou começavam a pensar

em fugir da repressão governamental nas universidades alemãs – em

especial, nas prussianas –, a Basiléia pescava em águas turbulentas,

atraindo uma bela coleção de talentos de primeira linha.62

É preciso, ainda, chamar atenção para o aspecto humanista que tanto

marcou a educação da Basiléia. O humanismo esteve presente no meio cultural da

cidade-estado desde o século XVI, como atesta a já mencionada presença de

Erasmo. Entretanto, no final do século XVIII houve uma nova onda humanista na

Europa, expressa literariamente na obra de Schiller Über die ästhetische

Erziehung des Menschen (Sobre a educação estética os homens),63 de 1795, e

também nos vários escritos de Wilhelm Humboldt, como Theorie der Bildung des

Menschen (Teoria da formação dos homens) de 1793, que tinha no ideal de

formação individual (ou “cultivo genuíno”) o carro-chefe de suas concepções.

Como sugere John Hinde, é possível compreender tanto o conceito de Bildung

como esse neo-humanismo, como uma forma de reação ao racionalismo

iluminista e o igualitarismo das idéias de 1789.64 Comenta Hinde, citando a obra

de Anthony J. LaVopa, Grace,Talent and Merit :

A noção de Bildung, ou “cultivo genuíno” (...) era concebida especificamente em contraste a “mera instrução ou treinamento, na verdade,

62Carl SCHORSCKE,“A história como vocação na Basiléia de Burckhardt”, in Pensando com a História, pp. 73-87. 63Friedrich SCHILLER, A educação estética dos homens. São Paulo: Editora Iluminuras, 2002. 64 John HINDE, op. cit., p. 133.

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contra a mera educação (Erziehung) em sentido racional. As palavras-chave do iluminismo ortodoxo – mérito, serviço, dever, utilidade – eram ignoradas ou desprezadas desdenhosamente, ou recebiam conotações inteiramente novas.”65

No mundo germânico pós-revolucionário, é possível compreender a

concepção de Bildung como a expressão da tentativa da classe média educada de

redefinir as noções de educação, humanidade e, principalmente, de

individualidade; redefinição que sinalizava um propósito particular: o de

encontrar sua própria legitimidade entre a aristocracia hierárquica alemã e as

classes mais baixas. O que nos permite dizer que, na Alemanha, num momento

em que se estabeleciam novas formas sociais, onde a pertencimento a uma elite se

desvinculava cada vez mais da herança sanguínea, a Bildung passava a

desempenhar um papel em prol de uma causa liberal. Porém, no contexto histórico

específico da Basiléia ela atendia a fins que poderíamos chamar de conservadores,

pois o patriciado, que equivaleria à classe média educada alemã, era considerado –

e se considerava – a aristocracia local. Portanto, a Bildung não funcionava como

meio de definir a legitimidade de uma classe em relação às outras, mas sim como

uma forma de, por um lado, dar à juventude da elite a oportunidade de entrar para

o quadro administrativo e governamental e, por outro, conferir legitimidade à

estrutura social e política da cidade-estado. Como nos diz Hinde, “na Basiléia, o

nascimento não era pré-requisito para privilégio e para entrar no alto escalão da

sociedade, então a Bildung certamente se tornou esse substituto.”66

A reforma no sistema educacional ocorrida na segunda década do século

XIX é um bom exemplo do valor atribuído ao conceito de Bildung para a cultura

da Basiléia moderna. Ainda que alguns membros do patriciado fossem a favor de

um modelo mais iluminista, para não dizer francês, com base em uma formação

mais técnica e voltado para uma educação mais pragmática, optou-se, no entanto,

por um modelo inspirado nas reformas promovidas na Prússia por Humboldt,

sustentado pela concepção de Bildung e com ênfase nos estudos humanistas.67 É

interessante notar, que no momento em que a Basiléia abraçava intensamente o

neo-humanismo humboldtiano, a Prússia o abandonava. Pois, o avanço do estado

de força (Machtstaat) alemão alterava de modo gradual o papel dos eruditos: se,

65 Ibid. 66 Ibid., p.134. 67 A este respeito ver GOSSMAN, Lionel, “The ‘Two Cultures’ in Nineteenth-Century Basel: Between the French ‘Encyclopédie’ and the German Neohumanism”, p. 95-133.

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antes, tinham o foco na ciência e na formação de indivíduos, agora passavam a

atuar de acordo com os objetivos do estado. Nas universidades, “o professor

deixou de ser o provedor de cultura humanista para se tornar um especialista

culto”, escreve Carl Schorske.68 Lembramos aqui o paralelo que Lionel Gossman

traça entre a educação neo-humanista e a comunidade da polis da Grécia Antiga.

Diz ele:

O centro da idéia de educação neo-humanista é a visão do estado,

inspirada na polis grega, como uma comunidade liberal de cidadãos livres, independentes e completos. Através da ênfase na liberdade e na integridade do indivíduo em relação ao estado, esta visão é oposta tanto ao ancien régime absolutista-feudal, mesmo em sua aparência “iluminista’, quanto ao poder centralizado reivindicado pelos regimes revolucionários.

Gossman vai além e assevera que, na verdade, “a elevação do grego

significava a afirmação da cultura e do ‘espírito’ face ao poder (e mesmo à

política)” .69 Levando em conta a afirmação da cultura frente a questão política,

característica da educação humanista, pode-se compreender em que medida, mais

do que ser um modo de afirmar legitimidade, a concepção de Bildung se

encaixava na perspectiva de Burckhardt sobre a modernidade e sobre o papel que

o intelectual/historiador deve realizar neste mundo moderno.

Burckhardt estava convicto de que a única certeza que subsistia no mundo

após a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas, era a de que os elos da

cadeia da continuidade histórica se romperam, ameaçando, portanto, a

continuidade da cultura e da tradição. Ele, enquanto historiador e professor, optou

por se colocar em defesa da preservação da própria cultura. É neste aspecto que a

Bildung se fez fundamental, pois, como argumenta Hinde, “em uma era na qual

tanto e a mente quanto o corpo estavam sendo incrivelmente conduzidos por uma

sociedade que refinava seus controles sobre o sujeito, a Bildung emerge como a

única fonte de verdadeira liberdade individual.”70 Para Burckhardt, a formação

individual sólida era uma forma de salvaguarda em meio à crise.

Assim, Burckhardt entendia seu o ofício de acordo com as premissas da

educação humanista baseada na noção de Bildung, ou seja, como provedor da

cultura, como uma espécie de ferramenta para a formação dos indivíduos.

68 Carl SCHORSKE, op. cit., p.78. 69 GOSSMAN, Lionel, “The ‘Two Cultures’ in Nineteenth-Century Basel”, pp.100-2 70 HINDE, op. cit., p. 136.

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Burckhardt era eminentemente um professor: era este seu papel cívico na

sociedade e, em razão disto, não se interessava em ter uma carreira acadêmica

stricto sensu. Por isso a recusa da cátedra de Ranke. Por isso, também, A Cultura

do Renascimento na Itália fora seu último livro publicado. Passados apenas três

anos da publicação do livro, o historiador abandonou o projeto que alimentara

entre 1862 e 1863 de publicar outro volume dedicado à história da arte

renascimento, intitulado simplesmente de Arte do Renascimento, e deu por

encerrada sua atividade como escritor de história. “Agora considero minha

modesta carreira literária finalmente encerrada, e me sinto muito e mais feliz

lendo as fontes, já que apenas faço anotações para as aulas, e não para um possível

livro.”71 Burckhardt desistira porque julgava que não teria tempo suficiente

devido as aulas na Universidade para se dedicar à pesquisa que um novo livro

exigiria, pois este era um projeto que demandaria nova viagem à Itália.

O fato de ter passado por um complicado período logo após sua formatura,

corrobora ainda com a idéia de que a permanência na Basiléia relacionava-se com

uma concepção de dever social. Burckhardt havia encontrado dificuldades de se

readaptar à vida local após a estadia em Berlim e as viagens pela Itália. Sua

carreira como professor demorou a evoluir – até porque a Universidade da

Basiléia possuía então um número modesto de alunos – e seu convívio social não

era muito estimulante. Não raras vezes, o historiador mostrava-se insatisfeito e

solitário entre seus concidadãos. Ansioso por sua próxima viagem à Itália,

escreveu a Schreiber em dezembro de 1852:

Esta é minha última chance de escapar de tijolos e argamassa; se não a

aproveitar, serei condenado para sempre a uma existência miserável. E então, por favor, perceba: em um ano voltarei munido de material suficiente para trabalhar por muito tempo. (...) É pedir demais esperar que alguém mantenha o entusiasmo em uma cidade sem companhias estimulantes e quase desprovida de incentivo acadêmico. (...) Você realmente não faz idéia do clima intelectual reinante, Posso sentir, com a ponta dos dedos as pessoas daqui ficando literalmente rançosas. (...) Uma vez tendo ficado fora por algum tempo, estarei pronto para acostumar-me novamente à Basiléia; mas, no momento, bem longe!72

Com o passar dos anos, entretanto, foi o que aconteceu. Burckhardt

resignou-se à vida pacata que levava em sua cidade, dedicando-se exclusivamente

à atividade como docente. A ele interessava dar aulas na universidade e,

71 Carta de 05 de Abril de 1860 a Heyse, in BURCKHARDT, Briefe,, pp.211-12 (Cartas, p.253).

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principalmente, proferir palestras abertas ao público em geral. Falar para um

público diversificado, não acadêmico, era o que mais agradava o historiador. “No

que me concerne”, confessou cerca de onze anos mais tarde, “vivo aqui como um

professor de História que muito trabalha, e fico contente se as coisas continuarem

como estão; não que tudo seja perfeito, mas quando avançamos nos anos, já não

esperamos nenhum ganho especial com as mudanças.”73 O fato é que, desde

muito cedo em sua vida profissional, ele havia se afastado de qualquer pretensão

de lutar por sucesso e prestígio acadêmico. Desde a época de sua formação,

observava com ironia e desdém as intensas disputas entre os viri eruditissimi,

muitas vezes comentando com certo assombro a capacidade de alimentar intrigas

que estes homens nutriam. Basta lembrar o modo como lamentava a postura de

Ranke. O posicionamento de Burckhardt diante de seu ofício fica evidente na

carta de 25 de fevereiro de 1874, enviada a Friedrich Nietzsche, quando este

terminou de escrever sua Segunda Consideração Intempestiva, intitulada “Da

utilidade e desvantagens da história para a vida.” Nietzsche lhe enviara uma cópia

dizendo que seu contato com o historiador havia servido de inspiração para

escrever as considerações sobre a história. Na resposta de Burckhardt observa-se

não só como o historiador vê sua tarefa, mas também como entende a função do

conhecimento histórico. Eis o que escreve ao jovem amigo:

Ao lhe transmitir meus agradecimentos pelo mais recente trecho de

Pensamentos Intempestivos, só posso, no momento, responder-lhe em poucas palavras, após ter lido rapidamente seu poderoso e significativo trabalho. Eu realmente ainda não tenho o direito de fazer isso, pois a obra exige ser desfrutada linha por linha, e avaliada após muita consideração; ocorre, porém, quando o assunto nos diz respeito de forma tão íntima, de imediato somos tentados a dizer algo.

Em primeiro lugar, minha pobre cabeça nem de longe foi capaz de refletir, como você é capaz de fazer, sobre as causas finais, os objetivos e a conveniência da história. Como professor e mestre, posso, contudo, declarar que nunca ensinei história pelo que está contido sob o pomposo nome de “história mundial”, mas sim como um estudo propedêutico: meu objetivo tem sido dar às pessoas a estrutura indispensável para que seus estudos futuros, sejam do que for, não se tornem sem propósito. Fiz tudo o que podia para levá-las a adquirir um domínio pessoal do passado – em qualquer modelo e forma – e, pelo menos, não as deixar enfadadas com isso; eu queria que elas fossem capazes de colher os frutos por si próprias; nunca sonhei em treinar eruditos e discípulos no sentido mais estreito desses termos, mas quis apenas fazer com que cada membro da minha audiência sentisse e soubesse que todo mundo pode e deve apropriar-se dos aspectos do passado que mais os atraem, e que é possível encontrar satisfação

72 Carta de 18 de Agosto de 1852 a Schreiber, idid., p.183 (Cartas, p.223) 73 Carta de 05 de Abril de 1860 a Heyse, ibid., pp.211-12 (Cartas, p.253).

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ao fazê-lo. Sei bem que tal objetivo pode ser criticado como forma de incentivar o amadorismo, mas isso não me preocupa muito. Em minha avançada idade, podemos agradecer aos céus se descobrimos algum tipo de princípio ao ensinar na instituição à qual pertencemos in concreto.

Isso não pretende ser uma justificativa, pois você, meu caro colega, seria a última pessoa a esperar tal coisa de mim. Trata-se simplesmente de um breve resumo do que alguém desejou e tentou fazer até agora.74

Para realizar sua tarefa, Burckhardt via claramente que não era possível

pensar livremente no interior de um estado centralizado, com forte militarismo e

crescente industrialização: a tendência deste tipo de situação significava para ele o

nivelamento de pontos de vista. Entendia que o turbilhão que afetava todas as

esferas da vida moderna, fazia da “sensação de provisório” uma constante e

tornava ainda mais árdua a tarefa do historiador ou de quem quer que se

interessasse em observar a história. Portanto, a existência de um lugar apropriado,

minimamente a salvo deste turbilhão, um ponto arquimediano fora dos eventos, se

fazia necessário para realizar a contemplação histórica. Pois, segundo o

historiador:

O indivíduo contemporâneo deve se sentir totalmente impotente diante de

tais poderes históricos; pela regra geral, ou se põe a serviço da força atacante ou da força que opõe resistência. São poucos os indivíduos que logram encontrar o ponto de Arquimedes na margem dos acontecimentos e conseguem “superar espiritualmente” as coisas que o rodeiam75.

A Basiléia, passada a fase de adaptação dos primeiros anos, havia se

tornado para Burckhardt neste ponto de vista arquimediano O historiador, porém,

julgava ser possível que, através da formação individual e do conhecimento do

passado, cada homem pudesse encontrar seu lugar para refletir de forma crítica

acerca da história e da vida. Este pequeno esboço sobre o contexto de formação de

historiador e sobre seu modo de perceber o momento em que vivia, permite

perceber melhor sua opção pela história da cultura. Crítico em relação ao rumo

dos acontecimentos, Burckhardt via na história e, por extensão, no papel do

historiador, os elementos decisivos para resistir ao “turbilhão” que atingia todas as

esferas da vida moderna.

74BURCKHARDT, Briefe,pp.334-5 (Cartas, p.295-6). 75BURCKHARDT, WB, p.49 (RHU, p.49).

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4.4 A história como coordenação, a recusa em teorizar

Em 1852, ao se dar conta da necessidade de modificar os rumos dos

estudos históricos, Burckhardt afirmava, ainda de modo acanhado, que começava

a se sentir no direito de proclamá-las.76 Já em 1868, ano em que ministrou a

primeira da série de conferências nomeadas “Sobre o Estudo da História”,77 o

historiador se mostrava seguro suficiente para enfrentar o assunto diretamente e

posicionar-se na contramão das tendências que dominavam a historiografia,

fossem elas do próprio cânone, ou relacionadas à filosofia da história. Assim,

declarava na desde logo na introdução:

O objetivo que planejamos neste curso consiste em ter uma cadeia de

observações e investigações históricas mais ou menos em torno de uma série de idéias mais ou menos fortuitas, tal como em outra ocasião faremos com outras. (...)

Não nos proporemos, com nossas reflexões, fornecer um guia para o estudo histórico no sentido erudito, mas sim simplesmente [fazer] umas sugestões ao estudo do histórico nos distintos campos do mundo espiritual.

Renunciamos também, de antemão, a toda preocupação de ordem sistemática. Não pretendemos, muito menos, remontar às “idéias histórico-universais.” Nos contentaremos com registrar nossas percepções e com realizar toda uma série de cortes transversais através da história e na maior quantidade de direções possíveis. E, sobretudo, não oferecemos aqui nenhuma filosofia da história.78

Quando ministrou as palestras que, mais tarde, se tornariam as

“Considerações sobre a História Universal”, Burckhardt tinha mais de cinqüenta

anos. Mais de oito décadas já se haviam passado desde a Revolução Francesa, e a

campanha para unificação da Alemanha, levada a cabo pelo Chanceler Otto von

76 Lembramos aqui o trecho de uma já carta citada. Nela dizia então Burckhardt: “(...) há também algumas palavras a serem ditas sobre a pesquisa histórica e a maneira como é conduzida, estou gradualmente adquirindo o direito de dizê-las”Carta de 18 de Dezembro de 1852 a Paul Heyse, ibid., p.179 (Cartas, p.222). 77 Em 1905, Jakob Oeri, sobrinho de Burckhardt, reuniu em um livro as anotações das conferências que o historiador proferira na Basiléia ao longo das últimas décadas de sua vida. São seis capítulos ao todo, sendo que os quatro primeiros correspondem ao curso de “Sobre o Estudo da História”, ministrado na universidade entre 1868 e 1885; já o quinto capítulo, intitulado “Indivíduos e coletividade (as grandezas históricas)”, é a reunião de três conferências realizadas em 1870 no museu local, onde aconteceu também, no ano seguinte, a palestra “Sorte e Infortúnio na História” que constituí o sexto e último capítulo do livro organizado por Oeri. 78 BURCKHARDT, WB, p. 43-4 (RHU, pp.43-4)

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Bismarck, já completara um ano.79 Burckhardt era, então, um homem maduro

intelectualmente e suas opiniões e posições acerca de sua época e, também, sobre

o escrever e o pensar a história encontravam-se consolidadas.

Em Burckhardt, como se tem tentado ressaltar, pensamento e vida são

dimensões indissociáveis: o modo pelo qual concebia a história relacionava-se

diretamente com o modo pelo qual entendia o tempo em que vivia. O século XIX

era, para ele, uma época instável, em constante transformação. A Revolução e os

acontecimentos que a sucederam inauguraram uma nova etapa na história; etapa

que tornava imprescindível aos estudos históricos um rumo diferente do que

tinham tido até aquele momento. Não era mais possível que a tarefa do historiador

continuasse a ser a de desvendar uma ordem providencial “na qual tudo tem seu

lugar e da qual tudo deriva seu valor e justificação,”80 pois a história não mais

seguir mostrando, sempre com deferência, como tudo contribui para um suposto

grande fim histórico. Tratava-se agora de pensar sobre os acontecimentos

históricos de modo a liberar e a estimular as mentes, impulsionando decisões e

ações individuais. Assim, a função principal da história, segundo o entendimento

de Burckhardt, era preservar e garantir de alguma forma a continuidade da

tradição. Ou seja, sua função era a de manter vivo o elo entre presente e passado.

É por este motivo que, logo no início da preleção aos estudos históricos,

Burckhardt apresenta o tom que diferencia sua atitude das correntes dominantes

do pensamento sobre a história. Seu tom revela a postura do professor: afirma seu

desejo de poder tecer um conjunto de considerações históricas sobre uma série de

idéias mais ou menos aleatórias, que, em outro momento, poderiam até ser outras

idéias. Esse tom encontra-se presente na maioria das introduções e apresentações

de seus trabalhos. A Cultura do Renascimento na Itália, inclusive tem no subtítulo

– “um ensaio” – a indicação de que o autor pretende refletir sobre a história sem

estabelecer verdades definitivas. Na compreensão de Burckhardt, o ponto de vista

do historiador é, por definição, subjetivo. De tal modo que não hesitava em

declarar com convicção que “nas mãos de outrem”, o material que pesquisara

pode “facilmente experimentar não apenas utilização e tratamento totalmente

79 Apesar de o curso ter sido repetido várias vezes entre 1868 e 1885, os manuscritos da introdução datam de 1872. Em um determinado trecho, o próprio Burckhardt revela a data ao dizer que “oitenta e três anos já haviam se passado da Revolução Francesa.” 80Lionel GOSSMAN. “Cultural History and Crisis: Burckhardt’s Civilization of the Renaissance in Italy.” In Michael ROTH (ed.).Rediscovering History, p.415.

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distintos, como também ensejar conclusões substancialmente diversas.”81

Também no curso sobre a História da Cultura Grega, o historiador assegurou que

o caráter de ensaio de suas considerações – chegando a afirmar que estaria ali não

apenas como professor, mas também como estudante e companheiro. Repetia,

assim, o argumento a respeito da subjetividade como condição subjacente à

pesquisa. Sua premissa básica era a de que, ainda seguindo os mesmos passos,

outra pessoa (ou mesmo ele) poderia chegar a resultados outros.82

Ao se posicionar assim diante da platéia e do cânone acadêmico,

Burckhardt expressa a forma como entende o estudo da história. Como se pode

perceber, o historiador da cultura descarta a pretensão de consolidar verdades

objetivas a respeito do passado. Burckhardt, em sua serena resignação, acaba por

promover a exacerbação da relatividade dos valores históricos instaurada com a

tradição historicista em que se formou.83 Afinal, a perspectiva historicista, apesar

de assumir a relatividade da história e o ponto de vista do historiador – que, como

tudo, também se encontra na corrente dos acontecimentos –, não abria mão da

possibilidade de conhecer de forma objetiva os fatos do passado. Nesse âmbito,

era possível falar do que de fato acontecera num determinado momento da

história, graças à metodologia crítica empregada na investigação histórica. Para

Ranke, representante de maior vulto dessa corrente historiográfica no Oitocentos,

uma vez que o historiador está ciente de sua historicidade, ele pode manter seus

próprios valores afastados da análise do passado, garantindo a imparcialidade

desejada no tratamento dos fatos históricos. Burckhardt, por sua vez, sempre

encarou a objetividade com reservas e entendia que, dado o caráter transitório que

marcava a modernidade, falar em verdades históricas havia se tornado no mínimo

inadequado, como podemos ler na seguinte avaliação feita no curso sobre a

história da cultura grega:

Os cursos de História das universidades padecem de uma crise que obriga

cada um a seguir seu próprio caminho. O interesse pela história depende em alto

81 BURCKHARDT, A Cultura do Renascimento na Itália, p.21. 82 Jacob BURCKARDT, Historia de la Cultura Griega, Vol.I, pp.13-14. 83Georg Iggers possui uma nota explicativa muito interessante na introdução de seu livro sobre a historiografia alemã do século XIX, na qual faz referência essas diversas formas de acepção do termo historicismo, incluindo também uma extensa bibliografia sobre o debate em questão. Cf. G.G.IGGERS, The German Conception of History, p.295-8. Em nossa dissertação de mestrado desenvolvemos mais detidamente uma análise sobre a historiografia da cultura de Burckhardt com relação ao panorama historiográfico historicista. Cf. Janaína Oliveira, A História da Cultura como Crítica à Modernidade.

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grau das oscilações do espírito ocidental; da direção geral de nossa formação cultural; as divisões e métodos antigos não satisfazem nem aos livros, nem à cátedra. O campo, portanto, se encontra livre. Felizmente, não só vacila o conceito histórico da cultura, mas também a prática universitária (junto com outras coisas).84

Como alternativa, Burckhardt apresenta seu “método de importância

proporcional”, amparado na construção de imagens históricas feitas a partir de

uma perspectiva assumidamente subjetiva, sem pretensões à universalidade. De

acordo com esse método, o valor dado a determinados acontecimentos ou fontes é

relativo, sendo, portanto, proporcional ao empenho, à formação, à capacidade de

concentração, em suma, à vida daquele que está realizando a pesquisa. A

“proporcionalidade” atesta a convicção burckhardtiana de que todos os métodos

são discutíveis e nenhum pode impor-se como absoluto.

Esta relatividade – que remete basicamente a uma postura que exige

erudição por parte do estudioso – também se estende às fontes. Pois, como à

história da cultura não interessa narrar wie es eigentlich gewesen [o que realmente

aconteceu], as fontes das quais o historiador da cultura lança mão são mais

abrangentes que aquelas que comumente o cânone historiográfico utiliza. Ao

olhar para o passado, o historiador não pergunta o quê, mas como aconteceu;

como a humanidade pretérita “era, pensava, contemplava e de que era capaz.”85

Dessa perspectiva, os fatos históricos passam a ter uma dimensão mais ampla, de

tal maneira que todas as formas de manifestação do homem se prestam a

testemunhar sobre o período da história no qual se inserem.

A história da cultura burckhardtiana se nutre, principalmente, “do que as

fontes e os monumentos nos revelam sem interesse, sem intenção alguma, até sem

querer e, ainda mais, através de pura fantasia”86, não excluindo os elementos que

contribuem diretamente para a investigação. Assim, fato passa a ser não apenas o

que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido, não só o que foi feito, mas

também o que se desejava realizar. Ou seja, além do sucesso, o fracasso também

se torna objeto da pesquisa histórica.

Burckhardt compreendia os fatos como expressões de uma faculdade

interna dos homens. Para ele, o querido e o pressuposto vem a ser até mesmo,

84 BURCKARDT, Historia de la Cultura Griega, Vol.I, pp.9-10. 85 Id., Historia de la Cultura Griega, p.10. [grifos do autor].

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“mais importante que o acontecido; a concepção, tão importante quanto qualquer

fato, porque em determinados momentos se manifestará em fatos.”87 Assim, na

busca pela identificação do constante na cultura de uma determinada época

histórica tudo é fonte, “tudo o que nos seja transmitido de um modo ou de outro

pela tradição guarda relação com o espírito e suas mudanças, e é testemunho e

expressão delas”88. Por isso, além das fontes tradicionalmente utilizadas na

história política, como os documentos oficiais e os relatórios diplomáticos,

também as memórias, os diários e cartas pessoais dos homens de Estado e as

narrativas originais de testemunhas, são recursos para a história da cultura. Por

fonte, Burckhardt compreende “todo o mundo literário e monumental.”

A vastidão de fontes conduz à indagação de como saber o que é realmente

relevante para elaboração da história da cultura. Dito de outro modo: como

separar o típico e o casual no passado? A resposta dada por Burckhardt é simples,

ainda que possa gerar desconforto entre aqueles acostumados aos procedimentos

rigorosos de uma metodologia científica. Segundo o historiador, não há

simplesmente outro jeito senão o da leitura dedicada das fontes. Ler e reler,

tomando notas, e, então ler de novo. “Somente uma leitura múltipla e extensa

poderia certificar-lhe [ao historiador] e, entretanto, passaria ao largo de coisas de

importância decisiva e outorgaria categoria de essencial e característico ao

meramente acidental”, afirma Burckhardt, acrescentando que, mesmo com tal

leitura, o resultado da investigação ainda “dependerá do estado de ânimo, de sua

fadiga, especialmente, do grau de maturidade de seu trabalho de investigação, que

tudo que caia em suas mãos se lhe pareça insignificante ou, ao contrário,

interessante em todos seus detalhes.” De modo tal que não há certezas na

metodologia da história da cultura burckhardtiana que previnam contra eventuais

erros (se é mesmo que podemos considerar que existem erros em tal contexto).

Somente a dedicação continuada, “uma atenção ligeira sobre uma aplicação

constante”89, pode ajudar a alcançar melhores resultados.

Ainda que se descubra que um fato é inverídico, ele possui valor pelo que

há de típico em sua representação. Uma vez aberto espaço para o falso, altera-se o

estatuto da verdade histórica, transformando em fonte tudo o que era deixado de

86 Ibid. 87 Ibid., p.10-11. 88 Id., WB, p. 62 (RHU, p.62).

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lado por uma historiografia que tinha por meta a cientificidade. Assim, as

manifestações artísticas – literatura, pintura ou arquitetura – tornam-se fontes de

suma importância para a história da cultura, visto que nelas, no entendimento do

historiador, pode-se captar mais claramente o que há de constante em uma dada

cultura. Portanto, tal como aprendera com Kugler, é na diversidade de expressões

artísticas que se apresentam de maneira mais expressiva os elos que ligam o

particular ao universal. Ao eleger as manifestações artísticas como fonte,

Burckhardt transforma o que era contigente no passado em material para a

história.

Entretanto, não é apenas como fonte que a arte se aproxima da abordagem

histórico-cultural de Burckhardt. Também na forma em que o historiador

compreende a própria história, a arte se faz presente. Aliás, repetidas vezes o

historiador manifestou que, para ele, a história situava-se mais próxima à arte que

da ciência.90 Afirmação feita, por exemplo, em carta ao filósofo Karl Fresenius,

na qual Burckhardt fala não só que entende a história como uma forma de poesia,

mas que vê a si mesmo como um artista na contemplação dos objetos históricos.

Diz então o jovem historiador:

Para mim a história é poesia em sua escala mais grandiosa; não me

entenda mal, não vejo isso de forma romântica ou fantástica, o que não me valeria coisa alguma, mas como um maravilhoso processo de transformação, como o de uma crisálida, sempre com novas descobertas e revelações do espírito. É aí que me posiciono na praia do mundo – estendendo meus braços para o fons et origo de todas as coisas, e é por isso que a história é para mim pura poesia que pode ser dominada por meio da contemplação. Vocês, filósofos, vão além, seu sistema penetra nos profundos segredos do mundo, e, para vocês, a história é uma fonte de conhecimento, uma ciência. Porque vocês vêem, ou pensam que vêem, as primum agens onde eu vejo mistério e poesia. Gostaria de ser capaz de dizer isso mais claramente. (...)

Pense em mim como um artista, aprendendo e aspirando – pois eu também vivo em imagens e em contemplação – e então pense na melancolia que, de tempos em tempos, desce sobre os artistas simplesmente porque não podem dar forma ao que foi despertado dentro deles – aí você será capaz de explicar a si mesmo porque eu também fico triste às vezes, por mais alegre que possa ser em meu coração e em minha mente. 91

89 Ibid., p.12. 90 Ver por exemplo as cartas de 14 e 19 de junho de 1842. In BURCKHARDT, Briefe, pp.78-21 (Cartas, pp.161-6). 91 Ibid. [Grifos nossos]

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A essa apreensão estética da realidade do passado correspondem os

quadros históricos montados a partir de uma escrita de estilo único e vigoroso,

como forma de representação dos eventos do passado. Com a montagem desses

quadros, o historiador tencionava colocar à disposição de seu público imagens que

proporcionassem a possibilidade de contemplação histórica, procedimento que ele

entendia como ideal para a compreensão da história de uma dada cultura e como

meio de manter vivos os vínculos entre presente e passado. Por isso, desde o

começo Burckhardt havia se proposto a escrever sobre a história da melhor forma

possível. Nesse sentido, escrevera ainda de Berlim:

Um voto eu fiz: o de tentar escrever em estilo legível por toda a minha

vida, e sempre ter como objetivo o que é interessante, em vez de uma seca, factual perfeição. É realmente uma vergonha; o trabalho da maioria dos historiadores alemães é lido apenas por eruditos, e é por isso que, no momento em que surgiu, Ranke encontrou um grande público faminto. Os franceses têm sido muito perspicazes, e Ranke aprendeu muito com eles, mas não admite. As pessoas estão sempre falando sobre a arte de escrever história, e muito pensam que fazem o suficiente quando substituem as sentenças labirínticas de Schlosser pela seca narração dos fatos. Mas não [é assim, trata-se] de uma questão de peneirar os fatos, de selecionar o que pode interessar aos homens. Se você conseguir alcançar algo nessa direção, até as traças irão lhe agradecer.92

A habilidade literária de Burckhardt é uma de suas mais importantes

qualidades. Muitos comentadores atribuem boa parte do sucesso de A Cultura do

Renascimento na Itália às imagens históricas marcantes elaboradas pelo

historiador. Para Felix Gilbert a Renascença nessa obra “apresenta-se como uma

pintura em um cavalete.”93 Uma outra metáfora possível sobre esse modo de

apresentar a história da cultura através de imagens, é descrevê-lo como

semelhante à técnica de revelação fotográfica.94 Mais uma vez, A Cultura do

Renascimento na Itália é o melhor exemplo. Ali, Burckhardt tinha como intenção

revelar uma determinada imagem do que aconteceu naquela época na Itália, isto é,

fornecer uma representação do espírito daquela época de florescimento cultural.

Mas não uma imagem coesa e totalizante, e sim parcial e, por isso mesmo,

limitada: um ensaio, tal como ele mesmo disse na introdução do livro. No

processo de revelação fotográfica, a imagem se forma aos poucos, surgindo do

92 Carta de 21 de março de 1842 a Kinkel, Ibid, p.77 (Cartas, p.158) 93 Gilbert, History: Politics or Culture?, p.57. 94 Esta metáfora foi sugerida por Fabiana Werneck, na apresentação de um seminário sobre A Cultura do Renascimento na Itália em uma disciplina obrigatória que cursamos juntas no mestrado de História do Programa de Pós-Graduação da PUC-Rio no ano de 1999.

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tanque onde se coloca o papel imerso em químicas. Há uma ausência de uma

ordenação cronológica, não existindo assim um princípio que imponha uma

seqüência necessária para o aparecimento do resultado final. No Renascimento de

Burckhardt, a cronologia também não se apresenta como determinante para a

construção da imagem, sendo até possível inverter ou embaralhar a disposição dos

capítulos sem que haja prejuízo algum. No livro, os fragmentos vão aparecendo

aqui e ali, eventos ocorridos simultaneamente no tempo surgem em pontos

diferentes, até que, finalmente, imagem do homem e da vida de então se mostra

por inteiro. Esta imagem realizada por Burckhardt, tal como em uma fotografia,

apresenta um ângulo, uma perspectiva sobre o objeto capturada por alguém, uma

escolha em nada isenta de distorções, completamente subjetiva. Não resta dúvida:

Burckhardt, em sua abordagem do passado, havia se distanciado de vez dos

principais postulados da tradição em que se formara.

Não era apenas a tradição do historicismo que Burckhardt recusava com

sua ênfase da subjetividade. Na introdução de Sobre o Estudo da História,

Burckhardt rejeita, sobretudo, o tratamento da história pela filosofia, referindo-se

explicitamente às concepções da filosofia da história de Hegel. Definitivamente,

tentar formar um “sistema” ou construir “idéias históricas universais” estava longe

de suas pretensões. Sujeitar a contemplação histórica a um conceito configurava,

mesmo, uma atitude inadmissível. Como mencionado anteriormente, a filosofia

aplicada à história era, em sua concepção, uma contradição, pois à história cabe a

coordenação dos acontecimentos, segundo um interesse do presente em relação ao

passado.95 O historiador refutava, assim, o estabelecimento de qualquer postulado

a priori para a história, tal como proposto na origem da filosofia da história.

A temática da relação entre filosofia da história e história esteve

constantemente presente no pensamento de Burckhardt desde os tempos de

estudante. Constituía uma espécie de dilema que o historiador encarava com

receio, já que alimentou a vida inteira a convicção de que não era capaz de

compreender plenamente os meandros da filosofia, muito menos de produzir

especulações dessa natureza. Também é fato que nunca forneceu argumentos que

explicassem como chegara a esta conclusão. O fato é que, mesmo tendo reiterado

diversas vezes ao longo de sua vida que não conseguia pensar nos moldes

95 Id., WB, p. 44 (RHU, pp.44).

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filosóficos, o assunto aparece com freqüência em suas cartas. Já aos vinte e quatro

anos declarava sua intenção de afastar-se de qualquer especulação desta natureza,

em carta enviada ao amigo Karl Fresenius:

Apesar de ser um filósofo, você deve me permitir dizer a seguinte

verdade: um homem como eu, que é ao mesmo tempo incapaz de especular e que não se entrega a pensamentos abstratos nem por um minuto que seja durante uma ano inteiro, age melhor se investigar e esclarecer as questões mais importantes de sua vida do modo que lhe for natural. (…). Por natureza, agarro-me ao concreto, à natureza visível e à história.96

Ainda assim, o historiador reconhecia a influência do hegelianismo em

voga. Burckhardt mostrava-se ciente de que, por mais que não se enquadrasse

nessas concepções, existia um vocabulário e um modo de pensar correntes em sua

época nos quais ele também encontrava-se inserido, e dos quais, em virtude de sua

inabilidade afirmada o tratamento de tais questões, talvez não lograsse se

desvencilhar. Reconhecendo isto, Burckhardt declara na seqüência da carta a

Fresenius:

As especulações de outro homem jamais poderiam me satisfazer e menos

ainda me ajudar, mesmo se eu fosse capaz de adotá-los. Serei influenciado por elas assim como pelo espírito que prevalece no ar do século XIX; talvez eu seja até mesmo inconscientemente guiado por certas tendências da filosofia moderna.97

O historiador, entretanto, advoga um outro ponto de vista e, na mesma

carta, complementa: “deixe-me experimentar sentir a história em seu nível mais

baixo, em vez de entendê-la a partir do ponto de vista dos princípios universais.”98

E assim é que podemos compreender sua proposta nas conferências

realizadas anos mais tarde. Para Burckhardt, refletir teoricamente sobre a história,

propor uma teoria para compreensão do passado, talvez fosse sinônimo de

“filosofar” sobre a história. É possível afirmarmos que Burckhardt tenha

confundido filosofia com teoria da história, como lembra Luiz Costa Lima no

prefácio à edição brasileira da seleção das suas cartas.99 Tal confusão, entretanto,

96 Carta de 19 de junho de 1842 a Karl Fresenius, in BURCKHARDT, Briefe,pp.79-80. (Cartas, pp.164-5). 97 Ibid. [grifos nossos]. 98 Ibid. 99 Luiz COSTA LIMA, “Introdução à Edição Brasileira”, in BURCKHARDT, Cartas, p.31.

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não ofusca a consideração da relevância que os temas que envolvem o

pensamento sobre a história e a filosofia ocuparam em suas considerações.

Um indicativo de que o tema da filosofia da história lhe era realmente

caro, reside no fato de Burckhardt ter se dedicado a tratar, no início de sua

conferência introdutória, dos exemplos maiores da filosofia da história, citando

Santo Agostinho e Hegel. Para ele, ambos os casos constituíam esforços de

sistematizar a história, submetendo-a a um único princípio; o primeiro, o de Deus,

e o segundo, o do Espírito Absoluto.

Segundo Burckhardt, Santo Agostinho representava um verdadeiro modelo

para as sínteses históricas de caráter religioso, que sua Civitas Dei era a base para

todas as teodicéias. Mas logo na sequência da argumentação, o historiador

descarta essa possibilidade em suas considerações, afirmando que sistematizações

dessa natureza possuem sua razão de ser, mas estão fora do raio de interesse da

história da cultura. A teologia da história possuía benefícios que, por serem

proporcionados pelo campo religioso, encontravam-se fora do interesse do

historiador. A fé – “faculdade especial” dos homens – não se aplica, na sua

opinião, aos interesses que regem a investigação histórica. Após as linhas

dispensadas a Santo Agostinho, o historiador passa a tratar da filosofia da história

de Hegel. Diz Burckhardt:

Até agora, a filosofia da história marchou sempre detrás da história e,

procedendo por cortes horizontais, seguiu sempre uma ordem cronológica. Por este mesmo caminho tenta remontar-se a um programa geral de desenvolvimento do mundo, quase sempre em um sentido altamente otimista. Assim procede, por exemplo, Hegel em sua filosofia da história.100

Os comentários de Burckhardt sobre a filosofia da história de Hegel

tratam, sobretudo, da introdução que o filósofo fez para o curso sobre a filosofia

da história. Obviamente, em concordância com sua convicção em não “teorizar”

sobre a história, Burckhardt não se ocupou em debater, no âmbito filosófico, as

questões propostas por Hegel. Limitou-se a elencar alguns pontos que considerava

mais importantes: primeiro, a crítica ao conceito de razão enquanto princípio que

rege o mundo e como geradora do movimento da história universal, que, por sua

vez, constitui um processo racional. Em seguida, trata do ponto em que Hegel se

diz “perseguido por uma sabedoria eterna”, motivo pelo qual sua filosofia se

100 Id., WB, p. 44 (RHU, pp.44).

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expressa como uma teodicéia que tem sua base no conhecimento do afirmativo (o

bem), contraposto ao negativo (os males do mundo). De tal forma que a história

universal seria então a história do bem triunfando gradualmente sobre o mal. No

terceiro ponto, Burckhardt comenta a idéia fundamental da filosofia da história de

Hegel ter a história universal como caminho necessário para a tomada de

consciência do espírito e que, de acordo com o filósofo, essa caminhada do

espírito na história universal seria uma evolução em direção à liberdade (citando a

famosa passagem na qual o filósofo descreve o percurso do espírito do Oriente ao

Ocidente). Por fim, o historiador da cultura chama atenção para o fato de Hegel

ter introduzido “cuidadosamente” a teoria da perfectibilidade, ou a teoria do

progresso, em sua filosofia.

Sobre o primeiro ponto listado, ou seja, a afirmação de um princípio

anterior a história, Burckhardt já havia descartado veementemente qualquer

chance da história possuir um a priori, estando, nesse sentido, alinhado ao

pensamento que Ranke possuía sobre este tópico. Quanto ao segundo ponto, o

historiador da Basiléia enuncia desconhecer os fins da “sabedoria eterna” que

“perseguem” o filósofo. Para ele não se pode representar a história do mundo

como uma teodicéia, justamente pelo fato dessa “sabedoria eterna” ser parte dos

“mistérios” inacessíveis ao conhecimento dos homens: Deus existe, mas sua

interferência na história não interessa a Burckhardt, razão pela qual ele deixa a

tarefa de refletir sobre as origens e os fins últimos da história para os filósofos e

teólogos da história. Tal postura pode ser atribuída à sua formação teológica, ou,

melhor dizendo, a teologia negativa que assumira em sua juventude: Deus não se

dá a conhecer diretamente no mundo e, portanto, a possibilidade da história

universal ser uma teodicéia não representa uma alternativa para compreensão dos

acontecimentos históricos no entendimento de Burckhardt. Nesse sentido,

pressupor de antemão a existência de um plano universal apenas poderia induzir a

erros, uma vez que tanto premissa, como desenvolvimento e, também, desfecho

são equivocados na própria natureza de seus postulados. A premissa de um

conceito exterior e anterior à própria história tira dos acontecimentos históricos o

que há de peculiar em sua existência, já que, para a filosofia, os acontecimentos

existem para a realização do conceito ou da razão, para usar um termo hegeliano.

Nesse trecho Burckhardt deixa transparecer a ironia característica de seu estilo:

diante da pretensão de sujeitar a história a um princípio universal, o historiador

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afirma que os filósofos, “por não serem capazes de prescindir de toda premissa”,

fazem com que a história apareça “tingida pelas idéias que [eles] começaram a

assimilar com três ou quatro anos de idade.”101 É preciso ressaltar, no entanto, que

Burckhardt não despreza as filosofias da história comum todo, pois chega a citar

Herder como um bom exemplo de filosofia da história, afirmando que ele

contribuiu para o estudo histórico “pondo sal na história”. Compreende-se assim

que seu esforço é, sobretudo, o de distanciar-se do hegelianismo.102

No que tange o desenvolvimento da história, o erro da perspectiva

filosoficamente orientada aos moldes hegelianos consiste no fato dela se dar de

forma diacrônica. Ordenar os acontecimentos numa sucessão cronológica, baseada

em um otimismo que acredita que aquilo que se segue é sempre melhor do que o

anterior é, na concepção de Burckhardt, um equívoco. “Os filósofos da história

consideram o passado como antítese e etapa previa a nós, vendo em nós o produto

de uma evolução”, diz ele. A história assim ordenada pode no máximo degenerar

em “histórias da cultura universal (as quais, às vezes, se dá o nome abusivo de

filosofia da história).”103 Lembremos que Burckhardt, em sua historiografia da

cultura, se propunha a abordar a história de maneira sincrônica, montando quadros

de determinadas épocas nos quais a cronologia não constitui, em nenhum instante,

um fator realmente importante. É, de certo modo, à sincronia que ele está se

referindo quando fala em “cortes transversais” feitos num máximo de direções

possíveis. “Cortes” que, por exemplo, realiza na A Cultura do Renascimento na

Itália, ao tratar o espírito italiano de então nas mais diversas manifestações. O

historiador, portanto, não concordava em conceber a história como um caminho

evolutivo impulsionado pelo progresso de um espírito racional que, por uma

questão de necessidade, se desenvolve no mundo dos eventos. Para ele a história

era algo distinto: “a história, para mim”, assevera Burckhardt, “é sempre, em sua

maior parte, poesia; uma série das mais belas composições artísticas. Portanto,

não acredito em um ponto de vista a priori; este é um assunto para o espírito do

mundo, não para o homem da história.”104

101 Ibid, p. 44 (RHU, pp.45). 102 Ibid, p. 46 (RHU, pp.46). 103 Ibid. 104 Carta de 16 de junho de 1842 a Willbald Beychlag, in BURCKHARDT, Cartas, p.162. [grifos nossos].

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Como se sabe, há sim uma instância “espiritual” na história para

Burckhardt. Mas ela não é racional nem tampouco pode ser dimensionada “como

um todo” pelos homens. Esse é um ponto delicado não só em Burckhardt, mas do

pensamento germânico de um modo geral, por envolver a relação entre o

particular e o universal, ou entre o individual e o espiritual. Assim, o espiritual

existe para o historiador, mas o que lhe interessa são suas manifestações no

mundo histórico, ou seja, em sua dimensão mutável, condicionada, transitória.

Para Burkchardt essa é a função da história em geral: mostrar as duas

direções fundamentais que existem em uma instância espiritual, a transitória e a

imortal. Pois, como ele mesmo diz, “o espírito é mutável, mas não [é] mortal.”105

Há uma ligação entre os acontecimentos individuais e um elemento transcendente.

O que importa é identificar os primeiros e não explicar a natureza dessa ligação,

pois é dessa forma que se dá a continuidade da história. Não há um plano

universal que conecte os vários acontecimentos desde o princípio do mundo

através do tempo, mas há momentos na história onde é possível reconhecer uma

unidade espiritual, o “espírito da época.” Esses momentos são, para Burckhardt,

os objetos da história da cultura. Ou seja, à sua historiografia da cultura importa o

que o passado tem de constante, tomando como ponto de partida “o homem que

sofre, aspira e age, o homem tal como foi e sempre será.”106

Porém, em virtude desta sinuosa relação entre manifestações da vida

espiritual do homem, o empenho de Burckhardt em produzir um afastamento da

filosofia hegeliana é, por vezes, obliterado. De tal forma que sobre a relação entre

universal e particular articuladas sob o prisma da concepção de espírito – espírito

de uma determinada época, no caso de Burckhardt – recaem, em geral,

comentários que o aproximam da filosofia da história de Hegel. A aproximação

do pensamento de ambos sobre a história através da idéia de espírito é apenas a

possibilidade mais imediata, mas não necessariamente a única.107 Basta que, por

exemplo, se leve em conta o fato de que tanto a noção de Volksgeist (espírito do

povo) e Zeitgeist (espírito de época) estarem presentes nas reflexões de

105 BURCKHARDT, WB, p.48 (RHU, p.48). T106 Ibid., p.46. 107Ver Lionel GOSSMAN, “Kulturgeschichte, Kunstgeschichte, Genuss: History and Art History in Burckhardt.” Para Gossman, as diretrizes dos escritos de Burckhardt sobre história da arte aproximam-se daquelas postuladas por Hegel na introdução de suas “Lições sobre a Estética”, sobretudo ao que diz respeito à compreensão da Grécia Antiga como período de apogeu da arte e

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pensadores como Herder, Goethe, Schiller, além de Ranke e o próprio Kugler.

Este ponto em comum permite aventar outras prováveis influências que levariam

ao uso que Burckhardt faz da idéia de espírito em sua obra. Portanto, afirmar que

Burckhardt se manteve hegeliano, sobretudo, pelo uso da concepção de espírito é

criticá-lo por não ter conseguido se esquivar de toda uma tradição.108

Mesmo do ponto de vista terminológico, ainda que use a noção de espírito

de época, pode-se dizer que Burckhardt buscou o afastamento da filosofia de

Hegel, como sugere o uso do termo Kultur nos títulos de seus trabalhos, por

exemplo em Die Kultur de Renaissance in Italien (“A Cultura do Renascimento

na Itália”) e Griechische Kulturgeschichte (“História da Cultura Grega”), e

também na definição de seu ofício, pois ele se dizia um Kulturhistorien e não um

Geisthistorien. Como alerta Raymond Geuss, em artigo sobre a distinção dos

termos Bildung, Kultur e Geist, entre 1800 e 1870, o uso de Kultur era pouco

corrente nos textos acadêmicos alemães, nos quais prevalecia a utilização da

noção Geist. Segundo Geuss, isso se devia, possivelmente, à influência do

hegelianismo,. De acordo com os preceitos da filosofia da história de Hegel o uso

do termo Kultur não faria muito sentido, uma vez que a pluralidade das

manifestações de sociabilidade, religião, folclores etc. — ou seja, Kultur —,

possui uma unidade subjacente, da qual tais manifestações constituiriam tão-

somente formas de uma estrutura historicamente desenvolvida, em uma palavra,

Geist. “Em tal esquema”, afirma Geuss, “não haveria lugar para um conceito

separado de cultura.”109 Burckhardt era um historiador da Kulturgeschichte, como

tal, recusava a submissão da história a qualquer princípio universal.

O historiador da arte E. H. Gombrich, aponta pontos de proximidade que

se podem encontrar comparando as marcações feitas por Hegel em sua Filosofia

da História com a estrutura de A Cultura do Renascimento na Itália e a História

da Cultura Grega de Burckhardt.110 Gombrich afirma que, compreendida em sua

da modernidade do século XIX como seu oposto, isto é, como uma época na qual arte teria chegado ao seu fim. 108 Ainda sobre os termos Volksgeist e Zeitgeist, é preciso lembrar que o primeiro encontra-se fortemente ligado à idéia de nação, ao espírito de uma nação, e Burckhardt, desde 1848, havia se convencido de que era preciso pensar a história por outros caminhos que não àqueles relacionados ao favorecimento dos estados-nacionais; o que, poderia explicar, assim, sua opção pelo espírito de época como objeto para a historiografia da cultura. 109 Raymond GEUSS, “Kultur, Bildung and Geist”, p. 157. 110 Cf. E.H. GOMBRICH¸ Para uma História Cultural, cap. 3. A respeito do comentário de Gombrich sobre o suposto hegelianismo de Burckhardt, é interessante frisar que, de um modo geral, os especialistas na obra de Burckhardt não debatem as críticas do historiador da arte.

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estrutura metodológica, é possível perceber o quanto a história de Burckhardt é

hegeliana. Diz o historiador da arte:

Tal estrutura é o edifício hegeliano da história cultural, com o seu

corolário, o “método de exegese”. Tendo postulado a unidade de todas as manifestações de uma civilização, o método consiste em tomar diversos elementos da cultura, como por exemplo, a arquitetura grega e a filosofia grega, e perguntar como poderá demonstra-se que são expressões do mesmo espírito. No fim de uma tal interpretação deve haver sempre um triunfante QED euclidiano, pois foi essa mesma a tarefa que Hegel atribuiu à história: descobri em cada pormenor factual o princípio geral que lhe subjaz.111

Com base nestas comparações, Gombrich afirma que Burckhardt era

hegeliano mesmo contra a sua vontade. Entretanto, a impressão que se tem ao ler

Gombrich é de que este lança um olhar sistemático sobre a obra de Burckhardt e

não procura compreender o problema com que o historiador lidava em suas

formulações sobre a história. Some-se isto o fato de Burckhardt recusar qualquer

tipo de teleologia. Portanto, sua negação do ponto principal da filosofia de Hegel

em sua aplicação na história, não é um detalhe que pode ser desconsiderado.

Entretanto, se ao olharmos o conjunto das reflexões de Gombrich,

compreende-se que a crítica que o historiador da arte deseja fazer não é

diretamente a Burckhardt, mas sim à produção da historiografia da cultura de

modo geral. Pois, para Gombrich, a história da cultura, tal como realizada até

aquele momento,112 não havia cumprido sua real finalidade: produzir histórias que

garantissem a continuidade entre passado e presente. Ele atribuiu este fato à

incapacidade dos historiadores de criticar o determinismo e o coletivismo da

filosofia da história hegeliana arraigados nas raízes da história da cultura. Diz

Gombrich: “É esta crença num espírito coletivo independente e supra-individual

que me parece ter bloqueado o aparecimento de uma verdadeira história

cultural”,113 e alerta: “o nosso passado afasta-se de nós a uma velocidade

assustadora, e, se queremos manter abertos os canais que nos permitem

compreender as maiores criações da humanidade, temos que estudar e ensinar

história da cultura de modo mais profundo e intenso”114.

111 Ibid., p.52. 112 1967, ano das conferências que são apresentadas no livro. 113 GOMBRICH¸ op. cit., p.78. 114 Ibid., p.93 e 94.

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Ora, fazer da história da cultura o meio para garantir a continuidade

histórica, é justamente o cerne das reflexões de Burckhardt sobre a história. De tal

modo que, enquanto historiador, Burckhardt posicionava-se como um Cicerone,

um guia para uma compreensão histórica que preservasse a dimensão de fruição,

de gozo, tradicionalmente proporcionada pelos objetos de arte, capaz de despertar

nos indivíduos um espírito senão criador, ao menos crítico. A idéia de Genuss —

o ato de entrar em posse da tradição do espírito humano, transcendendo as

limitações impostas pela individualidade, pelo tempo e pelo espaço115 —,

presente no subtítulo de Cicerone: Einlentung zum Genuss der Kunstwerke

Italiens (“Introdução para a Fruição das Obras de Arte da Itália”), permeia, na

verdade, a perspectiva de Burckhardt acerca da relação que os homens deveriam

ter com o conhecimento histórico. Aliás, pensar Burckhardt como um cicerone da

história, como guia para uma audiência ora acadêmica, ora diversificada, é, de

fato, apropriado. Um cicerone que tem na continuidade histórica o fio condutor de

suas considerações. Apontar como esse fio se faz presente em seu trabalho é o

almejado no item que encerra este capítulo e a tese.

4.5 A eternidade no efêmero: a continuidade histórica de Burckhardt

Burckhardt aplicou a proposta cortar transversalmente116 os momentos

históricos em todas as análises que se dispôs a realizar. Se pensamos em A

Cultura do Renascimento na Itália, a idéia de transversalidade no tratamento dos

assuntos se mostra de maneira explícita: ali, vemos claramente uma imagem se

formar a partir de um movimento de observação que leva em conta vários ângulos

sobre o mesmo objeto. A fragmentação política e as novas formas de participação

no poder; o surgimento da individualidade; a relação com a Antiguidade, o

humanismo, as universidades; a descoberta do novo continente e mudanças no

campo das ciências; a configuração das cidades e de seus cotidianos; as festas e a

sociabilidade; a moralidade e o lugar da religião, compõem os cortes transversais

referidos pelo historiador. Todas as partes do livro corroboram a formação de uma

115Ver Lionel GOSSMAN, “Kulturgeschichte, Kunstgeschichte, Genuss: History and Art History in Burckhardt”, p. 6.

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imagem sobre o homem e a vida no Renascimento italiano117. Também na leitura

de seus cursos e palestras, a composição transversal de suas considerações se

mostra, ainda que às vezes de maneira menos evidente.

No intuito de encerrarmos nossas reflexões sobre a concepção de história

de Burckhardt, propomos lançarmos um último olhar, transversal, sobre os

Historische Fragmente. Aqui, ao nos apropriarmos da sugestão do próprio

Burckhardt para analisarmos o conteúdo de suas aulas, estamos imbuídos de duas

intenções: em primeiro lugar, perceber como o historiador da cultura lidou com o

problema da continuidade histórica nas apresentações que fazia cotidianamente

como professor. Desta forma retornamos à reflexão sobre a alternativa

historiográfica de Burckhardt para equacionar o atributo de contingência que

permeia a temporalidade e a vida no mundo moderno. Em segundo lugar,

desejamos comparar, uma vez mais, a perspectiva histórica de Burckhardt com a

de Hegel em sua filosofia da história, agora não tendo em conta apenas as

determinações conceituais, mas também as próprias histórias contadas por ambos

em suas preleções.

Os “Fragmentos Históricos” constituem o resultado de uma compilação

das anotações das aulas que Burckhardt ministrou na Universidade da Basiléia

praticamente nos últimos vinte anos de sua vida, entre 1865 e 1885. Os

Fragmentos, selecionados por Emil Dürr e publicados pela primeira vez em 1929

como um volume na edição das obras escolhidas do historiador, podem ser lidos

de maneira complementar às considerações de Burckhardt nas palestras Sobre o

Estudo da História. Pois, as afirmações feitas ali sobre o pensar histórico são

repetidas e refletidas em vários momentos de suas preleções, independentemente

da época tratada. Presentes principalmente nas introduções dos cursos, podemos

observar algumas concepções de Burckhardt sobre a história como, por exemplo,

a recusa em subordinar os acontecimentos históricos a qualquer conceito a priori,

a negação da idéia de progresso e, por extensão, de desenvolvimento progressivo

da humanidade ao longo da história, assim como a afirmação da singularidade dos

eventos e da subjetividade daquele que os narra. Mas, sobretudo, o que é

freqüente na fala do historiador é a preocupação em estabelecer relação entre o

116 BURCKHARDT, WB, p. 43-4 (RHU, pp.43-4)

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passado e o presente, em (re)estabelecer e afirmar os elos da continuidade

histórica, através da reapropriação contínua do passado pelo presente que somente

uma formação individual (Bildung) sólida pode garantir.

Ao todo, nos Fragmentos encontram-se trechos de cinco cursos proferidos

por Burckhardt, a saber: um sobre a “Antiguidade”, outro sobre a “Idade Média”,

outro abordando a “História Moderna [Neuere Geschichte] de 1450 a 1598”, aulas

sobre a “História dos séculos XVIII e XIX”, e um último curso chamado de “A

era da Revolução”. No trabalho de organização do material, o editor optou por

dispô-lo sincronicamente, o que nos permite imaginar como seria uma história

universal burckhardtiana. Ainda que Burckhardt tenha falado da história do

Ocidente dos gregos até o tempo em que vivia e que algumas vezes possamos

identificar um esforço de relacionar as épocas, definitivamente, não há apontado

em parte alguma a presença de algo nem mesmo próximo a um espírito totalizante

aos moldes hegeliano. A diacronia é mesmo a forma, por excelência, de

apresentação da história da cultura burckhardtiana.

Burckhardt, como dissemos, apesar de reconhecer que há uma dimensão

espiritual na história, traz em seu olhar o atributo da vida moderna, isto é, a

contingência. Por isso, em sua postura há sempre a relativização de quem

reconhece as limitações impostas pelas incertezas de um mundo em constante

transformação. Assim, ao conjecturar sobre a possibilidade de se fazer uma

história universal, diz o historiador:

A vida da humanidade é uma unidade cuja flutuação no tempo ou lugar constitui um sobe e desce, apenas para os nossos fracos sentidos, mas, em realidade, segue uma necessidade superior. Traçar a última em detalhe permanece uma tarefa dúbia e difícil. Nem tudo que agora e então aparece ao investigador como um decreto da história universal [Wetlgeschichte] realmente merece esse título.118

Ressaltado por Burckhardt como o único elemento presente na história

universal e, por isso, passível de identificação, o sofrimento e as ações humanas

são o objeto de investigação histórica. É a este respeito que o historiador atribui o

caráter “patológico” de sua proposta historiográfica na palestra de apresentação de

Sobre o Estudo da História. Ali, diz o historiador:

117 As especificidades historiográficas de A Cultura do Renascimento na Itália foram analisadas em nossa dissertação de mestrado. Cf. Janaína OLIVEIRA, A História da Cultura como Crítica à Modernidade, capítulo 3. 118 BURCKHARDT, HF, p.26 (JHH, p.26 ) [Grifos nossos]

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Tomamos como ponto de partida o único centro permanente e possível para nós: o homem que padece, aspira e atua; o homem tal como é, como foi sempre e sempre será. Por isso, nosso modo de tratar o assunto será, em certo sentido, patológico.119

Também na introdução do curso sobre a Antiguidade, num tópico

intitulado “sobre a indispensabilidade intelectual de estudar a história antiga”, ele

afirma da mesma maneira os elos entre passado e presente através dessa que para

ele é a característica comum a todos os homens. E mais, ao fazê-lo ainda afasta a

possibilidade deste elo existir através de um desenvolvimento da humanidade ao

longo do tempo. “Existem três grandes eras no mundo, talvez como nos três fases

do dia no enigma da Esfinge?”, pergunta Burckhardt. Em seguida, ele responde:

Mais propriamente, existe uma metempsicose contínua dos atos e

sofrimentos humanos através de incarnações incontáveis. Uma investigação genuina irá querer reconhecer todas essas mutações e abandonar qualquer parcialidade por eras específicas (tudo bem em ter uma predileção, pois isso é uma questão de gosto), e irá fazer tudo isso tão logo o mais vivo o sentimento pela inadequação humana em geral seja. Uma vez entendido que nunca houve, nem nunca havará, nenhuma época feliz e dourada, em um sentido fantasioso, se permanecerá livre da tola supervalorização de algum passado, do desespero sem sentido do presente ou da insensata esperança pelo futuro, mas reconhecerá na contemplação das eras históricas uma das mais nobres compreensões: é a história da vida e do sofrimento da humanidade vista como um todo.120

Para Burckhardt, a Antigüidade não é a infância da humanidade – ao

contrário: na infância estão alguns povos contemporâneos quando comparados aos

antigos. A Antigüidade é tão somente o primeiro ato do “drama do homem”, que

aos nosso olhos é “uma tragédia com esforço, culpa e tristeza incomensuráveis”.

A “alma” [Seele] dos antigos está presente na cultura em que vive, de tal modo

que “suas obras, sua missão e seu destino seguem vivos em nós”, afirma o

historiador da Basiléia. 121 Como se pode notar, os laços que ligam o passado ao

presente não residem na idéia de um espírito que se desenvolve no tempo, mas

sim na comunhão firmada através de um sentimento, a consciência de finitude,

nos arriscaríamos dizer.

Nosso tema é o passado que está claramente conectado com o presente e o futuro. Nossa idéia fundamental é o curso da cultura [Kultur], a sucessão dos níveis de

119 Id., WB, p.46 (RHU, p.46) 120 Ibid., p.3 (JHH,p.3). 121 Ibid.

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cultura [Bildungsstufen] nos vários povos e nos próprios indivíduos. Na verdade, devem-se enfatizar especialmente aquelas realidades históricas cujos fios conduzem ao nosso próprio tempo e cultura [Bildung].122

Assim, pela eleição de momentos do passado, o historiador vai tecendo os

fios da continuidade da história. É esta uma das peculiaridades dos cortes

transversais realizados por Burckhardt em sua história da cultura: colocar o

presente em diálogo com o passado. Portanto, não se trata apenas de um olhar

diferenciado sobre o passado, mas também uma forma de diálogo com o presente.

Tanto na obra sobre o Renascimento, como em suas aulas e preleções, o

historiador sempre visou estabelecer relação entre o período tratado e momento

em que vivia. A propósito, a perspectiva daquele que sistematiza e apresenta as

reflexões sobre o passado, se fazem presentes regularmente nas falas de

Burckhardt.

No tratamento dado ao período medieval, mais uma vez, vemos o

historiador realizar esse diálogo e romper com a idéia do desenvolvimento

progressivo da humanidade. Como é sabido, uma das primeiras afirmações de

Burckhardt ao tornar o Renascimento um corte epocal, tratou de desfazer a noção

comum da Idade Média como um momento de decadência na história.123 “A

Idade Média não é responsável pelo declínio de nosso presente!”, exclamava.124

Assim como declinara a visão do mundo antigo como perfeito e feliz, afirmando o

caráter trágico e agonal ao realizar a história da cultura grega, Burckhardt

recusava a idéia de que a época medieval fosse um momento de trevas e

infelicidade na história. Tais concepções eram o que costumava chamar de

“ilusões óticas”. Aliás, a noção de “ilusão ótica” [optische Täuschung] na

avaliação do passado efetivada pela época moderna é um tema recorrente nas

considerações de Burckhardt, aparecendo em todos os cursos do historiador que se

encontram nos Fragmentos. É este o argumento que lemos na defesa, por assim

dizer, que ele faz em prol da singularidade e legitimidade da Idade Média. Diz o

historiador:

Resistimos a ilusões – antes de tudo, a ilusão de que a humanidade estava

ansiosa e esperando, em alto grau, sair da Idade Média como de uma situação

122 Ibid., p.1 (JHH,p.1). 123Ver BURCKHARDT, A Cultura do Renascimento na Itália, “O desenvolvimento do indivíduo”, p. 111 e ss. 124 BURCKHARDT, HF, p.30. (JHH, p.32)

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escura, infeliz. Em uma visão alargada, a Idade Média pode ter sido um tempo de uma demora salutar [heilsamen Zörgerung]. Se tivéssemos explorado a superfície da Terra como estamos fazendo, talvez não estivéssemos mais por aqui (Seria isto uma perda?) Vamos assumir que o período tratado aqui estava lá, ao menos primeiramente, em interesse próprio e não para o nosso.

Antes, nós resistimos à ilusão de que os desenvolvimentos desde então têm, falando genericamente, levado à felicidade. A auto-decepção dos anos de 1830 e 1848 chega perto desta desilusão; mas em vista das nuvens que pairam no fim de nosso século, deveremos, provavelmente, ter de falar mais cautelosamente. 125

Não é só nas anotações de aula que compõem os Fragmentos que as

ilusões óticas da história são tratadas pelo historiador da cultura. Uma vez que

este representa um ponto chave em sua teoria da história126, ele não poderia estar

de fora das reflexões sobre o estudo da história. Tanto que há na conferência

sobre “A Sorte e o Infortúnio na História Universal um item dedicado ao assunto.

Nele, o historiador aponta como, em geral, se considera uma época de sorte ou de

infortúnio tendo o olhar guiado por tais ilusões. “Há uma ilusão ótica que nos

leva a ver a sorte refletida em certos tempos e em determinados povos, e a

apresentarmos por analogia com a juventude do homem, com a primavera, com a

aurora e em outras imagens parecidas,” 127 assegurava Burckhardt. Segundo ele,

essas ilusões são tão potentes que fazem com que se classifique como “sortudas

ou infortunadas” épocas inteiras do passado. Sendo que as primeiras são os

chamados períodos de florescimento na história e as segundas são entendidas as

épocas em que acontecem grandes destruições e guerras.

Uma vez mais, o historiador da cultura contraria a corrente de pensamento

majoritária em seu tempo. Pois, para ele, a fonte desses juízos sobre o passado

tem na concepção de progresso sua origem. Portanto, à noção de que a visão de

seus contemporâneos sobre o passado é, frequentemente, marcada por ilusões,

liga-se a predominância que tem a idéia de progresso no pensamento de época

moderna. Não coincidentemente, na mesma conferência a teoria do progresso é o

assunto tratado na seqüência. Ali, ele afirma com clareza a associação entre a

125 Ibid., p.58 (JHH, p.65) 126 Sabemos que Burckhardt afirmou, reiteradas vezes, que se julgava incapaz de realizar especulações dessa natureza. Contudo, é inegável que suas reflexões sobre a história possuem uma natureza teórica, digamos assim. Como declaramos anteriormente, é provável que esta atitude do historiador estivesse fundada em uma confusão entre “teoria da história” e “filosofia da história” e no desejo veemente de se afastar da última. 127 Idem, WB, p.370. (RHU, p.311)

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forma moderna de compreender o passado e a idéia de progresso. Diz o

historiador:

A emissão desta classe de juízos é uma característica dos tempos

modernos que só se pode compreender sabendo-se como modernamente se maneja a história. (...) Nos tempos modernos abriu passo a teoria do aperfeiçoamento gradual (o chamado progresso) a favor do presente e do futuro. (...) Esses juízos são inimigos mortais do verdadeiro conhecimento histórico.”128

Assim, segundo Burckhardt, a visão geral que a modernidade tinha sobre a

história ia de encontro ao conhecimento histórico que considerava “verdadeiro”,

ou seja, aquele que reconhece o valor singular de cada acontecimento do passado

e que busca reconhecê-lo e afirmá-lo. Essa é a tarefa da história e do historiador.

Nas aulas sobre “A História Moderna de 1450 a 1598”, Burckhardt deixa

transparecer visivelmente sua preocupação com a forma pela qual os modernos

encaravam o passado ao introduzir o período com um debate acerca da visão que

o século XIX tinha sobre dele, considerando-o o início do progresso vivido em

seu tempo. Para ele, dada a “eminente crise do decadente século XIX”,129

colocava abaixo o encadeamento histórico progressivo. A percepção de

transitoriedade do mundo moderno, da contingência instalada no cotidiano,

impedia estabelecer elos de conveniência entre o passado e o presente. Era, de

fato, preciso abandonar por inteiro “o conceito de conveniência [desejável] das

coisas passadas.”130

Rejeitamos a maneia de pensar eudemônica, assim chamada progressiva. O fato de a situação do nosso mundo atual está amplamente ligada a decisões daquele período não significa que, como uma totalidade, ele foi especialmente feliz e louvável, para então nosso século também se considerar como especialmente feliz e louvável, o que era a visão particularmente no período de 1830 e 1848. O conceito de um passado desejável deve ser abandonado por inteiro.131

O passado para Burckhardt não está a serviço do presente. A primazia do

futuro que Hegel estabelecera em sua filosofia da história era um equívoco para o

historiador da cultura. Lembramos que Hegel, ao inverter a ordem tradicional da

128 Ibid., pp. 371-2. (RHU, pp. 311-2). 129 Id.,WH, p.58 (JHH, p.64) 130 Ibid. Burckhardt usa a expressão “der Begriff der Wünchsbarkeit des Vergangnen”. Traduzimos Wünchsbarkeit por conveniente, ou desejável. A tradução inglesa usa o termo “desirability”. 131 Ibid.

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temporalidade histórica na tentativa de banir qualquer traço de contingência,

forneceu à história não apenas um sentido, mas também um télos, consagrando-o

na realização do espírito absoluto. E que mesmo com as dificuldades que sua

filosofia apresenta, seja por conta da complexidade dos termos ou do hermetismo

dos conceitos, Hegel se tornou um marco na modernidade ocidental.

Já a Burckhardt, a consciência da contingência, não resultou em uma

formulação teleológica, redentora, da história. Ao se ver diante da contingência o

historiador não a negou, mas buscou formas de lidar com ela; procurando não

simplesmente eliminá-la da explicação dos eventos, mas se posicionando – da

maneira que lhe foi possível – diante do incessante movimento que permeava a

vida então. Assim, atribuiu a sua historiografia e a si mesmo enquanto historiador,

a tarefa de distinguir o que é eterno no efêmero132 em que a história havia se

transformado na modernidade. Como saber diferenciar o transitório e contingente

do eterno, isto é, do que vai resistir ao turbilhão e seguir para na posteridade, é a

indagação que Burckhardt procura responder ao se voltar para o passado munido

de sua abordagem histórico-cultural. Em termos de história, “não há um modelo

uniforme”, afirmava. E mais:

De todas as disciplinas acadêmicas, a história é a mais não-científica,

porque ela possui ou pode possuir o mínimo de método de seleção assegurado, aprovado; isto é, a investigação crítica tem um método bastante definido, mas sua apresentação não.

É em cada ocasião que o registro do que uma época acha válido de nota em outra se dá.

Todo historiador terá uma seleção especial, um critério diferente para o que ele acha importante comunicar, de acordo com sua nacionalidade, subjetividade, treinamento e tempo.133

Assim, o historiador desejava através de sua história da cultura identificar

e fornecer imagens da continuidade em meio à contingência que caracteriza a

132 Realizamos aqui uma aproximação livre entre a postura de Burckhardt e aquela que Baudelaire atribui ao pintor Constantin Guys: “Assim ele vai, percorre, procura. O quê? Certamente esse homem, tal como descrevi, esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem (...) um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstancia. Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade; pois não me ocorre melhor palavra para exprimir a idéia em questão. Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório.” Charles BAUDELAIRE, “O Pintor da Vida Moderna.” In Sobre a Modernidade. São Paulo: Paz e Terra, s/d, p.24. 133 BURCKHARDT, HF, p.146-7. (JHH,162).

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época moderna. Burckhardt era dotado de uma grande e obstinada resignação, que

o fez resistir aos abalos provocados pelas mudanças ocorridas no século XIX,

perseverando na batalha pela manutenção da cultura. Por isso, considerava que

sua luta para garantir a continuidade da cultura no mundo da modernização

crescente e do avanço da democracia, não poderia resultar em outra postura que

não professor. Para ele, colocar o conhecimento histórico à disposição de um

público não acadêmico era o meio adequado para que os indivíduos pudessem

adquirir a formação (Bildung) necessária para não sucumbir ao mundo

uniformizante das massas e, por extensão, para manter vivos a tradição cultural e

os elos entre as experiências pregressas, o presente e o futuro.

O século XIX não era o melhor dos tempos na perspectiva de Burckhardt.

O elogio ao presente não figura entre suas características, nem do ponto de vista

da arte, nem daquele da história e nem mesmo como ironia. A história do presente

era, para ele como para a maioria de seus contemporâneos, algo difícil de se

realizar e também de se compreender. Porém, constituía, ao mesmo tempo, o lugar

não só da transição, mas no qual se poderia de alguma forma resistir à ruptura

total com o passado.

Burckhardt, em sua atitude serena e resignada como professor de história

que desejava estimular em seu público o interesse pelo passado, compreendia que

o presente era fundamental. Se em Hegel o futuro estabelecia a regra que

determinava o desenvolvimento da história, o que chamamos junto com

Alexander Koyré de “primazia do futuro”, em Burckhardt é como se houvesse

uma “primazia do presente”: é o presente, em sua contingência, em sua

transitoriedade, que conduzia o interesse do historiador pelo passado.

* * *

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5. Considerações Finais

A preocupação central deste trabalho foi apresentar o problema da continuidade

histórica como uma questão fundamental e atual no debate da teoria da história. Isto

porque pensar sobre o problema da continuidade histórica é refletir acerca da relação

entre presente, passado e futuro, considerando o atributo da contingência que marca a

vida na época moderna. Assim sendo, ao tomarmos como objeto de análise as

perspectivas de Burckhardt e de Hegel, se pretendeu compreender posturas modelares e

díspares das alternativas geradas no enfretamento da questão da contingência. Das

propostas de história destes autores resultam duas concepções de história diversas e, ao

mesmo tempo, fundamentais para a reflexão no campo da teoria da história.

Esse debate, entretanto, não seria possível sem antes estabelecer um quadro de

surgimento destas novas formas de pensar a história. Para isso, foi fundamental o uso

das categorias koselleckianas de espaço de experiência e horizonte de expectativas

apresentadas no início da tese. Com elas foi possível refletirmos sobre a reavaliação da

relação dos homens com o passado decorrente na era moderna, sobretudo após a eclosão

da Revolução Francesa e dos acontecimentos que a sucederam. Neste época, o topos da

Historia Magistra Vitae que compunha a base para as formulações históricas não se

mostrava satisfatório: olhar o passado para compreender o presente e, em certa medida,

prever o futuro já não era tarefa possível. Os elos da cadeia histórica haviam se rompido

de tal maneira que para encontrar no passado a ligação com o presente fazia-se

necessário resignificar a experiência pretérita. Era preciso reestabelecer os laços de

continuidade com o passado. Esse representava o desafio no campo da história na virada

do século XVIII para o século XIX.

Foi neste contexto que eliminar a contingência da história universal se tornou no

objetivo central da filosofia da história de Hegel. A história, como caminho para

realização do espírito absoluto no mundo, não poderia conter elementos que

aconteceram, mas não deveriam ter acontecido, ou seja, não poderia admitir o

contingente. Como o objetivo da história é a realização do espírito, na filosofia da

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história o passado deixa de ser o centro das preocupações e é sobre o futuro que recai a

ênfase dos acontecimentos. Assim, tudo que aconteceu se deu porque era para ter

acontecido, pois, em última instância, faz parte do plano divino para realização do

espírito. Deste modo, todos os eventos dos passados têm em si um princípio que lhes

antecede.

Para Burckhardt, a história não é lugar de conceitos a priori. Ao contrário, a

singularidade dos eventos e sua imprevisibilidade são as marcas que a constituem. Por

esse motivo, a contingência não pode ser eliminada do passado. Ser historiador para

Burckhardt é lidar com o contingente. Toda metodologia proposta por ele para a história

da cultura tem isto como pressuposto. Assim, ele se distanciava tanto do pensamento

presente no cânone historiográfico de seu tempo, como do princípio chave da filosofia

da história de Hegel. Foi deste modo que sua história da cultura se transformou em uma

alternativa atual até o presente para a reflexão sobre a história.

Para encerrar, lembramos de uma frase de Nietzsche que sempre nos soou como

um conselho aos historiadores: “Quando pensarem no fim, pensem também na

contingência e na loucura.”1

* * *

1Friedrich NIETZSCHE, “Fragmentos Póstumos e Aforismos”, in op. cit., p.268.

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6. Bibliografia: 1. Obras de Jacob Burckhardt: BURCKHARDT, Jacob. Weltgeschichtliche Betrachtungen. Über geschichtliches Studium. Vollständige Ausgabe mit e. Nachwort von Werner Kaegi. Bern: Hallwag, 1947. ____. Reflexiones sobre la Historia Universal. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. ____. Reflections on History. Londres: Routledge and Keagan Paul, 1958. ____. Historische Fragmente. Aus dem Nachlass Gesamelt von Emil Dürr. Neudruck mit einem Vorwort von Werner Kaegi. Basel : BennoSchwabe& Co. Verlag, 1949. ____. Judgements on History and Historians. Introduction by H. R. Trevor-Hoper. Boston: Beacon Press, 1958. ____. Fragments Historiques. Gênova: Librairie Droz, 1965. ____. The Age of Constantine the Great. Berkeley: University of California Press, 1983 ____. A Cultura do Renascimento na Itália. Um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. ____. Die Kultur der Renaissance in Italien. Ein Versuch. In http://gutenberg.spiegel.de/burckhar/renaiss/renaiss.htm. 25/05/2004. ____. Historia de la Cultura Griega. 5 v.. Barcelona: Iberia, 1963. ____. Recollection of Rubens. London: Phaindon Press Ltd. 1949. ____. Briefe. Max Burckhardt (ed.). Basel: Verlag Schibli-Doppler, 1964. ____. Cartas. Rio de Janeiro : Topbooks, 2003. ____. The Letters of Jacob Burckhardt. Alexander Dru (ed.). Londres: Routledge and Kegan Paul, 1955.

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