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Jean Grondin

Jean Grondin - Hermeneuti CA

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Jean Grondin

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O que vem a ser a hermenêutica?

No sentido clássico, a hermenêutica desig-

nava outrora a arte de interpretar os tex-tos, sobretudo no seio das disciplinas liga-

das à interpretação dos textos sagrados oucanônicos: a teologia, o direito e a filologia.

No sentido mais estrito, a hermenêuti-ca serve atualmente para caracterizar opensamento de autores como Gadamer eRicoeur (19132005), que desenvolveramuma filosofia universal da interpretaçãoe das ciências humanas que acentua anatureza histórica e lingüística de nossaexperiência de mundo.

A terceira grande concepção faz da herme-

nêutica uma filosofia universal da interpre-tação, quando a hermenêutica se vê posta a

serviço de uma filosofia da existência. Pas-samos aqui de uma hermenêutica de textos

para uma hermenêutica da existência.

Ao assumir a forma de uma filosofia uni-versal do entendimento, a hermenêuticaacabou por deixar o terreno de uma re-flexão sobre as ciências e por criar umapretensão universal. Veremos aqui que essauniversalidade pode assumir várias formas.

Tradução:M arcos  M arcionilo

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 Jean Grondin desenvolve nestelivro uma concepção da her-menêutica fundada na ideia deque o sentido que buscamosentender “é sempre o sentidodas próprias coisas, daquiloque elas querem dizer, um sen-tido que certamente ultrapassanossas parcas interpretações e ohorizonte limitado, mas sempreampliável, de nossa linguagem”.

O autor apresenta muito clara-mente as diferentes concepçõesda hermenêutica: Heidegger,Bultmann, Gadamer, Ricoeur,Rorty e Vattimo, bem como asconexões com a desconstrução(Derrida) e a crítica das ideolo-gias (Habermas), levando muitoem conta a herança da reflexãosobre as ciências sociais (Dilthey), da fenomenològia (Husserl) e da leitura de Nietzsche.

Encontramse aqui as diversasacepções do termo a partir dasinterrogações iniciais dos pen-sadores relativamente ao en-

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tendimento dos textos, da arte,da linguagem, da existência,da história... para finalmen-te aportar na ideia do alcan-ce universal da hermenêutica.Esse percurso inscreve, então,a hermenêutica na problemáti-ca geral do conhecimento, comconseqüências filosóficas e epistemológicas notáveis, porque ahermenêutica sempre quis seruma doutrina da verdade nocampo da interpretação.

 

E p is t e m e   - 6

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editora afil iada

 

ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM CAMBRIA

CORPO 11/15 E IMPRESSA PELA GRÁFICA

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CORPO 11/15 E IMPRESSA PELA GRÁFICA

PAYM EM PAPEL OFFWH ITE PARA A PARÁBOLA

EDITORIAL EM OUTUBRO DE 2012.

 

J ean   G rondin  (1955) é fi-lósofo e professor canadense,especialista nos pensamentosde Kant, Gadamer e Heidegger.Suas pesquisas concentramseprincipalmente na hermenêutica,na fenomenologia, na filosofiaclássica alemã e na históriada metafísica. Ele leciona naUniversidade de Montreal des-de 1991 e doutorouse comuma tese sobre o conceito de

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uma tese sobre o conceito deverdade em hermenêutica naUniversidade deTübingen em1982. Ele pode ser consideradoo principal sucessor da obrade Gadamer e de Ricoeur nocampo da hermenêutica con-temporânea. Entre suas obras,ainda figuram Uuniversalité  de 1’herméncutique (PUF) e Le toumant herméneutique de la  phénoménologie (PUF).

 

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cf, v

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E p i s t e m e

^ 1.  Foucault  — a coragem da verdade, Frédéric Gros (org.)

2. Diversidade cultural e mundialização, Armand Mattelart  

Jjq 3. 0 Círculo de Viena, Mélika Ouelbani

4.  Filosofia da linguagem, Sylvain Auroux

5.  A lógica, Pierre Wagner

6.  Hermenêutica, Jean Grondin

Tradução: &  

Marcos Marcionilo

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Título original: Herméneutique  © Presses Univ ers itaires de France, 2 00 6  

Traduzido da 2a edição atual izada: outub ro de 20 08  

ISBN: 978-2-13-057087-5

EOIÇÃO BRASILEIRA

E d i t or : Marcos M arcioni lo

C ap a   e   pro j e to   grAfico : Andréia Custódio  

Karina Mota

Ana Stahl Zilles [Unisinos]Angela Paiva Dionisio [UFPE]Carlos Alberto Faraco [UFPR]Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP]Gilvan Müller de Oliveira [UFSC, Ipol]Henrique M onteag udo [Univ. de Santiago de Compostela] Kanavillil Rajagopalan [Unicamp]Marcos Bagno [UnB]Maria Marta Pereira Scherre [UFES]Rachel Gazolla de Andrade [PUC-SP]Roxane Rojo [Unicamp]Salma Tannus Muchail [PUC-SP]

Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ_____________

G913h

Grondin, Jean

Hermenêutica / Jean Grondin ; tradutor Marcos Marcionilo.

- São Paulo: Parábola Editorial,2012.

21 cm (Epísteme)

Tradução de: l/Herméneutique

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7934-017-8

1.Hermenêutica.2.Teoria do conhecimento.i.Título.ll.Série.

12-4866. CDD:121

CDU: 16

Direitos reservados à PARÁBOLA EDITORIAL  Rua Dr. Mário Vicente, 394 | Ipiranga  04270-000 São Paulo, SPpabx: [11 ] 5061-9262 | 5061 -1522 j fax : [ l 1 ]~2589-9263  home page: www.parabo laed i tor ia l .com.br   e-mail: parabola@parabolaedi tor ia l .com.br  

R ev i são ;

C on s e l h o   ed i t or i a l:

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Todos os direitos reservados. Ne nhu ma parte desta obra pod e serreproduzida o u transmitida p or qualque r forma e/ou quaisquermeibs (eletrônico ou mecânico, inciuindo fotocópia e gravação)ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem

permissão por escrito da Parábola Editorial Ltda.

ISBN: 978-85-7934-017-8

 © desta ediç ão: Parábo la Editorial, São Paulo , o u tu b ro d e 2 0 1 2

 

 Â memória de meu pai, 

Dr. Pierre Grondin 

( 1 9 2 5 - 2 0 0 6 )

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SUMARIO

introdução

0 QUE PODE SER A HERMENÊUTICA................................................... 9

A coiné relativista de nosso tem po? ...................... ........................   9Três possíveis grandes acepções da herm enêutica .................   11

capítulo i 

Co n c e p ç ã o   clássica  d a  h e r m e n ê u t i c a ....................................   1 7

capítulo II 

E m e r g ê n c i a  d e  u m a  h e r m e n ê u t i c a   mais  u n i v e r s a l

no s é c u l o  XIX.............................................................................................. 2 3

1. Friedrich Schleiermacher (1 7 6 8 -1 8 3 4 ) .................................. 23

2. Wilhelm Dilthey (1 8 3 3 -1 9 1 1 ) ..................................................... 32

capítulo  iii 

Vi r a d a  e x i s t e n c i a l   da h e r m e n ê u t i c a  em   h e i d e g g e r  .... 3 7

1. Uma herm enêu tica da facticidade..............................................   382 .0 estatuto da hermenêutica em S e r e t e m p o ........................   423. Uma nova herm enêutica do entender...................................... 4 64. Do círculo do en tendim en to......................................................... 505. A última hermenêu tica de Heidegger....................................... 51

capítulo iv

Contribuição  d e  B ultmann  ao  avanço da h e r m e n ê u t i c a  5 5

capítulo v

Ha n s-Ge o r g   Ga d a m e r : u m a  h e r m e n ê u t i c a  do

ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO.............................................. 6 11. Uma herm enêutica não metodológica das ciências  

humanas............................................................................................... 612. O modelo da arte: o acontecimento do entendimento ..........   65

3. Os pré-juízos, condições do entendimento:a reab ilitação da trad iç ão............................................................. 67

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4. O trabalho da história e sua co nsc iência ................................. 70

5. A fusão dos horizontes e sua aplicação ....................................   736. A linguagem, objeto e elemento da realização hermenêutica 75

sumário  I 7

 

capítulo VI 

He r m e n ê u t i c a  e  crítica  das  i d e o l o g i a s................................   8 1

1. A reação metodológica de Betti................................................... 81

2. A contribuição de Gadamer segundo H aberm as.................   83

3. A crítica a Gadamer por Habermas............................................ 86

capítulo vil 

Pa u l   Ricceur: u m a  h e r m e n ê u t i c a  do  si  histórico  d i a n t e  

do c o n f l i t o   das i n t e r p r e t a ç õ e s  .....................   ...........................  9 3

1. Um percurso arb orescente ........................................................... 93

2. Uma fenomenologia tornad a herm enêu tica.........................   97

3. 0 conflito das interp retações: a herm enêu tica da 

confiança e da su sp eita ..................................................................100

4. Uma nova herm enêu tica da explicação e do 

entendimento, inspirada na noção de texto .........................103

5. A herm enêu tica da consciência histó rica.............................. 1 06

6. Uma fenomenologia herm enêu tica do homem capaz...... 109

capítulo viu

He r m e n ê u t i c a  e  d e s c o n s t r u ç ã o..................................................1 1 3

1. Desconstrução, hermenêutica e interpretação em Derrida 113

2. O encontro de Derrida e Gadamer em Paris.......................... 117

3. Os desdobramentos do encontro........... ................   ................... 125

4. O último diálogo entre Derrida e Gadamer............................ 128

capítulo ix 

HERMENÊUTICA PÓS-MODERNA: RORTY E VATTIMO ................1 3 1

1. Rorty: a despedida pragmatista da noção de verd ade.........131

2. Vattimo: "por" um niilismo hermenêutico................ r.............137

conclusão

FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA ........................1 4 1

BIBLIOGRAFIA..............................................................................................1 4 9

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8 | H ER M EN ÊU TIC A

 

introdução

O QUE PODE SERAHERMENÊUTICA 

 A COINÉ RE LATI VISTA DE NOSSO TEM PO?

^az algum tempo, Jean Bricmont e Alan Sokal

montaram uma farsa, a fim de denunciar o char

latanismo que, segundo eles, frequentemente 

grassa nas ciências humanas. Eles submeteram um ar

tigo coalhado de absurdos à revista americana Social Text,  título que sugere um pouco que toda produção 

cultural ou científica pode ser considerada como um 

simples "texto social", logo, como uma interpretação 

ou uma construção ideológicas. 0 artigo pretendia de

monstrar que a física quântica, apesar de sua pretensão 

à objetividade, não passava de uma construção social. 

Apinhado de referências às equações de Einstein, mas 

também aos mais eminentes mestres da "desconstru

ção" (entre os quais, Lacan e Derrida), o artigo foi acei

to e publicado. Os autores imediatamente divulgaram 

\

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to e publicado. Os autores imediatamente divulgaram 

a fraude, que provocou numerosas reações no mundo1.

1 J. Bricmont e A Sokal,Imposturas intelectuais. Rio de Janeiro: Record, 2006.

O QUE PODE SE R A HERMENÊUTICA | 9

 

Se essa polêmica pode nos servir aqui de ponto de parti

da, é unicamente porque o termo "hermenêutica" figura

va no título do artigo submetido à revista: "Transgredir 

fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da

gravitação quântica". Estejamos certos, a ideia ininteli

gível de uma "hermenêutica transformativa" não reme

te a nada de muito preciso. Mas, ao se valerem do ter

mo hermenêutica, os autores retomavam um termo da 

moda, que às vezes serve para descrever o pensamento 

contemporâneo "pós-moderno" e relativista, justamente 

aquele que Bricmont e Sokal buscavam denunciar.

Pois é, então, justamente esse um dos sentidos possí

veis do termo hermenêutica: designar um espaço inte

lectual e cultural onde não há verdade, porque tudo é 

uma questão de interpretação. Essa universalidade do 

reino interpretativo encontrou sua primeira expressão 

na afirmativa fulminante de Nietzsche: "Não há fatos, 

só interpretações”2. É dessa hermenêutica relativista que Gianni Vattimo pôde dizer que ela era a coiné, a 

língua comum, de nosso tempo3.

Mesmo assim, como lembraremos todo o tempo, essa 

concepção se encontra nos antípodas daquilo que a 

hermenêutica sempre quis ser: uma doutrina da ver

dade no campo da interpretação. A hermenêutica clás

sica realmente quis propor regras a fim de combater a 

arbitrariedade e o subjetivismo nas disciplinas que têm a ver com a interpretação. Uma hermenêutica votada à

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a ver com a interpretação. Uma hermenêutica votada à

>2 F. Nietzsche, A vontade de poder,  n° 481.3 G. Vattimo, L'herméneutique comme nouvelle koinè, in Éthique de Vinterprétation.  Paris: La Découverte, 1991, pp. 45-58.

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arbitrariedade e ao relativismo encarna, consequentemente, o mais completo dos contrassensos. Contudo, o percurso que leva da concepção clássica à hermenêutica "pós-moderna" não é destituído de lógica. Ele segue paralelamente a certa ampliação do campo da inter

pretação, mas do qual não se tem certeza se ele leva necessariamente ao relativismo pós-moderno.

T r ê s   p o s s í v e i s   g r a n d e s   a c e p ç õ e s

DA HERMENÊUTICA  

No sentido mais restrito e mais usual do termo, a hermenêutica serve atualmente para caracterizar o pensamento de autores como Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e Paul Ricoeur (1913-2005), que desenvolveram uma filosofia universal da interpretação e das ciências humanas que acentua a natureza histórica e lingüística de nossa 

^xperiência de mundo. De um lado, esses pensamentos marcaram grande parte dos maiores debates intelectuais que balizaram a segunda metade do século XX (es- truturalismo, crítica das ideologias, desconstrução, pós- -modernismo), recepções que fazem parte daquilo que podemos chamar de o pensamento hermenêutico contemporâneo. De outro, os pensamentos de Gadamer, Ri- cceur e de seus herdeiros frequentemente se vinculam à tradição mais antigk da hermenêutica, quando ela ainda não designava uma filosofia universal da interpretação, e sim simplesmente a arte de interpretar corretamente

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e sim simplesmente a arte de interpretar corretamente os textos. Mas como essa concepção mais antiga é sempre pressuposta e discutida pela hermenêutica mais recente, é preciso levá-la em conta em uma apresentação

O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA | 1 1

 

de conjunto da hermenêutica. Desse modo, podemos distinguir três grandes acepções possíveis da hermenêutica, que se sucederam nõ decorrer da história, mas que se mantêm integralmente como concepções absolutamente atuais e defensáveis da tarefa hermenêutica.

1. No sentido clássico do termo, a hermenêutica designava outrora a arte de interpretar os textos. Essa arte se desenvolveu sobretudo no seio das disciplinas ligadas à interpretação dos textos sagrados ou canônicos: a teologia (que elaborou uma hermeneutica sacra],  o direito (hermeneutica iuris) e a filologia (hermeneutica 

 profana). A hermenêutica desempenhava, então, uma função auxiliar, no sentido de que vinha secundar uma prática da interpretação, que tinha necessidade, sobretudo, de um socorro hermenêutico quando tinha de enfrentar passagens ambíguas (ambigua) ou chocantes. Ela possuía um objetivo essencialmente normativo: propunha regras, preceitos ou cânones que permitissem bem interpretar os textos. A maioria dessas regras eram tomadas de empréstimo da retórica, uma das ciências fundamentais do trivium (ao lado da gramática e da dialética) e no seio da qual encontravam-se com frequência reflexões hermenêuticas sobre a arte de interpretar. É esse o caso de Quintiliano (30-100), que trata  da exegesis (enarratio) em seu De institutione oratoria  (1, 9), mas especialmente Agostinho (354-430), que compilou regras para a interpretação dos textos em seu tratado sob re i doutrina cristã  (396-426), que marcou

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tratado sob re i doutrina cristã  (396-426), que marcou 

toda a história da hermenêutica4. Essa tradição passou

4 Agostinho, La doctrine chrétienne.  Paris: Institut d'études augusti- niennes, 1997.

1 2 | H ER M EN ÊU TIC A

 

por uma importante renovação no protestantismo, que deu origem a vários tratados de hermenêutica, em sua maioria inspirados na Rhetorica (1519) de Melanchton (1497-1560). Essa tradição, que faz da hermenêutica uma disciplina auxiliar e normativa nas ciências que praticam a interpretação, persistiu até Friedrich Sch- leiermacher (1768-1834). Mesmo que ele ainda faça parte dessa tradição, seu projeto de uma hermenêutica mais universal anuncia uma segunda concepção da hermenêutica, que será inaugurada sobretudo por Wilhelm Dilthey (1833-1911).

2. Dilthey conhece bem a tradição mais clássica da hermenêutica e sempre a pressupõe, sem deixar de enriquecê-la com uma nova tarefa: se a hermenêutica se inclina sobre as regras e os métodos das ciências do entendimento, ela poderia servir de fundamento metodológico a todas as ciências humanas (letras, história, teologia, filosofia e aquilo que hoje se chama de as "ciências sociais"). A hermenêutica se torna, assim, uma reflexão metodológica sobre a pretensão de verdade e o  estatuto científico das ciências humanas. Essa reflexão ’ se eleva contra o pano de fundo do desenvolvimento pelo qual passaram as ciências puras no século XIX, sucesso amplamente atribuído ao rigor de seus métodos, diante dos quais as ciências humanas parecem muito deficientes. Se as ciências humanas quiserem se tornar ciências respeitáveis, devem basear-se em uma meto

dologia que cabe à hermenêutica fazer surgir.

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3. A terceira grande concepção nasceu muito claramente em reação a essa compreensão metodológica da 

hermenêutica. Ela assume a forma de uma filosofia uni-

O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA | 1 3

 

versai da interpretação. Sua ideia fundamental (prefi- gurada no último Dilthey) é que o entendimento e a in

terpretação não são apenas métodos encontráveis nas 

ciências humanas, mas processos fundamentais que podemos encontrar no próprio núcleo da vida. A inter

pretação surge então, cada vez mais, como uma carac

terística essencial de nossa presença no mundo. Essa 

ampliação do sentido da interpretação é responsável pelo avanço do qual a hermenêutica do século XX se 

beneficiou. Esse avanço pode invocar dois padrinhos: 

um padrinho anônimo, Nietzsche (anônimo porque ele 

não falou muito de hermenêutica) e sua filosofia uni

versal da interpretação, e um padrinho mais evidente 

em Heidegger, mesmo que ele defenda uma concepção 

bem particular da hermenêutica, em ruptura com a hermenêutica clássica e metodológica: para ele, a her

menêutica não tem inicialmente a ver com textos, mas 

com a própria existência, que já é penetrada por inter

pretações, que a hermenêutica pode esclarecer. A her

menêutica se vê, então, posta a serviço de uma filosofia da existência, chamada a um autodespertar. Passamos 

aqui de uma "hermenêutica de textos" para uma "her

menêutica da existência".

A maior parte dos grandes representantes da herme

nêutica contemporânea (Gadamer, Ricoeur e seus her

deiros) situam-se na trilha de Heidegger, mas não se

guiram realmente sua "via direta" de uma filosofia da 

Page 19: Jean Grondin - Hermeneuti CA

existência. Eles preferiram retomar o diálogo com as 

ciências humanas, mais ou menos negligenciado por 

Heidegger. Desse modo, reataram com a tradição de Schleiermacher e Dilthey, sem com isso subscrever a

1 4 | H ER MEN ÊU TIC A

 

ideia de que a hermenêutica estava, por princípio, investida de uma função metodológica. Seu objetivo era, especialmente, desenvolver uma melhor hermenêutica das ciências humanas, aliviada do paradigma exclusi

vamente metodológico, que faz mais justiça à dimen

são lingüística e histórica do entendimento humano. Ao assumir a forma de uma filosofia universal do en

tendimento, essa hermenêutica acabou por deixar o terreno de uma reflexão sobre as ciências para criar uma pretensão univenal. Veremos aqui que essa uni

versalidade pode assumir várias formas.

Page 20: Jean Grondin - Hermeneuti CA

O QUE PODE SER A HERMENÊUTICA | 1 5

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capítulo I 

CONCEPÇÃO CLÁSSICADA HERMENÊUTICA 

Otermo hermeneutica só veio a lume no século 

XVII, quando o teólogo estraburguense, Jo- 

hann Conrad Dannhauer o inventou para no

mear o que se chamava antes dele de Auslegungslehre (Auslegekunst) ou a arte da interpretação. Dannhauer 

foi também o primeiro a utilizar o termo no título de 

uma obra, em sua Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacrarum litterarum,  de 1564, título 

que resume por si só o sentido clássico da disciplina: 

a hermenêutica sagrada, ou seja, o método para inter

pretar (exponere: expor, explicar) os textos sacros. Se 

há necessidade de um método desses é porque o senti

do das Escrituras nem sempre é tão claro quanto o dia.

Page 22: Jean Grondin - Hermeneuti CA

do das Escrituras nem sempre é tão claro quanto o dia. 

A interpretação {exponere, interpretari) é aqui o méto

do ou a operação que permite alcançar o entendimento do sentido, o intelligere. É importante gravar bem esse 

vínculo de finalidade entre a interpretação e o entendi

mento, porque os termos às vezes assumirão sentidos 

muito diversos na tradição hermenêutica posterior, es

pecialmente em Heidegger.

CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA | 1 7

 

0 termo interpretação vem do verbo grego hermeneuein, que tem dois sentidos importantes: o termo designa, ao mesmo tempo, o processo de elocução (enunciar, dizer, afirmar algo) e o da interpretação (ou de tradução). Nos 

dois casos, estamos diante de uma transmissão de sentido, que pode se operar em duas direções: ela pode (1) 

ir do pensamento para o discurso, ou (2) remontar do discurso para o pensamento. Atualmente, só falamos 

de interpretação para caracterizar o segundo processo, que remonta do discurso para o pensamento que se encontra por trás, mas os gregos já pensavam a elocução 

como um processo "hermenêutico" de mediação de sentido, designado, então, pela expressão ou pela tradução do pensamento em palavras. O termo hermeneia serve, portanto, para nomear o enunciado que afirma algo. 0  segundo livro do Organon de Aristóteles, dedicado ao enunciado, é um Peri hermeneias, que foi traduzido em latim por De interpretatione.

Não se trata, é claro, da interpretação no sentido em que nós a entendemos, ou seja, como a explicação do discurso que retorna a sua vontade de sentido, mas, ao contrário, das componentes da própria elocução, já entendida como transmissão de sentido. Mas se a compreensão grega do termo é esclarecedora, é porque ela nos ajuda a ver que o processo de interpretação deve, nem mais nem menos, inverter a ordem da elocução, ordem que vai do pensamento ao discurso, do "discurso interior" (logos endiathetos) ao "discurso exterior"[logos

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rior" (logos endiathetos) ao "discurso exterior"[logos  prophorikos), como o dirão soberbamente os estoicos.

Podemos então distinguir aqui o esforço hermenêutico de explicação do sentido, que remonta do discurso ex

1 8 I HERMEN ÊUTICA

 

terior para seu interior, do esforço retórico de expres

são que antecede a tarefa propriamente hermenêutica e lhe dá todo o seu sentido: não se pode querer inter

pretar uma expressão a fim de compreender seu sentido, exceto porque se pressupõe que ela quer dizer algo, que ela é a expressão de um discurso interior.

Então, não é por acaso que as principais regras hermenêuticas foram frequentemente extraídas da retórica, a arte do bem dizer, que se funda na ideia de que o pensamento que se procura comunicar deve ser apresen

tado de maneira eficaz no discurso. É especialmente o caso da importante regra hermenêutica do todo e das partes, segundo a qual as partes de um escrito devem ser entendidas a partir do todo constituído por um discurso e por sua intenção geral, que é a inversão daquilo que Platão apresenta como uma regra de composição retórica em seu Fedro  (264 c): um discurso deve ser composto como um organismo vivo no qual as partes  estão ordenadas a serviço do todo. É claro que o her- meneuta deve conhecer perfeitamente bem as grandes figuras do discurso, os "tropos" da retórica, se quiser interpretar corretamente os textos. Os grandes teóricos da concepção clássica da hermenêutica quase sempre foram professores de retórica.

É o caso de santo Agostinho, profundamente marcado pela retórica de Cícero. Antes de ser o teórico da interpretação, ele foi seu praticante. Encontramos em san

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to Agostinho várias interpretações (expositiones) dos textos sagrados, especialmente das Epístolas e do Gênesis, e já em suas Confissões (cujos três últimos livros propõem uma interpretação dos primeiros versículos

CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA | 1 9

 

do Gênesis). Em seu comentário literal do Gênesis, ele retoma a doutrina clássica, que remonta a Orígenes (c. 185-254) e a Fílon de Alexandria (c. 13-54), segundo 

a qual as Escrituras comportariam um quádruplo sen

tido: "Em todos os livros santos, importa distinguir as 

verdades eternas que são inculcadas (aeterna), os fatos 

que são narrados [facta), os acontecimentos futuros 

[futura), as regras para as ações (agenda) que são pres

critas ou aconselhadas"1.

Mas para entender essas verdades, esses fatos, os acon

tecimentos que virão e as máximas de ação, há neces

sidade de algumas regras ( prsecepta) de interpretação, 

que Agostinho apresenta em seu De doctrina christiana. Seu princípio fundamental é que toda ciência tem a ver 

ou com coisas [res] ou com signos [signa]. Claro que é 

necessário reconhecer uma prioridade à coisa sobre os 

signos, dado que o conhecimento dos signos pressupõe 

necessariamente o conhecimento da coisa por eles de

signada. 0 primeiro livro da Doctrina christiana  tam

bém será dedicado à exposição da "coisa" que quer ser 

apresentada no texto bíblico, a saber, o relato da criação 

fundada no Deus trinitário e a salvação que ele propõe.

Agostinho distingue, então, dois tipos de coisas, aquelas 

das quais fruímos por elas mesmas [frui], que têm seu fim 

em si mesmas, e aquelas que utilizamos [utí] para outro 

fim. Apenas as coisas eternas oferecem uma fruição real, 

e o conhecimento delas corresponde ao Soberano Bem,

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e o conhecimento delas corresponde ao Soberano Bem, ao summum bonum. Segundo Agostinho, o fim da Encar

1 Agostinho, La Genèse au sens littéral, t. i. Paris: Desclée, 1972, p. 83

2 0 | H ER MEN ÊU TIC A

 

nação era exatamente ensinar essa diferença, que se ex

prime no princípio do amor (que é, em primeiro lugar, o amor de Deus por sua criatura). Daí Agostinho extrai um primeiro princípio hermenêutico: é preciso interpretar todos os textos em função desse mandamento de amor, que remete tudo o que é cambiante ao que é imutável.

Os dieta  (ditos) e signa  (signos) das Escrituras devem ser entendidos em vista dessa res essencial. Mas para entender em que os signos remetem a essa res, é pre

ciso estudar as ciências, particularmente a gramática e a retórica. A retórica também nos ensina a discernir os tropos, as figuras de estilo da Bíblia e a distinguir o sentido próprio do sentido figurado. As regras, de inspiração retórica, da Doctrina christiana serviram de fundamento a toda a exegese medieval. Amplamente retomadas pelos primeiros grandes teóricos da herme

nêutica protestante (Melanchton, Flácio, Dannhauer), elas foram mantidas até Schleiermacher, quando a her

menêutica começa a adquirir nova abrangência.

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CONCEPÇÃO CLÁSSICA DA HERMENÊUTICA |2 1

Page 27: Jean Grondin - Hermeneuti CA

 

capítulo II 

EMERGÊNCIA DE UMAHERMENÊUTICA MAIS

UNIVERSAL NO SÉCULO XIX

i . F r i e d r i c h   S c h l e i e r m a c h e r   ( 1 7 6 8 - 18 3 4 )

Contemporâneo dos grandes pensadores do 

idealismo alemão, Fichte, Hegel e Schelling, e mais próximo do romantismo de Friedrich Schlegel, Schleiermacher foi, ao mesmo tempo,

grande filólogo, um teólogo expressivo, um filósofo e um teórico da hermenêutica. Em sua posição de filólogo, ele traduziu os diálogos de Platão, na íntegra, para 0 alemão, para os quais redigiu introduções fundamentais, que marcam os estudos platônicos até hoje. Mas foi, antes de tudo, no campo da teologia que ele fez carreira. Depois de ter publicado seus poderosos discur

sos Sobre a religião  em 1799, onde defende a ideia de que a fé exprime um sentimento de dependência total (segundo uma leitura subjetivista que, por sinal, irá caracterizar sua teologia e também sua hermenêutica),

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racterizar sua teologia e também sua hermenêutica), ele foi nomeado professor de teologia em Halle, em 

1804, antes de se tornar, em 1810, o primeiro decano

EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX |2 3

 

da Faculdade de Teologia da nova Universidade de Berlim. Ele publicou uma importante obra de dogmática 

sobre  A f é cristã   em 1821-1822. Mas Schleiermacher também deu cursos de filosofia: foram publicadas postumamente sua Dialética  (1839), sua Ética  (1836) e sua Estética (1842).

Mas ele só nos interessa aqui enquanto hermeneuta. É importante saber que Schleiermacher se formou em Halle, que fora um grande centro de hermenêutica no século XVIII e onde se sucederam antes dele grandes mestres da hermenêutica racionalista e pietista. Schleiermacher propriamente nunca publicou uma exposição sistemática de sua hermenêutica. Durante sua vida, ele publicou apenas o texto dos dois discursos que pronun

ciou na Academia de Berlim em 1829: "Sobre o conceito da hermenêutica, a partir das sugestões de F. A. Wolf e do tratado de Ast". Mas ao longo do tempo em que lecionou, em Halle e em Berlim, Schleiermacher dedicou vários cursos à hermenêutica. Inspirando-se em manuscritos de seu mestre, seu aluno, Lücke, publicou em 1838 um apanhado das ideias de Schleiermacher sob o título Hermenêutica e crítica, sobretudo em vista do Novo Testamento, título que o inscreve na tradição clássica da hermenêutica ("crítica" designa aqui a disciplina filoló- gica que se interessa pela edição crítica dos textos).

A exemplo de todos os grandes teóricos da hermenêu

tica, Schleiermacher inspira-se em grande medida na tradição retórica. Já no princípio de sua hermenêuti

Page 29: Jean Grondin - Hermeneuti CA

tradição retórica. Já no princípio de sua hermenêuti

ca, realmente lemos que "todo ato de entendimento é a inversão de um ato de discurso em virtude da qual deve ser trazido à consciência o pensamento que se en

2 4 I HERMENÊUTICA

 

contra na base do discurso"1. Se é verdade que "todo discurso baseia-se em um pensamento anterior"2, não resta dúvida de que a primeira tarefa do entender é reconduzir a expressão à vontade de sentido que a anima: "Busca-se no pensamento a mesma coisa que o autor quis exprimir”. A hermenêutica pode ser compre

endida, então, como a inversão da retórica.

Desse modo, "a tarefa é entender o sentido do discurso 

a partir da língua". "Tudo o que se deve pressupor em hermenêutica”, dirá Schleiermacher em um adágio vo

tado a uma grande posteridade, "é a linguagem"3. Destinada à linguagem, a hermenêutica se divide em duas grandes partes: a interpretação gramatical, que enten

de todo discurso a partir de uma língua dada e de sua sintaxe, e a interpretação psicológica (eventualmente chamada de "técnica"), que vê no discurso sobretudo a expressão de uma alma individual. Se o intérprete deve sempre partir do quadro global da língua, não é me

nos claro que as pessoas nem sempre pensam a mesma coisa sob as mesmas palavras (o que é verdadeiro es

pecialmente das criações geniais que enriquecem o te

souro da língua). Do contrário, "tudo seria decorrência da gramática", suspira Schleiermacher.

A interpretação psicológica encarna, sem dúvida, a contribuição mais original de Schleiermacher (Gadamer insistirá nisso, mas para criticar o que ele classificará

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1 F. Schleiermacher,  Hermeneutik und Kritik ( HuK'),  M. Frank [org.]. Frankfurt: Suhrkamp, 1977, p. 76; Herméneutique, M. Simon [trad.]. Paris: Labor & Fides, p. 101; trad. C. Berner. Paris: Le Cerf, p. 114.2  HuK, 78; trad. Simon, p. 102; trad. Berner, p. 115.3  Herméneutique; trad. Simon, p. 57; trad. Berner, p. 21.

EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX |2 5

 

de deriva psicologizante que levaria a perder de vista a intenção de verdade do entendimento). Se o próprio Schleiermacher deu-lhe desde o princípio o nome de interpretação "técnica", é porque ela busca entender a arte (techné) bem específica de um autor, sua virtuosi

dade característica.

A esperança de Schleiermacher é desenvolver uma “hermenêutica universal” que ainda não existia: "A her

menêutica como arte do entender ainda não existe sob

uma forma geral, mas existem apenas várias herme

nêuticas especiais"4. 0 objetivo aqui é uma hermenêu

tica geral que não se limitaria a um setor restrito, como 

é o caso das hermenêuticas especiais do Novo Testamento ou do direito. E se a hermenêutica deve adquirir um estatuto universal, é enquanto arte geral do enten

der, Kunst (frequentemente: Kunstlehre] des Verstehens.

 A tônica reservada ao entender é absolutamente inédi

ta. Até então, a hermenêutica era mais encarada como uma arte da interpretação (ars interpretandi, Auslegun- 

 gslehre), que devia conduzir ao entendimento. Agora é o próprio ato de entender que tem necessidade de ser 

assegurado por uma arte, insistência na qual podemos reconhecer o momento subjetivo já visível na teologia do sentimento de Schleiermacher.

Essa ênfase segue paralelamente a uma temática típica de Schleiermacher, a da universalização do fenômeno 

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do desentendimento possível. O que é que nos permi

te dizer que determinado entendimento é justo? Nesse

4  HuK, 75; trad. Simon, p. 99; trad. Berner, p. 113.

2 6 | H ER M EN ÊU TIC A

 

sentido, Schleiermacher distingue duas compreensões 

bem distintas da interpretação:

a. Uma prática distensa, que "parte da ideia segundo 

a qual o entendimento se produz por si mesmo". 

Nessa prática, o desentendimento é, sobretudo, a 

exceção. Essa prática da hermenêutica "exprime o 

propósito negativamente: é preciso evitar o erro de 

entendimento". Reconhecemos aqui a concepção 

clássica da hermenêutica, que fazia dela uma ciên

cia auxiliar à qual só se recorria para interpretar 

passagens ambíguas.

b. Uma prática estrita partiria, ao contrário, "do fato 

de que o desentendimento se produz por si mesmo 

e que o entendimento deve ser querido e buscado 

para cada ponto"5.

Essa distinção provoca conseqüências maiores. A prá

tica distensa da interpretação encontra-se aqui assimi

lada a uma prática intuitiva, que não obedece a regra 

alguma, nem a arte alguma. Ora, ela pressupõe que o 

entendimento se produz espontaneamente. E se o de

sentendimento fosse algo natural que se devesse com

bater a todo momento? Essa será a pressuposição de 

Schleiermacher. O entendimento deverá, então, pro

ceder em todos os pontos seguindo as regras estritas 

de uma arte: "0 trabalho da hermenêutica não deve in

tervir apenas quando a compreensão se torna incerta, 

Page 32: Jean Grondin - Hermeneuti CA

mas desde os primeiros começos de todo empreendi

mento que visa compreender um discurso".

5  HuK, 92; trad. Simon, p. 111-112; trad. Berner, p. 122-123.

EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX |2 7

 

Dirá Schleiermacher que a hermenêutica carece, por

tanto, de "mais método” (die hermeneutischen RegeJn müssen mehr Methode werderi)6. Desse modo, Schleiermacher abre caminho para uma compreensão mais resolutamente metódica da hermenêutica (que Gadamer também criticará), a fim de conter o perigo do de

sentendimento, potencialmente universal. A partir de então, a hermenêutica deixará de ocupar uma função auxiliar para se tornar a condição sine qua non de todo entendimento digno desse nome. No sentido estrito, ela passará a ser uma Kunstiehre,  a "doutrina de uma arte" do entender.

É por isso que a operação fundamental da hermenêu

tica ou do entendimento assumirá a forma de uma reconstrução. A fim de bem entender um discurso e de conter a deriva constante do desentendimento, tenho de poder reconstruí-lo a partir de seus elementos, como se eu fosse seu autor.

A tarefa da hermenêutica será, dessa maneira, "enten

der o discurso, de início, tão bem e, posteriormente, melhor que seu autor", seguindo uma máxima frequen

temente retomada por Schleiermacher (com variantes). Essa máxima, sem dúvida, foi usada pela primeira vez por Kant, que dizia em sua Crítica da razão pura: "Nada de surpreendente há em se poder entender Pla

tão melhor do que ele mesmo se entendeu, inclusive 'porque ele próprio determinou insuficientemente seu 

Page 33: Jean Grondin - Hermeneuti CA

conceito'" (A 314 / B 370). Schleiermacher fará disso

6  HuK,  84; acréscimo não traduzido por M. Simon, p. 106, nem por Berner, p. 118.

2 8 | H ER MEN ÊU TIC A

 

um princípio geral de sua hermenêutica, que seguirá a via de uma explicação genética: a partir de então, entender quer dizer "reconstruir a gênese de..." (vertente genética, e psicologizante, que caracterizará, aliás, as interpretações que começarão a florescer no século XIX). A ideia vem do idealismo alemão: entendemos algo quando apreendemos sua gênese, a partir de um primeiro princípio. Para o romântico Schleiermacher, esse primeiro princípio é a decisão germinal do escritor. Dessa maneira, Schleiermacher confere um aspecto psicológico à hermenêutica. Em seus discursos de 1829, ele dirá que "a tarefa da hermenêutica consiste em reproduzir o mais perfeitamente possível todo o processo da atividade de composição do escritor"7.

Mantendo-se fiel a sua vocação clássica, dedicada à interpretação de textos, a hermenêutica adquire com Schleiermacher um alcance mais universal.

Um primeiro momento de universalidade se anuncia no projeto de uma hermenêutica geral,  que deveria preceder, a título de arte do entender, as hermenêuticas especiais consagradas a tipos de textos definidos (é essa versão da universalidade a que Schleiermacher defende). Mas uma segunda forma de universalidade atualiza-se na ideia segundo a qual a hermenêutica deve poder ser aplicada a todo  justo entendimento. 

Seguindo a prática rigorosa da interpretação que ele preconiza, Schleiermacher, enquanto romântico que 

Page 34: Jean Grondin - Hermeneuti CA

sabe que alguém sempre pode ficar prisioneiro de suas 

próprias representações, universaliza aqui o risco do

7  HuK, 321; Simon, 186; Berner, 167.

EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO XIX j 2 9

 

desentendimento possível. É ele que leva a uma compreensão mais metódica e mais reconstrutora da tarefa 

vhermenêutica. Um terceiro elemento de universalidade pode ser discernido na ideia, desenvolvida no discurso de 1829, segundo a qual a hermenêutica não deve se 

limitar apenas aos textos escritos, mas também deve poder ser aplicada a todos  os fenômenos de entendimento: "A hermenêutica não deve estar simplesmente limitada às produções literárias; porque eu quase sempre me surpreendo no decorrer de uma conversa familiar fazendo operações hermenêuticas (...); a solução do problema, para o qual buscamos justamente uma teoria, não está de maneira alguma ligada ao fato de o discurso ser fixado para os olhos pela escrita, mas surgirá em todos os lugares onde venhamos a perceber pensamentos ou sucessões de pensamento por meio das palavras8".

A partir daí, tudo pode se tornar objeto de hermenêu

tica. Essa universalização avança paralelamente com uma ampliação da estranheza. Se o discurso falado não fazia parte da alçada da hermenêutica clássica, era justamente porque ele era contemporâneo, imediatamente presente e, portanto, diretamente inteligível. Apenas o discurso escrito, e mais especialmente o dos autores antigos e remotos, comportava um elemento de estranheza que requeria uma mediação hermenêutica.

Schleiermacher universaliza essa dimensão: o discurso de outros, mesmo que seja meu contemporâneo, en

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cerra sempre um momento de estranheza. A primeira condição da hermenêutica é, efetivamente, que algo de

8  HuK, 314; Simon, 177; Berner, 159.

3 0 | H ERM EN ÊU TIC A

 

estranho deve ser entendido, segundo uma ideia que Schleiermacher toma emprestada de Ast. Essa problemática, para não dizer essa aporia, leva Schleiermacher a abordar a questão do círculo do todo e das partes (que, mais tarde, dará nascimento ao "círculo hermenêutico"). Schleiermacher conhecia bem essa regra, simultaneamente retórica e hermenêutica, do todo e das partes, mas ele se pergunta expressamente "até onde se pode ir na utilização dessa regra"9. Isso porque ela pode ser ampliada a horizontes de sentido sempre mais englobantes: uma frase deve ser entendida a partir de seu contexto, o contexto deve ser entendido a partir do todo de um livro, todo que deve ser entendido a partir da obra e da biografia de um autor, que, por sua vez, deve ser entendido a partir de sua época histórica, época que só pode ser entendida a partir da história em seu conjunto. Pouco antes de Schleierma- 

? cher, o hermeneuta Ast10, aluno de Schelling, realmente reconhecera uma extensão infinita a essa regra: é ne- 

jj cessário entender o Espírito de uma época se se quiser interpretar uma obra. Sçhleiermacher se mostrará, por sua vez, preocupado em limitar a "potencialização" do círculo do todo e das partes. Ele estabelecerá seus marcos, objetivos e subjetivos. Do ponto de vista objetivo, dirá ele, a obra deve ser inicialmente entendida a partir do gênero literário do qual faz parte. Mas do ponto de vista subjetivo, uma obra também é o feito de seu autor, ela faz parte do todo de sua vida, cujo conhecimento deve esclarecer o entendimento de sua obra.

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deve esclarecer o entendimento de sua obra.

9  HuK, 330; Simon, 194; Berner, 174.10 F. Ast, Les príncipes fondamentaux de la grammaire, de Vherméneu- tique et de Ia critique. Landshut, 1808.

EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX |3 1

 

2 . W ilh e lm D i lt h e y (1 8 3 3 -1 9 1 1 )

A hermenêutica, que ainda era amplamente considerada como uma disciplina filológica em Schleiermacher, receberá um sentido mais metodológico em Dilthey. A essa altura, entendemos por metodologia uma reflexão 

5 sobre os métodos constitutivos de um tipo de ciência. 0  problema de uma justificação metodológica das ciências humanas ainda não existia para Schleiermacher. Ele só veio a se tornar urgente na segunda metade do século XIX, diante do prodigioso impulso pelo qual passaram as ciências exatas, cuja metodologia teria sido proposta por Kant. Kant é, então, amplamente tido como aquele que teria aplicado um golpe mortal à metafísica tradicional, ciência impossível do suprassensível, e que teria trans

formado a filosofia em uma metodologia das ciências exatas. Mas o que se passava com as ciências humanas, especialmente a história e a filologia, que conheceram um inegável desenvolvimento no século XIX? Se elas forem realmente ciências, devem se basear em métodos que fundamentem seu rigor. É essa reflexão metodo

lógica que Dilthey espera poder fazer sob a palavra de ordem, de inspiração kantiana, de uma "crítica da razão histórica". Dilthey apresentou 0 projeto dessa crítica no primeiro tomo de sua Introdução às ciências humanas  de 1883, que foi 0 único volume a ser publicado durante sua vida. Ao se situar sob 0 patrocínio de uma "crítica da ra

zão histórica”, cem anos depois da Crítica da razão pura 

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zão histórica”, cem anos depois da Crítica da razão pura de Kant, Dilthey se propõe a expor ali uma fundamenta

ção "lógica, epistemológica e metodológica” das ciências humanas. Ela se propõe a fundar as ciências do entendimento sobre categorias que lhes sejam próprias [lógi

3 2 | H ER M EN ÊU TIC A

 

ca), sobre uma teoria do conhecimento (epistemologia) e sobre uma teoria do método específico. Nessa época, Dilthey está em luta contra dois grandes adversários: de um lado, contra o positivismo empírico de Auguste Comte ou de John Stuart Mill, que afirmam que não existem métodos específicos às ciências humanas e que elas devem replicar a metodologia das ciências da natureza se quiserem ser ciências; de outro, contra a "metafísica da história” da filosofia idealista, e de Hegel em especial, que pretendia reconstruir a priori o curso da história segundo as exigências de seu sistema filosófico. Mais ou menos o que Kant fizera lutando contra o ceticismo empírico de Hume e contra a metafísica visionária, Dilthey buscará conduzir o navio da razão histórica por entre os dois escolhos do positivismo e do idealismo.

Em vista de fundar a especificidade metodológica das ciências humanas, Dilthey se inspira na distinção do histo

riador Droysen (1808-1884) entre o explicar (Erkláren) e o entender (Verstehen). Enquanto as ciências puras tentam explicar os fenômenos a partir de hipóteses e de leis gerais, as ciências humanas querem entender uma individualidade histórica a partir de suas manifestações externas. A metodologia das ciências humanas será, dessa forma, uma metodologia do entendimento.

Geralmente lembramos que o termo entendimento e a ideia de uma teoria geral do entender detinham um papel fundamental em Schleiermacher. Entre seus muitos méri

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fundamental em Schleiermacher. Entre seus muitos méritos, Dilthey era um fino conhecedor da obra de Schleier

macher. Depois de ter defendido uma tese de doutorado sobre a ética schleiermacheriana em 1864 e redigido um estudo fundamental sobre o "sistema hermenêutico" de

EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX |3 3

 

Schleiermacher (que permaneceu inédito até 1966), Dil

they publicou uma volumosa biografia de Schleiermacher em 1870. Mesmo que a hermenêutica tenha ficado absolutamente ausente de sua Introdução às ciências humanas de 1883, ela ocupa um lugar de primeira grandeza em um estudo definitivo de 1900, que abre o século da hermenêutica, sobre "A origem da hermenêutica". Dilthey esboça ali, em grandes traços, a história de uma disciplina ainda muito amplamente desconhecida do grande público e da qual Schleiermacher terá sido para ele o maior teórico, mas ele lhe confere uma nova função, ligada ao grande 

problema da metodologia das ciências humanas:

Trata-se agora de resolver a questão do conhecimento  

científico dos indivíduos e até mesmo das grandes for

mas da existência humana singular em geral. Um conhe

cimento desses é possível e que meios temos para che

gar a ele? (...) E se as ciências morais sistemáticas [as 

ciências humanas] extraem leis gerais (...) dessa apre

ensão do singular, os processos de entendimento e de 

interpretação tam bém não deixam de estar em sua base. 

Do mesmo modo, sua certeza, tanto quanto a da história, 

depende da questão de saber se a compreensão do sin

gular pode adquirir uma validade universal11.

É essa a questão a que a hermenêutica procura responder, entendendo-se hermenêutica como "a arte da interpretação das manifestações vitais fixadas por escrito". O obje

tivo da interpretação é entender a individualidade a par

tir de seus sinais exteriores: "Chamamos entendimento o

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tir de seus sinais exteriores: "Chamamos entendimento o processo pelo qual conhecemos um interior pelo auxílio

11 W. Dilthey, Origines et développement de l'herméneutique (1900), Le monde de l’esprit. Paris: Aubier 1 9 4 7 ,1 .1, p. 313.

3 4 | H ERM EN ÊU TIC A

 

de sinais percebidos desde o exterior por nossos senti

dos". Esse interior que se trata de entender corresponde ao sentimento vivido (Erlebnis) pelo autor, sentimento 

que não é acessível diretamente, mas apenas por seus si

nais exteriores. O processo de entendimento consiste em 

"recriar" em si o sentimento vivido pelo autor, partindo de suas expressões. Remontando de uma expressão à Erlebnis, do exterior a seu interior, o entendimento inverte 

aqui o processo criador, do mesmo modo como a tarefa hermenêutica da interpretação podia ser vista como a 

inversão do ato de expressão retórica. A tríade da expe

riência, da expressão e do entendimento aparece desde 

então como constitutiva da hermenêutica das ciências 

humanas. Se assim é, a hermenêutica poderia ser investi

da de uma nova tarefa, sugere Dilthey: "0  papel essencial da hermenêutica" será "estabelecer teoricamente, contra a intrusão constante do arbitrário romântico e do subjeti- 

vismo cético no campo da história, a validade universal da 

interpretação, base de toda certeza histórica"12.

Essa meta subsistirá amplamente como um programa na obra de Dilthey, mas a ideia segundo a qual ela po

deria servir de base metodológica às ciências humanas conferiu à hermenêutica uma pertinência e uma visibi

lidade que, antes dele, ela realmente nunca conhecera. 

Até o dia de hoje, destacados pensadores como Emilio Betti e E. D. Hirsch ainda veem na hermenêutica uma 

reflexão metodológica sobre o estatuto científico das 

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ciências humanas. Para eles, uma hermenêutica que renunciasse a essa tarefa perderia toda a razão de ser.

12 Idem, ibidem, pp. 332 -333.

EMERGÊNCIA DE UMA HERMENÊUTICA MAIS UNIVERSAL NO SÉCULO X IX |3 5

 

Mas há ainda outra ideia na última obra de Dilthey que 

iria propulsionar o essencial da herança hermenêu

tica em uma direção muito distinta. Trata-se da ideia segundo a qual o entendimento que se desdobra nas ciências humanas é justamente o prolongamento de 

uma busca de entendimento e de formulação que dis

tingue de antemão a vida humana e histórica como tal. 

"A própria vida se articula”, dirá Dilthey, através das várias formas de expressão que as ciências humanas 

buscam entender recriando a experiência da qual elas brotam. Instalada sobre uma filosofia universal da vida 

histórica, a intuição fundamental de Dilthey, prenhe de 

conseqüências, é que o entendimento e a interpretação 

não são apenas "métodos" característicos das ciências humanas, mas traduzem uma busca de sentido e de ex

pressão ainda mais originária da própria vida.

Esse caráter "hermenêutico" da própria vida era con

firmado pelas ideias quase simultaneamente desenvol

vidas pelo último Nietzsche em sua filosofia universal da 

vontade de potência, para a qual não existem fatos e sim 

"apenas interpretações". 0 que se perfila em Nietzsche, assim como nos últimos trabalhos de Dilthey, é então 

um novo rosto da universalidade da hermenêutica ou do reino interpretativo, mas que parece questionar 

justamente o sonho diltheyano de uma fundamentação epistemológica das ciências humanas. Para a maioria 

dos herdeiros de Dilthey (Heidegger e Gadamer), esse 

Page 41: Jean Grondin - Hermeneuti CA

sonho parecerá incompatível com o caráter essencial

mente histórico da vida no qual desembocam os últi

mos trabalhos de Dilthey. Ele confrontará a hermenêu

tica com novas tarefas.

3 6 | H E RM E N ÊU TIC A

 

capítulo III 

 VIRADA EXISTENCIALDA HERMENÊUTICA

EM HEIDEGGER 

"V epois de ter sido, até o século XVIII, uma arte 

II da interpretação de textos, depois uma meto- 

 J   dologia das ciências humanas no século XIX, a

hermenêutica se transformará em algo completamen

te diferente no século XX, uma "filosofia", mas também 

um termo cada vez mais em voga. É o que ocorre ini

cialmente no seio da escola de Dilthey, onde seu aluno 

Georg Misch se empenha em desenvolver uma "lógica 

hermenêutica", que quer demonstrar que as categorias 

fundamentais da lógica e da ciência afundam suas raí

zes em uma busca de entendimento da própria vida. 

Trata-se de uma lógica que Misch apresentou em seus 

cursos, mas tais cursos permaneceram inéditos até 

pouco tempo1e desempenharam um modesto papel na 

Page 42: Jean Grondin - Hermeneuti CA

transmissão do pensamento hermenêutico.

1 Georg Misch, Der Aufbau der Logik au fdem Boden der Philosophie  des Lebens. Gôttinger Vorlesungen uber Logik und Einleitung ín die Theo-  ríe des Wissens. München: Karl Alber Freiburg, 1994.

VIRADA EXISTENC IAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER I 3 7

 

Sem ser o único —o espírito do tempo também fez sua obra —Martin Heidegger (1889-1976) terá sido o prin

cipal artífice da transformação filosófica da hermenêu

tica, transformada em uma forma de filosofia autôno

ma. Com Heidegger, a hermenêutica mudará de objeto, 

de vocação e de estatuto. Primeiramente, ela mudará de objeto, deixando de incidir sobre os textos ou sobre 

as ciências interpretativas para incidir sobre a própria 

existência. Podemos falar, então, de uma virada existen- 

cial da hermenêutica. Ela também mudará de vocação, porque a hermenêutica deixará de ser entendida de ma

neira técnica, normativa ou metodológica. Ela passará a ter uma função mais fenomenológica, mais "destruido- 

ra" no sentido libertador do termo, que decorre de sua 

mudança de estatuto: ela será não apenas uma reflexão que incide sobre a interpretação (ou seus métodos), ela 

será também a realização de um processo de interpre

tação que se confundirá com a própria filosofia.

i . U m a   h e r m e n ê u t i c a    d a   f a c t i c i d a d e

Não se insiste muito nisso, mas Heidegger será, de fato, 

o primeiro a fazer da hermenêutica o título de uma fi

losofia quando apresentar seu pensamento, no título 

de um de seus cursos (que ele citará em Ser e tempo e também em 1959) ma "hermenêutica da factici

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também em 1959) como uma "hermenêutica da factici

dade". A facticidade designa aqui a existência concreta 

e individual que inicialmente não é para nós um objeto, e sim uma aventura na qual somos projetados e para a qual podemos despertar de maneira expressa ou não.

3 8 I H E R M E N Ê U T IC A

 

A ideia de uma hermenêutica da facticidade, como a de uma hermenêutica da existência em Ser e tempo, de 1927, comporta um duplo sentido precioso, conforme o duplo sentido do genitivo, no sentido em que o genitivo "o medo dos inimigos" (metus hostiurrí]  pode designar tanto o medo que temos dos inimigos (genitivo objetivo) quanto o medo que os inimigos têm de nós (genitivo subjetivo).

No sentido objetivo, a hermenêutica da facticidade quer dizer que a filosofia tem como objeto a existência hu

mana, entendida de maneira radical como ens herme- neuticum, como um "ser hermenêutico". Essa concepção 

bastante ampla da hermenêutica provém de três fontes:

a. Ela provém parcialmente de Dilthey e de sua ideia segundo a qual a vida é, em si mesma, intrinseca- mente hermenêutica, ou seja, levada por uma inter

pretação de si mesma.

b. Ela também terá sido marcada pela concepção da 

intencionalidade em Husserl, segundo a qual a consciência vive inicialmente no elemento da in

tenção de sentido, percebendo sempre o mundo na perspectiva de um entendimento constituinte.

c. Sua inspiração vem, em última instância, da filosofia cristã de Kierkegaard, que falara da escolha diante da qual se encontrava situada a existência, que deve 

decidir a orientação de seu ser, escolha que pressu

põe ser a existência um ser de interpretação.

Mas no sentido subjetivo do genitivo, o projeto de uma

Page 44: Jean Grondin - Hermeneuti CA

Mas no sentido subjetivo do genitivo, o projeto de uma hermenêutica "da" facticidade sugere que essa interpretação deve ser efetuada pela própria existência. Em 

outros termos, o filósofo — ou o autor da hermenêutica

VIRADA EXISTEN CIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER | 3 9

 

da facticidade —não tem como se substituir à própria  existência. No máximo, ele pode elaborar "indicações formais" que permitirão à existência se apropriar de suas próprias possibilidades de existência. Mas é a própria existência que cabe elaborar a hermenêutica 

de sua própria facticidade e que, em certo sentido, ela pratica de maneira mais ou menos inconsciente pelo fato de já viver no interior de algumas interpretações.  Essa possibilidade de elucidação se funda sobré o que é a existência, quer dizer, um espaço aberto que não é 

inteiramente regulado pela ordem dos instintos, mas que pode determinar sua orientação vital fundamental e se libertar das interpretações "alienantes" de seu ser.

Dessa maneira, a facticidade designa em Heidegger o "caráter de ser" fundamental da existência humana e daquilo que ele também chamará de Dasein, digamos, "o ser-que-é-lançado-aí", esse ser que e CA L/Clda oportu

nidade meu, que de início não é para mim apenas um 

"objeto" que se encontra diante de mim, mas uma rela

ção consigo ao modo da preocupação e da inquietude radical. Para abordar essa facticidade, o termo herme

nêutica não foi escolhido por acaso. Ele se funda na própria facticidade, ressalta Heidegger. É desse modo 

que a facticidade é simultaneamente:

a. capaz de interpretação;b. está em expectativa e necessita de interpretação;

é desde vivida interior de determinada

Page 45: Jean Grondin - Hermeneuti CA

c. é desde sempre vivida no interior de determinada interpretação de seu ser.

Simplesmente a facticidade o esquece facilmente, esquecendo-se assim de si mesma. A tarefa de uma

4 0 | H ER ME NÊ UT IC A

 

hermenêutica da facticidade, no sentido do genitivo objetivo, será então lembrar a facticidade a si mesma, 

arrancá-la de seu esquecimento de si. A hermenêutica é de "ataque", visando à facticidade de cada um: "A hermenêutica tem como tarefa tornar cada Daseirt atento a 

seu próprio ser, comunicá-lo a ele, expulsar a alienação 

de si que assola o Daseiri’2.

Em outros termos, trata-se de despertar a existência 

para si mesma: "O tema da hermenêutica é, então, o Da- sein  de cada um, questionado de maneira hermenêu

tica quanto a seu caráter de ser, a fim de elaborar um despertar radical a propósito de si mesmo”. Medimos 

aqui a distância que separa Heidegger da hermenêu

tica clássica: a hermenêutica não tem mais a ver com  

textos, e sim com a existência individual de cada um, a fim de contribuir para se despertar a si mesma!

Visto que se trata de abalar a existência, é preciso "des- ] 

truir” as interpretações que a mantêm em seu estado de sonolência: “A hermenêutica realiza sua tarefa uni

camente pelo viés da destruição”3. Há necessidade de uma destruição porque a existência tenta evitar-se a 

si mesma. Transpassada pelo cuidado de si, ela tem a preocupação de se aliviar dessa inquietude radical que 

ela é para si mesma. A existência busca se apaziguar a si mesma, busca se evitar, sucumbindo assim à tendên

cia ao "aviltamento" que a segue como sua sombra4. É

Page 46: Jean Grondin - Hermeneuti CA

2 M. Heidegger,  Herméneutique de Ia facticité. CEuvres complètes   (= GA), t. 63, Klostermann, 1998, p. 15.3 Idem, ibidem, p. 32.4 Cf. M. Heidegger, lnterprétations phénoménologiques dAristote (1992). TER-Repress, 1992, pp. 19.23.

VIRADA EXISTENC IAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER |4 1

 

dessa forma que a existência sucumbe por si mesma à 

mediocridade ditada pelo "se” sujeito indeterminado e 

pela opinião pública.

Ressaltemos que Heidegger não tem realmente um mo

delo mais edificante a propor à existência concreta. Ele 

simplesmente lembra à existência que ela deixa de ser 

um pouco aí quando se deixa levar e não cuida de se 

assumir a si mesma. Heidegger opõe a essa existência  

inautêntica o ideal de autenticidade que já habita a exis

tência enquanto espaço aberto capaz de determinar a 

'interpretação de seu ser. Não se trata, então, de propor  

uma nova moral, mas de convidar o  Dasein   para ser o 

que ele é, um ser que pode ser "aí" onde caem as de

cisões fundamentais quanto a seu ser, mas que muito  

frequentemente está noutro lugar, distraído, longe de si.

2. O ESTATUTO DA HERM ENÊUTICA  

em  S  er   e   tempo

0 programa hermenêutico de 1923 será retomado na obra 

mestra de 1927, mas dessa vez nosto a serviço do novo 

, projeto de uma ontologia fundamental. Nesse quadro, a 

filosofia é efetivamente concebiaa como ontologia  por

que sua questão primeira é a do ser. Segundo Heidegger, a questão é prioritária, e isso em vários sentidos:

Page 47: Jean Grondin - Hermeneuti CA

questão é prioritária, e isso em vários sentidos:

a. Inicialmente, ela aparece como fundamental em ci- | ência porque todo conhecimento e toda relação com  

um objeto repousam sobre certa compreensão do ser de que se está tratando (o ser é um pouco a pressuposi-

4 2 | H ER M EN ÊU TIC A

 

ção de toda pesquisa científica, mas que cabe propriamente à filosofia trazer à luz).

b. Mais fundamentalmente ainda, a questão do ser se confirma como urgente para a própria existência, se é verdade que a existência se caracteriza "pelo fato de que vai a seu ser por seu próprio ser". Portanto, não 

há na filosofia questão mais essencial. 0 que ocorre é que a questão hoje "caiu no esquecimento" declara a primeira linha do livro de 1927.

É preciso, então, franquear um novo acesso a ela. Para \tanto, Heidegger propõe seguir o método fenomenológi- co, gue, inicialmente, supõe um sentido proibitivo: tudo o que será dito dos fenômenos deverá ser objeto de uma legitimação direta. Ora, a dificuldade com o ser é que ele não se mostra, e a questão foi atualmente abandonada, tendo ficado recoberta pela problemática da teoria do conhecimento. Aquilo que a fenomenologia deverá fazer ver, dirá Heidegger, é aquilo que não se mostra à primeira vis- 

_ ta, mas que tem necessidade de ser posto em evidência:

0 que é que a fenomenologia deve 'fazer ver'? (...) Manifestamente aquilo que, à primeira vista, justamente não 

j>e mostra, aquilo que, com relação ao que se mostra logo de cara e mais frequentemente, está retraído, mas que ao mesmo tempo pertence essencialmente, proporcionando sentido e fundamento, ao que se mostra à primeira vista e o mais frequentemente5.

Desse modo, a fenomenologia será o caminho que per

Page 48: Jean Grondin - Hermeneuti CA

mite acesso ao ser, inclusive como fenômeno funda-:

5 Être et temps, trad.: Martineau, 47; trad.: Vezin, 62 (SZ, 35).

VIRADA EXISTENCIA L DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER |4 3

 

mental, mas que não se mostra por conta do esqueci

mento do ser.

Mas como fazer ver aquilo que não se mostra, aquilo que constitui o objeto da ontologia? Heidegger resolve o dilema 

apelando à hermenêutica, bem entendido, à hermenêuti-  ; ca da existencia. A fenomenologia fará, então, uma "virada 

hermeneutica". Os desenvolvimentos que Heidegger consagra as noções de fenomenologia e de hermenêutica sugerem fortemente que a dissimulação do fenômeno do ser é o resultado de um recobrimento que nada tem de inocente. Esse recobrimento se funda, realmente, em uma autodissimulação da existência que, ao ocultar o tema do ser, busca sobretudo esquivar-se de seu ser fini

to e mortal. A tarefa de uma hermenêutica da existência „ será, então, reconquistar ("redespertar" dizia o curso de 

1923) a existência e seu tema fundamental, o ser, contrariamente a sua tendência de se ocultar a si mesma.

Trata-se aqui de enfrentar um duplo esquecimento, mas um duplo esquecimento que se sistematizou: o esquecimento da própria existência (isto é, o esqueci- 

f mento de si mesma como tarefa e como projeto) e o esquecimento do ser como tema fundamental da filo

sofia. Nos dois casos, o esquecimento supõe uma "destruição", ou seja, pôr a descoberto os motivos que presidiram à instauração de um pensamento que oblitera o ser como tema fundamental da existência e da filosofia. Na introdução a Ser e tempo, a insistência incide 

Page 49: Jean Grondin - Hermeneuti CA

sobre o esquecimento do ser, mas a seqüência da obra estabelecerá claramente que esse esquecimento se alicerça em um esquecimento de si da existência e de sua 

finitude, que é fundamental.

4 4 | H ER ME NÊU TIC A

 

Em vista de suprimir esse duplo esquecimento, há ne

cessidade de uma hermenêutica, ou seja, de uma descoberta "destruidora” (que sempre deve ser entendida no sentido positivo do desencapamento que busca pôr a nu o fenômeno que foi encoberto): de um lado, de uma hermenêutica da própria existência, que a tire de seu autorrecobrimento; de outro, de uma hermenêuti

ca do esquecimento filosófico  do ser, que se anuncia sob onome de uma “destruição" da história da ontologia.

Ser e tempo fará então, em uma página muito densa (SZ, 37), uma caracterização concisa e condensada daqui

lo que convém entender por hermenêutica. 0 "sentido 

metódico da descrição fenomenológica" será resultado da hermenêutica no sentido preciso de que a descrição derivará de um trabalho de interpretação  ( Auslegung, voltaremos daqui a pouco a este termo crucial). 0 cará

ter hermenêutico da fenomenologia vem ressaltar que as duas coisas devem ser "anunciadas" à compreensão 

do ser que é a de nossa existência:

a. o sentido autêntico do ser;

b. as estruturas fundamentais de seu próprio ser.

Mas para comunicar o sentido autêntico e fundamental do ser e as estruturas do ser que é o nosso, temos de 

partir de uma “explicitação expressa do ser da existên

cia", que constituirá o sentido filosoficamente primei

ro da hermenêutica em Ser e tempo. Se esse sentido é 

Page 50: Jean Grondin - Hermeneuti CA

ro da hermenêutica em Ser e tempo. Se esse sentido é chamado de primeiro é porque ele constituirá o fundamento verdadeiro da ontologia fenomenológica que Heidegger quer propor: a fim de redespertar a questão do ser, é necessário partir de uma interpretação expli-

VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEG GER I 4 5

 

citante do entendimento de ser, mais ou menos expressa, que é a da própria existência.

Tendo em vista essa problemática, entre todas a mais fundamental, é apenas de modo derivado, diz Heidegger, que podemos entender por hermenêutica uma "meto

dologia das ciências históricas do espírito". Heidegger afasta-se, assim, da concepção diltheyana da herme

nêutica, mas em nome de um pensamento que vincula a hermenêutica à própria existência, seguindo algumas das intuições do último Heidegger.

3. U m a   n o v a    h e r m e n ê u t i c a    d o   e n t e n d e r  

í É desse modo que a hermenêutica promete recordar à existência as estruturas essenciais de seu ser, às quais  Heidegger dará 0  nome de "existenciais”. Se é verda

de que a existência é habitada por um entendimento (preocupado) de si, consequentemente, 0  "entendi

mento" formará um existencial absolutamente funda

mental e ao qual Heidegger dará um novo sentido, de

terminante para a hermenêutica posterior.

Já sabemos que a existência é hermenêutica por ser ela um ser de entendimento. Mas o que quer dizer enten

der? Mais uma vez, Heidegger rompe com a tradição anterior, vendo nela menos uma intelecção (intelligere) ou um conhecimento e mais um poder, uma capacida

Page 51: Jean Grondin - Hermeneuti CA

ou um conhecimento e mais um poder, uma capacida

de, um saber fazer ou uma habilidade. Nesse sentido, ele recorre à locução alemã sich auf etwas verstehen, que quer dizer "entender-se sobre algo", "ser capaz de

4 6 | H ER M EN ÊU TIC A

 

algo”. 0 "entender-se sobre" é aqui um verbo pronominal, que me implica em seu exercício, porque é sempre uma possibilidade de mim mesmo que se desdobra, e que também se arrisca, no entendimento.

Entender, portanto, é poder algo e o que é "podido" nesse poder é sempre uma possibilidade de si mesmo, um "se-entender".

Ancorado na existência e em sua inquietude fundamental a propósito de si mesmo, tpdo entendimento terá a estrutura de um projeto. Ou seja, o entendimento se dá no seio de uma estrutura de antecipação, de uma antecipação de significatividade, regida pela existência e por sua necessidade de orientação.

Mas essa antecipação não decorre necessariamente de um projeto consciente. Ela é o resultado de um "projeto lançado": lançado na existência, o entendimento se nutre de projetos de entendimento que são tantas outras possibilidades de se livrar de embaraços no mundo. Mas é possível esclarecer esse ser-projetado, trazer à luz essas antecipações e, assim, apropriar-se de seus projetos de entendimento. Esse esclarecimento do entender se realizará por meio daquilo que Heidegger chama de Ausiegung.

Heidegger esta recorrendo aqui ao conceito que define a tarefa clássica da hermenêutica, a tarefa de interpretação, mas conferindo-lhe um sentido inédito. A 

Page 52: Jean Grondin - Hermeneuti CA

terpretação, mas conferindo-lhe um sentido inédito. A 

interpretação é exatamente, dirá ele, a explicitação do " entendimento. Heidegger está jogando aqui com o termo alemão Ausiegung, que quer dizer interpretação na 

linguagem corrente, mas cuja construção evoca a ideia

VIRADA EXISTENCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER ] 4 7

 

de um desbastamento ou de uma explicitação (de onde 

a preferência dos tradutores por esse termo quando se trata de verter Ausiegung).

Dois deslocamentos maiores são operados aqui com relação à problemática clássica da interpretatio.

a. 0 que se trata de trazer à luz não é inicialmente o sentido do texto ou a intenção do autor, mas a intenção que habita a própria existência, o sentido de seu projeto. Esse deslocamento tem tudo a ver com a virada existencial da hermenêutica em Heidegger, que abandona o paradigma da interpretação dos textos (mas sem deixar de ter repercussões sobre ela, como o reconhecerão os herdeiros de Heidegger que serão Bultmann, Gadamer e Ricoeur).

b. A interpretação deixa aqui de ser o "procedimento" que permite atingir o entendimento, seguindo a estrutura teleológica da interpretação e do entendimento que prevaleceu na concepção clássica da hermenêutica. Não, a interpretação é, sobretudo, o esclarecimen-

* to crítico de um entendimento que a precede. Primeiro, vem o entendimento, depois sua interpretação, na qual o entendimento vem a se entender a si mesmo, a se apoderar de suas antecipações.

0 entendimento é dotado de uma tríplice estrucura que vem a ser esclarecida naquilo que Heidegger chama a  Ausiegung  ou a "interpretação explicitante”. Todo entendimento possui:a um "pré-saber" (Vorhabe), um horizonte a partir do

Page 53: Jean Grondin - Hermeneuti CA

a. um "pré-saber" (Vorhabe), um horizonte a partir do qual ele entende;

b. uma pré-visão (Vorsicht), porque ele se efetua em uma certa intenção ou em uma certa visada;

4 8 | H ER M EN ÊU TIC A

 

c. uma "pré-apropriação" (’Vorgriff ), dado que ela se 

desdobra no seio de uma conceitualidade que antecipa o que há para ser entendido e que talvez não seja inocente.

0 propósito da interpretação explicitante é destacar 

jpara si mesma ("enquanto tal ou qual") a estrutura de antecipação e aquilo que ela implica. Heidegger aqui está claramente animado por uma intenção de 

 Aufklárung ou de elucidação (que será um pouco tem

perada por seu aluno, Gadamer). Em Ser e tempo, Hei

degger não pensa, de início, nos modos filológicos da 

interpretação e do entendimento, ele pensa, sobretudo, 

em dois tipos de antecipação que estão na expectativa de explicitação ou de "destruição":

a. a antecipação de determinada concepção do ser (como presença subsistente: o que é, é o que se es

tende em uma presença permanente sob um olhar 

dominador, concepção que teria dominado toda a 

história da metafísica);b. a antecipação de determinada concepção da exis

tência (o homem como coisa pensante, ou animal rationale).

A questão de Heidegger aqui é a seguinte: mas de onde vêm esses pré-entendimentos? Eles nunca foram elu

cidados por si mesmos? Ser e tempo se propõe a fazê- -lo, aplicando à questão do ser e do homem a estrutura do entendimento e da explicação que já é a estrutura 

Page 54: Jean Grondin - Hermeneuti CA

do entendimento e da explicação que já é a estrutura da existência. Dessa forma, a obra pratica, no plano filosófico, a hermenêutica do ser e da existência que já se opera no seio da existência. Voltamos a perceber a 

distância que pode separar Heidegger da hermenêuti

VIRADA EXISTEN CIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER |4 9

 

ca clássica: não se trata de interpretar o sentido de um texto ou o pensamento de um autor, mas de elucidaro pré-entendimento da existência, a fim de determinar se ela provém de uma apreensão autêntica ou não.

4. Do c í r c u l o   d o  e n t e n d i m e n t o

s Segundo Heidegger, todo entendimento se eleva contra1 0 fundo de algumas antecipações, ditadas pelo cuidado 

da existência consigo mesma. A existência se entende, então, a partir de certo saber, de certa intenção e segundo determinada çonceitualidade. Trata-se de outra maneira de dizer que não existe tabula rasa do entendimento. Ora, contudo é esse ideal da tabula rasa do entendimento que a metodologia científica quis impor à hermenêutica do século XIX, especialmente em Dilthey: a hermenêutica passa a ser entendida como a disciplina que deve rejeitar o subjetivismo da interpretação, a fim de fundar a pretensão da objetividade das ciências humanas. Aqui se pressupõe que não se pode entender 

"objetivamente” a não ser que sejam descartados os pressupostos do intérprete e de sua época.

De acordo com esse ideal de objetividade, a concepção heideggeriana do entender e da interpretação parece levar a um "círculo" que dá todas as mostras de ser vi- 

(  cioso. É que parece não mais existir interpretação objetiva, neutra, com toda interpretação parecendo nada 

Page 55: Jean Grondin - Hermeneuti CA

jetiva, neutra, com toda interpretação parecendo nada mais que a elaboração de um entendimento prévio. Daí é que vem 0 problema pelo qual mais ou menos se defi

nia a hermenêutica clássica: como sair desse círculo de

5 0 | H ER M EN ÊU TIC A

 

danação? Como chegar a uma interpretação que seria, enfim, independente das preconcepções do intérprete?

Querer sair desse círculo seria, aos olhos de Heidegger, manter a esperança de chegar a um entendimento que deixaria de brotar da existência. Mas não só nada dis so existe, como manter uma ilusão dessas seria passar completamente ao largo do que é o entender, saber uma busca de inteligibilidade que é sempre movida pelas expectativas da existência, preocupada consigo mesma. "O que é decisivo, clamará Heidegger, não é sair do círculo, mas entrar nele da maneira conveniente" (SZ, 153). Para ele, isso quer dizer que a tarefa primeira da interpretação é não a de ceder a preconceitos arbitrários, mas a de elaborar a estrutura de antecipação do entender a partir das próprias coisas (com isso, Heidegger dá a entender que não renuncia, de modo algum, à concepção clássica da verdade como adequação à coisa).

A máxima hermenêutica de Heidegger consiste, então, em destacar a estrutura de antecipação do entendimento, em vez de fazer como se ela não existisse. É, então, a um exercício de rigor, ou seja, de autocrítica, que Heidegger convida a interpretação. É a esse exercício que é consagrado todo o projeto de Ser e tempo,  que se interroga sobre os pressupostos hermenêuticos da compreensão dominante do ser e da existência.

A ÚLTIMA HERMENÊUTICA DE HEIDEGGER  

Page 56: Jean Grondin - Hermeneuti CA

5. A ÚLTIMA HERMENÊUTICA DE HEIDEGGER  

Essa explicação crítica terá seqüência na última filosofia de Heidegger, isto é, em sua última "hermenêutica",

VIRADA EXISTENC IAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER |5 1

 

que assumirá a forma de uma explicação com a histó

ria da metafísica e de sua concepção dominante do ser como presença disponível. Mesmo sendo verdade que 

o último Heidegger quase não fala mais de hermenêuti- \ ca, ele radicaliza sua exigência dedicando todos os seus 

esforços à atualização dos pressupostos do pensamen- to metafísico, que agora ele considera o responsável 

pelo esquecimento do ser.

Em Ser e tempo,  esse esquecimento era amplamente 1; imputado à existência inautêntica, que esquecia sua 

questão essencial. 0 segundo Heidegger verá nele, so- bretudo, a conseqüência do destino da metafísica oci- dental: ao submeter o ser à perspectiva da racionalida- 

J1 de ("nada é sem razão"), a metafísica teria apagado o mistério original do ser, seu surgimento gratuito, sem porquê. Essa metafísica da racionalidade encontraria 

sua realização na essência da técnica: nela, o ser não passaria de um dado disponível e compatibilizável. 

 f %,: Heidegger está à espreita de outra compreensão do ser, p menos imperial, menos regida pelo "princípio de ra

zão". Seu pensamento visa, dessa maneira, preparar um 

novo começo e a "superar" assim o pensamento metafísico, que tende a sujeitar o ser à perspectiva do homem ao exigir que ele preste contas. Essa hermenêutica prolonga a visada de SZ no sentido de que seu propósito é 

destacar os pressupostos da concepção metafísica do ser, em nome de outro pensamento, mais original, mais 

atento ao surgimento do ser.

Page 57: Jean Grondin - Hermeneuti CA

atento ao surgimento do ser.

Heidegger esboçou esse outro pensamento dispensan

do uma atenção renovada, e absolutamente hermenêutica, ao fenômeno da linguagem e da linguagem poética.

5 2 | H ER ME NÊU TIC A

 

Ser e tempo já dissera que a tarefa da hermenêutica era anunciar à existência o sentido do ser. Ora, esse "anún

cio" já não é o próprio fato da linguagem, no qual o ser sempre assomou à fala? Não é essa capacidade de entender a linguagem e, com isso, de estar aberto ao mistério 

do ser que runda nosso Dasein, nosso "ser-aí-na-lingua- gem"? Portanto, não é de admirar que todo o último Hei

degger, em suas reflexões sobre a linguagem, pensada como a "morada do ser” tenha podido dizer que era a fala que dava voz à "relação hermenêutica” fundamen

tal, a relação do ser e do homem6. Além disso, Heidegger o fez em uma "entrevista” retrospectiva, publicada em 1959, na qual ele retoma nostalgicamente seu projeto de uma hermenêutica da facticidade e em que ele cita, pela primeira vez em trinta anos, textos de Schleiermacher e de Dilthey. Ele quis, com isso, marcar sua solidariedade com a herança da hermenêutica que o precedera, mas afirmando que a linguagem era o elemento da relação hermenêutica, ele também antecipou os desenvolvimentos da hermenêutica de seus herdeiros.

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6 M. Heidegger, D’un entretien de ia parole, Acheminement vers Ia pa- role (1959). Paris: Gallimard, 1967, pp. 118,120,126.

VIRADA EXISTE NCIAL DA HERMENÊUTICA EM HEIDEGGER I 5 3

Page 59: Jean Grondin - Hermeneuti CA

 

capítulo IV 

CONTRIBUIÇÃO DEBULTMANN AO AVANÇO

DA HERMENÊUTICA 

Omínimo que se pode dizer é que Heidegger 

propôs uma concepção bastante herética da hermenêutica. Preso à questão dõ^ser e da 

existência, seu projeto, à primeira vista, não tem lá  muito a ver com a concepção clássica da hermenêu- i tica, entendida como arte de interpretar os textos ou  j

como metodologia das ciências humanas. Tal projeto 

parece tão distanciado das preocupações tradicionais i da hermenêutica que vários historiadores da herme- inêutica podem se permitir ignorá-lo ou enxergar nele 

um risco mortal |essejyy^á o caso de Betti). Mas para  aqueles que podemos chamar dé os descendentes de j 

Heidegger (Bultmann, Gadamer, Ricoeur, Vattimo et j alií],  são exatamente suas reflexões "revolucionárias" /  

Page 60: Jean Grondin - Hermeneuti CA

sobre o entendimento, a interpretação e a linguagem  

que deviam provocar conseqüências para o pensamen

to hermenêutico, dedicado à interpretação dos textos e à justificação da pretensão de verdade das ciências i humanas. Podemos dizer que o cuidado desses auto- W

CONTRIBUIÇÃO DB BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA |5 5

 

ires concentrou-se em aplicar, cada um a sua maneira, 

 j as lições da hermenêutica existencial às questões mais 

í  tradicionais da hermenêutica.

0 primeiro pensador de envergadura a ter mostrado 

como a concepção heideggeriana podia ser posta a 

serviço das questões mais clássicas da interpretação 

de textos foi, sem dúvida, o teólogo Rudolf Bultmann 

(1884-1976). Antes mesmo de conhecer Heidegger, 

Bultmann já era um eminente exegeta do Novo Testa

mento. Em sua História da tradição sinótica, de 1921, 

ele dera uma contribuição de primeira plana à leitura 

histórico-crítica do texto bíblico, insistindo nos estilos 

e nos gêneros literários do texto sagrado. Ele se tornou 

professor em Marburgo em 1921, onde desenvolveu 

toda a sua carreira e onde manteve relações muito es

treitas com Heidegger (que também foi professor em 

Marburgo de 1923 a 1928), mas também com Gadamer 

(que passou vinte anos em Marburgo, de 1919 a 1939).

Bultmann sempre achou que a interpretação existen-

i ciai proposta por Heidegger oferecia uma descrição 

neutra da existência humana, da qual o teólogo po

dia se servir em seu trabalho de interpretação. Desse 

modo, ele terá sido o primeiro hermeneuta a fazer as 

ideias de Heidegger frutificarem no campo da exegese. 

Isso é especialmente evidente no ensaio que ele pu

blicou em 1950 sobre "O problema da hermenêutica". 

Esse texto foi publicado muito tardiamente na obra de 

Page 61: Jean Grondin - Hermeneuti CA

Esse texto foi publicado muito tardiamente na obra de 

r Bultmann, mas é importante porque ajuda a delimitar 

 \ aquilo que permanecerá para autores como Gadamer e 

Ricoeur como sendo o "problema hermenêutico".

5 6 | H ER M EN ÊU TIC A

 

Bultmann expõe aquilo que ele chama o problema da hermenêutica apoiando-se no ensaio de Dilthey sobre "A origem da hermenêutica”, publicado cinqüenta anos antes. Mas começa criticando a concepção tremendamente restritiva, excessivamente genética, que Dilthey tinha do entendimento: o entendimento é justamente "a re- efetuação dos fenômenos internos que se desenvolveram em seu autor?” Não é ele exatamente a recriação do "acontecimento criador interno do qual eles provêm?”1

Nesse ponto, Bultmann está estigmatizando a orientação psicologizante de Dilthey. Segundo ele, ela mascara o próprio sentido do esforço de entendimento, focalizado sobretudo na coisa a ser entendida e a partir da pergunta fundamental que é a do intérprete:

Um entendimento, uma interpretação está (...) sempre orientada por uma pergunta determinada, por uma intenção precisa. Isso implica que ela jamais existe sem uma pressuposição ou, para falar mais exatamente, que ; ela é sempre guiada por um pré-entendimento da coisa sobre a qual ela interroga o texto2.

Para Bultmann, o entendimento está sempre voltado para a coisa (Sache) do texto, para sua aposta e não para a psicologia do autor. Mas esse entendimento da coisa não pode deixar de ser guiado por um pré-enten- ^dimento do intérprete. Por sua vez, esse pré-entendi

mento se funda na vida daquele que entende:

A pergunta fundamental procede de um interesse que se

Page 62: Jean Grondin - Hermeneuti CA

A pergunta fundamental procede de um interesse que se  funda na vida daquele que questiona. 0 pressuposto de

1 R. Bultmann, Le problème de 1'herméneutique (1950),  Foi et com-  prehension, 1 .1. Paris: Le Seuil, 1970, pp. 599-626, aqui p. 603.2 Idem, ibidem, p. 604.

CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERMENÊUTICA | 5 7

 

toda interpretação compreensiva é que o interesse do 

qual falamos está, de uma maneira ou de outra, vivo no 

texto a ser interpretado e funda a comunicação entre o 

texto e o intérprete3.

 \ Assim, dirá Bultmann, só podemos entender participan- j do daquilo que é dito. Bultmann fala aqui de um teilneh- ‘ mendes Verstehen, de um "entendimento participativo": 

entender é ter parte com aquilo que entendo. Bultmann 

também dirá: não posso entender Platão a não ser filo

sofando com ele. Bultmann insiste nessa ideia de par

ticipação para criticar uma concepção excessivamente "estetizante" do entendimento, segundo a qual o sen

tido a entender seria inicialmente a expressão de uma individualidade. Não, diz Bultmann, entender é, sobre

tudo, apreender uma possibilidade de existência.

Essa  possibilidade de existência  que está no centro do 

"problema da hermenêutica”! ^ manifesta nos dois polos do entendimento, que se tornam a partir daí uma questão

de, diálogo: entendo sempre a partir de minha existên

cia, e aquilo que entendo é também uma possibilidade de existência revelada pelo texto. Paul Ricoeur, que terá sido 

muito marcado pelo pensamento de Bultmann, dirá pos

teriormente que o entendimento incide sobre o mundo 

que a obra abre para mim e no qual me permite habitar.

0 pré-entendimento do intérprete não deve ser elimi

nado, em nome de um ideal metódico de hermenêutica,

Page 63: Jean Grondin - Hermeneuti CA

nado, em nome de um ideal metódico de hermenêutica, ele deve antes ser elaborado para si mesmo e questiona

do: "Não se trata de eliminar o pré-entendimento, mas

3 Idem, ibidem, p. 605.

5 8 | H ER M EN ÊU TIC A

 

de elevá-lo ao nível consciente”4. E torná-lo consciente, Bultmann esclarece, é prová-lo pelo texto, fazer com que o entendimento possa ser questionado pelo texto e que, 

dessa maneira, ele possa ouvir sua reivindicação [Ans-  pruch). Uma revisão do pré-entendimento é sempre pos

sível e é ela o produto do trabaího de interpretação.

Se, com isso, Bultmann demonstra ter apreendido perfeitamente a estreita ligação entre o entendimento e a interpretação-explicitante em Heidegger, seu mérito é o de ter sido o primeiro a aplicar expressamente a concepção heideggeriana do círculo hermenêutico às questões mais tradicionais da hermenêutica, desen

volvendo e praticando uma hermenêutica existencial dos textos (Heidegger se limitara explicitamente a uma 

hermenêutica da existência e da metafísica). Ao afir

mar que o entendimento baseava-se em um "interesse  fundado na vida", ele antecipava a concepção do en

tendimento própria da hermenêutica filosófica de Gadamer (o entendimento como aplicação) e de Ricceur (o entendimento como abertura de um mundo). Desse modo, antes de Gadamer, ele se opunha à concep

ção ainda excessivamente estetizante e reconstrutora do entendimento em Dilthey. Sua concepção "partici

pativa" do entender abria, a partir daí, caminho para  a compreensão do entendimento como um diálogo. 0  retorno dahermenêutica a suas questões mais antigas tornava-se possível desde um solo heideggeriano.

Page 64: Jean Grondin - Hermeneuti CA

4 Idem, ibidem, p. 618.

CONTRIBUIÇÃO DE BULTMANN AO AVANÇO DA HERM ENÊUTICA |5 9

Page 65: Jean Grondin - Hermeneuti CA

 

capítulo v

HANS-GEORG GADAMER:UMA HERMENÊUTICA

DO ACONTECIMENTO DOENTENDIMENTO

i . U m a   h e r m e n ê u t i c a    n ã o   m e t o d o l ó g i c a  

DAS CIÊNCIAS HUMANAS

esmo que Heidegger já tivesse proposto 

uma concepção filosófica da hermenêutica, 

-é apenas coniGadamer que o termo herme

nêutica começou a realmente se impor à consciência 

geral. Em 1960, Gadamer submeteu a seu editor um 

longo manuscrito intitulado  As grandes linhas de uma hermenêutica filosófica. Contudo, o editor avaliou que 

o termo hermenêutica talvez fosse muito esotérico e 

trouxesse o risco de espantar os leitores. Solicitado a 

Page 66: Jean Grondin - Hermeneuti CA

trocá-lo por algo mais atrativo, Gadamer pensou ini

cialmente em Entendimento e acontecimento, antes de 

chegar ao título Verdade e método.  Foi essa obra que 

catapultou a hermenêutica aq centro dos debates filo

sóficos, a ponto de o editor insistir para que o termo

GADAMER: UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 6 1

 

hermenêutica figurasse no título de uma coletânea de ensaios que Gadamer viria a publicar em 1967...

Apesar de Gadamer ter sido alunode Heidegger e de ter se inspirado muito nele, a transição da hermenêutica de Heidegger para a de Gadamer não é automática. Gadamer não retomou diretamente a "hermenêutica da existência” de seu mestre. Ele tentou repensar, a partir dela, a problemática, mais diltheyana, de uma hermenêutica das ciências humanas (mesmo que Gadamer vá acabar indo além desse horizonte ao esboçar uma hermenêutica universal da linguagem). 0 que o impressionou em Heidegger foi menos o projeto de uma hermenêutica direta da existência ou de uma retomada da questão do 

| ser e mais a nova compreensão do círculo hermenêutico, que não é mais para ser entendido segundo o ideal objetivista de uma tabula rasa. A ideia fundamental de Heidegger dizia que era absurdo esperar alcançar um entendimento expurgado de toda antecipação, logo, finalmente "objetivo", porque entender, para um ser finito, é ser movido por algumas antecipações. Sem anteci

pações constitutivas, o entendimento perde toda razão de ser, toda pertinência. Por isso não existe interpretação que não seja guiada por um entendimento.

Heidegger afirmava tudo isso, claro, na perspectiva 

de uma hermenêutica da existência: as antecipações da existência foram elaboradas de maneira autêntica, a partir da finitude de nosso ser, ou não? Por sua vez,

Page 67: Jean Grondin - Hermeneuti CA

a partir da finitude de nosso ser, ou não? Por sua vez, 

Gadamer aplicará a valorização mais positiva do círcu

lo hermenêutico à problemática de uma hermenêutica das ciências humanas. A concepção de Heidegger não deve ter conseqüências para uma hermenêutica que

6 2 | H ER M EN ÊU TIC A

 

se propõe fazer justiça à pretensão de verdade das ciências humanas? Gadamer parte, então, de Heidegger, mas para renovar a compreensão do problema de Dilthey. Mesmo reatando com a interrogação de Dilthey, Gadamer questiona a premissa de Dilthey segundo a qual apenas uma metodologia poderia dar conta da verdade das ciências humanas. Esse é um pouco o sentido do título Verdade e método: a verdade não é apenas uma questão, de método. 0 método se funda sobre a distância do observador com relação a seu objeto. Ora, esse modelo de "entendimento a distância" é realmente  apropriado às ciências humanas? O espectador não está sempre comprometido de certa maneira? Essa concepção do entendimento vem diretamente de Heidegger: entender é um "se entender a si mesmo". Mas ela tam-  bém evoca o "entendimento participante” de Bultmann.

0 propósito inicial de Gadamer é justificar a experiência de verdade das ciências humanas (e do entendimento em geral) partindo da concepção "participativa" do entendimento. Ela é constitutiva daquilo que ele chama, na primeira linha de sua obra, de o "problema hermenêutico"1. Mas esse "problema" fora encoberto, segundo ele, pela concepção excessivamente metodológica da hermenêutica proposta por Dilthey. A ideia de Gadamer é que Dil-  j

they sucumbe a uma concepção da verdade inspirada na ' metodologia das ciências exatas, que declara anátema todo envolvimento da subjetividade.

Em vez de seguir cegamente essa metodologia, por 

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sinal, quase em desacordo com sua prática real, as ci-

1 H.-G. Gadamer, Vérité etméthode [VM]. Paris: Le Seuil, 1996, p, 11; CEuvres complètes [GW\, 1.1 ,1.

GADAMER: UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 6 3

 

ências humanas fariam melhor se se inspirassem na tradição um pouco esquecida do humanismo, do qual, por sinal, as ciências humanas extraem o próprio nome (humaniora). A reconquista do problema hermenêutico começará, portanto, por uma vigorosa reabilitação da concepção humanista do saber nas primeiras seções de Verdade e método.  0 traço característico do humanismo é que ele não visa inicialmente produzir resultados objetiváveis e mensuráveis, como no caso das ciências metódicas da natureza. Ele espera, especialmente, contribuir para a formação (Bildung) e para a educação dos indivíduos desenvolvendo sua capacidade de julgar. Nesse ideal de formação, no qual se forma um senso comum, um senso comum a todos e um sentido do que é comum e justo, se produz uma elevação ao universal, mas que não é o universal da lei científica. Ele corresponde, sobretudo, a um ultrapassamento de nossa particularidade, que nos abre para outros horizontes e que nos ensina a reconhecer, humildemente, nossa própria finitude. Não se vê aqui um "modo de conhecimento" que implica o indivíduo e que pode servir de modelo para as ciências humanas? Se esse modelo perdeu para nós sua força coagente é porque o positivismo científico impôs um modelo único de saber, o modelo do conhecimento metódico, independente do intérprete. Gadamer não tem nada contra o saber metódico enquanto tal, ele reconhece toda a sua legitimidade, mas avalia que sua imposição como o único modelo de conhecimento tende a nos tornar cegos a 

Page 69: Jean Grondin - Hermeneuti CA

outros modos de saber. Uma reflexão que quisesse fa

zer justiça à verdade das ciências humanas, reflexão  decorrente daquilo que podemos chamar uma "herme

nêutica", não seria necessariamente uma metodologia.

6 4 I HERMENÊUTICA

 

2 . O MODELO DA ARTE:

O ACON TECIMEN TO DO ENTENDIMENTO

Em busca de outro modelo de saber, diferente do modelo da ciência metódica, Gadamer vai se inspirar, na primeira parte de Verdade e método, na experiência da arte. A obra de arte não oferece apenas uma fruição estética, ela é, num primeiro momento, um encontro de verdade, afirma firmemente Gadamer. Reduzir a obra de arte a uma questão puramente estética é fazer o jogo da consciência metódica, que reivindica um monopólio sobre a noção de verdade, limitada à ordem daquilo que é cientificamente cognoscível. Não, dirá Gadamer, é preciso também reconhecer que a obra de arte tem sua verdade. Essa ampliação da noção de verdade permitirá mais tarde fazer justiça ao modo de conhecimento das ciências humanas.

A fim de pensar esse encontro com a verdade, Gadamer propõe partir da noção de "jogo": entender uma obra de arte é deixar-se levar por seu jogo. Nesse jogo, somos menos aqueles que dirigem e mais aqueles que são levados, encantados pela obra, que nos leva a participar de uma verdade superior. 0 jogo não tem nada de puramente subjetivo para Gadamer. Bem ao contrário, aquele que joga se encontra, sobretudo, transportado para uma realidade "que o ultrapassa". Aquele que participa de um jogo se dobra à autonomia do jogo: o jogador de tênis responde à bola que lhe é enviada, o dançarino se

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gue o ritmo da música, aquele que lê um poema ou um romance é tomado por aquilo que está lendo.

Esse modelo é importante porque a "subjetividade" se encontra bastante implicada aqui, mas ela é importan

GADAMER: UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 6 5

 

te ao justamente se dobrar àquilo que a obra, em toda a sua objetividade, lhe impõe: o sujeito se encontra engajado em um encontro que o transforma. Se se tratar de uma obra de arte, o "jogo" se condensa em uma figura, em uma obra que cativa e que descobre para mim algo de essencial, a propósito do que é, mas também a propósito de mim mesmo. A propósito do que é porque é um acréscimo de realidade que vem se apresentar em uma obra, isto é, uma realidade mais poderosa e ainda mais reveladora que a própria realidade que ela representa, mas que ela me permite conhecer melhor por si mesma. Desse modo, é o quadro Dos de Mayo de Goya, mostrando pobres camponeses espanhóis fuzilados à queima- -roupa pelas tropas francesas, que descobre para mim o que é a realidade da ocupação da Espanha por Napoleão.

Esse encontro com a verdade encarna ao mesmo tempo um encontro consigo. Há aí uma verdade da qual eu "participo" (será inevitável pensar, mais uma vez, em Bultmann), porque a obra me interpela sempre de maneira única. Por isso é que há tanta variação nas interpretações das obras de arte. Mas a ideia forte de Gadamer é que essa variação é essencial para o próprio sentido. Seria perversidade querer erradicá-la da interpretação. A experiência de verdade não decorre tanto de minha perspectiva de mim mesmo, decorre antes de tudo da própria obra, que me abre os olhos para o que é. É preciso distinguir a verdade de que fala Gadamer da concepção pragmatista, que reduz a verdade ao que ela pode ter de útil para mim: não é a obra

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dade ao que ela pode ter de útil para mim: não é a obra que deve se dobrar a minha perspectiva, mas, ao con

trário, minha perspectiva que deve se amplificar, ou até se metamorfosear, em presença da obra.

6 6 | H ER ME NÊU TIC A

 

Há também na experiência da obra de arte um jogo rigoroso, ritmado, entre o "acréscimo de ser" que se apresenta a mim a modo de revelação, ou até de um áiktat, e a resposta que é a minha: ninguém pode ficar indiferente diante de uma obra de arte que nos suspende ante sua verdade. Essa revelação que transforma a realidade, "transfigurada" e "reconhecida" em uma obra de arte, também nos transforma. A obra de arte  sempre me diz: "Você tem de mudar de vida!"

É esse modelo da obra de arte, e do rigor único que é 

o seu, que Gadamer aplicará às ciências humanas. Segundo Gadamer, a verdade das ciências humanas de

corre mais do "acontecimento" (que se apodera de nós e nos faz descobrir a realidade) do que do método. Nesse sentido, é revelador que Gadamer tenha querido inicialmente dar a sua obra o título Entendimento e acontecimento. Com isso, ele queria enfatizar que talvez chegue muito tarde aquele que quiser impor a essa insigne experiência de verdade uma metodologia que lhe garantisse a "objetividade”, Não estaríamos cedendo a um ideal metódico de conhecimento, legítimo em si mesmo, mas que deforma a experiência de verdade de que dão testemunho as ciências humanas e que a experiência da arte nos ajuda a redescobrir?

3. OSPRÉ-JUÉZOS, CONDIÇÕES DO ENTENDIMENTO:

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3. OSPRÉ-JUÉZOS, CONDIÇÕES DO ENTENDIMENTO: 

 A REABILITAÇÃO DA TRADIÇÃO

A velha receita para fundar a verdade das ciências huma

nas consistia em excluir os "pré-juízos" do entendimen

GADAMER: UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 6 7

 

to, em nome de uma concepção da objetividade, herdada das ciências exatas. De uma maneira muito provocante, Gadamer verá nos pré-juízos sobretudo "condições do entendimento". Aqui, ele invoca a análise da estrutura 

de antecipação do entender em Heidegger, que demonstrara que a projeção de sentido era não uma tara, mas uma componente essencial de todo entendimento digno desse nome. É nesse mesmo sentido que Bultmann defendera que não havia interpretação sem "pré-en- 

tendimento" da parte do intérprete. Tanto em Heidegger como em Bultmann, contudo, essa concepção não abria completamente as portas ao subjetivismo, porque se tratava justamente de desenvolver antecipações que fossem adequadas à coisa a ser entendida. Com efeito, 

a interpretação era precisamente, nos dois autores, um convite a um exame crítico de seus pré-juízos.

0 próprio Gadamer começará sua análise, muito já se insistiu nisso, enfatizando o processo de revisão constante que caracteriza o esforço de interpretação: uma interpretação justa deve se precaver contra o arbitrário dos preconceitos e voltar seu olhar para as próprias coisas2. Portanto, assim como Heidegger, Gadamer não é inimigo da ideia de adequação. 0 que ele especialmente questiona é o ideal, proveniente do Iluminismo, de um entendimento que seria inteiramente desprovido de pré-juízos.

A sutileza da análise de Gadamer é mostrar que essa obsessão com pré-juízos procede de um pré-conceito não 

questionado, especialmente de um "pré-conceito contra

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questionado, especialmente de um "pré-conceito contra os pré-juízos". A cruzada iluminista contra os pré-juízos

2 VM, 287-288; GW, I, 271-272.

6 8 | H ER M EN ÊU TIC A

 

alicerça-se, efetivamente, sobre a ideia segundo a qual só pode ser reconhecido como verdadeiro aquilo que foi fundado na razão com base em uma primeira certeza. É esse o princípio que leva o Iluminismo a desvalorizar todo conhecimento fundado na tradição e na autoridade. Mas isso é desconhecer que também podem existir "pré- -juízos legítimos", pré-juízos fecundos que nos são legados pela tradição. Gadamer acredita que a oposição entre a razão e a tradição é abstrata, ela mesma tributária de uma tradição, cartesiana, que rechaça toda verdade que não tenha sido fundada de maneira última. Mas será que existe mesmo algo assim, Gadamer se pergunta, uma ver

dade que não deveria estritamente nada à tradição e que seria, então, inteiramente separada da linguagem?

Gadamer não está pensando aqui em uma tradição defi

nida (o que faria dele o "tradicionalista" que ele não é); ele está pensando especialmente no "trabalho da história”, que vai sendo tramado acima do entendimento. Desse modo, a tradição representa o que não é "objetivável" em um entendimento, mas que o determina impercepti- velmente. 0 entendimento se opera a partir de algumas expectativas e objetivos que ela herda do passado e de seu presente, mas que nem sempre pode pôr em perspectiva. Mesmo que Gadamer mantenha o ideal clássico, e heideggeriano, de um exame crítico dos pré-juízos, parece-lhe ilusório orientar a verdade do entendimento para um ideal de um conhecimento desprovido de todo pré-conceito. Esse ideal não faz justiça, segundo ele, à

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pré-conceito. Esse ideal não faz justiça, segundo ele, à historicidade constitutiva do esforço de entendimento.

Em Gadamer, é também essa historicidade que permite 

ter a expectativa de resolver a questão crítica da herme

GADAMER: UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 6 9

 

nêutica: como distinguir os pré-juízos legítimos, aque

les que tornam possível o entendimento, daqueles que não são legítimos e que cabe à razão crítica superar?3

Ele dirá com frequência: é o recuo no tempo, a distância temporal, que permite fazer a triagem entre os bons e os maus pré-juízos. Vemos isso, por exemplo, na arte con

temporânea, mas também em filosofia: como distinguir as contribuições importantes e originais daquelas que o são menos? Aqui, só o recuo no tempo oferece algum socorro, permitindo aos grandes progressos emergirem e se fazerem valer. Solução mais ou menos satisfatória, porque mantém intacta a questão da ponderação das obras contemporâneas, quando colapsa a distância temporal (mas não toda forma de distanciamento crítico), mas também porque ela rejeita, sem dúvida, instâncias nas quais a distância temporal pode obnubilar grandes obras e interpretações importantes. Mesmo tendo insistido naquilo que a tradição pode ter de descobrido- ra, e com razão, talvez Gadamer não tenha enfatizado suficientemente o que ela podia ter de recobridora e, às vezes, de repressiva. Mas é verdade que essa crítica pressupõe um conceito muito "moderno" de tradição, justamente aquele que Gadamer pretende relativizar.

4. O TRABALHO DA HISTÓRIA   

E SUA CONSCIÊNCIA  

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O conceito fundamental da hermenêutica de Gadamer é 0 de Wirkungsgeschichte. 0 termo alemão, que já existia

3 Ibidem, 298, 320; GW, I, 304.

7 0 | H ER M EN ÊU TIC A

 

antes de Gadamer, designa em sua acepção mais corrente a história da recepção ou, mais simplesmente, a 

posteridade das obras através da história. É assim, por exemplo, que podemos distinguir a obra de Cervantes de sua posteridade, a Revolução Francesa de sua influência sobre a história. Uma vez que esse termo designa um operar da história, e Gadamer enfatizará sua produtividade, podemos falar aqui de um “trabalho da história”.

A disciplina da Wirkungsgeschichte foi desenvolvida no século XIX por historiadores, orgulhosos de sua "consciência histórica" e interessados em estudar, por si mesma, a posteridade das grandes obras: o historiador que quiser estudar o pensamento de Platão por si mesmo terá o cuidado de se distinguir de sua posteridade  e de seus pré-juízos. Desse modo, a consciência histórica do trabalho da história devia permitir escapar a sua insidiosa determinação, para o maior bem de uma in

terpretação objetiva do passado "tal qual ele realmente foi" antes de a história lhe conferir novos sentidos.

Gadamer se pergunta se esse ideal de entendimento, que busca manter a Wirkungsgeschichte  à distância, faz justiça ao trabalho da história. 0 fato de estudar a posteridade por si mesma implica que, justamente por isso, nos subtraiamos a sua eficácia? Não se tem certeza disso, porque a própria interpretação que pretende "objetivar" o trabalho da história se faz em nome de pré-juízos e de um ideal de objetividade que são propriamente o fruto de um trabalho subterrâneo

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são propriamente o fruto de um trabalho subterrâneo da história (no caso, do positivismo). Aos olhos de Ga

damer, parece menos importante objetivar esse trabalho da história, tarefa impossível porque ela pretende

GADAMER: UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 7 1

 

'i se tomar senhora de todas as suas determinações, do 

que reconhecer que todo entendimento se inscreve em 

um trabalho da história, emanando das próprias obras, 

mas do qual ela só teve uma consciência parcial.

Todo o propósito filosófico de Gadamer é desenvolver 

uma consciência adequada desse trabalho da história. 

De início, pode se tratar, como em Heidegger e em Bult

mann, de uma consciência que se esforça para iluminar 

o trabalho da história dentro do qual ela se mantém, a 

fim de esclarecer sua própria situação hermenêutica. 

Isso é perfeitamente legítimo no seio da pesquisa histó

rica, mas, aos olhos de Gadamer, é fundamental tomar  

consciência dos limites desse esclarecimento. Isso por

que o trabalho da história continua a determinar nossa  

consciência para além da consciência que temos disso. 

Uma consciência finita jamais será senhora de todas as 

suas determinações. Em uma ambigüidade essencial e 

voluntária, a "consciência do trabalho da história” de

signa simultaneamente, como o afirma o prefácio à 2a

edição francesa de Verdade e m étodo:

a. a consciência lapidada e trabalhada pela história;

b. a tomada de consciência desse ser-determinado e 

dos limites que ele impõe ao ideal de uma consci

ência inteiramente transparente a si mesma4.

A expectativa de Gadamer é exatamente: o reconheci

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A expectativa de Gadamer é exatamente: o reconheci

mento de sua finitude essencial levará a consciência a 

se abrir à alteridade e a novas experiências.

4 Prefácio à 2a edição, traduzida da Ia tradução (parcial) de VM. Paris: Le Seuil, 1976, p. 14.

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5. A FUSÃO DOS HORIZONTES 

E SUA APLICAÇÃO

Segundo essa consciência que se dá conta de sua fini- tude, o entendimento aparecerá menos como uma ati

vidade do sujeito do que como um advir decorrente do trabalho da história:

0 próprio entender deve ser pensado menos como uma  

ação da subjetividade do que como uma inserção em um  

acontecimento de tradição no qual se mediatizam cons

tantemente o passado e o presente. Eis o que se deve  

reconhecer na teoria hermenêutica, que é muito mais  

dominada pelas ideias de procedimento e de método5.

Essa constante mediação do passado e do presente está na raiz da ideia gadameriana de uma "fusão de horizontes”. Entender o passado não é sair do horizon

te do presente, e de seus pré-juízos, para se transpor para o horizonte do passado. É, na realidade, traduzir 

o passado na linguagem do presente, onde se fundem 

os horizontes do passado e do presente. Desse modo, a fusão é tão bem-sucedida que não se consegue mais distinguir o que provém do passado nem o que resulta 

do presente, de onde a ideia de "fusão". Mas essa fusão do presente e do passado também é, mais fundamen

talmente, a do intérprete com aquilo que ele entende. Como já vimos no caso da experiência da arte, o en

tendimento é uma experiência tão fusional que não se pode mais distinguir facilmente o que provém do obje

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pode mais distinguir facilmente o que provém do obje

5 VM, 312; GW, 1,29 5. Ver meu estudo sobre "La fusion des horizonts".  Archives de philosophie. 68, 200 5,401-41 8.

GADAMER: UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 7 3

 

to e o que deriva do sujeito que entende. Os dois, então, se "fundem" em um encontro bem-sucedido do sujeito com o objeto, onde podemos reconhecer a versão gada- meriana da adasquatio rei et intellectus, da adequação da coisa ao pensamento, que constitui a definição clássica da verdade.

Se há fusão com o presente, é porque o entendimento  sempre encerra uma parte de aplicação. No momento em que entende, o intérprete insere algo de seu, mas esse "seu" é também o de sua época, de sua linguagem e de seus questionamentos. Sempre interpretamos uma obra a partir de questionamentos, frequentemente imperceptíveis, de nosso tempo. Entender é, pois, "aplicar" um sentido ao presente. Gadamer se vincula aqui à antiga subtilitas applicandi, que ainda fazia parte, no pietismo do século XVIII, da tarefa essencial da herme

nêutica. Para um pastor, essa aplicação se operava na homilia que buscava aplicar o entendimento do texto sagrado à situação real dos fiéis. Gadamer lhe confere uma amplitude sem precedentes, afirmando que o en

tendimento nada mais é que a aplicação de um sentido ao presente. Aqui, Gadamer se opõe ao ideal metódico e reconstrutor de Schleiermacher e de Dilthey, que quer excluir a intervenção do presente, percebida como uma ameaça à objetividade. Podemos realmente entender, pergunta-se Gadamer, sem fazer parte do entendimento, sem que o presente esteja nele implicado?

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to, sem que o presente esteja nele implicado?

A tradução oferece um belo exemplo daquilo que Gada

mer entende por aplicação: traduzir um texto é fazê-lo falar em outra língua. Claro que os recursos de nossa  língua são então aplicados. 0 sentido estrangeiro só

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pode ser vertido para outra língua se formos capazes de entender. Ao transpor o sentido para outra língua, o texto traduzido vem se fundir (no melhor dos casos) com aquele que acaba de traduzi-lo. Diante isso, uma tradução é tanto mais bem-sucedida quando não se 

tem a sensação de estar lendo uma tradução. Vemos 

com isso, sobretudo, que a aplicação comporta seu ri

gor e sua verdade: não se pode traduzir um texto de 

qualquer jeito. É o texto estrangeiro que se trata de tra

duzir, mas isso só é possível quando se aplicam os re

cursos de nossa língua. Por isso é equivocado associar 

a aplicação do intérprete a uma forma de arbitrário subjetivo. Esse modelo de tradução não é qualquer um, 

dado que ressalta o elemento "lingüístico” de todo en

tendimento com o qual Verdade e método se concluirá.

6. A LINGUAGEM, OBJETO E ELEMENTO  

DA R EALIZAÇÃO HERMENÊUTICA  

Entender é traduzir um sentido ou ser capaz de tradu

zi-lo. Essa tradução implica exprimir linguisticamente

o sentido. Gadamer chega à conclusão de que o processo  do entendimento e seu objeto  são essencialmente lingüísticos. Temos aqui duas teses. A primeira é que o 

entendimento é sempre um processo "lingüístico". Sob 

um aspecto negativo: não há entendimento que não 

seja, de certa maneira, expressão lingüística. Entender 

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seja, de certa maneira, expressão lingüística. Entender é ser interpelado por um sentido, poder traduzi-lo em uma linguagem que é sempre necessariamente a nossa. Temos aqui fusão entre o processo do entendimento e

GADAMER: UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 7 5

 

sua expressão lingüística. A ideia de Gadamer é que a linguagem não é a tradução, segunda, de um processo intelectual que a precederia e que poderia se desenvolver sem linguagem. Não. Todo pensamento já é busca de linguagem. Não existe pensamento sem linguagem. Mas aqui se trata de uma evidência que o pensamento  ocidental teria teimado em menosprezar desde Platão, ao atribuir à linguagem um estatuto segundo em comparação com o pensamento autônomo. Aqui, Gadamer denuncia um esquecimento da linguagem que teria atravessado toda a nossa tradição ocidental e à qual ele só conhece uma exceção: a ideia, entrevista por Agostinho, de uma "identidade de essência" fundamental entre o pensamento (o logos) e sua manifestação lingüística (sua encarnação).

Essa linguagem do entendimento pode abarcar todo ser suscetível de ser entendido. Portanto, ela não está restrita a sua própria perspectiva (a de uma língua ou de uma comunidade específica): “A condição lingüística de nossa experiência do mundo não significa um pers- pectivismo que excluiria outras perspectivas"6. A insistência não recai, portanto, sobre o limite perspectivista que geraria o caráter lingüístico de nosso entendimento, mas, ao contrário, sobre a abertura que ele implica: a linguagem, entendida a partir do diálogo, pode se abrir  a tudo o que pode ser entendido e a outros horizontes lingüísticos que venham ampliar os nossos. A tradução e o diálogo, em princípio, são sempre possíveis. Isso não quer dizer que nossa linguagem não conheça limites: 

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quer dizer que nossa linguagem não conheça limites: nossas palavras são, com frequência, bem impotentes

6 VM, 472; GW, 1,452.

7 6 | H ER M EN ÊU TIC A

 

para exprimir tudo o que sentimos. Mas os limites da linguagem são então também os limites de nosso entendimento. Toda crítica aos limites da linguagem só pode ser feita propriamente no seio da linguagem. Desse modo, a linguagem absorve todas as objeções que se pudesse querer levantar contra sua competência. Por isso é que Gadamer dirá que a universalidade da linguagem vai, pari et passu, com a universalidade da razão7: ela mesma se articula em uma linguagem capaz de ser entendida e permanece impensável sem linguagem.

Mas se podemos falar de uma universalidade e de uma racionalidade dialógica da linguagem, para designar sua abertura a todo sentido que possa ser entendido, é porque a linguagem é a luz do próprio ser. É daí que surge a segunda grande tese de Gadamer: não apenas a realização do entendimento é uma expressão pela linguagem, como o objeto do entendimento é ele mesmo lingüístico. Esse é o sentido do famoso adágio de Gadamer: "0  ser que pode ser entendido é linguagem". Isso se aplica claramente aos textos, mas, segundo Gadamer, o mundo que eu entendo é sempre um mundo orientado para a linguagem. 0 mundo só se apresenta a mim "em linguagem”. Sempre. Essa parede, esse médico, essa angústia não se oferecem inicialmente a meu olhar como realidades físicas às quais acrescentarei depois designações. Não. 0 que vejo são uma parede, uma casa, e é uma angústia que me estrangula. Tudo o que pode ser entendi

Page 82: Jean Grondin - Hermeneuti CA

do é um ser que se articula em linguagem. Quando tento entender o que é determinada coisa, busco um ser que já é linguagem e que pode, então, ser entendido.

7 VM, 424; GW, 1,405.

GADAMER: UMA HERMENÊUTICA DO ACONTECIMENTO DO ENTENDIMENTO | 7 7

 

É fundamental ver que a insistência de Gadamer não recai sobre a expressão lingüística do mundo por um sujeito, como na concepção de Humboldt, que faz da linguagem uma "visão do mundo", ou na de Cassirer, que faz da linguagem uma "forma simbólica" de nossa apreensão do mundo. A ideia central de Gadamer é, mais fundamentalmente ainda, que é a linguagem que faz o ser do mundo aparecer, porque é ela que permite desdobrar a linguagem das próprias coisas. Dessa ma

neira, a linguagem encarna a "luz do ser”, na qual o ser  das coisas se dá a entender.

Muito marcados pelo pensamento moderno, os intérpretes nem sempre apreenderam bem o alcance dessa tese de Gadamer. Seu propósito não consiste em dizer que o real é sempre apropriado pela linguagem (que seria o real de uma língua ou de uma cultura histórica) e que, consequentemente, o ser propriamente dito seria in- cognoscível. Ao contrário, ele diz que é a linguagem que 

nos permite conhecer o sér das coisas. Gadamer critica severamente a ideia moderna (de Humboldt e de Cassirer, mas que remonta a Kant) segundo a qual o real nãoreceberia sua inteligibilidade a não ser de nossa linguagem, de nossa visão do mundo ou de nossas categorias.0 sujeito doador de sentido não se encontra "em face" de um mundo de objetos que seria inicialmente privado desentido e que só viria a receber sentido a partir de determinada linguagem. Gadamer denuncia aqui uma con

Page 83: Jean Grondin - Hermeneuti CA

cepção nominalista e instrumental da linguagem, que faz da linguagem um instrumento nas mãos do sujeito.

Gadamer sustenta que a linguagem já é a articulação do próprio ser das coisas; Não se trata de um instrumento

7 8 | H ER M EN ÊU TIC A

 

do qual dispomos. Trata-se, muito mais, do elemento universal no seio do qual se banham o ser e o entendimento. Esse elemento universal da dimensão lingüística — do sentido, do ser e do entendimento — habilita a herme

nêutica a alimentar uma pretensão de universalidade. Desse modo, a hermenêutica ultrapassa o horizonte de uma reflexão sobre as ciências humanas para vir a ser uma reflexão filosófica universal sobre o caráter lingüís

tico de nossa experiência do mundo e do próprio mundo.

Page 84: Jean Grondin - Hermeneuti CA

g a d a m e r : u m a h e r m e n ê u t i c a d o a c o n t e c i m e n t o d o b n t e n d i m e n t o | 79

Page 85: Jean Grondin - Hermeneuti CA

 

capítulo VI 

HERMENÊUTICAE CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS

I. A REAÇÃO METODOLÓGICA DE B e TTI

r T"^endo vindo a confirmar a posteriori sua con

cepção do trabalho da história, a hermenêu

tica de Gadamer suscitou vivas discussões fi

losóficas, que contribuíram para ressaltar seu sentido 

e alcance. A primeira reação proveio do jurista italiano 

EmilioJtetji (1890-1968), que apresentara uma con

cepção rigorosamente metodológica da hermenêutica 

em sua volumosa Teoria geral da interpretação  de 1955 

(Milão: Giuffrè Editori). Ela se situava na tradição de 

Schleiermacher e Dilthey, mas a síntese magistral de 

Betti era muito mais desenvolvida e hierarquizada do 

que os esboços de seus dois grandes antecessores. A 

Teoria generale   de 1.000 páginas, não há dúvida, foi 

bem pouco lida, mas Betti redigiu em alemão dois pan

fletos polêmicos nos quais resumia o essencial de seu 

Page 86: Jean Grondin - Hermeneuti CA

fletos polêmicos nos quais resumia o essencial de seu 

pensamento e que tiveram muito mais repercussão: 

a Fundação de uma teoria geral da interpretação,   de 1954, e o ensaio de 1962, A hermenêutica como meto

HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS | 8 1

 

dologia geral das ciências humanas1. No primeiro panfleto, ele ainda não está evidentemente se defrontando com Gadamer, mas Betti investe ali contra as doutrinas "heréticas" de Heidegger e de Bultmann, que querem ver no pré-entendimento uma condição da interpretação. Betti defende com ardor a doutrina clássica, segundo a qual o pré-entendimento é mais prejudicial que benfazejo ao correto entendimento. Ele censura Heidegger por ter invertido o vínculo teleológico natural entre a interpretação e o entendimento, fazendo da interpretação o desdobramento do entendimento.

0 ensaio de 1962 desfecha a primeira réplica importante contra Verdade e método, seguindo uma linha de ataque previsível, mas que permitirá a Gadamer definir o sentido de sua hermenêutica em suas respostas, especialmente no prefácio à 2a edição de Verdade e método  e em seu ensaio de 1965, "Hermenêutica e historicismo”2. Betti se concentra, especialmente, na concepção da aplicação defendida por Gadamer, censurando-o de confundir a significação (Bedeutung) de uma obra, ou seja, seu sentido original do ponto de vista de seu autor, com a "significância" (Bedeutsamkeit) que ela possa ter para o intérprete atual. Segundo ele, a tarefa essencial da hermenêutica não é aplicar um sentido ao presente, o que levaria ao subjetivismo, mas de reconstruir a intenção do autor. Betti condena a "meto

dologia hermenêutica” que Gadamer parecia estar propondo e que consistiria em se desfazer do método e em

Page 87: Jean Grondin - Hermeneuti CA

pondo e que consistiria em se desfazer do método e em

1 E. Betti, Zur Grundlegung einer allgemeinen Auslegungslehre, 1954, reed.: Tübingen: Mohr Siebeck, 1988; Die Hermeneutik ais allgemeine  Methodik der Geisteswissenschaften. Tübingen: Mohr Siebeck, 1988.2 Em H.-G. Gadamer, Vart de comprendre, 1.1.19 82, pp. 49-87.

8 2 | H ER M EN ÊU TIC A

 

se remeter a seus próprios pré-juízos. É claro, não há / dúvida, que.Betti pensava que Gadamer tinha a mesma concepção, metodológica, de hermenêutica que ele.

(Gadamer viu nessas críticas uma divergência com suas verdadeiras intenções. Seu objetivo não era propor uma nova metodologia — sobretudo, não a metodolo-

~giaque Betti lhe imputava! —, mas fazer uma j-eflexão 

sobre a experiência de verdade das ciências humanas / f| que busca justamente ultrapassar o quadro de uma  

metodologia, ainda excessivamente enfeudada nas ci

ências exatas. Ele atenuava o alcance da distinção entre a significação. foriginal) e ajsignificância (atual) de 

uma obra perguntando-se se a significação do passado  j podia realmente ser entendida independentemente do  j  sentido que ela tenha para nós e que adquiriu no de- /  correr do trabalho da história.

Mas foi outro o debate que contribuiu para se chegar 

a conhecer melhor a hermenêutica, o debate que opôs 

Gadamer a Habermas.

2. A CONTRIBUIÇÃO DE GA D AM ER  

s e g u n d o   H  a b e r m a s

No decorrer dos anos 1960, Jürgen Habermas (nascido em 1929) trabalhava em uma lógica das ciências sociais 

que, um pouco como Gadamer fizera com as ciências

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que, um pouco como Gadamer fizera com as ciências|

humanas, tentava justificar a contribuição de verdade  j

específica das ciências sociais. Sua magistral Lógica das i ciências sociais (1967) foi inicialmente um artigo publi-

HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS | 8 3

 

cado em uma revista editada por Gadamer, a Philoso-  phische Rundschau. Em 1961, aliás, sabendo que ele estava em posição vulnerável em Frankfurt, Gadamer aco

lheu o jovem Habermas sob sua proteção, confiando-lhe um lugar de professor na Universidade de Heildelberg.

ALógica das ciências sociais  assume a forma de uma lon

ga resenha crítica das principais contribuições à epis- . temologia das ciências sociais. Proveniente da: Escola^ ide FrankftnJra intenção de Habermas é mostrar que as ciências são animadas por um interesse de conheci

mento "emancipador" que as habilita a criticar a socie- ídade existente. Habermas está em luta especialmente contra os sociólogos que sucumbem a uma concepção puramente positivista de sua disciplina. Segundo eles, as ciências sociais teriam a ver com dados empíricos mensuráveis e seus resultados seriam desprovidos de 

qualquer interesse de conhecimento, porque isso poria em risco sua pretensão de objetividade. Em sua justi

ficativa do tipo de conhecimento das ciências sociais, Habermas pôde se inspirar em Gadamer, mas também  não deixou de criticá-lo. Como a crítica talvez tenha se tornado mais famosa que a solidariedade entre os dois pensadores, é necessário evocar seu acordo de base:

a. Habermas começa por se solidarizar inteiramente com a crítica gadameriana do "entendimento obje- tivista que as ciências humanas tradicionais têm e si mesmas":Se o homem de ciência procede a uma interpretação

Page 89: Jean Grondin - Hermeneuti CA

Se o homem de ciência procede a uma interpretação  

mantendo-se preso a seu ponto de partida hermenêu

tico, segue-se que a objetividade do entendimento não  

pode ser assegurada pela suspensão dos pré-juízos, mas

8 4 | H E RM E N ÊU TIC A

 

apenas por uma reflexão sobre o contexto histórico de 

tradições que desde sempre vincula os sujeitos cognos- 

centes a seus objetos3.

Daí Habermas extrai a lição de que o pesquisador social é implicado por seu objeto, do qual ele faz parte, e que ele só tem a ganhar ao tomar consciência dos pré-juízos,  segundo ele, emancipadores, que orientam sua pesquisa.

b. Habermas também aprendeu muito com a concepção gadameriana da linguagem. É claro que não se pode entender o ágir social fazendo abstração  da linguagem na qual o agir se articula, se entende, mas também se reflete sobre si mesmo. Mas há algo de mais importante ainda que ele descobriu em Gadamer, especialmente a ideia segundo a qual a linguagem não constitui um universo fechado, como na teoria wittgenstginiana dos "jogos de linguagem" (que Habermas criticará com o auxílio de Gadamer). A linguagem se encontra investida especialmente de uma capacidade a se transcender a si mesma. Prova disso é que sempre é possível traduzir  um conteúdo de sentido estrangeiro, como Gadamer o demonstrou. Desse modo, a linguagem pode se abrir a todos os horizontes de sentidos possíveis e superar os limites de um quadro lingüístico dado: "Os círculos lingüísticos não são mo- nadicamente fechados sobre si mesmos, mas po

rosos: abertos tanto para o exterior quanto para o

Page 90: Jean Grondin - Hermeneuti CA

rosos: abertos tanto para o exterior quanto para o interior"4. Para o exterior enquanto podem acolher

3 J. Habermas, La preténtion à 1'universalité de 1'herméneutique, in Logique des sciences sociales. Paris: PUF, 1987, pp. 245-246.4 Idem, ibidem, p. 190.

HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS | 8 5

 

todo conteúdo estrangeiro e traduzi-lo, mas também para o interior, na medida em que a linguagem é capaz de transcender suas próprias expressões, de matizá-las e de encontrar novas expressões para aquilo que quer ser entendido. Essa abertura atesta, aos olhos de Habermas, o  potencial de racionalidade  inerente à própria linguagem5. A razão, ele 

dirá posteriormente, assenta-se na linguagem na medida em que ela é capaz de se transcender a si 

mesma. Impressionante recepção —e aplicação! —

da hermenêutica gadameriana da parte de Habermas, mas que se duplica em uma crítica severa.

3. A c r í t i c a    a    G  a d a m e r    p o r   H  a b e r m a s

Mesmo que Gadamer tenha descoberto 0 potencial de 

 j uma “racionalidade comunicativa" capaz de vencer os 

limites de uma linguagem dada, ele teria comprometi

do 0 alcance de sua descoberta, segundo Habermas, ao 

defender que 0  entendimento se fundava na tradição ou no acordo preexistente que uma comunidade dada 

carrega. Ora, é possível transcender esse acordo pree

xistente por uma "crítica das ideologias". Seu propósito 

é justamente questionar a ideologia reinante em dada 

sociedade ou em um grupo como uma forma "sistemati

camente distorcida de comunicação", distorcida porque 

Page 91: Jean Grondin - Hermeneuti CA

camente distorcida de comunicação", distorcida porque 

desvia a comunicação de seu fim natural, que é 0 acor

do entre os interlocutores. Essa crítica é feita, então, em  nome de uma situação de comunicação ideal, irreal sem

5 Idem, ibidem, p. 185.

8 6 I HERM ENÊUTICA

 

dúvida, mas que não deixaria de ser antecipada em todo ato de fala, desde que acreditemos que o ato de fala é animado por uma vontade de comunicação. Assim como o psicanalista deve diagnosticar um bloqueio co- municacional em um paciente, o terapeuta social pode desmascarar o pseudoconsenso que dada sociedade ali

menta como uma forma de “falsa consciência". Mas ao pôr em questão o acordo preexistente em dada comu

nidade, sairíamos do campo da hermenêutica para en

trar no campo da "crítica das ideologias”. Afastando-se, graças ao trabalho de reflexão, do quadro da tradição,  ela elaboraria um sistema de referência normativo6 que lhe permitiria livrar-se da pertença irrefletida à tradi

ção: como o confirma, mais uma vez, a psicanálise, uma tradição trazida à consciência pela reflexão deixaria de nos determinar. Por isso Habermas critica Gadamer por "erigir as tradições culturais como absolutas"7.

Só quando consideramos a crítica de Habermas mais de perto é que nos damos conta de que ele também tenta pensar "com Gadamer contra Gadamer"8. Porque é exatamente a concepção gadameriana de linguagem e sua capacidade de autotranscendência que ele brande contra a concepção gadameriana da tradição.

Mas podemos realmente falar de uma absolutização 

das tradições culturais em Gadamer? Não estamos certos disso. Gadamer reconhece perfeitamente que é pos

6 Logique des sciences sociales, p. 215: "0 direito da reflexão reclama

Page 92: Jean Grondin - Hermeneuti CA

6 Logique des sciences sociales, p. 215: "0 direito da reflexão reclama a autolimitação da abordagem hermenêutica. Ele demanda um sistema de referência que ultrapasse o contexto da tradição enquanto tal".7 Ibidem, p. 218.8 Ibidem, p. 215.

HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS |8 7

 

sível transcender os limites, digamos "ideológicos”, de uma linguagem ou de uma situação determinada. Por sinal, não é esse o grande mérito que Habermas reco

nhece à concepção gadameriana de linguagem? Além 

disso, Gadamer já destacara em Verdade e método que a autoridade de uma tradição nada tinha de autoritário, 

mas que ela se baseava em um ato de reconhecimento e da razão9, por ser, antes de tudo, o reconhecimento 

de uma superioridade. Portanto, em Gadamer, não se 

trata de fazer da tradição um critério absoluto. Por si

nal, Gadamer o reiterou em sua resposta a Habermas, 

resposta evocadoramente intitulada "Retórica, herme

nêutica e crítica das ideologias": "Parece-me falso dizer que fazemos aqui da tradição cultural um absoluto"10.

A dissensão incide, especialmente, sobre a questão de 

saber se, ao transcender os limites de uma tradição  

dada em nome da crítica das ideologias, realmente saí-  \ mos do universo hermenêutico e se a tomada de cons

ciência de uma tradição pela reflexão suspende com

pletamente a determinação da tradição.

É incontestável que a reflexão frequentemente pode 

quebrar ou suspender a força de uma tradição "dis

torcida". Quando me dou conta de que sou vítima de 

um preconceito deformante, ele pode deixar de me paralisar a partir do momento em que é refletido. Mas

Page 93: Jean Grondin - Hermeneuti CA

9 VM, 300; GWl, 284.10 H.-G. Gadamer,  Herméneutique et philosophie.   Paris: Beauchesne, 1999, pp. 97-98, Ricoeur compreendeu perfeitamente (Temps et récit, t. 3, Paris: Le Seuil, 1985, p. 320): "Fazer das tradições uma avaliação positiva não é, ainda, fazer da tradição um critério hermenêutico da verdade".

8 8 | H ER M EN ÊU TIC A

 

Gadamer também reconhecia muito claramente isso quando escrevia que a tarefa crítica da hermenêutica era elaborar pré-juízos conformes à coisa11. Ocorre que a reflexão também não dissolve toda pertinência à tradição. A reflexão crítica de uma tradição inscreve-se em um trabalho da história. Não posso questionar uma tradição, exceto a partir de outra, mesmo que não me dê 

conta expressamente disso. 0 questionamento de uma tradição não se faz em virtude de um "sistema de referência”, que seria independente do trabalho da história.

Mesmo reconhecendo ser possível ultrapassar os limi

tes de uma tradição cultural, Gadamer duvida de que o abandono do acordo existente possa se fazer a partir do ponto de equilíbrio de uma crítica das ideologias que pretenda diagnosticar as "patologias” da sociedade. Essa transposição do modelo psicanalítico para as patologias de uma sociedade parece mais problemática aos olhos de Gadamer. 0 papel do psicoterapeuta é muito diferente do papel do sociólogo. Em uma cura psicanalítica, você está diante de um doente que solicita a reconhecida competência de um terapeuta. Mas não seria presunçoso da parte do investigador social pretender que uma parte da sociedade está radicalmente "doente” e se arrogar uma competência de "terapeuta social"? Temos aqui um paciente e uma competência terapêutica bem reconhecidos?

Não deixamos o universo hermenêutico quando nos , à crítica das ideologias. 0 ultrapass

Page 94: Jean Grondin - Hermeneuti CA

consagramos à crítica das ideologias. 0 ultrapassamen- to do acordo existente não se opera a partir do sistema

11 VM, 288, 298; GW1,272, 281-282.

HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS | 8 9

 

de referência de uma crítica das ideologias, segura de si mesma e se dizendo apartada da tradição, Ele se realiza sempre no seio do entendimento e do diálogo hermenêuticos, quando os participantes se dão conta de seus limites e chegam a uma melhor compreensão. Pelo fato de ser um “entendimento" e de se desdobrar em uma

i linguagem capaz de ser entendida, a reflexão resulta,1 então, uma vez mais, da hermenêutica e se inscreve em , um advir de tradições.

í 0 próprio Habermas se situa no seio de uma tradição,

i mais ou menos consciente e mais ou menos rompida  j pela reflexão. Aliás, o melhor modo de mostrá-lo é evo

car, com mais de uma geração de recuo, o contexto político e social que formava claramente o pano de fundo da crítica de Habermas, o da revolta estudantil de 1968  e seu questionamento cego de toda autoridade baseada na tradição. Em um contexto político tão pesado, Gadamer só podia aparecer como o "conservador” (que ele jamais quis, nem pretendeu ser], enquanto Habermas, evocando a força emancipadora da crítica marxista das ideologias e da psicanálise, outorgava-se o belo papel do progressista. A ironia, gritante quando se pensa nisso, era a seguinte: aquele que defendia com mais ardor o ponto de vista da crítica das ideologias talvez fosse aquele cujo discurso era o mais evidentemente ideo- logizado. Como Gadamer murmurou bem mais tarde, 

■o que talvez faltasse à crítica das ideologias fosse uma 

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■o que talvez faltasse à crítica das ideologias fosse uma pequena dose de crítica das ideologias12, começando pelas próprias.

12 Entrevista com C. Barkhausen, em Sprache und Literatur in Wissens- chaft und Unterricht. Paderborn: W. Fink, 19 86, p. 97.

9 0 | H ERM EN ÊU TIC A

 

Habermas terá reconhecido isso a sua maneira. Depois 

de seu épico debate com Gadamer, ele foi renunciando cada vez mais à retórica da crítica das ideologias e a 

sua ideia de uma psicanálise ampliada à ordem social, dedicando todos os seus esforços à elaboração de uma 

Teoria do agir comunicativo (1981), cujo núcleo é uma ética do discurso fundada na capacidade da linguagem 

de se transcender a si mesma. Intuição hermenêutica, se é que existe alguma, visto que ela repousa na ideia gadameriana segundo a qual a linguagem visa primei

ramente o acordo com o outro. Ora, intenção de acordo, 

defende Habermas com razão, é impensável sem determinado engajamento ético da parte dos interlocutores: 

ela pressupõe, efetivamente, certo ideal de reciprocidade, de autenticidade e uma vontade de se render à força 

do melhor argumento. Ao deixar de buscar fundar es

sas normas em uma crítica das ideologias ou na antecipação de uma situação de comunicação ideal, mas sim no uso pragmático da linguagem, podemos dizer que o 

último Habermas se reaproximou de Gadamer.

Page 96: Jean Grondin - Hermeneuti CA

HERMENÊUTICA E CRÍTICA DAS IDEOLOGIAS |9 1

Page 97: Jean Grondin - Hermeneuti CA

 

capítulo VII -----  —■vs**

PAUL RICGEUR:UMA HERMENÊUTICA

DO SI HISTÓRICO DIANTEDO CONFLITO

DAS INTERPRETAÇÕES

i . U m  p e r c u r s o  a r b o r e s c e n t e

"'yX V ada mais injusto do que abordar a contri- 

buição de Ricceur depois das contribuições 

J l . n de Gadamer e de Habermas. Se decidimos 

fazer assim, é unicamente porque Ricceur fundou uma de suas intervenções hermenêuticas sobre uma tenta

tiva de conciliação dos pensamentos de Gadamer e de 

Habermas1. Mas ele vinculava o conflito entre a herme

nêutica e a crítica das ideologias a uma distinção entre 

dois tipos de hermenêutica, a hermenêutica da confian

ça e a hermenêutica da suspeita, que distinguira muito 

Page 98: Jean Grondin - Hermeneuti CA

ãntes do célebre confronto entre Gadamer e Habermas.

1 Herméneutique et critique des idéologies (1 973), in Du texte à l'ac- tion [TA], Paris: Le Seuil, 1986.

p a u l  r i c c e u r  : u m a   h e r m e n ê u t i c a   d o   s i  h i s t ó r i c o   | 93

 

A ideia de Ricceur, e talvez a ideia fundamental de sua hermenêutica, é que é preciso penxsar coniuntamente 

essas, duas hermenêuticas, aquela que se apropria do sentido tal qual eíe se dá à consciência na expectativa de orientação e aquela que se distancia da experiência imediata do sentido para reconduzi-la a uma economia mais secreta.

Ricoeur chegou a essa ideia seguindo uma trajetória bem distinta da trajetória de Gadamer. Ela é até mesmo completamente independente da de Gadamer. Seus fundamentos foram lançados nas obras publicadas no correr dos anos 1950 e 1960, como A filosofia da vontade (1950, 1960), Da interpretação  (1965) e 0 conflito das interpretações (1969), nas quais a presença de Gadamer não é de todo sensível. Por sinal, ela permanecerá muito discreta nas obras posteriores de Ricoeur. Contudo, todos os dois haurem da mesma tradição hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey, Bultmann e Heidegger, mas em graus diferentes e com intenções diferentes. Gada

mer é certamente muito mais crítico de Dilthey e mais próximo de Heidegger, com sua hermenêutica universal tentando ultrapassar o paradigma metodológico da hermenêutica. Ricoeur, por sua vez, jamais quis se afastar da problemática metodológica e epistemológica da hermenêutica. Poderíamos, então, dizer que ele está mais próximo de Dilthey, mas isso seria uma simplificação.

Realmente, o percurso de Ricoeur é muito mais complexo que isso, procedendo de outras fontes e talvez resistindo 

Page 99: Jean Grondin - Hermeneuti CA

que isso, procedendo de outras fontes e talvez resistindo mais a se deixar reduzir apenas à tradição hermenêutica 

do que o percurso de Gadamer. Seu trajeto se desenvol

veu no fio de vários grandes livros, que se estendem por

9 4 | H ER M EN ÊU TIC A

 

um período de quase sessenta anos, de 1947 a 2004, en

quanto a hermenêutica de Gadamer concentra-se em um único livro, que apresenta uma teoria mais sistemática e 

que talvez tenha dado origem a debates hermenêuticos mais expressivos que a de Ricoeur. As obras de Ricoeur se 

interessam por uma florescente diversidade de discipli

nas: filosofia da existência — de onde ele partiu e onde 

estava mais perto de autores como Gabriel Mareei e Karl 

Jaspers do que de Heidegger —, teoria do conhecimen

to histórico, interpretação da Bíblia, psicanálise, teoria lingüística, teoria da ação, fenomenologia do tempo, fe- 

nomenologia da memória e do reconhecimento, teoria da narrativa e ética. Em cada um de seus livros, Ricoeur 

esboça vastos afrescos históricos que tentam reconci

liar as abordagens mais diversas. Esse é o traço secre

tamente "hegeliano" desse pensamento, que, contudo, 

resiste à ideia de uma síntese totalizante (um título de um importante capítulo de Tempo e narrativa dirá que é preciso "Renunciar a Hegel" em nome do inacabamento 

da vida e da finitude humana). O oposto dessa riqueza é que, por vezes, pode parecer difícil delimitar o núcleo de 

sua concepção hermenêutica. A unidade é o único pro

blema suscitado por esse pensamento hermenêutico. Problema, porém, completamente relativo, porque ele é 

o resultado de uma superabundância.

Mas há unidade nesse pensamento. E como! Podemos compreendê-la a par do lsos do per

Page 100: Jean Grondin - Hermeneuti CA

compreendê-la a partir dos primeiros impulsos do percurso de Ricoeur. Eles devem ser buscados na tradição francesa da filosofia reflexiva, aquela que remonta a Ravaisson, Lachelier e Bergson e que é continuada por autores próximo a Ricoeur como Nabert e Marcel. A fi-

P AU L r i c c e u r  : u m a   h e r m e n ê u t i c a   d o   s i   h i s t ó r i c o   | 95

 

losofia reflexiva parte da autorreflexão do ego, na tradição do "conhece-te a ti mesmo" de Sócrates e das meditações de Descartes. Essa tradição logo atraiu Ricoeur para o existencialismo de Jaspers e a fenomenologia de Husserl, curvada sobre um "ego transcendental" que busca justificar sua experiência.

Encantado pela filosofia da existência e sua radicalização da problemática ética, dado que o sujeito é pensado por ela como tarefa de si mesmo, Ricceur começou querendo ampliar a análise fenomenológica de Husserl ao fenômeno da vontade, na primeira parte de sua Filosofia da vontade (1950). A hermenêutica está ausente dessa obra, mas surge com toda a força no segundo tomo, Fi- nitude e culpabilidade  (1960) e mais especialmente no segundo volume do livro dedicado à Simbólica do mal. É aqui que se desencadeia sua "virada hermenêutica” ou aquilo que mais tarde virá a ser chamado de seu "enxerto da hermenêutica na fenomenologia".

Seu motivo fundamental é que o ego não pode se conhecer diretamente, por introspecção, ele não pode se entender, exceto pela via indireta da interpretação dos grandes símbolos (Adão e Eva, Jó, o orfismo etc.) que se esforçam para dar um sentido ao problema do mal. Segundo aquilo que Ricoeur mais tarde veio a chamar de sua "primeira definição da hermenêutica", ela 

era à época "expressamente concebida como uma de- 

cifração dos símbolos, eles mesmos entendidos como 

expressões de duplo sentido"2. Nessa perspectiva, a in

Page 101: Jean Grondin - Hermeneuti CA

expressões de duplo sentido"2. Nessa perspectiva, a in

terpretação é "o trabalho de pensamento que consiste

2 P. Ricoeur, Refléxion faite. Autobiographie intellectuelle, Esprit, 1995,31.

9 6 | H ER M EN ÊU TIC A

 

em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em 

desdobrar os níveis de significação implicados na significação literal"3.

Esse é o primeiro sentido de seu "desvio hermenêuti

co", bem diferente do desvio de Heidegger e de Gada

mer. Se o desvio pelo lado "objetai" das experiências 

lhe foi inspirado por Nabert4, o termo hermenêutica 

remete a Dilthey e a Bultmann, para os quais a herme

nêutica era a teoria da interpretação das manifestações vitais fixadas por escrito.

É claro que Ricoeur não desconhecia que Heidegger 

tinha querido suplantar  Dilthey, mas ele sempre quis 

resistir à "ontologização" heideggeriana da hermenêu

tica, ou seja, à confusão entre a hermenêutica e a rea

lização fundamental da existência. Segundo ele, essa 

"veemência ontológica" perderia de vista a orientação 

epistemológica e, consequentemente, crítica, da hermenêutica de Dilthey5.

2. U m a   f e n o m e n o l o g i a  

TORNADA HERMENÊUTICA  

Apesar de sua resistência à hermenêutica de Heidegger, o próprio Ricoeur defende a ideia de uma "virada 

hermenêutica" da fenomenologia. Mas com um sentido

Page 102: Jean Grondin - Hermeneuti CA

hermenêutica" da fenomenologia. Mas com um sentido

3 P. Ricoeur, Le conflit des interprétations. Paris: Le Seuil, 1969, p. 16.4 P. Ricoeur, Parcours de la reconnaissance. Paris: Stock, 2004, p. 142.5 P. Ricoeur, TA,  95. Ver J. Greisch, Paul Ricoeur. Uitinérance du sens, Grenoble: Jérôme Millon, s.d., p. 140.

PAUL RICCEUR: UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO | 9 7

 

diferente daquele que tem em Heidegger. Essa virada se justifica, em Ricoeur, a partir da impossibilidade de um acesso direto aos fenômenos e ao próprio ego. A seus olhos, "o que a hermenêutica arruinou não foi a fenomenologia, mas uma de suas interpretações, a saber, sua interpretação idealista pelo próprio Husserl"6. 0 que a hermenêutica arruinou foi mais especialmente:

a. o ideal husserliano de cientificidade, orientado para uma fundamentação última;

b. a primazia da intúição como via de acesso aos fenômenos;

c. o primado cartesiano e husserliano de uma ima- nência do sujeito a si mesmo;

d. o estatuto de princípio último que, então, se reconhece ao sujeito;

e. a concepção ainda excessivamente teórica da au- 

torreflexão no seio da fenomenologia husserliana: dado o ato imediatamente responsável de si, a tomada de consciência do sujeito desenvolve implicações éticas, que a seqüência do percurso de Ricoeur aprofundará cada vez mais.

Contra o pano de fundo dessa crítica, Ricoeur propõe desenvolver, por sua vez, uma fenomenologia hermenêutica que tome o caminho das objetivações como o desvio obrigatório para o conhecimento de si. Notemos que a hermenêutica vem aqui qualificar a fenomeno

logia. Era um pouco o contrário em Gadamer, que pro

Page 103: Jean Grondin - Hermeneuti CA

logia. Era um pouco o contrário em Gadamer, que propunha uma hermenêutica fenomenológica, isto é, uma hermenêutica que retornava ao fenômeno do entendi

6 TA, 39.

9 8 | H ER MEN ÊU TIC A

 

mento aliviando-o de seu jugo metodológico. Podemos, então, falar, em Ricceur, de uma virada hermenêutica da fenomenologia e, em Gadamer, de uma virada feno- menológica da hermenêutica7.

Mesmo que Ricoeur insista na inflexão hermenêutica da fenomenologia, não se deveriam esquecer, segundo 

ele, os pressupostos ainda fenomenológicos da her

menêutica. O primeiro é que "toda questão incidente sobre um ente qualquer é uma questão sobre o sentido desse ente". Mas esse sentido está, à primeira vista, dissimulado, opaco, e deve ser trazido à luz por um es

forço hermenêutico. "A escolha do sentido é, então, o pressuposto mais geral de toda hermenêutica". Só que isso "não implica, de maneira alguma, que uma subje

tividade transcendental tenha o soberano domínio do sentido rumo ao qual ela se dirige. Ao contrário, a fenomenologia [pode] ser empurrada na direção oposta, a saber, para o lado da preeminência do sentido sobre a consciência de si"8. 0 segundo pressuposto fenomeno- lógico é que a hermenêutica deve justificar a experiên

cia do "distanciamento": se a consciência se caracteriza inicialmente por sua pertença ao sentido, esse sentido pode ser posto à distância e interpretado. 0 terceiro pressuposto é que a hermenêutica reconhece, como Husserl, o caráter derivado da ordem lingüística, com relação aos sentidos e às coisas. Aqui, Ricoeur parece se afastar de Gadamer. Mas isso não é completamente ver

dadeiro, porque Gadamer também defendia, para falar

Page 104: Jean Grondin - Hermeneuti CA

dadeiro, porque Gadamer também defendia, para falar

7 Ver meu estudo sobre essa questão em Le tournant herméneutique de la phénoménologie. Paris: PUF, 2003 , pp. 84 -102 .8 TA, 57.

PAUL RICCEUR: UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO | 9 9

 

como Habermas, a ideia de uma "porosidade" essencial da linguagem, aberta a toda coisa e capaz de se trans

cender a si mesma. Ricoeur chega à conclusão de que a ordem lingüística não é autônoma e de que ela remete  a uma experiência de mundo. Mas essa experiência só se dá por meio de uma hermenêutica que se dedica à interpretação das objetivações de sentido.

3. O CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES:

 A HERMENÊUTICA DA CONFIANÇA E DA SUSPEITA 

Mas como interpretar as objetivações de sentido? Essa 

era um pouco a questão da hermenêutica clássica e 

será a questão de Ricoeur. Podemos nos abandonar à 

imediatidade dò sentido tal como ela se dá, segundo 0

que parece ser a orientação fundamental da exegese 

bíblica e que Ricoeur ainda seguia na virada hermenêu

tica de Simbólica do mal de 1960? Se a questão se apre

senta com tamanha acuidade, é porque Ricoeur, depois 

de ter concluído essa obra, viu-se confrontado com ou

tras interpretações, mais redutoras, que questionam justamente a leitura ingênua do sentido. Foi assim que 

vieram a se destacar duas formas distintas de interpre

tação aparentemente incompatíveis:

a. A primeira provém de uma hermenêutica da con fiança  ou da "recolecção do sentido”: ela assume 0

sentido tal como se propõe ao entendimento e tal 

Page 105: Jean Grondin - Hermeneuti CA

sentido tal como se propõe ao entendimento e tal 

como ele orienta a consciência, sentido no qual se 

revela uma verdade mais profunda e que pertence  a uma hermenêutica amplificadora a explorar. Ri-

1 0 0 | H ER M EN ÊU TIC A

 

coeur fala aqui de uma teleologia do sentido. Essa hermenêutica, cujos paradigmas são a exegese bí

blica e a fenomenologia da consciência, está votada ao entendimento do sentido, ao sentido pleno que Dilthey lhe dava: ela se abre às possibilidades de 

sentido e à experiência que se dá a entender para  

além das expressões, 

b. A ela vem, contudo, se opor uma hermenêutica da suspeita, que desconfia do sentido tal como ele se 

oferece, porque ele pode abusar da consciência. 0  

que aparece como verdade pode não passar de um 

erro útil, de uma mentira ou de uma deformação, 

cuja arqueologia subterrânea a hermenêutica da 

suspeita se propõe reconstruir. Essa arqueologia 

pode ser ideológica, social, pulsional e estrutural. 

É uma hermenêutica defendida pelos "mestres da 

suspeita": Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud e o 

estruturalismo. À hermenêutica amplificadora, te- 

leológica, da confiança vem responder uma inter

pretação redutora, consagrada não ao entendimen

to, mas à explicação dos fenômenos da consciência, 

reconduzidos a uma economia secreta e recalcada 

que se inspira claramente em modelos de explica

ção extraídos das ciências exatas.

Por ser proveniente da filosofia reflexiva e do existen- cialismo, poderíamos suspeitar de que Ricoeur está mais próximo da fenomenologia e da hermenêutica da con

Page 106: Jean Grondin - Hermeneuti CA

próximo da fenomenologia e da hermenêutica da con

fiança. Mas esse não é o caso. Em seus livros dos anos 

1960, realmente ele se dedicou aos mestres da suspeita, especialmente a Freud, em Da interpretação (1965), e ao estruturalismo em O conflito das interpretações  (1969).

PAUL RICCEUR: UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO | 1 0 1

 

Ricoeur preconiza nessas obras uma abordagem extraordinariamente conciliatória, que não renega nada da hermenêutica redutora da suspeita. Sua ideia diretriz é que é preciso ir à escola da suspeita se se quiser destruir as ilusões da consciência ingênua. Essa destruição se apresenta como salutar para a consciência, que chega então a se entender melhor a si mesma. Se o eu se perde na hermenêutica da suspeita, é justamente para melhor se reencontrar, libertado de suas ilusões.

Ao reconhecer, desse modo, iguais direitos às duas grandes estratégias interpretativas, Ricceur dá prova de conservar um sentido aguçado das "objetivações" e das "construções de sentido” que é preciso interpretar. É isso o que leva a resistir à tentativa heideggeriana de subordinar tudo a uma hermenêutica ontológica do entendimento9, bem como à tentativa gadameriana de questionar a primazia da perspectiva metódica. Para Gadamer, entender não é se encontrar diante de uma  objetivação que é necessário decodificar, é ser-tomado, é ser-habitado pelo sentido. Gadamer falava desde então de uma fusão entre o sentido e aquele que o entende. É esse evento de entendimento que a hermenêutica devia se esforçar para justificar. Ricceur desconfia, por sua vez, dessa fusão e começa situando o entendimento diante das objetivações, que as abordagens objetivan- tes da psicanálise e do estruturalismo viriam nos ajudar a decodificar. Mas não seriam elas a deter a última 

Page 107: Jean Grondin - Hermeneuti CA

palavra, porque é sempre uma consciência que tenta se entender melhor. Seguindo a divisa de Ricoeur nessa época: "Explicar mais é entender melhor".

9 TA, 33.

1 0 2 | H ER M EN ÊU TIC A

 

4* U m a n o v a h e r m e n ê u t i c a

DA EXPLICAÇÃO E DO ENTENDIMENTO,  

INSPIRADA NA NOÇÃO DE TEXTO

Desse modo, Ricoeur renova a compreensão da distin

ção feita por Dilthey entre a explicação das ciências exatas e o entendimento das ciências humanas. Mas 

não se trata exatamente de uma distinção metodológi

ca em Ricoeur entre dois tipos de ciência, mas sim de 

duas operações complementares da consciência naqui

lo que ele chamará sempre mais de "arco hermenêutico 

da interpretação", ou seja, o conjunto das operações en

trelaçadas que compõem o esforço hermenêutico. Uma consciência crítica deve desconfiar da evidência ime

diata do sentido que ela entende e da qual se apropria 

naturalmente. Ela deve aceitar que esse sentido possa 

ser posto à distância pelo desvio decapante de uma ex

plicação que denuncie as ilusões da consciência.

Compreende-se perfeitamente que Ricoeur tenha que

rido associar Habermas a uma hermenêutica do dis

tanciamento e Gadamer a uma hermenêutica da per

tença. Sob essas novas designações, reconhecemos sem 

esforço as hermenêuticas da suspeita e da confiança: se 

Gadamer acentua a pertença do entendimento ao sen

tido transmitido pela tradição, a crítica das ideologias põe em guarda contra a ideologização que essa com

preensão talvez encerre. A consciência hermenêutica, logo a consciência refletida segundo Ricoeur, não pode

Page 108: Jean Grondin - Hermeneuti CA

logo a consciência refletida segundo Ricoeur, não pode

ria se permitir ignorar as lições de uma hermenêutica da desapropriação. Uma consciência desapropriada de 

suas ilusões não se apropria melhor de si mesma?

PAUL RICCEUR: UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO | 1 0 3

 

Ao aprofundar essa didática do explicar e do entender, um tema novo veio à luz no itinerário de Ricceur no início dos anos 1970, tema que podemos associar à noção de texto. Ele levou a uma ampliação de sua primeira concepção da hermenêutica: a hermenêutica não estará mais voltada apenas para a decifração dos símbolos de duplo sentido, ela terá a ver com todo o conjunto de sentidos capaz de ser entendido e que podemos chamar de um "texto"10. Mas como interpretar os textos? Aqui, 

mais uma vez, Ricceur foi muito marcado pelas abordagens estruturais e semióticas (especialmente a de Grei- mas), que consideram o texto como uma unidade autor- referencial, encerrada sobre si mesma. Levar em conta 

essas interpretações encarna, aos olhos de Ricoeur, a primeira etapa necessária no arco da interpretação:

Uma nova época da hermenêutica se abriu com o suces

so da análise estrutural: a explicação é, a partir de então, 

o caminho obrigatório do entendimento11.

Mas a análise estrutural não seria a única. É que o mun

do de um texto nunca é fechado sobre si mesmo, ele abre um mundo que a consciência pode habitar. A noção de texto remete, aliás, por si mesma, a um ato de leitura pelo qual o mundo do texto se vê apropriar por um leitor que, dessa maneira, vem a se entender melhor. A partir de então, é na leitura que se realizará a hermenêutica amplificadora do sentido: 1

Page 109: Jean Grondin - Hermeneuti CA

A interpretação de um texto se realiza na interpretação  

de si de um sujeito que doravante se entende melhor, se

10 P. Ricoeur, Qu’est-ce qu’un texte?, TA, 137-159.11 TA, 110.

1 0 4 | H ER M EN ÊU TIC A

 

entende de outro modo, ou até mesmo começa a se en

tender12.

A tarefa essencial da hermenêutica será, portanto, dupla: trata-se de

reconstruir a dinâmica interna do texto [e de] restituir a 

capacidade da obra de se projetar para fora na represen

tação de um mundo que eu poderia habitar13.

Essa dialética da explicação que põe à distância e do entendimento que o mundo do texto desdobra leva a uma concepção mais ampla da hermenêutica:

A dialética nova enfrentava duas operações [o explicar e o 

entender] que W. Dilthey opusera fortemente no começo 

do século. Ora, o tratamento dessa situação conflitual pro

vocava um remanejamento de minha concepção anterior 

da hermenêutica, que permanecera até então solidária 

com a noção de símbolo, entendida como expressão de du

plo sentido, e encontrara seu estilo conflituoso na concor

rência entre interpretação redutora e interpretação ampli- 

ficadora. A dialética entre explicar e entender, desdobra

da no nível do texto enquanto unidade maior que a frase, 

tornava-se a grande questão da interpretação e constituía, 

a partir de então, o tema e a aposta da hermenêutica14.

Em Do texto à ação, Ricoeur passa a adotar a seguinte 

definição da hermenêutica: ela é a teoria das operações 

do entendimento em sua relação com a interpretação dos textos15.

Page 110: Jean Grondin - Hermeneuti CA

12 TA, 152.13 TA, 32.14 Réflexion faite, 49.15 TA, 75.

PAUL RICCEUR: UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO | 1 0 5

 

Aqui, o que mais fascinou Ricoeur foi a extensão quase infinita de que se pode beneficiar a noção de "texto".Tudo o que é capaz de ser entendido pode ser consi

derado como um texto: não apenas os escritos, claro, 

mas também a ação humana e a história, tanto indivi

dual quanto coletiva, só são compreensíveis na medida 

em que possam ser lidas como texto. A ideia que de

corre daí é que o entendimento da realidade humana é 

construído por meio dos textos e das narrativas. Desse 

modo, a identidade humana deve ser entendida como uma identidade essencialmente narrativa. A teoria da 

narrativa histórica, desenvolvida nos anos 1980, per

mitirá contribuir com uma nova resposta à pergunta diretriz de toda filosofia reflexiva: quem sou eu?

5. A HERMENÊUTICA   

DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA  

Ricoeur diz muito frequentemente que o si que se des

taca das hermenêuticas da suspeita e do distanciamen

to é muito certamente um cogito  quebrado. Ele deve 

renunciar ao ideal de uma transparência integral, mas 

não pode se entender a partir de objetivações de senti

do, de grandes "textos", literários, filosóficos e religio

sos, transmitidos pela história da humanidade e nos quais se configura sua experiência radical da tempora-

Page 111: Jean Grondin - Hermeneuti CA

quais se configura sua experiência radical da tempora- 

lidade. Foi em Tempo e narrativa (1982-1985) que Paul 

Ricoeur apresentou essa nova concepção de hermenêu

tica. Ela se situa em continuidade com a nova ampli

dão que ele reconheceu à noção de texto (e de leitura)

1 0 6 | H ER M EN ÊU TIC A

 

em sua hermenêutica do explicar e do entender, mas se encontra mais diretamente posta a serviço de uma 

fenomenologia de nossa temporalidade essencial: o si não pode dar um sentido a sua experiência radical 

e insuperável do tempo, exceto pela interpretação da configuração narrativa. 0 "si quebrado" e que se sabe 

tal pode então se dar conta de suas modestas, mas 

reais "capacidades" de reconfigurar seu próprio mun

do. A hermenêutica narrativa de Ricceur enfatizará co

rajosamente os dois aspectos: o caráter trágico da con

dição humana, que nunca alcançará um entendimento 

totalizante de si mesma, mas igualmente a resposta do 

homem a essa aporia, a parte de iniciativa que compete a ele, apesar de tudo, enquanto homem capaz.

No último volume de Tempo e narrativa,  os dois mo

mentos se entrecruzam em uma "hermenêutica da 

consciência histórica". A fórmula evoca Gadamer e sua 

ideia de uma hermenêutica da consciência do trabalho da história. Ricoeur reconhece a Gadamer justamente o 

mérito de ter insistido no "ser-afetado-pelo-passado": 

"Não somos os agentes da história, somos apenas seus 

pacientes", porque "nós nunca estamos na posição ab

soluta de inovadores, mas sempre e em princípio na si

tuação de herdeiros”. Essa condição provém inicialmen

te, como em Gadamer, de nossa condição lingüística: 

“A linguagem é a grande instituição —a instituição das 

instituições — que sempre nos precedeu a todos". En

quanto seres falantes, somos não apenas dependentes 

Page 112: Jean Grondin - Hermeneuti CA

do sistema da língua, sobre o qual insistem as abordagens estruturais, mas também das "coisas já ditas, entendidas e recebidas”. 0 mundo tal qual o experimen

PAUL RICCEUR: UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO | 1 0 7

 

tamos é, portanto, um mundo que se exprime em uma linguagem e por meio de uma identidade histórica que são recebidos antes. É por isso que, diz agora Ricoeur, "o distanciamento, a liberdade em relação aos conteúdos transmitidos não podem ser a atitude primeira”16. Aqui, Ricoeur se aproxima muito de Gadamer, aliás, talvez mais do que em qualquer outra parte de sua obra.

Todavia, mais uma vez, ele está menos preocupado em conter a distância metódica, objetivante, do que em integrá-la à hermenêutica da consciência histórica. Segundo Ricceur, o próprio Gadamer teria reconhecido a necessidade dessa integração, quando insistiu na noção de aplicação e na ideia de que o entendimento era sempre o resultado de uma fusão de horizontes entre o passado e o presente. 0 presente tem uma palavra a dizer no acontecimento de tradição que é o entendimento, mas se trata de uma resposta que se esboça contra o pano de fundo de um pertencimento primordial. Nessa altura, Ricoeur classifica de "lamentável"17 a polêmica que opusera a hermenêutica à crítica das ideologias. Ocorre que as posições de Gadamer e as de Habermas procederiam de "dois lugares diferentes", a reinterpre- tação dos textos recebidos da tradição em um e a crítica das formas ideológicas de comunicação distorcida no outro. Não se poderia, então, superpor, sem mais, o que Gadamer chama de pré-juízo, no sentido de pré- 

-juízo favorável, e o fenômeno ideológico que interessa a Habermas, isto é, a distorção da comunicação.

Page 113: Jean Grondin - Hermeneuti CA

16 Temps et récit, t. iii, 31 3 ,3 2 0 ,32 1 , 324.17 Temps et récit, t. iii, 314. Ricoeur sopesa então o juízo que fizera em 1973, quando falava de uma dialética essencial entre a hermenêutica e a crítica das ideologias.

1 0 8 | H ER M EN ÊU TIC A

 

Desse modo, se nós somos os herdeiros da tradição, a . identidade narrativa que herdamos da história nunca é 

estável nem fechada. Ela também depende da respos

ta que nós podemos lhe dar. A insistência recai aqui na capacidade de resposta e de iniciativa que a distingue. 

0 que se descobre aqui é a dimensão ética do homem 

capaz. Esse será o último ponto central das reflexões hermenêuticas de Ricceur. A pergunta da filosofia refle

xiva “quem sou eu?" dará lugar à pergunta não menos hermenêutica que ética: "Que posso eu?”

6. U m a    f e n o m e n o l o g i a  

HERMENÊUTICA DO HOMEM CAPAZ

Não somos apenas os herdeiros passivos da histó

ria. Um espaço de iniciativa nos está reservado. Uma 

hermenêutica da consciência histórica deve, dessa forma, levar a uma fenomenologia dos poderes do 

homem capaz. Ao desenvolver uma filosofia her

menêutica da ipseidade, o último Ricceur reata com aquilo que ele chama uma de suas "mais antigas con

vicções", a saber:

0 si do conhecimento de si não é o eu egoísta e narcísico  

cuja hipocrisia e ingenuidade foram denunciadas pelas  

hermenêuticas da suspeita (...) O si do conhecimento de 

si é o fruto de uma vida examinada, segundo a palavra de 

Page 114: Jean Grondin - Hermeneuti CA

si é o fruto de uma vida examinada, segundo a palavra de 

Sócrates na Apologia. Uma vida examinada é, em grande 

medida, uma vida depurada, esclarecida, pelos efeitos  

catárticos das narrativas tanto históricas quanto fictícias 

veiculadas por nossa cultura. Dessa maneira, a ipseidade

PAUL RICOEUR: UMA HERMENÊUTICA DO SI HISTÓRICO | 1 0 9

 

é a de um si instruído pelas obras da cultura que ele se 

aplicou a si mesmo18.

A identidade narrativa variará, portanto, de acordo com as comunidades, mas também segundo os indivíduos. Nos dois casos, o si pode reconfigurar, em certa medi

da, sua identidade narrativa. Em sua fenomenologia do homem capaz, cujas grandes linhas ele evocou em seu Percurso do reconhecimento, publicado um ano antes de sua morte, Ricoeur parte dos principais usos segundo os quais se diz "eu posso"19: "Eu posso falar, eu posso agir, eu posso contar, eu posso me responsabilizar por meus 

atos, permitir que eles me sejam imputados como seu verdadeiro autor". Esses quatro usos abrem, respectiva

mente, os campos da filosofia da linguagem, da filosofia 

da ação, da teoria narrativa e da filosofia moral.

Mas o título geral do projeto filosófico de Ricoeur con

tinua a ser o de uma "hermenêutica do si"20. A fórmula 

chega quase a lembrar a ideia heideggeriana de uma hermenêutica da facticidade. Isso porque aqui a hermenêutica não incide mais sobre símbolos ou textos, se

gundo as duas primeiras concepções da hermenêutica de Ricoeur, mas incide sobre o próprio si. A hermenêutica assume aqui a forma de uma "ontologia fundamen

tal” que dá preferência às noções de ato, de potência e 

de possibilidade, diferentemente da acepção substan- 

cialista que teria prevalecido na filosofia clássica21. A

Page 115: Jean Grondin - Hermeneuti CA

18 Temps et récit, t. iii, p. 356.19 Parcours de la reconnaissance. Paris: Stock, pp. 137-163.20 Soi-même comme un autre. Paris: Le Seuil, 1990, p. 345; Parcours de la reconnaissance, p. 137.21 La mémoire, 1'histoire etVoubli, p. 639.

1 1 0 | H ER ME NÊ UT IC A

 

essa altura, Ricceur parece atenuar a crítica à veemência "ontológica" que ainda caracterizava suas primeiras intervenções hermenêuticas. Se a ontologia é para Heidegger um ponto de partida, ela será para Ricceur um ponto de chegada.

Podemos ver nessa ontologia hermenêutica do homem capaz o completamento de todo o percurso de Ricoeur, assim como um retorno à problemática reflexiva desencadeado por seu "desvio pela hermenêutica". Essa hermenêutica do si vem lembrar utilmente que o ser- -afetado-pelo-passado, no qual Gadamer insistira, não é a única determinação da consciência. 0 homem, ser de possibilidades, pode reconfigurar seu mundo (assim como seu passado, pela memória, pelo perdão, 

pelo reconhecimento). Tendo tirado lições essenciais da escola da suspeita, essa hermenêutica abandona de uma vez por todas a falsa ilusão de uma plena posse de si pela reflexão, mas essa destruição não poderia conduzir a uma resignação fatalista diante do destino implacável do trabalho da história. Ao contrário, ela nos ajuda a redescobrir os recursos éticos do "si capaz" diante do mal e da injustiça reais que o rodeiam.

0 alcance ético dessa hermenêutica do si cai sob o sen

tido. Por sinal, Si mesmo como um outro desenvolveu uma "pequena ética”22, que se empenha em delimitar a tensão ética fundamental ao dizer que ela se caracteriza pela "intenção da vida boa com e para os outros em 

instituições justas". Mas esse senso da justiça e da vida 

Page 116: Jean Grondin - Hermeneuti CA

boa não cai do céu. Enquanto seres históricos, somos

22 Soi-même comme un autre, p. 202.

PAUL RICOEUR: UMA HERMEN ÊUTICA DO SI HISTÓRICO | 1 1 1

 

os herdeiros de promessas fundadoras23, portanto, de esperanças, das quais a hermenêutica do si pretende ser a memória. Dessamaneira, Ricoeur nos permite ver que se uma hermenêutica sem ética permanece vazia, uma ética sem hermenêutica é cega.

Page 117: Jean Grondin - Hermeneuti CA

23 Parcours de Ia reconnaissance, p. 197 .

1 1 2 | H ER M EN ÊU TIC A

 

capítulo VIII 

HERMENÊUTICAE DESCONSTRUÇÃO

I. DESCONSTRUÇÃO, HERMENÊUTICA   

E INTERPRETAÇÃO EM ÜERRIDA  

Ohoje célebre encontro entre Hans-Georg Gadamer e Jacques Derrida (1930-2004) deu origem a um verdadeiro confronto entre uma 

hermenêutica da confiança e uma hermenêutica da suspeita. Esse encontro aconteceu em Paris em 198Í. Contudo, diferentemente dos conflitos de interpretação que frequentemente opõem as hermenêuticas da confiança e da suspeita, os dois pensadores tinham origens comuns: como Gadamer, Derrida também partira do programa "hermenêutico” de Heidegger em Ser e tempo, mas tendo retido sobretudo o caráter "destruidor”, ou seja, sua intenção de pôr a descoberto os pressupostos metafísicos da tradição ocidental.

Page 118: Jean Grondin - Hermeneuti CA

Derrida retoma muito especialmente a ideia heidegge- riana segundo a qual o pensamento ocidental, ou "metafísico” (entendamos com isso o pensamento que, de Platão a Hegel, aspirava a uma explicação totalizante do

HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO | 1 1 3

 

ser), seria regido por uma determinação do ser como presença1: o ser é aquele que se oferece a um olhar que lhe é imposto por sua intenção de dominação. Beneficiando-se, nesse sentido, de uma formação estrutura- lista, Derrida aplica essa intuição à compreensão dos signos, o que o leva a questionar a concepção qualifica

da de "metafísica" do sentido e da própria verdade. Na lingüística de Ferdinand de Saussure, a noção de sentido se exprime mediante o par significante-significado. 0 significante (ou o signo) remete, então, a uma "presença significada", que encarnaria uma presença plena da coisa ou da referência. Mas, a partir do momento em que tentamos pensar esse significado, damo-nos conta de que só podemos fazê-lo na ordem dos signos ou do discurso. O "sentido” permanece, portanto, diferido para sempre, pelo jogo daquilo que Derrida chama a "différance", onde é preciso entender, ao mesmo tem

po, a diferença (pretendida) entre o signo e o sentido e a transcrição (infinita) de sua realização, fato pelo qual jamais sairíamos do império dos signos.

Desse modo, Derrida reconhece um papel preponde

rante à constituição lingüística do entendimento, o que poderia aproximá-lo de Gadamer. Mas aqui a distância, não há dúvida, é mais considerável aos olhos de Derrida do que a proximidade patente. Derrida, realmente, demonstra ser muito mais "estruturalista" que Gadamer ou até mesmo que Heidegger: enquanto para Gadamer e Heidegger é o ser que a linguagem traz à fala, o “ser” 

para Derrida não será mais que um efeito da "différon-

Page 119: Jean Grondin - Hermeneuti CA

para Derrida não será mais que um efeito da "différon-

1 Ver J. Derrida, La structure, le signe et le jeu dans les discours des sciences humaines, in Üécriture et la différence. Paris: Le Seuil, 19 67 , p. 411 .

1 1 4 | H ER M EN ÊU TIC A

 

ce", visto que ele permaneceria inatingível fora dos signos que o exprimem. Em um texto frequentemente ci

tado, Derrida escreverá que não existe "fora do texto"2. Aqui, podemos nos perguntar (e essa será uma das críticas de Gadamer) se essa desconstrução, a sua maneira, não sucumbe ao nominalismo do pensamento moderno ao se concentrar exclusivamente na ordem dos signos e das oposições lingüísticas. Nesse sentido, o próprio Derrida seria vítima de uma "metafísica da presença", no caso, da presença dos próprios signos.

A destruição da metafísica de Heidegger assume, então, em Derrida a forma de uma desconstrução da lógica do pensamento que nos leva a acreditar na ideia de uma presença real do sentido fora dos signos que suscitam sua miragem, mas que só veriam sempre a si mesmos. Essa radicalização do projeto "destruidor” de Heidegger obriga Derrida a demonstrar uma suspeição certa diante do próprio projeto hermenêutico. Se ele lhe parece suspeito, é porque ele o identifica a um projeto de inteligibilidade e de decifração que busca um sentido último por trás dos signos (concepção que talvez lhe tenha sido transmitida por Ricoeur e por sua hermenêutica "recuperadora" do sentido). Não apenas se trata, para Derrida, de uma ilusão metafísica, como ele não deixará de denunciar nela um desígnio imperial de apropriação. A destruição heideggeriana se casa aqui com a crítica da vontade de entendimento em Lévinas, que necessariamente violentaria a alteridade que ela

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que necessariamente violentaria a alteridade que ela buscaria "possuir" impondo-lhe seu projeto totalizan- 

te. Para Derrida, o imperativo não é "entender" o outro,

2 De la grammatologie.  Paris: Minuit, 1967, p. 227.

HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO | 1 1 5

 

mas interromper justamente a vontade de entendimen

to, tida como emblemática da "metafísica".

Em um sentido que não escapou aos comentadores, Der

rida também não defende uma concepção que podería

mos qualificar de "pan-hermenêutica” porque ela nega 

justamente a possibilidade de encontrar um sentido fora do discurso, dado que toda relação com o ser derivaria 

do jogo das interpretações. Diante dessa "universalida

de da linguagem”, Derrida distingue cuidadosamente duas estratégias possíveis, ou "duas interpretações da 

interpretação, da estrutura, do signo e do jogo”:

a. "Uma tenta decifrar, sonha decifrar uma verdade ou 

uma origem que escapam ao jogo e à ordem do sig

no e vive a necessidade da interpretação como um exílio.” Aqui, Derrida está pensando na hermenêu

tica clássica, ainda metafísica, que busca apreender, 

senão perceber um "sentido", esperado como uma presença viva, por trás dos signos. Pode-se pensar 

aqui em autores como Heidegger, Ricoeur e Gada

mer. Derrida opõe a ela bravamente outra interpre

tação da interpretação:

b. "0 outro, que não está mais virado para a origem, afirma o jogo e tenta passar para além do homem  

e do humanismo, com o nome do homem sendo o nome daquele ser que, no decorrer da história da 

metafísica ou da ontoteologia, isto é, do todo de sua 

história, sonhou a presença plena, o fundamento assegurador, a origem e o fim do jogo." Essa ideia 

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assegurador, a origem e o fim do jogo." Essa ideia 

de uma presença plena e imediata não é mais pos

sível a partir do estruturalismo, avalia Derrida. É a 

face “triste” dessa "segunda interpretação”, mas ela

1 1 6 | H ERM EN ÊU TIC A

 

também comporta uma vertente libertadora e lúdica em sua renúncia à ideia de uma verdade coagen- te. Derrida afirma que foi Nietzsche "quem indicou o caminho” dessa "segunda interpretação da interpretação" e é com ela que Derrida se solidariza com um entusiasmo certo:Voltada para a presença, perdida ou impossível, da ori

gem ausente, essa temática estruturalista da imediati-  

dade rompida é, então, a face triste, negativa, nostálgi

ca, culpável, rousseauista, do pensamento do jogo, cuja 

outra face seria a afirmação nietzschiana, a afirmação  

jubilosa do jogo do mundo e da inocência do futuro, a  

afirmação de um mundo de signos sem falta, sem ver

dade, sem origem, oferecido a uma interpretação ativa3.

Desde 1967, Derrida dava a entender que essas duas interpretações da interpretação eram "absolutamente inconciliáveis", sendo seu propósito "agudizar sua irre- dutibilidade". E, um pouco, eram essas duas interpretações da interpretação que iriam se encontrar por ocasião de um debate público organizado entre Gadamer e Derrida no Instituto Goethe de Paris em abril de 1981.

2 . O ENCONTRO DE DE RR IDA  

e   G  a d a m e r   e m   P a r i s

Apesar de seus vários pontos de partida comuns —se pensarmos em sua descendência heideggeriana, em

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pensarmos em sua descendência heideggeriana, em sua crítica ao cientismo, mas especialmente em sua tese comum, mesmo que diferente, a respeito da uni

3  J. Derrida, VÉcriture et Ia différence, p. 427.

HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO | 1 1 7

 

versalidade da linguagem o encontro de 1981 terá, sem dúvida, sido um fracasso na medida em que terá  

dado lugar a um diálogo de surdos4. Mas é justamente  

nesse sentido que esse encontro poderá ter sido instru

tivo, até mesmo fecundo. Ele terá sido, pelo menos, um 

acontecimento cuja importância foi se ampliando com o passar dos anos.

Gadamer começou apresentando uma conferência so

bre "0 desafio hermenêutico"5. Nela, ele fazia alusão 

ao desafio que seu pensamento hermenêutico quisera 

destacar, assim como ao desafio que significava para ele o encontro com Derrida, cuja obra lhe era muito 

familiar (a recíproca talvez fosse menos verdadeira). Em certa medida, Gadamer podia se reconhecer no 

projeto derridiano que visa desconstruir a linguagem conceituai da metafísica. Mas o mestre da hermenêu

tica referia-se com isso especialmente ao vocabulário 

esclerosado do pensamento, aquele que se afastara do 

"diálogo vivo" do qual procede toda verdadeira língua: a destruição, na acepção positiva, consiste para ele em 

reinscrever um conceito tornado vazio na língua do

4 Os textos apresentados por ocasião do encontro foram publicados na Revue internationale de philosophie, n. 151 (19 84 ). Uma documentação mais completa pode ser encontrada na coletânea organizada por D. Michelfelder e R. Palmer, Dialogue and Desconstruction. The Gadamer- -Derrida Encounter. Albany: Sunny Press, 1989. Ver ainda a coletânea alemã organizada por P. Forget, Text und Interpretation.  Paderbòrn: Fink Verlag. 0 texto apresentado por Derrida figura apenas nas edições americana e alemã.

xto de Gada publicado pela Revue internationale

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5 Note-se que o texto de Gadamer publicado pela Revue internationale de philosophie (=RIPJ  tinha apenas oito páginas, quando contava 32 na edição alemã. A versão mais longa desse texto, cujo título se transformou em "Texto e interpretação, encontra-se em L'art de comprendre,  t. 2. Paris: Aubier, 1991, pp. 193-234.

1 1 8 | H ER M EN ÊU TIC A

 

qual ele proveio e que lhe dá todo o sentido6. Mas é 

justamente essa constante remissão do pensamento ao 

diálogo da língua viva que o levava a questionar a ideia 

de que havia uma linguagem fechada da metafísica:

Minha ideia própria me parece a seguinte: não existe 

linguagem conceituai, nem mesmo a da metafísica, que 

possa circunscrever o pensamento de modo definitivo, 

por pouco que o pensador se abandone à linguagem, o 

que implica que ele aceita o diálogo com outros pensa

dores, que pensam diferentemente dele7.

Ao lembrar que sua concepção da linguagem brotava 

da experiência do diálogo vivo e de sua promessa de 

autotranscendência, Gadamer também evocava, em um 

espírito benevolente, as esperanças que depositava no 

diálogo que achava poder desenvolver com Derrida. 

Gadamer exemplificava essa experiência hermenêutica 

do diálogo partindo da experiência da arte e da histó

ria da filosofia, na qual o intérprete entra em diálogo 

com aquilo que o interpela, mas não sem sair do diálo

go transformado. Ora, o que nos é dito em uma obra de 

arte, insistia Gadamer, jamais pode ser conceitualmen- 

te esgotado. 0 inacabamento da experiência de sentido 

faz parte essencial da finitude humana. Gadamer que

ria ressaltar com isso seu acordo com a ideia derridia- na de uma "différance” infinita do sentido.

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6 RIP,  336. Gadamer retomará frequentemente em seus escritos  posteriores, especialmente em 'Destruction et déconstruction e "Dé- construction herméneutique" (ambos publicados em La philosophie herméneutique. Paris: PUF, 1996) esse sentido primeiro da destruição heideggeriana, que teria escapado a Derrida.7 RIP, 1984, 334-335.

HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO | 1 1 9

 

Tendo sido evocados esses elementos comuns, Gadamer explica então por que esse encontro "com a cena francesa” representa todo um desafio para ele. É que Derrida, apesar de sua dívida com a ideia de destruição, acusa Heidegger de logocentrismo pelo fato de ele ter persistido em levantar a questão do sentido ou da verdade do ser, pensando o sentido como um dado que se poderia encontrar em qualquer parte. Para Derrida, aqui Nietzsche seria mais radical, com sua ideia segundo a qual a interpretação não seria a descoberta de um sentido, mas a aquiescência com o jogo das perspectivas e das máscaras. É nesse sentido que seria criticada a leitura heideggeriana de Nietzsche "na França": Nietzsche não seria aquele que teria trazido a metafísica a seu ápice, pensando o ser como valor, mas sobretudo aquele que possibilitaria ultrapassá-la melhor que Heidegger, afirmando o jogo infinito das interpretações. 0 debate, aos olhos de Gadamer, incidia sobre a questão de saber quem, entre Heidegger ou Nietzsche, era o mais radical.

Nessa questão, Gadamer punha todas as suas fichas, marcando sua solidariedade, em Heidegger: "Heidegger vai muito além de Nietzsche". Gadamer censura os herdeiros franceses de Nietzsche por não apreciarem em sua justa medida o caráter exploratório e sedutor de seu pensamento. Isso é que os levaria a pensar que a experiência do ser de Heidegger seria "menos radi

cal que o extremismo de Nietzsche"8. Segundo Gadamer, esse não é o caso. A superioridade de Heidegger 

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mer, esse não é o caso. A superioridade de Heidegger provém do fato de que ele conseguiu inscrever a noção

8 RIP, 1984,338. Ver H.-G. Gadamer, VHerméneutique en rétrospective. Paris: Vrin, 20 05 , pp. 162 ,1 78.

1 2 0 I H E R M E N Ê U T IC A

 

nietzschiana de “valor" na continuidade da metafísica 

ocidental. É esse pensamento metafísico do valor (e 

a aporia de um pensamento que quer promover uma 

transmutação dos valores) que Heidegger teria supe

rado pensando uma experiência do ser que não se re

duz a sua manifestação mensurável, logo, um ser que 

nunca se entrega inteiramente, mas que resguarda 

uma parte de seu mistério. Ele iria, por isso, mais lon

ge que Nietzsche visando a um ser que não se limita a 

seu valor contábil e a sua utilidade técnica.

Essa é uma intuição que Gadamer diz ter retomado 

com convicção, não sem lhe dar um aspecto derridia- 

no: "Foi por isso que eu sempre me esforcei para man

ter em mente o limite imposto a toda experiência her

menêutica do sentido"9. A hermenêutica reconheceria 

perfeitamente que o ser não pode nunca ser objeto de 

um entendimento totalizante, como aquele que é criti

cado por Heidegger e Derrida. Ao reconhecer o limite 

de toda interpretação do sentido, a hermenêutica con

vidava, a partir de então, a se abrir ao outro, "à poten

cialidade da alteridade”:

Antes mesmo de ter tomado a palavra para replicar, ele  

nos ajuda, por sua simples presença, a descobrir a estrei- 

teza de nossos pré-juízos e a fazê-los explodir10.

Essa abertura ao outro parecia dar testemunho de sua 

disposição para dialogar com Derrida e para aprender

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disposição para dialogar com Derrida e para aprender 

com ele.

9 RIP, 19 84, 338.10 RIP, 1984, 340.

HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO | 1 2 1

 

A grande surpresa do encontro de 1981 foi que nada parecia apontar para uma disposição parecida da parte de Derrida. Depois da exposição de Gadamer, Derrida fez sua conferência sobre a assinatura em Heidegger e Nietzsche, mas na qual não fazia nenhuma alusão a Gadamer. Não haverá quem pense reprová-lo por isso, mas a assimetria era gritante, especialmente porque o mestre da hermenêutica era ali o mais velho. A fim de possibilitar uma aparência de diálogo, os organizadores, então, convidaram Derrida a fazer algumas perguntas a Gadamer no dia posterior ao de sua conferência. As três pequenas, mas muito boas, perguntas que 

ele fez a Gadamer alimentaram todo o debate entre a hermenêutica e a desconstrução.

A primeira pergunta de Derrida retomava o apelo à boa vontade do qual Gadamer falara. Essa pergunta pare

cia, à primeira vista, muito insólita, porque, na verdade, ela não estava no centro de sua conferência. Gadamer só a invocara para enfatizar a ideia, banal a seus olhos, segundo a qual aqueles que se engajam em um diálo

go buscam se entender e dão prova de um mínimo de abertura. Gadamer não via ali nada mais que uma demonstração do senso comum.

Ora, é a demonstração dessa demonstração que Derrida questionava. Ele perguntava; esse axioma incon

dicional "não supunha que a vontade continua a ser a forma dessa incondicionalidade, o recurso absoluto, a determinação de última instância?"11. É a referência a

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determinação de última instância?"11. É a referência a Heidegger que dava a essa pergunta todo o seu alcance:

11 RIP, 1984,342.

1 2 2 | H ER MEN ÊU TIC A

 

Será que essa determinação de última instância não per

tenceria àquilo que Heidegger chama justamente de de

terminação do ser do ente como vontade ou como subje

tividade voluntária? Será que o discurso, em sua própria  

necessidade, não pertence a uma época, a de uma meta

física da vontade?

Em sua segunda pergunta, Derrida tentou limitar a 

pretensão dessa boa vontade recorrendo à psicanálise, mas também a Nietzsche. Derrida dá então a entender que sua concepção da interpretação "talvez estivesse mais próxima da interpretação de tipo nietzschiano do que de outra tradição hermenêutica". Espontaneamente, pensaremos na segunda interpretação da interpre

tação que A escritura e a diferença  exaltava, àquele que afirma jubilosamente o jogo infinito dos signos, sem verdade, que renuncia por isso à ideia de uma deci- fração última. Nesse contexto, Derrida foi tocado pela alusão de Gadamer à ideia de um diálogo "vivo”, que ele vinculava a uma busca de sistema:

Ontem à tarde tivemos um dos momentos mais decisivos 

e, em meu entender, dos mais problemáticos, de tudo o 

que nos foi dito sobre a coerência contextual, coerência 

sistemática ou não sistemática, porque toda coerência  

não é necessariamente a forma de um sistema.

Consequentemente, Derrida associava a hermenêutica à ideia de sistema, quer dizer, de uma vontade de enten

dimento, que, para ele, confina com um apetite de do

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minação e de totalização: entender não é integrar o outro em um sistema totalizante? É na medida em que se opõe a essa vontade de dominação que o pensamento de Derrida pode ser qualificado de anti-hermenêutico.

HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO | 1 2 3

 

A terceira pergunta, por sinal, focalizava o debate sobre o próprio termo "entendimento":

Podemos nos perguntar se a condição do Verstehen  [en

tendimento], longe de ser o continuum da "relação", como 

foi dito ontem, não é a interrupção da relação, uma certa  

relação de interrupção, a suspensão de toda mediação.

Derrida identifica aqui o entendimento com uma forma de violência infligida ao outro: a vontade de entender não obriga o outro a se dobrar, a se conformar aos esquemas de pensamento que lhe imponho e que passam, justamente por isso, ao largo de sua especificidade? Perguntando de outro modo: a abertura ao outro não decorre  necessariamente de um esforço de "entendimento"? Po

demos exprimir essa suspeita sob a forma de um paradoxo: será que entendo o outro quando eu o compreendo?

A primeira reação de Gadamer foi marcada pela incompreensão. O que o contrariava era que Derrida parecia  estar minando a própria possibilidade do encontro ao questionar as próprias noções de boa vontade, de diálogo e de entendimento. Gadamer se empenhou em defender que sua proposta se encontrava a mil léguas de toda metafísica e que ele estava simplesmente aludindo à vontade elementar de entendimento que é a daquele que abre a boca para ser entendido e os ouvidos para entender o outro. De nada adiantou. Em tais bases, o entendimento com Derrida parecia simplesmente impossível,

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possível,

Ora, o debate fundamental incidia exatamente sobre a própria possibilidade de entendimento, e é isso o que torna o fracasso do acordo tão interessante nesse caso

1 2 4 | H ER M EN ÊU TIC A

 

particular. É que, para Gadamer, o entendimento é sempre pelo menos possível, ao passo que para Derrida ele 

nunca é verdadeiramente possível. 0 entendimento é sempre possível para Gadamer porque a busca de sen

tido investe toda a linguagem, mas isso não quer dizer, porém, que ela jamais seja satisfeita. Talvez seja essa 

insatisfação do esforço de entendimento que anime a busca de verdade, a abertura a um sentido, mas que se difere sempre, para retomar a terminologia de Derrida. É essa diferença que incita Derrida a desconfiar da 

vontade de entendimento. 0 entendimento realmente alcança o outro? Não permanece prisioneiro, a despei

to de si mesmo, de sistemas, de estruturas e de signos, que funcionam como tapadeira para o que está enter

rado sob os signos e que nunca chega a ser dito? O discurso, poderíamos dizer, é um pouco o pior inimigo do 

dizer, assim como o entendimento é o pior inimigo do 

sentido que se deveria entender.

3. OS DESDOBRAMENTOS DO ENCONTRO

Um encontro de verdade sempre transforma seus interlocutores. Mesmo que a primeira atitude de Gada

mer tenha sido de estupefação, as objeções de Derrida talvez não tenham caído em ouvidos moucos. Depois do encontro de 1981, Gadamer retomou muitas vezes  seu debate com Derrida12. Se 0 desafio posto por Der-

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seu debate com Derrida12. Se 0 desafio posto por Der-

12 Ver os textos mais recentes, "Romantisme, herméneutique et déconstruction (1 987) e "Sur la trace de 1'herméneutique" (1994), ín Uherméneutique en retrospective, pp. 161-219.

HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO | 1 2 5

 

rida levou Gadamer a destacar algumas das diferenças essenciais entre seu projeto hermenêutico e o da desconstrução, talvez ele também o tenha levado a rever tacitamente algumas das teses de sua hermenêutica.

A crítica que Derrida fazia à metafísica da vontade ia um pouco longe demais, mas talvez ela tenha levado Gadamer a atenuar o aspecto um pouco "apropriador" do conceito de entendimento que ele apresentara em Verdade e método. 0 entendimento efetivamente surgia ali como uma forma de aplicação e de apropriação: entender um sentido estrangeiro é torná-lo seu por meio de uma aplicação ou de uma tradução para nossa língua. Ora, essa noção de entendimento não obedece a uma vontade um pouco hegeliana de apropriação? Será que entendo o sentido estrangeiro em sua especificidade quando o aplico a minha situação? Não se poderia dizer exatamente se a crítica de Derrida foi determinante ou não, mas parece que o último Gadamer corrigiu levemente essa concepção de entendimento. Temos um testemunho discreto disso em uma notinha que ele acrescentou, em 1986, ao capítulo de Verdade e método dedicado à distância temporal, que precede o capítulo sobre a aplicação:

Aqui arriscamo-nos sempre, no entendimento, a nos “apro

priar" do que é outro e de negligenciar sua alteridade13.

Texto curtíssimo, mas que nesse contexto preciso quase eqüivale a uma autocrítica. É claro que Gadamer nunca voltou a questionar expressamente a ideia de que o enten

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dimento comporta uma parte de aplicação, mas em 1986, ele se mostra mais atento ao risco de um entendimento

13 VM, 321; GW 1,305; Vherméneutíque en rétrospective, pp. 167.

1 2 6 ] H E R M E N Ê U T IC A

 

que, ao se apropriar do outro, talvez faça violência a sua alteridade. Mesmo não tendo falado diretamente da noção de aplicação, é exatamente ela que Derrida tinha em mente 

quando se interrogava sobre a metafísica da vontade que estaria subjacente ao pensamento hermenêutico. Dessa 

forma, o encontro da hermenêutica com a desconstrução talvez não tenha sido tão estéril como sempre se diz.

E ainda encontramos uma última confirmação disso em uma "definição" da hermenêutica que o último Gadamer 

não parou de evocar. Em seus últimos escritos, Gadamer ressaltou de bom grado que a alma da hermenêutica 

consistia em reconhecer que "talvez seja o outro quem 

tem razão"14. Aqui, o entendimento comparece menos como apropriação do que como uma abertura ao outro 

e a suas razões. Da mesma maneira, em seus últimos escritos, Gadamer falou muito menos da universalidade 

da linguagem do que "dos limites da linguagem” diante 

de tudo o que pode ser dito. A experiência fundamental de uma hermenêutica da finitude não é mais simples

mente a da condição lingüística do entendimento, mas, ao mesmo tempo, a dos limites da linguagem diante 

de tudo o que deveria poder ser dito15. Não é de todo impossível que essas novas inflexões da hermenêutica  gadameriana, sobre a abertura à alteridade do outro e sobre os limites da linguagem, sejam fruto do encontro 

entre a desconstrução e a hermenêutica.

14 Ver "Un entretien avec Hans-Georg Gadamer". Le Monde, 3 de janeiro

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14 Ver "Un entretien avec Hans-Georg Gadamer". Le Monde, 3 de janeiro de 1995; Vhéritage de VEurope. Paris: Rivages, 1996, p. 141.15 Ver o ensaio de 19 85 sobre "Les limites du langage", in La philosophie herméneutique,  pp. 168-18 4, e "UEurope et Yoikoumene, onde podemos ler (p. 230) que "o princípio supremo da hermenêutica filosófica é que  nunca conseguimos dizer o que gostaríamos de dizer".

HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO | 1 2 7

 

4. O ÚLTIMO DIÁLOGO ENTRE

D e r r i d a    e   G  a d a m e r 

Durante muito tempo se acreditou que Gadamer fora o único a dar seguimento a seu diálogo interior com Derrida. Ora, depois da morte de Gadamer, no dia 13 de março de 2002, Derrida confessou que esse diálogo também não deixou de acompanhá-lo nunca. No dia 15 de fevereiro de 2003, Derrida fez uma conferência à memória de Gadamer na Universidade de Heildeberg, intitulada Bélíers. Le dialogue ininterrompu: entre deux infinis, le poème16.

O título da conferência, que propunha uma leitura magistral de um poema de Celan, já retomava uma ideia cara a Gadamer, a do diálogo. Mas o paradoxo é que Derrida fala de um "diálogo ininterrupto" no momento exato em que a morte veio interrompê-lo. Contudo, para Derrida, essa morte faz intimamente parte do diálogo que se estabelece entre dois amigos. A lei implacável da amizade é que um dos amigos sobreviverá à morte do outro, cabendo, então, ao sobrevivente carregar seu amigo em si mesmo. O "diálogo ininterrupto" é aquele que Derrida se sabe condenado a prosseguir sozinho, carregando o outro em si, levando o outro em si, seguindo o leitmotiv que ele extrai do verso de Celan: "O mundo se foi/cabe a mim agora te levar". Tudo se passa como se Derrida quisesse responder com isso à ideia de um "diálogo vivo", evocada por Gadamer em 1981, com a ideia de um diálogo póstumo, no qual o sobrevivente 

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deve permitir falar em si a voz de um amigo defunto.

16 J. Derrida, Béliers. Le dialogue ininterrompu: entre deux infinis. Paris: Galilée, 2003.

1 2 8 | H ER M EN ÊU TIC A

 

A ideia de um diálogo "ininterrupto" também faz eco ao papel mantido pela noção de interrupção por ocasião do confronto de 1981. A terceira pergunta de Derrida indagava se a ideia de entendimento já não devia ser entendida mais a partir da ideia de interrupção do que da de continuidade:

Podemos nos perguntar se a condição do Verstehen  [en

tendimento], longe de ser o continuum da "relação", como 

foi dito ontem, não é a interrupção da relação, uma certa  

relação de interrupção, a suspensão de toda mediação.

Essa noção de ruptura talvez tenha algo a ver, aliás, com aquilo que Derrida afirma a respeito do caráter testa-  mentário de toda fala: ela é um legado que sobrevive a seu autor, e que o amigo deve levar em si quando um  dos dois se extingue.

Derrida deu outro testemunho dessa amizade em um texto que publicou em alemão apenas duas semanas depois da morte de Gadamer, intitulado "Comme il avait raison! Mon Cicérone, Hans-Georg Gadamer" ["Ele tinha toda razão! Meu Cícero, Hans-Georg Gadamer"]17. Nesse texto, Derrida revelava a terna admiração que sempre alimentara por Gadamer, esse bon vivant, que amava tanto viver e cuja capacidade de afirmar a vida ele invejava, capacidade da qual Derrida se dizia privado. Por isso, confessa Derrida:

Não acredito na morte de Gadamer. Não consigo. Desen

volvi o hábito, se posso assim me expressar, de achar

Page 134: Jean Grondin - Hermeneuti CA

volvi o hábito, se posso assim me expressar, de achar

17 Em G. Leroux, C. Lévesque e G. Michaud (orgs,), "II y aura ce j o u r À  la mémoire de Jacques Derrida. Montréal, À 1'impossible, 2005, pp. 53-  -56; reimpresso na revista Contre-jour, 9 [200 6), 87-91.

HERMENÊUTICA E DESCONSTRUÇÃO | 1 2 9

 

que Gadamer nunca morreria. Que ele não era homem  

de morrer. (...) Desde 1981, data de nosso primeiro en

contro (...), tudo o que me chegava dele me dava uma 

serenidade que eu tinha a impressão de que era o pró

prio Gadamer, em pessoa, que a comunicava a mim, por 

uma espécie de contágio ou de irradiação filosófica. Eu 

gostava tanto de vê-lo viver, falar, rir, andar, até mancar, e 

comer e beber. Tão mais que eu! Eu invejava a força que 

afirmava, nele, a vida. Ela parecia invencível. Eu chegava  

a ponto de me convencer de que Gadamer merecia não  

morrer, porque nós tínhamos necessidade desse teste

munho absoluto, daquele que assiste e participa de to

dos os debates filosóficos do século.

É, então, porque Gadamer merecia não morrer nunca que Derrida pensava poder levar infinitamente adian

te o diálogo com seu pensamento, ao qual ele confessa 

ter se furtado um pouco em 1981. A morte brutal de Derrida no dia 9 de outubro de 2004 terá interrompido 

esse diálogo póstumo. A seus amigos é que incumbe a tarefa de dar seqüência a essa conversação entre "dois 

infinitos”, a hermenêutica e a desconstrução.

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1 3 0 | H ER M EN ÊU TIC A

 

capítulo IX 

HERMENÊUTICAPÓS-MODERNA:

RORTY E VATTIMO

T Í ^ iferentemente de Derrida, Richard Rorty JJ (1931-2007) e Gianni Vattimo (1931-2007) 

 J1  J/   reivindicaram expressamente o pensamento hermenêutico, mas para lhe dar uma inflexão de sentido mais "relativista" ou "pós-moderna". Os dois se apoiam na célebre fórmula de Gadamer: "O ser que pode ser entendido é linguagem", mas para chegar à conclusão de que é ilusório pretender que nosso entendimento incida sobre uma realidade objetiva que poderia ser atingida por nossa linguagem. É porque tudo decorre em última instância da linguagem que seria preciso renunciar à ideia de uma adequação do pensamento ao real. É isso o que leva Rorty ao pragmatismo e Vattimo a um niilismo feliz.

i . R  o r t y  :  a    d e s p e d i d a    p r a g m a t i s t a  

Page 136: Jean Grondin - Hermeneuti CA

DA NOÇÃO DE VERDADE

Em sua obra Filosofia e o espelho da natureza,  publi

cada em 1979, Rorty promove uma nova aliança entre

HERMENÊUTICA PÓSMODERNA: RORTY E VATTIMO | 1 3 1

 

o pragmatismo norte-americano e a hermenêutica da obediência gadameriana. Sua intenção é mostrar por que a filosofia deve fazer o luto de um conhecimento  que se pretendia um simples "espelho do real” onde Rorty vê não mais que uma simples metáfora ou um efeito de linguagem. Ele também questiona a ideia, dominante no mundo anglo-saxão, segundo a qual a filosofia deveria ser uma "teoria do conhecimento" ou uma epistemologia, cuja tarefa seria explicar como nosso conhecimento se reporta à realidade.

Em si, essa crítica do positivismo ou do empirismo ine

rente à epistemologia anglo-saxônica não é original. Ela fora inaugurada pelo pragmatismo de Quine e sua denúncia dos "dogmas do empirismo", entre os quais o dogma da referência ao mundo real, mas também pelo trabalho do historiador da ciência, Thomas Kuhn, que mostrara, em sua célebre obra sobrei estrutura das revoluções científicas (1962), que a aceitação das teorias científicas devia muito mais à linguagem, à retórica e a crenças que derivam menos da prova científica do que dos "paradigmas” em vigor e que definem as normas da racionalidade científica de uma época dada.

A originalidade de Rorty reside no fato de que ele se afilia claramente ao pensamento de Gadamer, até então pouco conhecido no mundo anglófono, mas sobretudo em sua convicção segundo a qual a própria disciplina da 

epistemologia deve ser substituída por um pensamento 

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 hermenêutico. 0 capítulo VII leva, por sinal, o título: "Da epistemologia à hermenêutica". Mesmo assim, o erro se

ria acreditar que a hermenêutica deve substituir a epistemologia porque sua concepção seria mais adequada ou

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mais conforme ao real. Não. 0 interesse da hermenêutica é para ele o de renunciar a essa ideia e de avançar a ideia de uma cultura humana completamente outra:

Meu propósito não é apresentar a hermenêutica como uma 

disciplina que seria a "herdeira" da epistemologia, como se 

ela visasse satisfazer o vazio cultural que era preenchido, 

em seu tempo, pela filosofia centrada na teoria do conhe

cimento. Na interpretação que vou propor, a “hermenêuti

ca” é apenas o nome de uma disciplina ou de um método 

considerado capaz de nos possibilitar êxito ali onde a teo

ria do conhecimento fracassou, assim como ela também  

não é o nome de um programa de pesquisa. Ao contrário, 

a hermenêutica é a expressão da esperança de que o espa

ço cultural aberto pelo declínio da epistemologia não será  

preenchido, ela é a expressão da esperança de que nossa 

cultura se transformará em uma cultura na qual a exigência 

de restrição e de confrontação não será mais sentida1.

Aos olhos de Rorty, a hermenêutica não oferece método, ou um método melhor para alcançar a verdade, ela nos ensina apenas a viver sem a ideia de verdade, entendida no sentido da correspondência com o real. A busca da verdade pode, então, ser substituída por uma cultura 

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que exalte sobretudo os ideais da edificação e da conversação. Rorty se apoia aqui na ideia de Bildung  (cultura) em Verdade e método. Gadamer a evocara a fim de mostrar que o saber das ciências humanas não era um saber metódico ou à distância, mas de formação, que implicava uma transformação dos próprios agentes. Rorty extrai daqui conseqüências mais relativistas:

1 R. Rorty, L'homme spéculaire. Paris: Le Seuil, 1990, p. 34 9; Philosophy and the Mirror ofNature. New Jersey: Princeton University Press, 1979 , p. 315.

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Gadamer inicia Verdade e método com uma discussão so

bre o papel da tradição humanista que deu à noção de  

Bildung  o sentido de algo "que seria seu próprio fim para  

si mesmo". Para que tal noção assuma todo o seu sentido, 

é indispensável dar-se conta da relatividade de todo dis

curso descritivo em comparação com as épocas, as tradi

ções e os acidentes históricos dos quais ele provém. Ora, 

é isso o que a tradição humanista pode fazer em educa

ção, mas é o que uma formação que siga os resultados  

das ciências exatas não poderia realizar2.

Seguindo esse ideal de formação, a tarefa da filosofia não seria propor descrições mais justas do real, e sim promover a busca da conversação entre os humanos. Isso porque o conhecimento jamais transcenderia a ordem da conversação para alcançar um mundo de realidade ou de essências.

Mesmo que a obra de Rorty, que pretendia operar uma transformação hermenêutica da filosofia analítica, tenha contribuído muito para levar a conhecer melhor o pensamento hermenêutico no mundo anglo-saxônico, esse é um de seus méritos inegáveis, ele o orientou em um sentido relativista que era completamente alheio a Gadamer: difícil de pensar que um autor que intitula sua obra principal Verdade e método pretenda renunciar à ideia de verdade!

Rorty voltou a louvar as virtudes da hermenêutica tal 

qual ele a entende em uma conferência que pronunciou no dia 12 de fevereiro de 2000 em Heidelberg, por oca

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no dia 12 de fevereiro de 2000 em Heidelberg, por oca

sião do centenário de Gadamer. Nessa ocasião, ele invo

2 Ibidem, 398; Philosophy, p. 362.

1 3 4 I HERMEN ÊUTICA

 

cou o emblemático adagio: "O ser que pode ser entendi

do é linguagem", mas para lhe dar um sentido puramente "nominalista", que ele caracteriza da seguinte maneira:

Entendo por "nominalismo” a ideia segundo a qual to

das as essências são nominais e todas as necessidades 

de dicto (próprias ao discurso). Isso eqüivale a dizer que 

nenhuma descrição é mas verdadeira ou mais conforme 

à natureza do objeto do que qualquer outra descrição3.

Dessa forma,

um nominalista coerente insistirá em dizer que o suces

so do vocabulário corpuscular no plano da predição e da 

explicação não tem a m enor incidência sobre seu estatu

to ontológico e que a própria ideia de um "estatuto onto- 

lógico" deve ser abandonada.

Esse abandono da ontologia também é especialmente 

estranho para Gadamer. 0 título da última parte de Verdade e método anuncia justamente uma "inflexão onto- 

lógica" da hermenêutica sob o fio condutor da lingua

gem. Para Gadamer, a linguagem não é anteparo do ser, 

mas exatamente ao contrário, o elemento no qual o ser  

Page 141: Jean Grondin - Hermeneuti CA

mas exatamente ao contrário, o elemento no qual o ser  se revela a si mesmo. Aqui não se deveria falar de nomi

nalismo, porque a linguagem é para Gadamer a lingua

gem das coisas antes de ser a linguagem de nosso pen

samento. Toda a crítica gadameriana a propósito do 

esquecimento da linguagem no pensamento ocidental visa, por sinal, denunciar a concepção instrumentalista

e nominalista que faz da linguagem um instrumento do

3 R. Rorty, "Being That Can Be Understood is Language". London Re- view ofBooks, 16 de março de 20 00 , pp. 23-25.

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Page 142: Jean Grondin - Hermeneuti CA

 

pensamento soberano em face de um real que, sem ela, 

seria privado de sentido. Ora, é justamente esse nomi- 

nalismo que Rorty tenta reabilitar:

Nós nunca entendemos algo a não ser por meio de uma descrição, mas não existem descrições privilegiadas. Não há meio algum de retroceder para além de nossa linguagem descritiva, rumo ao objeto tal qual ele é em si mesmo, e não porque nossas faculdades sejam limitadas, mas porque a distinção entre o "para nós" e o "em si" é uma relíquia de um vocabulário descritivo, o vocabulário da metafísica, que perdeu sua utilidade4.

Mesmo que Rorty tente se valer de uma nova "cultura 

gadameriana", é difícil não reconhecer aqui o apogeu 

do construtivismo moderno, para o qual o mundo se 

reduz à concepção que nós façamos dele. É esse no- 

minalismo que entende a linguagem de maneira pura

mente instrumental que Gadamer critica duramente. O 

adágio "o ser que pode ser entendido é linguagem" não 

deve ser entendido, em Gadamer, em um sentido nomi

nalista, pelo qual o ser se reduz à descrição que faze

mos dele, mas em um sentido ontológico: é o próprio 

ser que vem se dizer em linguagem e é sua linguagem 

que nos permite corrigir as descrições inadequadas que propomos dele.

Se Rorty interpreta a hermenêutica de maneira tão an- 

tiontológica e nominalista, Vattimo extrai dela conse

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tiontológica e nominalista, Vattimo extrai dela conse

qüências não menos relativistas, mas que o conduzem a defender a ideia de uma ontologia niilista.

4 Ibidem.

1 3 6 | H ER MEN ÊU TIC A

 

2. V  a t t i m o :

“ p o r ” u m   n i i l i s m o   h e r m e n ê u t i c o

Vattimo fala de maneira absolutamente positiva da "vocação niilista" da hermenêutica. Essa tese se faz acompanhar, nele, de uma crítica a Gadamer que não se encontra verdadeiramente em Rorty. Realmente, Vattimo avalia que a hermenêutica não desenvolveu para si mesma a ontologia niilista para a qual secretamente tende. Sem essa ontologia mais radical e mais conseqüente, a hermenêutica permaneceria sendo a coiné do pensamento contemporâneo, mas uma coiné exces

sivamente ecumênica e sem contundência real, que se limitaria a dizer que tudo é uma questão de interpreta

ção5. A significação filosófica da hermenêutica estaria então diluída. Essa crítica procede de uma leitura assídua de Heidegger e de Nietzsche, que falaram muito de "niilismo", o que não é exatamente o caso de Gadamer. 0 niilismo quer dizer aqui que nada pode ser dito do ser, porque toda verdade provém da interpretação, da tradição e da linguagem.

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Uma hermenêutica conseqüente deveria desembocar, segundo Vattimo, em uma ontologia niilista: o ser, em si mesmo, não é nada, reduzindo-se a nossa linguagem e a nossas interpretações. Essa tese, é claro, se expõe à ob

jeção de não passar, ela própria, de uma interpretação. Como justificá-la? Só podemos fazê-lo, avalia Vattimo, quando reconhecemos que a hermenêutica pretende

5 G. Vattimo, "La vocation nihiliste de l'herméneutique".  Au-delà de Vinterprétation. La signification de Vherméneutíque pour Ia philosophie. Bruxelas: Éditions de Bosck, pp. 9-22.

HERMENÊUTICA PÓSMODERNA: RORTY E VATTIMO | 1 3 7

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ser uma resposta à história do ser interpretado como advento do niilismo. Desse modo, pode-se ver no "niilis

mo" uma "atenuação interminável [do discurso sobre] do ser”6, que teria caracterizado a história de nossa modernidade e que justificaria o bem-fundado da hermenêutica como coiné universal. Se quiser ser coerente,

a hermenêutica só pode se apresentar como a mais con

vincente interpretação filosófica possível de uma situa

ção, de uma "época" e logo, necessariamente, de uma 

proveniência.

Ao se apresentar como o coroamento coerente de uma história e de uma proveniência, a hermenêutica justifi

caria sua própria pretensão à universalidade.

0 adágio de Gadamer, "o ser que pode ser entendido é linguagem", deve então ser entendido em um sentido radicalmente niilista, próximo daquele que Rorty lhe conferia, Essa frase, Vattimo avalia,

não tem simplesmente o sentido banal de identificar o 

campo do entendimento com essa espécie de ser que se 

apresenta como linguagem.

Contra essa leitura muito atenuada, Vattimo propõe "uma leitura ontológica radical", a da identificação do ser e da linguagem, tese que Gadamer não teria pen

sado até o fim, mas que seria a única conseqüência propriamente rigorosa de seu pensamento7. Nessa 

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propriamente rigorosa de seu pensamento7. Nessa perspectiva, o ser se encontra tragado pela linguagem

6 Ibidem, p. 21.7 G. Vattimo, “Histoire cTune virgule. Gadamer et le sens de 1'être”. Revue International de philosophie,  n. 213 (2000], pp. 502.505.

1 3 8 | H ER MEN ÊU TIC A

 

e pela perspectiva que o encerra. Mesmo que se apresente como "pós-moderna" essa leitura é inteiramente conforme ao espírito da modernidade, que remete todo 

sentido a uma subjetividade, com a diferença de que essa subjetividade se sabe agora histórica.

Ora, é em sentidos opostos que iam a hermenêutica e a 

ontologia de Gadamer: não é o ser que é tragado pela lin

guagem, mas nossa linguagem que é apreendida pelo ser, 

sendo a linguagem inicialmente a "luz" do próprio ser.

Para ver bem a diferença entre as hermenêuticas, pode ser 

útil conceder atenção ao papel particular desempenhado 

por autores como Nietzsche e Heidegger para os herdeiros pós-modernos de Gadamer, tanto Vattimo quanto Rorty 

(mas também Derrida). O Nietzsche que importa a seus olhos é aquele que estipula que não existem fatos, mas 

apenas interpretações, e seu heideggerianismo se inspira especialmente na última filosofia de Heidegger, que de

fende que nosso entendimento é determinado de parte a 

parte pelo quadro globalizante da história do ser, pensada 

como o advento do niilismo. Os autores pós-modernos as

sociaram espontaneamente essa perspectiva nietzschiana

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sociaram espontaneamente essa perspectiva nietzschiana e heideggeriana ao pensamento de Gadamer, especial

mente a sua crítica ao objetivismo em ciências humanas 

e a sua insistência no papel dos pré-juízos e no caráter 

lingüístico de nosso entendimento. Ao destacar esses aspectos do pensamento gadameriano, eles acharam que a hermenêutica levava à rejeição da noção clássica de verda

de, compreendida como adequação ao ser.

Essa perspectiva nietzschiana, contudo, levou-os a perder de vista o alcance ainda ontológico da hermenêu

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tica, Para o pensamento de Gadamer, Nietzsche não é realmente um aliado, mas aquele que levou a seu ápice o nominalismo do pensamento moderno que reduz o ser àquilo que ele significa para o pensamento ou para a vontade, sendo a linguagem apenas um instrumento do sujeito. Num contexto desses, no qual tudo depende do sujeito, é claro que não há verdade objetiva, nem va

lores coagentes. Mas essa ausência de valor e de verdade só subsiste, observa Gadamer, se nos mantivermos no interior do quadro do pensamento moderno, para o qual o mundo não tem significação, nem ordem, sem 

a subjetividade doadora de sentido. Ora, é justamente essa ideia de um sujeito soberano que se encontraria em face de um mundo sem forma e que se presume privado de sentido, que a hermenêutica nos permite questionar. Desse modo, a hermenêutica nos auxilia a redescobrir o ser e a superar o niilismo.

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1 4 0 | H ERM EN ÊU TIC A

 

conclusão

FACES DAUNIVERSALIDADE

DA HERMENÊUTICA 

Mesmo que a hermenêutica represente a coiné de nosso tempo, ela oferece uma face 

mais contrastada do que geralmente se su

põe. Enquanto filosofia, a hermenêutica pretende in

tervir na componente universal de nossa experiência 

de mundo, mas essa universalidade pode ser enten

dida de maneira muito diferente. Podemos mostrá-la 

partindo do adágio mais elementar para exprimir essa 

universalidade: “Tudo é uma questão de interpreta

ção” Os diferentes sentidos que podem ser atribuídos a

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ção”. Os diferentes sentidos que podem ser atribuídos a essa fórmula podem ser associados aos grandes repre

sentantes da hermenêutica, mas também aos "herme- 

neutas anônimos", que defendem essa tese, mas sem se 

vincular propriamente à tradição hermenêutica. Vere

mos que cada uma dessas interpretações tem conse

qüências para a concepção da verdade:

(1) A fórmula "tudo é uma questão de interpretação" 

pode ser inicialmente lida em um sentido nietzs- chiano,  o de um  perspectivismo da vontade de po

FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA | 1 4 1

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tência, ideia certamente antecipada pelos sofistas do 

tempo de Platão: "Não existem fatos, existem apenas interpretações". Num contexto desses, não existe 

verdadeiramente verdade, no sentido de adequação 

à coisa. Nietzsche acrescenta cruelmente que a ver

dade é apenas "essa espécie de erro sem a qual uma 

espécie de seres bem determinados não poderia vi

ver". Aquilo que se tem como verdade não passa de 

uma perspectiva, entre outras, secretamente ditada por uma vontade de potência que busca se impor.

A dificuldade dessa teoria perspectivista é que existem 

realmente fatos, erros e aberrações abundantes. É um 

fato, e não uma interpretação, dizer que Paris (e não 

Marselha) é a capital da França, que uma molécula de 

água se compõe de um átomo de oxigênio e de dois (e 

não três) de hidrogênio e que eu nunca fui a Plutão.

(2) 0 perspectivismo pode ser entendido em um senti

do mais epistemológico: a tese quer então dizer que 

não existe conhecimento do mundo sem esquema 

prévio, sem "paradigma” de interpretação (segundo 

a tese de Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas)1. Segundo Kuhn, toda ciência opera 

com base em representações gerais do mundo que 

recortam um quadro de inteligibilidade e de coerên

cia no interior do qual podemos distinguir a verdade 

da falsidade. Mas esse quadro é, ele próprio, variá

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vel e está sujeito às revoluções científicas que vêm

1 Em 1962, Kuhn ignorava completamente a tradição hermenêutica, mas ele a evoca concordantemente em seu último livro, A tensão essencial: tradição e mudança nas ciências.  São Paulo: Unesp, 2001.

1 4 2 I H E R M E N Ê U T IC A

 

alterar os parâmetros recebidos. Um paradigma consegue, então, destronar outro. A verdade aqui é concebível, mas depende de um paradigma dado (a questão da verdade dos próprios paradigmas também é objeto de discussão em epistemologia).

(3) A tese "tudo é interpretação" pode receber um sentido mais genericamente histórico-, toda interpreta

ção é filha de seu tempo. Essa visão corresponde àquilo que podemos chamar de historicismo. É ele que a hermenêutica clássica e metodológica (Dil

they) mais frequentemente buscava conter, mas que o relativismo pós-moderno frequentemente saúda como uma libertação: ele nos livraria da con

cepção da verdade como adequação, sendo a ver

dade não mais que uma "perspectiva útil". Em um 

regime historicista, a verdade permanece possível, mas interpretar verdadeiramente um fenômeno quer dizer entendê-lo a partir de seu contexto. Uma verdade não contextual parece excluída.

(4) 0 adágio pode ser entendido de uma maneira mais 

ideológica: nesse caso, ele significa que toda visão de mundo seria guiada por interesses mais ou me

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de mundo seria guiada por interesses mais ou me

nos declarados. Podemos pensar aqui em Marx, Freud, na crítica das ideologias e em todos aque

les que Ricceur cJassifica de os mestres da suspeita. 

Essa suspeição dá origem a uma hermenêutica das profundezas que suscita uma fortíssima pretensão de verdade, mas que permanece um pouco ideal, quando não escatológica: ela não apenas se man

tém como o apanágio do teórico (ele mesmo inicia

do na verdade última dos fenômenos), como seu "objeto" não será capaz de conhecê-la plenamente,

FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA | 1 4 3

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exceto quando for libertado da ideologia que atualmente deforma sua consciência. É essa verdade ideal que o teórico antecipa quando critica o estado existente de uma sociedade ou de uma consciência.

Essas são as formas absolutamente atuais e pertinentes da ubiquidade hermenêutica, mas os principais representantes da tradição hermenêutica defenderam concepções mais definidas dessa universalidade:

(5) Para Heidegger, a universalidade da hermenêutica comporta, sobretudo, um sentido existencial:  pelo fato de ser uma interrogação para si mesmo, o ho

mem é de início um ser votado à interpretação. Ele tem necessidade de interpretação e vive desde sempre no seio de interpretações, mas que ele pode contudo elucidar. Essa dramatização um pouco agostiniana da hermenêutica transforma-a em uma filosofia universal da "facticidade" humana que visa livrá-la do esquecimento de si no qual ela se abisma de tamanho bom grado. Aqui, a verdade-correspon- dência é seguramente preservada. Heidegger ressalta, por sinal, que a tarefa primeira da interpretação é elaborar seus projetos de entendimento diretamente sobre as próprias coisas. Mas isso quer dizer que 

é possível esboçar projetos que sejam conformes ao que a existência pode ser quando se assume a si mesma. Se for preciso destruir as "más” interpretações, as que são inadequadas ou sobrepostas porque

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ções, as que são inadequadas ou sobrepostas porque nos afastam de nossa finitude, isso deve ser feito pela medida de um ideal de autenticidade.

(6) Para um autor como Gadamer, assim como para muitos outros, a universalidade da hermenêuti

1 4 4 | H ER M EN ÊU TIC A.

 

ca deve ser entendida, sobretudo, em um sentido lingüístico:  toda interpretação, toda relação com o mundo, pressupõe o elemento da linguagem, visto que a realização e o objeto do entendimento são necessariamente lingüísticos. Nesse universo, a verdade-correspondência também é possível, mas trata-se sempre de uma adequação das próprias coisas à linguagem. Desse modo, é possível revisar nossas interpretações confrontando-as àquilo que é dito pelas próprias coisas, portanto a sua linguagem. Esse modo de falar é menos curioso do que parece. Se podemos dizer que a tese segundo a qual 

"o sol gira em torno da terra" é falsa, é porque ela vem refutar aquilo que "diz" o próprio real , sua "evidência". Desse modo, uma concepção científi

ca ou filológica sempre pode ser refutada por um mais adequado entendimento que apele para a linguagem do próprio real, tendo como evidência as coisas, mesmo que tal entendimento só compareça por meio da linguagem. Essa linguagem é inicialmente para Gadamer a linguagem das próprias coi

sas antes de ser a linguagem de nossa mente (a qual a recebe sobretudo das coisas).

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a recebe sobretudo das coisas).

Essa concepção da universalidade da linguagem não é

a única que é defendida em hermenêutica.

(7) A tese mais difundida é, sem dúvida, a que vai no sentido  pós-moderno  (no caso, muito moderno), que vê na linguagem especialmente uma "formalização" do "real", esquematização que faria caducar a própria ideia de uma realidade com a qual nossas interpretações poderiam ser classificadas

FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA | 1 4 5

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como em conformidade (sendo a própria realida

de "constituída" por nossas interpretações). Essa tese pós-moderna se apoia de bom grado nos sen

tidos perspectivista, cognitivo, histórico, ideoló

gico, existencial que acabamos de distinguir e, a 

cada vez, para contestar a ideia julgada quimérica de uma adequação ao real. Podemos associar essa 

hermenêutica ao perspectivismo da vontade de 

potência evocado acima (1), mas o pensamento pós-moderno se distingue por sua ideia segundo a qual o sentido seria circunscrito por um quadro 

interpretativo globalizante, mais ou menos rígido, 

proveniente ora da história da "metafísica" (Derri

da), ora da episteme geral de uma época (Foucault), 

ora da tradição (Vattimo) ou do quadro de utilidade 

geral determinado por nossa cultura (Rorty), Aqui também não há mais adequação, a não ser no seio 

de uma ordem dada, mas o apagamento de toda 

referência extralinguística possibilita uma nova to

lerância acerca da pluralidade das interpretações. 

Se essa caridade é bastante louvável, a dissolução da noção de verdade se revela singularmente fatal 

para essa concepção da hermenêutica: por que essa 

teoria seria mais verdadeira que qualquer outra?

Ora, se a hermenêutica é verdadeiramente universal, é 

inicialmente porque somos seres que vivem, à primei

ra vista, no elemento insuperável do sentido, de um

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ra vista, no elemento insuperável do sentido, de um 

sentido que nós nos esforçamos para entender e que pressupomos desde então necessariamente. Mas esse sentido é sempre o sentido das próprias coisas, daqui

lo que elas querem dizer, um sentido que certamente

1 4 6 | H ER M EN ÊU TIC A

 

ultrapassa nossas pobres interpretações e o horizonte limitado, mas, graças a Deus, sempre ampliável de nos

sa linguagem2.

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2 É essa hermenêutica que tentei desenvolver modestamente em meus trabalhos, especialmente em L'universalité de Vherméneutique (1993), onde o objeto da hermenêutica é compreendido a partir da ideia de um sentido interior, inesgotável, que buscamos interpretar por meio de suas expressões externas, e em Du sens de la vie  (Montréal: Bellarmin, 20 03), que desenvolve a ideia de que o sentido que tentamos entender é, antes de mais, o da própria vida.

FACES DA UNIVERSALIDADE DA HERMENÊUTICA | 1 4 7

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ISO | H ER M EN ÊU TIC A

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DIGANÃOÀ CÓPIA

pratique essa ideia v , ________________________________________ ^

Quando você copia uma obra, está contribuindo para que nospróximosanososalunosnãotenhammaisoquecopiar,porque:

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2. Tambémnãohaveráeditoras interessadasem investiremumaobra que ficará estocada,especialmentequandose tratar deobrastraduzidas.Osalunosdofuturoterãodelerasobrasnalínguaemqueforameditadas.

3. E mais: você está contribuindo para acabarcom oempregode funcionários degráficas, editoras, para o fechamento delivrarias,para o empobrecimentoda cultura do país, além,éclaro,de violar a lei de direitos autorais (Lei n° 9.610/98), praticandoumCRIMEprevistonoartigo 184 do Código Penal, semprejuízodeterquerepararodanocausado.

E para que isso? A cópia custa em média R$ 0,10 por página. Este livro, r $ o,1o. por  que , então , n ão  tê-lo?

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