Jean Ovide Decroly

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DECROLY

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Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco Coordenao executiva Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari Comisso tcnica Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente) Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle, Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas, Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero Reviso de contedo Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto, Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia Secretaria executiva Ana Elizabete Negreiros Barroso Conceio Silva

Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio Teixeira Aparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy Ribeiro Durmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan Fernandes Frota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires Azanha Julio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo Freire Roquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas

Alfred Binet | Andrs Bello Anton Makarenko | Antonio Gramsci Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin Freinet Domingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich Hegel Georg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques Rousseau Jean-Ovide Decroly | Johann Herbart Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev Vygotsky Maria Montessori | Ortega y Gasset Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund Freud

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DECROLYFrancine DubreucqTraduo Carlos Alberto Vieira Coelho, Jason Ferreira Mafra, Lutgardes Costa Freire e Denise Henrique Mafra Organizao Jason Ferreira Mafra

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ISBN 978-85-7019-537-1 2010 Coleo Educadores MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites. A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia, estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98. Editora Massangana Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540 www.fundaj.gov.br Coleo Educadores Edio-geral Sidney Rocha Coordenao editorial Selma Corra Assessoria editorial Antonio Laurentino Patrcia Lima Reviso Sygma Comunicao Reviso tcnica Maria Helena Fvero Ilustraes Miguel Falco Foi feito depsito legal Impresso no Brasil Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca) Dubreucq, Francine. Jean-Ovide Decroly / Francine Dubreucq; traduo: Carlos Alberto Vieira Coelho, Jason Ferreira Mafra, Lutgardes Costa Freire, Denise Henrique Mafra; organizao: Jason Ferreira Mafra. Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 156 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-537-1 1. Decroly, Jean-Ovide, 1871-932. 2. Educao Pensadores Histria. I. Mafra, Jason Ferreira. II. Ttulo. CDU 37

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SUMRIO

Apresentao, por Fernando Haddad, 7 Ensaio, por Francine Dubreucq, 11Uma vocao inesperada, 11 As escolas-laboratrios, 14 Os estudos de psicognese, 16 A funo de globalizao, 18 O interesse, 20 A expresso, 22 Da psicologia pedagogia, 25 Uma pedagogia em evoluo, 26 A escola da vida, 28 Do jogo ao trabalho, 34 Projetos e planos de trabalho, 35 Do interesse ao centro de interesse, 38 Da globalizao coordenao , 40 Inverso de prioridades, 44 A medio, 45 Leitura/escrita, 47 A cultura em profundidade, 50 Decroly atual, 51

Razes positivas da educao decroliana e sua insero no Brasil, por Jason Mafra, 53O cientista-educador sob suspeita, 54 As escolas novas, 56

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Presenas e ausncias decrolianas na educao brasileira, 59 Considerao final, 62

Textos selecionados,Problemas de psicologia e de pedagogia, 65 Prtica dos testes mentais, 129

Cronologia, 147 Bibliografia, 149Obras de Jean-Ovide Decroly, 149 Obras sobre Jean-Ovide Decroly, 151 Obra de Jean-Ovide Decroly em portugus, 152 Outras obras e referncias sobre Jean-Ovide Decroly em portugus, 152 Filmes de que foi diretor, 152 Filme de que foi editor, 153 Filme de que foi cinegrafista, 153 Outras referncias bibliogrficas, 153

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APRESENTAO

O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educadores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colocar disposio dos professores e dirigentes da educao de todo o pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram alguns dos principais expoentes da histria educacional, nos planos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentos nessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importante para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da prtica pedaggica em nosso pas. Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao instituiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes do MEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unesco que, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros e trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimento histrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avano da educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a coleo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau of Education (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos maiores pensadores da educao de todos os tempos e culturas. Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projeto editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo Freire e de diversas universidades, em condies de cumprir os objetivos previstos pelo projeto.7

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Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC, em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favorece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, como tambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a prtica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transio para cenrios mais promissores. importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coincide com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao e sugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em novembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de esperanas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas que se operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulgao do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Universidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em 1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos to bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros. Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e do Estado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosa do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passado, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em 1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possibilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas educacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprovao, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no comeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas e aspiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetizadas pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido por Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios.

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A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste volume.

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Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio da educao brasileira representa uma retomada dos ideais dos manifestos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o tempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, do Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanismo de estado para a implementao do Plano Nacional da Educao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educacional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no ser demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja reedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifesto de 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos problemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao da educao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideias e de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer da educao uma prioridade de estado.

Fernando Haddad Ministro de Estado da Educao

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JEAN-OVIDE DECROLY (1871-1932)Francine Dubreucq1 Traduo do francs: Jason Ferreira Mafra

Uma vocao inesperada

Nada motivava Jean-Ovide Decroly a se interessar pelo ensino. Nascido em um meio rural hostil, na pequena cidade belga de Rennaix, foi submetido s exigncias de pais obcecados pelo seu sucesso escolar, tendo em vista que ele era o mais dotado dos seus filhos. Sua turbulncia lhe fez detestar os dois internatos que lhe impuseram uma formao greco-latina bem estranha sua paixo pelo desenho, a dana, a msica e, principalmente, pelas cincias naturais. Ele aproveitou muito mais os seus anos de medicina na Universidade de Gand, onde foi assistente de pesquisa, antes de se inclinar para a disciplina, altamente experimental, anatomia patolgica. Esse jovem bilogo iria logo descobrir a medicina mental. Laureado com brilhantismo no concurso universitrio e a fundao das bolsas de viagens, ele passou o ano de 1896-1897 na Universidade de Berlim e na Salptrire, em Paris. No entanto, Decroly no cessa jamais de afirmar a correlao dos fenmenos biolgicos e mentais, bases biopsquicas de todos os comportamentos.1 Este perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle dducation compare. Paris, Unesco: Escritrio Internacional de Educao, v. 23, n. 1-2, pp. 249-275, 1993. 2 Francine Dubreucq (Blgica) diretora do Centro de Estudos Decrolianos e da Biblioteca Sociopedaggica Dr. Decroly, em Bruxelas. Exerceu antes as funes de professora, e depois de diretora da escola Decroly-lErmitage de Bruxelas (1952-1983), assim como de professora do Instituto para Tradutores e Intrpretes do Estado, em Bruxelas. autora de inmeros artigos e de trabalhos, entre os quais Intrts et objectifs en ducation.

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Em 1898, Decroly se instala em Bruxelas, com Agns Guisset, sua jovem esposa. Ele retoma na Universidade de Gand, suas pesquisas sobre as doenas mentais e sobre a anatomia patolgica do crebro. A prtica clnica no meio hospitalar lhe interessava mais do que a clientela. Em 1898 ele tambm se inicia na Policlnica de Bruxelas, como assistente do servio de neurologia, e se v responsvel pouco depois, pelo departamento das crianas anormais e com trauma da linguagem. Foi uma experincia to cruel quanto decisiva. Confrontado com a misria das cidades, Decroly descobriu o abandono humano, social e pedaggico no qual vegetavam seus pequenos pacientes. A escola popular os condenava quase sempre ao fracasso e marginalizao; ela estava longe de assegurar a preveno pela educao que constitua sua ideologia oficial.Eu afirmo que ela [a escola popular] tem uma influncia prejudicial, uma ao antissocial incontestvel; ela no s no prepara para a vida, como ela faz de muitos de ns, miserveis, desclassificados, ou no mnimo, nada faz para evitar isto o que a mesma coisa (1904b).

No entanto, a escola poderia sero meio talvez mais potente [de assegurar] a profilaxia da inatividade, da misria e do crime (...), no como ela est organizada atualmente, uma vez que ela , em grande parte, a causa direta ou indireta destes males, mas como ela deveria ser organizada, tal como j o em certos lugares felizes nos quais se compreendeu o que ela pode fazer de mal e o que ela pode fazer de bem. (1904b).

Se Decroly atribui escola uma misso prioritria de preveno, primeiro para intermediar a ao educativa dos pais:Na nossa vida social atual, o papel da escola aumenta tendo em vista do fato que o papel dos pais se tornou mais difcil e que a adaptao para a vida se tornou complicada.

Naqueles casos muito frequentes onde o meio familiar se revela claramente nocivo, a proteo mdico-pedaggica das crianas vale mais do que os hospcios, os asilos, os reformatrios, as prises (). So os perniciosos curativos que gangrenam as feridas ao invs de cur-las (1904b). Ento, ele se engaja na luta pela obrigatoriedade12

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escolar que, na Blgica, s ser conquistada em 1914 e efetivada apenas em 1920; mas ele junta imediatamente, obrigatoriedade escolar, o papel da escola de preparar eficientemente cada criana para a sua vida de homem, de trabalhador, de cidado. A educao moderna no se transformar somente com vistas a esta funo social; a evoluo das tcnicas e dos conhecimentos favoreceu a emergncia de novos comportamentos intelectuais; imprescindvel adaptar a educao s exigncias da cincia moderna. Tal como seu contemporneo Lon Brunschwig, Decroly denuncia o monoplio das humanidades clssicas centradas no homem, fundadas nas belas escritas e impregnadas de um racionalismo cartesiano limitado ao seu contedo filosfico. preciso abrir o ensino aos conhecimentos adquiridos h trs sculos sobre a matria (a natureza). A formao tcnica e cientfica se basear na observao dos fatos concretos, a prtica da metodologia experimental que favorece analis-las, a iniciao s tecnologias graas s quais o trabalho humano transforma a natureza, o acesso s cincias que asseguram a quantificao e a extrapolao da experincia. As prprias humanidades clssicas se integraro s cincias humanas, se colocando em novos contextos de observao do fenmeno humano. Esta modernizao dos contedos de aprendizagem adaptar, enfim a escola evoluo da cultura contempornea, a partir das realidades do meio na qual a criana vive. preciso, ento, destruir os prprios fundamentos da escola clssica: mtodos, programas, classificaes, e substitu-los por procedimentos totalmente diferentes. Como muitos outros antes e depois dele, Decroly poderia ter se contentado de denunciar platonicamente os defeitos do ensino; mas esse homem de ao quer assegurar o futuro imediato da educao popular. sobre o terreno dos fatos que Decroly vai proceder s prticas radicalmente novas.

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As escolas-laboratrios

Uma deciso indita deveria desde ento orientar toda a vida de Decroly assim como a de sua famlia. A Sociedade de Pediatria lhe tinha proposto ser o mdico chefe de uma pequena clnica que ela tinha previsto criar para a observao e tratamento de crianas ditas anormais. Decroly conhecia o laboratrio de psicologia experimental de Wundt, em Berlim, o de Schuyten, em Anvers, e os trabalhos de Binet e Simon, na Frana. No entanto, ele desconfiava da avaliao desenvolvida em situao externa. Assim, ele aceitou (a proposta) na condio de acolher essas crianas irregulares como internas na sua prpria; elas seriam criadas com as crianas que ele pretendia ter (ele teve trs). Decroly pretendia assim, aumentar a riqueza da observao psicolgica, que dependia, evidentemente, da riqueza do meio no qual viviam as crianas. O Instituto de ensino especial Laboratrio psicolgico do Dr. Decroly inaugurou-se ento em 1901. Decroly viveria nele pelo resto de sua vida trinta e um anos no meio da cidade, e depois a partir de 1910, em uma pequena propriedade do interior nas proximidades de Bruxelas, chamada Vossegat (Buraco das raposas). O laboratrio se transforma imediatamente em escola-laboratrio. Mesmo com suas irregularidades, os pequenos locadores vivem nesse lugar uma vida normal em um meio natural. Eles encontram no Instituto os cuidados que o seu exige, mas tambm, e principalmente, recebem uma educao a mais ampla possvel. Vendo-os viverem, Decroly ameniza a definio psicomtrica da irregularidade mental. Todos os locadores do Instituto se revelam capazes de fazer progressos suficientes para que Decroly, como j o tinha feito Claude Bernard, pudesse afirmar a sua educabilidade e at mesmo a educabilidade de natureza idntica das crianas normais, praticamente no mesmo ritmo e mesmos limites. Ele teria em breve a ocasio para demonstrar esse fato. Em 1907, pais atentos aos trabalhos de Decroly lhe pedem para acolher

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seus filhos perfeitamente normais, sete meninas e meninos de todas as idades, em uma segunda escola. o clebre lErmitage [retiro], em pleno corao da cidade, mas que foi transferido, em 1927, para um quarteiro ao mesmo tempo rstico e florestal prxima periferia de Bruxelas. Sem jamais perder seu estatuto original de escola experimental que fora desejado pelos pais, o lErmitage no parou de se desenvolver, do jardim de infncia at o fim do secundrio. As tcnicas sero postas em prtica da em diante no Instituto e no lErmitage, entre os quais, alis, os alunos se revezaro. Trata-se efetivamente de duas escolas experimentais, nas quais os meios de mudar o conjunto do sistema escolar so sistematicamente colocados em experincia. Mas, a ressonncia das pesquisas de Decroly provoca escndalo, j h muitos anos, nos meios conservadores. A aplicao dos mesmos procedimentos educativos no ensino especial e regular fere as ideias convencionais. a coeducao integral e deliberada inquieta (ela precede de trinta anos a primeiro e tmida tentativa de misturar o ensino especial com o regular na Blgica); enfim, acusase Decroly de transformar seus estudantes (e seus prprios filhos) em cobaias. No entanto, esse pequeno mundo irradia o seu ardor. Essas duas escolas alis, no fazem Decroly esquecer o objetivo principal: a generalizao dos novos mtodos no conjunto do sistema educativo. Em 1902, a cidade de Bruxelas ser a primeira a adotar sua metodologia nas aulas do ensino regular. Colaborador no Instituto de Sociologia, professor nos Estudos Superiores (Hautes tudes), nas Escolas Normais3, na Universidade livre de Bruxelas, Decroly se mobiliza igualmente por toda parte onde a infncia sofrida o requer: ele fundou, cofundou e impulsionou o Lar dos rfos, A Oficina de orientao profissional, a fazendaescola do Brabant, os Fundos dos mais dotados das classes populares, a inspeo mdica da infncia delinquente.3 Escolas Normais, no sentido das escolas que formavam para o magistrio (nota do tradutor).

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As responsabilidades que ele assume e que ele delega aos educadores ultrapassam amplamente os muros da sala de aula: a mdico-pedagogia (1904a) implica na ao orquestrada do mdico, do psiclogo, do professor, do assistente social, engajados em um sistema eficiente de orientao psico-medico-socio-escolar. Estas mltiplas atividades se acompanham de uma produo cientfica particularmente densa: a bibliografia de Decroly, sozinho ou com outros colaboradores, totaliza mais de quatrocentos ttulos. Se a isto se soma as diferentes misses que ele desenvolve na Inglaterra, na Espanha, nos Estados Unidos e na Amrica Latina, compreende-se, ento, que seus alunos, seus amigos e colaboradores tenham guardado dele a imagem de um homem incrivelmente ativo, mas precocemente ceifado pela fatiga. Ele morreu aos sessenta e um anos, em 1932, em um corredor do jardim do Instituto, perto dos pequenos irregulares os quais ele nunca tinha deixado. Poucas obras do uma imagem to cativante dos laos entre a prtica e a teoria; a reflexo surge sempre das realidades, das quais Decroly tinha o sentimento profundo, saudvel, vigoroso (Atas do Congresso Decroly). A maior prudncia marca a teorizao sempre provisria e sugerindo novas experincias; no entanto, surge de sua obra de psiclogo, quatro captulos essenciais para o conhecimento da mente infantil e, portanto, para a educao. Trata-se do mtodo psicogentico, da funo da globalizao, do interesse e da expresso.Os estudos de psicognese

Escolhendo observar as reaes espontneas das crianas sem aparelho psicomtrico pr-concebido, Decroly se imps a limitaes de observao pouco cmodas. Na verdade, embora ele tenha introduzido na Blgica o mtodo dos testes de Binet e Simon, vistos na poca como a vanguarda da ento recente psicologia da infncia, ele se recusou a lhe atribuir um papel determinante:

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o teste uma forma, e no a nica, de examinar o indivduo. Ele no suprime a necessidade de observao, ele a completa e completado por ela; ele enriquecido por ela, e, em muitos casos, deve lhe ceder a vez. O exame por meio de teste o minimum psicogrfico, [...] til numa primeira aproximao. (nota manuscrita sem data.).

Muito pontuais, annimos, frequentemente coletivos, realizados em condies artificiais, o teste, a pesquisa por amostragem e a consulta psicolgica s fornecem informaes parciais. Decroly preferia sempre biografias individuais a longo prazo, seguindo passo a passo a evoluo psicogentica, e cujo primeiro exemplo se deve a Darwin (Biographical sketch of an infant, 1877) (Esboo biogrfico de uma criana, 1877). Ele comeou seus estudos de psicognese pela observao de sua primeira filha, a qual uma das primeiras colaboradoras de Decroly, Julia Degand, descobriu com espanto o beroprovido de bolas de todas as cores, de um sininho, de uma pequena boneca, e tudo isso podendo se balanar, [porque o pai] desejava observar o desenvolvimento das sensaes do seu beb.

Ela prpria ficou encarregada da observao sistemtica da segunda filha do casal, desde o seu nascimento (em 1905) at a idade de seis anos. Decroly tinha desenvolvido uma trplice tcnica de controle: um dirio, detalhado dia a dia, muitas fotografias e filmes, os quais os mais antigos so de 1906 e so sem dvida os primeiros filmes psicolgicos (um pouco antes de Gesell). A filmografia decroliana (que tem mais ou menos cinquenta ttulos) responde a um imperativo do mtodo experimental: ela assegura a replicabilidade da observao ou da experincia, eliminando a equao pessoal do observador. Essa observao longitudinal, contnua e a longo prazo de uma s criana no seu meio natural, respeita a dinmica do crescimento, resgata os diversos componentes da personalidade global, mas exige inmeros recortes. Os estudos de psicognese de Decroly se desenvolvem durante vinte e cinco anos, da pequena

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S... at a Nanette, a criana adotada que enternece seus trs ltimos anos de vida; eles analisam a evoluo das noes de cor, de quantidade, de tempo, de idade, da origem da vida, do valor, da competio, do desempenho. Um captulo marcante consagrado s questes das crianas at a idade de seis anos. A grande dificuldade da psicognese reside na passagem do particular para o geral, do singular norma. Decroly tambm compara sistematicamente suas observaes com as de Stern, Dearborn, Preyer, Shinn, Baldwin etc. Suas convergncias permitem estabelecer as constantes do desenvolvimento. Mas a observao individualizada revela tambm a especificidade de cada personalidade, que se d como um todo indivisvel, ligando irredutivelmente o corpo e o pensamento (biopsquico), o sensorial e o perceptivo, o afetivo e o intelectual: a totalidade do indivduo que percebe, pensa e age em conjunto. (1927). A complexidade da vida psquica orienta Decroly cada vez mais para uma psicologia diferencial: As combinaes de efeitos psquicos so, de fato, to numerosas, que h muito poucos tipos distintos e uma multiplicidade de tipos intermedirios. (1922). Esta constatao pe por terra a noo de mdia, portanto de criana mediana, de criana estatstica, que regulamenta a organizao escolar. Da mesma forma, ela probe as distores e simplificaes do exame psicotcnico de orientao profissional.A funo de globalizao

A psicognese colocou em evidncia um fato particularmente importante para a organizao das primeiras aprendizagens: a criana no nem um adulto em miniatura nem uma cera virgem. Ela simplesmente um outro. Decroly multiplicou os estudos sobre a evoluo das funes mentais, desde antes do nascimento at os quinze ou dezesseis anos; muito longas para descrever aqui, elas deflagram essencialmente a noo de sinergia entre o indivduo e o

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meio, o inato e o adquirido, a filognese e a ontognese. A criana nasce com um imenso material nervoso de reserva, do qual somente as estruturas so hereditrias, enquanto que sua hesitao pelo meio assegura o seu funcionamento. Assim a atividade se constitui na chave do crescimento e a educao pode levar esta atividade em um sentido favorvel, det-lo ou dirigi-lo perversamente. por ignorncia sobre a mentalidade da criana que o adulto desconhece frequentemente a formidvel energia epistemoflica que a criana manifesta pelo jogo, pela experimentao, pela imitao. Ele desconhece tambm a fora das primeiras representaes que a criana constri expontaneamente no contato com o mundo externo. Globais, inalisveis, misturam-se em uma s coisa as propriedades do objeto e as reaes da prpria criana. Em um desenho ou um conto, por exemplo, esses todos se manifestam seja em conjuntos indiferenciados, seja a partir de um s trao que impregna, que evoca uma totalidade indivisvel. Esses esquemas globais so funcionais, ou seja, a servio da atividade pessoal da criana; eles satisfazem a necessidade de identificar os dados do que est ao redor da criana (seu prprio corpo, sua me); de se apropriar deles e de control-los (jogo, oposio); de produzi-los (desenhos, construes); de transform-los (sonho, fantasma); de evoc-los mentalmente. Quanto mais o meio estimula a atividade, mais estas representaes desenvolvem as capacidades motoras, sensoriais, perceptivas, intelectuais, expressivas da criana, dotando-a de uma experincia ntima que ser o material de todas as suas aprendizagens posteriores. A globalizao domina o pensamento at os seis ou sete anos. Progressivamente a criana se exercita a descobrir os traos pertinentes que determinaro o acesso ao pensamento analtico. Finalmente, para esclarecer uma questo terminolgica, Decroly preferia explicitamente o termo globalizao a esquematizao, sincretismo ou gestalt. Em seu entendimento, somente a globalizao

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expressa a densidade massiva do fenmeno, na qual a anlise se introduzir muito parcialmente de incio, e cada vez mais sutil a partir dos sete ou oito anos. Assim, um primeiro ensinamento fundado sobre a aquisio sucessiva de unidades isoladas s pode encontrar o vazio em um pensamento que trabalha de outra forma.O interesse

A anlise dessa noo aparentemente simples levou consideravelmente o campo da investigao psicolgica bem alm dos domnios da inteligncia e da razo que estuda principalmente a psicologia clssica. Na Semiologia da psicolgica da afetividade e particularmente da afetividade infantil que ele publicou com G. Vermeylen em 1920, Decroly enfrenta o exame das tendncias (termo prximo de pulsaes), desde os tropismos rudimentares (alimentao, reproduo, proteo, defesa) at as manifestaes evoludas de sensibilidade. As reaes de uma ameba j so testemunhos da existncia de um self (si prprio) que reage s agresses do meio ambiente atravs de reaes sensrio-motoras e que asseguram a sobrevivncia de cada indivduo pela satisfao de suas necessidades. Essas reaes do instinto testemunham um esforo de identidade, mas tambm de adaptao ao meio ambiente. Em Algumas noes sobre a evoluo da afetividade na criana (1927), Decroly se questiona, como todos os seus contemporneos o fizeram, sobre a natureza da inteligncia. Sua tendncia de assemelhla a um instinto superior, que associa sua ao s dos instintos e pode dessa forma modificar suas manifestaes espontneas a tal ponto que s vezes chegam a perder sua aparncia original. O que se chama de sublimao ou ainda intelectualizao dos instintos , na verdade, resultado dessa ao. Essa sublimao gera os sentimentos superiores e chega no homem s emoes e aos valores morais, estticos, sentimentais.20

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A associao das tendncias e da cognio transcende ao mesmo tempo a inteligncia e a afetividade: ela denota do pensamento, que mistura fortemente a lgica e a contradio, a cincia e a criao, a reproduo e a inveno. O que conta, portanto, associar aos testes intelectuais clssicos, de ordem quantitativa e estatstica, testes de personalidade projetivos, de natureza qualitativa. O exame no poderia se reduzir somente nica medida do quociente intelectual, nem, alis, ignorar os dados culturais que instalam em cada meio, hbitos ou instintos adquiridos. Em 1922, Decroly prope assim um Questionrio que diz respeito s reaes afetivas das crianas nos ambientes onde elas vivem habitualmente. As inmeras tendncias observveis na criana definem sua personalidade, primeiro em funo de um egocentrismo natural que faz dela uma s coisa em funo de seu prprio ser, e do mundo ao redor dela. Extremamente dependente daquilo que a rodeia para a satisfao de inmeras necessidades, ela est frequentemente em estado de falta, o que ela traduz pela afirmao violenta do seu eu, mas tambm pelo prazer quando ela obtm satisfao. Seu crescimento lhe assegura uma autonomia progressiva: se ela tem fome ou medo, ela procura se alimentar, ou fugir. Esses comportamentos adaptativos suprimem o desequilbrio temporrio criado pelo estado de necessidade, mas a excitao que ele despertou colocou o sistema nervoso sob tenso e criou um estado de ateno ou de pr-ateno que chega progressivamente no espanto e, ento, na reflexo. A energia destinada a suprimir a necessidade se transforma em interesse.Ns vamos propor chamar interesse o sinal interno e comum a todas as necessidades e sentimentos de um sujeito (o desejo sendo a forma consciente desse fenmeno), enquanto que a curiosidade seria o sinal externo, aparente principalmente para um observador externo, sinal esse podendo ser consciente ou inconsciente.

Uma pedagogia do interesse potencializa ento melhor do que uma pedagogia da reproduo, as motivaes essenciais da crian21

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a, ao mesmo tempo em que ela libera sua criatividade. Mas as tendncias tambm tm um papel fundamental na relao com o outro. Elas explicam a constituio sociolgica dos grupos de crianas, os papis caractersticos, os laos com o adulto. A supervalorizao da inteligncia em detrimento da afetividade compromete o desenvolvimento harmonioso da personalidade infantil. essencial que a organizao do horrio escolar leve isso em conta, em uma educao deliberadamente global.A expresso

H tempos se sabe que a variedade dos nveis da lngua segundo os diferentes meios socioculturais constitui um grande obstculo para a efetivao da escola nica. Infelizmente para as crianas do povo, para os pequenos de camponeses, para os estrangeiros, a norma escolar reflete estritamente os costumes da mdia ou da pequena burguesia, para quem o emprego do cdigo elaborado confere algum prestgio sociocultural. A experincia de Decroly com as crianas com problemas de linguagem que ele atendia lhe orientaram muito cedo para as pesquisas sociolingusticas, e depois psicolingusticas, que lhe levaram a contestar o imperialismo da linguagem nos programas escolares. de Decroly, o grande mrito de ter mostrado a unidade de origem que existe entre todas as formas de expresso, escrever Henri Wallon (Anais do Congresso Decroly), propondo uma definio bastante ampla de linguagem, considerada como um sistema de signos, ao mesmo tempo, fsicos, psicolgicos e psquicos, [...] individual e social da mesma forma como Ferdinand de Saussure o estabeleceu. Para evitar todo equvoco, Decroly at mesmo substituiu o termo linguagem, muito frequentemente limitado palavra articulada, pelo termo expresso, que compreende as atividades de da pessoa, de um lado e de outro, a formulao interior pela qual cada um se apropria de qualquer informao externa.

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A expresso mobiliza o corpo (gesto, movimento, mmica, dana; a mo (experimentao, desenho, construo); a palavra (chamado, canto, discurso), a escrita (leitura, escrita, cdigos), a arte (pintura, msica, poesia, teatro). A utilizao destas diversas maneiras de expresso na vida cotidiana prova a importncia e o valor das manifestaes no verbais, geralmente negligenciadas e mesmo completamente sacrificadas pela escola e pela maioria dos testes, que fazem uso da linguagem articulada ou dos cdigos convencionais:As aptides que marcam as crianas bem dotadas so frequentemente a precocidade da linguagem, a disposio para ler cedo e sozinho e a no se trata de escrever, trata-se de elaborar, compor etc.., no sentido de que esta elaborao pode ser apenas oral ou oral e escrita. De fato, tais manifestaes so bem vindas para favorecer a adaptao nas disciplinas escolares e esto relacionadas com os resultados dos testes habituais, o que era de se esperar, uma vez que sua padronizao havia sido estabelecida tendo em conta as competncias escolares. Neste procedimento h um equvoco que consiste em confundir a inteligncia com a linguagem, um equvoco que herdamos da filosofia grega e que serviu de fundamento para o nominalismo4. (Antologia de textos extrados de manuscritos inditos...)

De fato o verbo se constitui em um instrumento cmodo, mas toda cultura que a ele se limite cai inevitavelmente no verbalismo5, comentrio sem fim. o o saber fazer dos profissionais que asseguram a evoluo tcnica; nesta rea, a atividade inteligente implica em procedimentos, independente das palavras, e que se atribui facilmente ao sentido prtico. Em seu trabalho de orientao profissional, Decroly consagrou algumas monografias muito cuidadas s qualidades especficas necessrias para ser um, carpinteiro, um encadernador, um desenhista etc., mas, principalmente, ele tambm concebeu trs testes originais, o das caixas para abrir, de dificuldade crescente e cuja manipulao silenciosa demonstra a existncia de raciocnios no verbais.Nominalismo uma doutrina filosfica segundo a qual os conceitos universais so abstraes. (Nota do tradutor.)5 O termo verbalismo usado aqui no sentido de afogar, sob uma quantidade grande de palavras, a ausncia de ideias (Larousse, 2001, nota do tradutor). 4

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Destinados a evitar erros de orientao dos jovens bem dotados, mas limitados pelas suas prprias fraquezas de expresso ou daquelas do seu meio, estes testes provam a existncia de raciocnios dedutivos e indutivos complexos, baseados na percepo, intuio, observao, memria, imaginao, representao, comparao, anlise, abstrao, generalizao, sntese (1971). Essas caixas-Decroly foram utilizadas at 1950 nos Centros de Orientao profissional belga, e foram abandonadas porque o exame individual tomava muito tempo e a padronizao tinha que ser revista. A autointeligncia no verbal prtica desempenha um papel constante nas operaes da vida cotidiana e na resoluo do problema de inmeras atividades profissionais. Ela associa reflexo operatria qualidades to preciosas quanto a postura corporal, a coordenao do movimento, a explorao racional das reservas fsicas. A habilidade tcnica coloca em jogo uma criatividade que fornece a soluo apropriada. A concepo decroliana da expresso no fica sem consequncias sociopedaggicas importantes. Feito uma pirmide, a escola tradicional favorece desde o incio uma categoria muito particular de crianas: o pequeno futuro intelectual, no qual ela desenvolve at ao exagero, as qualidades verbais. Em contrapartida, ela desvaloriza a expresso concreta, considerando os trabalhos manuais, a ginstica o desenho e o brincar, como subalternos e negligenciveis. A escola tradicional reproduz dessa forma os preconceitos sociais que desprezam os trabalhos inferiores. Decroly alerta contra o perigo de uma obrigao escolar que desqualificaria a formao tcnica, profissional, social e artstica. A supervalorizao dos colarinhos brancos pode trazer graves desequilbrios na organizao econmica se a escolha de um trabalho manual se torna a sano do fracasso escolar. Reconhecer o imenso valor da expresso concreta impe, ao contrrio, desenvolver em todas as crianas a educao do corpo,

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dos sentidos, da mo, do contato com as coisas e no com os livros, na turbulncia de um meio vivo e no no silncio morto de uma sala de aula. A facilidade em todas as formas de expresso favorece o equilbrio pessoal durante toda a vida, tanto nos letrados como nos tcnicos.Da psicologia pedagogia

Os laos entre uma cincia pura e uma cincia aplicada so frequentemente obscuros. Eles implicam, tacitamente ou no, uma relao hierrquica na qual cada uma das duas disciplinas pretende ganhar a competio em detrimento da outra. Ser que Decroly foi vtima dessa oposio? Jean Chteau lembra oportunamente, na Psicologia da criana em lngua francesa (Toulouse, Privat, 1979), queWallon se interrogava desde 1948 sobre o contraste entre a notoriedade da obra pedaggica de Decroly e o esquecimento relativo no qual caram seus trabalhos psicolgicos. Fazer a sombra a si mesmo no para qualquer um no mundo. O Decroly educador teria, ao que parece, eclipsado o Decroly psiclogo.

A interao da teoria e da prtica no ocorre sem perigo para a primeira, principalmente se a prtica se aplica a objetos flutuantes. Ora, na realidade educativa, os atores, as situaes, os objetivos se modificam sem parar. Impondo-se traduo fiel da observao psicolgica na ao pedaggica, Decroly submete a pesquisa concretizao imediata de seus resultados. Ele se apega assim a um pragmatismo que conhece, at hoje, inmeros prolongamentos nas cincias humanas. Jean Chteau lembra que Decroly se deu at ao trabalho de traduzir Como ns pensamos, de John Dewey, que submetia, tal como ele prprio, a reflexo especulativa prova decisiva dos fatos. A preocupao de adaptar qualquer atitude pedaggica mentalidade de cada criana e de cada idade explica a excepcional imaginao metodolgica de Decroly, cuja audcia faz dele sem sombra de dvida o profissional inovador mais fecundo de toda a histria da pedagogia. Ele no hesita jamais em abolir decisivamente tudo o25

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que violenta a evoluo natural do pensamento, nem em explorar vias totalmente novas:aqueles que pretendem limitar o trabalho mental da escola primria aquisio de tcnicas, ao estudo sistemtico das regras gramaticais e da teoria aritmtica, sob o pretexto de que foram submetidos a esta prtica sem prejuzo e se tornaram bons especialistas em algumas reas, so carniceiros inconscientes da inteligncia infantil e provam que eles so absolutamente ignorantes das leis mais importantes do que aquelas da gramtica e da aritmtica e que, de fato, dominam estas, a saber, aquela da psicologia da criana. Nenhum de seus argumentos pode prevalecer, alis, contra os fatos flagrantes que se constatam a cada dia quando observamos o que acontece na escola primria, ou seja o insucesso, o fiasco mais ou menos absoluto para mais de 75% da populao escolar dos procedimentos formais. (1929b)

preciso ao contrrio, procurar melhores meios para atenuar o mal-estar e o sofrimento das crianas que esto em situao pior, de assegurar o seu progresso, de conduzi-las ao mximo de autonomia a qual elas so capazes de ter. Por toda parte onde a infncia mostra a sua cara trgica do abandono, da misria, da explorao, Decroly procura novos caminhos: nada de crianas desclassificadas, de crianas atrasadas, de crianas recusadas (1904b). A urgncia da obrigao escolar impe recorrer ao mtodo experimental, segundo mtodos testados na cincia.Uma pedagogia em evoluo

A experimentao na escola levanta, portanto, no incio do sculo XX, controversas calorosas. Se o trabalho em campo sugere s vezes solues originais, como o ensino mtuo ou a cooperao escolar, os professores se limitam em geral a aplicar diretivas oficiais que o poder crescente do Estado, inevitavelmente, despersonaliza. Os programas e manuais definem, alis, as normas de qualificao que correspondem ao recrutamento das classes administrativas da funo pblica, do funcionrio pblico aos premiados das grandes escolas. O concurso e exame servem para26

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selecionar os candidatos. Os mtodos no tm nenhum outro objetivo seno o de preparar mais eficazmente para a prova. Esses mtodos s podem ser normativos. No entanto, a educao ativa delega escola a misso bem mais complexa de assegurar o desenvolvimento pessoal de todas as crianas, fundando-se na contribuio das novas cincias. Os mtodos no podem mais vir de uma administrao, mesmo advertida e bem intensionada. Decroly os apresenta como hiptese e os submete experimentao. assim que ele se explica, em 1907, na Pedagogia evolucionista:Acreditam vocs poderem testar o valor de um mtodo como se testa a resistncia do ao, o teor de acar da beterraba, ou a ao de um medicamento nos coelhos? Isso impossvel. A criana no sujeito para experincias, claro; mas, ela um sujeito de inexperincias. [] O que impede de estabelecer laboratrios de pedagogia, digamos, de pedotcnica []? As crianas no sofrero mais do que elas sofrem atualmente com o regime absolutamente irracional ao qual esto submetidas. (1907a)

Esses laboratrios de pedagogia funcionaro nas prprias escolas e no em Institutos universitrios alheios vida escolar. Assim as classes experimentais movimentaro mais diretamente o imobilismo das escolas mantidas com viseiras atravs de programas insuficientemente experimentados com mtodos que no estiveram submetidos a nenhuma crtica sria. Toda tendncia dogmtica deve ser denunciada:Frbel e Pestalozzi disseram isso; Herbart e Comnio disseram isso. Mas o argumento de autoridade no mais suficiente na cincia, nem sequer na cincia veterinria. Isso, portanto, no pode mais ser suficiente na pedagogia que deve, ela tambm, pretender ser uma cincia. E isso no pode mais ser suficiente, exatamente, porque os conselhos de Frbel e Pestalozzi so o oposto aos de Herbart e Comnio, porque os argumentos de autoridade so contraditrios, enquanto que aqueles adquiridos pela observao rigorosa e matemtica devem ser concordantes.

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Quanto interveno universitria, incumbe-lhe fornecer a ajuda fundamental das cincias de base: biologia, psicologia, que alimentam a pedagogia, ou cincia da criana segundo a definio proposta por Chrisman. Cincia aplicada, a pedotcnica (neologismo de Decroly) praticar a experincia nas classes laboratoriais. Os procedimentos tendo feito suas provas devero ainda se integrar a uma concepo educativa homognea e coerente, ou mtodo, antes de ser praticada nas classes regulares, at mesmo a enviar regularmente ao experimentador as tcnicas invlidas pelo uso. Essa clareza do vocabulrio prova a importncia que Decroly dava tcnica educativa: O que se chamou o mtodo Decroly no tem, na verdade, o carter habitual de um mtodo; [] ele no imvel e perfeito. (Congresso de Elseneur, 1929.) Uma concepo to malevel mostra que se a evoluo e a atualidade introduzem variveis no interesse das crianas, a educao pode tambm contar com inmeras constantes. Isso se aplica ao mais poderoso conceito unificador da pedagogia decroliana, o conceito de vida.A escola da vida

Esta palavra mestra possui uma extenso to vasta que seria perigoso reduzi-la em um em uma frase Para a vida e pela vida, que define frequentemente a educao decroliana, e a qual ns no sabemos muito bem de onde ela vem. preciso tomar a polissemia ao p da letra. Em um primeiro sentido, a vida de um homem ou de uma mulher a felicidade e a realizao se si mesmo reservada a cada indivduo, ou, ao contrrio, seu fracasso existencial. Em 1904, Decroly j tinha adquirido experincia suficiente para poder denunciar a desenvoltura de um ensino que estraga o futuro de muito daqueles que lhe so confiados:

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A escola no apenas prepara pouqussimas crianas para a vida, como tambm se constitui para muitas delas, em um obstculo ao seu desenvolvimento , fazendo-as perder um tempo precioso.

O primeiro objetivo que preciso atribuir escola o de assegurar a cada indivduo as chances de sucesso na existncia que lhe espera sua prpria vida de homem ou de mulher, de pai ou de me, de cidado ou cidad, de trabalhador ou de trabalhadora. Ora a escola progressivamente reduziu as chances individuais de promoo:Um sistema que classifica os homens aos vinte anos, segundo os diplomas que eles receberam, [] se torna um perigo, porque ele empurra toda a sua juventude corrida de diplomas inteis, que falsificam as ideias sobre a educao. [] Os mais fortes passam apesar de tudo, mas quantos sucumbem ou so desorientados pelo resto de suas vidas.

Em um segundo sentido, preciso se lembrar que a criana um ser vivo, no sentido biolgico do termo. Ela tem um corpo, sentidos, necessidades fsicas e afetivas. Antes de ser um pensador debruado sobre seu livro e seu lpis, ela um ser em pleno crescimento cujo desenvolvimento motor exige uma intensa atividade prtica. Ora, com a veia que lhe d a indignao, Decroly acusa:A escola impe o silncio e a imobilidade a seres que devem aprender a agir e a se expressar. Depois do entorpecimento fsico, ela faz o torpor mental. (1909)

que a educao foi entregue a adultos aos quais uma orientao muito especial lhes deu hbitos sedentrios que eles confundem com as condies favorveis ao desenvolvimento educativo:Ns somos por demais intelectuais, demais contemplativos. []Ns esquecemos que houve um tempo no qual o trabalho mental no nos era assim to fcil [...] e que nos foi necessrio ultrapassar uma srie de etapas para nos adaptar ao trabalho cerebral puro.

O movimento a forma externa da ao, ela prpria, a chave do domnio tecnolgico e cultural. Espontaneamente, a criana ama o movimento, mas ainda ignora que ela age. A natureza co29

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locou nela a possibilidade de agir antes que o crebro seja capaz de intervir para regular essa atividade. O papel da educao aparece assim particularmente ntido: sempre preciso se esforar para intercalar o controle do crebro entre a excitao exterior e a ao, mas a ao deve continuamente acompanhar o trabalho do pensamento guisa de controle e de estimulante.

porque a educao no v que mesmo a disciplina tem tudo a ganhar ao permitir que as energias da criana sejam gastas ao longo das lies. Ela acredita que deve favorecer os bons alunos [que] tm um crebro comparvel ao estmago daqueles que se diz que digerem tudo, mesmo as pedras, pois eles acumulamfacilidade de expresso, boa memria verbal, dose certa de apatia e docilidade []. Quanto aos outros, eles se recusam so os indisciplinados cuja indisciplina, verdade, s pode ser um sinal de sade intelectual superior; mas a maioria segue a reboque, de longe.

Este apelo indisciplina leva a uma disciplina superior: a vida encontra sua definio mais completa na sinergia funcional de todas as instncias do ser. A criana tomar conscincia do desenvolvimento global e simultneo de toda a sua pessoa. Ela explorar as reaes do seu corpo e de seus sentidos, para desenredar em seguida os fatores afetivos e intelectuais que definem a sua personalidade. A criana aprendercomo ela feita, como funcionam os seus rgos, para que eles servem. Como ela come, respira, dorme, trabalha, brinca. Como agem seus sentidos e como ela est defendida por eles. Como se mexem seus membros, e principalmente sua mo, e que servios eles lhe prestam; porque a criana tem fome, sede, frio, sono, por que ela tem medo, ou por que se zanga (1921).

Em um terceiro sentido, quase ecolgico, a vida se constri nos intercmbios com o meio. Uma franca educao motora e sensorial assegura familiarmente a explorao do meio que est prximo, aquele onde se desenvolve a vida da criana (sua casa, o quarteiro, a escola). Ela lhe abre progressivamente o espao (na30

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tureza, cidade, usina, mercado, escritrios, museus, instituies etc.), briga pela educao fsica, pelos trabalhos manuais e o manejo dos utenslios do operrio (martelo, serra, rabote, enxada, p). Por que ento a escola escolheu a mesa do burocrata para ridicularizar a criana de uma cultura de funcionrio na qual a cultura geral desqualificada em favor apenas da cultura intelectual? O meio mortfero da escola clssica deve desaparecer. Os bancos alinhados, o corredor, as filas, o quadro negro, o ptio de recreao no nada propcio s descargas e s trocas de energia:Eu percebi, pouco a pouco, que a sala de aula o pior que pode acontecer, que o meio natural, constitudo por uma fazenda, campos, pradarias, animais a serem cuidados, plantas a recolher, representavam o verdadeiro material intuitivo capaz de acordar e de estimular as foras escondidas na criana (1921).

A criana e o professor trabalham de agora em diante sobre dados de primeira mo, recolhidos na realidade concreta ou nos verdadeiros livros: Decroly aboliu as plidas simulaes do verdadeiro que difundem os animais embalsamados, as antologias, os herbrios, os manuais, mas tambm a orgulhosa arquitetura escolar que tranca a criana em um universo claustral com as suas grades, seus muros altos com janelas inatingveis, dos seus ptios de recreio e de seus espaos. Com a porta aberta, a escola recolher os materiais de observao trazidos de fora: a aula-oficina substituir o auditrio. Decroly no prope que uma criana viva fechada em uma creche. A sociedade se compe de vrios meios interdependentes, e um dos objetivos da educao o de evitar o seu enclausuramento. A primeira educao acontece mais completamente na natureza, que desperta a curiosidade da criana pela sua prodigiosa variedade, seus ritmos sazonais, e sua poesia tambm. A criana que vive no campo tem muito mais vantagem nesse aspecto que os meninos das cidades, por demais protegidos, e que no entendem os complexos mecanismos das instituies que o cercam.31

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A natureza sofre mais visivelmente as transformaes que o homem lhe impe: esse imenso esforo de apropriao se revela nas fazendas, atelis de artesos, nos mercados. Ao mesmo tempo, a destruio de equilbrios essenciais far a criana refletir, predador de bom grado, sobre sua prpria exuberncia! Ele abordar em seguida a indstria, sob os seus aspectos tcnicos, econmicos humanos; a vida pblica, nas diferentes instncias administrativas, jurdicas, polticas; a cultura, nos museus, os monumentos, os espetculos, as bibliotecas. Se a educao pudesse, alm disso, organizar a participao dos jovens nas diferentes ocupaes dos adultos, o nmero de horas das aulas consagradas ao ensino propriamente dito poderia ser diminudo muito mais. (1929a) Essa educao na vida deflagrar um quarto sentido caro a Decroly: o pertencimento cadeia dos seres vivos. Associando as etapas do crescimento aos meios os mais complexos, da natureza grande cidade moderna, a educao mergulha a criana em um fluxo na prpria evoluo da espcie. Decroly v uma grande vantagem pedaggica em satisfazer as atraes sucessivas da criana por atividades de colheita, de caa, [...] e depois de artesanato, de mecnica, de construo, [...] de experimentao, e por fim, de jogos institucionais (tribunais, comrcio etc.) e de criadores (produes poticas, romnticas etc.). Embora ele nunca tenha acreditado na teoria da recapitulao (defendida por Stanley Hall), Decroly prope um processo educacional no qual a ontognese reproduz em miniatura a filognese. H um grande interesse em respeitar as caractersticas do brincar da criana em diferentes idades e introduzi-lo nas atividades de ensino, iniciando a criana nas fases de civilizao que lhe precederam. Decroly acessa assim a uma ltima acepo da palavra vida, em funo do papel poltico e social que cada um poder desenvolver, seja passivamente, seja voluntariamente: Os mais adaptados so aqueles nos quais a ajuda mtua mais organizada. (Antologia de

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textos extrados de manuscritos inditos...) Em outras palavras, a luta pela vida impe a solidariedade:Vivemos em sociedade, nossa fraqueza assim o exige, nossas necessidades mltiplas consequncia da civilizao tambm o exigem. Temos bastante conscincia dessa lei, sabemos o bastante sobre o que devemos ser para nossos semelhantes, estamos bastante penetrados do fato que a vida dos outros e a nossa esto estreitamente relacionadas e em constante relao? (1904b)

A educao do cidado, to longa e to difcil, evolui do egocentrismo e depois ideia de coletividade. Uma das melhores justificativas da escola aquela que garante uma vida em comum que aplana as tendncias egostas [...]. Ns aprendemos mais a viver que a ler. Esta aprendizagem da vida social surge das iniciativas da criana: sua ordem no nascer de uma ordem imposta, nem sua liberdade de uma liberdade outorgada. Ela vai precisar de tempo para se acomodar com a alteridade e a coletividade. O compromisso com as responsabilidades afetivas s ocorrer pouco pouco com a cooperao. Cada um deve fazer suas prprias experincias de autogesto e corregulao. Paradoxalmente, a autonomia no nasce da ausncia de diretividade, mas da conscincia dos direitos e dos deveres de um membro ativo da vida social. A escola, assim concebida, se constitui em um microcosmo poltico atravessado de problemas, de crises, de conflitos, que a ajuda interativa de todos os seu membros a levam a super-los da melhor forma possvel. A atribuio das responsabilidades individuais e coletivas depende de uma moral prtica a qual um grande espao deve ser revezado no horrio; ela se fundamenta na eleio de diferentes delegados, no rodzio de tarefas, na prestao de contas etc. Poderes concretos so delgados aos alunos na gesto da escola. A opo poltica que supe essa formao do cidado clara: O governo democrtico deve ser considerado como a forma de Estado mais apropriada para favorecer a evoluo e a adapta33

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o ao progresso. (Antologia de textos extrados de manuscritos inditos...) Portanto ele quem dirige a vida de uma coletividade decroliana.Do jogo ao trabalho

Decroly no se contentou emafirmar a superioridade da educao sobre a instruo, [como aqueles] que, menosprezando tcnicas elementares do saber humano, chaves de todos os programas escolares exigidos pelo nosso estado de civilizao, se preocupam principalmente de fazer o homem sem temer que ele permanea analfabeto. (1929b)

Afinal, a educao se fundamenta no ato de aprender mesmo e principalmente trata-se de aprender a viver. A criana sabe disso muito bem: a gente vai para a piscina para nadar, para a escola para saber mais. Alguns meses de luta cotidiana para demonstrar a educabilidade das crianas irregulares rapidamente convenceram a pequena equipe do Instituto (trs professoras) da ineficcia dos procedimentos, at mesmo os mais modernos, em clculo, leitura e escrita. preciso renunciar eterna iluso dos inovadores: uma atmosfera de confiana e de afeto no suficiente para assegurar automaticamente aquilo que se as aprendizagens; mesmo tentados por frases em chocolate fabricadas especialmente, as crianas no retm nada! Mas elas brincam e, claro, observamos os seus jogos com seriedade cientfica. Evidentemente, como todas as crianas, elas manipulam bonecas, jogos de habilidade, jogos de sociedade, mas principalmente elas inventam. O jardim e os abrigos do Instituto so propcios a inmeras atividades: desenhar pistas, criar esconderijos, cavar tanques de girinos, construir cabanas. Apesar de suas dificuldades, as crianas manifestam uma tal energia, perseverana e vontade que nada ficam a dever ajuda dos adultos. A psicologia da afetividade identifica na imitao e no jogo das crianas fatores de maturao essenciais, que Decroly qualifica34

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entre instintos antecipativos, preparando uma primeira forma de intelectualidade.O que se deve ainda frisar a propsito do jogo, o seu papel de preparao atividade sria. Ele faz a transio entre a atividade instintiva, no sentido restrito, e o trabalho [...], em ocupaes onde o objetivo cada vez mais consciente, cada vez mais distanciado e indireto [...]. H [entre o jogo e o trabalho] uma gama interrupta de ocupaes, indo da mais agradvel at a menos agradvel. (1927).

No dia em que eles pedem o coelho, entram de maneira natural na engrenagem do primeiro dos jogos educativos de Decroly. Ns lhes ajudamos, de fato, a descobrir pela observao o lugar mais propcio para conceber, medir e construir uma cabana para coelhos; a ler uma documentao sobre as raas de criao, sua alimentao, sua proteo; a escrever para os comerciantes de madeira, veterinrios, criadores. Um interesse mais forte do que o chocolate, portanto, assegurou a concentrao propcia a aquisio dos primeiros rudimentos. O jogo educativo nasceu dessas consideraes (1914); da cobra-cega lojinha, do quebra-cabea aos jogos lgicos, o exerccio se ilumina da aprovao e do prazer que a criana sente da funo ldica. Com a ajuda entusiasta das crianas, Decroly e a sua equipe fabricaram dezenas de jogos de madeira ou de papelo, de uma sensibilidade cheia de poesia, cujas sries cuidadosamente escalonadas dizem respeito ao desenvolvimento das percepes sensoriais, da ateno e da aptido motora; da preciso visual, visual motora, auditiva motora etc.; iniciao aritmtica, percepo do tempo, leitura, gramtica, compreenso da linguagem. Esses primeiros jogos psicoeducativos foram comercializados e produziram fortuna, como j sabemos.Projetos e planos de trabalho

O interesse diferenciado , portanto, o fundamento mesmo da vontade de aprender; ele oferece criana o poder de aceitar a dificuldade que permitir a satisfao. Infelizmente,35

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o trabalho escolar tal qual ele organizado no responde a essa condio e se parece muito mais, como Claparde mostrou, em relao ao trabalho forado, isto , uma ocupao que no apresenta nenhum interesse nem em relao a ela mesma nem pelo objetivo que ela almeja. (1927).

A instruo efetivamente se contentou durante muito tempo com programas e manuais que eram suficientes para a formao de alguns letrados. O sculo XIX adicionou mtodos didticos, cuja sucesso se acelerou mais ainda no sculo vinte. Dividida em anos e em matrias, sobrecarregada pela acelerao dos conhecimentos, a disciplinas relacionadas s reas de conhecimento se tornou cada vez mais enciclopdica. A escola atrapalhou-se na tarefa impossvel de dispensar todos os saberes. Os mtodos ativos tiveram defensores desde muitos sculos, sem poder realmente destrinchar o dilema entre a cabea bem cheia (supostamente erudita), ou a cabea bem feita (supostamente eficaz). Portanto, preciso escolher. E Decroly no hesita:eu posso dizer que os professores no fazem nada mais do que sofrer eles mesmos do regime defeituoso que eles aplicam frequentemente [...]. Com toda sinceridade, eu afirmo que se o nosso sistema medocre e at mesmo ruim, a culpa no do professor; ela se deve ao programa. E eu no culpo nem os autores dos programas, pois estes ltimos foram os agentes inconscientes, e portanto tanto perdoveis, de uma fora inelutvel: a tradio, que chegou at eles vindo do peso de trs ou at mesmo vinte sculos. (1904b)

Ele libera ento a equipe do pequeno Instituto, e depois a de lErmitage, das assombraes da matria, do horrio, dos prazos, dos manuais. O que necessrio a participao ativa dos alunos no que diz respeito sua prpria formao. (1929). Eles escolhero de agora em diante os sujeitos de estudo, livremente. Os adultos s lhes iniciaro nas operaes tcnicas concretamente teis, em funo dos seus nveis de evoluo. A atividade do programa foi desta forma transferida para as prprias crianas. Cada um prope os assuntos que deseja tratar, e todas as propostas so36

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negociadas pelo grupo inteiro que constri um projeto coletivo (plano de trabalho), mais ou menos a longo prazo (de alguns dias para os jovens a um ano para os maiores). Um grande quadro com dupla entrada faz a previso do decorrer desse perodo. Os temas a serem tratados so escrito nele em abscissa, as modalidades do seu tratamento em coordenadas (pesquisas, excurses, exposies, trabalhos de equipe etc.). As iniciativas necessrias so igualmente introduzidas, assim como os exerccios indispensveis sua aquisio e sua estabilidade. A liberdade de escolha estimula o trabalho escolar. Mesmo difceis, as aprendizagens e os exerccios ganham o seu sentido de sua utilizao imediata. Eles so concebidos como instrumentos indispensveis procura das solues. Frequentemente reutilizados, eles progressivamente enriquecem o instrumental mental. Contrariamente ao que se acredita frequentemente, os interesses dos alunos percorrem, alis, os pontos essenciais dos currculos oficiais. Imersos na mesma cultura que os autores dos programas, as crianas vivem a mesma atualidade, se colocam os mesmos problemas, procuram as mesmas informaes. Mas os planos de trabalho no devem se submeter a uma ordem exterior s preocupaes imediatas dos alunos, nem a um recorte em partes que contradigam a complexidade interdisciplinar da maioria das questes; o estudo sincrnico com o interesse ou a atualidade que lhe induziu. A relao com o professor se encontra tambm profundamente modificada: mais que um deus ex machina revelando dia a dia captulos de uma matria a qual s ele tem a chave, o verbo ativo preparar substitui o passivo revisar. Se eles adquirem um material mental de noes e de tcnicas, os alunos tambm tm acesso a materiais mais concretos: eles utilizam a mesma documentao que os professores, e juntam deles, sempre pessoal e susceptvel de enriquecer a confrontao. A utilizao pensada de fontes variadas tem mais importncia que a assimilao definitiva de um captulo

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determinado. Ela oferece uma concepo aberta e crtica do conhecimento, que se estender muito alm do tempo dos estudos. Essa concepo do trabalho tambm se revela ao mesmo tempo mais exigente e mais divertida para o adulto. Ele observa evoluir seus conhecimentos no mesmo ritmo da evoluo cientfica, e omite frequentemente sua eloquncia para o procedimento do pesquisador, em uma equipe to solidria que os assuntos propostos pelos alunos requerem frequentemente a colaborao de diversos especialistas, tanto no secundrio como no primrio. preciso saber identificar uma pedra bizarra da mesma forma que preparar a visita a uma usina extremamente moderna ou fabricar um dinammetro e, principalmente, saber mostrar s crianas que a oniscincia no existe!Do interesse ao centro de interesse

O plano de trabalho coletivo coloca, no entanto, o problema particularmente difcil da socializao dos interesses:Se a gente tivesse, como Jean-Jacques Rousseau, apenas um mile a dirigir, haveria certo interesse a seguir as curiosidades do esprito da criana a medida do seu aparecimento. (Antologia de textos extrados de manuscritos inditos...).

Mas a individualizao completa impossvel:Do momento que reunimos certo nmero de crianas, o problema do interesse de cada um se torna difcil de resolver se uma delas deseja escrever, enquanto outra prefere passear ou fazer ginstica ou cerrar um pedao de madeira!.

A tcnica do plano de trabalho responde em parte pergunta, visto que ele repousa sobre a negociao e a pesquisa de um consenso. Resta a questo fundamental de sua coerncia.Ento eu me perguntei [...] o que era importante para que a criana, para que todas as crianas da Blgica e da Europa, e do mundo inteiro, no pudessem ignorar. Em seguida eu me perguntei quais so os conhecimentos pelos quais a criana tem mais atrao [...]. Pois bem! Eu percebi que o que importa mais para a criana, ela prpria em primeiro lugar. [...] para a criana que tudo se direciona,38

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dela que tudo irradia [...]. E assim eu considero o elemento afetivo primordial, o interesse da criana, que a alavanca por excelncia. (1921).

Em seguida do meio prximo que vm os estmulos, e sobre esse meio que se concentram as novas perguntas. Elas so as prximas suscitadas pelos fenmenos que acontecem e pelos objetos que se apresentam (1921). A criana percebe dessa forma os laos de sua prpria pessoa com os objetos que povoam seu meio natural (animais, plantas, minerais) e seu meio social (famlia, escola, cidade, sociedade). A comparao lhe permite identificar rapidamente as necessidades vitais das quais ela sofre presso, quando sente fome, frio, medo, desejo de agir; a descoberta do mundo, que recomea com cada criana, se ordena segundo as constantes universais da alimentao, do abrigo, da luta, da atividade. Essas ideias bsicas so to inelutveis que elas percorrem os grandes desafios da sobrevivncia biolgica, da escala do mais humilde animal cidade mais orgulhosa. Essas necessidades biolgicas, psicolgicas e sociais se alargam, portanto progressivamente, indo dos eventos particulares vivenciados pela criana s leis gerais da vida. Se o indivduo garante sua sobrevivncia pela alimentao, proteo, defesa, trabalho, a espcie o faz pela reproduo, adaptao, seleo, o comportamento inato ou adquirido. No caso da condio humana, o trabalho permitiu, alm disso, a acumulao cultural, graas dominao crescente da natureza, fabricao de instrumentos (entre os quais a linguagem) e aptido da criao inovadora. Essas informaes formam rapidamente tal massa de conhecimentos que a coleta dos dados cessa de ser ocasional; a ideia bsica ou centro de interesse causa a construo de um projeto a curto ou longo prazo (criao de animais, plantaes, excurses etc.). A partir de oito ou nove anos, e at os catorze ou quinze anos, a explorao de cada ideia bsica se estende durante o ano inteiro, e ao mesmo tempo assegurando a aquisio progressiva dos conheci39

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mentos. Neste estgio os sujeitos se utilizam das ideias associativas. Qualquer tema apresenta aspectos cientficos, econmicos, geogrficos, histricos, literrios, jurdicos que requerem a introduo de tcnicas e de noes emprestadas das diversas reas, sem que os seus laos jamais se percam de vista. A pedagogia decroliana atinge uma unidade propriamente fenomenolgica, levando as crianas a descobrir as leis que sustentam as aparncias. Mesmo depois de quinze anos, quando os jovens atingiram o pensamento adulto, eles mantm o hbito de reunir as opes particulares s quais decidiram se consagrar, aos vastos conjuntos que lhes do sua plena significao.Da globalizao coordenao

O globalidade inerente ao pensamento infantil encontra sua traduo pedaggica nessa interao natural de todas as facetas de um sujeito. Na escola primria, o instrutor nico assegura muito facilmente essa coordenao; no secundrio, as diversas especialidades devem necessariamente lhe assegurar pela correo e a interdisciplinaridade. Mesmo o nome tradicional dos cursos desaparece. Com os pequeninos, a globalizao do ensino decorre naturalmente da vida prpria, sem que lhes sejam impostas atividades ditas pr-escolares. A criana brinca inteiramente, as suas cargas so vagas na sala de aula, sai em excurso, faz jardinagem, colhe ou apanha. Nenhuma tela se interpe entre ela e a densidade concreta dos objetos ou dos fenmenos:ns nos encontramos na presena no de um objeto simples, mas de um conjunto extremamente denso, onde no possvel isolar o quadro, tendo em vista que este ltimo est fatalmente associado s percepes da criana. (1929a).

As primeiras medidas intelectuais se integram duplamente na funo de globalizao. Pela globalidade das coisas e pela globalizao que domina seu psiquismo:seu prprio ser est a, inteiro, a cada vez que recebe uma percepo do seu eu, que tenha fome ou sede, que esteja cansado ou com dor, que40

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tenha medo ou se zangue, que queira brincar ou sair, que pule, coma, tome banho ou se deite, sua pessoa est a, inseparvel, na sua totalidade. As lies que ele recebe dele mesmo no so seriadas segundo etapas racionais e pr-concebidas. E no entanto, ele se encontra nessa desordem aparente e consegue se entender; sua conscincia se edifica gradualmente. [...] Na criana, [...] inmeras noes penetraram [...] sem anlise antecipada, sem dissociao voluntria. (1929b).

No portanto, na maior tranquilidade do mundo que os adultos substituem arbitrariamente sua ordem nesse caos:Vamos dessa forma das partes ao todo, do simples ao composto ou ao complexo, caminho que assimilamos, alis, frequentemente a esse que consiste em passar do concreto ao abstrato e do particular ao geral.

Assim, na lgica do adulto, a superfcie mais simples que o volume, a letra que a frase, o ponto que o redondo. Em contrapartida, o que Decroly espera da educao, que ela saiba enxertar as novas aquisies sobre conquistas pessoais frequentemente ricas:A criana, quando entra na escola tem os sentidos desenvolvidos [...]. A criana tem o esprito de observao, basta no mat-lo. A criana associa abstrato, generalizado; basta lhe dar a ocasio de associar com elementos de ordem mais elevada, deix-la abstrair e generalizar sobre dados mais extensos e mais numerosos. A criana age, cria, expressa; basta lhe dar os materiais e as ocasies para que ela continue a desenvolver suas tendncias ativas. (Antologia de textos extrados de manuscritos inditos...)

Observao, associao, expresso concreta, expresso abstrata. Todo o mtodo global est a, na sua verdadeira extenso, que uma utilizao de maneira infeliz restritiva limitou a aprendizagem da leitura e da escrita. Se Decroly prope partir da representao global, para levar progressivamente a criana a desenvolver faculdades cada vez mais diferenciadas. O exame de uma surpresa na escola maternal ilustra perfeitamente esse procedimento. O objeto escondido em uma bolsa proposto por uma criana no grupo que se sentou em crculo; cada uma apalpa a bolsa, a cheira, e se esfora41

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para descrever as sensaes que ela sente. Essa ateno provocada substitui a gravao mecnica pela observao ativa; ela transforma a impresso em percepo, conceito, linguagem. A expresso concreta acompanha logo em seguida, consciente ou no, o esforo de observao; prazer, repulso, desconfiana ou inveja se traduzem em movimentos ou mmicas. Ns tambm falamos, e o adulto introduz naturalmente as novas palavras indispensveis. A experimentao submete ento o objeto a hipteses seguidas de uma explorao sistemtica. Ns o medimos, pesamos, avaliamos o seu volume. A fase de expresso concreta acaba pelo desenho ou qualquer outra representao, e aquela de expresso abstrata pela aquisio oral (jamais escrita!) de um vocabulrio j muito cientfico (comestvel, extico, infuso, instrumento etc.). Mas a observao e a expresso no operam somente no imediato; espontaneamente, a criana associa o objeto presente a lembranas de experincias anteriores, ou a hipteses antecipadas. A atividade de associao entra aqui em jogo; ela advm propriamente da abstrao verdadeira, operao realizada pela criana ela mesma. Ns a confundimos muito frequentemente com a abstrao no sentido escolar do termo, a qual no consiste em utilizar a bom conhecimento de causa entidades formais j feitas. Abstrair outra coisa: a criana o faz desde quando ela distingue em um objeto concreto os traos significativos que permitem descrev-lo. Primeiro se constri uma lgica intuitiva, que ter progressivamente a tendncia a se racionalizar sem por isso se limitar a modelos formais. O acesso ao simblico, palavra, ideia releva de um trabalho consciente da anlise sobre dados concretos fornecidos pela observao e fixados pela expresso, que transforma dessa maneira as percepes em representaes. Os conceitos podem desde ento se prestar a conexes, relaes, sistematizaes. Passando assim do espcime ao tipo, do particular ao geral, do elemento estrutura, do unitrio srie, a criana reproduz o

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mesmo percurso da cincia experimental. Em contrapartida, os formalismos precoces e as proezas operatrias da inteligncia pura reproduzem inevitavelmente os antigos modelos escolsticos. Se limitando a objetos cognitivistas, a educao no mutila somente a inveno, a afetividade, a criatividade. Ela tira da prpria inteligncia o suporte essencial da matria. O pensamento se nutre dos vai e vem do concreto ao abstrato, to indispensveis um quanto o outro compreenso do real dando-lhe a ocasio de estar to conforme quanto possvel com a verdade (Antologia de textos extrados de manuscritos inditos...). Dessa forma o mtodo decroliano no se coloca nem dedutivo nem indutivo a priori: ele intuitivo e construtivista. Ele leva cada criana a mobilizar seus recursos pessoais, internos, para elaborar seu prprio saber. Produz os materiais que melhor lhe convm e que ele utilizar em toda a sua vida. Na sala de aula ou na escola, cada grupo fabrica seu prprio material escolar, utilizando os recursos de inmeras oficinas (carpintaria, estufas, pedao de terra, animais, prensa, cozinha, laboratrio, biblioteca etc.). Criana operria, criana artes, criana autora, elas so elas mesmas donas de seus desenhos, de seus cadernos, de suas colees, de seus documentos, de suas obras. Elas adquirem assim uma autonomia que lhe servir ao longo de sua formao. A educao que receberam nunca favoreceu a competitividade nem a performance espetacular, mas encoraja a autoeducao. Seus trunfos so modestos, mas seguros: gosto e sentidos da pesquisa, responsabilidade no trabalho pessoal, saber tomar notas individuais precocemente, saber manejar um esboo e seu esquema, aptido a encontrar e explorar uma documentao. A avaliao contnua substitui evidentemente os exames. Ela repousa sobre a apreciao largamente comentada do esforo e do progresso de cada um, sem nota numerada, mdia nem classificao. Relatrios regulares substituem os boletins; eles descrevem a evoluo fsica, social e

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intelectual de cada aluno. Graas ao comentrio detalhado de suas atividades, cada um aprende a conhecer seus pontos fortes e fracos e se orientar no sentido dos domnios que desenvolvem o mais completamente suas aptides, seus desejos, suas escolhas. Mesmo intenso, o esforo que requisitado aos alunos nunca excede suas possibilidades. A orientao que eles daro s suas vidas beneficiar a lucidez e a confiana que adquiriram por seus prprios meios.Inverso de prioridades

A lgica desse projeto educacional global leva inevitavelmente derrubada da ordem tradicional das matrias:Ns damos um lugar preponderante s atividades que favorecem a cultura em profundidade; evidentemente que nos sobra menos tempo para as aquisies de superfcie. [...]Nas escolas atuais, efetivamente, aos exerccios de leitura, de ortografia e de escrita que se oferece mais tempo. (1921).

Decroly tambm ameniza os prazos. Por que preciso comear esses conhecimentos na data fatdica do primeiro dia de aula e na idade oficial de cinco, seis ou sete anos (segundo os pases), sem sequer levar em conta a idade real? Por que uma criana nascida no dia primeiro de janeiro deve se encontrar com uma outra nascida no dia 31 de Dezembro do mesmo ano? Alm disso, as dificuldades inerentes aquisio dessas tcnicas estritamente formais impedem as crianas de compreender a utilidade, durante um perodo mais ou menos longo, no exato momento onde eles deveriam adquirir o amor pela escola. Em fim, elas condenam ao fracasso muitas crianas, principalmente se elas so mal servidas por um uso incerto da linguagem.Elas so reunidas com a finalidade de lhes serem inculcadas quer queira quer no, ora? E o que? Hierglifos que ns chamamos nmeros, outros hierglifos que ns chamamos letras, que eles devem ento durante horas manipular, que eles devem reconhecer e reproduzir a forma ou o som, sem que eles vejam em nada a finalidade, a utilidade, nem principalmente o prazer de tal trabalho. (1940b).44

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Agora, ao contrrio, se a escola se constituiem um meio natural simples e sincero, em um ambiente vivo, [...] a observao dos fenmenos da natureza, dos animais, das plantas e das diferentes atividades humanas uma fonte inesgotvel [de dados] que, j durante o percurso do exerccio de observao, d lugar a problemas, a pesquisas de operaes e resoluo mental ou escrita destas ltimas. (1932b).

Assim, o ensino se v designar a misso de introduzir racionalmente e em tempo til as tcnicas e as noes necessrias ao tratamento dos contedos provindos da curiosidade espontneas das crianas. Essas matrias instrumentais (a sagrada trilogia ler/escrever/calcular!) so de agora em diante ditas secundrias, porque Decroly as limita sua funo especfica de instrumentos do conhecimento, mas nem por isso elas so desprezadas. Ele d muita importncia ao instrumento para desconhecer a utilidade. No entanto, ele modifica profundamente as condies habituais do conhecimento, para que a criana crie laos para dominar tendo adquirido a plena conscincia dos servios que o clculo pode lhe render, a leitura, a escrita.A medio

A abundncia das informaes coletadas, ocasionalmente ou no, conduz muito cedo medio, termo ao qual Decroly d o sentido de ao de medir, pela qual a criana acessa a quantificao dos fenmenos. preciso se esforar, no incio do ensino do clculo, de tirar partido, a cada momento, da funo de comparao, ou seja, favorecer as aproximaes entre os objetos presentes e novos com os objetos familiares e conhecidos e incentivar a criana a constatar a identidade, a semelhana ou a diferena, e faz-lo de uma maneira cada vez mais precisa. Na comparao se relaciona ento estreitamente os exerccios sobre as quantidades contnuas ou descontnuas, que do lugar a operaes com os nmeros. Mas, no se pode perder de vista que o objetivo que se quer alcanar no a aquisio de um procedimento de operao, objetivo embora til, mas sim aquele de um julgamento lgico ajudado por meio de medidas que favorecem resultados mais exatos. (1932).45

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Para facilitar essas passagens da impresso qualitativa para a medida quantitativa, Decroly utiliza termos familiares entrelaados s percepes: muito, pouco, mais, menos, demais, bastante, tanto, vrios, alguns. Por aproximaes sucessivas, a criana controla cada vez melhor as pores de espao e de tempo. Ela para de numerar ao acaso nmeros de maneira cantada para construir nmeros que expressam um contedo preciso. Ganha acesso s medidas de espao por normas naturais: palmos, envergadura, propores, pernadas etc. acordadas pelo grupo. Nas primeiras contas, simplesmente numerais, sucedem as operaes mais complexas, com tanto que seja necessrio recorrer a medidas diferentes, trs mais uma pernada, por exemplo. As propriedades do espao so designadas por jogos: classificaes por comprimento, largura, ngulos crescentes ou decrescentes; as figuras geomtricas se obtm por esquematizao de objetos naturais. apreciao de volumes e de pesos procede a experimentao. Inmeras possibilidades surgem o tempo todo, auxiliadas por instrumentos de medida elementares. da comparao com unidades naturais que nascer a passagem para as unidades convencionais de medida: ns as descobrimos nos mercados, fazenda, padaria, mas vamos ficar com o habito, prprio dos artesos, de se servir do seu corpo para as avaliaes rpidas. A passagem para as operaes provm da vida coletiva. O tempo todo, preciso juntar, tirar, dividir, distribuir. Elas ficam na mente o mximo possvel. O acesso rpido demais ao clculo escrito multiplica inutilmente os algarismos, e provoca o esquecimento da unidade fundamental de cada forma de clculo (a da diviso e da frao, por exemplo). A medio do tempo exige a mesma familiaridade cautelosa e progressiva com a abstrao. Ela comea por calendrios nos quais, dia aps dia, o grupo percebe os dados metereolgicos, as atividades sucessivas do dia (a escola e a casa), as do ms, da estao.

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As primeiras medidas se fundem na durao vivida, sem referncia ao sistema do horrio. Em seguida as medidas convencionais se instalam. A perspectiva temporal adquire muito mais profundidade medida que a criana levada a distinguir antes, depois, durante, muito tempo, s vezes etc., a mergulhar no passado de sua famlia e de sua regio. Por fim, a atividade matemtica concreta se fundamenta tambm no valor, a introduo global repousa no afinamento dos termos de comparao: bom, melhor, pior, grande, mdio, inferior, superior etc., que se impem naturalmente na fase de associao das ideias. A conscincia dos custos diz respeito gesto cotidiana: preparar uma excurso, calcular o custo de um piquenique, comparar as mercadorias da loja, montar um jornal da escola. Na medida em que a matemtica se consagra como instrumento universal, cada vez mais necessrio para a aproximao de qualquer cincia ou tcnica, a programao dessa iniciao concreta impregnar toda a sequncia dos estudos, na qual predominar a resoluo de problemas verdadeiros, mesmo se tcnicas e noes muito abstratas impem o desvio por lgicas e simbolismos alheios a toda realidade concreta.Leitura/escrita

Decroly mencionado (exageradamente!) como inventor do mtodo global da leitura/escrita. Seria mais procedente e exato dizer que ele foi o promotor do mtodo funcional, mas seria ainda injusto no entender o radicalismo com o qual ele ousou superar as aprendizagens grficas at a educao sensorial, motora, fsica, cientifica artstica. Aprender a ler [...] no suficiente para saber o que se deve ler, quais so as leituras teis, as que no so, aquelas que fazem bem, as que fazem mal. (Segers, J. E. A psicologia da criana normal e anormal segundo o Dr. Decroly).

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Ele provoca dessa forma uma verdadeira inverso das prioridades escolares. As atividades de observao, associao, expresses concretas dominam amplamente o horrio e se verbalizam no oral muito mais que no escrito. As crianas falam, naturalmente, espontaneamente, livremente. A riqueza, a cor, o entusiasmo da palavra familiar muito mais importante do que o purismo pedante da escola. A iniciao leitura e escrita s acontece a partir de textos que esto em relao direta com a experincia concreta imediata, e sempre acompanhada por um suporte figurativo (desenho, maquete, objetos diversos). Os primeiros livros de leitura so os cadernos, o texto impresso, o painel que agente pendura, a mensagem que circula na coletividade. Frequentemente chamado de mtodo global porque ele repousa necessariamente sobre frases completas e dotadas de um sentido claro, o procedimento deo-visual de leitura e escrita longamente experimentado por Decroly e seus colaboradores, resulta, portanto, da leitura inteligente, aquela que submete a escrita ideia, o cdigo informao. Ele se apoia na leitura silenciosa e evita deliberadamente a soletrao. Perguntas sobre o sentido asseguram o controle do entendimento e frisam a funo assumida por cada palavra. A anlise dos elementos constituintes grficos comea de uma vez s e coloca em jogo, mais uma vez, a observao e a associao. Servindo-se de critrios cada vez mais exatos, a criana identifica no o sentido, mas as fronteiras das palavras, e depois das slabas, e depois da grafia. Quando a criana entende o funcionamento do sistema, est apta a ler ou escrever qualquer coisa, pela decomposio e pela recombinao dos elementos grficos. Para uns, algumas semanas bastam, enquanto que outros levaro muito mais tempo (um ano e meio, dois, s vezes mais). O desconhecimento dos ritmos indi-

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viduais de maturidade compromete dramaticamente o futuro escolar das crianas para as quais bastaria esperar. Existem muitas outras atividades, mais substanciais e mais favorveis ao desenvolvimento da compreenso, mesmo para os leitores precoces. De fato, a maioria domina bastante facilmente (a qualquer idade!) as regras ortogrficas e sintaxe morfolgica, graas aos reflexos de autocorreo facilitada pelo uso constante dos instrumentos. O auxlio do dicionrio e dos livros de gramtica incentivado desde a infncia, e autorizado a qualquer momento, mesmo e principalmente no decorrer de uma prova de dissertao, ou de interpretao de textos ou ainda de ortografia. Se a criana se afirma primeiro na leitura silenciosa, o procedimento audiovisual no impede de forma alguma a leitura em voz alta de textos j compreendidos, na musicalidade expressiva da recitao, e depois no teatro. A troca de mensagens, a conversa, a consulta de textos atuais impem tambm a oralizao. Muito rapidamente, assim que a criana aprende a ler, a pesquisa de comunicao introduz o livro, o jornal, a correspondncia. O respeito sensibilidade literria individual preserva a liberdade de escolha das leituras e das composies pessoais. Suas variaes enriquecem a anlise textual e oferece a formalizao cada vez mais fina da reflexo, da imaginao, da sensibilidade. A formao literria no se limita a um s patrimnio nacional; amplamente comparativa, ela se abre s ideias e s obras do mundo inteiro. A escola em primeiro lugar um lugar de comunicao, onde se desenvolve uma massa muito densa de trocas. Desde os primeiros tempos do lErmitage, todos os alunos participam regularmente da criao teatral coletiva fixao dos cartazes nos muros, s diversas assembleias. O Correio da escola, criado em 1909, por um grupo de crianas sem a ajuda de nenhum adulto, e feito por elas em sua prpria editora, ilustra particularmente bem esse papel social. Enquanto suportes para a informao ou da diverso, essas

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trocas no so deliberadamente concebidas como atividades de aprendizagem, e sua correo acadmica se limita s necessidades da compreenso.A cultura em profundidade

Est na lgica do projeto decroliano que a persistncia das dificuldades nunca possa comprometer o futuro escolar de quem quer que seja. As fraquezas so superadas pelas prprias crianas ao preo de uma maior vigilncia, s vezes, at mesmo perfeccionista, mas tambm graas abundncia de suas produes. Elas so principalmente compensadas pelo reforo das qualidades positivas das crianas em outros domnios, graas a um princpio que rejeita sistematicamente a nota dita de excluso e no concede nenhum status preferencial a nenhuma matria. A proposta da educao decroliana se diversifica, evidentemente e sem parar, para as etapas de desenvolvimento entre os trs e os dezoito anos de idade. A globalizao e, depois, a interdisciplinaridade no impedem de forma alguma a particularizao crescente de todas as matrias, em funo das orientaes escolhidas. O ritmo natural da construo do saber nunca sacrificado impossvel pretenso de exausto que caracteriza os programas clssicos. Alm disso, a aprendizagem no deve ser pensada apenas para os dezoito, vinte ou vinte e cinco anos. Todo o ensino, do primrio ao superior, coloca obstculos de espera sobre os quais novos conhecimentos se construiro durante toda a vida. A ttulo de comparao, se alarga aqui capacidade de transferncia, de extrapolao, tratando sem pressa e completamente todos os aspectos de um sujeito, a criana se constituiu em uma caixa de ferramentas. Ela procurar na caixa aquilo necessrio para tratar as novas questes. Ao longo dos dias, sua documentao pessoal se enriquece de prospectos, de cartes postais, de artigos. Ela sabe onde

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encontrar os livros de referncia, jornais, endereos teis. Ela tem muito mais confiana em suas prprias capacidades de inveno, de descoberta, de trabalho pessoal do que na frente de algum adulto gratificado de uma cincia inculcada. Aberta atualidade, a escola mais conhecimento e pesquisa do que transmisso, muito mais local de fazer cincia do que de doutrina. A poca de Decroly era particularmente frtil em inovaes, em todos os campos. Estava claro daquela poca em diante que todo saber s procede do conhecido para integrar o desconhecido. Uma cultura til s poderia ser moderna, mas a sua prpria modernidade jogava no passado uma nova