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Jo beverley - donzela ou devassa

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DDoonnzzeellaa oouu DDeevvaassssaa?? JJoo BBeebbeerrlleeyy

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DDoonnzzeellaa oouu DDeevvaassssaa?? Lady Beware

JJoo BBeevveerrlleeyy Bestseller 174

Londres, 1817

A dama e o rebelde

Thea acha que seu único problema é um vestido de baile manchado, mas depois de conhecer o

visconde Darien, seu mundo vira de pernas para o ar. A atração entre ela e lorde Darien é imediata,

e Thea sabe que aquilo não se trata de um flerte inocente. Mas será que ela pode confiar no

visconde? E mesmo que ela queira confiar, como conseguirá convencer sua família, especialmente

seu irmão, de que Horatio não merece a amaldiçoada reputação dos Cave?

Durante gerações, a família Cave foi marcada pelo escândalo, pela loucura e pela violência.

Mas depois de conquistar reputação e prestígio por sua coragem e lealdade no Exército, o visconde

Darien, está determinado a encantar a sociedade londrina e a recuperar o bom nome de sua família,

E ele pretende começar com a adorável lady Thea Debenham. Thea sempre foi uma dama, o que

serve muito bem aos seus propósitos. Mas ao descobrir de quem ela é irmã, Darien começa a se

perguntar se ela de fato é a dama perfeita que parece ser, ou se tem algum segredo guardado

Digitalização: Alice A.

Revisão: Aliane

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ROMANCES NOVA CULTURAL

A lista de bestsellers do jornal The New York Times é baseada nos relatórios de ver emitidos por

comerciantes de livros dos E.U.A., desde pequenas lojas e distribuidores até as grandes redes de livrarias e

megastores. Publicada desde 1942, a lista se tornou uma importante fonte de referência para as pessoas que

querem saber quais são os livros que realmente vale a pena ler. Colocamos o selo para indicar ao leitor quais

as autoras que têm essa distinção. A série bestseller só será composta de autoras que se destacam nessa lista.

Jo BEVERLEY é autora de mais de 25 romances históricos, e seu nome é citado nas listas de mais

vendidos dos jornais New York Times e USA Today, Jo ê membro honorário da Associação de Escritores de

Romances da América, já ganhou cinco vezes prêmio RITA e duas vezes o prêmio da revista Romantic

Times.

"Com seu talento para criar tramas inteligentes, diálogos instigantes e emoções que aquecem o

coração, Jo Beverley encanta as leitoras com um conto sobre coragem, honra, confiança e a magia do

amor!" Romantic Times.

NOVA CULTURAL

ISSN: 1516-3008

www.romancesnovacultural.com.br

9771516300007 NOTA EDITORIAL

Para melhor atendê-la, decidimos agilizar os lançamentos de nossos Romances em todas as regiões do Brasil.

Por isso nossa distribuição passará a ter somente 2 fases:

— Fase 1: Estados de São Paulo e Rio de Janeiro

— Fase 2: Demais Estados do Brasil

Dessa maneira, as bancas do interior do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro terão os lançamentos com maior

rapidez, ao mesmo tempo em que a Grande São Paulo e Grande Rio de Janeiro.

Os demais Estados do Brasil passarão a receber os Romances em, no máximo, 60 dias. Ou seja, a metade do

tempo da distribuição atual.

Aproveite para acessar nosso site: www.romancesnovacultural.com.br e consultar os lançamentos de sua região.

Assim, você poderá ler um trecho de cada romance, inteiramente grátis!

E mais: as séries Bianca e Clássicos Históricos agora estão com 240 páginas! Muito mais páginas para ler, curtir,

imaginar e sonhar.

Mais romance e mais emoção em cada livro!

Além disso, todos os Romances estão sendo impressos em papel mais encorpado e com textura mais macia.

O que torna o livro gostoso de manusear, com uma tonalidade suave e com melhor definição de impressão,

facilitando a leitura e tornando-a muito agradável.

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"Jo Beverley é um dos maiores nomes no gênero romântico." Romantic Times

"Perigo, intriga e paixão se mesclam brilhantemente neste sensual romance histórico de Jo Beverley!" Booklist

"Jo Beverley encanta as leitoras da primeira à última página, com uma joia de romance..." The Romance Reader

"Donzela ou Devassa?, é uma história de amor que toca o coração. As fãs de Jo Beverley vão adorar, e

as leitoras que ainda não conhecem a obra desta talentosa autora vão descobrir o que estavam perdendo até

agora..." Romance Reader at Heart

"Os livros de Jo Beverley são o que há de melhor na literatura romântica." Rendezvous

"As leitoras vão se encantar com este maravilhoso romance de suspense de Jo Beverley." Harriet Klausner

"Jo Beverley é uma contadora de histórias nata." Mary Jo Putney

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Querida leitora,

A crítica literária é unânime em elogiar os romances de Jo Beverley, que têm sido citados

como agradáveis, extraordinários, originais e sensuais. Em Donzela ou Devassa?, ela dá vida ao

período da Regência é aos seus personagens, com uma cativante e inesquecível história de amor,

paixão e honra que superam todos os obstáculos...

Leonice Pompônio

Editora

Jo Beverley

DONZELA OU DEVASSA?

Tradução Sulamita Pen

Copyright ©2007 by Jo Beverley Publications, Inc.

Originalmente publicado em 2007 pela Penguin Group, Inc.

PUBLICADO SOB ACORDO COM PENGUIN GROUP, INC.

NY, NY — USA

Todos os direitos reservados.

Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou

mortas terá sido mera coincidência.

As publicações da Editora Nova Cultural não podem ser reproduzidas, total ou parcialmente,

seja qual for o meio, mecânico ou eletrônico (inclusive digitalização),sem a permissão expressa da

Editora. A reprodução das publicações sem a devida autorização da Editora constitui crime de

violação de direito autoral previsto no Código Penal brasileiro.

TÍTULO ORIGINAL: LADY BEWARE

EDITORA Leonice Pomponio

ASSISTENTES EDITORIAIS

Patrícia Chaves

Silvia Moreira

EDIÇÃO/TEXTO Tradução: Sulamita Pen

ARTE Mônica Maldonado

MARKETING/COMERCIAL Andréa Riccelli

PRODUÇÃO GRÁFICA Sônia Sassi

PAGINAÇÃO Ana Beatriz Pádua

Copyright © 2010 Editora Nova Cultural Ltda.

Rua Butantã, 500 — 9º andar — CEP 05424-000 — São Paulo SP

www.novacultural.com.br

Impressão e acabamento: Prol Editora Gráfica

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CCaappííttuulloo II

Londres, maio de 1817.

Lady Thea Debenham tirou rapidamente o traje verde.

— Harriet, um vestido novo, depressa!

— Pelo amor de Deus, milady! — a criada gemeu e apanhou a roupa manchada como se esta

fosse uma criança ferida.

— Eu sei que você é capaz de fazer mágica. Por favor, outro vestido.

— Qual deles, milady?

— Não me importa! — O que não era verdade. Thea olhou-se no espelho. A roupa íntima

sempre combinava com o vestido e ela estava usando verde dos babados do espartilho até a barra da

anágua. — Eu tenho algum que combine com essa cor?

— Não, milady.

Thea mordeu o dedo, percebeu que estava de luvas de seda e retirou-as.

— Qualquer um que eu ainda não tenha usado.

Harriet correu ao quarto de vestir.

— Sapatos que combinem! — Thea gritou.

Ela tentou tirar o calçado, mas foi impedida de abaixar-se por causa das barbatanas do

espartilho. Havia escolhido para aquela noite o vestido mais elegante de seu guarda-roupa. A moda

ditava decotes baixos e havia sido isso que ocasionara o desastre. O marquês de Uffham ficara tão

encantado com o busto de Thea que entornara beterraba em conserva sobre o vestido dela.

Duas damas gritaram e Thea tivera vontade de fazer o mesmo. O vestido fora estragado na

primeira vez em que o usava, e justo naquela noite. Thea andou pelo quarto, fazendo barulho com a

anágua de seda.

Para todos os efeitos, o baile dado por sua mãe era para celebrar o noivado do irmão de Thea,

lorde Darius Debenham com lady Mara St. Bride. Sob essa intenção feliz, havia um motivo mais

sério. Novos problemas haviam surgido para Darius.

Ele havia sofrido muito. Lutara em Waterloo, fora ferido e dado como morto. Durante mais de

um ano, Thea e sua família acreditaram nisso, atormentadas. Ele de fato não morrera, mas a mulher

que tinha cuidado dele dera-lhe ópio durante muito tempo e, quando Darius voltou para a Inglaterra,

estava fraco e viciado.

A família cuidou dele e ele, por fim, acabou encontrando o amor. Ele lutou e lutou até que foi

capaz de sobreviver com uma pequena dose diária de ópio. E como se o destino não quisesse vê-lo

feliz, começaram os boatos apavorantes. Toda Londres comentava que a origem de seus ferimentos

em Waterloo fora desonrosa em uma tentativa de fugir do campo de batalha.

Quem o conhecia, sabia que isso não era verdade, mas Darius de nada se lembrava, e o pavor

de que isso fosse verdade o consumia.

Enquanto não encontrassem uma testemunha entre as centenas de homens que haviam estado

na batalha, nada poderia ser esclarecido. A impressão que se tinha era de que uma névoa baixara

sobre o campo de batalha, a ação se dissolvera e agora cada um só sabia de si.

Então só restava a Thea e a sua família aparentarem confiança e usar cada fração de sua

imensa influência. O baile preparado apressadamente fora o desafio lançado por eles para toda a

sociedade. Os que comparecessem mostrariam que não acreditavam em tamanha sandice. Os que

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não viessem, não contariam mais com a amizade da família.

Claro que as figuras mais importantes haviam comparecido. O duque e a duquesa de Yeovil

eram poderosos e admirados, contudo, Thea sentira que os sorrisos escondiam o que realmente

estavam pensando e até chegara a ouvir uma insinuação ou outra.

A história seria verdadeira? Afinal, lorde Darius não era um soldado, mas sim um cavalheiro

voluntário Não seria de surpreender que diante de uma batalha tão terrível...

Seria por isso que ele demorara tanto em voltar para casa, deixando a mãe em desespero?

Seria a culpa que tornava o ópio necessário?

Thea sorrira, dançara e flertara, mostrando ao mundo que a família de Darius não alimentava

dúvidas. Mas o desastre acontecera e ela agora estava no outro lado da casa, de roupas íntimas.

— Harriet!

— Estou indo, milady! — A criada entrou no quarto, carregando um vestido de seda

vermelha, espartilho e sapatos combinando.

— Ah, este.

Thea fora apelidada de "A Ilustre Inatingível". Fria, distante e orgulhosa. E nem poderia ser

de outra forma. Em 1815, por ocasião de sua primeira temporada, Napoleão voltara a atormentar a

Europa e Darius partira para a luta. Quem pensaria em frivolidades?

No ano anterior, a temporada havia sido um desastre. Ainda pensavam que Darius estava

morto e Thea somente aceitara vir para Londres com a intenção de distrair a mãe. Não era de se

surpreender que evitasse os pretendentes e se conservasse distante e séria.

Aborrecida com o apelido, encomendara vários vestidos ousados para o ano em curso. O

verde estava imprestável e ela nunca havia usado vermelho antes.

— Está bem. — Thea segurou o espartilho e jogou-o sobre a cama. —Não dará tempo de

trocar por esse.

— Mas o verde...

— Ficará coberto. Depressa.

Reclamando, Harriet ergueu o vestido sobre a cabeça de Thea, que enfiou os braços nas

mangas. O resto deslizou como água. Ou sangue...

Deus! Thea olhou o reflexo no espelho. Na última moda, de cintura alta, o tecido colando no

corpo.

— Não é um pouco exagerado, milady? — Harriet arregalou os olhos.

A criada tinha cerca de trinta anos e estava com Thea havia apenas dois anos, raramente

emitindo opinião própria. Portanto seu comentário devia ser significativo.

— Deus — Thea disse em voz alta.

— Vou buscar outro, milady...

— Não há tempo. — Assim que o vestido foi abotoado, Thea sentou-se no banco. — Os

sapatos.

Harriet substitui os verdes pelos vermelhos de cetim, amarrando as fitas.

Ao espelho, Thea concluiu que pérolas não combinavam com vermelho, mas as outras joias

estavam no cofre do pai. Sentou-se diante da penteadeira e entendeu que, pelo menos, a tiara de

rosas brancas teria de ser substituída.

— Veja o que se pode fazer com meus cabelos.

Enquanto Harriet arrumava as madeixas castanhas, Thea observou o busto alvo e pronunciado

pelo espartilho que se destacava no decote vermelho, quase como numa afronta. Talvez devesse

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trocá-lo.

Harriet prendeu botões de rosas vermelhas com fitas nos cabelos de Thea. Nisso o relógio da

lareira soou onze horas. Thea levantou-se, pegou o leque de madrepérolas — também não

apropriado para vermelho, mas combinado com o colar — e dirigiu-se rumo à porta.

— Milady!

Thea virou-se com o grito.

— O que foi?

Harriet apontava para ela, de olhar esbugalhado. Thea olhou no espelho. Um babado estreito

de renda verde aparecia sob o decote vermelho.

— O outro espartilho, milady...

— Vai demorar muito. — Thea puxou o vestido para cima e o espartilho para baixo,

mexendo-se para ajeitar as peças. — Pronto.

— Milady...

— Esqueça, Harriet e veja se pode limpar o verde.

Pouco depois, Thea passou pelo corredor com destino ao salão de baile. Depois da primeira

curva, olhou-se no espelho de moldura dourada, iluminado por um candelabro de parede. O

centímetro de renda verde tornara a aparecer.

Peste!

Jogou o leque sobre uma pequena mesa e tornou a ajeitar o traje. Baixo demais! A área mais

escura ao redor dos mamilos estava à mostra. A sociedade pregava modéstia e bom comportamento,

mas esperava que as mulheres se vestissem de acordo com a moda escandalosa.

Suspirando, empurrou o busto para baixo e rodou os ombros para provar a estabilidade do

arranjo.

Nesse momento, algo lhe chamou a atenção e ela olhou para a esquerda.

No corredor sombrio, um homem de cabelos escuros a observava com malícia.

Com raiva, Thea abriu o leque e usou-o como escudo.

— Quem é o senhor e o que está fazendo nesta parte da casa?

O desconhecido não respondeu. Thea conhecia todos os que tinham motivos de estar na

Mansão Yeovil naquela noite e certamente não o esqueceria se ele lhe houvesse sido apresentado.

Sem ser gordo ou alto demais, sua presença lotava o corredor com ar de comando e poder.

Apesar da sombra, Thea notou que as feições dele eram bem formadas e enérgicas.

O traje escuro de gala falava em riqueza, assim como o brilho das joias na gravata branca.

Mas não se tratava de um cavalheiro ou não olharia para uma dama daquela maneira.

Quem seria o estranho que invadia as partes privativas da casa, fazendo seu coração disparar?

— Sir?...

— Madame? — O tom caçoísta revelou uma voz melodiosa.

Teria ele sotaque estrangeiro? Talvez fosse um dos novos membros de alguma embaixada. Os

diplomatas persas em geral convidavam as damas para se juntarem a seu harém.

— Está perdido, sir? Esta é uma ala particular da casa.

Sem responder, ele se aproximou. Thea recuou, com vontade de gritar, o que seria ridículo na

casa de seu pai.

— Sir... — Ela estendeu a mão enluvada com a palma para cima. — Pare!

Ele obedeceu e o pânico de Thea cedeu. Detestaria causar um incidente diplomático, mas o

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instinto a avisava do perigo e ela apontou o corredor.

— Posso acompanhá-lo de volta ao baile?

— Saberei achar o caminho sozinho.

Thea estacou, com a mão estendida. O inglês dele era perfeito.

— Então o deixarei à vontade. — Thea adiantou-se para passar por ele.

Ele, no entanto, bloqueou-lhe a passagem e Thea parou, com a boca seca. Ora, ela não poderia

estar em perigo, ao lado da família e dos criados.

Se gritasse, ninguém a ouviria. Sua família estava com os convidados e a maioria dos criados

encontrava-se ocupada no salão. Até mesmo Harriet deveria ter ido para a lavanderia com o vestido

manchado. Portanto, ela estava só num corredor com um homem perigoso.

— Sir? — A palavra foi pronunciada com oitocentos anos de poder aristocrático.

Ele inclinou a cabeça.

— Às suas ordens, madame. Dependendo, é claro, do serviço desejado.

Thea reparou na ênfase e lembrou-se da maneira como ele a observara.

— Deixe-me passar.

— Eu disse que dependeria.

— O senhor é um grosseirão mal-educado. Saia do meu caminho!

— Não.

Thea fitou-o com raiva, querendo forçar a passagem, mas sabendo que ele a impediria com

facilidade.

— Então irei por outro caminho. — Ela virou-se com a intenção de se afastar.

Ele, porém, a segurou pelo vestido. Thea se deteve, apavorada.

— Se o senhor soubesse quem eu sou... — ela disse com voz rouca de raiva.

— Suponho que deve ser lady Theodosia Debenham.

Céus, ele a conhecia?!

— Essa é alguma brincadeira ridícula? — ela indagou.

— Não.

— Então o que o senhor está fazendo?

— Tentando conversar com milady. Thea inspirou duas vezes.

— Solte-me.

Para sua surpresa, ele obedeceu. Thea decidiu não correr, pois ele a pegaria facilmente. Por

isso, limitou-se a encará-lo com dignidade. Abriu o leque e abanou-se, tentando controlar as batidas

aceleradas de seu coração.

De perto, ele era um homem bonito, apesar do nariz ligeiramente torto por alguma violência e

algumas cicatrizes.

Aquele homem certamente conhecia o perigo e o carregava.

Não deveria mostrar medo diante de um animal perigoso.

— Eu não o conheço, como é que sabe meu nome?

— Milady é parecida com seu irmão. Estivemos juntos no colégio.

O medo cedeu um pouco.

— O senhor faz parte da Confraria? — Thea não havia conhecido todos os amigos de Darius

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do tempo do Colégio Harrow que faziam parte de um grupo que se auto intitulava Confraria dos

Rebeldes, mas não era esse o comportamento que esperaria deles.

— Não.

Thea alarmou-se com o tom enfático.

— Seja quem for, o senhor é muito velho para se comportar como um colegial. Deixe-me

passar.

Ele ergueu as sobrancelhas escuras.

— Milady tem confrontações freqüentes com colegiais?

— Deixe-me passar! — Thea fechou o leque.

Ele não se moveu.

— Assim que derem por minha falta, virão à minha procura e o senhor terá o que merece.

— Isso raramente acontece.

O sorriso foi ligeiramente torto causado por uma pequena cicatriz no canto esquerdo da boca e

outra que puxava para cima a sobrancelha direita. Ele era perigoso e apesar das palavras corajosas,

Thea sabia que ninguém viria a essa parte da casa tão cedo. Mesmo um grito não poderia ser

ouvido. Não demonstre medo.

— Quem é você e o que deseja?

— Meu nome é Horatio e quero lhe falar.

— Já está falando, mas sem nenhum propósito.

— Isso está fazendo seu busto soerguer-se deliciosamente.

Thea espiou para baixo, disse uma imprecação e o fitou, brava.

— Fale!

— Ou jamais terei paz? Parece razoável. Tenho uma proposta para milady.

— Por acaso está pedindo para eu me casar com você? — Thea brincou.

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Milady aceitaria?

— Claro que não! Chega. Deixe-me passar, Sr. Horatio ou vai se arrepender amargamente.

— Talvez isso aconteça com seu irmão.

Thea pensou ter tomado um banho de água gelada.

— Você disse que era amigo dele.

— Todos que freqüentaram o colégio com Darius Debenham têm de adorá-lo? Talvez ele

precise de amigos agora e mesmo aleijados, arrebentados ou viciados em ópio.

— Ele não é...

— Foi acusado de covardia.

— O que é uma grande mentira. — Thea estreitou os olhos. — Você é o responsável por essa

história? Se isso for verdade, é o verme mais desprezível que já rastejou pela face da Terra.

— Milady fala sempre com vermes?

Thea gostaria de atingi-lo com o leque, mas isso resultaria na destruição de uma obra de arte e

não teria efeito. Um martelo certamente não o marcaria.

Ele ergueu a mão, talvez se desculpando.

— Nada tem a ver com os boatos, mas já que eles estão aí, sua mãe poderá dar um baile por

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semana e convidar toda a sociedade que de nada adiantará. Milady precisa de uma testemunha

confiável para negar a história, ou a mesma nunca abandonará seu irmão.

— E você acha que não sabemos disso?

— Algumas vezes declarar o óbvio ajuda.

— O que o agrada, é óbvio. Você deseja o mal para Darius e ninguém faz isso com ele.

— Verdade? O fato deve ser muito agradável para ele. Qualquer prazer que eu tenha é apenas

por permitir-me corrigir o erro.

Thea não acreditava nele.

— Por quê?

— Por uma recompensa condizente.

— Ah, dinheiro — ela disse, sarcástica, e os lábios dele se curvaram num sorriso.

— Lady Theodosia, as pessoas escarnecem do dinheiro quando nunca sentiram falta dele.

Aquele era o encontro mais bizarro da vida de Thea, mas ela começava a ver o que fazer,

mesmo desapontada com o comportamento desprezível dele.

— O que você tem a oferecer e qual seu preço?

— Posso dizer ao mundo que vi o cavalo de seu irmão ser atingido no meio da batalha. Em

outras palavras, honradamente.

Thea procurou não demonstrar a ansiedade que sentia.

— Isso seria verdade?

— O que importa?

Era uma pergunta surpreendente. Para salvar Darius da desonra, ela mentiria para si mesma se

fosse necessário.

— E você receberia crédito?

Horatio inclinou a cabeça.

— Lutei em Waterloo e próximo dele.

Claro que ele era um soldado e isso não o tornava menos perigoso, mas pelo menos ela

entendia. Sua vida adulta fora rodeada de oficiais. Eram de todos os tipos, mas tinham algo em

comum. Tinham visto os olhos da morte e dela haviam escapado. E naquele homem isso era

particularmente potente. O entendimento atenuou a ansiedade de Thea, porém o principal conforto

era saber que se tratava de um assunto de compra e venda.

— Qual seu preço?

— Casamento. Milady se casa comigo e eu limparei o nome de Darius.

Thea não conteve uma risada.

— Não seja ridículo!

— Faz tão pouco-caso de seu irmão?

Dessa maneira, parecia errado recusar, mas a idéia era absurda.

— Gosto muito dele para deixar mais um peso em suas costas. Dou minha vida por ele.

— Se milady fingir que me adora, ele jamais saberá.

— Não sou tão boa atriz.

— Sou assim tão aterrador?

— Você é pedante, um fanfarrão miserável, um mentiroso tolo, um porco ganancioso...

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— Nego o miserável.

— Pode negar o louco?

— Se tentar, posso atuar como um homem são.

— Tente agora — Thea retrucou.

— Pensei que eu fosse claro e são. Casamento pela verdade.

— Não. Mas minha família saberá ser generosa de outra maneira.

— Talvez não haja outras maneiras.

Ele parecia descontraído, amigável, mas a fitava como um predador que estava com o jantar

encurralado. Thea abanou-se com o leque.

— Mentirosos são fáceis de encontrar. Garanto que encontraremos outro e que aceite uma

recompensa sadia.

Ele riu.

— Essa provavelmente será a única vez em que um Debenham vai procurar uma barganha.

Milady, sou de primeira qualidade e valho o meu preço.

— Nada valerá eu me unir a um homem como você para toda a vida.

Thea tentou rodeá-lo, mas foi segura pelo braço. A mão dele era calosa, quente e forte na pele

entre a luva longa e a manga curta.

— Posso aceitar menos do que o casamento.

Thea virou-se para fitá-lo, o rosto próximo do dele.

— O quê?

Estaria ele propondo?... Ele pretendia inocentar Darius à custa do corpo dela? Impossível!

Mas a imaginação ferveu. Algumas horas, talvez menos. O que ela sabia sobre isso? Seria

para salvar a vida de seu irmão.

— O quê? — ela repetiu, com as pernas bambas.

— Um noivado.

— O quê? — ela tornou a perguntar.

— Se eu limpar o nome de lorde Darius, ficaremos noivos publicamente. — Ele pôs um dedo

sobre os lábios de Thea que pretendia reclamar. — Não tenha medo. Milady não terá de chegar ao

casamento, mas o noivado terá de durar no mínimo por seis semanas.

Thea desvencilhou-se.

— Você está maluco!

— E milady está preocupada demais. Pense nisso. Um noivado de seis semanas não é uma

provação se comparada ao preço do que poderá ser comprado.

— E depois das seis semanas?

— Milady me dispensará.

— Espera que eu faça isso?

Ele se divertia.

— É isso que a horroriza?

— Sim! Um cavalheiro que rompe o noivado fica arruinado e uma dama que fizer isso não é

uma verdadeira dama, a menos que tenha uma razão excelente e conhecida. Está pensando em

providenciar uma boa razão para eu não me casar contigo?

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— Isso é quase inevitável. Então? Estamos comprometidos?

— Claro que não! Se você viu a queda de Darius, é seu dever dizer isso sem recompensa.

— Mas se seu tiver de mentir?

— Então sua palavra não vale nada.

— Milady, mentiras podem valer fortunas. — Ele recuou, dando-lhe passagem. — Parece que

nossa discussão chegou ao fim.

Thea desejava aproveitar a oportunidade para fugir, mas não o fez. Verdade ou mentira,

acreditava que aquele homem possuía nas mãos a chave para o futuro de Darius.

Um noivado não seria tão apavorante, afinal.

Exceto...

Ela ainda não sabia quem ele era.

— Quem é você?

— O homem que pode inocentar seu irmão.

— Seu nome.

— Horatio.

— O nome completo.

— Para que evasivas? Estou pedindo um preço pequeno por um grande serviço e milady vai

acabar concordando.

Thea queria negar, mas não podia.

— Você pode não ser ninguém.

— É evidente que sou alguém.

— Sabe muito bem o que eu quis dizer.

— Sim. Milady não se rebaixaria para se casar com um comerciante.

— A questão é outra. Ninguém acreditaria que eu, de fato, quisesse me casar com um

comerciante. Se você se tornar testemunha de Darius e eu prometer me casar com você, sua

completa inadequação como marido para a filha de um duque arruinaria tudo.

Ele a fitou de uma nova maneira.

— Admiro uma mulher inteligente. Roupas finas e acabamentos caros não contam uma

história?

Thea tornou a observar a qualidade do traje escuro de noite e na esmeralda incrustada em ouro

na gravata branca.

— Você pode ser um rico comerciante.

— Milady não se rebaixaria a tanto?

— Eu já afirmei que isso soaria estranho! — Os relógios começaram a tocar. — Céus, quanto

tempo se passou? Preciso voltar ao baile. Amanhã falaremos sobre isso.

— Agora ou nunca. Uma recusa, e eu deixarei esta casa imediatamente e milady nunca mais

me verá.

Thea o fitou, apavorada.

— Isso não é justo.

— A vida raramente é.

— Diga-me seu nome.

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— Não.

— Diga-me, pelo menos, se é um cavalheiro.

— Sou.

— E é honorável?

— Sim.

Thea sabia que essas perguntas eram a admissão de que cederia, como ele havia dito de

maneira tão arrogante. Ele a fisgara como a um peixe e a mantinha presa na rede.

Ele era um soldado e um cavalheiro honorável. Embora seu comportamento tivesse muito a

desejar, ela poderia melhorá-lo, se quisesse. Um noivado seria aceito e até tolerado.

— O que você ganharia com isso?

— Seis semanas com sua adorável companhia.

Thea o olhou e ele nada respondeu.

Ela procurou a verdade na fisionomia impassível. Ou talvez ela também procurasse uma ponta

de fraqueza ou a misericórdia de último minuto. Só reconheceu a vontade implacável. Ele lhe

apresentara uma escolha e não desistia. Havia somente uma resposta que a deixaria dormir à noite.

— Pois, muito bem. Se você limpar o nome de meu irmão, eu me tornarei sua noiva por seis

semanas. — Ela viu o lampejo de triunfo no olhar dele. — Mas somente isso.

— Exceto pelo beijo que selará o acordo.

Thea recuou.

— Isso não faz parte da barganha.

No entanto, Thea não protestou quando ele pegou sua mão enluvada. Nem quando ele beijou

primeiro as pontas e depois os nós dos dedos. Ela estremeceu, embora mal sentisse os lábios dele

através da seda.

Quando ele a segurou pelos ombros, Thea sentiu-se como uma presa capturada.

A confrontação e a disputa de vontades haviam despertado nela uma paixão que exigia uma

culminância, um crescendo final. Ela hesitou quando ele a puxou para perto e aproximou o rosto. E

quando roçou os lábios nos dela, Thea deu um gemido.

— Está gostando disso, não é, milady?

— Não... — ela sussurrou, soando mais como um suspiro.

Ele pressionou novamente os lábios, nada mais, porém o calor se irradiou.

— Mentir a mandará para o inferno — ele murmurou. — Diga-me para parar e nosso trato

estará selado.

Era o que ela deveria fazer, mas não o fez.

Ele a puxou de encontro a si e a sensação de força bruta piorou aquela loucura. Thea o

encarou, boquiaberta, sentindo que deveria implorar por misericórdia. Então ele a beijou e

aprofundou a língua.

Capturada, Thea não podia nem queria escapar. Sensações ricocheteavam em sua mente.

Perigo! Perigo! Excitação! Excitação!

Ela entrelaçou os dedos nos cabelos negros, desejando estar sem luvas, e pressionou o corpo

de encontro ao dele.

Poderia um beijo não ter fim? Thea ansiava por isso, pressionada nele, queimando numa

tormenta apaixonada.

Foi ele quem se soltou das mãos de Thea, que temeu cair sem o apoio. Sentiu-se fraca e zonza

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como se estivesse febril. Encostou-se na parede, com o coração aos saltos, arfante e fitando o

desconhecido.

— Então estamos noivos — ele afirmou também com a respiração instável.

Thea teve de engolir em seco antes de falar:

— Agora, diga-me ao menos quem é você — ela falou suavemente por causa da fraqueza,

mas também por uma espécie de ternura e desejo. Ser noiva dele não seria tão ruim e ser sua

esposa...

— Seu noivo... visconde Darien.

Ele tinha um título? Então por que ela não o conhecia? De repente, ela entendeu e se

desencostou da parede.

— Você disse que era honorável!

— Eu não menti.

— Mas você é um Cave! — A família Cave era notória. — Não posso ficar noiva de um

Cave!

— O acordo foi selado. — Ele se virou e foi embora.

— Não foi, não! — ela gritou para o corredor escuro e vazio. — Não foi!

Céus, estava noiva de um Cave!

Acabara de beijar um Cave.

Esfregou os lábios avermelhados. Todos os membros da família Cave eram vilões e devassos.

Havia pouco tempo, um deles estuprara e matara uma jovem em Mayfair. Ele morrera em Bedlam e

não na forca, por ter sido considerado doido varrido.

Aquela promessa não teria validade, Thea pensou, desesperada.

Não houvera testemunhas e somente os dois sabiam o que tinha acontecido.

Aquilo parecia desprezível, mas não seria nada em comparação às mentiras e trapaças dele.

Desde o começo Thea sentira algo estranho naquele homem.

Mas o que faria?

Por medo, poderia correr para o quarto e esconder-se embaixo da cama. Ou alegar uma

indisposição para não ter de voltar ao baile.

Onde Horatio deveria estar no momento.

Misericórdia divina, ele poderia anunciar o noivado na ausência dela! Aquilo seria absurdo

para qualquer homem, mas não para um Cave.

Thea, então, soube o que teria de fazer. Inspirou fundo, lutando para controlar-se, para

retomar a confiança e a postura. E caminhou apressada por onde ele saíra, rumo ao salão.

Horatio Cave, visconde Darien, pensou em se deter para refletir, mas alguns pontos de uma

batalha que exigiam ações resolutas. Ganhara o prêmio que viera buscar. Um prêmio maior do que

havia imaginado. Teria apenas de segurá-lo.

Invadira o baile da duquesa de Yeovil para conseguir uma aliada, uma mulher de alta classe,

em seu objetivo de tornar novamente respeitável o nome de sua família. A oportunidade havia caído

em suas mãos quando escutara a história do filho dela, lorde Darius Debenham. Deixaria a mãe

agradecida e ela se derreteria como cera em suas mãos.

Cera perfeita. Passara o dia saboreando a idéia de ter os Debenham, família do homem que ele

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odiava, como joguetes em suas mãos. E Darius Debenham teria conhecimento disso em público,

com metade do mundo observando.

Assim como ele arruinara a vida de um garoto, com metade da escola testemunhando.

E havia sido ainda melhor. Em vez de forçar a mãe a ser indulgente por gratidão, ele forçara a

irmã fingir que o amava. Acordo selado com um beijo feroz.

Aquele beijo...

Ele parou, observando o baile à distância. A música soava alegre e célere para dançarinos

risonhos que deslizavam pelo salão. Mais adiante, pessoas vestidas de sedas e ostentando joias

reluzentes andavam e conversavam, confiantes em seu lugar no círculo dos ilustres.

Alheios ao inimigo no meio deles.

Aliás, não totalmente alheios. Ele fora reconhecido antes, quando estivera procurando por

lorde Darius.

Ao chegar tarde, esperava evitar o reconhecimento, mas havia homens que o conheciam do

Exército. Alguns deles poderiam saudá-lo com boa vontade, mas não ali, onde seu nome e título

causavam horror.

Amaldiçoou mentalmente o pai, os irmãos mais velhos, o tio e o avô, e toda linhagem dos

Cave que tinham vivido de acordo com a advertência do nome, antes de misturar-se aos presentes,

retomando a procura por Debenham. Precisava resolver logo o assunto antes que lady Theodosia

recobrasse o juízo. Uma vez feita sua parte, seria mais difícil ela recuar.

Entrou no salão lotado e barulhento, e postou-se de lado para não atrapalhar a entrada. Sua

busca anterior falhara, talvez pela aparência de Darius ter mudado desde a última vez em que o

vira, dias antes de Waterloo. Desde então Darius fora mortalmente ferido e se tornara um

viciado em ópio.

Procurou pelos membros da Confraria, o grupo dos alunos de Harrow. Onde Darius estivesse,

algum deles estaria por perto. Eles se orgulhavam de tomar conta uns dos outros.

Gostaria de ter pensado nisso antes. Desprevenido, fora visto por alguns deles e tivera de

procurar os locais mais tranqüilos da casa.

Primeiro reconhecera o visconde Amleigh. Encontrara o homem atarracado e moreno em

Bruxelas porque Amleigh retornara ao Exército e partilhava de um alojamento com o capitão

George Vandeimen, amigo seu. Infelizmente, como os membros da Confraria não se largavam,

Darius ocupara o mesmo alojamento e ele não pôde passar muito tempo com Van como desejara.

Mais um pecado para a conta da Confraria.

Com Amleigh, vira um homem atlético e loiro. Não demorara muito para entender que se

tratava do marquês de Arden, herdeiro do ducado de Belcraven. Menino arrogante que se tornara

adulto e que fora para Harrow com seu próprio contingente de criados.

Dizia-se que a Confraria dos Rebeldes fora criada para proteção mútua. E para que Arden

precisaria disso? Não, a Confraria não passava do agrupamento de uma elite muito esnobe e

poderosa que não se misturava com seres menos favorecidos. Odiara todos eles.

Junto com Amleigh e Arden havia outro homem que ele reconhecera pelos cabelos pretos e

vermelhos. Era Simon St. Bride, que recentemente se tornara visconde Austrey, herdeiro do conde

de Marlowe. A boa sorte abençoava a Confraria.

Observou o grupo de homens confiantes e descontraídos, e o passado lhe veio à mente.

Harrow. O pior tempo de uma vida dura. Por causa da Confraria. E principalmente por causa de

lorde Darius Debenham.

Ele se afastara com passos calmos, mas internamente corria como acontecera no colégio e

odiara aquilo. Não prestara atenção para onde estava indo contanto que se afastasse das pessoas. Ao

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descobrir a irmã de Debenham, sozinha e vulnerável, vira a oportunidade perfeita para uma

vingança perfeita.

Ela o surpreendera, Mais corajosa, mais inteligente e muito mais ardente, apesar do vestido

vermelho soar como uma advertência. Mas fora capturada. Restava então encontrar Debenham para

consolidar sua vitória.

Onde ele havia se metido? Afinal aquela era a festa de seu noivado.

E se Darius já houvesse saído? Se estivesse muito débil para ficar ali tanto tempo? Ele deveria

ter descoberto isso.

Preparação pobre.

Inteligência pobre.

O que fazer agora? Poderia contar a história, mas ele desejava a confrontação face a face.

Queria fazer Debenham comer nas mãos de um Cave.

Ir embora e voltar no dia seguinte? Não. Era preciso resolver o assunto antes de lady

Theodosia ter a chance de impedi-lo.

A dança terminou, a multidão se afastou e Horatio o viu.

E quase riu alto.

Onde estava o aleijado viciado?

Debenham caminhava rumo às portas do salão, de braço dado com uma encantadora morena

que o olhava com adoração. Ele mancava muito pouco e não havia cicatrizes visíveis. De fato

parecia mais adaptado e forte do que antes.

E completamente feliz.

Darius deveria ter sido batizado como Theophilus, o amado de Deus.

Para o inferno com isso. Horatio virou-se para deixar o salão. Seria mais prazeroso ver como

Debenham sorriria com a vergonha pendurada no pescoço.

Impossível. Decidira restaurar a reputação dos Cave e por um bom motivo. Recuar naquele

momento seria uma nova vitória para a Confraria.

Pois bem, seria um jogo de dados. Se Debenham o visse e fingisse que ele não existia, ou

pior, reagisse como se ele fosse um leproso, então o deixaria cozinhar em fogo lento. Caso

contrário, jogaria o dado. Horatio virou-se e interrompeu o caminho do casal.

Debenham demorou alguns segundos para reconhecê-lo.

— Canem. — Ele sorriu com cortesia.

Só os mais íntimos o chamavam assim. Canem era uma corruptela de cão em latim e isso o

remetia ao menino atormentado o raivoso que fora na época de escola, tendo sido Debenham o

autor a cruel brincadeira.

— Cave Canem — ele dissera, transformando Horatio Cave em Cão Cave.

Bastava de passado. O dado rolara e Debenham deveria pagar. Ele deu as boas novas ao

inimigo e até mesmo falou com uma dupla de militares próximos, mas não poderia demorar-se mais

do que isso.

Deixou a festa e foi direto para o inferno.

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CCaappííttuulloo IIII

Thea, sorridente, envolveu-se com os convidados, esperando não demonstrar nenhum traço do

remoinho interior, alerta para os sinais de drama ou desastre. Havia algo discordante no ar.

O que aquele homem fizera?

As pessoas sorriam e anuíam para ela, ou a cumprimentavam pelo baile. Se ele houvesse

anunciado o noivado ridículo, não faltariam comentários.

Teria sido um truque? Ele a aterrorizara para se divertir?

Talvez nem se tratasse de um Cave.

A esperança floresceu, mas a vergonha a fez murchar. Se tudo não passara de um jogo, seu

irmão continuaria com o peso da desonra nas costas.

Era preciso descobrir. Caminhou entre os presentes, sentindo o próprio sorriso como uma

careta, procurando Darius ou Darien, que confusão tola!, ou alguém que pudesse dizer-lhe o que

acontecera enquanto estivera afastada.

— Que tragédia!

Thea espantou-se e olhou para quem falara, lady Swinnamer.

— O que houve?

— Seu vestido, lady Thea, ficou estragado!

Ah, isso, Thea se conteve para não despertar suspeitas. A macilenta lady Swinnamer era

maldosa o suficiente mesmo sem incentivo.

— Não chegou a tanto, apesar do aborrecimento. Queira desculpar-me, preciso encontrar meu

irmão.

— Lorde Darius? Espero que não haja mais problemas.

Thea caprichou no sorriso.

— Pelo contrário. —Afastou-se, esperando ter frustrado a mulher.

E se deteve.

Alguém dissera Cave? numa voz espantada? Um olhar ao redor revelou apenas sorrisos

brandos. Estava ficando maluca. Precisava encontrar alguém confiável para conversar francamente.

Continuou rumo ao salão de baile, certa da tensão no ar. Olhou para um lado e uma mulher

desviou o olhar, talvez com escárnio. Encarou lorde Shepstone que a fitava e ele corou. Prosseguiu

andando, pois parar no corredor daria motivos para falatórios, mas teve vontade de desaparecer num

buraco. Nunca se sentira tão desconfortável em sociedade.

Procurou entre os dançarinos e não encontrou ninguém da família. Apressou-se a olhar nas

antecâmaras cheias de gente. Todos sorriam, mas por que alguns a olhavam de maneira estranha?

Viu a prima Maddy rodeada por três oficiais uniformizados. Maddy, loira e exuberante e que

tinha uma fraqueza por uniformes, sempre sabia o que se passava nas reuniões da sociedade.

Thea reuniu-se ao grupo, casualmente, e desculpou-se depois de alguns minutos.

— Cavalheiros, vou ter de despedaçar seus corações roubando Maddy por um momento.

Permitam-nos, senhores.

Eles se despediram com graça, mas Maddy não era tola.

— O que houve? — a prima perguntou assim que ficaram a sós.

— Era o que eu ia perguntar. Aconteceu alguma coisa enquanto eu estive ausente?

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— Ausente? — Maddy a olhou. — Por que trocou de vestido?

— Uffham derramou beterraba em conserva no meu vestido. Você sabe onde Darius está?

— Não. Ele estava dançando há pouco. O que aconteceu?

Thea não soube o que responder. Era evidente que Maddy de nada sabia e Thea não queria

falar sobre aventuras particulares.

— Uffham... o vestido. Acho que as pessoas estão me olhando de maneira estranha.

— O que não é de se surpreender com o espartilho aparecendo.

Thea olhou para baixo e ergueu a mão para cobrir o desastre. Então fora isso! Ela se virou de

costas para o salão e ergueu o vestido.

— Eu deveria voltar e me trocar.

— Bobagem. Isso é maliciosamente encantador.

— Mas não me agrada.

— Toda mulher gosta de encantar com malícia e esse vestido é provocante. Eu não poderia

imaginar que vermelho lhe cairia tão bem. E de Madame Louise?

— Sra. Fortescue.

— Farei uma visita a ela, embora minha silhueta não se adapte aos mais colantes. Prefiro os

mais fartos.

— Os que você usa lhe caem bem.

— Eu sei, mas você também não pode se queixar. Os homens enxameiam a seu redor.

— Alta posição social e um dote generoso asseguram o encanto.

— Eu tenho os dois, mas prefiro chamar a atenção pelo meu charme. Ah, Thea, não me

presenteie com mais um daqueles olhares de a Ilustre Inatingível.

— Não me chame assim.

— Então não aja com superioridade.

Maddy e Thea eram como irmãs. O pai de Maddy era almirante e ficava muito tempo no mar.

Assim Maddy, o irmão e a mãe haviam passado muito tempo em Long Chart, a propriedade de

Somerset do duque de Yeovil. Como acontecia com irmãs, algumas vezes elas discordavam. Em

geral isso acontecia por causa do comportamento audacioso de Maddy com os oficiais e das

tentativas de Thea de conter a prima.

— Você ouviu falar que um dos Cave está aqui? — Maddy perguntou.

Thea engasgou e rezou para que seu rubor fosse tomado como susto.

— Não! Verdade?

Os olhos de Maddy brilharam.

— Deliciosamente alarmante, não é? O novo visconde da família dos vilões. Mamãe está

certa de que seremos todas mortas ou até pior. Mas eu lhe pergunto, ser violada é pior do que

morrer?

— Maddy! — Thea protestou e olhou para os lados para ter certeza de que não eram ouvidas.

— Como é ele?

— Eu não o encontrei, embora o tenha procurado.

— Como pode procurar alguém sem lhe conhecer a aparência?

— Sombrio e demoníaco, foi a descrição de Alesia. Alguém o apontou e agora ela está

aterrorizada. Marchampton o conhece — Maddy referiu-se a um dos oficiais que tinha estado com

ela. — Olhos e cabelos escuros e aparência de estrangeiro em razão da mãe italiana. Certamente não

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haverá muitos parecidos com ele aqui, principalmente com chifres, cauda e odor de enxofre.

— Maddy...

A prima riu.

— Bem, Alesia é ridícula. Cully o adora.

— O quê?

Cully era o tenente Claudius Debenham, irmão de Maddy.

— Um caso extremo de idolatria heróica. Terrível e às vezes insano, segundo ele.

— Isso é um elogio? — Para Thea parecia assustador e acabava com a esperança de que o

encontro diabólico houvesse sido uma brincadeira.

— Eles até o chamam de Cão Furioso — Maddy disse com satisfação.

— Santo Deus...

— Ele estava descarregando sua loucura nos franceses, Thea. Desde quando você ficou tão

medrosa?

Thea controlou-se.

— A noite hoje foi um pouco tensa. — Aquela era uma descrição atenuada. — Preciso

encontrar Darius.

— Ele tem muitos voluntários para tomar conta dele.

Thea corou. Se ela chamava a atenção de Maddy pelo comportamento com os oficiais, Maddy

a repreendia por ser super protetora em relação a Darius. Thea sabia que durante a recuperação de

Darius, ela e a mãe haviam se tornado obsessivas.

— Tenho motivos para querer falar com ele agora.

— Você está escondendo alguma coisa. Conte!

— Não.

Maddy agarrou-lhe o braço.

— Está sim! O que é?

— Não posso lhe dizer, pelo menos não agora. Não é nada, mas preciso encontrar Darius, só

para ter certeza de que está tudo bem.

— Ótimo, então irei com você. — Maddy deu o braço para Thea. — E preste atenção em um

moreno demoníaco. Preciso encontrar o temível Darien.

A idéia de Maddy atraída por seu atacante era pavorosa. Elas mal haviam alcançado a porta

quando foram detidas por um oficial loiro de uniforme escarlate e dourado.

— Vocês ouviram? — Cully falou em voz alta. — Darius está limpo! Canem Cave disse que

o viu cair e não há dúvida sobre isso.

As pessoas em volta ouviram e começaram a tagarelar.

— Que extraordinário! — Maddy exclamou

— Maravilhoso — Thea disse com o coração disparado.

— Canem Cave? — Maddy perguntou. — Quer dizer o visconde Darien?

— E quem mais poderia ser? Ele disse que Darius estava cumprindo o dever — Cully

continuou em voz alta para todos escutarem. — Galopava para entregar uma mensagem quando um

tiro derrubou o cavalo e Darius desapareceu sob um mar de cascos. Canem disse que foi um milagre

ele ter sobrevivido.

— Por que Canem? — Maddy perguntou e riu.

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— Acho que é de cave canem.

— Ele é chamado de cão?

Cully enrubesceu.

— Não dessa maneira. Você é estúpida, Maddy.

— Francamente!

Thea estava aliviada por Darius, mas o que isso significava para ela?

— Onde está lorde Darien? — perguntou, com casualidade. — Eu gostaria de agradecer-lhe.

— Você vai ter de esperar. Ele disse ao que veio e saiu.

— Saiu?

— Sim. Canem chegou tarde, contou a história para Darius e mais alguns outros e

desapareceu. Nunca se sabe o que esperar de Canem Cave. A Câmara dos Lordes será sacudida se

ele aparecer por lá. Vamos. Darius e seus amigos estão comemorando.

Thea aproximou-se do grupo jubiloso que estava em uma das mesas externas de jantar que

tinham sido postas nos jardins iluminados. Ao ver a alegria desmedida de Darius, ficou agradecida e

desejosa de pagar o preço, se necessário fosse. Mas ao aceitar uma taça de champanhe para o

brinde, entrou em pânico.

Lorde Arden fez uma brincadeira com o nome de Cave e disse que nada havia para se

acautelar naquela noite. Alguém mencionou Cave, o assassino louco. Outro disse o visconde vilão

em pessoa.

Ela prometera ficar noiva de um Cave, um nome que causava arrepios, horror e uma

expectativa de violência. Ele partira, mas voltaria, terrível e demoníaco, para exigir seus direitos.

Sentia-se como um personagem do folclore. Seria Rapunzel que fizera uma barganha tola e

não pudera escapar à promessa?

Todos ergueram mais um brinde e a brisa tocou-lhe as costas nuas como se sussurrasse.

Cuidado, milady, cuidado.

Darien aprendera no Exército que o lugar ideal para um homem ficar a sós com seus

pensamentos era uma boa casa de jogos, contanto que jogasse e não ganhasse demais.

Andou rapidamente rumo ao Grigg's, sem se importar que os sapatos sociais fossem muito

leves para o trajeto. Mayfair parecia um desfile sem fim de casas altas e estreitas, uma preferência

estranha por tantas escadas. No entanto, cada residência era um local confortável, de refúgio, onde

pessoas dormiam tranquilamente à noite, protegidas por muros de tijolos, portas fechadas e barras

de proteção nas janelas baixas.

A Mansão Cave, uma coleção de recintos vazios que pertencia a sua família por várias

gerações, agora era sua. Apesar dos tijolos, trancas e barras, ele não se sentia seguro ali.

Quartos desocupados deveriam propiciar paz e quietude, mas havia outros tipos de ruídos.

Embora não tivesse memórias pessoais do local e os traços do passado houvessem sido polidos e

pintados, a casa silenciosa chegava a ensurdecê-lo.

As vozes eram as piores, outro motivo para retardar o retorno para lá. Algumas vezes ele

acordava com grunhidos, gemidos e gritos ocasionais, numa casa trancada e onde havia poucos

criados. A Mansão Cave parecia ser assombrada e a idéia de encontrar qualquer vestígio de seu

irmão Marcus o fazia estremecer.

Se pudesse, jamais entraria naquela casa, mas ela fazia parte de seu plano. Morar ali seria

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como declarar ao mundo que o passado era passado e que o novo lorde Darien nada tinha do que se

envergonhar. Ele riu no escuro. Seu pescoço ainda formigava de sentir tantos olhares e de ouvir as

perguntas: O que o raivoso cão Cave estará fazendo aqui?

Tivera vontade de virar-se e morder a quem dissera aquilo.

Mesmo sem palavras, a sutil evasão havia sido óbvia. E não fora com intenção de ignorá-lo,

mas sim de fazê-lo ir embora.

Ele tinha visto Vandeimen num dos recintos, mas achara melhor não arrastar um amigo

naquela confusão. Mais tarde, talvez, como uma recompensa pela vitória. Por enquanto um Cave

era um Cave, independentemente de seu caráter e de sua reputação, sinônimo de algo pior do que

um leproso.

Na porta do Grigg's, percebeu uma a ironia. O cumprimento mais afetuoso que recebera

naquela noite havia sido de Darius Debenham em pessoa.

De imediato veio-lhe à mente a imagem, nunca bem enterrada, de Debenham segurando o

lenço no nariz ensanguentado, dizendo: Cave Canem.

Isso havia acontecido fazia mais de uma década e desde então, conseguira uma reputação e

uma vitória fora do mundo hostil. Agora teria de fazer o mesmo com a sociedade.

Afinal a duquesa de Yeovil lhe agradecera, chorosa. Ele tinha nas mãos a adorável e altiva

lady Theodosia, cujo nome significava presente de Deus. Um presente de Deus para ele.

Bateu na porta do Grigg's e foi convidado a entrar. O recinto pouco iluminado era freqüentado

por homens e mulheres cuja atenção se concentrava nas cartas, nos dados e nas mesas de jogos. Não

havia música, nem guloseimas. Ser um Cave era indiferente, aliás, nada importava enquanto o

visitante tivesse dinheiro para perder. Darien sempre dava um jeito para perder tanto quanto

ganhava. Considerava isso como uma forma de aluguel por usar o espaço.

Procurou um jogo simples e sentou-se diante de uma mesa, onde poderia jogar e recordar o

que havia acontecido naquela noite.

Por que não imaginara a reação da sociedade? Por que esperara que vissem Canem Cave,

herói militar, em vez de apenas outro Cave, tão vilão quanto os demais da família? Lembrou-se do

olhar apavorado de Theodosia ao saber de quem ele se tratava. A maneira como ela havia dito que

ele não podia ser honorável...

Por que não esperara herdar todo o problema junto com o título de visconde? Seu avô

dissoluto e duelista fora chamado de Cave, o Satã, numa época em que era preciso muito para

invocar as imagens de Satanás. Seu pai havia sido um homem brutal e apelidado de visconde vil

pela vida de comportamentos obscenos. Seu tio, Dicker Cave, tivera fama de violador das jovens

vulneráveis que cruzassem seu caminho.

E ele teria de apagar a maior mancha na reputação da família, Mad Marcus Cave, o lunático

assassino da doce Mary Wilmott, mas não teria de ser de maneira pessoal. Não nos olhos

apavorados das mulheres nem na ira protetora dos homens.

Não era de se admirar que Frank, seu irmão mais novo, houvesse sido rejeitado como um bom

pretendente.

Frank, tenente da Marinha, havia se apaixonado pela filha do almirante Plunkett Dynnevor, e

fora por este dispensado, pelo simples fato de ser um Cave.

Apesar da campanha para provar sua respeitabilidade, Darien admitia que, se tivesse uma

filha, também não permitiria que ela se unisse a um Cave.

Tudo bem que tinha forçado Theodosia a aceitá-lo, mas não para a vida toda e, além disso,

qualquer membro da família Debenham sobreviveria a uma pequena mancha de lama. E talvez, a

julgar pela batalha de vontades, ela poderia ganhar um frêmito de prazer ilícito.

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Pessoas desse tipo em geral provavam ser compensadoras.

O que ela faria? E havia outro fator importante: Ele ganharia o jogo, apesar de ter cedido a um

impulso, o que raramente acontecia?

Ela, por certo, estava se queixando de seu estranho comportamento. E, embora agradecidos

pelo testemunho dele, os Debenham não veriam com bons olhos um homem que atacara a filha

deles. Em vez de aliados, se tornariam inimigos.

Isso poderia levar a um duelo e o campeão óbvio seria lorde Debenham. Ele se tornara um

homem mais forte e o brilho fácil que antes ostentava fora substituído pelo aço verdadeiro.

Darien não gostaria de tê-lo como inimigo nem de enfrentá-lo num duelo, principalmente por

estar farto de mortes. De qualquer forma, o assunto não requeria extremos.

E tudo isso por que errara o caminho e perdera o juízo por uma jovem de olhos azuis,

arrogante, corajosa e ardente.

— Mais conhaque, sir?

Darien assustou-se e anuiu para o criado. A bebida gratuita servida ali não era de boa

qualidade, mas ele precisava de algo forte. Bebeu metade do cálice, bendisse o gosto acre e olhou

sua carta. Um ás. Jogou-a, mas foi batido por um oito do carteador. Ainda contando com a maioria

das fichas, jogou outra.

Havia uma possibilidade pior.

Se Debenham não estivesse à altura de um duelo, o próximo na linhagem seria o jovem Cully.

Em muitos aspectos, Cully Debenham o lembrava de seu irmão, Frank. O mesmo gosto pela vida

não extinto pela guerra e a mesma crença na bondade.

Darien o evitara aquela noite. Cully era um caso infeliz de idolatria a um herói.

Ele preferia deixar o país a ter de enfrentar Cully num duelo.

O que o fez entender que seria melhor ir para casa, esperar que o desafio fosse feito e estar

apto para tomar a decisão necessária.

Assim pensando, levantou-se e somente percebeu que seu dinheiro havia dobrado quando o

carteador pediu-lhe para ficar.

— A noite é uma criança — Darien respondeu, devolvendo uma mancheia de fichas ao

homem. — Vou até a casa de Violet Vane.

Nenhum homem poderia criticá-lo por ir a um bordel. Esperava apenas que ninguém

resolvesse acompanhá-lo. Grigg's era para homens que preferiam cartas a mulheres, exceto para

mulheres que combinassem ambos.

Pouco depois, saía na noite fria e úmida, característica da Inglaterra. Na Espanha e em

Portugal, sentira falta de muitos aspectos ingleses, mas não esse. Era maio, mas o frio da noite

atingia-lhe os ossos e chegava aos pulmões. E naquela hora da noite as pessoas valorosas em suas

casas estavam na cama aquecida.

Ou dançando no baile.

Isso o fez pensar no que Theodosia faria se ele voltasse e a tirasse para dançar?

Desmaiaria?

Provavelmente lhe daria um tapa no rosto.

O que fazia a situação ainda mais tentadora.

Na verdade, sem perceber, andara na direção da Mansão Yeovil. Sacudiu a cabeça e foi para o

outro lado, rumo a Hanover Square. Enquanto caminhava, batia com a bengala de ponta de prata

nas grades dos portões. No momento seu próprio destino estava além de seu controle e nas mãos de

uma dama de mãos longas e elegantes escondidas por luvas. Luvas longas e vermelhas que o

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fizeram pensar em um cirurgião do Exército com mãos e braços carmim até acima do cotovelo.

Darien estremeceu. Como aquelas mãos e luvas podiam ser tão eróticas?

E as pérolas.

Brancas, brilhantes, virginais em contraste com o vermelho.

Seria ela donzela ou devassa? A coragem de Theodosia tivera o sabor das jovens

inexperientes, mas a resposta veemente o pegara no laço. Mesmo assim, algo sugeria que ela ardera

pela primeira vez naquela noite.

Com ele.

Lady Theodosia Debenham. Irmã de seu inimigo. Que o odiaria ainda mais depois de tudo

terminado.

O destino algumas vezes era dissoluto como uma rapariga libertina.

Depois da saída do último convidado da Mansão Yeovil na madrugada, Darius Debenham

anunciou à família que tomaria ópio pela última vez. Thea sabia que embora ele tentasse esconder a

agonia das tentativas passadas e falhas, o caminho seria uma tortura.

Desta vez, no entanto, ela faria com que ele fosse bem-sucedido.

— Irei para Brideswell — ele informou.

— O quê? — Thea não pôde evitar a surpresa.

Brideswell em Lincolnshire era a casa da família da noiva dele, Mara St. Bride. Mas a questão

era que eles ainda não haviam se casado.

— É um lugar especial — ele disse ao ver que ela iria protestar.

— Claro — ela murmurou. Debenham logo se casaria com Mara, mas Brideswell não era

dele. Sua casa ainda era Long Chart. Por Deus, quem é que cuidaria dele em Brideswell?

— Mara virá comigo, com permissão de sua família.

Thea sorriu para esconder sua dor. Sua reação fora estúpida e inadequada, porém procurou

não demonstrar a agonia de seu pesar. Céus, onde ela falhara?!

E, enquanto todos queriam saber de detalhes, Darius se aproximou de Thea, pálido e com

outros sinais da falta da dose usual de ópio.

— Thea, eu preciso ir para Brideswell.

— Por quê?

— Quando você vier para o casamento, entenderá.

Thea pensou se opor como se fosse uma criança mimada, mas limitou-se a abraçá-lo.

— Sei que você vencerá desta vez, meu querido.

Darius apertou-a nos braços.

— Se não for agora, nunca mais. E tudo graças a Canem Cave, embora eu jamais pudesse

imaginar tal coisa.

Thea recuou e o fitou.

— Por que não?

— Eu esperava que ele se regozijasse com minha desonra.

— Mas por quê?

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2244

— Bobagens de colégio. — Darius sacudiu a cabeça. — Não importa. — Ele se desvencilhou.

— Quaisquer que sejam os motivos, sou grato, portanto tente ser bondosa com ele.

Thea teve vontade de rir. Pensara em contar ao irmão o que de fato havia acontecido, mesmo

que não entrasse em detalhes, mas apenas beijou-lhe o rosto.

— Vá, Mara está esperando por você.

Darius sorriu e imediatamente voltou a atenção para a amada, sua alma e seu coração. Mara o

fitava da mesma forma.

Talvez Thea não estivesse com ciúmes do irmão, mas com inveja daquele amor tão intenso.

Será que desejava algo tão exagerado, perigoso e terrivelmente sensível ao sofrimento?

Como o efeito daquele homem e daquele beijo.

Ela meneou a cabeça. Aquilo nada tinha a ver com amor!

Um lacaio anunciou que o coche estava na porta, o que provocou uma torrente de abraços,

adeuses e votos de boa sorte. Thea abraçou a futura cunhada.

— Sei que não é necessário, Mara, mas tenho de lhe pedir para tomar conta de Darius.

— Claro — a moça concordou e abaixou a voz. — Talvez não seja nada, Thea. Mas estou

preocupada com o visconde Darien.

— Por quê? — Thea alertou-se.

— Não sei. — Mara fitou Darius que saía da sala, olhando para ela. — Senti um certo

antagonismo nele e, no entanto, ele fez um grande favor a Darius. Seu irmão disse que eles tiveram

um pequeno desentendimento no colégio, mas isso não explica um mau pressentimento.

— O que você teme? — Thea conduziu Mara até a porta.

— Não sei. Mas... sua mãe está profundamente agradecida.

— Oh, Deus... — Thea arquejou.

A duquesa de Yeovil era uma alma generosa a tal ponto que suas atividades sociais

necessitavam de quatro funcionários e uma secretária para resolvê-los. Deus os ajudasse se a família

Cave fosse a próxima causa.

— Em Brideswell não costumamos ouvir histórias macabras — Mara prosseguiu. — Pensei

que os Cave estivessem apenas metidos em jogo, bebida e fanfarronadas. Mas pelo que escutei

ontem à noite, um deles cometeu assassinato.

— Eu sei.

Darius chamou Mara.

— Preciso ir. Talvez não seja nada, mas tome cuidado, Thea, por todos nós.

Thea observou Mara e Darius partirem na madrugada rósea e acenou até os dois coches

desaparecerem na estrada.

Mara lhe dera o aviso sem saber de seu encontro nem do acordo feito com o chantagista.

Poderia Darien ameaçar a família inteira?

Oh, por Deus! Será que ela deveria contar a seus pais?

Ela fizera um trato e o visconde cumprira sua parte.

— Você parece exausta, querida. —A mãe abraçou-a pelos ombros. — Vamos para a cama.

Thea concordou, incapaz de formar um pensamento racional.

— Que noite — a duquesa disse ao entrar na mansão. — Mas, devo admitir que foi

maravilhosa. Tudo se resolveu e, desta vez, Darius vencerá, assim que seu tempo horrível estiver

terminado.

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— Isso o deixará fraco, mamãe.

— Claro, mas ele logo recuperará as forças. Então teremos um casamento. Ou serão dois? —

A mãe de Thea lançou-lhe um olhar provocante. — Avonfort, talvez?...

— Não!

Thea foi mais brusca do que pretendia e a mãe a fitou, surpresa. Lorde Avonfort era um

vizinho de Somerset que a cortejava fazia mais de um ano. A casa dele, Avonfort Abbey, ficava

perto de Long Chart e as irmãs do lorde eram suas amigas. Quando criança imaginava que um dia

fosse se casar com ele, mas agora não podia pensar nisso no momento. Além do mais, teoricamente,

estava noiva de outro.

— Se não gosta dele, há muitos outros, meu bem — sua mãe disse, suavemente. — Você está

com vinte anos e admito que não dei a devida atenção a esse assunto nos últimos anos. Agora

tratarei de me redimir.

Sem nada dizer, Thea fugiu para seu quarto.

Deus que a ajudasse. Ela e não Darien, seria o próximo projeto da mãe.

Na quarta-feira, Darien ficou na Mansão Cave. Nenhum desafio o aguardara desde a noite

anterior, contudo Theodosia podia muito ter esperado até o término do baile para queixar-se dele.

Se uma provocação tivesse de ser levada a efeito, melhor que fosse efetuada em particular,

por isso seria melhor ficar em casa. Tinha um novo problema em mãos. Durante a noite alguém

havia espalhado sangue na sua porta. Se não fosse o hábito de cavalgar cedo — quando a sociedade

ainda dormia — não teria descoberto isso.

Saíra pelos fundos da casa, como de hábito e caminhara até o estábulo que fazia parte de seu

terreno. Quando chegara à Mansão Cave, havia algumas semanas, soubera que aquela parte da

propriedade tinha sido alugada para terceiros. Como tinha unicamente um cavalo no momento, ele

não se importara de ficar com apenas uma baia nem em contratar um cavalariço.

Nenhum dos criados que ali trabalhavam tinham sido simpáticos, mas um deles concordara

em tomar conta de Cerberus. Darien ia até ali duas vezes ao dia para verificar se o cavalo estava

bem e dar a ele atenção especial. Fora o prazer de cavalgar, aqueles eram momentos de pura

afeição.

As cavalgadas eram a melhor parte de seu dia. Ele gostava das manhãs e de andar a cavalo.

As manhãs eram sinal de um novo dia, deixando para trás o ranço e a insatisfação da véspera.

Aquelas primeiras horas do dia tinham sido particularmente satisfatórias e depois do passeio,

ele voltara a pé para casa, aproximando-se pela porta da frente.

E ali, no degrau, havia uma grande nódoa de sangue seco e ninguém à vista.

Hanover Square estava em silêncio, a maioria dos criados ainda na cama. Darien entrou e

encontrou seus três serviçais, os Prussock, tomando chá na cozinha com pão e geléia. Quando

chegara a Londres, ele os havia encontrado na casa e não se preocupara em substituí-los. Os

Prussock faziam um bom serviço para um homem que não recebia visitas nem se divertia, embora

fossem sombrios e pouco comunicativos.

— Há sangue no degrau da escada. Alguém se machucou?

Os três, pai, mãe e a filha não muito esperta, se levantaram de um pulo.

— Sangue, milorde? — a Sra. Prussock, que em geral falava por todos, perguntou.

— Sim e isso precisa ser lavado agora.

— Ellie — a Sra. Prussock chamou a filha. — Vá cuidar da limpeza.

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A lenta Ellie segurou a alça do balde de madeira, encheu-o de água e pegou um trapo antes de

sair.

— Ninguém esteve aqui esta manhã? — Darien indagou.

— Não, milorde. Acabamos de nos sentar para tomar chá. Milorde quer o desjejum agora?

Darien ignorou a pergunta.

— Isso já aconteceu antes?

Uma longa pausa se seguiu.

— Segundo ouvi dizer — a Sra. Prussock afirmou — isso ocorreu logo depois de lorde

Marcus ter feito o que fez.

— Os senhores não estavam aqui então?

— Não, milorde. Fomos contratados quando seu pai morreu. O pai, embora tivesse sido um

miserável, não teria se contentado com um serviço tão simples quanto o deles.

— Se isso acontecer de novo, por favor, me avisem. E, sim. Quero o desjejum agora.

Darien saiu pensando em como seria ter uma casa normal. Tão agradável como ter uma vida e

família normais.

O Sr. Prussock trabalhava como mordomo, a Sra. Prussock como cozinheira e governanta; e

Ellie, como criada. Mas nenhum deles recebera treinamento adequado. Encontrar criados melhores

seria difícil para um Cave, por isso ele tivera de se conformar com os Prussock. Mantinham a casa

razoavelmente limpa e a comida simples era aceitável. Era tudo do que ele precisava.

Contratara um criado de quarto, necessário para cuidar dos novos trajes, sua armadura nessa

batalha. Lovegrove era um homem esguio, meticuloso e treinado. Ele também bebia muito, mas

quem implorava não podia escolher.

Enquanto esperava pelo desjejum, Darien andou de um lado a outro, pensando no sangue.

Certamente era uma resposta à invasão do círculo mais fechado da sociedade, mas quem teria

mandado fazer aquilo? A família Wilmott, cuja casa ficava do lado oposto de Hanover Square?

Darien só os conhecera quando eles tinham vindo passar a temporada em Londres. Ele havia

presumido que evitassem o lugar onde a filha encontrara um fim trágico nos belos jardins centrais.

E a presença dele ali poderia ser tormentosa, mas uma casa vazia também não devia ser fácil de

suportar.

A Sra. Prussock entrou trazendo ovos fritos, presunto, pão e café. Enquanto comia, Darien

lembrou-se do crime. Estava na Espanha quando Marcus assassinara a jovem Mary Wilmott, então

com dezesseis anos. Ele ficara chocado, mas não surpreso. Marcus tinha se comportado de modo

estranho a vida toda e ainda bem jovem contraíra sífilis devido à libertinagem sem limites. A

doença terminara por atacar o cérebro. Marcus deveria ter sido internado bem antes do crime, mas a

arrogância do pai aristocrático não permitiria essa falta. Ninguém ficou sabendo por que Marcus

tinha cortado a garganta de Mary, a mutilara e a deixara exposta no jardim.

Ninguém sabia o que a jovem estava fazendo no jardim ao entardecer, mas o certo é que

passaram a chamá-la de "a doce Mary Wilmott" a quem dedicavam poemas e canções.

Não fora difícil prender Marcus. Ele havia deixado pegadas de sangue de volta à Mansão

Cave e fora encontrado roendo um dos pés de sua cama.

Aquilo não podia facilmente ser esquecido e Darien não esperava uma reação tão forte seis

anos após o crime e cinco após a morte de Marcus.

Contudo, Mary Wilmott fazia parte da sociedade e ali não se esquecia ou perdoava.

Nem ele.

Ele se levantaria mais cedo no futuro para ter certeza de que qualquer maldade fosse retirada

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de sua ponte antes que alguém reparasse.

Exausta, Thea adormeceu e quando acordou, os problemas voltaram a atormentá-la. A mãe, os

Cave, o beijo, a promessa que a consciência não lhe permitia esconder.

De repente lembrou-se da história de um duende.

Havia uma jovem, cujo pai se vangloriava de que a filha poderia tecer palha e transformá-la

em ouro. Ela foi trancada para operar o milagre. Em meio a lágrimas de desespero surgiu um

homenzinho enrugado que se ofereceu para transformar a palha em ouro se ela prometesse entregar-

lhe o primeiro filho. A jovem aceitou e o ouro apareceu. Encantado, o rei casou-se com ela e, no

devido tempo, uma criança nasceu.

A jovem esquecera ou pensara que uma rainha estaria a salvo? O velho retornou e reivindicou

o bebê. Ela chorou e implorou, e o homem deu-lhe três dias para adivinhar seu nome. Se ela errasse,

ele levaria a criança.

A rainha imaginou muitos nomes, sem chegar a nenhuma conclusão. Mas no último dia ela o

escutou cantar pronunciando um nome e ela se salvou.

Sentada na cama com o queixo apoiado nos joelhos, Thea refletiu que a história era tola, mas

a lição era clara. Seria preciso cuidado com a promessa, pois a dívida teria de ser paga.

Então ela ainda contava com o aviso de Mara para aumentar os problemas e a palavra

"antagonismo" combinava com sua experiência. Sentira antagonismo em lorde Darien, contra ela e

Darius. Por quê? Darius era um bom rapaz e não poderia despertar sentimentos tão negativos em

alguém. As lembranças a respeito de seu adorado irmão mais velho envolviam apenas risos e

bondade.

Saiu da cama e tocou a campainha para chamar Harriet. Então recordou-se do comentário

sarcástico de lorde Darien sendo que os amigos de Darius o adoravam.

E isso era verdade.

Qual o mistério? Se houvera, de fato, um incidente na escola, isso significava Harrow, e

Harrow significava a Confraria.

Já era quase meio meio-dia e depois de se vestir e tomar o café da manhã, não seria muito

cedo para uma visita. Ela iria até a casa de Nicholas e Eleanor Delaney, pois Nicholas era o líder da

Confraria.

Pouco depois, Harriet entrou com a água e o desjejum, e Thea perguntou a respeito do vestido

verde.

— Fiz o que pude, milady, mas algumas manchas estão na renda. Imaginei substituí-la na

frente.

— Talvez seja uma boa idéia. Veremos se a modista ainda tem o tecido.

Se todos os problemas pudessem ser tão facilmente solucionados! Thea escreveu um recado

para Eleanor Delaney, pediu que Harriet providenciasse um criado para entregá-lo, e sentou-se para

tomar o café da manhã.

A resposta veio quando ela já estava vestida. Eleanor ficaria encantada em recebê-la. Thea

ordenou que preparassem a carruagem e logo estava a caminho, com Harriet sentada a sua frente.

Embora Darius tivesse sido um membro da Confraria, e Thea houvesse escutado várias

histórias a respeito deles, ela não conhecia muitos membros. Simon St. Bride, irmão de Mara, era

amigo particular de Darius e viera a Long Chart em inúmeras ocasiões. Ele também estava na

cidade, mas como passara muitos anos no Canadá, Thea não tinha intimidade com Simon.

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Os Delaney tinham uma casa não distante de Long Chart e durante a recuperação de Darius,

Simon o visitara com freqüência. Por isso Thea o considerava quase como um amigo, apesar de ele

ser uma pessoa um tanto desconcertante. Ainda que pouco tivesse visto Eleanor, grávida no ano

anterior, Thea se sentiria à vontade com ela.

Ela não surpreendeu ao ver Nicholas atender à porta pessoalmente e em mangas de camisa.

Ele era um homem bastante informal, apesar de seu irmão ser um conde.

— Thea! Queira desculpar-nos, estamos em meio aos preparativos para voltar a Somerset.

Venha falar com Eleanor.

Thea pediu que Harriet se dirigisse ao alojamento dos criados e seguiu Nicholas, espantada

por ter sido levada ao quarto deles. Eleanor saudou-a com carinho, sentada numa cadeira de balanço

e amamentando o bebê sob um grande xale de seda.

Ao vê-la entrar, Eleanor pediu que a criada lhes trouxesse chá.

— Perdão, Thea, mas a fome dos bebês não pode esperar.

— Entendo. — Thea sentou-se, sem saber exatamente para onde olhar.

Eleanor usava um vestido simples e seus cabelos acobreados estavam presos apenas por uma

fita.

— Você deve estar feliz com o sucesso da noite passada — Eleanor comentou.

— Por certo, mas não ficaremos completamente à vontade até saber que Darius venceu a

batalha.

— Ele conseguirá desta vez, ainda mais com Mara ao lado dele.

— Espero que sim. — Thea não sabia como tocar no assunto. Eleanor tirou o bebê para fora

do xale, colocou-o no ombro e bateu levemente nas costas dele.

— Ele parece saciado e feliz. — Thea sorriu.

— Nicholas diz que ele parece um bêbado voltando para casa. Arrotando e vesgo. — Eleanor

continuou a acariciar as costas do filho. — Thea, você tem algum motivo particular para falar

comigo?

Os Delaney eram conhecidos por sua franqueza.

— Bem... É a respeito de lorde Darien. Mara partiu esta manhã, também preocupada. Ele fez

um grande favor para Darius, mas Mara sentiu uma certa rivalidade entre eles. Darius mencionou

um incidente no colégio e Mara imaginou os motivos.

— Ah. — Eleanor pegou o bebê adormecido nos braços. — Nicholas pode lhe contar a

história melhor do que eu. Você poderia, por favor, tocar a campainha.

Thea atendeu prontamente ao pedido e uma ama-seca apareceu em seguida. Eleanor beijou o

bebê e entregou-o à moça.

— Por favor, peça ao sr. Delaney para vir até aqui.

Uma criada trouxe o chá. Eleanor sentou-se no sofá e serviu a bebida fumegante.

— Você conhece o visconde Darien? — Thea aceitou a xícara e o pires.

— Não. Suponho que ele esteve no Exército até recentemente.

— A família tem uma péssima reputação.

— Sim, e a da minha não é muito melhor. Meu irmão é deplorável, mas felizmente está no

estrangeiro.

Thea bebeu um gole de chá. Teria ela aterrado entre os aliados de Darien? Será que ele era um

membro da Confraria? Não, ela sabia os nomes, embora não conhecesse todos. Além disso, Darien

negara o fato com ênfase.

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Nicholas entrou, curioso.

— Thea está preocupada com a animosidade entre Darien e Darius — Eleanor explicou a ele.

— Ah. É uma ironia que os nomes sejam similares, quando a natureza deles é tão diversa. —

Nicholas serviu-se de chá e sentou-se. — Qual o motivo da curiosidade, Thea?

— Mara St. Bride preocupou-se e advertiu-me para eu ter cuidado com ele.

Nicholas pegou um biscoito.

— Ela é muito astuta, assim como todos os St. Bride, a despeito do temperamento alegre.

Sim, houve um problema entre seu irmão e Darien, mas há muito tempo.

— Você pode me contar o que houve?

— Horatio Cave chegou a Harrow com todas as desvantagens possíveis, menos a de ser um

molenga. Ele tinha modos grosseiros e pouca instrução. Duvido de que tivesse amigos de sua idade

e condição social. Ele reagia com unhas e dentes a qualquer afronta.

— Pobre garoto — Eleanor comentou, solidarizada.

Thea tomou mais um gole de chá. O pobre garoto era um homem agora, sem esses problemas.

— Ele fez muito estrago? — ela quis saber.

— Mais para si mesmo. Ele era muito diferente do que é hoje. Cave não é nenhum gigante,

mas na época era baixinho e magricela. E aos que pensavam que seria fácil dominá-lo, Cave

mostrou o engano. Ele aprendeu a lutar com maldade e não era para se admirar, conhecendo sua

família.

— O que aconteceu entre ele e Darius? — Thea perguntou. — Preciso saber.

Nicholas a fitou, pensativo, mas não recuou.

— Cave arrumou uma briga com Darius. Inútil dizer que Darius nada tinha feito para ofendê-

lo, mas talvez Cave houvesse imaginado uma desfeita ou então escolheu Darius para descontar sua

raiva do mundo. Quando foram separados, Darius estava sangrando e Cave tinha apenas um

arranhão. Como você sabe, seu irmão nunca teve coração de lutador.

— Por isso ficamos preocupados quando ele resolveu lutar contra Napoleão.

— Wellington resolveu dar-lhe um cargo que envolvesse a Montaria. Darius sempre foi um

cavaleiro exímio e destemido.

— Segundo sua sugestão — Eleanor disse, surpreendendo Thea.

Nicholas deixou o comentário à parte e prosseguiu:

— Por intermédio de Con e Hawkinville. De qualquer foram, Darius sempre afastava a raiva

com risadas e brincadeiras. E foi o que ele fez naquela ocasião. Ele chamou Darien de Cave canem,

mas sem maldade, o que, infelizmente, não sucedeu com os outros garotos. Assim, Horatio Cave

começou a ser chamado de Canem Cave, em geral acompanhado de sons de latidos e gracejos tolos.

Quando o chamaram de Cão, ele ficou furioso e empenhou-se numa luta feroz em que Derby

Trigwell acabou com o braço quebrado. E terminou com Cave sendo expulso do colégio.

— Que tristeza — Eleanor lamentou.

— Para Derby? — Thea perguntou, mordaz.

— Para os dois — Eleanor respondeu, fitando-a. — Você não fez nada, Nicholas? — ela

perguntou, voltando-se para o marido.

Thea tinha ouvido muitas histórias de Nicholas Delaney.

— Ele teria sido um candidato ideal para a Confraria, mas havíamos concordado que doze

seria o máximo de integrantes. Número mágico, essas coisas... E Cave também era um ano mais

novo do que nós. Agora me parece que poderíamos ter feito algo para ajudá-lo, mas na época

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éramos colegiais e muito absortos nas próprias vidas. Confesso que depois de Cave deixar o

colégio, nunca mais pensei nele.

— Como isso deve ter doído — Eleanor disse. — Eu me lembro de ter sido vítima de uma

crueldade escolar e se hoje eu encontrasse Fanny Millburton, teria de me esforçar para ser cortês.

— Você se desviaria do caminho para fazer um favor a Fanny? — Thea perguntou.

— Não tenho certeza.

— Do que você suspeita. Thea? — Nicholas indagou. Thea evitou falar da promessa.

— Meus pais ficaram muito gratos a lorde Darien pelo que ele fez com meu irmão e suspeito

que essa seja a meta dele. Porém, a advertência de Mara me fez imaginar se ele deseja fazer-nos

algum mal, e agora você me deu a razão.

— Uma vingança estranha — Nicholas considerou. — Seria mais simples deixar Darius

cozinhar no escândalo, não acha?

— Mas dessa forma a situação de lorde Darien não teria mudado — Thea alegou. — A noite

passada, a sociedade mostrou claramente que não aceitaria um Cave em seu meio. Talvez ele

quisesse mudar isso e o apoio de minha família seria poderoso.

— A maldade dos nobres pode ser pior que a do populacho — Nicholas afirmou. — Haveria

algum mal se ele procurasse o suporte de sua família para vencer a rejeição?

— Uma vez atingido o objetivo, ele poderia agir com malícia sutil.

— Thea, você anda lendo os romances de Minerva? — Nicholas ergueu as sobrancelhas com

um sorriso divertido nos lábios.

— Pessoas planejam e executam maldades — Thea protestou.

— Tem razão — Nicholas anuiu, para em seguida olhar para a esposa. — Eleanor, acho que

teremos de ficar na cidade um pouco mais.

Eleanor suspirou.

— Está bem. Você errou em não ajudar Cave há uma década, e agora terá de fazer a

reparação.

— Você me conhece muito bem e sabe que farei isso.

— Claro e eu concordo, exceto que o trabalho competiria a Darius. Afinal, ele foi o causador

da ofensa, mesmo que sem maldade.

— Darius não voltará para a cidade nas próximas semanas, por isso eu e os outros teremos de

enfrentar a posição.

— E fazer o quê? — Thea indagou.

— Corrigir o erro. Se Darien quiser ser aceito na sociedade, teremos de fazer com que ele

consiga o intento.

Thea deixou a xícara e o pires sobre a mesa com mãos trêmulas de alívio. Viera até ali atrás

de uma informação e parecia que fora salva. Tudo indicava que lorde Darien não precisava mais de

um noivado falso. Ele contaria com auxílio da Confraria, inclusive dos membros honoráveis como o

duque de St. Raven e mais a assistência dos Yeovil.

E o melhor. Ela agora poderia ameaçá-lo. Se Darien a importunasse, ela contaria tudo,

transformando aliados em inimigos.

— Suponho que ele ainda é conhecido como Canem Cave — Eleanor disse para o marido. —

Por que, se esse era o problema?

— Talvez ele use a inteligência para reverter isso em seu favor.

— Ele é inteligente?

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— Bons oficiais sempre são e sua reputação militar é extraordinária. Então, qual será nosso

plano? — Nicholas olhou o papel de parede, pensativo. — Darien deve ter muitos amigos no

Exército, mas muitos, como ele, deviam estar afastados da Inglaterra até há pouco tempo.

Precisamos de pessoas com influência na sociedade.

— Isso me absolve dos deveres — Eleanor concluiu.

— Tente esconder sua alegria, meu amor. — Nicholas, por instinto, segurou a mão de

Eleanor, e Thea sentiu-se embaraçada.

— Ainda bem que os membros da Confraria estão aqui para apoiar Darius durante algum

tempo — Nicholas considerou. — Os pares do Parlamento de qualquer forma estão presos em

Londres, enquanto os debates prosseguirem. Temos muito poder de fogo, mas assim mesmo não

podemos impor Darien à força. Precisamos seduzir as damas e converter os homens.

— Suponho que ele seja bonito — Eleanor disse.

— Você supõe? — Nicholas provocou-a.

— E de maneira ameaçadora — ela brincou.

— Em geral os mais perigosos costumam enganar as mulheres.

Na provocação, eles haviam acertado.

— E se ele for um Cave maldoso de verdade? — Thea perguntou. — E se estiver planejando

atacar Darius e minha família por um incidente ocorrido há dez anos?

— Nesse caso, nós o destruiremos — Nicholas respondeu com tranquilidade.

Thea deixou a casa dos Delaney mais aliviada, porém imaginando a força que desencadeara.

Contra a vontade, a história do colegial atormentado havia despertado sua piedade pelo garoto

desajustado.

Ela nunca frequentara o colégio e as histórias de Darius sobre Harrow eram engraçadas. Mas

escutara diferentes versões e desconfiava de que uma escola de meninos podia ser um inferno.

Algumas vezes os garotos provocavam uma rebelião armada contra seus cruéis opressores. Por isso

Nicholas Delaney formara a Confraria dos Rebeldes.

Para proteção.

Mas Horatio Cave não tivera proteção.

Tinha sido um garoto baixinho e magricela com pouca instrução.

Lutava com maldade.

Thea endureceu o coração. Isso tudo fazia de Darien mais do que uma ameaça para ela.

Ao voltar para casa, viu um recado para encontrar-se com a mãe nos aposentos dela. Temendo

más notícias sobre Darius, Thea tirou a capa e apressou-se. Contudo se deteve ao passar ao lado do

espelho.

Aquela parte da casa recebia pouca luz do dia e apesar da mesma atmosfera opressiva da noite

anterior, Thea viu seu reflexo bem diferente. Ela usava um vestido azul de gola alta debruada com

um belo babado branco.

Os cabelos estavam presos num coque sem enfeites. Nas orelhas trazia brinco de pérolas e na

gola do vestido um broche de prata e pérolas.

Olhou para o lado, esperando ver Darien parado ali. Era quase como se seu espírito

sussurrasse: Lembre-se de mim, como o fantasma de Hamlet.

Thea apressou-se, mas sentiu que algo a perseguia, a ponto de ela imaginar se Darien não a

aguardava no quarto da mãe. Os chamados da duquesa costumavam ser pela manhã e Thea

estranhou ser convocada à tarde.

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Darien teria se aproximado de seu pai para formalizar o noivado?

CCaappííttuulloo IIIIII

Thea entrou no quarto da duquesa, esperando más notícias, o sol radioso iluminava o elegante

aposento e o sorriso da mãe. Ela era uma mulher de aparência simples para uma duquesa, com

constituição média e cabelos castanhos, embora a bondade de sua expressão lhe conferisse um

encanto perene.

A mãe e uma convidada, lady Vandeimen, tomavam chá sentadas junto à mesa coberta por

uma fina toalha de linho. Maria Vandeimen, prima distante da duquesa, não era uma visita comum

para o chá.

— Thea, ontem à noite você esteve adorável — Maria disse.

— Seu vestido era lindo e muito sensual.

— Está falando de meu espartilho? — Thea beijou-a no rosto.

— Eu deveria tê-lo trocado quando mudei de roupa.

— Não. Estou me referindo ao corte, querida. Se eu ainda tivesse uma silhueta delgada como

a sua, mandaria fazer um no mesmo estilo.

Maria havia se casado novamente no ano anterior e dera à luz em fevereiro depois de anos

supondo-se estéril. Ela brilhava de satisfação.

— Espero que Georgia esteja bem. — Thea sentou-se e aceitou uma xícara de chá,

imaginando o que a aguardava.

— Está em perfeita saúde. — Maria descreveu os encantos da filha, mas logo mudou de

assunto. — Na verdade, vim até aqui para falar de lorde Darien.

— Por quê? — A xícara de Thea chocalhou em sua mão.

— Ele é amigo de Vandeimen.

— Do exército? — Thea indagou.

— Sim, embora tenham sido de regimentos diferentes. Ambos tinham apelidos, Van tornou-se

Vandeimen, o Demônio; e Darien era Cave, o Cão Furioso.

— Esses apelidos infelizes — a duquesa comentou. — Maria e eu estamos considerando o

que fazer em relação a Darien, pois as pessoas são muito maldosas. Querida, pegue um bolinho de

limão, estão deliciosos.

Thea aceitou a guloseima.

— Mamãe, ele pode ser um verdadeiro Cave.

— Oh, não! Eles sempre foram malvados e egoístas. O antigo lorde Darien jamais ajudou

quem quer que fosse. Eu lhe asseguro que não há nenhuma semelhança nesse sentido.

— Ele é moreno — Maria disse.

— O antigo visconde não era — a duquesa alegou.

— Mas Marcus era, o que causou muitos problemas ontem à noite — Maria continuou. — Se

Darien tivesse aparência semelhante ao pai, não teria provocado tanto alarme.

— Mas ele não se parece nada com Marcus — a duquesa protestou. — Marcus era um

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monstro.

— Não quando era jovem, antes da sífilis se instalar.

— Maria! — a duquesa protestou, olhando para Thea com preocupação.

— Mamãe, eu já sabia disso — Thea tranquilizou-a. — E de onde vieram aqueles olhos e

cabelos negros?

— A mãe era italiana — a duquesa explicou. — Magdalen alguma coisa. Acho que era uma

cantora ou dançarina de ópera.

— E ela foi aceita pela sociedade? — Thea quis saber.

— Oh, não! — a mãe assegurou.

— Então na certa era uma dançarina.

— Não sei como as jovens de hoje em dia sabem dessas coisas — a duquesa queixou-se. —

Lady Darien poderia ter sido uma cantora, mas o fato de ter se casado com o visconde tornou-a

persona non grata. Além disso, era uma estrangeira e imaginava-se por que ela havia se casado com

ele. O visconde não era bonito nem tinha boas companhias. Acreditem ou não, o irmão dele,

Richard Cave, era ainda pior e teve de fugir do país. Trapaceava nas cartas e matou uma pessoa,

embora não fosse como o caso de Mary Wilmott. A vítima era do mesmo tipo dele e foi emboscada

numa alameda escura. Creio que ele enfrentou a Revolução Francesa e foi guilhotinado, o que pode

ser visto como uma espécie de justiça divina.

— Não houve um visconde anterior chamado de Satã? — Maria perguntou. — É uma triste

saga e não será fácil de superar, ainda mais com a imagem de Mary Wilmott pairando sobre a

cabeça de Darien como um albatroz.

— Então precisamos dar um jeito nisso — a duquesa afirmou. — Como naquele poema onde

falam do ópio.

Thea sabia que a mãe não estava pensando em Rima para um Velho Navegante, de Coleridge,

mas sim em Darius. Ele e a noiva ainda não deviam ter chegado a Brideswell, mas os efeitos de

ficar sem a droga na certa haviam começado. Nos próximos dias viria o pior e Darius seria

atormentado por visões terríveis.

— Tenho certeza de que Darien é um homem excelente — a duquesa alegou. — Seu

desempenho militar é um exemplo.

Maria deu uma tossidela.

— O que você quer dizer com essa tosse? — A duquesa perguntou.

— Temos de encarar os fatos, Sarah. Ele foi arrojado e muito eficiente, mas não superou a

patente militar de Van. O apelido de Cão Raivoso imposto por Wellington não foi inteiramente

elogioso.

— Maria, ele nos fez um grande favor e queremos retribuir essa bondade. Presumo que você e

Vandeimen queiram ajudar, não é?

— Claro. Mas isso precisa ser feito com cuidado.

— Creio que o endosso de pessoas como nós será suficiente. — A duquesa tornou a servir o

chá.

— Você está acima de qualquer suspeita, Sarah. Mas eu sou uma mulher tola sob a influência

de um jovem atraente e impetuoso. — Maria divertiu-se.

— Os membros da Confraria vão dar seu auxílio. — Thea mexeu o açúcar no chá. — Estive

com os Delaney e eles me prometeram isso.

— Ora, mais que boa notícia, Thea! Mas qual o motivo de tanta pressa? — a mãe espantou-se.

— Mara notou um antagonismo entre Darius e Darien, e Darius explicou que os dois tiveram

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um desentendimento em Harrow.

Thea contou o que lhe fora relatado e a mãe franziu o cenho.

— Darius cometeu um erro e deveria tê-lo corrigido. Ele poderia ter convidado o pobre rapaz

para passar o verão em Long Chart.

Thea ficou alarmada.

— Mas se os membros da Confraria estão do nosso lado — a duquesa continuou — o sucesso

será garantido. Eles têm condições de recrutar um grande número de damas e cavalheiros que não

terão preconceito. Esportistas, políticos, diplomatas, patronos das artes e ciências.

— Muitas pessoas conhecem a Confraria? — Thea perguntou.

— A maioria sabe que se tratava de um grupo de colegiais, mas não que ainda se conserva

unido. E existem as conexões como St. Raven, Vandeimen e Hawkinville.

— Uma solução inteligente — Maria aprovou. — Na verdade parecerá uma aprovação não

organizada. Van disse que muitos militares o apoiarão.

— Mas e se lorde Darien tiver um motivo interior, alguma má intenção? — Thea acautelou-

se.

— Por causa do desentendimento escolar? — a mãe perguntou.

— O sofrimento pode não desaparecer.

— Não depois de dez anos de guerra — a duquesa alegou. — O que sabemos sobre Darien

que possa desacreditá-lo?

Ele ataca mulheres quando as encontra sozinhas.

— Não se esqueça de que as pessoas o chamam de Cão Raivoso? — Maria sugeriu.

— Darien não demonstrou nenhum traço de insanidade ou raiva — a mãe retrucou.

— A senhora o conheceu, mamãe? — Thea indagou, curiosa.

— Claro que sim, querida. Acha que eu não iria procurar nosso salvador? Eu o alcancei na

porta e confesso que chorei. Ele é muito bonito. — Ela mordeu um pedaço de gengibre açucarado.

— Não da maneira comum, mas os olhos negros e aquela energia... Devastador. —A duquesa

lambeu os lábios.

Embora a mãe estivesse degustando apenas o açúcar, Thea gostaria de repreendê-la pela falta

de decoro.

— A idade não nos deixa cegas diante da beleza, não é, Maria? — A mãe percebeu a

reprovação da filha.

— Claro que não, eu casei com um homem encantador. Mas devemos considerar que você

tem uns vinte anos a mais do que eu, Sarah.

— E mesmo? — A duquesa procurou consolo em mais um pedaço de doce. — Talvez a

solução mais simples seja encontrar para ele a noiva certa. Uma de reputação impecável como a

sua, Maria. Nada mais de artistas da ópera.

— Uma dama inglesa bem-nascida? — Maria murmurou. — Com um nome excelente, mas

não em situação de escolher muito. — Ela se virou. — Thea...

— Eu não! — Thea protestou.

— Claro que não — Maria disse, rindo. — Você pode escolher quem quiser, minha querida.

Eu apenas queria lhe pedir sugestões, pois você conhece as damas mais jovens.

— Uma viúva sensata não seria melhor? — a duquesa sugeriu.

— Assim como eu era?

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— Você viu um petisco apetitoso e o comeu, Maria. Isso não tem nada a ver com sensatez.

Não creio que Vandeimen se importe, mas Darien pode não querer uma mulher mais velha.

Digamos alguém com vinte e quatro ou vinte e cinco anos e não tenha se casado. Uma dama que

tenha desistido de comparecer à temporada...

— Como sempre, Sarah, você está se adiantando muito. Nós nem mesmo sabemos se lorde

Darien é condizente com a nossa sociedade. Sabemos pouco a seu respeito, e não devemos esquecer

de que ele é um Cave.

— Mas Darius...

— Um ato isolado não faz um anjo, Sarah. E se nós o endossarmos, nossa reputação estará

amarrada na dele.

— O que dizer de Vandeimen? — a duquesa desafiou a amiga. — Você disse que ele queria

ajudar Darien.

— Van o defende em geral, mas ele também admite que os valores do Exército são diferentes.

Extremos aceitáveis entre homens durante a guerra não são bem vistos em salas de estar.

— Ele ajudou Darius — a duquesa teimou. — E devemos ser bondosos em retribuição.

Thea pegou um pedaço de gengibre doce. A advertência de Mara fora de grande valia. Lorde

Darien havia se transformado numa das causas beneficentes de sua mãe e ela nada escutara contra

ele.

— Mesmo sem isso — a mãe continuou —, Darien mereceria nossa bondade por ser um

veterano de guerra. Temos visto como é difícil para alguns jovens se ajustarem em tempos de paz.

Tome como exemplo seu marido, Maria. Um herói, mas no caminho da ruína antes de você o

encontrar.

— Concordo e talvez Darien seja um caso semelhante.

— Ou não, Maria. Desculpe-me dizer isso, mas pelo que me consta, Darien não afundou na

bebida nem no jogo.

— Mas como eu lhe disse, Sarah, não sabemos o suficiente sobre ele para ter certeza.

Thea imaginou se as duas acabariam discutindo.

— Já pedi a Thoresby para investigar.

— Ah, que bom — Maria descontraiu-se.

E Thea ficou mais aliviada. O secretário de sua mãe era muito eficiente e também protetor da

boa natureza e generosidade dela. Ele com certeza desenterraria todos os pecados de Darien.

— Ele não achará nada que desabone Darien — a duquesa afirmou. — Cully o idolatra.

Talvez devêssemos convidá-lo para jantar.

— Cully? — Thea indagou, confusa.

— Darien, querida. Faremos uma cuidadosa lista de convidados e ele terá oportunidade de

entrar em contato com as pessoas certas que o valorizarão pelos conhecimentos militares e terão

poder para mudar opiniões dentro da sociedade. O duque não economizará palavras de aprovação

pelos clubes. — a duquesa voltou-se para a amiga. — Maria, será que Vandeimen faria o mesmo?

— Claro, Sarah! Mas não se precipite. Espere pelo relatório de Thoresby.

— Está bem. Terei um relatório preliminar em questão de dias.

Maria levantou-se e pressionou o busto amplo.

— Preciso voltar para Geórgia.

— Você deveria tê-la trazido. — A duquesa levantou-se e beijou-lhe o rosto. — Adoro bebês.

— Eu a trarei da próxima vez — Maria prometeu e seguiu em direção a porta.

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— É tão bom ver Maria feliz — a duquesa comentou ao ver a amiga sair. — Ela nunca disse

nada, mas seu primeiro marido foi um desapontamento e não apenas pela falta de filhos. A princípio

nos preocupamos por Vandeimen, mas ele tem se mostrado excelente e o mesmo acontecerá com

Darien. — Ela fitou Thea. — Você disse que não está preparada para se decidir por um de seus

pretendentes?

— Sim, mamãe.

— Bom. Então você estará livre para apoiar Darien. — Ela reparou na expressão da filha. —

O que houve, filha? Ele a assusta?

— Não, quero dizer, eu não sei. Eu não o conheço — ela mentiu.

— Verdade? Pois suas opiniões me pareceram decididas. Pensei até que o houvesse

encontrado ontem à noite.

— Deparei-me com a reputação dele por toda a parte.

— Você hoje está arisca, querida, talvez seja o cansaço. Só estou lhe pedindo para

ocasionalmente permitir a lorde Darien dar-lhe o braço, talvez se sentar a seu lado e conversar um

pouco. Dançar com ele sem dar a impressão de que espera ser devorada. Isso seria pedir demais?

— Não. — Afinal prometera ficar noiva dele. Oh, céus, como havia se metido em tal dilema?!

— Você tem uma excelente reputação de virtude e sensatez, e isso poderá convencer as

pessoas imediatamente. Quando poderemos começar? — A duquesa abriu o livro de apontamentos.

— Almack's hoje noite. Não há esperança de levarmos Darien para lá ainda.

Ainda? Thea teve vontade de rir.

— Musical de lady Wraybourne na quinta. Muito seleto. Isso poderá ser difícil...

— E a senhora pretende esperar o relatório de Thoresby — Thea lembrou-a.

— Tenho certeza de que até lá teremos novidades. Precisamos agir depressa para reverter a

maré. Ideias arraigadas são mais difíceis de serem revertidas. Compromissos menores na sexta. —

A mãe anotou.

Thea não protestou. Isso lhe daria três dias antes de encontrar Darien novamente, a menos que

ele se adiantasse, exigindo a noiva.

Ela tentaria encontrar-se com ele mais cedo e explicar os motivos de o noivado ter se tornado

desnecessário. Contudo, falar com ele era sinônimo de aborrecimento.

Por volta do meio-dia, Darien havia terminado o trabalho de escrita, seguro de que lady

Theodosia não se queixara de seu comportamento e que não haveria um desafio. Ela provavelmente

estaria correndo em círculos, tentando encontrar uma maneira de evitar a promessa.

Oh, não, milady, a senhora é minha, ele sorriu, e esqueceu por um instante sua penitência.

A contabilidade. Não fora treinado para fazer esse trabalho, mas se esforçava para entender

coisas pelas quais era responsável. A batida na aldrava da porta da rua o distraiu de uma coluna de

números.

Escutou os passos pesados de Prussock indo até a porta, vozes leves e passos de volta. Uma

batida na porta da biblioteca.

— Entre.

Prussock obedeceu.

— Um cavalheiro deseja vê-lo, milorde — ele disse, descontente. Visitas não o agradavam.

— Quem é? — Darien levantou-se.

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— Lorde Vandeimen, milorde.

Darien sentiu-se aliviado, mas não soube onde receber o primeiro visitante da Mansão Cave.

A sala de recepções e o salão de estar ainda estavam cobertos, assim como a sala que fazia

parte da suíte de seu pai. Decidira não usar esses recintos assim como o grande aposento que havia

sido de Marcus, mesmo que todos os traços do passado houvessem sido removidos.

Ele estava usando o terceiro aposento, modesto em tamanho e que não fora reformado. Antes

de se decidir, Van apareceu na porta, esbelto, loiro e com uma grande cicatriz no rosto.

— Pensando em como vai me atirar porta afora? — ele perguntou com um sorriso.

Darien riu e adiantou-se para cumprimentá-lo.

— Não, mas não sei onde poderei acomodá-lo. Estou acampado aqui, mas tenho provisões.

Cerveja, vinho, chá ou café?

— Café, obrigado. — Van olhou ao redor do escritório. Darien ordenou que o curioso

Prussock se retirasse.

— Eu sei, é espartano. Quando meu pai morreu, o testamenteiro retirou daqui todos os

documentos referentes ao viscondado. Nem me preocupei em trazê-los de volta. Havia alguns

livros, mas os que não eram almanaques ultrapassados eram compêndios de depravação. Mandei

queimar tudo.

— Será que os volumes não foram vendidos por um preço conveniente?

— Pode ser. Mas é bom vê-lo, Van.

— Não o procurei antes, pois só soube de sua presença na cidade ontem à noite no baile dos

Yeovil.

— Eu estava ajeitando as coisas. — Darien deu uma desculpa vaga. — Podemos ir para a sala

de estar, embora ela ainda esteja coberta.

— Então para que perturbar as mortalhas? — Van sentou-se numa das cadeiras tortas perto da

lareira vazia. — Como vai você?

Cauteloso, Darien ocupou a outra cadeira. Van poderia estar ali por amizade, sem

questionamentos, mas também com assuntos relativos a noite anterior. Van tinha suas próprias

conexões com a Confraria.

— Bem, no cômputo geral. E você? Adaptou-se ao casamento e à paternidade? — Darien se

espantara ao saber, no último ano, que Van tinha se casado com uma mulher viúva rica e mais

velha. Viúva de um mercador, porém Van herdara uma propriedade em pior estado que a de Darien.

— Excelente. Recomendo ambos. — Van mudou de assunto. — Você me evitou

deliberadamente ontem à noite?

— Direto ao ponto como sempre. Claro, eu era o leproso na festa e não queria contaminá-lo.

— Nunca o imaginei quixotesco. Mas se você foi um doente, já está curado. Você se tornou o

queridinho da duquesa de Yeovil. Uma pena que não ficou mais tempo para ser coroado com glória.

— Eu a deixei desconcertada, não é?

— Apenas confusa. O que está acontecendo?

Darien pensou em contar tudo para Van, mas desistiu. Ele não queria nenhum amigo

envolvido em seu plano e havia vários aspectos que Van não deveria saber.

— Por meus pecados, sou o visconde Darien. Quando o regimento acabou voltando para a

Inglaterra e impôs a lei que não permitia aglomerações a um bando de tecelões desesperados de

Lancashire, entendi que eu não servia mais para o Exército. Espero ser mais útil administrando

minhas propriedades, pondo em ordem as finanças e decidindo o que fazer com tudo isso, inclusive

esta porcaria de lugar.

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— A mim parece uma casa perfeitamente normal.

— De jeito nenhum. Essa era a toca de Marcus Cave.

— Santo Deus, então é melhor vendê-la!

— A casa esteve vazia para a venda ou locação por mais de um ano.

— Não faz parte do legado?

— Não existe nenhum.

Prussock entrou, carregando uma bandeja com uma cafeteira alta de porcelana e outros

acessórios. Havia até um prato com biscoitos, coisa que Darien nunca vira, mas também não notara

a falta, por não ser muito afeito a doces.

Deveria provavelmente fiscalizar os gastos da sra. Prussock, principalmente na alimentação

dos criados, mas esse seria último item da lista. Se eles precisavam de alguma indulgência para ficar

ali, isso até seria barato.

Prussock serviu o café e saiu em seguida.

— Então há na verdade algo de valor para herdar — Van comentou. — Você está melhor do

que eu.

Van poderia ajudá-lo com sua experiência em leis de propriedade e administração.

— Espantoso, não é? Alguns dos itens mais valiosos foram vendidos ao longo dos anos, mas

as três propriedades estão intactas com apenas pequenas hipotecas. Elas têm sido mal

administradas, porém fornecem uma renda trimestral que excede as despesas essenciais, o que é

mais do que eu esperava. As propriedades de sua família estavam em mau estado, Van?

— Afundadas em dívidas. Mas eu resolvi meus problemas, casando-me por dinheiro. Você

devia considerar isso.

Darien riu.

— Que herdeira se casaria com um Cave? Descobri que é difícil encontrar uma mulher sadia

de qualquer natureza.

— Então a noite passada foi auspiciosa. Com o patrocínio dos Debenham, você logo estará

em melhores condições, dividido entre as atenções das jovens.

Darien tornou a rir.

— Está tentando me encorajar. — Ao ver o amigo sorrir em resposta, resolveu mudar de

assunto. — Você tem caçado depois de sua volta?

— Passei algumas semanas em Melton no inverno.

Eles falaram um pouco sobre a caça à raposa, fazendo planos para a próxima temporada.

— Por que você falou a favor de Darius a noite passada? — Van pegou um biscoito da

bandeja.

Era o assunto que o trouxera até ali.

— Isso é tão surpreendente?

— Tive a impressão de que você o odiava. Em Bruxelas você o evitou sempre que podia.

Darien acreditava ter disfarçado seus sentimentos.

— Nós tivemos alguns desentendimentos no colégio e eu queria evitar discórdia, com a

batalha se aproximando.

— Nós tentávamos ser alegres e aproveitar a vida, não é mesmo? Darius era bom nisso. O que

houve entre vocês?

— Uma história antiga.

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Van não insistiu.

— Então foi muita generosidade sua tentar ajudá-lo. E como ajudou. Ele agora está fora da

cidade para tentar se livrar do ópio, o que será mais fácil com menos problemas para carregar.

— Espero que ele vença essa luta.

Van anuiu.

— Você também está encarando uma batalha para ser aceito na sociedade londrina, não é?

— E eu não mereço?

— Claro. E como nós poderemos ajudar?

— Nós, quem?

— Maria e eu. Você precisa aparecer logo, Maria está curiosa para conhecê-lo.

Darien duvidava disso.

— Ainda não, embora eu apreciasse muito. Tenho poucos amigos e prefiro não deixá-los em

situação embaraçosa.

— Então gostaria de insultá-los? Venha jantar conosco na quarta-feira. Nesse meio tempo,

nós o apoiaremos em qualquer evento público.

— E sua esposa?

— Ela concordará.

— Você a controla tão bem?

Van deu risada.

— Você não faz ideia, Maria concorda com tudo. Aliás, foi ela quem sugeriu o apoio.

— Talvez Maria não entenda a situação. Ela é a viúva de um mercador estrangeiro, não é?

Van riu de novo, atirando a cabeça para trás.

— Maria é uma Dunpott-Fiyfe, prima da duquesa de Yeovil. Isso quer dizer que está ligada à

árvore genealógica da realeza de pelo menos quatro países. Maria agora está na Mansão Yeovil,

fazendo planos.

Darien sentiu um frio na espinha. A esposa de Van era prima da mãe de lady Theodosia? E as

três estavam em meio a uma teia de poder social quase ilimitado?

— Assegurei a Maria de que você era um homem respeitável.

Darien largou a xícara sobre a escrivaninha.

— Você tem alguma dúvida?

— Não, mas sei que você pretende alguma coisa.

— Apenas ser aceito na sociedade como um ser razoavelmente normal.

— Então não será difícil. Escute meu conselho e deixe o restante para as mulheres. — Van

levantou-se. — Tenho um compromisso, mas Maria terá os convites certos para você aceitar. Acho

que será uma questão de entrar, saudar algumas pessoas e sair. E isso você poderá fazer.

— Sim, mas ficarei surpreso se surgirem convites.

Van acenou com a mão.

— Há muitas regras antigas, mas os pares do reino são convidados para reuniões, mesmo que

não sejam tão seletas. Além disso, há o teatro e algumas exibições. Ser visto com Maria será um

grande trunfo.

— É muita bondade sua. — Darien tentava decidir se aceitava esse tipo de ajuda.

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— Você ainda luta boxe?

— Por que? Está com vontade de me enfrentar?

— Sempre estou. — Van sorriu. — Essa é uma atividade em que envolve os homens. Nós

poderíamos ir sexta-feira à tarde no Jackson's.

— Eu gostaria bastante.

Van segurou no braço de Darien.

— E bom estarmos juntos de novo, Canem. E dessa vez com a morte bem longe de nós.

Darien acompanhou até a porta, desejando que a afirmação do amigo fosse verdadeira.

Sentia-se confortado pela amizade, mas preocupava-se com o novo alinhamento do tabuleiro.

Havia três damas em jogo e elas podiam ser as três parcas que fiavam, dobravam e cortavam o fio

da vida, decidindo quem deveria viver ou morrer.

Depois de um momento de reflexão, considerou que poderia intervir no trabalho das parcas e

voltou ao escritório, decidido a enfrentar os incompreensíveis livros de contabilidade. Ainda não

completara a comparação de duas páginas, quando escutou nova batida na porta.

Dessa vez, nada de anormal. Prussock trouxe o correio da tarde. Darien examinou as três

cartas, esperando que uma fosse de Frank. Não era. Uma delas era de seu advogado, outra de seu

novo agente de Stours Court, a propriedade de Warwickshire e a terceira sem indicação do

remetente.

Ele rompeu o lacre e viu um papel cobrindo uma folha pintada. Ao desdobrá-la, notou que se

tratava de uma pintura barata que se achava em qualquer lugar. Essa ele conhecia. Recebera outra

cópia, também anônima, na França, uma semana após as mortes do pai e do irmão.

Dois homens gordos estatelados sobre uma encosta e com a boca do inferno aberta sob eles.

Diabinhos seguravam os pés calçados com botas e os puxavam em direção às chamas, onde Lúcifer

e um monstro inchado os aguardavam.

O monstro era intitulado o Louco Marcus Cave e os dois homens, o Profano Christian Cave e

o Vil Visconde Darien. Das nuvens negras do céu, Deus soltava um raio em cada mão com uma

palavra inscrita: Cave!

Em baixo, a pintura era intitulada: A ira de Deus.

— Vá você também para o inferno — Darien murmurou para o remetente.

O cartão era acertado nos detalhes. Seu pai, o sexto visconde Darien e o filho mais velho dele,

o profano Christian Cave, tinham morrido nas charnecas próximas a Stours Court onde caçavam

durante uma tempestade.

Ao saber da notícia, Darien não sentira pesar, mas desejara que a morte dele tivesse sido

menos impetuosa.

O crime hediondo que Marcus cometera tinha acontecido seis anos antes, e ele morrera havia

cinco, porém a Ira de Deus ocorrera no ano anterior.

Estaria esse cartão sendo impresso e mostrado novamente? A mando de quem? Darien

amassou o papel e escutou a aldrava soar novamente.

— Deus Poderoso! O que será agora? — Levantou-se, lembrando-se de que más notícias

chegavam em trio.

Foi até a porta e ao abri-la encontrou Prussock parecendo ainda mais aborrecido.

— O senhor tem um convidado, milorde.

— Uma visita, Prussock.

— Não, milorde. O cavaleiro disse que veio para ficar.

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— Quem...

O cavalheiro em questão apareceu atrás do mordomo. Grande, gordo e sorridente, como

sempre semelhante a um querubim gigante.

— Bela casa, Canem — Pup Uppington, antigo tenente do regimento de Darien,

cumprimentou-o.

Darien ficou parado, imaginando o que fizera para merecer aquilo.

Pup fora batizado como Percival Arthur Uppington por pais que esperavam dele nada menos

que um guerreiro poderoso. Quando ele atingiu a maioridade, os pais o enviaram para o Exército.

Por algum milagre ele chegara a tenente, passando por vários regimentos até aterrissar no que

estava sob o comando do capitão Cave.

O regimento todo concordara que Pup se adaptaria muito bem ali. O apelido Pup vinha desde

o tempo da escola e todos acharam irresistível a ideia de ele ser o Pup do Canem, ou seja o

cachorrinho do cão.

Talvez por isso Darien não procurou se livrar dele, e por isso o mantivera vivo nos Pirineus,

na falsa paz da França e até na batalha de Waterloo. A consequência infeliz foi Pup tornar-se tão

devotado quanto um cachorrinho. Darien pensara ter ficado livre dele quando Pup herdara dinheiro

do pai no ano anterior, mas o fiel amigo continuou no Exército, devoto como sempre.

Darien vendera a patente, supondo que a corda seria rompida, ainda mais que Pup havia

deixado o Exército na mesma época para reivindicar sua modesta fortuna. O que Pup estaria

fazendo em Londres?

— Obrigado, Prussock — Darien agradeceu, perplexo.

O mordomo saiu da frente de Pup e rodeou-o para deixar o gabinete. Pup vestia um colete

xadrez amarelo e azul cobrindo a barriga proeminente. A roupa obedecia a ultima moda, mas o

colarinho lhe cobria as orelhas e a gravata lembrou a Darien uma couve-flor.

— O que você está fazendo aqui, Pup?

— Passeando um pouco em Londres — ele respondeu. — Pensei, Canem tem uma casa. Nem

esposa. Nem família. Deve querer alguma companhia. — O sorriso radiante mostrava a certeza de

estar fazendo uma tarefa santa.

Más notícias, de fato, chegavam em trio.

— Você não vai gostar disso aqui, Pup. Sou persona non grata.

— Persona o quê?

— Não bem-vindo. Nem convites. Nem festas. Nem nada. — Droga, ele estava falando como

Pup. — Você se sentiria mais à vontade numa estalagem, ou num hotel.

Pensou em Pup, solto, desacompanhado em Londres. Diabos, aquilo era maldição dupla!

— Aqui está ótimo, Canem. Melhor do que muitos alojamentos, não é?

Por que não deixara Pup afogar-se no rio Loire quando tivera oportunidade, Darien pensou?

Procurava por mais argumentos quando soou outra batida na porta.

— Entre! — ele gritou.

Aquilo era contra as regras. Não poderiam ser quatro as notícias.

Prussock entrou trazendo uma carta numa salva de prata e com ares de importância.

— Da duquesa de Yeovil! — ele foi dizendo.

Darien pegou a carta e preparou-se para o julgamento das parcas. Quebrou o selo, desdobrou

o papel caro e leu um agradecimento entusiástico pela ajuda ao filho Darius.

Não era a quarta má notícia, mas o primeiro passo para a vitória.

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— Duquesa, hein? — Pup deu uma risadinha. — Sabia que estava brincando comigo! Afinal,

Canem Cave é bem-vindo em qualquer lugar. Qual o quarto que poderei ocupar?

Talvez isso fosse a doçura da vitória menor ou ele simplesmente não podia atirar o camarada

para defender-se sozinho na mais cruel das cidades do mundo. Pup podia ficar com o antigo

aposento de Marcus. O ânimo inocente poderia fumigá-lo e afastar os fantasmas. Ele levou a valise

de Pup para cima, enquanto o jovem carregava no ombro a arca pesada.

— Não tem criado de quarto, Pup?

— Tive um. Mas ele me assustou.

— Então use o meu enquanto você estiver aqui. Ele não assusta, mas bebe.

Assim que Darien deixou a valise no quarto, uma ideia lhe ocorreu. Seria possível contratar o

equivalente a uma dama de companhia para um homem? Rapazes que viajavam para se educar

tinham sempre quem os guiava e os mantinha fora do perigo. Por que não uma combinação de

criado de quarto e tutor para guiar Pup pela vida?

Teria de ser a pessoa certa, alguém que não quisesse tirar vantagem.

Van ou sua esposa deveriam conhecer alguém.

— O que faremos agora? — Pup perguntou antes de Darien sair.

— Estou ocupado, Pup. O título trouxe muita papelada para ser examinada.

— Esta noite, então. Quero visitar um bordel londrino, Canem. O melhor deles.

Darien fechou os olhos por um instante.

— Nós sairemos para conhecer a cidade — prometeu antes de sair.

Parou na porta da sala de estar. Naquela altura, talvez fosse precisar do aposento. Ele levantou

uma cobertura de algodão branco e viu um sofá pesado e antigo. Sob a coberta do chão havia um

bom tapete. As paredes eram pintadas num tom de amarelo pálido, mas provavelmente com um

mínimo de trabalho o recinto poderia ser utilizado.

Imaginou quando a sala fora usada pela última vez. Difícil imaginar seu pai como anfitrião de

um acontecimento social, e sua mãe não viera para Londres logo após de casada, para não se

defrontar com a sociedade preconceituosa. Ele mesmo nunca havia estado ali. Antes de ir para o

colégio, ficara em Stours Court.

Sua avó provavelmente também não usava a sala. Até onde ele sabia, a esposa de Satã Darien

propusera uma separação baseando-se em crueldade insuportável e conseguira. Se ela usara a sala,

deveria ter sido nos primeiros anos de casamento, muito, muito tempo atrás.

Imaginou o que havia nos quadros cobertos e puxou o pano que os envolvia. Num deles uma

paisagem melancólica, com montanhas muito altas e pequenos personagens. Outro revelava uma

mulher de rosto branco na moda no último século. Talvez fosse a esposa de Satã, antes de escapar

do inferno.

Haveria ali um retrato de sua mãe? Ele nunca vira um e pouco se lembrava dela. Puxou mais

um dos panos e encontrou o retrato de seu pai.

Tratava-se de uma boa reprodução a óleo e revelava uma fisionomia grosseira de um homem

na faixa dos trinta anos. Provavelmente fora pintado quando ele herdara o título, bem antes de se

casar. Se o artista tivesse sido lisonjeiro, que Deus ajudasse a todos.

Mesmo naquela época o rosto de seu pai era vermelho e cheio de pústulas, o nariz

intumescido, os cabelos castanhos ralos. O queixo duplo derramava-se sobre a gravata e a barriga

era contida por um colete apertado. Sentado, ele se mostrava confiante de seu poder.

A imagem se parecia com o velho homem do qual Darien se lembrava, inclusive os lábios

vermelhos e moles, e os olhos cruéis e empapuçados que o fitavam e pareciam dizer: Pensa que é

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melhor do que eu, rapaz? Você é um Cave, também, e ninguém esquecerá isso.

— O que é isso?

A voz de Pup assustou Darien. Que inferno! Tudo levava a crer que não teria mais nenhum

momento de paz.

— Você não vê alguma semelhança?

Pup postou-se diante do quadro.

— Com quem? Parece o regente. Lembra-se quando ele vistoriou o regimento no ano

passado?

Darien riu alto. Talvez fosse bom ter Pup por perto. Tirou a capa de uma poltrona, carregou-a

até o quadro e com a ajuda de Pup tirou a peça pesada da parede.

O que deixou um quadrado de tinta amarela clara no lugar.

Seria um bom sinal?

Darien levou o retrato até os antigos aposentos de seu pai e trancou a porta.

— Tenho de trabalhar — assim dizendo, foi para seu gabinete.

De repente percebeu que sentia-se mais leve. Van, a carta da duquesa e até Pup haviam

contribuído para isso. Por mais exasperador que fosse, Pup era a antítese de tudo o que o nome

Cave representava. Nisso Darien lembrou-se do sangue na porta e na Ira de Deus. A Mansão Cave

não era lugar para nenhum inocente e a situação de Pup teria de ser resolvida logo.

Sentou-se diante dos livros de contabilidade e pensou no que acontecera.

A carta da duquesa era um indício de que lady Theodosia nada dissera à mãe. No entanto ele

não pretendia fugir ao acordo, ainda mais depois do beijo que compartilhara com ela.

Desse modo, ele aguardaria ansioso o próximo encontro com a Ilustre Inatingível.

Ele riu. O apelido era tão ridículo quanto o Cão Raivoso Cave.

Thea passou o restante da quarta-feira temendo uma invasão Cave e, contra toda lógica,

temendo encontrar Darien no Almack's. Mas como ele não ousava enfrentar as formidáveis

patrocinadoras, ela se entregou às delícias de uma noite normal.

Conversou com os amigos, dançou, recebeu a quinta proposta de casamento de lorde Avonfort

e a recusou pela quinta vez. Ela até poderia tê-la aceitado se não fosse o compromisso assumido

com Darien. Mesmo não pensando em ficar noiva dele, não poderia prometer casar-se com ninguém

no momento.

Contudo, Avonfort resolveu insistir.

— Por que não, Thea? Nós somos adequados um para o outro.

— Eu sei.

Avonfort era um homem de vinte e oito anos, bonito e um dos mais elegantes da sociedade.

Tinha uma bela casa e uma propriedade próxima de Long Chart. Ela o conhecia desde criança e

gostava tanto da mãe quanto das duas irmãs dele. A mais nova, lady Kingstable, era uma particular

amiga sua.

— Não posso me comprometer ainda. Darius...

— Ele está noivo, vai se casar logo e não pode objetar se você fizer o mesmo.

— Não quis dizer isso. É que eu preciso de calma antes de tomar decisões importantes.

— Quanto tempo? — ele foi imperioso. Quanto tempo eu quiser!

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— Seis semanas. — O tempo que Darien exigira. Não importava o que acontecesse, em seis

semanas ela estaria livre.

— Seis semanas! — ele protestou. — É a temporada toda.

— E eu desejo aproveitá-la. Conversaremos mais tarde em Long Chart no verão.

Ele franziu a testa, mas tomou a promessa como válida. O que aborreceu Thea e a fez ainda

mais determinada a resolver a situação com o visconde.

Na quinta pela manhã, Thea perguntou à mãe sobre o relatório de Thoresby e soube que o

mesmo ainda não tinha sido entregue. E para evitar uma provável visita de Darien, ela foi visitar

Maddy.

A prima acabara de sair da cama e ainda estava de camisola.

— Você já viu lorde Darien? — Maddy perguntou, com olhar brilhante.

Thea tirou o casaco.

— Não — mentiu.

— Nem eu, mas a noite passada Caroline Camberley disse que ele se parece demais com

Conrad. Aceita um chocolate? — Maddy gritou para a criada trazer mais uma xícara.

— Qual Conrad? — Thea perguntou, curiosa.

— O corsário!

— Ah, Byron. — Thea sentou-se. O corsário, poema dramático, havia sido um sucesso pouco

tempo atrás. — Em que sentido?

— Na conduta — Maddy abriu na página marcada do volume estreito. — Escute: "O homem

de solidão e mistério, mal é visto sorrir, e raramente ouvido suspirar." Não é maravilhoso?

— Parece muito desagradável.

— Ora, Thea. Parece que você não tem romance na alma. Morrerei se não o conhecer, mas ele

não aparece em lugar nenhum. Mamãe diz que ele será expulso se ousar fazê-lo.

— Minha mãe está planejando a reintegração social dele — isso não poderia ser mantido em

segredo —, e assim você terá chance de encontrá-lo.

— Maravilhoso! — Maddy procurou outra passagem: — "O que é esse encanto, que seu

séquito sem lei confessa e inveja, mesmo se opondo em vão? O que poderia ser, que assim sua fé

pode unir? O poder do pensamento... a magia da mente!" A magia da mente — ela repetiu,

segurando o livro de encontro ao busto. — Imagine ficar impotente diante da vontade de um

homem.

— Horrível — Thea afirmou.

A criada entrou trazendo uma xícara e um pires, e Maddy serviu o chocolate para ambas.

— Uma pena que ele seja feio.

— Darien? Eu não diria... — Thea rezou para a prima não notar o deslize.

— Conrad! — Maddy recitou de memória: — "Ao contrário dos heróis de cada raça antiga,

demônios em ação, mas deuses pelo menos na face, na aparência de Conrad parece pouco para se

admirar." Eu adoraria conhecer um deus.

Thea tomou o chocolate e esforçou-se para não rir.

— Um homem idoso com uma barba branca?

— Apolo! Adonis!

— Netuno com algas marinhas por cabelo?

Maddy atirou um travesseiro em Thea.

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— Você não pode acreditar em tudo o que Caroline diz. — Thea deixou de lado o travesseiro.

— Lorde Darien pode nem agradá-la.

— Ele tem um olhar de fogo. — Maddy comentou.

— Lorde Darien? Que alarmante!

— Conrad! Até nos olhos negros que Darien tem. Preciso conhecê-lo. Thea, prometa que me

avisará se souber da presença dele em qualquer evento.

— Realmente, Maddy, é melhor ele ficar sozinho. — Thea segurou o livro. Como todos, ela

sabia o poema de cor e em instantes achou a passagem.

Havia uma expressão diabólica em seu riso escarninho, Que desencadeava emoções de fúria

e medo; E onde seu cenho de ódio alcançava, A esperança fenecida escapava... E a misericórdia

suspirava adeus.

Sem desalento, Maddy suspirou.

— Ah, delicioso...

Thea fechou o livro.

— Você está pronta para Bedlam.

— Então é uma glória ficar maluca.

Thea suportou mais meia hora dos delírios de Maddy antes de ir embora, mas aquela parte da

poesia não lhe saiu da cabeça. Aquilo parecia apropriado. Era esse o homem de quem ela esperava

sensatez? O homem que tinha motivos, não importava que fossem distantes e errôneos, para odiar

sua família?

Quando voltou para casa, encontrou a mãe no corredor do andar superior.

— Como está Maddy? — a duquesa perguntou.

— Maluca por causa do Corsário.

A mãe apoiou-se na parede.

— Não me diga que ela está maluca por causa de um pirata!

Thea riu.

— Claro que não. O poema... Byron.

A mãe apavorou-se.

— Lorde Byron está de volta?

— Poema, mamãe e não o poeta. Conrad, Medora, Gulnare, haréns...

— Ah, isso! — A duquesa continuou com Thea rumo aos quartos. — Uma história de

insensatez. Medora estava certa ao afirmar que seu marido tinha dinheiro suficiente para ficar em

casa e aproveitar a vida doméstica. Então por que navegar de novo para pilhagens?

— Por que homens gostam de ação e perigo.

— Isso é verdade. Você ouviu dizer que Cardew Frobisher ficou muito ferido depois de tentar

escalar as muralhas da Torre de Londres?

— Por que ele fez isso?

— Exatamente! Por que, se havia entradas perfeitamente adequadas? Depois de sobreviver à

guerra apenas com arranhões. Coitada da mãe dele.

— Sempre pensei que Medora cometeu um erro em tentar Conrad com saraus de música e

leitura — Thea comentou. — Ela teria mais sucesso se tivesse pensado em refeições suculentas,

companhias masculinas e caçadas.

A mãe deu risada.

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— Muito inteligente, querida. Você seria uma esposa maravilhosa para qualquer homem. E

por falar nisso, ontem à noite eu a vi com Avonfort.

— É verdade e ele fez nova proposta. Mas eu ainda não estou pronta, mamãe.

— Como a ouvi dizer, você merece uma temporada alegre antes de se acomodar.

Aos olhos da duquesa, o compromisso estava acertado.

— Quer sair comigo mais tarde? — a mãe perguntou na porta do quarto de Thea.

Thea entendeu que seria improvável ela encontrar Darien numa visita matinal, mas estaria

mais segura em casa. Com os pais ausentes, ela poderia simplesmente se recusar a recebê-lo, caso

ele aparecesse.

— Prefiro praticar um pouco no piano, para tocar uma música nova depois do jantar de

amanhã.

— Isso seria muito agradável, querida.

Ao lembrar-se do jantar, Thea imediatamente pensou na confrontação com Darien, mas a

música a acalmou... até a mãe chegar de seu passeio social, elegantemente vestida e contrariada.

— Foi tão cansativo escutar os comentários injustos sobre Darien! Eu tentei moderá-los o

melhor que pude, mas não consegui apoio total.

— Era de se esperar — Thea opinou.

— Phoebe Wilmott deixou a cidade. Nunca uma partida foi tão tumultuada.

— Não se pode culpá-la, mamãe. Encontrar Darien seria um grande sofrimento.

— Nosso lorde Darien não tem responsabilidade pela morte da filha dela. Venha a meu quarto

para eu trocar de roupa enquanto conversamos. Nem mesmo o vil visconde pode ser culpado pela

morte de Mary Wilmott, a menos que se culpe os pais pelos filhos. Uma infelicidade que eles sejam

vizinhos.

— Eles, quem?

— Darien e os Wilmott, embora as casas estejam em lados opostos na mesma quadra não se

pode dizer que sejam exatamente vizinhos.

— A Mansão Cave está na mesma quadra? Isso é intolerável!

— Phoebe suportou isso durante anos — a mãe disse com mordacidade incomum, entrando

em seus aposentos.

— Mas não morou ali contando com a possibilidade de encontrar um Cave.

— Assim aconteceu o assassinato. — A duquesa permitiu que a criada a ajudasse a tirar o

chapéu e o casaco. — Mary dificilmente sairia em Londres à noite. Ela deve ter pensado que o

jardim privativo da área era seguro por que somente os moradores tinham as chaves. Ah, veja. —

Ela pegou um maço de papéis. — O relatório preliminar de Thoresby.

— O que diz aí? — Thea estava muito curiosa.

— O comum. Darien foi educado em casa, depois Harrow e em seguida o Exército. Estou

muito aborrecida com Wellington.

Thea espantou-se.

— Por quê? — O duque era muito querido por todos.

— Pois acredite que ele é o responsável pelo apelido de Cão Raivoso. Felizmente esse não se

tornou o principal apelido de Darien. Pense no pobre Staceyhume Cabeleira assim chamado pelo

excesso de cabelos na juventude e que agora é careca. Ou em Lobo Wolverton que é o homem mais

cavalheiro que se conhece. Ou no Maluco Jack Mytton. Mas esse era louco de verdade.

— Mamãe!

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— O quê?

— O relatório deve conter alguns pontos negativos.

— Não tem, pode ler. — Ela passou as folhas para filha. — Darien não tem dedicado muita

atenção a suas propriedades, mas faz pouco tempo que saiu do Exército. Tenho certeza de que terá

sucesso quando se estabelecer. Sem dúvida ele se dedicará ao Parlamento e poderá muito bem

querer uma posição na Cavalaria da Guarda, por ter experiência militar.

Thea saiu do quarto da mãe com o relatório nas mãos, sentindo que deveria avisar Darien

sobre a investida em suas responsabilidades, mas pensando também que ele poderia estar bem

servido por impor-se à família dela.

Uma vez em seu quarto, examinou os papéis. As páginas escritas incluíam cálculo e uma

árvore genealógica. Quatro filhos na família Darien. Dois na de seu pai e um na de seu avô.

A mãe italiana chamava-se Maddalena D'Áurea e nada mais era dito sobre ela. Ela havia

morrido quando o filho mais novo, Francis Ângelo, tinha três anos e Darien, sete.

O nome de Darien era Horatio Raffaelo. Nomes de anjos. Satã e Lúcifer teria sido mais

apropriados, Thea refletiu.

O nome do filho mais velho fora em homenagem ao filósofo e imperador romano Marcus

Aurelius. Aquilo tinha sido uma estocada de otimismo, assim como Christian para o segundo filho.

Christian Michelangelo.

Thoresby havia descoberto que Horatio Cave tinha sido expulso de Harrow por briga, sem

explicar o motivo. Também não se referia a Darius e a Cave Canem. Estavam ali descriminadas as

datas da carreira militar de Darien e o progresso do posto de porta-estandarte ao de major. Ele

recebera rápida promoção a tenente por causa de uma batalha na qual os oficiais mais idosos de seu

regimento tinham sido mortos ou feridos. Na época ele estava com dezesseis anos.

Thea não teve dificuldade em acreditar nessa história ou em outras de coragem, decisão e

comando. Poderia até admirar isso, se sua família não fosse o inimigo que ele pretendia atacar.

Canem Cave e Vandeimen tinham acabado atrás das linhas inimigas, cada um com uma

pequena tropa. Enérgicos e corajosos, as duas forças combinadas lutaram com denodo e capturaram

três oficiais franceses e uma arca de ouro.

Darien tinha três propriedades. A principal era Stours Court em Warwickshire. A outra,

Greenshaw em Lancashire, e a terceira, Ballykilneck no condado de Cavan, Irlanda. A renda dessa

última era insignificante. Greenshaw fora abandonada, tendo ficado sob a tutela de Marcus Cave.

Já fazia cinco anos que Marcus tinha morrido em Bedlam. Tempo suficiente para se esclarecer

a confusão. A propriedade era tradicionalmente do herdeiro e poderia ter passado ao próximo irmão,

Christian, cuja única superioridade sobre o irmão era a sanidade. Ele morrera no ano anterior com o

pai, ambos atingidos por raios. Apesar de ter herdado tudo havia um ano, Darien saíra do Exército

fazia bem pouco tempo.

Em Stours Court as terras eram arrendadas e trabalhadas. Recentemente Darien conseguira

um administrador que estava começando a aprimorar a herdade. A casa precisava de melhoramentos

urgentes ou acabaria caindo.

Thoresby não entrara em detalhes a respeito da Mansão Cave, limitando-se ao endereço, o

número de casas de cada lado da quadra e os jardins cercados no centro. Thea estudou o desenho

como se o mesmo fosse um olho mágico pronto a elucidar a vida de Darien. O relatório nada

continha de chocante, mas ela não se convenceu. Se Thoresby não descobrira a verdade sobre

Harrow, poderia ter deixado de desvendar mais fatos. No entanto ela não se surpreendeu quando a

mãe confirmou ter mandado um convite de jantar para Darien.

Pelo menos ela ainda teria uma noite de prazer. O sarau musical dos Wraybourne era um dos

seus eventos favoritos da temporada. Os convidados eram seletos e não em número excessivo. A

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música seria excelente. Neste ano se apresentaria o coro de meninos da Abadia de Westminster, um

acontecimento maravilhoso.

No caminho, eles passaram pelas casas da Sra. Calford e de lady Netherholt para os

cumprimentos. Ali, pelo grande número e pessoas, Thea, afastada dos pais, foi agarrada pelo braço.

— Veja ali o visconde Darien — Alesia de Roos disse, alvoroçada.

Thea olhou de revés e viu que Alesia estava correta. Darien conversava com os Vandeimen.

Se seus pais os vissem, certamente iriam cumprimentá-los.

Os três pareciam à vontade, mas um pequeno espaço vazio se formara ao redor deles.

— Ele é chamado de Canem Cave — Alesia sussurrou. — Isso significa cão raivoso.

— A tradução mais correta seria: cuidado, cão.

— Não seja tão literal, Thea. Estou toda arrepiada. Deus me ajude, ele está olhando para nós.

Thea cometeu o erro de verificar e seus olhares se encontraram.

— Então não olhe para trás. — Ela virou-se. — Preciso ir...

No entanto, as irmãs Fortescue se aproximaram.

— Vocês estão falando sobre o visconde Darien? — Cecily perguntou em voz baixa.

— Horrível, não é? — Cassandra acrescentou com olhar brilhante. — Não podemos pensar

em nenhum motivo para nos aproximarmos.

— Aproximar! — Alesia conteve um grito. — Ele deveria ser expulso!

— Ele está com os Vandeimen — Cassandra considerou. — Lady Netherholt jamais os

ofenderia.

— Ele era um pouquinho melhor — Alesia comentou. — E lady Vandeimen...

— Preciso lembrá-la de que Maria Vandeimen é minha parente? — Thea falou com frieza.

Alesia ficou vermelha no mesmo instante.

— Preciso ir. — Thea estava ansiosa para afastar-se da confusão. — Meus pais querem ir

embora.

Se não queriam, logo teriam de fazê-lo. O visconde era uma ameaça. Ele ameaçava a

reputação de Maria e causava discórdia entre Thea e as amigas.

— Para onde você vai? — Cassandra indagou.

Thea virou-se.

— Para a casa de lady Wraybourne, e você?

— Para a de lady Lessington — Cecily respondeu pela irmã.

Thea acenou em despedida e encontrou a mãe que, corada, abanava-se com um leque de seda

e penas.

— Querida, você também parece acalorada — a duquesa murmurou. — Mas Penélope

Netherholt ficará encantada com tanta gente. Ah, ali está seu pai. Vamos embora.

Eles acompanharam o fluxo de pessoas que saíam, e Thea escutou os comentários.

— Darien.

— Cave.

— Wilmott.

O sorriso tenso de sua mãe demonstrou que ela também ouvira os sussurros. Thea receou que

a mãe parasse para desafiar alguém, mas, felizmente, o grande número de pessoas empurrou-os até

a escada. E quando ali chegaram, alguém os chamou.

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— Duque, duquesa, também estão saindo?

Thea e os pais se viraram. Darien estava bem atrás dos três e não demonstrou importar-se

pelas pessoas se manterem afastadas dele.

— Que aglomeração — ele comentou, amável. — O sarau dos Wraybourne será um alívio.

— Pretende ir para lá, Darien? Quer aproveitar e vir em nossa carruagem?

Thea teve vontade de fechar a boca da mãe. Como aquele proscrito ganhara um convite?

— São apenas algumas travessas... — ele contestou.

— Milorde poderia cavalgar. As ruas à noite podem ser perigosas. — A duquesa falou mais

alto do que o normal, para ter certeza de que as pessoas próximas a ouvissem. Depois ela bateu

amigavelmente no braço de Darien com o leque. — Claro que isso não lhe ocorre depois de lutar

em tantas batalhas.

— Pelo contrário, duquesa. Sobreviver a Napoleão e acabar dominado por um salteador seria

ridículo.

A duquesa deu risada e o duque esboçou um sorriso. Thea não sabia quantas pessoas haviam

escutado a conversa, mas todos notariam o bom humor do lorde e talvez repensassem suas atitudes.

— Darien, creio que não conhece minha filha. — A duquesa sorriu com simpatia. — Thea,

este é o visconde Darien que foi tão bondoso para com Darius. Darien, lady Theodosia.

O constrangimento fez Thea hesitar antes da cortesia e sorrir, sem-graça.

O olhar brilhante de Darien a fez ter certeza de que ele se divertia com o desconforto dela.

A situação piorou ao descerem a escada. Tiveram de prosseguir dois a dois e Darien ofereceu-

lhe o braço. Sem poder recusar, Thea aceitou. Ela não sabia o que era pior. Sentir a energia que dele

emanava ou a sensação de ser observada pela sociedade descrente e horrorizada.

Thea olhou para frente, com um sorriso débil.

— Milorde, os Wraybourne contrataram o coro dos meninos da Abadia. Tem certeza de que

esse tipo de música o agradará?

— Milady quer dizer que eu deveria preferir músicas indecentes de bêbados?

Thea o fitou de revés.

— Ou ópera, dada a sua descendência italiana.

— Sangue italiano não costuma ser bem aceito.

Thea sentiu as faces em fogo. Era o que ela pensara.

— Tenho pouca experiência com ópera — ele afirmou. — Embora eu aprecie dançarinas de

ópera.

— Tenho certeza disso, milorde, mas esse não é um assunto que um cavalheiro deva se referir

diante de uma dama.

— Lady Theodosia, está querendo dizer que não sou um cavalheiro? — ele perguntou com

calma.

— Claro que não. — O coração de Thea disparou. — Mamãe quer ajudá-lo a se integrar na

sociedade, só isso. Por isso pensei em lhe dar uma sugestão.

— Acha que não sei como me comportar em sociedade?

— Certamente não — ela respondeu com rispidez, embora sorrindo —, quando milorde

menciona dançarinas de ópera para uma dama.

— Para uma dama que conhece a existência delas.

— Isso é...

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— Não tenho certeza se aprovaria o fato em minha noiva.

Alarmada, Thea tropeçou, sem perceber que chegara ao final da escada. Sentiu a mão forte

que a segurava pelo braço e ficou tensa. Darien soltou-a assim que ela se equilibrou, mas ela se

sentiu tão abalada como se tivesse rolado escada abaixo.

— Está tudo bem, Thea? — A mãe virou-se para ela.

— Claro, mamãe. — Thea tirou a mão do braço dele. Darien não tentou retê-la.

— É estranho como tentar dar um passo extra é sempre tão arriscado quanto não notar um

degrau.

— Expectativa — o pai de Thea interveio. — É como segurar uma cerca, esperando encontrar

terra firme na extremidade e deparar-se com um pântano.

Darien e o duque se entretiveram numa conversa sobre caçadas, dando a Thea a chance de se

recuperar.

Como se isso fosse possível.

Darien pretendia fazê-la cumprir a promessa e poderia falar no assunto com os pais dela a

qualquer momento.

— Sarah! — A atarracada sra. Anstruther chamou a duquesa e aproximou-se acompanhada

das duas filhas magricelas e assustadas. — Por acaso sabe quem a está acompanhando? — ela

sussurrou, vermelha.

A mãe de Thea fingiu-se confusa.

— O quê? Ah, Ann, está se referindo ao visconde Darien? É um velho amigo de meu filho e

se saiu esplendidamente bem na guerra

Ann Anstruther comprimiu os lábios.

— Muitos dos soldados mais galantes não são adequados a nossos salões ou a nossas filhas,

Sarah. Não se pode esquecer Mary Wilmott.

— Claro que não! Mas este mundo seria muito triste se tivéssemos de sofrer pelos pecados de

nossos irmãos.

Thea mordeu o lábio para não rir. O irmão de Ann era um notório pilantra.

Empertigando-se, Ann disse, majestosa:

— Meu irmão nunca matou ninguém, assim como certamente nem o seu. Sarah, seu coração

piedoso dessa vez passou dos limites. Vamos, meninas!

Ann afastou-se com as duas filhas para longe do perigo. A duquesa ficou corada. Darien e o

duque certamente haviam escutado, embora continuassem a conversar.

— Ultrajante — a duquesa revoltou-se.

— Ela não deixa de ter razão, mamãe.

— Thea, estamos fazendo o que é certo e ficarei muito desapontada se você me desaprovar.

Temos com lorde Darien um débito de gratidão e eu ficaria envergonhada se alguém de minha

família relutasse em pagá-lo.

Thea enrubesceu diante da reprimenda mais enérgica da mãe que recebera durante anos. E ela

merecia isso, mesmo sem a mãe saber.

Fizera uma promessa e a manteria se fosse preciso. Mas se Darien tivesse uma ponta de

misericórdia ou sensatez, ela poderia convencê-lo a desistir. Talvez nessa noite surgisse uma

oportunidade.

Uma criada aproximou-se com o xale pesado de seda de Thea. Apesar de entretido na

conversa, Darien notou e segurou a peça. Thea deu um sorriso leve e voltou-se para ele poder

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colocar o xale em seus ombros. Ela sentiu que a fitavam e notou uma perturbação no ar. A

sociedade se comportava vergonhosamente, como se fossem colegiais contra um estranho,

desafiando Darien à violência.

Mas o toque das mãos dele em seus ombros desnudos eliminou a piedade. Darien não era um

menino, mas um homem forte e rude que não pretendia distribuir bondade. Ela precisava prevenir-

se contra ele, ainda mais quando conseguia afetá-la fisicamente.

Thea apressou-se atrás dos pais, sem dar o braço a Darien e entrou na carruagem como se a

mesma fosse o paraíso. Darien e o duque ocupavam o assento posterior. Pelo menos assim Thea não

teria de tocar nele.

No entanto, ele estava sentado defronte a ela e não havia como olhar pela janela o tempo

inteiro.

— Darien, quando resolveu ingressar no Exército? — a duquesa perguntou.

— Em 1806, duquesa.

— Milorde não passava de uma criança!

— Eu lhe asseguro que um rapaz de quinze anos não pensa assim.

O duque e a duquesa acharam graça.

— Milorde serviu na Campanha Peninsular — o duque comentou —, depois na França e em

Waterloo.

— Tive esse privilégio.

— Por que vendeu a patente? — a duquesa quis saber.

Thea sentiu uma hesitação sutil e refletiu se poderia usar os segredos dele em benefício

próprio.

— A duquesa desaprova isso?

— Não, mas tenho a impressão de que milorde fez isso contra vontade.

— A guerra terminou e outros assuntos exigiam minha atenção.

— Suas propriedades — o duque deduziu. — Presumo que havia muita coisa a ser feita por lá

e seu pai não se dedicava muito a elas.

— Pelo menos nada foi arruinado, pelo que sou agradecido. Claro que a atual desordem

econômica complica tudo.

Os dois homens se puseram a conversar sobre agricultura, indústria e comércio até a

carruagem parar no fim da fila que conduzia à residência dos Wraybourne. Thea não entendia muito

de tais assuntos, mas pareceu-lhe que Darien estava bem informado e querendo conselhos. Aquilo

era um ponto a favor dele ou fazia parte do plano.

De qualquer modo, ele era um grande inimigo.

Darien e o duque desceram primeiro para ajudar as damas.

Thea aceitou a mão de Darien e desceu, mas a mãe insistiu para ser por ele acompanhada.

Confusa, Thea segurou o braço do pai. Quando entraram na casa e os nomes deles foram

anunciados, ela notou a expressão pétrea da jovem condessa de Wraybourne e entendeu.

Darien não fora convidado, mas lady Wraybourne não poderia deixar de recebê-lo quando ele

chegava como acompanhante da duquesa de Yeovil.

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CCaappííttuulloo IIVV

Darien tinha escutado a conversa de Thea com Cassandra e a fizera acreditar que ele tinha

sido convidado. A duquesa devia ter imaginado ser verdade, por isso resolvera entrar com ele.

Fazer parte de uma festa seleta não apenas implicava na aceitação de seus pais e dela mesma.

Os outros convidados poderiam supor que Darien recebera um convite e se sentiriam obrigados a

serem corteses com ele. Qualquer outra atitude seria um insulto para a anfitriã.

Thea procurou o conde de Wraybourne com o olhar. Se ele interviesse e insistisse para Darien

sair, seria um desastre. Ela e os pais teriam de partir também. Ela viu o conde notar a situação e

voltar a conversar com lorde Caning. Se ele fizesse alguma coisa, seria um cataclismo social. Thea

estava furiosa por Darien ter envolvido sua família numa situação como aquela.

A aceitação social valeria isso tudo?

Quando eles se juntaram aos convidados, as reações foram de sorrisos que não escondiam o

temor. O que acabaria desagradando Darien, por maior que fosse sua insensibilidade. Seus próprios

receios seriam verdadeiros?, Thea perguntou-se. Seria aquela uma tentativa para arruinar a

reputação de sua família?

Pois ele se enganava. A preeminência dos Yeovil era baseada no status e na riqueza, mas

reforçada pela nobreza genuína. O duque e a duquesa trabalhavam bastante para servir ao país e a

seus conterrâneos. Todos gostavam deles e os admiravam. Thea e os irmãos não haviam diminuído

o nome da família.

Os Debenham poderiam ser afetados pela conexão com os Cave, ainda mais se Darien

provasse ser tão vilão quanto os demais. Mas eles não seriam arruinados. A sociedade balançaria a

cabeça, diria que Sarah Yeovil se deixara levar novamente pelo coração generoso e esperaria que

dessa vez ela aprendesse.

Thea precisava saudar amigos e conhecidos, mas preferiu observar. Darien agia com sutileza.

Ele aceitava as apresentações com cortesia, mas com reserva, sem tentar maior familiaridade. Não

tentava impor sua presença e caminhava com os pais dela até a próxima vítima indefesa.

Pessoas sussurravam, trocando olhares intrigados e a postura encantadora de lady

Wraybourne parecia ter minguado. Afinal, ela estava na casa dos vinte anos e não merecia aquele

dissabor.

— É uma surpresa que lady Wraybourne convide esse tipo de gente.

Thea virou-se e viu lorde Avonfort a seu lado.

— Minha mãe o trouxe.

— Mas por quê, Santo Deus?

— Na outra noite no baile, lorde Darien apoiou Darius.

— Ele não fez mais do que seu dever e não merecia um convite por isso.

Por causa da censura de sua mãe, Thea teria de apoiar Darien.

— Ele não deve ser tão mau como as pessoas dizem que é. Cully serviu com ele e o admira.

— Hábitos do Exército — Avonfort fez pouco-caso.

— É fácil falar quando passamos a guerra de maneira confortável dentro de casa — Thea

protestou.

Ele sentiu-se desconfortável com o comentário ácido.

— Tenho responsabilidades.

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— Claro, eu não me referi a milorde. Mas devemos fazer concessões, Avonfort.

— Até certo ponto. Um homem de minha propriedade voltou com confusão mental e teve de

ser deixado numa instituição. Ele tentou matar a mãe, sonhando que estava numa batalha.

Provavelmente seu amigo poderá fazer algo semelhante. Afinal, está no sangue.

Thea começava a ficar realmente aborrecida com essa injustiça.

— Apenas um dos Cave cometeu assassinato.

— Houve outra geração antes dele. — Ele sorriu, ao ver a raiva de Thea. — O bom coração é

uma das virtudes que eu mais admiro em você, Thea.

Ela adiantou-se ao desconfiar de que um novo pedido estava por vir.

— Venha então conhecê-lo.

Avonfort murmurou uma desculpa e afastou-se. Darien acabava de distanciar o principal

pretendente de Thea.

Nesse momento, ela viu o conde de Wraybourne caminhando na direção de seus pais e

Darien. O conde tinha a seu lado, um oficial loiro e robusto. Seria para expulsar o invasor? Thea

apressou-se, mesmo sem ter ideia do que poderia fazer.

Mas o oficial sorriu para Darien e apresentou-o ao conde, que aceitou a apresentação com

generosidade.

Hábitos do Exército, ela pensou e agradeceu a Deus por isso.

— Que belo espécime você tem a seu lado.

Thea virou-se e viu Maddy e tia Margaret. Maddy olhava para Darien com satisfação.

— Apresente-me a ele — a prima pediu.

— Não, o cão morde — Thea advertiu.

Maddy riu e arrastou a mãe relutante até Darien. Não demorou muito e ele correspondeu ao

flerte de Maddy diante das pessoas que observavam e comentavam. Thea juntou-se ao grupo,

odiando fazer parte daquilo.

A apresentação foi anunciada e Thea viu Maddy procurando uma maneira de fazer com que

Darien a acompanhasse, porém tia Margaret virou-a na direção do oficial loiro, major Kyle, irmão

de lorde Wraybourne.

Darien, então, virou-se para Thea e estendeu o braço. Ela o aceitou e os dois seguiram a

procissão que rumava para o salão de estar.

— Sua prima é encantadora — ele comentou.

— E mais inocente do que aparenta. — Thea sabia que o aviso era absurdo. Não que Maddy

ultrapassasse os limites, mas inocente ela não era.

— Acho que tropecei em outro dos refinamentos sociais. Nunca elogiar uma dama para outra,

ainda mais sendo a outra minha noiva.

— Nós ainda não estamos noivos, Darien — Thea afirmou com firmeza.

— O que você quer dizer com isso?

— Precisamos conversar a respeito disso.

— Sua palavra nada significa?

— Não é isso, mas...

— Mas?

O desafio não implicava em nenhuma misericórdia.

— Nós acabamos de ser apresentados e ninguém acreditaria nisso.

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— Pois estou ansioso para nos conhecermos melhor.

— Precisamos conversar — ela repetiu e sorriu ao entrarem no salão lotado de cadeiras.

— Quando e onde quiser, lady Theodosia. Estou inteiramente às suas ordens.

Então desapareça numa nuvem de fumaça, ela pensou.

Como ele não o fez, Thea sentou-se sem comentários.

Darien estava disposto a conversar, e isso era o que ela mais queria. No entanto, precisariam

encontrar um lugar privativo e seguro. Mas onde? O fato era que quanto antes resolvesse o assunto,

melhor.

Os meninos imberbes e vestidos com as batinas entraram e logo se ouviram suaves melodias

que afastaram outras preocupações da mente. Thea aproveitou-se do momento para se descontrair.

Ela aplaudiu ao final da primeira peça e olhou para o lado, esperando ver Darien bocejar

diante da música sacra. Entretanto, ele aplaudia e quando as vozes angelicais recomeçaram a cantar,

ele pareceu absorto no espetáculo.

Ao observá-lo, Thea notou que o perfil dele parecia pertencer a um homem diferente. As

linhas se tornavam elegantes porque não aparecia a curva do nariz e a cicatriz perto do lábio era

quase invisível. Um olhar mais atento, e ela percebeu que havia uma outra cicatriz franzida e

lustrosa no queixo, meio escondida pelo colarinho. Ela presumiu que se tratasse de uma queimadura

e que deveria ter sido dolorosa.

Como se percebesse a atenção, Darien virou-se e a fitou. Thea não desviou o olhar para não

admitir fraqueza diante do inimigo.

Após um longo momento, ele voltou sua atenção ao coro.

Thea fez o mesmo e um solo semelhante a uma flauta parecia cantar a paixão. Era possível

sentir a presença de Darien como se ele emitisse calor, e memórias flamejantes a invadiram. Se

estivessem sozinhos, ela poderia pressionar o corpo de encontro ao dele, largar-se em seus braços e

beijá-lo como fizera da última vez. Então, que Deus a ajudasse, fazer mais...

De repente, um dedo tocou no dela.

Apesar de estar usando luvas, ela sobressaltou-se.

Sem tirar os olhos do coro, ela pôs a mão esquerda no colo e cobriu-a com a direita. Como sua

mão acabara tão longe para a esquerda, quase entre eles?

Mais calma, ela olhou de lado. Darien também estava com as mãos no colo e parecia atento ao

coro. Ela procurou manter-se concentrada nos meninos até que um acorde agudo e longo deu por

encerrada a primeira parte do concerto.

Os aplausos espocaram e ela aplaudiu com os outros, sentindo-se prestes a desmoronar se não

saísse dali.

Lady Wraybourne anunciou as outras diversões disponíveis durante o intervalo. Aperitivos

em uma sala, jogos de cartas em outra, e em uma terceira, a palestra sobre Santa Helena, a ilha onde

Napoleão estava preso.

— O concerto foi de seu agradou, lady Theodosia? — Darien perguntou quando Thea se

levantou como os demais.

— Os meninos do coro parecem anjos, milorde não acha? O solista foi extraordinário.

— Logo ele e os outros se tornarão homens feitos. Ainda bem que não criamos mais castrati.

— Ele obviamente se referia a jovens cantores que eram castrados antes da puberdade com o intuito

de manter suas vozes de sopranos ou contraltos.

— Esse é outro assunto que não deve ser comentado em sociedade.

— Pobres italianos irrecuperáveis. Não há esperança para nós, não é?

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Darien a olhava com malícia e uma tentação quente se desprendia dele como uma onda. A

fraqueza de Thea o encorajara. Quem poderia dizer o que ele faria em seguida? Com certeza

nenhuma discussão em particular. Como ela poderia ficar sozinha de novo com Darien?

Thea passou por ele e reuniu-se a Maddy, Cully e a mais alguns jovens que se dirigiam à sala

dos aperitivos. Um drinque gelado era tudo o que ela precisava. Isso e libertar-se de um Cave.

Sem olhar para trás, rezou para que ele não a seguisse.

Darien deixou sua presa escapar. Precisava de tempo para recuperar o controle. Música

sempre fora sua fraqueza e nessa noite ele imaginava como teria sido sua vida se fosse mandado

para uma escola de canto. Pensamento absurdo. Seu pai jamais teria considerado isso e nenhum

coro de catedral teria admitido um Cave.

Sua mãe? Ela havia ignorado os filhos assim que eles saíam de seu ventre.

Contudo ela cantara. Não para ele. Maddalena D'Auria não entoava canções de ninar. Ela

cantava árias no salão de baile para uma plateia invisível. A única lembrança que tinha dela era a

voz sublime e desesperada. Talvez o ato mais cruel que seu pai havia cometido fora ter impedido a

esposa de se apresentar em público.

Afastou as lembranças inúteis. Por milagre Frank sobrevivera à mãe, ao pai e aos irmãos com

o espírito intacto e agora ele queria casar-se com a mulher amada. E era tarefa de Darien fazer isso

possível. Por meio de outro ato impulsivo, tinha ganhado o direito de frequentar a sociedade. Então

teria de aproveitar a circunstância.

Era uma sorte Fred Kyle estar presente. Talvez o destino estivesse ao seu lado, afinal.

O que seria bom, pois haviam manchado a porta de sua casa com sangue novamente. A

mancha tinha sido limpa logo cedo, mas a persistência o preocupava. O que aconteceria em

seguida?

Ele percorreu os salões, acenando e falando com quem o olhava, o que era muito

desconfortável. No meio do ajuntamento tivera o apoio de Van e de sua extraordinária esposa

Maria. A ideia e a insistência tinham sido deles e eles haviam pagado o preço de serem ignorados.

Contudo, por obra de alguma alquimia, haviam criado a ilusão de que formavam um trio exclusivo

em meio a forasteiros.

O plano fora ir ao teatro, onde todos eram bem-vindos desde que pagassem o ingresso. Ele

deveria ter se contentado com isso, mas vendo lady Theodosia e ouvindo para onde ela iria, agira

por impulso. Uma vez mais...

Àquela altura deixara escapar seu escudo e logo seu isolamento se tornaria óbvio. Colar-se no

duque e na duquesa de nada serviria. Seria preciso outro suporte.

Como se fosse chamada, uma voz amigável despertou-o dos devaneios.

— Canem, o que está fazendo em Londres?

Darien virou-se. O homem alto, moreno, usando trajes civis era o major George Hawkinville e

trazia pelo braço uma mulher ruiva, sorridente e coberta de joias. Interessante. Hawkinville, como

ele mesmo, vivia de seu saldo de oficial.

— Sendo ferroado pelo gelo — Darien respondeu como se fossem velhos amigos.

Na verdade, encontrara Hawkinville, amigo de Van, umas quatro vezes apenas. Teria Van

alertado a tropa? Hawkinville riu.

— Isso não me surpreende, mas dê a eles algum tempo. Permita-me apresentar-lhe minha

esposa. Minha querida, o visconde Darien.

Darien fez uma reverência e a dama anuiu, sorridente e sem constrangimento.

— O senhor abandonou a tropa — Darien disse para o outro.

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— Uma vez Napoleão vencido, não havia razão para ficar e eu tinha responsabilidades em

casa. Deve ter sido o mesmo para você.

— Sim.

— Sempre pensei que você ficaria no Exército para a vida inteira.

— E o que eu teria feito se meu pai e meu irmão mais velho não tivessem.

— Ah, sim. A ira de Deus.

— Aquele cartão certamente ficou na mente das pessoas — Darien disse com amargura.

O coronel Lethbridge, ainda de uniforme, aproximou-se acompanhado pela mulher magra, de

meia-idade, bem-vestida e que sorria sem vontade. No entanto ela estava ali e Lethbridge não tinha

conexão com Van.

Nesse momento, o capitão dos hussardos, Matt Foxstall, juntou-se ao grupo.

— Não há muito divertimento em música de igreja, não é? — Matt comentou com um sorriso

torto. O queixo era torcido para a direita e mesmo o grande bigode não disfarçava a imperfeição.

O que ele estaria fazendo num evento como aquele e em Londres?

Foxstall fora capitão junto com Canem Cave por quatro anos. Embora fossem companheiros

de armas, não tinham sido exatamente amigos. Eles partilhavam certos gostos por guerra e

mulheres, e podiam confiar um no outro.

A camaradagem havia sido rompida recentemente. Darien fora nomeado major e herdara o

título de visconde. Foxstall se ressentira pelos dois motivos. E para piorar, em tempos de paz as

promoções eram difíceis de alcançar sem dinheiro e Foxstall não tinha recursos.

Darien vira Foxstall pela última vez em Lancashire quando deixara o regimento e soubera na

época que ele era um barril de pólvora. Precisava de ações sanguinolentas e se isso não vinha

naturalmente, ele as criava.

— O regimento veio para o Sul? — Darien perguntou depois das apresentações.

— Ainda não, mas recebemos ordem de ir para a índia.

— Na índia há muitas oportunidades — Lethbridge comentou. — Estive lá pessoalmente com

Wellington. E também com Wellesley, é claro.

— Um clima insalubre — a esposa dele alegou. — Fui incapaz de acompanhar meu marido.

— Que pena — disse a jovem esposa de Hawk. — Os costumes e a arte da índia são

fascinantes. A duquesa de St. Raven tem peças indianas maravilhosas e os pais dela voltaram para

lá.

A conversa girou sobre a índia até Hawk e Lethbridge se afastarem.

— Como conseguiu atravessar essas portas sagradas? — Darien perguntou para Foxstall.

— Encontrei Kyle e obtive um convite. E você? Fácil, quando não se era um Cave.

— A duquesa de Yeovil.

— Voando alto. Bom para você, mas não é o que se murmura por aí.

— Não me surpreende. Por que veio aqui, afinal? Não imaginei que a música fosse de seu

gosto.

— Alguém disse que a comida era boa — Foxstall afirmou. — Eu não sabia que haveria coro

de meninos. Mas vamos ao prêmio.

Darien foi com ele, mas Foxstall era uma desvantagem. Os militares que Darien precisaria

para apoio poderiam ter suas reservas. Foxstall, por sua intrepidez de luta, não era o tipo de homem

que se deveria apresentar a damas suscetíveis. A despeito de sua aparência, ele as atraía e não tinha

consciência do que deveria fazer com elas.

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Certamente ele mostrava algum senso em casa e nas altas rodas.

Eles entraram na sala de jantar e se depararam com um banquete. Peixes e aves assados,

tortas, pastelões, queijos e uma vasta seleção de bolos, geleias e frutas.

— Pense no tempo em que tínhamos de surrupiar vegetais e ficar contentes por um osso de

carne. — Foxstall pegou uma fatia de torta de vitela. — Portanto, coma, beba e seja feliz.

— Para morrer amanhã?

Foxstall caiu na risada.

Três jovens oficiais olharam do outro lado da mesa.

— Canem! — eles disseram em uníssono.

— Eu digo, sir — Cully Debenham chamou-o com o olhar brilhante. — Sentir-me-ei honrado

se milorde partilhar de nossa mesa para jantar. O senhor também — ele disse para Foxstall, com

menor entusiasmo.

Os outros jovens tenentes, Marchampton e Farrow, reforçaram o convite. Era embaraçoso,

mas Darien precisava de companhia impecável.

Eles se serviram e levaram pratos com petiscos para as damas que os acompanhavam. Depois

do jantar, Darien decidiu procurou Thea para escoltá-la rumo à segunda parte da apresentação. Isso

daria a impressão de que os Debenham não haviam recuado.

Ele seguiu os jovens soldados por entre as mesas e a viu esperando com mais três jovens da

sociedade.

Se não fosse por Foxstall o número de homens seria equilibrado com o de mulheres e Darien

poderia acompanhar Thea.

Droga de Foxstall!

Thea fora alertada do perigo quando Miriam Mosely sufocou um grito.

— Oh, não!

Thea seguiu o olhar de Miriam e viu Cully, Marchampton e Farrow conversando

animadamente com Darien e um oficial hussardo.

— Eles não vão trazê-lo aqui, vão? — Miriam indagou. — Mamãe me disse para evitar a

qualquer custo ser apresentada a ele.

— Não se preocupe. Maddy e eu o encontramos e sobrevivemos.

— Mas...

— Quem será o outro? — Maddy o cobiçou com o olhar. — Espero que ele também venha.

— Ele é horrível — Delle Bosanquet disse.

— Ele tem nobres ferimentos de guerra — Maddy afirmou com superioridade.

Desta vez, Thea estava de acordo com a prima. O pobre homem talvez nunca tivesse sido

bonito, pois tinha a pele áspera e encaroçada, mas ele tinha um terrível ferimento de guerra no rosto

que lhe deformara a boca e o queixo.

Entendia o interesse de Maddy. Independentemente de sua robustez, o homem poderia ser o

corsário. Nada a ver com o poder da mente. Tudo era físico, uma espécie de vigor animal.

Miriam se afastara e Thea contou cinco homens para três mulheres.

— Eis Canem Cave — Cully anunciou com orgulho — que agora é lorde Darien, e o capitão

Foxstall.

Os homens puseram os pratos no centro da mesa, e Darien esperou que eles se acomodassem.

Foxstall sentou-se ao lado de Maddy e ela sorriu. Marchampton, lábios contraídos, sentou-se

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do outro lado de Maddy. Ele estava apaixonado por Maddy que o tratava de maneira abominável.

Farrow, acompanhante de Delle, sentou-se entre ela e Thea. Uma cadeira permanecera entre

Foxstall, que punha comida no prato de Maddy. E pensar que Thea o achara um grosseiro.

— Sente-se, sir — Cully apontou a cadeira vazia, e Darien sentou-se.

Cully pegou uma cadeira de outra mesa e a pôs do outro lado de Delle. Nem a irmã nem a

prima o emocionariam, e Thea preferia não ter de jantar com a nêmesis a seu lado nem ter de

encarar Maddy fazendo um escândalo ao lado de Fox, como passara a chamá-lo.

— Você esteve em Waterloo, Fox? — Maddy perguntou a ele.

Ela não podia ter esquecido que o pobre Marchampton e Farrow haviam perdido a grande

batalha. Como tantos outros regimentos e com Napoleão aparentemente derrotado, o deles fora

enviado de navio para o Canadá e eles ainda rilhavam os dentes por isso.

No primeiro intervalo das gabolices de Foxstall, Thea perguntou a Farrow sobre a marcha da

Espanha até a França em 1814 e estendeu a conversa dali até a Guerra Peninsular.

Não demorou muito e Thea mostrou-se fascinada. Antes de 1815 ela prestara pouca atenção

ao detalhes da guerra. Depois de Waterloo, ela não fora capaz de tocar no assunto. Por causa da

experiência de Darius, ela presumira que as lembranças dos soldados deveriam ser amargas, mas

não era exatamente assim.

— Esteve envolvido no episódio Muniz, Canem? — Marchampton perguntou com o olhar

brilhante. — Eu me lembro da confusão a respeito.

— O grande affair jovial — Foxstall declarou. Ele gostava de ser o centro das atenções.—

Não podíamos fazer nada oficial, por isso tínhamos de agir por conta própria.

Cully pediu detalhes, e Foxstall não se fez de rogado. Algo a ver com a liberação não

autorizada de uma cidade espanhola e que se tornara mais difícil por causa do comportamento das

tropas espanholas que deveriam ser aliadas.

— Estou surpreso que você tenha ficado livre de tributos — March comentou com Darien.

— Nada de extraordinário. — Darien bebeu um gole de vinho. — Ao contrário do caso dos

dez porcos. Isso quase me custou a corte marcial.

Ele, então, relatou o episódio da captura de alguns porcos de um regimento alemão, o que

levou a histórias similares dos outros. Enquanto isso, todas as moças ali presentes admiravam seus

heróis. Mas Maddy precisava insinuar-se tanto diante de Foxstall?

De repente, Darien deu risada. Thea piscou, notando como ele ficara diferente. Ele não podia

estar bêbado, pois ela não o vira tornar a encher a taça com mais vinho. Talvez estivesse apenas

feliz pela camaradagem depois de tanta hostilidade. Afinal Cully e March o fitavam como se ele

fosse um deus.

— ...quando você e Vandeimen escaparam do exército francês — Cully falava, sem haver

tocado no prato de comida.

— Não do Exército todo — Darien corrigiu-o.

— Ao menos de uma divisão. Cão Raivoso e Demônio, e nenhum homem perdido.

— E com a aquisição de uma arca de ouro! — March declarou aos risos. — Eu gostaria de ter

estado lá.

— Nós estávamos lá por acaso — Darien disse —, e seria preferível não ter estado. Aquilo foi

um erro de minha parte e se não fosse pela chegada de Vandeimen, teria sido desastroso. O ouro

salvou minha pele e os pés dos homens.

— Os pés? — Thea perguntou.

— Foi possível comprar um carregamento de botas. — A máscara de gelo voltou ao lugar

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quando ele fitou Thea. — Não aprova as façanhas de guerra, lady Theodosia?

Thea espetou o garfo na massa esquecida.

— Meu conhecimento escasso não me permite aprovar ou desaprovar, milorde, mas é

chocante saber que nossos soldados foram privados de tantas coisas.

— Alguém escreveu que um exército marcha de acordo com o estômago, mas isso não chama

a atenção dos detentores do poder. Metade do exército estava faminto ao lutar em Waterloo.

— Isso é apavorante. Alguma coisa deveria ser feita.

— Verdade? — Darien perguntou com cinismo.

— Oh, não, Thea, não mais uma causa! — Maddy olhou para os homens ali sentados. — Ela

e tia Sarah estão sempre procurando ajudar os soldados que voltaram.

— E qual é sua contribuição, Srta. Debenham? — Darien perguntou.

— Eu os divirto — Maddy respondeu, corada, e virou-se para Foxstall. — Não é verdade,

Fox?

Foxstall beijou-lhe a mão.

— De maneira encantadora, Srta. Debenham.

Maddy corou de uma maneira bem conhecida de Thea. Por favor, Maddy, não com um amigo

de Darien!

— Os cavalheiros vieram a Londres para a temporada? — Thea perguntou.

— É o que parece — Cully respondeu, desapontado.

Thea não imaginava como os homens podiam lamentar a falta de ações militares.

— Não eu — Foxstall disse. — Estaremos embarcando para a índia antes de o verão terminar.

— Que pena — Maddy murmurou, fazendo beicinho.

— Case-se comigo, Srta. Debenham — ele respondeu, sem soltar-lhe a mão —, e eu desistirei

das huris.

Maddy riu, os demais sorriam e Thea notou os lábios vermelhos de Foxstall se moverem sob o

bigode negro. Thea não gostava dele e muito menos ele lhe inspirava confiança.

— Bem?... — ele perguntou, e Thea lembrou-se de Darien exigindo o acordo.

Maddy ficou surpresa.

— Sou incapaz de tomar uma decisão tão rápida, capitão.

— Então eu devo apenas recolher botões de rosa ingleses enquanto posso.

Foxstall fitou o buquê de botões rosa fixo entre os seios de Maddy, que imediatamente tirou

um e ofereceu a ele. Foxstall aceitou, beijou-o e guardou-o dentro do casaco trançado, próximo ao

coração.

Thea rangeu os dentes e imaginou que March fazia o mesmo. Fitou Darien de revés e

repreendeu-o em silêncio por trazer aquele lobo até eles. Mesmo apiedando-se pela deformidade de

Foxstall, sentia que ele era um libertino. E perigoso, bem além do campo usual de Maddy.

O mordomo de lady Wraybourne rompeu um silêncio constrangedor e anunciou a segunda

parte da apresentação do coro. Todos se levantaram e Thea tentou separar Maddy de Foxstall, mas a

jovem já havia se pendurado no braço dele. Pelo menos March estava perto deles.

Farrow ofereceu o braço para Belle que, bem-humorada convidou Cully para acompanhá-la

do outro lado. Thea sorriu e aceitou o braço de Darien. Tudo fazia parte do plano, ela lembrou-se.

Sua mãe esperava que ela o apoiasse.

Enquanto andavam pela casa. Thea imaginou que o plano começava a dar certo. Embora

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várias pessoas se esgueirassem para evitar um Cave, ninguém virou as costas nem se ouviu

sussurros. Avonfort desviou o olhar, e Thea teve vontade de forçá-lo a ser cortês com Darien. Sem

querer, comparou os dois, com desvantagem para Avonfort. A elegância que sempre admirara,

pareceu-lhe combalida diante do estilo despretensioso de Darien. Os cabelos meticulosamente

penteados, o colarinho alto e a gravata de moiré azul pareciam exagerados.

Que absurdo! Ela sempre havia gostado de homens que partilhavam de seu gosto por

vestimentas finas, pela elegância e artes mais nobres. Ela podia honrar a coragem e os sacrifícios da

guerra sem admirar os resultados grosseiros.

— Nenhuma conversa? — Darien perguntou, enquanto subiam a escada.

— Poderíamos falar por que você está fazendo isso.

— Fazendo o quê?

— Forçando sua presença em minha família e na sociedade.

— Talvez pelo prazer de sua companhia, Thea.

Ela o fitou com um sorriso frio.

— Estou aqui por dever para transmitir as bênçãos de Yeovil, mas se você pretende fingir que

está apaixonado por mim, eu provavelmente me sentirei mal.

— Deve ser por causa do camarão em conserva. Cometerei perjúrio e negarei o amor, mas

não posso repudiar minha admiração. Você deve saber que é uma mulher muito bonita.

— O que uma dama deve dizer diante disso? Se eu concordar, parecerei fútil. Se eu

contestar...

Ela caminhava para uma armadilha.

— Por acaso se sentiria uma tola? Não há desonra em sustentar um atributo. Sou corajoso,

forte e um excelente lutador.

— Homens podem se regozijar por isso, mas mulheres não têm permissão de reivindicar a

beleza.

— Em vez disso, elas esperam que outros o afirmem para negar timidamente. Uma vergonha,

não acha? Diga eu sou bonita.

Por que as pessoas não andavam mais rápido e eles acabavam com logo com aquela conversa?

— Não.

— Então quais atributos você pode conferir a si mesma?

— Virtude, princípios sadios e caridade cristã. Talvez algumas habilidades domésticas.

— Habilidades domésticas?

— Sim. Para administrar uma residência é preciso saber tudo sobre o trabalho envolvido.

Limpeza, organização de rouparia, contabilidade, preparação de comida.

— Eu gostaria de vê-la amassando pão com farinha no nariz.

Thea o maldisse em silêncio.

— Eu nunca fiz pão — ela confessou.

— Conhecimentos teóricos em geral são decepcionantes...

— Ouça, Darien, confessei minha leviandade e não é necessário ridicularizar isso.

Quando eles finalmente regressaram ao salão de estar, Thea poderia jurar que ele estava rindo.

Que homem deplorável!

As pessoas que se espantavam com o bom humor dele provavelmente a culpariam por isso.

Ela viu Maddy e seus dois pretendentes, e sentou-se atrás deles, pronta para cutucar a prima

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nas costas, caso ela se comportasse mal. Maddy distribuía sorrisos e comentários equilibradamente,

na certa para provocar ciúmes.

Por causa de Maddy, Thea não pôde aproveitar integralmente a segunda parte da

apresentação. No fim das contas, aquele se transformou no evento social mais desagradável que já

havia comparecido. E de acordo com o plano de sua mãe, a situação não deveria melhorar.

Mas não como noiva do visconde Darien, o que seria cem vezes pior.

Momentos depois, lady Wraybourne agradeceu o coro e ofereceu mais entretenimento aos

convidados; inclusive uma oportunidade para visitar a nova câmara de lorde Wraybourne, feita para

exibir sua famosa coleção de cerâmica antiga.

— A coleção deve ser interessante, Maddy. Vamos até lá?

— Lady Thea — March interveio. — Kyle advertiu-me que se tratava de uma coleção de

potes velhos. — Estendeu o braço. — Vamos jogar cartas, Maddy?

Maddy aceitou, deu o outro braço a Foxstall, e o trio se encaminhou para a sala de carteado.

Sem Darien, Thea seria a quarta mão e poderia distrair Foxstall de Maddy. Na verdade, ainda estava

em tempo.

— Então vamos jogar cartas — ela sugeriu

— Cerâmica — Darien disse.

— Se não se importa, eu gostaria de jogar — Thea insistiu.

— Você disse que a coleção lhe parecia interessante. Espero que não tenha dito isso

levianamente.

— Não posso mudar de ideia? — Thea rangeu os dentes.

— Somente em alguns assuntos. — Era uma advertência, mas Thea não chegou a retrucar. —

Pensei que quisesse falar comigo. Potes velhos podem ser um cenário melhor para conversarmos do

que jogar cartas, não acha?

Apesar da vontade de contestar, Thea admitiu que Darien estava certo. Era preciso resolver a

situação com urgência. Maddy não correria perigo na sala de carteado, ainda mais com March de

sobreaviso.

Ela aceitou o braço de Darien e eles seguiram as indicações até os fundos da casa. Havia dois

casais adiante deles e mais três atrás. Nenhuma aglomeração.

— Não é o evento mais popular da noite — Darien alegou.

— Talvez o major Kyle tenha avisado as pessoas em geral.

— E você deveria prevenir sua prima de que Foxstall não é um brinquedo seguro.

— Verdade? — ela disse, sarcástica. — Tive a impressão de que ele era seu amigo.

— O Exército produz estranhos companheiros de cama. Por falar nisso, quando anunciaremos

a intenção de nos tornarmos companheiros de cama?

Thea sentiu-se ruborizar.

— Francamente, Darien!

— Ora, é o que o casamento prevê. Sei que as pessoas não usam esses termos, mas prefiro ser

franco. Bem, existe algum motivo para não falar amanhã com seu pai sobre nosso compromisso?

— Sim — Thea foi enfática.

— E qual é?

— Ainda é muito cedo.

— Thea...

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— Você não tem permissão de usar meu apelido.

Darien ergueu as sobrancelhas.

— Ora, mais o que é isso agora? — Encarou-a, divertido. — Milady prefere ser Theodosia,

presente dos deuses, do que Thea, uma deusa em seu próprio direito?

Ah, como ele era irritante!

— Não tenho ideia do que milorde está falando, mas peço-lhe o obséquio de sempre se dirigir

a mim formalmente.

— Pois prefiro que me chame de Canem.

— Ou cão?

— Não faça isso.

Eles chegaram à porta de um recinto onde havia uma dúzia de casais. Darien fez sinal para

Thea precedê-lo, e ela se apressou, satisfeita pelo número de pessoas, mas receosa de que

percebessem seus tremores.

Fingindo estar fascinada pelo ambiente, andou ao redor das vitrinas de vidro circulares

contendo todos os tipos de cerâmica, uns inteiros e outros quebrados. Em um pedestal no centro do

salão, várias fileiras de peças especiais estavam dispostas sob um domo de vidro que durante o dia

na certa permitia uma melhor visão do que à luz das lamparinas.

— São mesmo potes velhos — Darien murmurou.

Thea mordeu o lábio. Aquilo era exatamente o que pareciam os itens dispostos. Vasilhames

simples usados numa cozinha. Alguns estavam muito lascados e outros eram simples fragmentos.

Lorde Wraybourne pegou um recipiente quebrado e mostrou-o a alguns convidados, virando-

o cuidadosamente nas mãos. Ele era um homem bonito e urbano, o que fez Thea imaginar o que o

levara a interessar-se por cerâmica a ponto de se tornar uma obsessão. O custo de montar uma

exposição como aquela era muito alto e Wraybourne via uma beleza nas peças que escapava a Thea

e a muitos outros.

Era possível comparar o entusiasmo de Wraybourne com o amor de quem se apaixonava por

pessoas improváveis. Alesia gostava de um clérigo muito sério e uma das irmãs Avonfort estava

muito feliz no casamento com um viúvo que tinha o dobro de sua idade. Kingstable na verdade era

ainda muito apresentável e Catherine não escondia a felicidade.

Enquanto lorde Wraybourne falava de sua coleção para os presentes, Thea imaginou se

chegaria a experimentar fantasias românticas ou o entusiasmo que a maioria de suas amigas sentiam

a toda hora.

Quem fingia interesse e quem estava fascinado? Ela notou que lady Harroving fitava Darien

com um sorriso malicioso, apesar de ser no mínimo dez anos mais velha do que ele. Bem, a prima

Maria tinha oito anos a mais do que Vandeimen e lady Harroving era viúva.

Pode ficar com ele, se tanto o cobiça. Sua mãe estava mesmo à procura de uma esposa

adequada para Darien.

Lady Harroving era de boa família, embora sua reputação não fosse impecável. Ninguém

acreditava que ela fora fiel a seu marido e anualmente ela organizava um baile de máscaras que se

dizia respeitável. Uma união com Darien não a prejudicaria.

Pessoas se reuniram ao redor de lorde Wraybourne, fazendo perguntas, interessadas. Lady

Harroving aproximou-se, expondo melhor o busto amplo.

— Lorde Darien — ela ignorou o decoro —, sou lady Harroving. Maria — acrescentou com

um sorriso ardente. — Milorde é um trunfo numa temporada tão enfadonha.

Ela agia como se Thea não existisse.

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— Pois sei que sou ainda mais monótono, lady Harroving — Darien respondeu com frio

distanciamento. — Lady Thea, esta é lady Harroving.

A resposta e a apresentação foram repressivas e a dama ficou vermelha sob o ruge.

— Lady Theodosia e eu somos conhecidas — ela respondeu com igual frieza. — Vejo que

sua reputação é merecida.

— Ainda não a mordi, milady — ele respondeu.

Lady Harroving riu antes de virar-se e deixar a sala.

— Sua atitude não foi inteligente — Thea repreendeu-o com suavidade.—Você não precisa

de mais inimigos.

— Ela a insultou por ignorá-la.

— E isso o incomoda?

— Sou seu acompanhante e levo meus deveres muito a sério. Vasilhas antigas exercem

fascínio sobre alguns. Sugiro observarmos um pouco mais as vitrinas.

Darien tinha razão. Depois que os outros saíssem, o ambiente seria propício para uma

conversa em particular, mesmo com a porta aberta de onde se avistava o corredor.

Thea e Darien se viraram para observar uma vitrina mais próxima. Por vezes Thea o via

refletido no vidro e também as pessoas atrás dele.

Saiam, ela comandou o grupo que tagarelava enquanto se dirigia de peças mais vistosas até as

mais apagadas e as que representavam silhuetas mais grosseiras. As pessoas se moveram um pouco

e depois pararam. Impaciência e tensão a invadiram.

— Você tem interesse particular na fertilidade das deusas?

Foi então que Thea reparou nas figuras femininas agachadas e com ventres volumosos.

— Milorde acha que elas produzem algum efeito? — Thea corou

— Isso é o tipo de assunto que uma dama fale com um cavaleiro?

Thea se virou para encarar Darien.

— Foi você quem começou.

— É verdade.

Thea percebeu que estavam a sós. Lorde Wraybourne e os convidados haviam saído.

— Vamos conversar. — Ela estava nervosa e com a boca seca.

— Você não está preocupada em ficar sozinha comigo?

— A porta está aberta e do hall podem avistar-nos.

— Paredes de pedra não fazem uma prisão e portas abertas não significam segurança.

Thea ficou ainda mais tensa.

— Pensa em me atacar de novo? Eu gritarei, estou lhe avisando.

— Você não fez isso da última vez. — Darien sorriu.

— Seu... — Thea lembrou-se de seu propósito e procurou se controlar. — Estou aqui sozinha

com você, lorde Darien, somente para conversarmos sobre o noivado.

— Temos de falar com seu pai.

— Não!

— Existe algum outro primeiro passo? — ele perguntou com cortesia.

— Obter o consentimento da dama. — Thea foi ríspida.

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— Então, minha deusa, estamos noivos.

— Não estamos! — Discutir não levaria a nada. — Lorde Darien, entenda, um noivado entre

nós seria desnecessário e inacreditável.

— Se sua família anunciasse nosso casamento, ninguém acreditaria?

— Claro que não, você é um Cave.

Apesar das feições enigmáticas de Darien, Thea entendeu que o insultara.

— Sinto muito. Eu quis dizer que sendo um Cave, você não é bem aceito no momento. O

noivado pareceria estranho. Além disso, você está aqui há pouco tempo, como poderíamos ter nos

conhecido? Mesmo se eu perdesse o juízo e me apaixonasse por você, isso levaria dias para

acontecer.

— Existem amores à primeira vista, mas você tem razão, ainda mais que é conhecida como a

Ilustre Inatingível.

— Isto é...

— ...um apelido ridículo, como tantos outros.

Thea odiava dar-se por vencida.

— Quanto tempo seria preciso para o noivado parecer incrível?

— A vida toda. — Thea não o deixou retrucar. — O noivado é desnecessário, Darien. Você

contou com o favorecimento de meus pais e esta noite teve acesso ao restrito círculo da sociedade

sem ser rejeitado.

Darien ergueu a sobrancelha.

— Não abertamente, é claro. Você tem amigos militares que o apoiam, mas acima de tudo,

tem o empenho de minha mãe em defendê-lo. Acredite em mim, nesses assuntos ela é uma

Wellington. Creia que será impossível desvencilhar-se do abraço amistoso da sociedade.

Darien riu, afável.

— Ela pretende até encontrar uma esposa certa para você.

— Que não é você, presumo.

— Falta-me o gosto pela aventura. — Thea ouviu o tom de amargura na própria voz.

— A dama de vermelho me deixa atônito.

— Aquele vestido era... Não o usarei novamente. Eu só quero uma vida calma e ordenada.

— Assim como eu, você não combina com o tédio.

Thea o encarou.

— Lorde Darien, nós nada temos em comum. Nada!

— Temos aquele beijo

— Você me forçou àquilo.

— Então por que não se queixou?

Ele tomava o silêncio dela como encorajamento?

— Por eu não ter a menor intenção de causar um escândalo ou um duelo. Nem por um

instante pense que eu fiquei feliz com isso.

— Não estava de acordo com seus padrões? Peço perdão e imploro humildemente uma

chance de provar que posso melhorar.

Darien se aproximou, e Thea não pôde recuar por causa da vitrina às suas costas.

— No dia em que os porcos voarem!

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— Ponha um no cesto de um balão — ele sugeriu. — Ou atire um de um canhão.

— Que coisa horrível. — Ela se arrepiou.

— O fim justifica os meios. Thea, não deixo minhas emoções ficarem entre mim e meus

propósitos, e você é um meio para chegar a um fim.

— Eu gostaria de ser o meio para o seu desaparecimento.

Darien segurou-lhe o rosto.

— Pare de lutar, não há escapatória.

— Darien, tire a mão de mim — ela disse em voz baixa e dura —, ou eu gritarei e para o

inferno com as consequências.

Darien a desafiou por um momento, mas depois tirou a mão, recuando.

— Liberte-me de minha promessa — ela exigiu. — É ultrajante e desnecessário.

— Não posso.

— Por que isso é tão importante para você? Com minha mãe e a Confraria a seu lado... —

Thea se calou por causa do olhar de Darien.

— A Confraria?

— Eles planejam ajudá-lo, devido ao que aconteceu no colégio.

Um grande erro! Thea deveria imaginar que não o agradaria ela saber da verdade.

— Não gosto da Confraria, e Deus me perdoe se eu aceitar o resgate das mãos de seus

membros.

— Você apoiou Darius para conseguir ajuda!

— Capturei sua família e a mantenho em minha mão. Se eu pudesse acorrentar os membros

da Confraria e açoitá-los, eu o faria. Eles estão acorrentados?

— Não, eles sentem por você — Thea encontrou coragem para falar e erguer o queixo.

Darien pôs a mão no vidro, impedindo Thea de escapar.

— Você é muito tola e nós não estamos mais à vista dos outros.

Thea olhou na direção da porta e viu que ele estava certo.

— Tola por confiar em você? — Ela o desafiou apesar do receio. — Por mais estranho que

isso possa lhe parecer, em geral sinto-me segura sozinha com um cavalheiro. Ora, mas um Cave não

pode ser um cavalheiro. Por que não força mais um beijo traiçoeiro? Sei que é isso que deseja.

Darien recuou.

— Ah, não. Isso é o que você deseja. Não conseguirá me ridicularizar até a destruição. Mas...

você deverá apenas implorar.

Thea virou-se para estapear-lhe o rosto, porém Darien agarrou-a pelo pulso e ela estacou.

Ainda assim, sob uma capa de gelo e terror, sua alma e seu corpo gritavam para ela implorar como

ele exigia. Que rastejasse por outro beijo ardente e destruidor.

— Talvez — Darien disse, suavemente — você só precisasse pedir.

Thea desvencilhou-se das mãos que a seguravam e correu. No corredor, foi mais devagar,

respirando fundo para se acalmar. Chegou ao hall procurando sorrir como se tudo estivesse na mais

perfeita paz.

— Posso ajudá-la, Thea? — Foxstall falou a seu lado, sorrindo com hipocrisia.

— Somente para me dizer onde se encontra minha prima.

— A Srta. Debenham está sob a proteção das asas da mãe. — Ele olhou por cima do ombro de

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Thea. — Ah.

Ela entendeu que Darien estava lá.

— Thea, não permita que ele a faça de tola — Foxstall avisou-a. — A especialidade dele é

divertir-se com jovens damas bem protegidas. Em geral ele acha isso fácil demais. Uma dose certa

de perigo, medo e uma pitada de charme, e elas derretem como cera, prontas para receber a

impressão de seu sinete.

Furiosa, Thea afastou-se. Odiava Foxstall, mas reconheceu a verdade. Aquele era o jogo de

Darien.

Ele achava que poderia usar a excitação do perigo para forçá-la a casar-se?

Quando os porcos criassem asas!

Mas por enquanto era preciso escapar.

Encontrou a mãe jogando cartas.

— Mamãe — disse ela —, acho que algo me fez mal no jantar. Preciso ir para casa.

A duquesa pediu licença aos que estavam jogando.

— Minha querida, espero que não haja maiores problemas. Seria constrangedor para a

anfitriã.

— Creio que os camarões não me fazem bem.

— Não? Nunca notei isso. — A duquesa pediu a carruagem e mandou um recado para o

duque, avisando de que iriam embora. — Seu pai na certa vai ficar. Eu o ouvi numa discussão séria

sobre a suspensão do habeas corpus. Tempos difíceis esses. Quer deitar-se, querida?

— Não. — Mentir a incomodava. — É um pequeno mal-estar, mas prefiro ir para casa antes

que aumente.

— Está bem. Fico satisfeita em poder sair, a Sra. Grantham é uma jogadora pouco inteligente.

No entanto, acho que tudo deu certo.

— O coro foi maravilhoso. — Thea gostaria de descer correndo a escada, mas era preciso

esperar a carruagem.

— Estou me referindo a Darien, querida. Você foi muito generosa com a atenção que

dispensou a ele, o que deve melhorar a situação. Fiquei satisfeita de vê-lo divertir-se com os amigos

do Exército no jantar.

— Ele tem muitos amigos, mamãe, e os membros da Confraria pretendem ajudá-lo. Talvez

nossa ajuda seja desnecessária.

— Thea, cavalheiros nunca têm a mesma distinção das mulheres. Exceto nos clubes, é claro.

Se seu pai conseguisse a aceitação de Darien no White's...

Só por milagre, Thea pensou quando elas chegaram ao hall e os criados se apressaram em

trazer-lhes as capas.

— A carruagem não vai demorar, querida. Não quer sentar-se?

Impaciente para ir embora, Thea gostaria de andar de um lado a outro. Olhou a escada, sem

saber o que faria se Darien descesse.

Nada conseguira na tentativa de evitar o noivado!

Seria preciso tentar de novo.

Sem perder a compostura.

Sem mencionar a Confraria.

Naquela altura seus receios se confirmavam. Darien agia movido pelo ódio.

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A carruagem chegou e Thea lançou-se com ímpeto para dentro.

— Espero que esteja bem até amanhã à noite no jantar de Darien — a duquesa falou assim

que o veículo começou a rodar e escutou o gemido de Thea. — Esqueci que você não estava bem.

Quer os sais aromáticos?

Thea sacudiu a cabeça, sem fala.

Ao ver Thea falar com Foxstall, Darien considerou inconveniente a presença do camarada em

Londres e potencialmente desastrosa as atenções dispensadas à prima de Thea. Algo na atitude dele

com Thea não o agradara.

Por certo que também sua conversa com Thea deixara muito a desejar. Com um brilho furioso

no olhar, ela era capaz de fazê-lo perder a cabeça. Sem falar que ela havia mencionado a Confraria.

Droga, não haveria de permitir que eles se imiscuíssem em seus problemas!

Pensou em ir embora, mas era melhor aproveitar a oportunidade de haver ganhado o acesso à

nata da sociedade. Andou pelos salões, ignorando as desfeitas e parando para falar com os

conhecidos do Exército. Ficou satisfeito ao ver Foxstall partir em busca de maiores divertimentos

nas espeluncas ou bordéis.

Aquele era o tipo de invasão lenta e sutil que planejara antes de conhecer Thea. Desde então a

vida se transformara em um inferno. Fora obrigado a abandonar Pup nesta noite, sem saber para

onde o rapaz tinha ido. Pelo menos Pup era muito indeciso para ir sozinho a um bordel.

Enquanto circulava entre os ícones sociais, procurava por Thea. Falando sobre o número de

navios ancorados, prestava atenção ao perfume floral que ela usava. Discutindo os acontecimentos

da índia, tentava ouvir a voz leve e bem modulada.

Exceto quando estava irada.

Ou assustada.

Darien não se orgulhava de tê-la assustado, mas não podia permitir que ela rompesse o

compromisso. Por causa de Frank.

Às onze horas, certo de haver interagido o suficiente com os presentes, resolveu ir embora.

Ao despedir-se do duque de Yeovil, soube que Thea e a mãe já tinham deixado a festa.

— Algo a ver com o camarão em conserva — o duque falou em voz baixa. — Eu não senti

nada, mas as mulheres são mais sensíveis.

A experiência de Darien era principalmente com as mulheres que seguiam o batalhão, das

prostitutas às esposas dos oficiais, quando a resistência era o principal.

Além disso, a queixa de Thea fora... o excesso de um Cave.

Darien encontrou a anfitriã e agradeceu, desculpando-se por ter vindo sem convite.

— A duquesa insistiu — ele disse, sem mentir.

— Terei de agradecer a ela — a condessa replicou com um sorriso. — Sua presença animou

minha recepção.

— Os Cave vivem para servir.

— Pensei que o lema fosse cuidado, milorde.

— Como a pimenta, o terror em doses moderadas pode ser animador.

Ela riu, sacudindo a cabeça.

Darien pegou a capa e saiu da mansão, ciente de haver conquistado uma vitória. Ao chegar,

lady Wraybourne se alarmara, talvez imaginando que a recepção pudesse ficar comprometida pelo

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entretenimento. Agora, ela se divertia e não o considerava uma ameaça.

Um erro, mas ainda assim uma vitória em sua campanha.

Poderia ter pedido uma carruagem de aluguel, mas preferiu andar a pé pelas ruas escuras de

Londres. Talvez fosse uma ânsia louca atrás do perigo e um homem podia acostumar-se a isso.

Seria capaz de viver uma vida calma e ordenada?

Parou na rua e entendeu que havia repetido as palavras de Thea.

Não, nem em seus sonhos mais loucos, poderia imaginar uma vida ao lado de Thea.

Um barulho chamou-lhe a atenção.

Desatento, tomara um atalho através da Cask Lane, rua estreita e pouco iluminada. Três

jovens brigões o rodearam, exibindo os dentes sujos e tortos.

— Queremos suas joias e seus pertences, milorde — um deles falou.

Darien atacou com a bengala. Em instantes, dois fugiram, um mancando e o outro segurando

as costelas quebradas. O terceiro estava no chão, choramingando e encolhido para se prevenir

contra um pontapé.

— Aprenda a lição — Darien tocou nele com a ponta do sapato. — Ataque antes e fale

depois.

Darien afastou-se, sentindo-se melhor com o exercício.

CCaappííttuulloo VV

Darien entrou na Hanover Square depois da meia-noite. Embora quieta e pacífica, a quadra

continuava sendo o cenário da ação sangrenta.

A luz do dia, a vegetação dos jardins tinha um aspecto agradável, mas à noite se transformava

em formas escuras atrás de cercas negras, capazes de esconder qualquer número de monstros. Ele

caminhou até sua residência e parou para observar a fileira oposta de mansões que pareciam um

quadrado negro de encontro ao céu escuro. O único contraste era uma janela com cortinas e um par

de lamparinas ao lado da porta, na mansão dos Wilmott. Lady Wilmott saíra da cidade, mas sir

George ali permanecera.

As pessoas apontariam a casa dos Wilmott como apontavam a Mansão Cave ou o lugar nos

jardins onde o cadáver ensanguentado fora encontrado? Os londrinos traziam os parentes que

moravam no campo e faziam um passeio por St. Paul, pela abadia de Westminster e a Torre de

Londres. Iriam para Hanover Square para ver o cenário da ação sangrenta de Marcus Cave, o

Louco.

No futuro, tentaria conseguir um encontro com sir George e forjar algum tipo de paz.

Suspeitava de que o homem mandara o desenho da Ira de Deus. Quem mais faria isso? Sir George

poderia ser até responsável pelo sangue. Ele não queria levar mais desgosto à família, porém tinha

um plano em mente.

Virou-se em direção de sua casa, onde o timbre da família repousava sobre o dintel. O mastim

negro parecia quase animado pela chama bruxuleante da lamparina ao lado da porta. Rosnou para a

figura, ignorando o aviso esculpido abaixo.

Cave.

Precisava livrar-se da escultura, pois elas haviam caído de moda havia mais de cinquenta

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anos. Contudo daria muito trabalho para retirar o entalhe de pedra assentado firmemente no tijolo e

pelo que sabia, a estrutura de pedra sustentava os andares superiores da casa. Destruir tudo era

tentador, mas por enquanto teria de carregar esse fardo.

Mudar-se para a casa fora um erro, mas não podia corrigi-lo. Se saísse, naquela altura

pareceria que o sangue o assustara e um de seus credos era jamais mostrar receio. Aprendera isso

quando visitara Marcus ainda jovem em Stours Court. Mesmo antes de ficar louco, Marcus era o

tipo de valentão que se banqueteava com o medo como um vampiro com sangue humano.

Apesar da relutância, destrancou a porta e entrou. Como sempre o silêncio da mansão sugeria

malevolência.

Prussock surgiu do porão.

— Bem-vindo ao lar, milorde.

Aquilo era uma mudança. Lovegrove estaria ensinando aos outros criados o comportamento

devido na casa de um par do reino ou seria essa a reação de Prussock diante da enchente de

visitantes? Darien preferia que ele não se incomodasse, mas supunha que a família não desejava

perder o trabalho ali.

Prussock acendeu uma das duas velas da mesa e entregou-a.

— Obrigada, Prussock — Darien pegou-a. — O Sr. Uppington está em casa?

— Não, milorde. Ele saiu logo depois do senhor.

— Sabe para onde ele foi?

— Não, milorde.

— Ele tem uma chave, Prussock, não é necessário ficar acordado.

— Estou perfeitamente...

— Vá para a cama, Prussock. É uma ordem.

— Estou indo, milorde.

O mordomo se afastou com evidente desaprovação, e Darien imaginou se infringira alguma

regra oculta, mas Prussock tinha o costume de desaprovar tudo.

Subiu a escada até onde Lovegrove deveria estar esperando para cuidar de suas roupas se não

estivesse bêbado, o que seria difícil, a julgar pela quantidade de conhaque que estava desaparecendo

da mansão.

Disse a si mesmo que nada havia de errado naquela casa semelhante às demais na vizinhança.

No entanto, toda vez que ali entrava, uma atmosfera fétida o rodeava como um cobertor úmido e

podre. Dormiria com maior facilidade entre cadáveres do que ali.

Virou-se ao perceber um bruxuleio à sua direita. Não era nada, mas ele sabia que alguma

coisa desejava seu mal. Talvez devesse exorcizar a casa. A Igreja da Inglaterra faria isso ou seria

necessário um sacerdote católico? Um ritual romano causaria grande dano. Muitas pessoas

acreditavam que os católicos sacrificavam bebês no altar.

A maioria das pessoas era idiota.

Para sua surpresa, Lovegrove estava consciente e em pé. Ele podia ser magro e fraco, mas

cuidava das roupas de Darien como se cada item fosse sagrado.

— Uma noite agradável, milorde? — o criado segurou com mãos trêmulas a capa de noite

debruada em seda.

— Um coro de meninos.

Um olhar agudo fez Darien imaginar quais seriam os hábitos dos antigos empregadores de

Lovegrove.

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— Era o coro da Abadia e se apresentou na residência de lady Wraybourne.

— Ah, uma ocasião seleta, tenho certeza. — O criado arregalou os olhos de surpresa ao ouvir

que o patrão estivera em uma festa. Ele também era útil por seu conhecimento sobre os segredos de

cortesia da sociedade.

— Muito seleta. — Darien tirou o casaco negro e o colete bordado, mas não explicou como

havia entrado na festa. — Encontrei muitos conhecidos do Exército.

— Tenho certeza de que foi muito gratificante, milorde.

Lovegrove dirigiu-se à cômoda de gavetas e Darien estremeceu quando o criado tropeçou na

cama.

A gratificação era provavelmente genuína. Darien aprendera que o status de um cavalheiro

dependia do cavalheiro em questão. Nas residências importantes os criados pessoais eram

conhecidos pelo nome dos empregadores. Assim Lovegrove seria visconde Darien no piso inferior.

Duvidava de que Prussock aprovasse esse tipo de absurdo, mas o sistema tornara ainda mais difícil

contratar um criado qualificado. Ninguém se habilitava a tornar-se um Cave.

A perícia e o conhecimento social de Lovegrove agradavam Darien, mas desde o começo ele

estabelecera que despiria sozinho a camisa e a calça.

Lovegrove retirou-se, suspirando. Sozinho, Darien lavou as mãos e o rosto, e serviu-se da

última porção de conhaque, bebida que passara a fazer parte do salário de Lovegrove. Enquanto

bebia, considerou o quarto.

Ele se acostumara a transformar o alojamento numa parte de si mesmo, distribuindo seus

objetos. Um cobertor ricamente bordado da Espanha, o tapete feito do velo de uma ovelha de

Andorra, o jogo de xadrez com as peças negras simbolizando mouros e as brancas, as forças de

Ferdinand e Isabella.

Estava em Londres fazia três semanas e não tirara nenhuma delas.

O único item pessoal era a antiga arca de madeira que continha seus pertences.

Em um impulso, destrancou a arca. Jogou o cobertor sobre a cama e no chão o tapete onde

pisaria descalço ao acordar. Pegou o sabre embainhado, a única lembrança da vida de hussardo. O

que fazer com algo que usara durante tanto tempo?

Decidiu deixar a peça sobre a penteadeira. Mais tarde a penduraria na parede.

Tirou duas caixas de madeira da arca. Deixou a maior, com o jogo de xadrez, na mesa

próxima à janela. Depois a pequena, a da flauta, ao lado da grande.

Não tocara nenhuma música desde a chegada a Londres. Aprendera a tocar flauta por que o

pai considerava a música indigna de um homem, ainda mais os instrumentos menores e mais

delicados. Tratava-se de uma rebelião trivial, a única que podia levar a efeito, mas que lhe trouxera

recompensas. Se tocasse piano, não poderia carregá-lo para todo lado, nos campos de batalha e até

mesmo um violino seria um estorvo. A flauta o acompanhara por toda parte e muitas vezes afastava

a escuridão. Preparou o instrumento e lembrou-se de como Foxstall se queixara. Assim como o pai

de Darien, Foxstall não tinha gosto pela música e caçoara quando Darien tocava para os oficiais.

Foxstall nunca entendera os meios mais sutis de ganhar fidelidade. Darien aprendera a utilizá-

los com Michael Horne, seu primeiro capitão. Seu grande golpe de sorte na vida fora servir sob o

comando daquele homem. Horne não havia sido um soldado brilhante, mas sim equilibrado,

consciencioso e realmente bondoso. Ele tolerara um rapaz irritadiço e recompensara a melhora.

Talvez Horne tivesse sido verdadeiramente paternal por estar acima dos quarenta, embora

Darien não entendesse como alguém escolhera adotar Horatio Cave e sua carga de violência e

ressentimento. Tudo o que era, Darien devia a Horne e ainda amargava sua perda depois de três

anos.

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Com Horne aprendera o equilíbrio entre a disciplina estrita e a camaradagem fácil, o que

significava homens seguindo um oficial e suas ordens na mais sangrenta das batalhas, conservando,

no entanto, a habilidade de pensar por si mesmos quando necessário.

Não havia excesso de familiaridade, apenas leves pinceladas de atenção cordial. A hora

passada com eles à noite, ao redor da fogueira, contando histórias e fazendo música, dava-lhes a

certeza de que receberiam cuidados quando fossem feridos. A lembrança de algo especial

acontecendo em suas vidas, pela família que ficara para trás e seus interesses. Ele havia permitido

aos interessados emprestar livros de sua pequena biblioteca.

Quando se tornara capitão, seus homens chamavam a si mesmos de Cães de Canem. Como

não havia más intenções, ele tolerara a nomenclatura. Eles ainda usariam o nome e Ca-ve, Ca-ve,

Ca-ve como canto de guerra? Claro que não havia batalhas recentes a não ser contra trabalhadores

desesperados.

Começou a tocar uma jiga animada que os homens tanto gostavam, mas a música se

transformou num lamento.

Não gostava de pensar que os Cães de Canem estariam na índia sob as ordens de Pugh, o

homem que comprara seu posto de major. Pugh não seria capaz de controlar Foxstall, uma força

selvagem.

Se não tivesse vendido sua patente, seria tentado a abandonar a intrusão na sociedade e voltar

a seu posto. Mas não era assim que ocorria no Exército e não havia como fazer o tempo voltar.

Retornou a flauta aos lábios e tocou Jolly Jenny.

A porta foi aberta com tanta força, que bateu na cômoda.

— Tocando flauta no escuro, Canem? Não acredito. — Foxstall entrou cambaleando sob o

peso de Pup que estava bêbado.

Darien abaixou a flauta.

— O que está fazendo?

— Trazendo Pup para casa. Ele vomitou em seu hall.

— Como foi que você entrou?

— Pup tem uma chave.

Foxstall teve dificuldade em jogar o corpulento rapaz no sofá. E quando o fez, o sofá de

pernas finas estremeceu.

— Por que o trouxe para cá? — Darien perguntou.

— Eu não sabia onde era o quarto dele e também não podia trazer um homem aqui e não lhe

dizer nada. — Foxstall deu um suspiro. — Depois disso preciso umedecer a garganta. — Pegou a

garrafa e franziu a testa. — Peça mais, meu camarada.

— Os criados estão dormindo.

Foxstall pôs a garrafa na mesa com ruído.

— Será que esse é o Canem Cave, o insensível?

— Responsabilidades pesam sobre um homem. Onde encontrou Pup? Presumo que não foi na

residência de lady Wraybourne.

— A Srta. Debenham esmerou-se nas provocações, mas logo se esquivou. Por isso acabei

indo à casa de Violet Vane.

— O quê? — Pup recobrou vagamente a consciência e mirou ao redor com olhar vítreo. — É

Canem? Estou um pouco alegre. Havia muito para beber na casa de La Vane.

— Para quem tem dinheiro — Darien comentou —, aquele é um péssimo lugar.

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— Tenho dinheiro, muito dinheiro. Deveria ter vindo, Can. A pequena ruiva era um doce e a

morena então... — Pup fechou os olhos. — Eu penso... — Voltou a dormir.

— Imagino que ele pagou.

— E por que não? Se ele quer ser um grande menino malvado como nós, pode muito bem

pagar pelo privilégio. Quando eu me despedi de minha prostituta, ele estava embriagado e pronto

para vomitar. Por isso La Vane pediu para eu tirá-lo de sua casa. Ato de bondade cristã, já que ele é

um idiota.

— Não tão ruim.

— Não? O demônio é que sabe como ele sobreviveu à guerra. Pup tem menos senso de auto

conservação do que uma bala atirada de um canhão.

— Ou um porco.

— O quê?

— Apenas uma lembrança.

— Você atirou um porco de um canhão? Nunca ouvi falar disso. Que desperdício!

Darien não tentou explicar.

— Por que eu não posso ter um padrinho que me deixou sua herança? — Foxstall bateu com o

pé na bota pendurada de Pup. — O meu era um pastor com cinco filhos.

— Pare com isso.

— Que mau humor, Canem.

— Ter a casa invadida resulta nisso.

— Eu apenas trouxe Pup de volta. — Foxstall deu a volta no quarto, tocando nos objetos com

pouco-caso. — Se eu fosse um visconde, viveria melhor. Fiquei surpreso ao vê-lo no coral, mas

suponho que você teve de se humilhar diante da anfitriã. A campanha vai indo bem?

Outro erro. Discutir os planos com Foxstall.

— Sim.

Não valia a pena o esforço para se ver livre de Foxstall. Sem mulheres nem bebida, ele logo

iria embora.

— Notei que milorde não foi muito bem recebido.

— Isso foi antes. Ainda estou testando as águas.

— Você pode afundar os pés no rio social à vontade, o gelo não derreterá.

— Tenho os Debenham a meu alcance.

— Somente a jovem. Ela é suculenta, mas não exatamente alcançável.

Darien ficou tenso.

— Espionando, Matt?

— Apenas procurando sua companhia. Você acha que pode avançar ali? Última esperança...

diferente de sua alegre prima.

— Deixe a Srta. Debenham em paz.

— Não estou mais sob suas ordens, e a Srta. Debenham não quer ser deixada em paz. Acho

que ela tem um belo dote, mas o da prima deve ser maior.

Foxstall não se intimidou com o olhar de Darien e riu.

— Vejam só! Esse é um plano tenebroso e desonesto, ou será que está apaixonado?

— Plano, é claro. — Darien teve vontade de matar, mas esse estopim seria apagado com água

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fria. — Ela não é meu tipo.

— Uma virgem de boca fechada.

— Basta. — Darien largou a flauta para não quebrá-la. Desta vez Foxstall aceitou o aviso.

— Eu lhe desejo sucesso com ela, mas não confie em sua boa sorte. Você se parece muito

com seu irmão.

— Marcus? — Darien surpreendeu-se.

— Foram os comentários que ouvi esta noite e por isso estou lhe advertindo como amigo.

Agora, Canem, em troca da confidencia, empreste-me algum dinheiro.

— Quanto?

— Três mil.

— Para que tanto?

— Pugh morreu de pneumonia. Para conseguir o posto de major, preciso de dinheiro.

Quando Darien vendera sua patente, Foxstall sugerira um empréstimo que, na verdade, teria

sido um presente. Na época, embora não fosse emprestar, Darien assumira que havia pouco dinheiro

nos cofres da família. Se Foxstall em tempos de paz era um barril de pólvora pronto para explodir,

com o regimento partindo para a índia, haveria ainda mais ação. Darien não confiava nele, ainda

mais estando em jogo os Cães de Canem.

— Desculpe-me, mas não posso.

— Mas que droga, Danem, nós sempre partilhamos tudo.

— Sim, o preço de uma garrafa de vinho ou de uma rameira.

— Você está nadando em dinheiro.

— Instalar-se na sociedade é custoso.

— Sei.

— Pense na índia. — Darien procurou amenizar a situação. — Nababos, rubis, haréns.

— Canem, sou um péssimo inimigo.

— E eu sou pior ainda. — Darien encarou-o. — Mantenha distância dos Debenham.

— Farei o que me der vontade. — Foxstall saiu e bateu a porta.

Darien suspirou. Foxstall nunca fora um amigo. Eles apenas bebiam e lutavam juntos, e

frequentavam os mesmos prostíbulos. Acima de tudo, lutavam, e com uma brilhante fúria selvagem

que perdurava na mente. Mas tudo se modificara.

Ainda assim, não tinha tantos amigos que a perda de um não lhe fizesse falta.

Tentou tocar a alegre jiga, mas esta não teve efeito no escuro que lhe lembrava o irmão. Tinha

certeza de que sua única semelhança com Marcus era ambos serem morenos. A última recordação

dele era um rosto intumescido e marcado.

Como ele teria sido antes da devastação pela varíola?

Marcus tinha treze anos quando Darien nascera, e o irmão vivera em devassidão antes mesmo

de Darien se lembrar dele. Marcus, felizmente, preferira morar em Londres porque o pai o deixara à

vontade, mas retornava com frequência excessiva para o conforto de todos.

Darien ficou em pé, foi até a penteadeira e fitou as próprias feições distorcidas pela luz da

vela e a má qualidade do espelho. Talvez a luz e a distorção revelassem algo.

Os mesmos cabelos negros, a testa alta, os mesmos olhos escuros, a mesma pele em tom de

oliva. Sob o sol da Espanha ele ficara moreno enquanto os outros lutavam com as queimaduras.

A mesma crueldade?

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Não, mas ele reconhecera que as cicatrizes na face sugeriam isso e talvez a expressão marcada

pelos piores aspectos da guerra.

Bobagem. Se havia um homem que estava nas profundezas do inferno, esse era Marcus

Aurelius Cave.

Não era para menos que a sociedade se retraísse diante de seu rosto. Não era para se admirar

que Thea estremecesse com seu toque. E Frank, de espírito puro e sorriso generoso, também era

parecido com os irmãos. Mas nele, os cabelos e olhos escuros davam o aspecto de um anjo. E a

sociedade arrogante e suspeitosa se importaria?

Pegou o sabre embainhado e bateu como cabo no espelho, despedaçando a imagem.

— Sete anos de azar, Canem — Pup murmurou atrás dele.

Darien virou-se já com a arma em punho, mas Pup ressonava como um querubim dispéptico.

Voltou a arma para a bainha e deixou-a de lado. Abaixou a vela, juntou os cacos de espelho e

deixou-os numa vasilha.

Olhou para Pup. Ainda com raiva dele, de Marcus, da sociedade, da tortura sangrenta do

destino. De que adiantava isso? O passado não podia ser desfeito e muitos fatos não podiam ser

esquecidos.

Uma cicatriz permanecia para sempre.

Um membro amputado não crescia.

Um idiota não se tornava um homem de juízo.

E um Cave seria para sempre um vilão prescrito.

Pegou o cobertor colorido de sua cama e cobriu Pup.

O Pup de Canem era objeto de gracejos, mas Percival Arthur Uppington vinha de uma família

modesta, de reputação impecável que tinha mais chance se ser aceito pela sociedade do que

qualquer Cave teria. Mais oportunidade até de conquistar o coração de Thea.

Estacou. Thea era simplesmente um meio para conseguir um fim.

Olhou o sabre que tantas vezes ficara sujo de sangue. Ainda afiada, a arma era capaz de partir

uma cabeça em dois de um só golpe.

Guardou o sabre no fundo da arca e trancou a porta, deixando para fora as lembranças e os

sonhos.

Darien acordou com o ronco de Pup que dormia no sofá. Deitado, recordou-se dos detalhes da

noite anterior.

As gloriosas harmonias do coro de meninos.

A companhia dos amigos.

Uma deusa irada. Foxstall, uma raposa ardilosa. A repulsa das pessoas que viam Marcus Cave

de volta.

Lutou contra a vontade de desistir. Saiu da cama, vestiu-se sem assistência e foi para a

cavalgada matinal sem acordar Pup. No caminho até a estrebaria, o ar matinal descontraiu-o e

despertou sua esperança. Fizera muito progresso em poucos dias e naquela noite seria convidado de

honra em um jantar especial oferecido pela duquesa.

As manhãs eram forragem para a esperança. No entanto, muitas manhãs haviam revelado

sujeira, sangue e violência. Não havia nada mais melancólico do que a aurora num campo de morte

e a luz tocando homens que jamais acordariam.

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Afastou essas memórias, mas sabia que essa manhã límpida evoluiria para uma tarde

barulhenta e uma noite quente na mata envenenada que escolhera para ceifar...

Deus, logo estaria cortando o próprio pescoço.

Chegou perto da baia de Cerberus, parou e escutou.

Alguém se encontrava ali.

Pequenos atos de vandalismo tinham acontecido na sua parte da estrebaria, mas se tivessem

mexido com Cerberus...

Alcançou a baia e olhou por cima da porta baixa. Um rosto pálido o fitou, com um tapa olho e

um sorriso que deixava entrever a falha nos dentes.

— Bom dia, major — o homem disse com sotaque galés. — Não esperava vê-lo tão cedo.

Darien destrancou a porta e entrou. Cerberus estava sendo escovado.

— O que está fazendo? — ele perguntou a Nid Crofter.

O homem magro e quase careca fora um dos maiores patifes da tropa, mas era honesto. Ele se

transformara num ladrão de cavalos?

Nid continuou a escovação.

— Vim ver Cerberus em honra dos velhos tempos.

Darien recostou-se em um pilar.

— Pensei que não aguentasse mais a vontade de voltar a sua aldeia. Brecknockshire, não é?

— Correto, sir, é muita bondade em se lembrar. Voltei, mas as coisas mudam, não é?

— Algumas são permanentes. Não se adaptou à vida no campo?

— Não tive interesse de trabalhar numa mina, major.

— Agora sou lorde Darien.

— E o que eu supunha, major. Muito bom.

— Na verdade nem tanto. Está sem dinheiro?

— Não exatamente, sir. Mas é difícil de conseguir emprego.

Darien considerou que Crofter era experiente com cavalos.

— Se quiser, posso oferecer-lhe o cargo de cavalariço.

Crofter arreganhou os dentes.

— Muito bom, sir.

— Então pode selar Cerberus.

A desenvoltura de Crofter indicava que o local lhe era familiar.

— Você dormiu aqui a noite passada? — Darien indagou.

— Alguém tem de tomar conta das coisas. Em cima há um local decente.

— Está bem. Você comera na cozinha. Tenho poucos criados que são taciturnos, mas talvez

com você eles serão mais amáveis. Como apenas Cerberus ficará a seu encargo, você poderá ajudar

no que for preciso.

Crofter jogou a sela nas costas de Cerberus.

— Está bem, sir.

— E se você roubar alguma coisa, eu o porei para fora pelas orelhas.

— Eu jamais tocaria num fio de seu casaco, sir! Juro por Deus.

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Darien verificou o cavalo e montou.

— Bem vindo à propriedade Cave, Crofter. Espero que não se arrependa.

Crofter repetiu o grande sorriso.

— Tenho certeza de que isso não acontecerá, milorde.

Darien afastou-se, desejando que as palavras fossem verdadeiras.

Virou-se em direção do Green Park, refletindo se era um bem feitor ou um simplório. Estava

ciente de que poderia ser uma isca alguém querer trabalhar para ele. Talvez fosse um tolo, mas a

guerra ensinava um homem a agarrar qualquer prazer que aparecesse, mesmo a perspectiva de um

cumprimento afável todas as manhãs.

— Hum, bom dia, senhor! — Um homem empurrando um carrinho com verduras

cumprimentou Darien que retribuiu, amável.

Este, como tantos outros, não o evitava, diferente das pessoas da região que escolhera para

viver.

Ninguém o forçara a abrir caminho onde não era bem recebido. Talvez nem Frank valesse

isso. Mas não fosse apenas por Frank, mas por si mesmo. Desejava uma vida normal. Tornara-se o

visconde Darien e apenas a morte mudaria o fato. O título o fazia responsável pelas propriedades e

pelos deveres como a cadeira na Câmara dos Lordes. Qualquer dia teria de enfrentar o covil dos

leões. Sua natureza não o permitia abandonar as responsabilidades.

Continuou a cavalgar e imaginou como seria uma vida normal.

Para começar, uma casa confortável. Em vez disso, tinha Stours Court, Greenshaw e um

pedaço de terra na Irlanda. E a Mansão Cave, Deus o ajudasse. Se não morasse ali, quem o faria?

Um sininho chamou sua atenção para uma leiteira que trazia uma vaca e uma cabra pelo Park

Lane, apregoando suas mercadorias. Darien se deteve e pediu uma porção de leite. A mulher

espremeu os úberes da vaca e entregou a ele uma tigela com leite espumoso. Ele bebeu o líquido

espesso, quente e doce. Então, recordou-se do leite materno.

Sua mãe nunca amamentara os filhos. Todos tinham sido entregues aos cuidados de uma

família local com filhos de idade similar, até o desmame.

Num conto de fadas, Darien teria um dedicado irmão de criação com que compartilhara o

leite, mas ele sugara o leite destinado ao um Lagman natimorto. Da época, trazia algumas

lembranças de bondade que poderiam até ser sonhos. Os Lagman certamente nunca tentariam

protegê-lo de sua família.

Na sua recente visita a Stours Court, a viúva Lagman ficara muito feliz em vê-lo na aldeia.

Com mais de sessenta anos, castigada pela idade e por viver sob o domínio dos Cave, ela ainda

exibia um sorriso largo. Ele a julgara mal, achando que a boa recepção fora por ele ser o novo

visconde. Na época a família inteira teria sido expulsa, se tentassem protegê-lo. Ou pior, dado o

temperamento de Marcus. Evitar o heroísmo, no caso, era uma atitude inteligente.

Devolveu a tigela, pagou em dobro e continuou o passeio, imaginando se alguém teria boas

lembranças da infância.

Darius Debenham, provavelmente.

Van, também. Ele percorrera o campo com seus dois amigos, então Hawkinville e Amleigh,

sempre certos de encontrar um rosto afetuoso. Exceto um guarda-caça, Darien lembrou-se de quem

os três garotos infernizavam. As lembranças de Van tinham sido de prazer e de dor.

Darien também se criara à solta no campo, sempre para escapar de casa e sob as vistas grossas

de criados indiferentes. Saía cedo pela manhã para pescar nos regatos e pegar coelhos para comer.

Com frequência escalava a colina escarpada até as ruínas do castelo Stour, onde se imaginava o

grande lorde Rolo Stour defendendo a fortaleza contra o inimigo.

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No século XII, os inimigos de lorde Rolo tinham sido as forças da imperatriz Matilda, mas

Horatio Cave sempre os imaginava como sendo seu pai, Marcus e Christian.

Desejara muito ser um descendente de lorde Rolo, porém os Stour haviam morrido fazia

muito tempo depois de apoiar o lado errado das disputas reais. No século XVI a propriedade fora

dada a Roger Cave, funcionário real, sem dúvida em paga por espionar segredos indevidos.

Assim que Frank crescera, Darien o levara para suas aventuras. Isso fora para afastá-lo dos

perigos da casa, mas valera a pena.

A Sra. Corley, esposa de um dos porteiros e sem filhos, bondosa e de rosto redondo, teria

adotado Frank, se pudesse. Fazia para ele pão fresco com geleia e dava-lhe para beber canecas de

leite cremoso.

Ela não fazia diferença entre as crianças e sempre dava para os dois as mesmas delícias, os

mesmos sorrisos e, às vezes, os mesmos abraços. Darien na certa evitava os abraços e se lembrava

da mão gentil no ombro ou na cabeça.

Lembrava-se também dos elogios, sempre ausentes em Stours Court. A Sra. Corley o fitava

com olhar brilhante e garantia ser ele um menino bom e corajoso por cuidar do irmão. Em troca

contava a ela sobre lorde Rolo, e a Sra. Corley afirmava que ele era como o herói e que se tornaria

um grande homem.

Seriam sorrisos e palavras tão nutritivos como pão fresco e leite cremoso?

Talvez o leite tivesse trazido à tona essas memórias sentimentais.

A Sra. Corley tentara protegê-los. Quando Darien estava com dez anos, Marcus batera em

Frank. A bondosa senhora tentara alertar o visconde e não muito depois, ela e o marido haviam

deixado a propriedade. Darien ouvira dizer que o homem temia pela segurança da esposa.

Darien entrou no parque e tentou afastar as recordações de Stours Court, mas estas eram como

sementes que procuravam aflorar.

Havia um cavalariço, astucioso e grosseiro, que ficava feliz em mostrar ao filho do visconde

como pegar coelhos e roubar bebida da cervejaria.

Lembrou-se de uma babá, sisuda e temperamental, mas rápida para esconder Frank e ele da

fúria do visconde bêbado ou de Marcus, embriagado ou sóbrio.

Ela os traíra uma única vez, depois de Marcus torcer-lhe o braço a ponto de quase o arrancar.

Frank não teria mais de quatro anos, mas Marcus arrastara os irmãos ao redor da casa com cordas

amarradas no pescoço, chicoteando-os quando gritavam.

De outra feita, Marcus os atirara dentro de uma arca de madeira com uma estátua em cima da

tampa para evitar uma fuga. Por sorte havia aberturas entre as tábuas que permitira a respiração,

pois os criados levaram horas para criar coragem e soltá-los.

Deu um sorriu, irônico.

Deveria ter se lembrado que a maioria das sementes germinava ervas daninhas. Inspirou

fundo e fixou-se na beleza ao redor. A bela melodia de um tordo. Narcisos que se agitavam e

campainhas aqui e acolá. Patos e cisnes deslizando sobre a água que refletia o sol, deixando rastros

argênteos. A pureza deliciosa do ar.

Real e para todos, mesmo para um Cave.

Considerou por onde deveria cavalgar para desencontrar-se dos poucos nobres que estavam

no parque àquela hora. Havia homens andando e poucos cavaleiros à distância. Babás cuidavam de

crianças e um artista desenhava em um bloco sobre os joelhos.

Darien deu a volta para olhar o desenho. Era ele. Traços rápidos que não deixavam dúvidas.

— Parece uma estátua — comentou.

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O jovem, de cabelos desgrenhados e roupas puídas, virou a cabeça.

— Era o que milorde parecia.

— Com o que você trabalha? Óleo ou aquarela?

O rapaz pegou outra folha de papel e recomeçou a desenhar.

— Carvão, é mais barato.

— Mostre para mim.

O jovem olhou, resistente à ordem, mas depois levantou o desenho. Desta vez apenas a

cabeça, mas com sensibilidade. Ele retratara Darien e não Marcus.

— Eu lhe adiantarei o dinheiro e você fará um desenho a óleo. Se eu gostar, pagarei pelo

trabalho completo.

O rapaz o fitou, cauteloso. Ali estava alguém que aprendera a viver numa escola árdua.

— Qual deles?

— Primeiro o montado.

— Primeiro?

— Se você for tão bom nos desenhos quanto nos esboços, talvez eu o contrate como meu

artista oficial.

O artista pareceu cético.

— Posso perguntar quem é o senhor?

Darien relutou antes de responder.

— Visconde Darien.

Apesar da desconfiança, houve um tremeluzir de esperança.

O mais surpreendente era ele não demonstrar nenhum sinal de que o visconde Darien

significava algo além da possibilidade de patrocínio ou desapontamento.

— Preciso de no mínimo cinco libras. — O jovem recomeçou o esboço, talvez para esconder

o rosto que barganhava. — Fora da lona, das tintas e do resto, precisarei alugar um local com

melhor luz. Atualmente estou num porão.

— Qual seu nome? — Darien perguntou. O artista olhou para cima e sorriu.

— Lucullus Armiger. Não pense que estou inventando, eu não seria tão criativo.

Darien deu risada.

— Como as pessoas o chamam?

— Luck.

— Talvez sua sorte tenha mudado. Apresente-se esta tarde para Godwin e Norford em

Titchbourne Street e receberá as cinco libras. Espero ver o trabalho preliminar em uma semana.

Luck olhou para Darien, ainda desconfiado, mas não recuou.

— Obrigado, milorde — ele disse com dignidade e levantou-se para apresentar o esboço que

fizera.

Era o desenho do rosto de Darien, mais completo, embora com poucos traços. Darien gostaria

de analisar melhor o trabalho e entendê-lo, mas devolveu o papel para Luck.

— Deixe isso com meus advogados. — Darien virou Cerberus e depois olhou para trás. —

Você tem muito talento para estar nessa situação. Por quê?

— Dom divino — Luck disse e sorriu, pesaroso. — Um temperamento rebelde não conduz ao

patronato.

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— Isso não me importará se o trabalho for bom. — Darien tocou na aba do chapéu com o

cabo do chicote e afastou-se.

Patrono das artes? Darien riu das próprias pretensões. Estava apenas comprando uma nova

imagem de si mesmo para asfixiar os tolos.

Artistas eram conhecidos por lisonjear seus clientes. Mas esse não parecia ser o caso de Luck.

O rapaz tinha talento e deveria ter ofendido a muitos clientes para acabar num porão apenas com

carvão e papel.

Um criado de quarto, um cavalariço e um artista. Um belo séquito.

E um parasita, Pup.

Se resolvesse alterar o trajeto e cruzar com os dois cavaleiros mais adiante, as chances eram

de eles acharem que Marcus Cave tinha voltado e se afastarem.

Olhou o gramado à frente e inclinou-se para afagar o pescoço de Cerberus.

— Vamos, meu amigo, soltar Canem Cave nesse pequeno mundo presunçoso.

Incitou Cerberus que disparou para frente. Riu alto pela tensão familiar e quente, e desejou

que houvesse um inimigo adiante para despedaçar com força.

— Veja, lá está Canem. Veja como ele está galopando!

Thea deteve o cavalo e olhou para onde Cully apontava. Um cavalo cinzento atravessava o

parque com rapidez excessiva para a segurança de todos.

— Ele é um louco.

— Não exagere.

— Cully, é insano galopar onde é possível encontrar obstáculos ou buracos feitos por coelhos

ou toupeiras.

— Nada acontecerá, Canem é um exímio cavaleiro.

— O que não confere a ele poderes mágicos! — Thea lamentou o tom brusco, mas Cully

citara seu ídolo várias vezes naquela manhã.

Ela acordara cedo depois de uma noite agitada, precisando muito de ar fresco e exercícios.

Não quisera sair com o cavalariço, por isso mandara uma mensagem para o alojamento de Cully

pedindo para o primo para acompanhá-la, caso estivesse livre. Cully aceitara o convite e os dois

saíram a passeio. E encontrar Darien perturbou seu equilíbrio mental quase restaurado.

— Vamos. — Thea virou a montaria. — Você disse que teria de voltar logo.

— Deus! — Cully não chegou a segui-la e disparou num galope.

Thea voltou-se e seu coração deu um pulo. O cavalo cinzento se empinava perto do cavaleiro

estirado no chão.

Bem que ela imaginara! Incitou o cavalo para a frente e seguiu Cully. Mas quando Cully se

aproximou, Darien se sentava, sem chapéu, mas também sem ferimentos.

Darien ficou em pé e limpou a roupa com as mãos. Thea freou a montaria tarde demais para

recuar sem ser vista e rezou para que Darien não houvesse notado sua velocidade.

Ele a fitou e voltou-se para o animal. Thea aprovou essa atitude, afinal Darien arriscara a vida

do cavalo, mas ficou melindrada por tão pouca atenção. Depois de povoar seus pensamentos numa

noite insone e ser responsável por certos sonhos indevidos, Darien poderia ao menos olhá-la por

mais alguns instantes.

— Ele está bem? — Cully desmontou, entregou as rédeas para Thea e aproximou-se de seu

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ídolo.

— Acho que sim. — Darien testava a marcha do cavalo.

Dois outros cavaleiros vieram ver do que se tratava, foram acalmados por Darien e se

afastaram.

As cicatrizes do animal cinzento evidenciavam ter ele pertencido a um regimento de

Cavalaria. Penalizada, Thea supôs que a Marinha fosse uma escolha melhor. Afinal navios não

eram de carne e osso, nem se aterrorizavam.

— Parece que não houve danos — Cully afirmou, rodeando o cavalo.

— Graças a Deus. — Darien deu uma palmadinha no pescoço do animal e encostou o rosto na

cabeça da montaria.

A ternura do gesto comoveu o coração de Thea, que observou o cavalo retribuir o carinho

com uma leve cabeçada. Seria um pedido de desculpas?

Não se deixe enganar por ele! A culpa não foi sua, animal tolo.

— Buraco de toupeira? — Thea lembrou a responsabilidade a Darien.

— Possivelmente. — Darien entregou as rédeas do cavalo para Cully e aproximou-se de

Thea, abaixando-se no caminho para pegar o chapéu com um movimento rápido. Não estava

contundido, embora os cabelos estivessem desalinhados e houvesse uma mancha de terra no rosto.

— Minha tolice interrompeu seu passeio? — Darien perguntou. — Peço que me perdoe.

— Você teve sorte em ter escapado ileso, assim como seu cavalo. Rei Guilherme morreu em

um acidente parecido.

— Milady teria lamentado?

— Como qualquer morte prematura.

— E a minha seria prematura?

— Não desejo sua morte, Darien. Aliás, nem penso em você.

— Pensei que eu fosse a perdição de sua vida. Teremos de discutir isso hoje à noite.

O jantar.

— Talvez eu não possa comparecer.

— Covarde — Darien murmurou.

— Absurdo.

— Thea, viver evitando os riscos não é viver.

Ela gostou de fitá-lo de cima.

— Quer que eu assuma riscos? Muito bem. — Thea soltou as rédeas do cavalo de Cully, virou

a montaria e gritou: — Para a água!

Thea saiu em linha reta. O vento fustigava o chapéu e ela teve certeza de que Darien a

infectara com aquela insanidade. Dessa maneira acabaria se matando!

Não havia como ganhar a disputa contra dois oficiais da Cavalaria, mesmo os dois estando

desmontados no início. Assim mesmo ela tentou e quando alcançou a água sem ser ultrapassada,

virou-se com raiva para o mais próximo.

— Você me deixou ganhar!

Darien puxou as rédeas de seu cavalo.

— Mas você não disse que se tratava de uma competição.

— Com você, é sempre uma disputa.

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— Que excitante — Darien retrucou com olhar luzidio.

— Você poderia ter se matado, Thea! — Cully protestou, parando o cavalo.

— Engraçado, quando era com Darien, você achou bonito o galope. Uma dama não pode

assumir riscos?

— Bem... não.

De repente Thea se lembrou de quem era e onde estava.

— Desculpe-me, Cully.

— Está bem. Pense se tivesse quebrado uma perna ou coisa pior estando sob meus cuidados.

— Foi um impulso incontrolável.

— Loucura da lua? — Darien indagou.

— Ainda não é lua cheia, sir — Cully comentou, sem entender o significado.

Como Darien ousava falar de assuntos femininos? Ele a provocava deliberadamente, como

Foxstall dissera. Thea virou o cavalo na direção do primo.

— Cully, precisamos voltar. Você tem compromissos.

Cully puxou um relógio de bolso.

— Diabos! — ele exclamou e se desculpou, corando. — Canem, poderia levar Thea de volta a

Great Charles Street?

Thea abriu a boca para protestar, mas Cully, tomando a aceitação como garantida, afastou-se a

meio galope. Ela fulminou Darien com o olhar, e ele ergueu a mão.

— Não pense que sou o responsável por isso.

— Você poderia ter encenado a queda.

— Que mente fantasiosa a sua. — Darien olhou em volta. — Qual o caminho para sua casa?

— Por ali. — Thea apontou com o chicote um espaço vazio entre as casas.

— Um caminho melhor do que pela alameda.

Darien estava certo, e Thea se sentiria melhor em espaços abertos. Enquanto se

encaminhavam para a trilha ladeada de árvores, ela entendeu que teria uma excelente oportunidade

para uma discussão racional. Estavam em local aberto, em público e a cavalo. Nenhum impulso

inconfessável a alcançaria e ali nem mesmo um Cave poderia prejudicá-la.

— Darien...

— Canem, por favor.

Thea franziu a testa.

— Não.

— Por que não? Eu a chamo de Thea.

— Sem permissão.

— Deusa, então.

Thea inspirou fundo. Discutir não levaria a nada.

— Precisamos conversar. A noite passada...

— Foi muito interessante.

— A discussão não foi profícua — ela insistiu —, mas se você pensar em minhas palavras,

verá que tenho razão.

— Será? — Darien conservou-se impassível.

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— Você conta com a aprovação de meus pais. A noite passada você foi empurrado para o

círculo seleto...

— Empurrado? — Darien divertiu-se.

— Forçado, se assim prefere.

— Não creio que foi assim.

— Do que está rindo? O assunto é sério.

Darien se conteve.

— Sem dúvida nenhuma.

— Obrigada. Como expliquei a noite passada, um noivado estranho seria contraproducente.

Isso geraria aumento de interesse e especulação, em vez de retraimento. Você concorda?

— Retraimento em vez de aumento?

— Você não pode querer mais escrutínio.

— Não posso, minha deusa?

— Não me chame desse jeito!

— Você é uma mulher exigente e irracional.

— Se prestasse atenção, veria que sou racional. — Thea fitou-o com atenção. — Por acaso

bateu a cabeça na queda?

Darien riu, o que a deixou desconcertada.

— Está bem.

— O quê?

— Vamos considerar que um noivado é desnecessário. Mas se eu a libertar de sua promessa, e

foi uma promessa, você não pode negar, o que receberei em troca?

— O que... — Thea conhecia o oponente. Ele exigiria algo. Mas ela precisava insistir. — Meu

apoio irrestrito. Seria minha companhia em público e em todas as ocasiões possíveis.

Darien analisou o rosto de Thea.

— Palavra de uma deusa?

— Palavra de uma Debenham.

— Feito.

Thea riu com alívio.

— Obrigada!

— Tão feliz por romper o noivado.

— Não é isso.

— Mas sua companhia agradável será uma compensação.

— Apenas durante seis semanas. — Thea fez questão de frisar.

— Seis semanas — Darien concordou com tanta facilidade, que Thea se preocupou.

O que ela não notara?

— Ótimo — ela aprovou. — Vamos considerar a estratégia.

— Penso que você pretendia dizer táticas.

— E qual a diferença?

— Estratégia é o plano global. Táticas são aspectos específicos quando encarados com o

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inimigo.

— Creio que precisamos de ambas.

— Acho que temos nossa estratégia formada por sua mãe, a quem você comparou a

Wellington. Somos as tropas terrestres executando a estratégia. Você joga xadrez?

— Não.

— Que pena. O jogo é uma simulação excelente de uma batalha.

— Isso não é precisamente uma batalha, Darien — Thea objetou. — É mais uma diplomacia.

— Não tem sentido a margem afiada da lâmina.

— Não? Para mim tem sido muito desagradável e ficará pior antes de melhorar. Mas não

pense nisso como uma guerra. Não se deve comportar com violência e sair matando pessoas.

— Você tem uma estranha noção de guerra.

— Precisamos agir com sutileza — ela insistiu. — Uma invasão vagarosa em vez de uma

investida violenta.

— Ou uma investida vagarosa. — Darien estava com o olhar brilhante.

— Isso não existe.

— Então um deslizamento vagaroso?

Na certa a queda o afetara, mas Thea pensava em tirar vantagem disso.

— Como queira — ela respondeu. — Você terá de ser gentil quando entrar no círculo interno.

Darien engasgou.

— Certamente. E será delicioso de contemplar.

— Não, Darien, será difícil — Thea explicou, paciente. — Haverá resistência e talvez forte.

— Pobre dama.

— Fico satisfeita em saber que você compreende como será desconfortável para mim.

— Eu gostaria que fosse de outra forma.

Darien parecia sincero. Thea poderia obter maiores concessões, mas seria como obter

vantagens injustas de um imbecil.

— Pois faça como eu disser — ela avisou com firmeza.

— Seus desejos serão uma ordem para mim.

— Você está embriagado? — Isso poderia explicar a queda. Oficiais da Cavalaria não

costumavam cair da montaria.

Darien deu risada.

— Só se for por sua causa, minha deusa. Você sempre me delicia.

Thea estremeceu, talvez pela aparência rude, casual e pelos olhos risonhos. Não era a imagem

que tinha de Darien, nem queria que assim fosse.

— Não faça isso — ela pediu.

— Fazer o quê?

— Não dê risada. — Nada mais racional ocorreu-lhe para falar.

— Você é a deusa mais irracional que já se viu.

— Eu sei, sinto muito. Eu não queria dizer aquilo. — Ela o fitou, desnorteada. — Não flerte

comigo.

— Eu não fiz isso.

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— Então o que estava fazendo?

A alegria feneceu, talvez pelo remorso.

— Tem razão, minha deusa, eu estava flertando, o que é inadequado em nossa situação.

Eles rodearam Carlton House e entraram por ruas lotadas com carroças e carrinhos de mão

para entregas, onde era necessária ter toda atenção. Era como sair de um lugar mágico para um

mundo barulhento. O que não deixava de ser uma vantagem para não perder o controle.

Os cascos dos cavalos tropeavam nas pedras arredondadas da pavimentação. Diante da casa

de Thea, Darien desmontou e bateu com a aldrava na porta. O lacaio apareceu e segurou o cavalo de

Thea até o cavalariço chegar. Darien aproximou-se para ajudá-la a apear.

— Posso descer sozinha. — Thea queria evitar tocá-lo.

— Com dignidade?

— Com um bloco de montaria — ela admitiu.

Mas quando Darien levantou os braços para segurá-la na cintura, Thea não resistiu. Apoiou as

mãos nos ombros largos e foi deixada suavemente no chão, arfando, consciente da energia e do

controle masculinos. Ela ficou em pé por um momento e fitou-o quase encostada nele.

Darien estava com o olhar sombrio.

— Thea, nós somos como a pedra-de-fogo e a mecha, com pólvora a nossa volta.

— Então me liberte.

Darien recuou.

— Não posso. Eu gostaria que tivéssemos um lugar seguro para explodir. Até o jantar.

Ele montou no cavalo enorme com tal leveza que parecia flutuar e afastou-se formando uma

única imagem com o animal.

Thea entendeu o sentido de explodir a que Darien se referia.

Ah, como gostaria de inventar uma dor de cabeça para não comparecer ao jantar! Mas fizera

uma promessa e por sua vontade. Não poderia voltar atrás a palavra dada.

O mais perturbador era ela não temer mais os malefícios que Darien poderia planejar. Em vez

disso, temia a maneira gentil com que ele se comportara naquela manhã e que poderia destruir todas

as barreiras que ela possuía. Precisava de cada uma delas para se proteger.

Era impossível pensar sobre o que acontecera nas manhãs da duquesa dedicadas à

administração de suas inúmeras obras de beneficência. Thea, que a auxiliava fazendo anotações e

tomando decisões, foi levada a uma reunião a respeito de tatuagens com alguns homens da

Cavalaria da Guarda.

Após Waterloo, a família acreditara que Darius havia falecido, pois um oficial o vira cair e

ninguém o encontrara, vivo ou morto. Na época pensaram que saqueadores haviam roubado sua

identificação e o atirado numa vala comum. Essa agonia levara a mãe de Thea decidir que todos os

soldados deveriam ser tatuados. Quase todos achavam isso ridículo, mas ninguém poderia ignorar a

duquesa.

Thea brindou os três generais com chá, bolos e encanto, deixando o trabalho de

convencimento para a mãe.

Os generais citaram o problema dos custos.

A duquesa refutou o caso com uma lista de patronos que desejavam colaborar com dinheiro.

O general Thraves disse que era insensato fazer os homens se lembrarem da morte.

— Não sei como eles podem esquecer dela, diante do perigo que enfrentam — a duquesa

contestou.

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— Mas agora estamos em tempos de paz — o general Ellaston disse, presumido.

— Então por que conservar o Exército? — a duquesa perguntou.

Ellaston ficou vermelho.

— Temos a índia, o Canadá...

— Essas atividades não envolvem o perigo?

— Bem, claro...

— E também risco de morte?

— Menos, Vossa Graça, muito menos!

— Cavalheiros, se puderem me assegurar de que ficaremos livres de maiores conflitos

armados nos próximos trinta anos, abandonarei meu projeto. Mas também pedirei ao duque para

analisar os gastos do Exército com atenção.

Os três homens se entreolharam, aflitos, asseguraram à duquesa que o projeto seria

considerado imediatamente nos mais altos níveis e fugiram. Thea caiu na risada.

— Parvos — a duquesa comentou, retomando a xícara de chá. — As mulheres deveriam

administrar o Exército. Só nós temos experiência para alimentar, vestir e cuidar das pessoas.

— Pelo menos eles terão botas para marchar e comida para se alimentar antes de uma batalha.

— Eles não têm? — a duquesa alertou-se.

— Somente em casos isolados — Thea apressou-se em dizer. — E abastecer as tropas deve

ser difícil.

— Os desafios são feitos para serem superados. Não nasci para uma vida de inatividade, Thea

e você também não. Pense nisso ao considerar quem escolherá para marido.

Thea pegou uma bomba com creme.

— Escolher um que dará muito trabalho?

— Sabe que não quis dizer isso. Você pode combinar com um homem que tenha propósitos.

Um Wilberforce ou um Bali.

— Política me aborrece, mamãe. Prefiro lidar com problemas práticos. Hospitais para os

doentes e abrigos para os idosos.

— Em geral as leis estão sob esses problemas, querida, e a política faz as leis. As mulheres

também fariam um melhor trabalho nesse setor. Eu falei com a Sra. Beaumont, uma mulher muito

interessante. Ela e Beth Arden estão trabalhando em prol de mudanças na política eleitoral.

Oh, Deus. Nada de revolução social agora.

— Que mudanças? — Thea indagou.

— Conceder o voto para as mulheres.

— Mamãe!

— Aponte uma razão por que as mulheres não devem votar — a duquesa exigiu com uma

militância nova e aterrorizante.

— Por que não temos propriedades?

— Mesmo as mulheres que têm não podem votar. Damas nobres com títulos por descendência

ou decreto não têm direito de voto nem podem sentar-se na Câmara dos Lordes. O que justifica

isso?

Nada, mas Thea evitou gemer diante da perspectiva de sua mãe de lutar por tais direitos.

— Thea, nós temos grandes privilégio e poder. É nosso dever empregá-los.

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Thea concordou e saiu para fazer compras com amigas.

Algumas vezes ela invejava Maddy por não ter uma mãe engajada.

Sua alegria na Bond Street, porém, foi ofuscada por muitas conversas a respeito dos Cave e de

Darien, sobre Marcus e a doce Mary Wilmott. Caroline Camberley queria ir até Hanover Square

para ver a casa terrível.

— Imagino se o sangue ainda está nos degraus — ela disse e se arrepiou.

— Depois de seis anos, Caroline? — Thea perguntou. — Não seja tola!

— Desde esta manhã! — Caroline afirmou. — Você não soube? Uma criada saiu cedo e viu.

Thea sentiu um calafrio.

— Existe outro assassino?

— Bem, não que eu saiba. — Caroline sacudiu a cabeça.

— Então do que se trata? — Thea quis saber

— Uma brincadeira — Alesia explicou. — Uma maneira de mostrar para lorde Darien que ele

não é benquisto na nossa sociedade.

— Esta noite ele jantará na Mansão Yeovil. — Thea foi levada a falar por sua promessa e

também pelo ultraje.

Três pares de olhos a fitaram, estatelados.

— Thea! — Alesia foi a primeira a se recuperar. — Você terá de estar lá?

— Claro e não me importo nem um pouco. — Talvez fosse sincero. — Acho lorde Darien

uma companhia agradável e ele é um dos nossos nobres veteranos. Ele merece mais do que isso.

— Mas...

— Ele é um herói. — Thea contou algumas das façanhas de Darien.

— Muito louvável — Caroline expressou-se sem convicção.

— Da próxima vez que nos encontrarmos, você terá muito para nos contar — Alesia disse. —

Ainda bem que isso não é comigo.

Thea ficou agitada no caminho para casa e procurou a mãe. A duquesa já sabia a respeito do

sangue na porta de Darien. O boato se espalhara rapidamente.

— Tão insignificante.

— Eu não diria exatamente isso, mamãe.

— Tem razão. — A duquesa suspirou. — Isso remete ao passado e quer dizer que teremos de

trabalhar com firmeza. Espero que você tenha corrigido qualquer falsa impressão.

— O melhor que pude. Tentei abafar o caso com seus feitos militares.

— Excelente.

— Causa-me estranheza que Darien não tenha mencionado isso esta manhã.

— Esta manhã? — A mãe olhou-a com espanto.

Thea corou.

— Saí para cavalgar com Cully e o encontramos. Cully teve de ir embora e lorde Darien veio

comigo até aqui.

— Excelente — a mãe repetiu, para surpresa de Thea. — Isso vai criar a impressão correta.

— Não sei se alguém nos viu. Alguém da sociedade, quero dizer.

— Sempre existem os observadores. Agora vá se aprontar para o jantar. Quero vê-la bem

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bonita.

Thea foi para o quarto, pensativa.

O sangue deveria ser de algum animal, mas isso tornava a situação mais nebulosa. Como se a

restauração do nome dos Cave passasse de perigo de constrangimento para um perigo de verdade.

O que a fez desistir da ideia de usar o vestido vermelho, a cor do sangue. Pediu a Harriet o

vestido amarelo do ano anterior que fora confeccionado para uma novidade da época, o campo na

cidade. Tinha cortes simples, linhas encorpadas com poucos enfeites além de um avental de renda.

A ideia era parecer que fora feito para alguém passear com um cesto de flores silvestres, mas como

toda moda, o tecido diáfano não servia para nenhuma atividade prática.

Era uma criação singela, mas representava a antítese de tarefas sombrias e sangue nefando.

Thea completou o traje com uma fita nos cabelos soltos, joias em prata.

Os convidados seriam pessoas com conexões militares, políticas e diplomáticas que

provavelmente apreciariam as qualidades e realizações de Darien, e compartilhariam de alguns de

seus interesses. Contudo, Darien e ela seriam os mais jovens ali presentes e, portanto, formariam

um par. A duquesa decidira ignorar as convenções de formar pares baseados em posição social.

— Querida, Darien será um dos cavalheiros de mais alto status e poderia acabar com alguém

muito menos compatível do que você.

A mãe não considerou como ela se sentiria, mas Thea estava determinada a representar sua

parte prometida.

CCaappííttuulloo VVII

Darien notou a presença de Thea assim que ela entrou na sala de estar e, enquanto observava

seus menores movimentos, tentava manter uma conversa inteligente com lorde Castlereagh sobre a

reconstrução da França. Thea saudou os convidados com desenvoltura, e Darien notou que o vestido

amarelo rodado e de cintura alta disfarçava as curvas do corpo. Até mesmo o corpete era discreto e

escondia totalmente o busto.

Thea supunha que se vestindo como uma colegial a deixaria menos atraente?

Ela se aproximou e sorriu.

— Lorde Darien, é um prazer vê-lo esta noite.

Aquele era o prometido apoio irrestrito, nada mais.

Eles conversaram por um momento antes do jantar ser anunciado. Thea segurou no braço de

Darien para descer a escada.

— Mulheres não deviam usar cabelos soltos — ele comentou.

— Por que não?

— Isso as faz parecer recém-saídas da cama.

— E essa é outra coisa que um cavalheiro não deve dizer a uma dama.

— Nem mesmo como aviso?

— Não. De qualquer modo, você não conhece o costume das damas... nesse sentido. Para

dormir uma lady trança os cabelos ou prende-os numa touca.

Darien esforçou-se para não rir.

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— Verdade? Você fará isso na sua noite de núpcias?

— Nós não temos de discutir minha noite de núpcias.

— Claro, ela não será mesmo a nossa.

Thea enrubesceu.

— Ela jamais seria a nossa.

— Estamos discutindo de novo, o que é uma vergonha diante dos outros. Deveríamos estar

nos beijando e fazendo as pazes.

— Só quando os porcos criarem asas. — Thea deu um sorriso brilhante quando entraram na

iluminada sala de jantar.

Darien manteve um sorriso moderado e não retrucou.

Thea sentou-se, satisfeita por ter sido a última a falar, embora sem esquecer as palavras

inadequadas.

Sua noite de núpcias.

Ela já havia pensado nisso, imaginando quem seria seu marido e como a ocasião transcorreria.

Escutara promessas de prazer e advertências de horror, mas nunca refletira sobre o que faria com

seus cabelos.

Se Darien fosse seu marido, por algum motivo haveria de querer os cabelos soltos.

Era evidente que eles não se casariam, mas e se...?

Pare de pensar nessas coisas, ela se advertiu. Virou-se para o visconde Sidmouth e indagou a

respeito de reformas na propriedade dele.

Sob a orientação eficiente do duque e da duquesa, os assuntos durante o jantar foram variados

e interessantes, sempre visando o bem-estar de Darien. Falaram sobre a guerra com frequência para

lembrar a todos dos excelentes feitos militares do convidado de honra. Embora a boa vontade dos

presentes não fosse instantânea, Thea poderia afirmar que muitas barreiras haviam sido superadas.

Findo o jantar, as damas se dirigiram à sala de visitas para o chá e Thea tocou piano,

escutando ao mesmo tempo os cochichos como pano de fundo. Elas falaram pouco de Darien, um

dos principais beneméritos de Sarah Yeovil e não tocaram no assunto do sangue ou dos Wilmott.

Os cavalheiros não demoraram em vir ao salão. Thea cedeu o lugar ao piano para a Sra.

Poyntings e ajudou a mãe a servir outra rodada de chá, pois não costumavam chamar os criados

para isso. Com um sorriso, ela entregou a xícara para Darien.

Thea decidiu que a melhor forma de encará-lo seria como um aliado amigável, quase um

irmão.

— Você ainda está intacto — Thea comentou.

— Apenas beliscado nas beiras — Darien assentiu.

— Está tentando me dizer que os homens, após o jantar, preferiram assuntos importantes em

vez de cavalos e mulheres livres?

— Lady Thea, isso não é o tipo de assunto que um cavalheiro deve discutir com uma dama.

— Darien riu.

Thea desviou o olhar.

— Você certamente não pretende se demorar.

— E privar as damas de emoções perigosas? Suponho que tenho de circular e deleitar todos

com terror.

— É provável. — Thea fitou-o. — Precisa de uma escolta protetora?

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— Eu gostaria, mas seria um prova de medo e a minha ruína. — Darien afastou-se.

Ela observou-o por um momento, lutando contra uma súbita afeição que não deveria

acontecer. Juntou-se a duas mulheres que pareciam encantadas e tentou apresentar Darien como um

herói militar e um homem domesticado o suficiente para ser tedioso. Ao mesmo tempo, olhava e

analisava.

Considerou que os homens acabariam mudando de ideia. Darien passara a maior parte de sua

vida adulta no Exército e tinha qualidades que acabariam por conquistar a admiração masculina.

Também não poderia dizer que ele não tivesse habilidade de agradar às mulheres, como

demonstravam a Sra. Invamere e lady Sidmouth, mesmo chocadas de estar na presença de um Cave.

Como sua mãe dissera, o perigo emprestava encanto a um certo tipo de homens.

As palavras de Foxstall vieram-lhe à mente, mas talvez Darien não a estivesse manipulando

deliberadamente. Talvez fosse o jeito dele.

— Lady Thea?

Thea sobressaltou-se e tentou retomar a conversa que interrompera. Fora surpreendida

observando Darien.

— Minha querida, homens como esse são maridos terríveis, mas não há perigo. Imagine, uma

Debenham e um Cave. — A Sra. Invamere fitou-a com afetação e sufocou uma risada.

— Principalmente por que mal o conheço — Thea afirmou e sentiu-se desprezível.

Ela se levantou e aproximou-se de Darien que conversava com o Sr. Poyntings.

— Lorde Darien, não gostaria de ver algumas gravuras de Long Chart?

Com expressão irônica, Darien acedeu e eles foram até uma mesa onde se encontrava uma

pilha de gravuras.

— Procurando conhecer-me melhor?

Thea corou.

— Você tem ouvidos aguçados.

— Eles me são úteis mesmo depois de anos escutando tiros de canhão.

— Pensei que você precisasse de um descanso.

— Obrigado. — Darien observou-a. — Amarelo lhe cai bem, assim como o vermelho.

Thea novamente enrubesceu.

— Você usa cores pálidas com frequência.

— Francamente, Darien, isso é muito pessoal.

— Minha intenção foi de um elogio.

— Enquadrado numa crítica.

— Construtiva. Por que você tenta se manter em segundo plano?

— Não seja ridículo. — Thea abriu o álbum e indicou a primeira aquarela de sua casa em

Somerset que se estendia para adiante da elevação de terra dourada pelo sol. — Long Chart.

— Parece uma coroa.

— Suponho que sim. — Ela virou a próxima pintura da mesma paisagem, mas de outro

ângulo, incluindo o rio sinuoso e o lago.

— O cenário é natural? — Darien indagou.

— Não de todo, mas a zona rural é maravilhosa. Ele virou a pintura seguinte, uma vista

lateral.

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— Você se importará de abandonar isso quando se casar?

— Não.

Darien virou mais uma página, e Thea notou a elegância das mãos largas com unhas benfeitas.

— Como é sua propriedade rural? — Thea perguntou, olhando-o de perfil. — Tem melhorias?

— Não. — Ele virou outra página e desta vez apareceram os cisnes no lago. — Stours Court

foi construída no breve reinado de Jaime II, um péssimo presságio, e por um pobre arquiteto. É de

pedras marrom-acinzentadas e de proporções exageradas. Quando à propriedade, compreende uma

floresta e um pântano.

Thea riu.

— Não pode ser tão mau assim.

Darien deu um sorriso.

— Pode acreditar.

Thea virou a página seguinte, um detalhe dos jardins.

— E os jardins de Stours Court?

— Cobertos por vegetação excessiva.

— Posso entender a recente negligência, mas em um século seria possível corrigir falhas

estruturais.

Darien fitou-a.

— Sempre faltou dinheiro. O segundo visconde foi fiel aos Stuart por mais tempo do que o

necessário. Ele acabou se ajoelhando diante da rainha Anne, mas perdeu a oportunidade para ocupar

posições de destaque e receber favorecimentos. O terceiro flertou com os Stuart em 1715 e depois

apoiou o Hanover, mas a indecisão não granjeou a estima do novo rei Jorge. Meu avô, Devil Cave,

o Satã Cave, foi surpreendido na cama com uma das amantes de Jorge II, antes do rei se cansar dela.

Os Cave não foram tão marcados pela maldade quanto pela inabilidade política.

— É uma triste história — Thea afirmou, rindo.

— E não é? — Darien beijou-lhe a mão.

Devido às pessoas próximas, Thea não pôde tirar a mão bruscamente e o fez quase

timidamente, como se estivesse satisfeita.

— Darien, lembre-se de que isso é uma encenação.

— E qual é o meu papel?

— O de pretenso noivo.

— Se eu pudesse, ficaria noivo de milady. Case-se comigo, adorada.

Thea abanou-se com o leque.

— Estou receosa de que você queira meu dote para restaurar suas propriedades decrépitas.

— Não são decrépitas, minha pérola preciosa.

Thea arregalou os olhos, lutando contra o riso.

— E o pântano e as florestas sem cuidados?

— Apenas mal geridas, meu querubim.

— Querubim!

— Serafim e cega mais que o sol.

— Pare com isso.

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— Está fazendo o efeito desejado.

Thea fitou-o com severidade. Era de se supor que tudo fora calculado.

— Suas propriedades são decrépitas. Minha mãe mandou investigá-lo e tem um relatório.

— Muito inteligente.

— Não está preocupado sobre o que foi descoberto? Darien deu um meio sorriso.

— Minha cara Thea, quando um homem é condenado como louco e vil, quando as pessoas o

evitam com medo de um provável ataque, não há segredos piores para serem desvendados.

Darien segurou Thea pela mão e levou-a de volta à roda de convidados, muitos dos quais os

observavam com interesse.

Ela não queria demonstrar envolvimento amoroso com Darien, mas era o que ele conseguira.

Os comentários em Londres no dia seguinte seriam que a Ilustre Inatingível não era tão intocável e

que estava apaixonada pelo visconde Darien.

E Thea fez a única coisa que lhe pareceu plausível, agiu com naturalidade. Quando o último

convidado foi embora, a dor de cabeça era forte.

— Tudo deu certo. — A mãe disfarçou um bocejo.

— Assim espero — Thea respondeu. — Tentei ser simpática com Darien.

— E o fez com bastante convicção.

Thea não percebeu sarcasmo. Talvez houvesse exagerado o incidente por estar irritada, por ele

tê-la enganado e usado. Novamente. E então sofria como uma tola.

— Podemos confiar nessas pessoas, pois pelo menos não encorajarão absurdos — a duquesa

afirmou, enquanto caminhavam para os respectivos aposentos. — Alguns, notadamente os homens,

falarão bem de Darien, mas duvido de que chegarão a ajudá-lo. Precisamos de apoio mais efetivo.

— Estou fazendo o que posso — Thea protestou.

— Está se saindo de maneira esplêndida.

A duquesa entrou com na filha nos aposentos de Thea e Harriet retirou-se para o quarto de

vestir, a fim de deixá-las à vontade.

— As atenções dele com você me pareceram exageradas e não me parece justo, filha, carregar

o fardo sozinha — a duquesa falou. — Há um limite para o que posso fazer, mesmo todos sabendo

do nosso interesse. Está na hora da Confraria assumir o comando.

— Darien concordará com isso?

Thea lembrou-se da aversão de Darien ao grupo.

— E por que não?

— Por causa do incidente no colégio.

— Ah, isso foi há muito tempo. — A duquesa beijou Thea. — Você foi esplêndida, mas

entregar o caso à Confraria a deixará mais livre para aproveitar a temporada.

A mãe saiu e Thea suspirou. Certa de não se importar com os divertimentos, sentou-se e

escreveu um recado pedindo para Darien acompanhá-la na cavalgada matinal do dia seguinte.

Precisava convencê-lo a aceitar a ajuda da Confraria.

Naquela manhã insípida em que ameaçava chover, Harriet teve de acordar Thea. Ela saiu da

cama, tomou o desjejum o vestiu-se.

Conforme o pedido, seu cavalo fora trazido para frente da casa, mas Thea não saiu até Darien

aparecer na Great Charles Street montado no cavalo cinzento. O cavalariço ajudou-a a montar no

instante em que Darien a alcançou, cumprimentando-a com um sorriso enquanto erguia o chapéu.

Eles foram em direção ao St. James Park, ouvindo o barulho dos cascos nas pedras arredondadas.

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— Então milady pretende renegociar?

— Não.

Darien ergueu as sobrancelhas.

— Não conseguiu suportar mais do que oito horas sem a minha presença?

— Claro que não! Por que tanta suspeita?

— Você afirmou que sempre há uma disputa entre nós.

— Em alguns assuntos. Em outros, somos aliados.

Uma carroça cheia de mercadorias, com a cobertura agitada pelo vento, puxada por dois

cavalos enormes e cansados, aproximou-se deles. O cavalo de Thea empacou, mas ela conseguiu

afastá-lo para o lado, o mesmo acontecendo com Darien. Quando a carroça passou, eles

continuaram o passeio.

— Esse é um encontro de aliados? — ele indagou. — E com que propósito?

Thea explicou as razões da mãe, mas não conseguiu suavizar o ponto-final, a não ser

tornando-o provisório.

— Então mamãe pretende levar o caso à Confraria.

Eles entravam no parque.

— Não. — Darien adiantou-se a um meio galope.

Thea alcançou-o e ele acabou diminuindo o passo até parar.

— A resposta ainda é não.

— Eles constituem as melhores armas que temos nas mãos. — Thea protestou.

O vento levantou o véu do rosto de Thea, que o prendeu na gola alta de seu costume.

— Se essa batalha tiver alguma importância para você, é preciso aceitar qualquer meio para

vencê-la. — Pelos lábios estreitados, Thea viu que o atingira. — Pense em usá-los, como se

estivessem acorrentados e chicoteados.

Darien riu com amargura.

— Tento não cultivar a ilusão. Eles me penalizaram.

— Sim, mas isso foi no colégio e eles acreditam que estão em débito com você. — Thea

decidiu que a franqueza seria o melhor caminho. — E provavelmente pagarão deixando-o sozinho,

se você insistir.

— Mulher diabólica. — Darien incitou o cavalo para frente. — O que terei de fazer?

— Isso é com você e com eles, mas o principal é você ser visto em companhia dos membros

da Confraria.

— Por que isso lhe importa?

— Fizemos um acordo e vejo isso como parte de meu apoio irrestrito. Sei que você rejeita a

ideia, mas é preciso aceitá-la.

— Por que a ajuda deles é importante, Thea?

Thea desviou o olhar.

— Isso diminuirá as exigências em meu tempo disponível.

— Então se trata de uma barganha.

Ela se virou.

— Oh, não!

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— Você não sabe o que eu quero em troca.

— E você não tem o direito de pedir nada. Estou lhe fazendo um favor.

— Acabou de admitir que se livrará de um peso e meu preço por sua liberdade será me

acompanhar a um baile a fantasias no Opera House.

Thea quedou-se, boquiaberta.

— Você realmente enlouqueceu. — Ela se arrependeu por suas palavras, mas Darien nada

disse. — Está ciente de que lá se sucedem escândalos?

— Sim.

— Então sabe que não posso atendê-lo.

— Claro que pode e esse é meu preço.

— Quero que se afogue!

— Sou um bom nadador.

— Amarre pedras em suas botas.

Darien não conteve o riso.

— Desumana, mas não tanto como eu. Se eu suportar a Confraria com polidez, você virá

comigo ao baile a fantasia no Opera House daqui a uma semana, na segunda-feira.

— Na segunda irei ao baile dos Winstanley onde haverá fogos de artifício à meia-noite.

— Poderei providenciar fogos de artifício à meia-noite.

Thea arrepiou-se.

— Não seja desagradável.

— Essa parece ser minha natureza. Às onze.

— Os fogos têm de ser à meia-noite.

— Na segunda, às onze, virei buscá-la para irmos ao baile de máscaras.

— Espero que chova a cântaros. — Thea saiu a meio galope.

Darien aproximou-se.

— Quer se molhar?

— Irei ao baile dos Winstanley!

— E perderá os fogos por que uma deusa cruel ordenou que chovesse.

Thea parou o cavalo.

— Você deixa qualquer um furioso!

— Eu tento. Não há escapatória, Thea. Esse é meu preço para fazer sua vontade.

O véu escapou, e Thea tornou a prendê-lo.

— Estou apenas tentando convencê-lo para seu próprio bem!

— Então recuse meu preço e não falaremos mais disso.

— O mesmo truque da última vez — ela retrucou, áspera.

— Sei quando posso ganhar.

Thea estreitou os olhos.

— Você está blefando.

— Minha deusa, acredite em mim. Eu nunca blefo.

Thea acreditava e gostaria de deixá-lo afundar, mas não podia. Sua mãe, que não desistia

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facilmente, contava com ela como maior trunfo. Além do mais era preciso admitir que se importava

com Darien.

— Não será possível. Se eu der alguma desculpa para não ir ao baile, acha que não notariam

se eu saísse no meio da noite?

— Pobre princesa aprisionada.

— Não sou prisioneira, mas qualquer casa é protegida dos invasores. Quem guarda a entrada,

guarda a saída. Como você sairia secretamente à noite?

Darien incitou o cavalo a uma marcha lenta.

— Com facilidade. Tenho poucos criados que dormem cedo.

Thea acompanhou-o.

— Nós temos muitos e quando a família está fora, um lacaio espera no hall por nosso retorno.

— E a porta dos fundos?

— Os criados dormem perto dela e às onze horas alguém ainda pode estar acordado.

— E as portas do jardim?

Thea não pensara nisso.

— O jardim é murado.

— Deve haver uma maneira de passar pelo muro. Os jardineiros não andam pela casa, andam?

Resoluto. Teimoso. Cabeça-dura.

— A parte dos fundos dos jardins faz parte da estrebaria — Thea falou com satisfação —, e

alguns dos palafreneiros certamente ficarão acordados, esperando o coche voltar.

— Pois aposto que deve haver uma maneira de sair furtivamente.

— Não vou sair de minha casa furtivamente à noite.

— Por que não?

Ela não respondeu.

— Eu gostaria de nunca tê-lo conhecido.

— Um sentimento familiar, com certeza. Mas você precisa de uma aventura e, se acreditar

que é possível, poderá afastar as teias de aranha que a envolvem.

— Por que eu haveria de arriscar-me ao perigo?

— Pela excitação.

Thea sorriu, triunfante.

— Então somos muito diferentes, Darien. Não vejo emoções no perigo.

— Sem experiência não dá para saber.

— Eu o experimentei.

Um brilho no olhar sorridente sugeriu várias respostas não dadas.

— Thea — ele falou com seriedade —, posso protegê-la, mesmo à noite. Acredita nisso?

— De salteadores, sim. De você, não.

— Certo. E se eu prometer comportar-me como se fosse seu irmão?

— Provocar-me até a morte?

— Pobre irmã. Não seja covarde.

— Se nunca teve irmãos mais novos, como é que pode saber? Thea sufocou um grito de

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frustração e fez o cavalo prosseguir.

Tentava escapar, mas Darien aproximou-se e acompanhou-a.

— Se não fizer isso, haverá de arrepender-se até o final da vida.

— Absurdo!

Mas as palavras de Darien atingiram o alvo.

Se considerasse a própria vida, Thea nada veria além do normal, do correto, do seguro e do

sensato. Nem mesmo galopara no parque antes de conhecer Darien.

E isso nunca lhe parecera uma falha.

Não era uma falha. Pretendia que seu futuro combinasse com o passado normal, correto,

seguro e sensato. Com isso em mente, diminuiu a marcha do cavalo.

Mas veio-lhe à mente a ideia de Maddy de ser gloriosamente insana pelo menos uma vez.

Parou e olhou para Darien. Tão atraente em sua energia, apesar das cicatrizes. Tão poderoso.

Sim, ele poderia protegê-la. Pelo menos, dos outros.

— Mesmo que eu desse uma desculpa para não ir ao baile de lady Winstanley, por exemplo,

alegando uma dor de cabeça, é possível que minha criada venha a meu quarto — ela se ouviu dizer.

— Às onze? — Não havia nota de triunfo na voz de Darien. Ele era inteligente e tão louco

quanto ela.

— Não — Thea admitiu. — Se eu não tiver saído, Harriet provavelmente estará na cama a

uma hora dessas. Mas minha mãe poderá aparecer lá quando voltar.

Ela queria um motivo para não ir ou um motivo para ir?

— Isso aconteceria nas primeiras horas da manhã, quando já teríamos voltado. Ou então um

rolo debaixo de suas cobertas resolveria o caso.

— Você parece um mascate que importuna as pessoas para comprar porcarias vistosas.

— Nos bailes a fantasia do Opera House há uma mistura de pessoas de todas as classes.

— E isso deve me atrair?

— Ora, vamos, você é assim tão altaneira? Será que nunca foi a um baile de máscaras?

— Não. — A confissão de repente pareceu vergonhosa.

— Pobre princesa, escape de sua torre.

Thea se sentia confusa e sabia que não deveria deixar-se importunar com desafios infantis,

mas ele a fazia sentir-se muito sem-graça.

— Na próxima sexta-feira se realizará o baile a fantasia de lady Harroving.

— É mesmo?

— Eu poderia... — Thea arriscou-se. — Poderíamos ir lá se você aceitar a ajuda da Confraria.

Isso se minha mãe permitir e eu não ter de sair às escondidas de minha casa.

A fisionomia de Darien permaneceu inescrutável.

— Está me oferecendo imitação por ouro. Um baile a fantasia respeitável não é muito ousado.

— Lady Harroving é mais ou menos respeitável. Minha mãe deixou o convite de lado.

— Mas se você quiser ir, a duquesa permitirá?

— Provavelmente. Você terá de fazer isso, não há escolha.

— Não superestime a própria mão, minha deusa.

O bom-senso avisou-a para não retrucar. Darien, teimoso e exasperante, quase recusara. O que

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tornava fascinante o fato de ele estar quase aceitando.

— Por que isso é tão importante para você? Por que fazer algo que não deseja? — Thea

pensou que ele não fosse responder.

— Meu irmão.

— Marcus?

Darien riu.

— Oh, não. É Frank, meu irmão mais novo.

— O oficial da Marinha?

Ele a fitou, absorto.

— Pesquisa da duquesa?

— Ele está no relatório, mas Maria Vandeimen também o mencionou. Existe algum segredo

nisso?

— De jeito nenhum. Frank se apaixonou, mas o pai de sua amada não permite que ela se case

com um Cave. Admito que seria mais agradável evitar os olhares de desprezo e repulsa nos salões,

mas conseguir uma maneira de Frank se casar é minha meta principal.

— Por isso você tentou forçar um noivado. — De repente, Thea compreendeu tudo. — Se

ficássemos noivos, o pai da noiva de seu irmão não poderia objetar nada.

— Almirante Dynnevor. Ele apenas não se oporia, como provavelmente empurraria a filha

para o altar, salivando pela ideia de uma conexão com os Yeovil. Mas eu permiti que você me

fizesse desistir do noivado.

Aquilo também era fascinante.

— E por não ser real, não poderia ser considerada uma artimanha clandestina?

— Tudo é válido no amor e na guerra, e os dois resumem o caso.

— Então por que me deixou renegociar? — Thea fitou-o com cuidado.

— Foi um momento de fraqueza. Muito bem, aceitarei a ajuda da Confraria e você irá ao baile

dos Harroving. Se lhe agradar, virá comigo ao do Opera House.

— Você nunca desiste, não é? Como saberá se gostei ou não?

— Confiarei na sua palavra.

Thea sentiu gotas de chuva no vento frio. Não deviam ser as primeiras, simplesmente não as

notara antes. Era preciso voltar logo para casa, mas algumas perguntas tinham de ser respondidas.

— Muito bem, o que você fará quando a sua meta for alcançada? Casar-se?

— Esse é um horizonte muito longínquo. Veja, está chovendo. Pelo menos vamos sair do

parque.

Darien galopou em direção dos portões, e Thea teve de segui-lo. Chegaram na rua antes da

chuva engrossar e atingiram os estábulos de Yeovil a tempo de evitar a tempestade. Os cavalariços

seguraram os cavalos e um deles ajudou Thea a apear. Ela e Darien entraram na cocheira, arfando e

rindo.

Qual seria o verdadeiro Darien? O sombrio ou o risonho?

— Gostaria de tomar o desjejum conosco?

— E pingar pela casa inteira?

— Se for para casa agora, ficará ainda mais molhado.

— Não seria a primeira vez. Avise-me se sua mãe permitir a ida ao baile a fantasia.

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— E se ela não permitir?

— Então teremos de renegociar. — Darien fitou-a, beijou-lhe rapidamente os lábios, saiu na

chuva e montou para se afastar.

Thea tocou os lábios. Os dele, frios e úmidos, haviam provocado uma sensação de calor

intenso. Era muito injusto alguém ser capaz de fazer isso.

Ela usou um dos guarda-chuvas da estrebaria, correu para casa e entrou pela porta da copa.

No quarto, tirou a roupa molhada, lembrando-se dos tópicos daquela manhã.

Desafio. Vitória. Risos.

Na verdade, não queria que Darien ocupasse o tempo com os membros da Confraria em

detrimento dela. Considerou o novo acordo que haviam feito. Tomou o café da manhã, desejando

que a mãe acordasse logo, sem saber se desejava permissão para ir ao baile ou a proteção da recusa.

Homem impossível!

Thea esperou a mãe tomar o desjejum e foi até o quarto dela.

— Você saiu com esse tempo? — A duquesa olhou a chuva que escorria pela janela.

— A chuva começou no final do passeio. E o baile, mamãe?

— Você encontrou novamente Darien por acaso? — a mãe perguntou, sabendo que não era

verdade.

— Não, eu o convidei. Eu queria persuadi-lo a aceitar a ajuda da Confraria, sabendo que isso

não o agradava.

— Verdade? Você o está conhecendo muito bem, não é?

Thea não entendeu o significado da pergunta e voltou à carga.

— Posso ir ao baile dos Harroving com ele?

— Não vejo por que não. Será muito mais divertido para você do que o jantar dos Frogmorton

e depois a Sociedade de Música Antiga. E Darien vai gostar de ficar anônimo uma vez.

Seria o anonimato seu principal motivo para a insistência de comparecer a um baile de

máscaras?

— Ele terá de se desmascarar à meia-noite — Thea considerou.

— Depois de ser admirado por muitas damas. E difícil voltar para a desaprovação gelada

depois de um flerte. Contudo, Darien deverá vestir o traje apropriado. Algo romântico, mas

respeitável. Acha que ele fará isso?

— Não acredito. Ele pode não ser vil, mas é inegavelmente malicioso.

A mãe ergueu as sobrancelhas.

— Pensei que você quisesse ir ao baile.

— Eu quero, até certo ponto. Mas eu preciso mandar fazer um vestido.

— Um bom traje leva tempo para ser confeccionado. No sótão há vários meus para escolher.

— Mamãe, a senhora frequentava baile de máscaras?

— Claro. Mandarei uma mensagem para Darien para saber o traje que ele escolheu e então

veremos qual dos meus que melhor se adapta. — A duquesa sentou-se junto à escrivaninha e

escreveu algumas palavras e secou a tinta com areia. — É um divertimento delicioso quando

convenientemente organizado.

— O que lady Harroving não fará.

— Maria Harroving não é como deveria ser, mas duvido que ela permita extremos em sua

casa. — A duquesa dobrou e selou a carta. — Sinto muito, querida, você perdeu muito. Pensei em

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trazê-la a Londres em 1814, mas você era muito jovem e nunca imaginei os problemas que daí

decorreriam. — Ela bateu no papel com um dedo. — Acha que nossos problemas a tornaram

excessivamente prudente, querida?

Crítica da própria mãe? Thea enrubesceu, com raiva.

— Se a senhora sugere que prefiro agir com decoro...

— Quero dizer que você se reprime numa idade em que um pouco de exuberância pareceria

natural.

— Em outras palavras, a senhora desejaria que eu fosse como Maddy.

— Não, por Deus. — A duquesa levantou-se para abraçá-la. — Não importa, querida. Eu só

temo que a necessidade de ficar protegida a prenderá na armadilha de uma vida triste.

— Pois me parece que procurar o perigo faria a vida ainda mais triste.

A mãe fez uma careta que poderia ser de irritação.

— Você não entende, mas talvez um baile de máscaras poderia mostrar-lhe o caminho certo.

Vamos escolher o traje.

A duquesa mandou um lacaio levar a mensagem e depois chamou Harriet e mais duas criadas.

Thea foi atrás delas, sentindo-se ofendida. Comportava-se com bom-senso e decoro e ganhara o

apelido de Ilustre Inatingível, o que nunca fora um cumprimento.

Maddy, sempre esfuziante, era popular.

E só faltava a mãe chamá-la de excessivamente prudente e insípida. Pois bem. Escolheria o

traje mais escandaloso que a mãe tivesse. Riu consigo mesma. Como se a mãe tivesse algo

parecido.

Decidiu que, se gostasse da festa dos Harroving, manteria a promessa. Escaparia de casa e iria

ao Opera House com Darien. E se acontecesse o pior, a culpa seria de sua mãe.

A mãe destrancou uma porta no andar superior e entrou num recinto onde havia muitas

caixas, algumas com o rótulo de Fantasias.

— Quantas — Thea admirou-se.

— Algumas são de seu pai e outras de Darius. Gravenham não gostava de baile de máscaras.

— Gravenham é um cão idiota.

— Thea!

O protesto na certa era por ela ter se expressado na frente dos criados. O irmão mais velho,

que herdara o título de marquês de Gravenham, era mesmo um idiota. Certa ocasião Thea dissera

que um nome desses desde o nascimento era uma influência opressora. A mãe afirmara que o duque

nascera com o mesmo peso nos ombros e não era nenhum tolo.

Thea lembrava-se de ter duvidado disso e olhando as caixas com as fantasias, imaginou se os

pais haviam sido exuberantes quando jovens.

Eles haviam se beijado como...? E ainda se beijariam como...?

Esqueceu os pensamentos e ajudou as criadas a removerem as caixas superiores. Era como

uma caça ao tesouro, ainda mais ao ver moedas de ouro.

— O que é isso? — perguntou ao ver o brilho dentro da musselina que embrulhava os trajes

de uma das caixas.

Desembrulhou o pacote e piscou ao ver um corpete vistoso de cetim amarelo e verde com

lantejoulas douradas. As moedas, leves e falsas, faziam parte de um cinto.

— A minha fantasia de favorita do pirata! — a duquesa se animou.

— Favorita de pirata? — Thea repetiu.

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— Há muito tempo houve um baile de bucaneiros em Long Chart e foi lá que conheci seu pai.

— A duquesa suspirou. — Uma bela fantasia, tem até um punhal. Você gostaria de vesti-la?

Thea tirou a saia de cetim escarlate com debruns dourados e constatou que a barra não

chegava aos pés.

— Creio que não. — Tornou a embrulhar a indumentária, um reflexo dos dias de juventude de

seus pais.

— O que acha da rainha Elizabeth? — a duquesa perguntou, exibindo um traje de brocado.

— Parece quente e pesado.

— E era, mesmo em se tratando de um evento de inverno. O que acha desse? — A duquesa

tirou uma túnica de tecido branco da caixa com uma das mãos e uma peça prateada com a outra.

— A deusa Minerva.

Deusa. A fantasia imediatamente encantou Thea.

— O que é isso? — ela perguntou, segurando o tubo prateado. Era leve, feito de feltro e com

uma fina lâmina de metal por cima.

— A armadura — a mãe respondeu. — Em estilo romano, a parte superior do corpo. Diz a

lenda que Minerva saiu da cabeça de Júpiter, já adulta e revestida de armadura completa.

Thea entendeu como olhar o objeto que tinha nas mãos. Era uma espécie de corpete feito para

adaptar-se ao busto feminino, curvo em cada detalhe.

— Mamãe, a senhora usou isto que deixa tudo à mostra?

A mãe corou, com olhar brilhante.

— A túnica vai por cima da armadura. — Ela mostrou a peça branca, sem mangas e com

gregas na barra.

— Mas ela é quase transparente e ficarei nua da cintura para baixo.

— Você usará um camisão por baixo e há também uma saia de metal. — A duquesa achou a

peça feita com tiras de metal.

— Mas ela mal chega aos joelhos! — Thea protestou.

—: Thea, isso é um baile a fantasia e não uma festa no Almack. — A duquesa olhou em volta

e apontou outra pilha de caixas com a inscrição: Adornos de cabeça. — Ali há um elmo — disse a

uma das criadas. — Grande, prateado, com uma coruja no alto.

— Coruja? — Thea espantou-se.

— O símbolo de Minerva, da sabedoria. Eu deveria carregá-la, mas havia uma lança para ser

levada. Deve estar naquele canto. — Apontou para outra criada. — Por isso foi colocada no elmo.

Thea fitou o corpete prateado de peitos firmes, a saia de metal, e o tecido transparente que

pouco escondia. Prometera a si mesma usar o traje mais escandaloso...

Era preciso cuidado com as promessas. Quando ela aprenderia?

A duquesa foi até a primeira caixa e tirou de dentro um par de sandálias romanas com longas

fitas prateadas que deveriam ser amarradas até os joelhos e que ficariam expostas sob a saia

mínima.

Thea deixou de lado a armadura e segurou a túnica diante do próprio corpo. Olhou para baixo

e viu que a barra tocava no chão.

— O cinto — a mãe se lembrou. — Há uma corrente de prata no cofre.

A túnica a cobriria, e pelo menos disfarçaria a armadura e as pernas, mas os braços ficariam

desnudos.

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— Sem luvas — Thea comentou e a mãe riu.

— Mas com braceletes e braçadeiras que também estão no cofre. A fantasia combinará com

você, querida, com sua dignidade e sabedoria, características de Minerva.

O cumprimento pareceu uma tolice, mas só havia uma decisão possível.

— Está bem, mamãe, vamos levar isto para baixo e vou experimentá-la.

— A senhora realmente vestiu isso, mamãe? — Thea perguntou, olhando-se ao espelho.

— Duas vezes — a duquesa afirmou, segurando a lança.

Ou seria uma alabarda? Na ponta, um ferro largo e pontiagudo, atravessado por outro em

forma de meia-lua.

— Tenho boas recordações da fantasia de pirata — a duquesa afirmou —, mas a de Minerva

era a minha favorita. É mais fácil de interpretar esse papel e é preciso apenas memorizar algumas

respostas inteligentes para quem indagar a respeito da sabedoria de Minerva.

— Cuidados com o manejo das lâminas pelas duquesas?

— Nunca tive de atacar ninguém. — A mãe riu. — Se quer saber, quando jovem, eu era muito

parecida com você e tinha também essa cintura fina.

E um busto volumoso, Thea pensou satisfeita que o corpete ficaria um pouco largo. Isso

diminuía a sensação de que o busto estaria em evidência por causa da cintura fina. Acostumada a

vestidos de cintura alta, a fantasia pareceu-lhe mais chocante do que as de decote bem baixos. E

refletiu como a mãe tivera coragem de usá-la.

Na certa, naquela época, as jovens damas estavam acostumadas a mostrar as formas até a

cintura, mas mesmo assim...

No momento usava a saia e a camisa, mas ambas chegavam até os joelhos. Poderia mostrar as

pernas em público?

Sentou-se para Harriet amarrar as sandálias, mas quando se ergueu e olhou, concluiu que as

fitas cruzadas na perna não garantiam muita decência. Pegou a túnica, pensando em cobrir-se. Foi

quando descobriu que a peça era aberta na frente.

A mãe tratou de colocar a corrente prateada na cintura da filha, mas o tecido diáfano ficava

aberto em cima revelando parte do busto prateado, e embaixo as pernas sob os joelhos.

A senhora vestiu isso, mamãe?

Trêmula, Thea não sentia o chão sob os pés. Sempre tentara comportar-se com decência e

naquele momento não sabia o que isso representava.

Maria Harroving tinha uma reputação sombria, mas era aceita em toda parte.

Maddy chocava as pessoas, mas não era excluída.

A duquesa de Yeovil, epítome da respeitabilidade, fora a bailes fantasiada de favorita do

pirata e de Minerva seminua.

Muito bem, estava na hora de mudanças.

Uma criada trouxe-lhe o elmo, uma ridícula tigela grande de prata que cobriria seus cabelos

em conjunto com uma máscara que passava por cima do nariz, faces e deixava os olhos a

descoberto.

Por cima de tudo, a pequena coruja prateada e com plumas. A mãe ajudou-a a pôr o elmo que

devia ser feito de cortiça. Dentro, era acolchoado e bastante confortável.

— Ficará muito quente, mamãe, e como poderei dançar com isso?

— Com dificuldade, mas depois da hora de tirar as máscaras haverá muito tempo para dançar.

— A duquesa pôs a alabarda na mão de Thea. — Pronto. Ah, quantas memórias daquele tempo.

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Thea olhou-se outra vez no espelho e sentiu-se diferente. Como se pudesse ter aventuras e

talvez um pouco de insanidade excitante, e fosse merecedora de outro beijo intenso. Admitiu estar

desapontada por Darien não haver tentado beijá-la de novo.

Ele não queria?

Não deveria pensar nisso. Ela exigiria um beijo perfeito como recompensa pelo que fizera.

Por que sempre ele deveria ditar as regras?

Desejou que não faltasse quase uma semana para o evento.

Foram dias frustrantes.

Naquela noite, ela e a família foram ao teatro com Cully, Avonfort e Débora, irmã dele.

Darien estava presente, em companhia de outras pessoas. O plano estava em andamento e Darien se

encontrava no camarote do duque de Belcraven que ficava do lado oposto do palco onde se situava

o camarote dos Yeovil. Apesar da distância, a visão de um para outro era excelente.

O duque e a duquesa de Belcraven estavam presentes, assim como o herdeiro, marquês de

Arden e a marquesa. Arden fazia parte da Confraria, mas poucos sabiam do plano. Pensariam em

Darien acompanhando outra família da elite.

Darien cumpria sua parte no acordo e quando olhou para Thea, cumprimentou-a com um

gesto de cabeça como se dissesse que havia cumprido a promessa. Thea cerrava os dentes diante

dos comentários de Avonfort sobre cães raivosos e sangue nos degraus.

— Deus — ele disse no segundo intervalo enquanto se encaminhavam para a galeria. — O

que Bali está fazendo aqui?

Sir Stephen e lady Bali entraram no camarote dos Belcraven para conversar com Darien.

Outro membro da Confraria e, dessa vez, um político renomado.

— É possível que ele pense em recrutar Darien para a festa da reforma — Thea disse

enquanto saíam do camarote,

— Absurdo perigoso — Avonfort declarou.

— Recrutá-lo?

— A reforma.

— Por quê? — Thea espantou-se.

— Não poderia haver ocasião pior para mudanças do que essa com tumultos e ações violentas

a cada passo.

—Talvez os tumultos e as ações violentas sejam sinal de que as mudanças são necessárias —

Thea ponderou.

— Só uma mulher para ter uma ideia tão tola.

Thea teve de aceitar que aquele não era o momento propício para discutir.

— Chapéus e enfeites são muito mais importantes.

Avonfort não entendeu o sarcasmo de Thea e sorriu com indulgência.

— Qualquer coisa que a faça mais bela, minha querida.

Se o leque fosse uma pistola, Thea poderia atirar nele. Darien teria entendido, mas também

jamais teria ideias tão estreitas. A despeito de suas muitas falhas, ele tinha um entendimento rápido

e uma mente flexível.

Com certeza ela não se casaria com Avonfort, o que não a deixava satisfeita. Também não

poderia desposar um Cave. Havia pouco tempo, seu futuro parecera sólido, estável e ordenado. De

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repente encarava a incerteza e o caos.

Minha vida estava em perfeita ordem até Darien aparecer em cena, homem detestável!

Quando voltaram ao camarote, dois homens se despediam de Darien no camarote dos

Belcraven. Um deles era grisalho e ligeiramente gordo, o outro era mais jovem, elegante e tinha

cabelos negros.

— Aquele não é o conde de Charrington? — Thea perguntou. O conde, síntese da elegância e

sofisticação, era admirado por Avonfort.

— Com o embaixador da Áustria! — Avonfort exclamou. — Na certa não o agradou ter de

conversar com Darien,

No mesmo instante o homem grisalho riu e bateu nas costas de Darien.

— Na certa, ele o conhece da guerra — Thea afirmou, tentando não sorrir com afetação.

Estava impressionada. O conde de Charrington fazia parte da Confraria. Mesmo criado em

círculos diplomáticos, não poderia forçar o embaixador a encontros indesejados ou fazê-lo

demonstrar interesse fingido. Ao sentar-se, notou que Darien estava satisfeito.

No intervalo seguinte, três oficiais militares de alta patente entraram no camarote de

Belcraven e saíram com Darien, conversando e rindo.

Thea e a mãe se entreolharam e sorriram.

— Muito satisfatório — a duquesa afirmou.

Era, mas sob o ponto de vista de Thea aquela fora uma noite maçante e desapontadora.

No dia seguinte, domingo, ela e os pais assistiram ao serviço religioso na igreja St. George,

em Hanover Square, como faziam habitualmente. A igreja da moda não ficava situada na quadra,

mas ficava próximo o suficiente para lorde Darien frequentá-la. O plano seria demonstrarem

novamente benevolência e Thea foi para a igreja com ansiedade incomum. Queria discutir o triunfo

da noite anterior e como Darien se sentia em relação à Confraria.

Viu Darien do outro lado e notou que várias pessoas estavam inquietas. Os residentes em

Hanover Square tinham bons motivos para desconfiar de um Cave. Um deles até poderia ser o

responsável pelo sangue nos degraus.

— Mamãe — Thea murmurou —, não houve mais sangue na casa de Darien?

— Não, mas a Confraria deixou pessoas vigiando a casa à noite.

— Mesmo antes de ontem?

— Sim.

Thea esperava que ele nunca soubesse disso.

Darien estava com um jovem gordo que usava roupas ridículas que não deveria ser seu

querido irmão, pois não ostentava uniforme. Quem seria?

Depois do culto, a duquesa foi falar com Darien que apresentou o companheiro como sr.

Uppington, um subalterno de Darien no regimento. Como explicação, deixava muito a desejar. O

jovem parecia bastante tolo e disposto a agradar.

Thea não pôde conversar com Darien a sós. A duquesa convidou Darien e o amigo para o

jantar de domingo que era realizado no final da tarde, mas eles já haviam aceitado o convite de

Maria Vandeimen.

Que injustiça!

Darien não tinha idéia por que sua deusa parecia contrariada e seria capaz de matar para

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descobrir do que se tratava. Mas com Pup a seu lado, não podia abandoná-lo sem que ocorresse um

contratempo. Na noite anterior Pup fora a uma briga de galo e haviam cortado o bolso dele

roubando-lhe o relógio. Darien, muito ocupado, precisava de um guarda, ou uma esposa, e Maria se

oferecera para ajudá-lo.

No trajeto para a casa de Van, ele procurou preparar o terreno.

— Então, Pup, quais são seus planos?

— Planos? — Pup repetiu como se a palavra pudesse ser um novo jogo. — Astley?

Astley era o teatro conhecido por apresentar espetáculos circenses e exibições variadas.

— Estou me referindo a seu futuro. Agora que experimentou o gosto de Londres, está pronto

para se estabelecer?

— Estabelecer?

Darien procurou não se mostrar impaciente.

— Pup, você agora é dono de uma pequena fortuna. Está na hora de pensar em uma casa, uma

propriedade, uma esposa.

— Esposa?

Uma pessoa sensível que cuide de você como a criança crescida que é.

— Uma mulher bonita que encontrará satisfação em agradá-lo.

— Ah, uma esposa — Pup disse como se fosse uma novidade. — Não sei, Cariem, as

mulheres não se interessam por mim.

Você agora tem dinheiro e basta aparecer para ser agarrado.

— Você está em Londres em plena temporada. Mulheres adoráveis estão em cada canto,

esperando ser escolhidas.

— Como na casa de Violet Vane?

— Damas, Pup, mulheres respeitáveis com as quais podemos nos casar.

— Esposa, hem? — Pup lutava com o conceito.

O tom era de um rapaz que caçava pela primeira vez. Excitado, mas nervoso pelo tamanho e

poder do animal. Contudo, nunca fora covarde. Foxstall diria que Pup não tinha discernimento para

saber quando deveria ter medo. Mas se fosse encontrada a mulher certa, Pup saberia o que fazer

com ela sem sequer piscar.

Darien afastou a ideia da cabeça e entrou com Pup na casa de Van.

Maria saudou Pup com cortesia e ares maternais, deixando-o à vontade. Enquanto jantavam,

ela fez perguntas procedentes com simplicidade, deixando-o descontraído. Pelo ar de adoração do

rapaz, Darien temeu que Pup tentasse tornar-se o cãozinho de estimação de Maria. Não era assim

que pretendia livrar-se de seu fardo.

Ela tocou no assunto de casamento de maneira sutil, falando de seu primeiro e segundo enlace

como se fossem o paraíso de calma e estabilidade. Darien nada conhecia de seu primeiro

matrimônio, mas com Van nada era calmo nem estável.

Darien não achou graça ao ser questionado sobre seus planos nupciais.

— Nenhum ainda, Maria.

— Você haverá de querer um herdeiro — ela comentou, chamando os criados para servirem o

segundo prato.

— Duvido, essa obrigação ficará com Frank. Caso contrário, a linhagem Cave morrerá, o que

será um alívio para muitos.

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— Pois os Cave merecem viver, nem que seja por sua causa.

Darien sentiu-se constrangido.

— Estamos aqui para discutir os objetivos de Pup — ele a lembrou.

— Darien, sou capaz de dirigir dois cavalos ao mesmo tempo.

— Em diferentes direções? — Darien contestou, e Maria riu.

— Touché. Viro um e depois volto minha atenção para o outro.

— Fico tonto com a imagem que você faz.

Maria riu de novo.

— Você é muito literal, não é? Ignore as imagens, confie em mim e poderá iniciar uma

linhagem honrada.

— Milady me apavora — Darien foi sincero.

— Uma sensação familiar — Van murmurou.

— Sr. Uppington — Maria falou com suavidade. — Arthur, não é?

Pup anuiu com a boca cheia.

— Um nome excelente, lembrando um antigo rei e um herói moderno. Deveria utilizá-lo

mais. Sr. Arthur, não gostaria de casar-se? — A pergunta teve laivos de uma ordem.

Pup engoliu em seco.

— Sim, madame. Melhor do que Violet Vane.

Van sufocou um grito e Maria, uma risada.

— Penso numa mulher mais velha, não muito, só um pouco. Jovens podem ser muito

exigentes e o senhor vai preferir uma mulher que saiba dirigir a casa de acordo com seu gosto e que

possa dar-lhe conselhos de como se comportar.

Darien pensou que Pup fosse protestar.

— Sim, prefiro.

Maria sorriu como uma madonna.

— Na próxima semana oferecerei um pequeno jantar e convidarei uma dama minha

conhecida. Creio que o senhor gostará dela, mas se não gostar, não falaremos mais no assunto. Ela é

uma viúva com dois filhos, mas o senhor não se importará com isso.

— Não. Ela é bonita?

— Agradavelmente roliça.

Darien não conhecia a preferência de Pup, mas podia ver as sementes darem brotos e folhas.

Mulheres roliças lembravam agradáveis e as agradáveis, bonitas. Maria era uma mulher

assustadora.

— Ela se chama Alice Wells — Maria continuou. — Tem vinte e sete anos e foi casada com

um oficial da Marinha que morreu há dois anos. Vem de uma família excelente, mas de pouco

dinheiro. Por isso é obrigada a viver da caridade do irmão, que também não é abundante.

Ela continuou a exaltar as qualidades da Sra. Wells até se despedir de Darien e Pup.

— Alice... — Pup murmurou na rua. — Bonito nome, não acha, Canem?

— Adorável.

— Vinte e sete anos não é tão velha.

— De jeito nenhum.

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— Não me importo que ela tenha dois filhos, gosto de crianças. Também quero ter filhos.

— E o que costuma acontecer.

Seguiram-se alguns momentos de silêncio.

— Casamento — Pup falou quando se aproximavam de Hanover Square. — É a melhor coisa

que existe, não acha, Canem?

As sementes haviam germinado um poderoso carvalho.

— Esplêndido. — Darien empurrou Pup para dentro de casa e procurou refúgio em seu

gabinete, apesar de ser domingo.

Estava rodeado de membros da Confraria e Pup logo ficaria bem amparado. Só precisava de

uma carta de Frank dizendo que ficara noivo... Mas era muito cedo para isso.

Ao mesmo tempo, a mudança em sua situação em menos de uma semana poderia ser

gratificante se não fosse assustadora. Sentia como se estivesse em uma carruagem a toda

velocidade, sem controle sobre seu destino.

Droga de mulheres.

Nesse passo, logo teria de retribuir a hospitalidade. Entretenimento na Mansão Cave? Difícil

de imaginar, mas seria melhor olhar a casa com isso em mente. Foi de novo até a sala de estar. O

tamanho era adequado, mas precisava de uma boa limpeza, o que significava contratar mais criados.

E os Prussock? Eles faziam o que podiam e não pretendia despedi-los. Mas bons criados não

trabalhariam sob o comando deles.

Seria possível contratar criadas sem ser para dormir? Tomou nota para perguntar isso e outros

assuntos a Maria. Fez vários arabescos no papel até a tinta se esgotar.

Thea dissera saber administrar uma casa.

Não. Seria perigoso demais envolvê-la em seus casos domésticos.

Chamou Prussock para uma visita à adega. Prussock franziu a testa, talvez pelo trabalho extra

no domingo, embora não fosse piedoso.

— Não há muita coisa — Darien disse alguns minutos depois, diante das prateleiras vazias.

— Suponho que o antigo visconde bebia bastante, milorde.

— Tenho certeza disso. Mandarei comprar mais, pois talvez eu tenha de dar uma festa.

Mostre-me como estamos de louças, prataria e cristais.

Prussock não escondeu o aborrecimento, mas levou Darien para vistoriar os guarda-louças. O

sortimento não era elegante e não havia jogos completos, mas seria o suficiente. Não houve

dificuldade em imaginar uma grande quantidade de louças e cristais sendo destruída pela família.

Prata não se quebrava, mas quando os faqueiros foram abertos, encontravam-se quase vazios.

— Suponho que as peças tenham sido vendidas, milorde.

— Provavelmente, mas você deveria ter me alertado. E se eu de repente precisasse disso?

— Milorde não parecia disposto a dar festas.

Darien anuiu e voltou a seu gabinete. Tinha experiência com seres humanos, muitos deles

patifes, e estava desconfiado.

Vendidos ou roubados? Pelos Prussock? Não poderia acusá-los sem provas, mas o viscondado

de Darien e todos os pertences eram de sua responsabilidade. Escreveu uma mensagem aos

advogados, pedindo os inventários feitos por ocasião da morte de seu pai. Selou a carta e ficou

sentado, refletindo sobre as palavras de Maria para começar uma linhagem honrada. As sementes

haviam sido lançadas.

Linhagem significava esposa e essa palavra remetia diretamente a Thea. Riu sem humor. Thea

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Debenham, senhora da Mansão Cave? Senhora de Stours Court? Uma dos Cave?

Uma reação violenta o fez ficar em pé. Talvez devesse libertá-la da promessa de ir ao baile de

lady Harroving, mas não poderia fazê-lo, porque Thea precisava daquilo.

Pretendia libertá-la das teias da formalidade, para ela voar alto e com firmeza. Dissera a

verdade ao afirmar que a protegeria. Ela não haveria de piorar com a aventura, mas não cairia na

armadilha de Avonfort, aquele dândi empertigado.

Não podia fazer mais do que isso por ela ou por si mesmo.

CCaappííttuulloo VVIIII

No decorrer da semana, a mãe de Thea dizia a toda hora que tudo caminhava de maneira

satisfatória. Thea concordava, embora sentisse falta de Darien. Nas poucas vezes em que o via, ele

sempre estava acompanhado por um dos membros da Confraria e amigos deles.

Militares como o major Beaumont, embora esse setor estivesse ao lado de Darien de qualquer

modo. Políticos reformistas como sir Stephen Bali. Diplomatas com o conde de Charrington.

Mesmo quando não o encontrava, era possível seguir seus passos pela imprensa.

Enquanto ela passava uma tarde literária que tinha como atração a Sra. Edgeworth, Darien

estava numa corrida de cavalos em Somers Town sob a égide de um famoso criador e herdeiro de

um condado, Miles Cavanagh.

Enquanto ela suportava um jantar enfadonho, ele ia a uma reunião de cientistas, as Mentes

Curiosas. Sem nunca ter ouvido falar deles, Thea não ficou surpresa ao descobrir que Nicholas

Delaney era um dos membros fundadores e que muitos cientistas iminentes pertenciam à entidade.

Darien foi a uma festa oferecida pelo duque de St. Raven em sua casa de campo, Nun's Chase.

O trajeto de ida e volta foi uma corrida a cavalo. Lorde Arden venceu numa direção e Van, em

outra.

Maddy contou que Nun's Chase tinha sido palco de escândalos antes do casamento de St.

Raven e que desta vez a reunião fora inocente em comparação.

— Apenas cavalheiros — Maddy comentou com Thea e mais duas jovens fascinadas durante

o café da manhã veneziano na casa de lady Epworth.

— Como é que você sabe? — Thea perguntou, aborrecida.

— Cully compareceu e ficou desapontado de não encontrar prostitutas. Todos andaram a

cavalo e caçaram, como únicos divertimentos. Darien, ótimo atirador, duelou com lorde

Middlethorpe.

— Duelou? — Thea alarmou-se.

— Somente no sentido de uma disputa. Eles atiravam em alvos cada vez mais distantes.

— Não é de se admirar que houvesse pouca gente no Almack's naquela noite — Alesia

comentou. — Isso é muito ruim e ele é, afinal de contas, um Cave. Ainda não confio nele.

Não adiantaria discutir, Alesia era uma tola.

Então vieram boas notícias que deixaram Thea animada.

Darius superara a pior fase e estava se recuperando. Ele dizia estar ótimo e planejava viajar

logo para Long Chart a fim de completar a recuperação antes do casamento que fora marcado para o

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dia 24 de junho.

Mara escrevera uma carta em separado para dizer que Darius perdera muito peso, que estava

muito fraco e que precisaria descansar antes de qualquer viagem. Mesmo assim, Thea e a mãe se

abraçaram e choraram de alegria.

Naquela noite Thea encontrou Darien num evento e contou tudo antes de se lembrar da

inimizade entre ele e seu irmão.

— Você deve estar feliz — Darien comentou.

— E você não? — Thea se surpreendeu com a própria pergunta. — Ou Darius ainda é seu

inimigo?

— Não, já superei isso. Só desejo bem a ele.

— Fico satisfeita. — Thea desejava que pudessem conversar em outro lugar que não fosse

esse local quente com tantas pessoas ao redor deles. Era surpreendente como sentia falta de Darien.

— Eu soube que esteve em reuniões científicas.

— Batalhas submarinas.

— E isso existe?

— Sim. Os americanos quase levaram a experiência a efeito na última guerra e há relatos de

tentativas feitas há um século ou mais. Fala-se num plano teórico de um homem mergulhar e

adaptar uma bomba no casco de um navio.

— Não precisa parecer tão entusiasmado — Thea disse, sorrindo. — E se você estiver no

navio nessa ocasião?

— Esse é o problema com os progressos nos conflitos armados. O inimigo sempre poderá nos

surpreender.

Riram juntos. Thea viu a mãe esperando para se retirar, mas não teve pressa.

Darien estava muito mais descontraído do que estivera no evento de Hetherholt. Mesmo sem

contar com a aprovação universal, os menos entusiasmados já não se horrorizavam.

— Como anda o avanço de sua campanha? — Thea perguntou.

— Muito bem. Veja, sua mãe está acenando. Vamos até lá.

— Ansioso para se ver livre de mim? — Ela o provocou.

O olhar dele foi rápido e intenso.

— Nunca. — Darien sorriu para um homem que se aproximava. — Thea, conhece lorde

Wyvern?

Ela teve de sorrir para o jovem conde, embora preferisse ficar mais alguns minutos a sós com

Darien.

— Claro, ele faz parte de meu mundo.

Thea fez uma cortesia, e Wyvern curvou-se, revirando os olhos.

— Não sei por que ainda me deixo persuadir para vir a Londres. Prefiro o campo e o litoral.

Estou à procura de ar fresco, se é que tal coisa ainda existe nesta cidade.

— A chegada dele a Londres foi uma excelente distração — Darien observou-o afastar-se —,

dada a excitação sobre o título que ele vai herdar. Como ele é cunhado de Amleigh, suponho que a

Confraria é responsável por isso.

— Assuntos intrincados — Thea comentou.

Wyvern havia sido o administrador da propriedade do antigo conde, sem saber que era filho

legítimo dele. Como o velho conde era considerado louco, ninguém se espantou pelo fato de ele ter

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criado uma confusão com o casamento e a descendência.

Eles se aproximaram da duquesa, e Darien curvou-se sobre a mão de Thea.

— Lembre-se — ele murmurou, sem tirar os olhos dela. — Estou cumprindo minha parte do

acordo e espero que você cumpra a sua.

— Eu o farei — Thea respondeu no mesmo tom, e Darien afastou-se.

Mal posso esperar, ela pensou. No baile a fantasia de Harroving, ficaria com Darien a noite

toda. No momento, sua direção era outra, uma leitura de poesias que seria enfadonha. Contudo, o

dia seguinte seria sexta-feira.

Apenas um dia para esperar sua recompensa.

A sexta-feira arrastou-se, mas finalmente Thea vestiu a fantasia de Minerva. Excitada e

nervosa, temia que Darien achasse o traje absurdo.

Se as atenções dele tivessem sido forjadas e ele não sentisse atração por ela? E se estivesse

atraído e encarasse o traje ousado como um encorajamento?

Pelo menos estava armada, embora a ponta e a lâmina da alabarda estivessem rombudas.

Será que desejava lutar contra ele? Aquele poderia ser um dos últimos encontros que teriam.

Ainda não haviam recebido notícia que Darius deixara Brideswell, o que não deveria demorar. Ela e

os pais deixariam Londres com destino a Long Chart na segunda-feira. Seu pai voltaria a Londres

para as lides parlamentares, enquanto ela e a mãe ficariam em Somerset com Darius até a ida a

Brideswell para o casamento. Até lá, a temporada estaria encerrada.

A aventura insana haveria terminado.

Sua vida provavelmente retornaria à calma e à ordem. Era o que desejava, mas não de todo.

Olhou-se novamente no espelho, não cedeu à tentação de recuar, e desceu, elmo na cabeça e

arma na mão.

O pai a aguardava ao pé da escada com olhar cintilante.

— Lembro-me dessa fantasia — ele disse. A duquesa corou.

Thea virou-se e viu Darien. Ele se vestira de cavalheiro com casaco de cetim azul com

enfeites dourado e calções largos amarrados com fitas nos joelhos. Nos pulsos e no pescoço,

babados de renda. Na cabeça uma peruca loira e no rosto, uma meia máscara modificavam

completamente seu aspecto. Ele tirou o grande chapéu negro e cumprimentou-a com uma mesura à

maneira da corte.

Em outro local, Thea não o teria conhecido. Darien endireitou-se e observou-a.

— Grã-Bretanha?

— Não, uma deusa — Thea respondeu com a boca seca. — E armada.

— Estou vendo.

Harriet adiantou-se, pôs um manto branco nos ombros de Thea e eles se dirigiram ao coche.

— Não tenho certeza se um cavalheiro deveria oferecer-se para carregar a arma de uma deusa.

— Não tenho intenção de entregá-la. Talvez eu necessite dela.

Darien riu enquanto a ajudava a subir no veículo. Não foi fácil, com a alabarda e o elmo, isso

sem contar com os quinze centímetros da coruja prateada no alto.

Depois de instalada no coche, Harriet entrou e sentou-se a seu lado e Darien, em frente.

— Lovelace? — Thea analisou o traje de Darien

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— O guerreiro ou o libertino? — ele perguntou quando os cavalos começaram a marcha.

— Talvez os dois. É uma fantasia esplêndida. Onde a conseguiu em tão pouco tempo?

— Onde encontrou a sua?

— No sótão.

— A minha também, foi no seu sótão. A duquesa não confiou em meu gosto e mandou-a para

mim.

— Isso significa que ela foi provavelmente usada por meu pai ou por Darius. Isso seria

adequado, pois você prometeu comportar-se como um irmão.

— Não aqui.

Thea entendeu que ele se referia a Harriet que se fingia de cega e surda, mas não era nada

disso.

— Minha promessa não foi para esse evento — ele completou O que ela queria?

A viagem demorou pouco e ao sair da carruagem, Thea imaginou se não teria sido mais fácil

ter vindo a pé. Impossível.

Mesmo com a capa, causou um alvoroço ao entrar na casa entre os convidados que chegavam

e os que observavam.

Uma vez dentro, ela foi até o vestiário para guardar a capa e Harriet verificou se tudo estava

em ordem. Antes não tivesse olhado no espelho do recinto. A túnica era quase transparente, mas

não havia como recuar. Mandou Harriet para o alojamento dos criados, onde a moça se divertiria e

voltou para o hall.

Darien a esperava, descontraído e atraente. Thea não sabia se a espada dele adornada com

fitas era afiada ou não, mas ele parecia capaz de usá-la. Quase desejou que houvesse um duelo para

vê-lo em ação.

Ele a viu e sorriu. Thea retribuiu o sorriso e segurou a mão dele no estilo antigo para se dirigir

a um dos salões de recepção. Naquele preâmbulo, os convidados desfilavam exibindo as fantasias,

admirando a dos outros. Cada um devia conhecer algo a respeito de seu traje e, seguindo os

conselhos da mãe, memorizara ditos inteligentes.

Achou as fantasias fascinantes. Havia um sultão, um palhaço e vários Robin Hoods. Um deles

carregava arco e flechas, e era de se esperar que ele não resolvesse disparar contra os convidados.

As fantasias femininas eram de diversos períodos, muitas parecendo estranhas, como se as

usuárias se mantivessem fiéis à moda atual de cintura alta. Uma dama usava o sári indiano e Thea

imaginou se não se tratava da duquesa de St. Raven. Alguns convidados vestiam-se como dominós.

Chapéu, máscara e capa.

— Acho isso uma covardia — disse.

Um dos homens vestidos de dominó aproximou-se dela.

— E que bela deusa você representa?

— Terá de supor.

— Somente se você supuser quem eu sou.

— Você não me forneceu pistas — ela disse com desdém.

— Não?

Thea viu os olhos azuis risonhos atrás da máscara.

— Cully?

— Eu tive comparecer a um evento militar, por isso estou de uniforme, mas eu queria passar

por aqui. Esses bailes costumam ser engraçados. É Canem que está com você? Isto é, mais ou

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menos com você.

Thea virou-se e viu seu cavalheiro sendo distraído por uma intrépida Nell Gwyn. Agarrou

Darien pelo braço e o puxou, rindo. Sentiu a diferença em si mesma e nele. Como ninguém sabia de

quem se tratava, não havia olhares suspeitos, embora mulheres o fitassem, interessadas. Ninguém

sussurrava velhos escândalos ou reputações sombrias mais recentes.

— Você está incógnito aqui — Thea comentou.

— Até pelo menos a meia-noite — Darien assentiu. — Você também. Como está se sentindo?

— Liberada. — Ali Thea poderia ser tão arrojada quanto quisesse.

Mas em duas horas, à meia-noite, ela seria conhecida e tudo o que fizesse afetaria sua

reputação.

Um centurião romano tentou raptá-la pelo direito de nacionalidade, mas foi afastado com a

desculpa de que deusas não recebiam ordens.

Outra Nell Gwyn tentou Darien com uma laranja, mas ele retrucou que sua deusa exigia

acompanhamento.

Uma jovem medieval com trancas longas ofereceu a ele uma rosa silvestre de uma cesta.

Darien tentou entregá-la a Thea, mas ela disse que não combinava com seu traje e enfiou a flor

numa das casas ornamentais do paletó dele.

Ele beijou a mão de Thea. O fato de ela não usar luvas era excitante.

— Acredito que poderei beijar seus lábios — Darien afirmou —, apesar do elmo.

Ciente das consequências, ela se virou e percebeu que vários outros casais não eram tão

discretos. Talvez ninguém se lembrasse de quem fazia o quê.

Subiram a escada e passaram por criadas que, usando túnicas orientais mínimas, ofereciam

vinho. Beberam e entraram no salão de baile que estava mais escuro do que qualquer um que Thea

já vira. O centro do recinto era iluminado por dois grandes lustres, mas as margens permaneciam

obscurecidas.

Apesar da música, poucos dançavam, principalmente por causa das fantasias. Cada um

procurava representar seu papel e dois homens lutavam com espadas. Thea esperava que as armas

deles estivessem tão mal aguçadas como a sua.

Um deles viu Darien e desafiou-o.

Imediatamente Darien desembainhou o florete. Os movimentos rápidos e o choque das

lâminas fizeram o coração de Thea disparar. Após um minuto Darien recuou, sorriu, saudou o

oponente com a arma e voltou para o lado de Thea.

— Você é louco.

— Claro que sou. — Ele a puxou para a margem sombria do salão e Thea encontrou-se numa

câmara folhosa com pouca iluminação. — Ideal para encontros.

— Comportar-se como um irmão? — ela lembrou-o, com a boca seca, mas excitada.

— Essa foi uma promessa para o baile do Opera House.

— Comporte-se, sir. — Thea apontou a lança para Darien — A meia-noite, todos saberão

quem é.

— Mas não saberão o que fizemos aqui.

Darien agarrou a lança e tirou-a das mãos de Thea que, na verdade, não a segurava com força.

Ele atirou o chapéu no chão e beijou-a. Thea segurou o elmo com uma das mãos e retribuiu o

beijo. Essa era uma amostra do que ela queria naquela noite. Exceto que o elmo significava apenas

lábios. Darien abraçou-a, sentiu armadura e riu.

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— Encouraçada.

— Inviolável — Thea concordou.

— Contudo não aqui.

Darien acariciou-lhe os braços desnudos como nenhum homem ousara tocá-los, e Thea pôs as

mãos por cima do dos galões dourados do casaco dele.

Eles se beijaram novamente, castos e quentes. Darien acariciou-lhe os ombros e as costas até

encontrar laços que prendiam o corpete.

— O que foi feito — ele sussurrou — pode ser desfeito.

Darien segurou a túnica, mas Thea endureceu os braços para afastá-lo.

— Não.

— Nem mesmo à meia-noite?

— Principalmente não a essa hora. Não estou vestindo nada por baixo a não ser minha

camisa.

Darien sorriu. Mesmo na obscuridade Thea sentiu interesse, diversão e desafio. A despeito do

clarão de ânsia e talvez por isso mesmo, recuou e agarrou a alabarda.

Darien ergueu as mãos.

— Você não vai precisar disso.

— Eu sei, mas...

— Pederneira e pavio. Poderíamos escapar antes da meia-noite e ninguém saberia para onde

fomos.

— Escapar? — Thea ficou chocada.

— Até os jardins, para uma parte secreta da casa. Na rua e bem longe.

— Você é louco.

— Isso já foi dito. Fugir comigo, minha deusa, para lugares onde não existam restrições nem

regras.

— Não posso.

— Claro que não. Você é a deusa Minerva, sempre sensata. Por que não poderia ter vindo

como a devassa Nell Gwyn?

— Eu poderia ter sido a preferida do pirata — Thea admitiu.

— Mas falta o instinto criminal. — Darien pegou o chapéu do chão com uma graça atlética

que a deixou amolecida.

Thea já comprovara a beleza de Darien antes, mas com essas roupas vistosas do passado ele

seria capaz de deixar uma mulher louca.

— Não é justo usar essas roupas — ela disse.

— E será certo usar as suas? Venha, escaparemos em segurança.

Darien levou-a para fora da câmara e para o salão de baile, que pareceu ainda mais brilhante

com o contraste.

Mais pessoas dançavam e muitas haviam tirado as partes incômodas de suas fantasias. Thea

reconheceu uma desvantagem de sua indumentária. Não podia tirar o elmo sem ser reconhecida,

mas seria difícil dançar com o mesmo.

— Quem é você? — ela perguntou, enquanto rodeavam o perímetro.

— O que quer dizer?

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111122

— Você não me disse antes. Trata-se de Lovelace ou de um cavalheiro sem nome?

— Sou o príncipe Rupert de Rhine. Ele foi para a guerra aos catorze anos, comandou a

Cavalaria de Carlos I aos vinte e três e o Exército inteiro aos vinte e cinco.

— O que faz de você um preguiçoso.

— Ele foi favorecido pelo berço real e pelo nepotismo.

— E você só tem os Cave. Mas os dois têm outras coisas em comum. Ele não era chamado de

Cavaleiro Louco? — Thea não acreditava que estivesse correndo tais riscos, suas palavras não

pareciam arriscadas.

Darien fingiu indignação.

— Nunca levei um poodle para uma batalha.

— Pelo que os poodles devem estar agradecidos.

Riram juntos, duas pessoas anônimas em meio a uma multidão indiferente. Thea nunca se

sentira tão livre.

— Você e minha mãe têm razão. Bailes a fantasia são ótimos. Esse foi um dos trajes dela.

— Acha que seu pai teve mais sucesso do que eu com os amarrilhos.

— Não! — Afogueada, Thea virou-se para os dançarinos e distraiu-se prestando atenção às

fantasias. — O que aconteceu depois da morte de Carlos I, príncipe?

— Fiz vários empreendimentos, inclusive a pirataria nas índias Ocidentais. Depois foi a glória

na Inglaterra após a restauração de meu primo, Carlos II.

— Entregou-se à devassidão com o resto da corte?

— O que milady acha? — Darien passou os dedos nas costas de Thea e nos cordões, fazendo-

a estremecer. — Homens serão homens e lutar com eles é saudável.

Thea engoliu em seco.

— Ele se casou e viveu feliz?

— Milady iguala casamento com felicidade?

Thea virou-se para encará-lo, tirando o cordão dos dedos de Darien.

— Por que não?

— Há muitas evidências contra isso e nossa anfitriã e um bom exemplo.

— E meus pais são uma evidência oposta. E ele? Isto é, você.

— O quê?

— Casou-se e viveu feliz?

— Só teve uma amante, mas ficou com ela bastante tempo o que sugere pelo menos

satisfação.

— Ele se casou com ela?

— Ela era uma atriz.

— Isso não é desculpa. Hal Beaumont fez isso e ele é um...

— Membro da Confraria. Tipicamente quixotesco.

— Não há o que caçoar. Gosto de Blanche e minha mãe está se inteirando da revolução de

Mary Wollstonecraft com ela.

Darien riu muito e depois segurou a mão de Thea.

— Vamos dançar.

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— Espere! — Thea enterrou a lança num vaso com plantas antes de correr com Darien para

juntar-se a um grupo que dançava.

Ela teve de usar o passo de minueto para não balançar o elmo e sua postura era mais perfeita

do que nunca, mas certamente não era a Ilustre Inatingível nesta noite. Ela dançava no escuro com

um homem muito perigoso e pretendia aproveitar cada momento dessa liberdade.

Mesmo incógnita, o treinamento e as boas maneiras a induziam a prestar atenção a cada

homem ou mulher com quem dançava, mas sua percepção estava em Darien, consciente de sua

elegância e do entusiasmo que muitas mulheres demonstravam. Algumas se afastariam com ele sem

hesitação. Mas teriam antes de lutar com ela.

Pelo menos naquela noite Darien era seu.

— Como é que você dança tão bem sendo um oficial grosseiro? — Thea perguntou quando

eles estavam a meio caminho do alinhamento.

— E por acaso eu disse isso? Estive em Lisboa, Paris, Bruxelas. Os oficiais têm de cumprir

seu dever em todas as áreas.

Thea dançou pensando com amargura nas mulheres dessas cidades e no garboso oficial

hussardo em uniforme azul enfeitados com galões e pele, que tinha uma extraordinária boa

aparência, físico elegante e olhos travessos, e em outras coisas que o tornavam fascinante, que o

faziam muito desejável.

— Thea?

Ela olhou a dama com quem estava emparelhada. Outra Nell Gwyn com um corpete muito

decotado que deixava o busto bem à mostra. Tornou a olhar.

— Maddy?

— Eu não esperava encontrá-la aqui. — A prima sorriu.

— Mas estou. — Thea afirmou depois de voltar-se para Darien. Todos pensavam que ela

fosse tediosa?

— Quem é o cavaleiro? — Maddy perguntou, quando Thea virou-se para ela de novo, e com

o mesmo interesse ardente que as outras mulheres demonstravam.

— Tente descobrir. — Thea olhou para o parceiro de Maddy, um monge que não soube

identificar. — Quem é ele?

— Staverton — Maddy disse com amuo. — Arrumarei um melhor quando a noite prosseguir.

Mantenha olho vivo no seu cavaleiro, prima, ou eu o roubarei. Afinal, somos da mesma época.

Os passos da dança as separaram antes que Thea pudesse advertir Maddy. Felizmente. Maddy

caçoaria dela pelo resto da vida. Outra dama voluptuosa com uma mantilha espanhola esfregou-se

em Darien de maneira indecente e mandou beijos disfarçados. Thea imaginou que poderia ser lady

Harroving em pessoa.

— Está com cor de cabeça? — Darien perguntou.

— Não.

— Esse elmo deve estar fazendo muita pressão.

— A única pressão é observar a atenção desavergonhada que você está atraindo.

— Ciúmes? — Ele não a deixou responder. — Sou devotamente seu, minha Thea. Pelo menos

por esta noite.

Por que as palavras dele machucavam, mesmo ela sabendo que isso era verdade?

A dança a trouxe de novo para perto de Maddy.

— É Darien, não é? — ela sussurrou.

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— Sim.

— Oh, Deus. Você leva os deveres a extremos, não é? Ele ficará até a meia-noite?

— Claro.

— Ah, que graça! — Maddy afastou-se, rindo.

Quando a música parou, Thea estava quente, suada e irritada.

— Na minha fantasia falta um leque.

Darien tirou o chapéu e abanou-a com ele.

— Foi mais esperto usar uma peruca loira. Maddy demorou a reconhecê-lo.

— Sua prima? — Ele olhou ao redor. — Como ela está vestida?

— Como a generosa Nell Gwyn de amarelo.

— Ah.

Thea não gostou do tom. Busto coberto por uma armadura não era páreo para seios fartos e

quase descobertos. Sentiu-se rígida dentro do feltro recoberto de metal.

— Preciso de ar fresco — ela falou.

— Então venha. — Darien estendeu um braço e eles começaram a abrir caminho no salão

repleto.

Um homem alto, de negro, vestindo um capuz que cobria a cabeça inteira, menos os olhos e a

boca, pôs-se diante deles. Na certa, a fantasia era de um carrasco.

— Minerva, ofereça-me sua sabedoria.

Thea achou o disfarce horrível, mas disse uma de suas frases preparadas.

— Pouco é o tempo que os pobres humanos vivem e pequeno o espaço de terra que habitam.

— É verdade, mas a senhora é uma deusa melancólica. Vou procurar uma mais alegre.

— Uma queixa justificável. — Darien deu uma risadinha.

— Ele veio como um carrasco, por isso merecia algo sombrio.

— E qual conselho teria para me oferecer? — Darien perguntou.

— Evitar distrações e apressar-se para o fim que você tem considerado.

— Interessante. De quem você está roubando a sabedoria?

— Marcus Aurelius.

— Sabia que esse era o nome completo de meu irmão?

Thea o fitou, espantada.

— Não, ou então eu esqueci. Desculpe-me, eu não pretendia dizer nada disso.

Darien tocou no queixo de Thea.

— Sei que não. Foi apenas estranho. Você deveria tentar o pobre Richard. Ele expõe as coisas

mais simplesmente. — Darien tocou com o polegar o lábio inferior de Thea. — Se ama a vida, não

desperdice o tempo, por que é disso que a vida é feita. Quer desperdiçar nosso tempo aqui, Thea?

— Não. — Ela segurou a mão de Darien e levou-o para fora do salão de baile.

— Para onde estamos indo? — ele perguntou, sem resistir.

— Para algum canto sossegado, mas onde?

Darien sorriu e o rosto sob a máscara pálida secou sua boca e amoleceu seus joelhos.

— O sossego vai ser difícil, mas podemos tentar.

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Então ele passou a conduzir Thea que lutava para readquirir o bom-senso. Aquilo era uma

loucura, mas não era o que ela queria? Um momento breve de gloriosa insanidade. Apenas um

beijo, mas um beijo quente, apaixonado e que absorvesse o juízo.

Eles percorreram um corredor em direção aos fundos da casa, passando por casais que

flertavam e por outros que se beijavam. E um dos homens...

— Olhos em frente! — Darien comandou.

Thea obedeceu rindo e correu até chegarem à janela escura que assinalava o final da

passagem. Darien abriu a porta à direita.

— Escada. — Darien puxou Thea e fechou a porta, deixando-os na total escuridão. — Para

cima ou para baixo? — indagou.

Eles estavam bem próximos, num local privativo.

— Para cima — Thea sugeriu. — As cozinhas devem estar abarrotadas.

— Para baixo — ele corrigiu e a levou naquela direção.

— Sempre faço o inesperado, como se pode ver.

Darien parou e encostou os lábios próximo do protetor de face do elmo. Soprou no espaço ali

existente e depois procurou a boca de Thea.

Ela largou-se de encontro à parede, braços caídos, rendida. Era como se Darien falasse uma

língua estranha de encontro a seus lábios, em uma tentação incrível. Ele tornou a encontrar os

amarrilhos, desta vez deslizando os dedos sob a túnica.

— Não devemos fazer isso — Thea sussurrou, pensando o contrário.

— Devemos. Nosso dias estão contados. Assim como as horas seriam breves.

Thea ergueu as mãos para tirar o elmo, mas Darien a impediu. Segurou-lhe a mão e

recomeçou a descer com cuidado no escuro.

Darien abriu uma porta e eles chegaram a um corredor estreito. Thea escutou barulho e vozes

próximas. Era o a azáfama na cozinha e na ala dos criados que se divertiam.

— O que estarão fazendo? — ela perguntou.

— Não vamos espiá-los — Darien disse com uma risada. Levou-a pelo corredor, deixando o

barulho para trás, abrindo as portas que não estavam trancadas que, para surpresa de Thea, não eram

poucas.

— O que há aí? — ela perguntou depois de Darien abriu a segunda.

— Não sei, mas o ambiente não parece acolhedor.

— Claro, somos invasores.

Estou impaciente e pronta para um outro beijo que me faça esquecer de tudo. Escolha logo

um quarto!

— Ah. — Darien finalmente entrou com ela em um recinto e fechou a porta.

A escuridão diminuiu um pouco devido a três pequenas janelas no alto à esquerda. Viam-se

apenas quadrados cinzentos, mas foi o suficiente para Thea perceber que estavam num ambiente

estreito com formas escuras e pálidas. Havia fragrância de lavanda, poejo e menta, e o aroma

característico de lençóis limpos.

— Closet de roupas de cama e mesa?

— Sim. — Darien trancou a porta.

— Havia uma chave do lado de dentro? — ela indagou, subitamente nervosa.

— Não, estava do lado de fora. — O tom cálido e melodioso a acalmou.

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Darien aproximou-se e segurou o elmo de Thea.

— Não é igual a uma cama, mas servirá.

— Não precisamos de uma cama para um beijo.

— Thea, não precisamos de quarto desses para um beijo. — Darien tirou-lhe o elmo.

Nervosa de novo, Thea mexeu nos cabelos presos.

— Ainda bem. Não é tão desconfortável como opressivo.

— Uma deusa jamais deveria sentir opressão.

Thea estendeu a mão, mas Darien abriu-lhe o cinto que tilintou ao cair no piso. Virou-a e

novamente mexeu nós cordões. Thea estava ciente de que não deveria permitir a ousadia, mas como

se beijariam com uma sólida barreira entre eles?

Ele desmanchou o laço e alargou o fechamento cruzado, causando arrepios na espinha de

Thea.

Ela apoiou as mãos nas prateleiras de madeira diante dela, inalou o cheiro de roupas limpas e

ervas, consciente de cada toque dele às suas costas naquele ambiente estreito. A fantasia de Darien,

também com aroma de ervas, misturava-se com o odor característico dele que somente então Thea

reconhecia.

Ela ergueu os braços e Darien tirou-lhe o corpete. Thea virou-se, chocada por estar apenas

com uma camisa de seda cobrindo o busto, ainda mais que seus mamilos roçavam no paletó

engalanado.

Darien soltou os cordões que prendiam a saia e a peça caiu no chão com estrondo. Segurou

Thea pela cintura com mãos fortes, quentes e um tanto rústicas na seda.

Ele a beijou em uma posse completa. Thea quis agarrar o casaco de Darien e descobriu que o

mesmo fora tirado, restando apenas o colete aberto. Ela segurou o tecido liso e fino que cobria o

peito musculoso. Nunca sentira um físico tão potente nem se pressionara quase nua no corpo de

ninguém.

Eles se beijaram numa ânsia sem fim.

A fome de Thea crescera durante as vezes em que discutiam e nos encontros breves ou quase

inexistentes. E ela queria isso e muito mais, nem se importaria se estivessem sendo observados.

Importaria, sim!

Tensa, resistiu.

Darien a acalmou, arfante. Tomou-a nos braços com ternura, como se embalasse uma criança,

acariciando-lhe as costas, e Thea arqueou-se. Ele fez carícias circulares nas nádegas dela,

levantando a camisa e expondo-as.

Com as pernas trêmulas, Thea não protestou nem tentou escapar. Se o preço fosse sua ruína,

paciência.

Darien levou a mão direita por baixo da camisa até o busto de Thea e apertou um dos seios

levemente. Ela fez um movimento brusco, mas sentiu prazer. Segurou a mão dele no local,

saboreando a satisfação ardente de seus sonhos mais depravados.

Darien tornou a beijá-la. Thea gemeu e segurou no colete para se apoiar, enquanto movia o

joelho para cima e para baixo de encontro ao calção de cetim, mexendo os quadris.

Darien estacou com a cabeça contra a dela, os dois arfando. Ele recuou e tirou lençóis das

prateleiras, jogando-os no chão.

— Pobres lavadeiras — Thea alegou, mas ajudou-o antes de se deitaram no ninho de tecidos

frios.

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Darien havia tirado o colete e a camisa estava para fora do calção, permitindo a Thea tocar na

pele quente e sedosa.

Ele a beijou enquanto lhe acariciava o seio, mas logo substituiu a mão pela boca, mordiscando

o mamilo através da seda. Thea teve a impressão de que sua cabeça se desprendia do corpo quente e

faminto. Darien levantou a camisa dela, roçando-lhe as coxas.

E por entre elas.

Thea ficou tensa, mas logo se abriu para ele, desejando que Darien não parasse de acariciá-la.

— A Ilustre Inatingível — ela sussurrou, rindo,

— Ridículo — Darien concordou. — Relaxe, Thea, confie em mim. Eu não a desonrarei.

— E isto não é uma desonra?

A risada de Darien foi terna e cálida.

— Somente se fôssemos apanhados, mas a porta está fechada. — Ele puxou a camisa dela

para cima, deixando o busto descoberto.

Tomou um dos seios, beijou-o, lambeu-o e sugou-o.

— Meu Deus.

Darien tornou a rir e passou os dedos entre as coxas de Thea.

Aquilo não era o que ela esperava. Por seus conhecimentos rudimentares, imaginava que o

relacionamento entre um casal fosse mais violento e doloroso. Não contava com aquela atenção

quase provocativa nem com essa crescente febre de desejo.

Que não a arruinaria.

Que não levaria sua virgindade.

Sensações espantosas se enovelavam dentro dela, apertando-a cada vez mais. Arfava, quase

em pânico.

Ali estava a violência e uma espécie de sofrimento que evoluía.

Até uma explosão.

Thea beijou-o enquanto luzes feéricas explodiam em sua cabeça e maravilhosas ondulações

fervilhantes se sucediam em seu corpo suado enlaçado no dele.

Thea afastou a boca e ficou deitada até Darien segurar sua mão e encostá-la em algo rijo e

quente.

— Uma deusa tem de ser agradecida.

O calor e os cheiros impregnavam seu ninho e a escuridão permitia tudo.

— Que tipo de gratidão?

— Digamos que seja uma retribuição de favores. Quero que me examine.

Cautelosamente Thea curvou os dedos sobre o membro endurecido. Por que nunca pensara

sobre o mecanismo de tudo aquilo?

— Isso não pode ficar dessa maneira o tempo inteiro. — Ela sentiu o comprimento. — Meu

Deus!

— Não, ele precisa ser reduzido.

— Como? E a promessa de que não serei desonrada?

— Sua mão pode fazer isso. — Darien sentiu-se descontraído como se estivessem falando

sobre o tempo. — Ou a minha. Mas eu pensei que uma nova aventura poderia agradá-la.

— Será? — Thea deslizou a palma para cima e para baixo.

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— Não sei.

Thea estava fascinada pela rijeza quente de Darien, mas alarmada com a ideia de que o

membro fosse destinado a penetrar numa mulher. Com força e violência. Talvez não devesse casar-

se. Ela apertou a mão e sentiu-o estremecer em uma ondulação por todo corpo que só poderia ser de

desejo e prazer.

Ela tirou a mão.

— Está bem, posso fazer isso. — Gostaria de dar a Darien prazer semelhante ao quer ele lhe

concedera e curvou novamente os dedos ao redor do membro. — Mostre-me.

Darien segurou a mão de Thea e pressionou-a entre as coxas dela, no lugar ainda sensível e

úmido. Ele a esfregou no local e um prazer intenso a percorreu.

Não agora.

Não ainda.

Darien puxou novamente a mão de Thea para seu membro e a mesma deslizou. Moveu-lhe a

mão umedecida para cima e para baixo. No ápice, ele empurrou o polegar dela sobre a ponta lisa e

macia, onde Thea sentiu nova umidade.

Darien tornou a estremecer.

— Gosta disso? — ela perguntou.

— Demais.

Deitado de costas, ele era uma sombra no lençol branco. Thea imaginou o olhar dele sob os

cílios densos e sentiu sua ânsia. Curvou-se para beijá-lo, continuando como ele lhe ensinara.

— Estou fazendo certo?

— Como sempre, está perfeita, minha deusa.

Ela mexeu os dedos como se tocasse piano.

— E isso?

— Muito suave para o momento, deusa.

Thea apertou com mais força e moveu a mão com maior rapidez, sentiu a tensão de Darien,

escutou a respiração e imaginou o crescendo daquela loucura febril que também a atingia. Pôs uma

perna sobre suas coxas para pressionar-se nele.

Darien segurou uma parte do lençol sobre si mesmo e a mão de Thea. Jorros atingiram o

lençol e a mão de Thea. Ela esfregou o fluido nele, ansiosa para continuar, mas ele segurou a mão

dela e afastou-a. Ela largou-se sobre Darien, ambos quentes, suados e envoltos num odor

almiscarado.

Se ele quisesse penetrá-la, ela teria se alegrado.

A respiração voltava ao normal e o calor diminuía.

— Nós fizemos uma terrível confusão — ela afirmou.

Darien riu.

— Esqueça que é uma dama, Thea, pelo menos nesta noite.

Darien empenhou-se numa doce magia nas costas de Thea, massageou suas nádegas e

provocou-lhe a parte traseira das Coxas. Thea se contorceu, preguiçosamente.

— Eu nunca soube que houvesse tantos locais sensíveis num corpo.

Darien afagou-a entre as pernas por trás. Thea deu um pulo e ficou de costas.

— Ah, sim.

Darien sugou-lhe os seios novamente, enquanto acariciava aquele local sensível, e Thea

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arqueou-se de encontro a ele.

— Ah, sim — ela repetiu.

Desta vez Darien foi enérgico, despertando prazer, queimando e levando-a a esfregar-se na

mão dele. Se tivesse fôlego, na certa ela gritaria. Thea imaginou que morreria logo e era o que

desejava.

Foi quando ela chegou ao êxtase.

Voltou a si nos braços de Darien, quente, segura e no lugar ideal.

Quero me casar com você.

Felizmente ela não disse nada, embora isso fosse verdade. Nunca imaginara o ato físico como

uma parte importante do casamento. Gostar, admirar, comunhão de temperamentos, interesses

partilhados e uma igualdade confortável de situação social sempre lhe pareceram essenciais para

uma boa vida.

Não depreciava nada disso, mas as coisas mais naturais também lhe pareciam importantes.

Thea gostava de Darien. Gostava de sentir sua pele e sua mão calosa, mas gostava, sobretudo,

de sua companhia e admirava suas virtudes. Coragem, resolução e proteção confiável.

Não tinham temperamentos parecidos, mas talvez se complementassem. Era bom pensar na

vida ao lado dele, mesmo com os desafios de seu histórico familiar.

— Como devo chamá-lo? — Thea traçou um círculo no ombro de Darien.

— Milorde e mestre?

Thea cutucou-o.

— Sou uma deusa, sir, e não tenho mestres.

— Diga isso a Zeus.

— Quer que o chame de Zeus?

Darien riu. Thea refletiu que ele parecia um gato à espera de carinho.

— Preciso encontrar um nome para você. — Thea acariciou-lhe os lados e a coxa. — Darien

não me parece muito adequado para uma situação como essa.

— Pretende repeti-la?

Sim. Você não? Thea nada disse. Aquele era um jogo delicado que necessitava de cuidados.

— Não gosto de Canem — ela afirmou. — É bom para seus amigos...

Darien beijou-lhe a mão.

— Eu esperava que pudéssemos ser amigos.

— Estou me referindo a seus amigos homens. — Thea inalou e saboreou o cheiro intenso e

quente de ambos, esfregando a coxa na dele. — Canem certamente o lembra daquele incidente e

isso traz sofrimento.

Darien mordiscou-lhe as pontas dos dedos.

— Eu me acostumei com ele e não gosto de Horatio.

— Como sua mãe o chamava?

— Horry. Ela chamava meus irmãos mais velhos de Markie e Christie.

— Sua mãe deveria ter uma vida dura. Parece que ela foi hostilizada. — Thea gostaria de

conhecer detalhes sobre ele e sua infância.

— Tratou-se de uma escolha dela.

Thea não gostou do tom ríspido.

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— Isso é justo?

— Ela se casou com meu pai por sua livre vontade e frequentemente se queixava da própria

estupidez. Ela pensou que se tornar uma viscondessa faria sua grandeza, mas a reputação dos Cave

acabava com qualquer posição social. Ela deixou o mundo teatral e não pôde alcançar nenhum

outro. Como não podia descontar em meu pai, punia os criados e os filhos. — Darien levantou-se e

puxou Thea. — Vamos voltar ao mundo real.

— Só por que mencionei sua mãe? Amigos são para essas coisas.

Darien encostou a cabeça na dela.

— Por causa das memórias, Thea. Tenho muitas e todas ruins. Deixe-as.

— Claro. — Thea acariciou-lhe o rosto. — Faremos outras.

— Já fizemos, mas isso não muda a realidade.

— Ultimamente só nos ocupamos em mudá-la.

— Muitos aspectos são mais resistentes. Minha natureza, minha família, a reputação dos

Cave, todos monumentos de pedra.

Darien recuou, curvou-se, pegou a armadura e entregou-a a Thea.

— Isso também é real — Thea argumentou.

— Como a aurora e o pôr do sol, adoráveis, mas fugazes. O que houve foi precioso para mim

também, Thea. Posso repetir isso muitas vezes, mas...

— Não seria correto?

— Não, embora correto não seja um termo ao qual estou acostumado.

Thea muniu-se de coragem.

— Poderíamos tornar isso certo... e nos casarmos.

— Só por causa do que houve?

— Não! Bem, sim, mas não da maneira como está insinuando. — Thea não deveria aventurar-

se sendo que não podia ver-lhe a expressão.

— Thea, isso não foi excepcional.

— Foi para mim.

Darien recuou para vestir-se.

— Está bem, não falemos sobre o assunto. — Ela curvou-se para pegar o restante da fantasia,

mas Darien endireitou-a.

— Não falar sobre o quê?

— O tempo!

Como Thea nada diria, Darien resolveu tocar no assunto.

— Casamento. Thea, minha deusa, quer que seus filhos sejam Cave?

— A situação já melhorou.

— Esse será um nome de honra e dignidade?

Thea segurou a camisa dele.

— Podemos mudar tudo. Canem Cave já está espalhando honra.

— Perdoe-me se ainda não notei.

— Pode dizer se não quiser se casar comigo. Eu já me constrangi bastante.

O silêncio vagarosamente encolheu sua alma.

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— Está certo. — Thea conseguiu falar apesar do nó na garganta. — Não diga nada, já entendi.

Tudo não passou de um divertimento, daqueles que os homens gostam. E como prometeu, você não

me desonrou. — Caminhou em direção à porta.

— Thea, vista-se, estou com a chave.

Ela virou-se e, de costas para a porta, viu uma sombra na obscuridade.

Está fazendo com que eu o odeie?

Com o orgulho ferido, voltou quase tropeçando nos lençóis que ainda guardavam o calor

deles.

Encontrou o corpete, procurou o lado certo, enfiou-o e tornou a virar-se.

— Aperte os cordões, por favor.

Thea sentiu a tensão de Darien que se movia atrás dela e a presença dele no quarto estreito

queimava antes de tocá-la. Não choraria. Sempre fora avisada sobre a natureza dos homens. O que a

levara a pensar que este, e justamente um Cave, fosse diferente?

Ajustou a parte dianteira enquanto Darien puxava, apertava e dava o laço na cintura. Ele

entregou-lhe a saia de metal e ela a amarrou, abençoando a escuridão. Vestiu a túnica, usando uma

ponta para secar os olhos e pôs o cinto, lembrando-se de quem era. Lady Theodosia Debenham.

Uma deusa. A Ilustre Inatingível. E assim seria, de corpo e alma. Pôs o elmo na cabeça e foi até a

porta.

— Se tiver algum dinheiro, deixe para a lavanderia.

— Já fiz isso.

Thea cometeu o erro de ir até a porta primeiro. No recinto estreito, Darien teve de esbarrar

nela para destrancar a fechadura e mesmo esse leve toque a fez estremecer. Ela tropeçou,

desesperada por luz e espaço. O corredor estreito e escuro seria uma rota de fuga.

Risos e música dos criados a fizeram voltar para o mundo real. Uma miscelânea de cheiros

vindos da cozinha lembrou-a de que a realidade nem sempre era agradável.

Sensibilidades no corpo... Nunca mais.

— Quero ir embora — ela o avisou.

— Você tem de reunir seu séquito.

Por que sua vida nunca era simples? Harriet estava na festa dos criados. O palafreneiro ou o

cocheiro também poderiam estar lá. Alguém não deveria ter ficado no coche? Nunca pensara nessas

coisas. Um coche a trazia para um evento e reaparecia quando ela queria ir embora. Odiava não

saber das coisas e estar num local não familiar.

Tudo isso para as delícias de uma aventura.

Gostaria de sair no escuro e correr até sua casa. Se estivesse com trajes normais, até seria

capaz de fazer isso.

— Quero ir embora — ela repetiu.

Darien estava em silêncio atrás dela e era de se imaginar a impaciência dele com uma dama

mimada.

— Encontrarei sua criada. — Passou por ela em direção à cozinha.

De costas, ele parecia um estranho, com os cachos loiros e o casaco que lhe modificava a

silhueta. Mas Thea jamais confundiria seu andar, sua postura e sua graça animal.

Esta noite conhecera seu corpo, não no sentido bíblico, mas sua energia e resposta.

Nunca mais, lembrou-se. O rosto e a cabeça pegavam fogo dentro do maldito elmo. Encostou-

se na parede, enfiando as mãos frias sob os protetores de face.

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— Sozinha?

Thea espantou-se e viu o carrasco que encontrara antes.

— Vá embora.

Ele se aproximou, arreganhando os dentes.

Thea recuou, mas a parede não lhe deixava opções. Pensou em gritar, mas quanto menos

pessoas a vissem ali seria melhor. Isso a lembrou do primeiro encontro com Darien. Por que não

escutara o conselho?

— Minhas vítimas gostariam que eu me afastasse — ele disse, batendo na machadinha

pendurada no cinto.

Thea esperava que a arma fosse falsa. Ele estava bêbado, mas não incapacitado. Tentou olhar

de lado para ver onde estava Darien, mas o elmo atrapalhava.

— Vá embora — ela repetiu. — Não estou passando bem. Meu acompanhante foi em busca

de meus criados.

— Uma bela história. Sei o que a senhora quer. — Ele agarrou um dos seios protuberantes.

E encontrou apenas a armadura.

O pasmo do camarada a fez rir, mas logo seu tormento recrudesceu.

O homem se enfureceu e levou a mão para baixo da saia curta de Thea. Ela o empurrou com

os punhos fechados, mas ele era muito forte. Ele a afastou da parede e abraçou-a com o braço

imenso, amassando a armadura frágil.

— Solte-me! — Thea gritou, em uma advertência e um pedido.

Darien voltou pelo corredor, com olhar assassino.

— Obedeça — ele disse, em um comando mortal.

O carrasco voltou-se, segurando Thea como um escudo.

— Afaste-se, garoto encaracolado.

Ele deveria estar muito bêbado.

Os criados começaram a sair dos recintos próximos, sem saber o que fazer. Thea lutava, mas o

homem recuou, agarrando-a com força.

Darien aproximava-se furtivamente, esperando a oportunidade.

Thea lembrou-se do elmo. Inclinou a cabeça para frente e depois com energia para trás. Sentiu

um baque e o homem soltou-a com um grito.

Ela caiu no chão e engatinhou em direção a Darien que se abaixou para pegá-la. Quando se

virou, os dois homens já estavam engalfinhados.

— Parem com isso! — ela gritou.

O algoz, que tinha braços poderosos e um peito que parecia uma barrica, desferiu um golpe

que poderia quebrar costelas. Mas Darien conseguiu segurá-lo. A peruca caíra, revelando seu vigor.

Os murmúrios começaram.

— É lorde Darien.

— O visconde vilão...

— Cave, o cão raivoso.

Tanto esforço coisa para restaurar a reputação da família...

O carrasco, com o nariz sangrando, fitou-a com ódio. Sentada, Thea recuou, desejando não tê-

lo atingido.

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Bateu em alguém e olhou para cima. Ao ver o rosto risonho de um rapaz da cozinha, entendeu

que suas pernas estavam expostas.

Levantou-se depressa e agradeceu que o elmo a mantinha incógnita. Se descobrissem quem

ela era, não haveria salvação. O mundo inteiro saberia o que acontecera no closet e Darien seria

morto.

Os dois homens lutavam com as faces contraídas pelo esforço. Com uma virada brusca, o

carrasco deu um pontapé que atingiu Darien no quadril.

— Façam alguma coisa! — Thea gritou para os criados.

— Cale-se — Darien ordenou.

Thea fuzilou-o com o olhar, mas ele estava entretido na luta com expressão assassina. Não

poderia permitir que Darien matasse alguém.

O carrasco se virou, mas Darien bateu-lhe no peito, empurrando-o. Depois disparou um soco

no queixo do homem.

A cabeça foi para trás e o sujeito ficou vesgo, mas não caiu. Oscilando, lançou-se para frente,

sombrio matador.

Se Thea tivesse uma pistola, teria atirado nele.

Darien puxou a perna do algoz, que caiu no chão. Pulou por cima dele e começou a bater-lhe

a cabeça no solo.

Por um momento todos se limitaram a observar, mas logo os homens correram para segurar

Darien.

Ele resistiu, querendo punir o oponente, mas em seguida desvencilhou-se de todos. Flexionou

as mãos e esfregou o rosto. Os lábios estavam sangrando e ele deveria estar machucado, mas não

demonstrava fraqueza enquanto o carrasco estava largado no chão.

Ele o matara? Embora o homem parecesse grosseiro, os convidados ali pertenciam à nata da

sociedade. Haveria um julgamento.

Oh, Deus!

Darien endireitou o traje e pegou a peruca, sem se importar em pô-la na cabeça. Ele já fora

reconhecido.

Não houvera morte. O algoz mal conseguia ficar em pé, mas os criados ajudaram-no a

levantar-se. O único sangue aparente era do nariz, obra de Thea.

Ela engoliu em seco, apavorada em ser descoberta. Não havia como as identidades não serem

desvendadas, mas era preciso evitar que os relacionassem com o closet desarrumado.

— Que homem pavoroso — Thea caprichou no tom de aversão. — Obrigada por me resgatar,

lorde Darien. Harriet, onde está você? — A criada se adiantou e Thea segurou-lhe o braço. —

Ajude-me a tirar o elmo. Minha cabeça está explodindo.

— Sim, milady.

Mesmo antes de tirar o elmo, sua identidade fora conhecida por causa de Harriet.

— É lady Theodosia Debenham — alguém disse.

— A filha do duque de Yeovil! Thea levou a mão à cabeça.

— Não pude suportar o barulho e o calor do baile, Harriet. Desci para ver se poderia chamar

meu coche.

A governanta vestida de preto adiantou-se, ordenando para os criados voltarem ao trabalho.

— Claro, milady. Venha sentar-se em minha sala enquanto mando buscá-lo.

Thea não olhou para Darien, sem saber o que dizer e temendo que a expressão pudesse traí-la.

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Os momentos que haviam passado juntos tinham sido maravilhosos, mas ela daria tudo para aquilo

não ter acontecido e não se encontrar nessa situação. Não podia esquecer da imagem da raiva de

Darien, de sua violência, de sua tentativa de matar e ainda encarar a desonra.

Assim que o coche chegou no pátio posterior da casa, ela, Darien e Harriet foram guiados

através de um pequeno jardim para alcançar o veículo. Teve de pegar no braço dele e tentou

imaginar o que ele estaria sentindo.

E ela não teve ideia.

No começo viajaram em silêncio, mas era preciso ter certeza de que não a relacionariam com

o closet. Os criados tinham os próprios meios de espalhar informações.

— Uma dor de cabeça — ela disse com olhos fechados, como se estivesse sofrendo. — Eu

tinha de sair daquele salão.

— Milady deveria ter me mandado chamar — Harriet disse.

— Foi difícil encontrar um servo, por isso lorde Darien se ofereceu para ir comigo procurá-la.

Mal tínhamos acabado de chegar quando aquele homem horrível...

— Bêbado repugnante, isso sim — Harriet afirmou. — Mas tanto faz...

Harriet calou-se, e Thea desconfiou de que a moça também pensava na violência de Darien.

Poderia ser desculpável se ele estivesse cego de fúria, mas ele se mantivera frio como uma máquina

de punir.

Ela abriu os olhos e o fitou. Calmo, ele observava a paisagem escura e o lábio inchado era o

único sinal da luta. Precisava da ajuda dele.

— Darien, é possível que aquele homem tenha nos seguido até embaixo?

Ele se virou e analisou-a. O que via?

— É provável que ele tenha marcado encontro com alguma das criadas em uma das despensas

e estava procurando por outra parceira.

O disfarce perfeito.

— Que horror! — Harriet exclamou. — Perdão, mas não deveria mencionar essas coisas

diante de uma dama.

— Peço-lhe perdão, mas é meu sangue italiano. — Depois de se desculpar, voltou a olhar a

rua que passava.

O sangue italiano era uma coisa terrível.

Mas o problema não era sua mãe italiana, mas sim o lado Cave. Irado, violento e insano.

Quando chegaram à Mansão Yeovil, Darien levou-a para dentro e segurou-lhe a mão por um

momento.

— Minhas desculpas, Thea. Eu não deveria tê-la deixado sozinha.

Uma declaração formal que deveria agradá-la.

— Não há motivo para pensar...

— Antecipar o inesperado é fundamental, não é? — Darien argumentou. — Você está bem?

— Sim, é claro, mas acho que a fantasia foi estragada.

— Principalmente a coruja. — Darien olhou o elmo que Harriet carregava.

O pássaro prateado estava inclinado para a frente, com as penas desengonçadas. Darien

alisou-as e despediu-se com um boa-noite.

O que mais pareceu um adeus.

E não era melhor assim?, Thea perguntou-se ao subir para seu quarto. Não tinha

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temperamento para uma vida tumultuosa. Odiava ter tomado uma atitude que a envergonhava,

independentemente do êxtase que sentira. Sentia-se mal pela violência que causara. Se não estivesse

lá, nada daquilo teria acontecido. Não poderia viver dessa maneira.

O duque e a duquesa não se encontravam em casa, por isso Thea não teve de enfrentar

perguntas. Rezou para não haver evidências do que fizera, enquanto Harriet a ajudava a tirar a

fantasia. Não permitiu que Harriet tirasse a camisa, com receio de que houvesse marcas em seu

corpo.

— Por favor, Harriet, prepare uma tisana. Minha cabeça está me atormentando. Eu me

aprontarei para dormir.

A criada saiu, apressada, e Thea tirou a camisa. Uma espiada no espelho nada demonstrou de

anormal. Como uma experiência tão poderosa podia não ter deixado nenhum sinal?

Fora um prazer delicioso. A intimidade escura e almiscarada. As carícias...

Não queria mais pensar nisso.

Lavou-se, vestiu a camisola comprida de gola alta, soltou os cabelos e escovou-os. Parou em

seguida, segurando a escova prateada na mão solta, lutando contra as lágrimas.

— Pobre querida — Harriet entrou. — Vá para cama, milady, e beba isto. Pus um pouco de

papoula para ajudá-la a dormir.

Thea foi para a cama e sentou-se encostada no travesseiro para beber o remédio. Estava

adocicado, mas era possível sentir o leve amargor das ervas e sobretudo do ópio, o demônio de

Darius. Mas em doses diminutas e ocasionais, uma bênção.

Darien seria assim? Seguro em doses esporádicas?

Se tomasse demais e com frequência poderia se tornar um vício?

Ele estava com a razão, o casamento não daria certo para eles. Nesse caso ela teria de suportar

a tortura da abstinência como acontecia com Darius.

— Pegarei sua touca, milady — Harriet disse quando Thea acabou de tomar o chá.

— Não se preocupe. — Ela enfiou-se debaixo das cobertas e Harriet arrumou os travesseiros,

— Durma agora, milady. Amanhã tudo estará melhor.

Harriet apagou as velas e saiu. Thea ficou deitada no escuro sabendo que nada haveria de

melhorar. Os dias se tornariam áridos e tormentosos, mas com o tempo, se fosse forte, haveria de ter

de volta sua vida ordenada, a que sempre desejara.

Enquanto a papoula fazia efeito, uma lembrança veio-lhe à mente.

Mulheres não deviam usar cabelos soltos. Isso as faz parecer recém-saídas da cama.

Para dormir uma lady trança os cabelos ou prende-os numa touca.

Verdade? Você fará isso na sua noite de núpcias?

Nós não temos de discutir minha noite de núpcias.

Thea adormeceu com lágrimas nos olhos e acordou com as pálpebras intumescidas. Talvez

tivesse chorado durante o sono.

Harriet trouxe a água para as abluções e a duquesa entrou logo depois, desapontada por ela

não ter gostado do baile à fantasia e pôs a mão fria na testa da filha.

— Você nunca foi dada a aventuras, minha querida. Não precisa repetir o experimento.

Foi abusivamente aventureiro e insensato. Thea contou à mãe o que acontecera na área dos

criados, inclusive a luta.

— Ainda bem que você teve a sorte de estar com Darien, minha querida.

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— Exceto que ele foi longe demais. O homem estava derrotado, no chão e Darien prosseguiu

batendo.

— Homens costumam se empolgar e a raiva dele é compreensível depois de vê-la atacada.

Mas espero que o oponente não tenha ficado muito ferido. Isso poderia comprometer de novo a

reputação dele. Uma pena não terem ficado até a hora de tirar a máscara. Assim as pessoas saberiam

que nós confiamos nele para acompanhá-la. Porém a história de luta se espalhará e terá o mesmo

efeito.

Confiaram e eles não corresponderam à confiança.

— Vejo que ainda está indisposta, minha filha. Descanse. Caso se sinta bem mais tarde, há

algumas cartas dos lares das meninas para serem respondidas.

Thea desanimou com a ideia de ficar descansando, pois preferia as tarefas rotineiras. Além

disso, se ficasse o dia todo na cama, a mãe desconfiaria.

Tomou um banho, demorou-se no desjejum, mas acabou pegando a pilha de cartas, o grande

livro de registros do orfanato e sentou-se junto à escrivaninha. Sua mãe sustentava órfãos em

abrigos no reino. As crianças recebiam um presente no dia do aniversário e escreviam uma cartinha

de agradecimento. Os mais jovens e os que não sabiam escrever, recebiam ajuda dos outros.

Como encorajamento, cada carta recebia uma resposta e elogios de uma pessoa da família.

Com o aumento de crianças necessitadas, as respostas consumiam bastante tempo. Os homens

deviam responder aos garotos, mas eles delegavam a incumbência a um funcionário ou secretária.

Provavelmente as crianças jamais saberiam, mas aquilo parecia importante para a duquesa e para

Thea.

A tarefa a acalmou e, uma hora mais tarde quando respondeu a última missiva, Thea sentiu

um bom nível de paz. Cada carta mostrara verdadeira gratidão e os breves relatos revelavam as

dificuldades das crianças. Esses fatos enalteciam a vida e não bailes de máscaras e homens

perigosos. Queria uma vida semelhante à de sua mãe que usava a posição social para fazer o bem.

— Excelentes notícias, querida! — A mãe irrompeu no quarto. — Veio uma carta de Darius

para dizer que ele está a caminho de Long Chart. Ele saiu ontem e por certo não viajará no

domingo. Também não se cansará em excesso, portanto não excederá sessenta quilômetros por dia.

Deveríamos estar em casa a tempo de recebê-lo. Poderíamos viajar no sábado com a desculpa... —

Ela sacudiu a cabeça. — Faremos isso logo na segunda-feira, portanto apronte suas coisas. Ah, e as

compras! Há muitos pedidos de nossos amigos do campo que ainda não foram atendidos. Que

descaso. Eu lhe mandarei a lista, minha querida. Sei que você não se importará em fazer compras.

As garotas adoram essa incumbência.

A duquesa saiu e Thea tocou a sineta para chamar Harriet, achando graça no dia nada

tranquilo. No entanto, manter-se ocupada era o que ela mais precisava. Segunda-feira pela manhã

aquela temporada pavorosa estaria terminada e provavelmente jamais veria lorde Darien de novo.

Independentemente de sua decisão após o casamento do irmão, não era possível imaginar Darien

como membro da sociedade.

Foi até o armário com Harriet para decidir o que levaria para Long Chart e o que deixaria ali.

Em seguida leu a lista dos pedidos dos amigos do campo. Tecidos, fitas, acabamentos para chapéu,

itens de um boticário e de um perfumista. Livros.

Havia sempre mais opções em Londres do que na zona rural, mas aquela era uma tarefa

hercúlea para um dia.

Escreveu a lista dos livros em separado e mandou-a para Thoresby, pedindo a um funcionário

fizesse a busca. Depois saiu com Harriet e um lacaio. Os comestíveis poderiam ser encontrados em

Fortnum e no Mason's.

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CCaappííttuulloo VVIIIIII

Darien não dormira bem, mesmo com o auxílio do conhaque. A afirmativa de Prussock de que

se tratava da última garrafa o levara a censurar Lovegrove que, embora tivesse se afastado

cambaleando e chorando, nunca abandonaria o hábito.

A cavalgada matinal não o deixara de bom humor e o fato de o artista não estar no parque o

fizera ranger os dentes, mesmo sabendo que estava sendo ilógico. Luck Armiger não voltara lá

desde o primeiro encontro. Ou fugira com os cinco guinéus ou estava trabalhando a mando dele.

Ao voltar, sentou-se à mesa para escrever uma mensagem contundente ao jovem e lembrou-se

não ter a menor ideia de seu endereço. Mandou a missiva a seus advogados, mas duvidou que desse

certo. Ninguém era confiável.

Principalmente ele mesmo.

Como caíra em tentação na noite anterior? Sabia que Thea não enfrentaria com naturalidade

aquele tipo de diversão. Era evidente que ela pensaria em casamento. O que seria humanamente

impossível de acontecer.

Tirou os inventários para fora da gaveta que costumava trancar para definir o âmbito da culpa

de Prussock, mas naquele dia as letras pequenas fizeram seus olhos arderem.

Pup entrou, esbanjando saúde e bom humor.

— Pensei que tivesse ido ao baile a fantasia a noite passada, Canem.

— Eu fui — Darien resmungou.

— Não o vi.

— Você foi? — Darien o encarou.

— Fox me levou. Acho que não o vi por que saí cedo e agora vou dar um passeio.

Darien entendeu que deveria ter ido com ele, mas também não era o protetor de Pup.

— Aproveite — Darien disse e retornou à página que ainda não fazia sentido.

Afinal fizera a coisa certa.

Não no começo. Preservar a virgindade dela fora uma graça menor. Tirara a inocência de

Thea, mas não a arrastaria para dentro da cova.

Cova... Cave.

Talvez devesse mudar a pronúncia de seu sobrenome.

Trancou os registros, pegou o chapéu, as luvas e a bengala e foi para a casa de Van.

— Jackson — disse, assim que Van entrou na sala de recepção.

Van ergueu as sobrancelhas, mas logo os dois caminhavam rumo ao estabelecimento de boxe

de Jackson.

No passado, eles boxeavam e lutavam com frequência. Fora dos períodos mais ativos da

guerra, os dois precisavam de meios para consumir a energia. Lutas sem armas, lutas sem intenção

de matar ou aleijar, tinham sido uma diversão. Contudo, na semana anterior, esses eventos haviam

feito parte de um plano, parte do aumento da aceitabilidade de Darien entre os homens de classe

superior. Era a parte do esforço que ele mais gostava e Van aproveitara a desculpa.

— Maria não gosta da mercadoria marcada — Van dissera.

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Na certa ele brincava, mas Darien tentara não deixar muitas marcas.

No local que cheirava a suor, eles ficaram de camisa e calção, vestiram as grandes luvas e

começaram a lutar. Darien teve de se conter. O fogo da noite anterior ainda estava aceso por causa

da briga, mas também pela confusão de tudo aquilo.

Tinha sido ótimo que Thea o tivesse visto lutar, para saber quem ele era.

Uma máquina de punir. Uma máquina de matar.

Maldito Cão Cave. Ele odiava o nome, mas sabia que o merecia.

Thea não precisava que ele a defendesse. Ela passaria pela vida numa segurança dourada,

contanto que não tivesse nada a ver com homens como ele.

Jackson observou-os por um momento, dando instruções, depois tirou o casaco e afastou Van

com um aceno.

— A que devo essa honra? — Darien indagou. Era uma distinção, mas ele entendia o homem.

— Você está precisando se soltar.

Era verdade e com Jackson não precisava ser cuidadoso e teria de lutar por sua vida. Ele

preservava a sua, mas não tinha nenhuma mulher que se importasse com as marcas.

Van queixou-se e Jackson lutou com ele e foi mais uma lição científica do que um embate.

Eles se lavaram para tirar o suor, tornaram a vestir-se e depois relaxaram com cerveja na sala.

— Vai me contar agora o que está acontecendo? — Van perguntou.

— Tudo e nada — Darien respondeu. — Thea Debenham e eu estivemos no baile a fantasia

na casa da lady Harroving a noite passada.

Van ergueu as sobrancelhas.

— Uma grande mudança para ela, não é?

— Thea queria uma aventura. — Darien contou o que acontecera. — Eu me afastei por um

momento e aquele bruto insinuou-se com ela à força.

Van tomou um gole de cerveja.

— E você tentou matá-lo pelo fato de ele tentar tocar em lady Thea. Muito compreensível.

Era verdade.

— Pelo menos isso serviu para matar qualquer entusiasmo inconveniente que ela pudesse

estar desenvolvendo por mim.

— Processo desnecessário. Os Debenham partem para Somerset na segunda-feira.

A afirmação teve o efeito de um banho gelado em Darien.

— Darius Debenham já se recuperou?

— O suficiente para viajar, embora sem muita pressa. Isso é algum problema? Você alcançou

a meta e não precisa mais deles.

— Com a benéfica assistência da Confraria.

— Está mesmo na hora de desistir disso.

— Eu não sei, tudo está acontecendo muito depressa.

— Então quais são seus planos futuros? — Van perguntou. — Para o verão, por exemplo.

Será bem-vindo se quiser passar algum tempo conosco...

Ele se interrompeu porque quatro homens entraram, rindo alto.

Lorde Charles Standerton aproximou-se ao ver Van e Darien.

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— Ouviram falar do incidente no baile de lady Harroving?

Darien ficou tenso, e Van fitou-o antes de responder.

— Este meu amigo agrediu a socos um carrasco que insultou uma dama.

— Mas então era Canem! — Standerton disse e riu. — O homem escolheu o oponente errado.

Mas não é isso, estou falando sobre Prinny.

— O príncipe regente estava lá? — Van surpreendeu-se.

Mais risos no grupo de recém-chegados que aceitou canecas de cerveja de um criado antes de

sentar-se junto à mesa.

— Estava — lorde Pargeter Greeve respondeu — e trajado como imperador romano, com

folhas de louro e tudo!

— Ele pretendia ficar incógnito, mas todos o conhecem. Como não o viu, Canem?

— Ele deve ter chegado depois de eu ter saído.

— Na certa. Mas o mais engraçado foi o outro Prinny, um sujeito vestido como ele!

— Fantasiado de regente? — Van admirou-se. — Eles se encontraram?

Mais risos em lugar de resposta.

— Uma cara gorda diante da outra! — Sir Harold Knight riu, batendo com o punho na mesa.

— O falso regente era ainda mais fiel do que a realidade. Era um camarada gordo, mas tinha

travesseiros amarrados na barriga e nas coxas. Possivelmente usou enchimentos na face.

— Tinha alguns adornos brilhantes imitando as condecorações no peito — Standerton

afirmou — e os cabelos estavam penteados para cima como os do príncipe.

— Devia estar muito bêbado — lorde Pargeter comentou. — Parecia não entender o que se

passava. Ali estava o regente de cara vermelha, olhos saltados e o homem dizendo: Romano, hein?

Sou o príncipe regente.

Os três homens desataram a rir, limpando os olhos. Darien também riu, mas teve uma suspeita

que o abalou. Assim que foi possível, avisou que precisava retirar-se. E não demorou para ele e Van

estarem andando na rua.

— Van, como andam as aventuras maritais de Pup? Não tive muito tempo para me dedicar a

isso.

— Maria ocupou-se com o caso. Na terça-feira ele veio tomar chá lá em casa com Alice

Wells.

— E a dama gostou dele?

— Achamos que sim. Ontem eles foram ao parque com os filhos dela e depois ao Gunter's.

— Eu devia estar muito ocupado, pois ele nem ao mesmo me contou. Sinto-me como um pai

negligente.

— Você não é pai dele, Canem.

— Não, mas se tudo der certo, alguém terá de arrancar dele uma proposta. Isso não é injusto

para ela?

— Não. Não se trata de um casamento por amor, mas Alice pareceu gostar dele. Parece-me

que o primeiro marido, a quem ela amava, foi um sujeito dramático, dominador e ciumento. E agora

o ideal seria alguém amigável, fácil de lidar, capaz de proporcionar conforto e segurança.

— Espero que seja verdade. Parece uma imposição, mas eu preciso vê-lo acomodado.

— Algum motivo em particular?

— Suspeito que Pup era o regente falso.

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Van espantou-se.

— Por que ele faria isso?

— Pup faz tudo o que lhe é sugerido. Suponho que a mão de Foxstall esteja por trás disso.

— Ele é um mau sujeito, Canem.

— Fox está inquieto sem ter com quem lutar. Talvez como eu.

— Não. Ele tem traços desagradáveis. Tenho ouvido histórias. Coisas ruins e até letais têm

acontecido com quem o desafia.

— Então por que nada foi feito?

— Não há evidências. Em tempos de guerra é muito difícil dizer como uma pessoa é ferida ou

morta.

Darien queria defender Foxstall em favor dos velhos tempos.

— Eu me desentendi com ele e nada me aconteceu. De qualquer modo, em breve ele irá para

a Índia, mas é uma péssima influência para Pup. Prefiro ver Pup acomodado com quem se preocupa

com ele.

Darien voltou para casa e Pup já havia saído. O rapaz regressou no meio da tarde, assobiando

fora do tom.

— Estive no Tatfs — ele anunciou com orgulho. Era um famoso estabelecimento de venda de

cavalos.

— Comprou alguma coisa? — Darien apavorou-se.

— Eu não sabia como me decidir. Graças a Deus.

— O que você fez ontem à noite? — Darien serviu vinho para os dois, esperando uma

mentira.

— Fui ao mesmo baile que você. Fox me levou, mas eu não o vi, Canem. As fantasias eram

maravilhosas. Eu estava como o príncipe regente.

— Não foi uma atitude inteligente, Pup. Você contou para alguém?

— Fox disse que era um segredo.

— Ele está certo. Seria muito ruim revelar a identidade no baile a fantasia.

— Eu também não desempenhei meu papel por muito tempo. Encontrei um homem gordo

vestido como romano e ele não gostou, talvez desejando ter pensado primeiro na minha fantasia.

Fox me levou embora depressa. Antes eu também tinha ido a um jantar.

Sentindo-se responsável, Darien levou Pup à Exposição Egípcia, onde as exibições na certa

agradariam ao rapaz. Quando voltaram, encontraram um convite para jantar com os Vandeimen

depois do culto do dia seguinte e uma referência avisando que a sra. Wells estaria presente.

— Será bom — Pup comentou. — Lady Vandeimen mantém uma boa mesa.

— E a Sra. Wells?

— Ela provavelmente também entende como se prepara um bom jantar. Ou saberia, se tivesse

dinheiro.

Darien resolveu abandonar a sutileza.

— Por isso é melhor que se case logo com ela, antes que algum homem a agarre.

Pup refletiu por alguns instantes.

— Acha que isso poderia acontecer?

— Certamente. Para evitar isso, Pup, faça o pedido amanhã.

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Pup puxou a gravata enorme como se ela estivesse apertada.

— Como se faz isso, Canem? Tenho medo de me atrapalhar.

— Não pense nisso. Você dirá que precisa falar com ela em particular e Maria levará os dois à

sala de recepções.

— Antes ou depois do jantar? — Pup perguntou, ansioso.

— Quando lhe parecer melhor. — De imediato, Darien entendeu ser uma tolice oferecer

escolhas.

— Antes — Pup decidiu. — Eu ficaria preocupado se a conversa atrapalhasse a digestão.

— Ótimo. Quando estiver sozinho com ela, diga algo parecido com: Minha querida Alice, eu

passei a gostar de você e a admirá-la. Quer ser minha esposa?

Pup movimentou os lábios, ensaiando a fala.

— Posso fazer isso, Canem.

— Claro que pode, é muito fácil. Os dois juntos comprarão o anel na segunda-feira e não há

razão para adiar o casamento, não é?

Pup surpreendeu-o com um pensamento original.

— Homens casados precisam de uma casa. Teremos de esperar.

— Você pode alugar uma. Tenho certeza de que a Sra. Wells está ansiosa para sair de sob o

teto do irmão. Você e sua esposa terão prazer em procurar o lugar que mais lhes agrade e de

preferência no campo. Crianças precisam de espaço.

— Certo — Pup concordou. — De vez em quando poderemos vir até a cidade. O que você

fará esta noite?

Darien gostaria de ficar em casa, tratando das feridas da véspera e das feitas por Jackson que

logo se manifestariam. Mas como a partir do dia seguinte Pup não seria mais um peso nas suas

costas, prometeu ao rapaz uma ida ao Astley's, onde grandes efeitos, macacos atores e belas

amazonas seriam um prazer para o rapaz.

Falar em casamento lembrou-o de Frank. Mesmo com a briga, a campanha progredia com

sucesso. Algumas atividades do visconde Darien tinham sido relatadas nos jornais e poderiam

atingir Gibraltar. Darien escreveu ao irmão, avisando-o para ficar alerta aos ventos e preparar-se

para falar novamente com o almirante Dynnevor no momento exato.

Thea estava quase terminando suas tarefas quando encontrou Maddy na loja de armarinhos da

Sra. Curry.

— Você esteve mesmo envolvida em uma briga nas dependências dos criados na Mansão

Harroving? — Maddy perguntou.

— Fale baixo — Thea a advertiu, olhando ao redor. — Não foi como devem ter-lhe contado.

— Que pena. Seu traje sugeria prontidão para uma guerra e pensei que você tivesse atingido

alguém, apesar da fantasia incômoda.

— Era mesmo e fiquei com dor de cabeça, por isso desci até lá.

— Ah, vamos conversar na confeitaria — Maddy convidou. — Estou cansada de procurar

canutilhos para arremate.

Thea tinha alguns itens para comprar, mas descansar um pouco tornaria a tarefa mais fácil.

Deu a lista para Harriet e o lacaio, pedindo para eles procurarem o necessário.

Sentou-se com Maddy para tomar chá e descobriu que estava com fome, pois comera pouco

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no café da manhã. E contou a história, enquanto comia.

— Ouvi dizer que Darien quase matou aquele homem — Maddy comentou. — Excitante!

— Horrível, quer dizer...

— Não me diga que perdeu Prinny e Prinny!

— O que está me dizendo?

Maddy acabou de mastigar um pastel de creme e relatou o arrepiante encontro do príncipe

regente com alguém fantasiado como ele.

Thea cobriu a boca, dividida entre o riso e o horror.

— Não!

— Sim!

— Quem era ele? Espero que para sorte do sujeito, ele nunca seja identificado.

— Não sei, tenho certeza de que nunca o encontrei. Acho que Fox deve saber, mas ele não

disse nada.

— Fox estava lá?

— Sim. Mamãe não gosta dele, por isso tive de ir com Staverton, mas Fox e eu demos um

jeito de nos encontrarmos.

— Você deveria escutar tia Margaret. Fox é um homem indesejável.

— Muito desejável. — Maddy deu um sorriso afetado e lambeu as migalhas da boca. — Além

disso, você não pode me passar sermão, pois estava lá com Darien.

Thea suspirou.

— Eu sei.

— Então, pretende se casar com ele?

Thea ficou vermelha e procurou mostrar-se insultada.

— Claro que não!

— Sua tola. Ele estava uma graça naquele traje de cetim e rendas.

— Duvido de que o verei novamente. Na segunda-feira viajaremos para Long Chart.

— Não! Pobrezinha. Por quê?

— Vamos esperar Darius que já está a caminho.

— Darius não precisa que todos limpem sua testa e lhe deem mingau.

— Papai e mamãe resolveram ir e não posso ficar aqui.

— Fique conosco e nos divertiremos bastante.

Thea não suportaria ficar dias e dias na companhia de Maddy.

— Mas eu quero ir, Maddy.

— Está bem, se você está abandonando o visconde Darien, talvez eu o cerque. Pode ser que

mamãe permita que eu me encontre com ele. Você conseguiu arrastá-lo para dentro das raias da

aceitabilidade e ele tem um título, o que é o sonho de minha mãe para meu casamento. Eu prefiro

um homem mais alto, mas suponho que na cama isso não faça muita diferença.

Thea levantou-se com receio de que o chá e os bolinhos embrulhassem seu estômago.

— Tenho de terminar as compras e organizar minhas arcas. Escreverei, se não a vir antes de

minha partida.

Em casa, Thea começou a empacotar suas coisas como se quisesse afastar-se da cidade e das

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tentações o mais cedo possível. As palavras de Maddy tinham sido repugnantes e haviam

despertado o mais puro ciúme. Mas haveria de se recuperar assim que fosse embora. Com certeza.

Harriet começou a resmungar e Thea entendeu que nunca havia arrumado os próprios

pertences. Na certa fazia tudo errado. Resolveu tocar piano, o que não a acalmou, ainda mais

errando as notas.

Naquela noite foi a um concerto, mas Darien não estava lá e ela se repreendeu por haver

notado isso. No domingo, foi com os pais à igreja de St. George, e Darien também não estava lá.

Ele a estaria evitando?

À tarde, sua força de vontade baqueou e ela procurou a mãe.

— Eu estava pensando...

— Sim, querida? — A duquesa levantou o olhar da lista que examinava.

— Como vamos partir amanhã, não deveríamos demonstrar nosso último apoio a Darien?

— Mas é domingo, querida.

— Que tal um passeio no parque?

— Tenho tanto o que fazer. Se quiser, querida, pode ir sozinha, será perfeitamente respeitável.

É muita bondade sua pensar nisso. Acho que o pobre homem acredita que a desapontou.Ele

escreveu uma mensagem para mim se desculpando.

Pelo que em particular? Thea corou.

— Não foi culpa dele.

— Mas você entendeu que ele reagiu com energia demasiada.

— Eu provavelmente estava cansada.

— Também acho, querida. Você poderia tranquilizá-lo. Mandarei um recado para saber se ele

está livre.

Thea voltou a seu quarto, confusa. Apesar da permissão de encontrar-se com Darien, não

tinha certeza se deveria fazê-lo. Seria mais prudente resistir à tentação. Mas provavelmente não

voltaria a Londres tão cedo e muita coisa poderia acontecer até lá. Apenas mais um encontro em

nada a prejudicaria e talvez pudessem se despedir em termos mais amigáveis.

Era possível que ele se desculpasse, pois era evidente que a evitava.

Darien respondeu que viria às três horas. Thea apressou-se em escolher o traje perfeito, mas

os seus favoritos já estavam na arca. Decidiu-se por um vestido rosa-escuro com bolero do ano

anterior. Era seu preferido e Darien não saberia que o mesmo já tinha sido usado muitas vezes.

Seria apenas um passeio pelo St. James Park, Thea pensou, ajustando a boina de cetim

enfeitada com flores. Uma chance para assegurar-lhe que não estava aborrecida e fazer uma

despedida amável.

Assim que Darien entrou na sala de recepções onde Thea esperava, o coração dela disparou e

foi impossível deixar de fitá-lo. Rosto magro, olhos negros e... aquelas mãos...

— Boa tarde, lady Thea. — Darien também analisou sua aparência. — Espero que tenha se

recuperado.

Thea não suportava a distância entre eles, mas foi incapaz de sair do lugar.

— Sim, obrigada. Estive muito ocupada, pois vamos deixar Londres amanhã.

— Ouvi falar.

Eles se entreolharam, mas nenhum pensamento íntimo pôde ser dito por causa da porta aberta

e da sanidade mental. O desejo entre eles era como um poder no ar, assim como a impossibilidade

de qualquer futuro juntos.

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— Darien, não o julgo responsável por nada.

— Obrigado. Mas meu próprio julgamento é mais severo.

Darien apontou a saída. Thea sufocou um suspiro, passou por ele e saiu da sala.

Eles andaram pela rua em silêncio, o que era intolerável.

— Espero que você não sinta falta do apoio de minha família.

— Creio que poderei me arrumar, com a ajuda da Confraria. — O tom dele era indefinível.

— Você não se importa?

— Qualquer recurso pela causa.

Thea evitou outro suspiro.

— Tem notícias de seu irmão?

— Não, mas ele deve estar à caça de piratas no mar ou coisa parecida.

— Quanto tempo pretende ficar na cidade?

— O tempo necessário para conseguir meus propósitos aqui.

— As sessões do Parlamento podem prolongar-se muito...

Em meio à conversa que não interessava, eles entraram no St. James Park e o gelo foi

quebrado.

— Sinto muito, Thea, nunca pensei em fazê-la sofrer, mas eu a avisei desde o começo.

— Você não me fez sofrer.

— Não minta — Darien afirmou com gentileza. — Seus sentimentos são visíveis.

Pelo menos eles conversavam e o sorriso leve de Thea era sincero.

— Está querendo dizer que sou diferente?

— Outro assunto que um cavalheiro não deve dizer a uma dama? Você já sabe que não sou

esse tipo de homem.

Thea estava com as mãos apertadas diante de si.

— Gosto dessa espécie de cavalheiro.

— E eu da espécie de dama que você é. Aquela que se sente culpada pelo que fizemos.

— Não me sinto culpada. Seria errado repetir o que houve, mas não posso lamentar o que

aconteceu entre nós.

— Vamos caminhar. — Darien tocou-lhe no braço levemente. Thea obedeceu e andou pelo

caminho ladeado de árvores, como se tivesse saído para tomar ar.

— A culpa e o medo da culpa podem ser uma proteção — Darien afirmou.

— Quer que eu me sinta culpada?

— Eu a quero protegida, Thea. Do sofrimento físico, do desconforto e de mim.

— Uma associação com você não é perigosa. O que houve no baile, poderia ter acontecido

com qualquer um e isso nada tem a ver com quem você é.

— Mas eu agi muito mal.

— Você me salvou.

— Você salvou a si mesma, eu apenas puni o malfeitor. Você demonstrou seu desagrado.

— Eu estava chocada — Thea declarou. — Mas já me recuperei.

— Não pensa em mim como um sanguinário vilão?

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— Você é um homem exasperante. — Thea se deteve e fitou-o com raiva. — Muito bem, por

que fez aquilo e por que se comportou daquela maneira?

— Porque eu estava furioso e queria machucá-lo.

Pegue ou largue, o tom uníssono sugeria. É o que eu sou. E a intenção era ela largar.

Thea virou-se e caminhou, falando sobre os preparativos da viagem. Qual o vestido que usaria

no primeiro dia. Quais os chapéus seriam mais adequados para o campo e quais seriam deixados na

cidade. Chinelos, sandálias e meias botas. Luvas de couro e de renda.

Era a espécie de tédio que ela nunca infligira a ninguém, mas Darien merecia todos os

instantes de aborrecimento. Ela continuou com a conversa durante toda volta do parque, fitando-o

de relance de vez em quando. Darien parecia atento. Estava certa de que ele pensava em cavalos,

armas ou algo parecido, por isso parou para confrontá-lo.

— Diga-me no que está pensando agora.

— Que você seria uma esposa muito dispendiosa.

— Irritante!

Darien riu.

— Sei como ser parcimoniosa — Thea protestou.

— Assim como sabe fazer pão.

— Você não é pobre. — Thea imaginou se ele pensava em casamento.

— Não, mas uma temporada de suas roupas pode levar-me à miséria. Thea, minhas terras

precisam de dinheiro por muitos anos e sobrará pouco para quinquilharias. Para falar a verdade, não

estou muito interessado nisso.

— E cavalos? — Thea o desafiou, e ele sorriu, sincero.

— Vou querer alguns bons, mas não como St. Raven que tem muitos e compra um novo a

cada impulso.

— Ele é um duque.

— Você é a filha de um.

— Sinto-me tentada a desposá-lo somente para provar que não o levarei à prisão dos

devedores.

Era um assunto muito perigoso, mas e se Darien estivesse pensando em casamento?

— Não estará pensando em abandonar-me a meu destino?

— Não, eu viveria aqui com você e sairia com um cesto para pedir moedas a meus amigos

ricos.

— Thea, é preciso falar seriamente.

Thea parou para observar os patos na lagoa.

— Você não me tem em alta conta, não é?

— Você é minha deusa, mas...

Ela se virou para Darien.

— Se disser que as deusas se abandonam à ociosidade, exigindo adoração, sou capaz de lhe

bater.

— Você e a duquesa certamente não, mas a sua esfera é diferente da minha. Eu não poderia

suportar ter de arrastá-la para baixo.

— Deuses e deusas não estão sempre invadindo esferas mais baixas? — ela o desafiou.

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— Você tem lido novamente livros picantes.

— Os clássicos não são picantes.

— São, sim. Considere os cisnes e pense em Leda.

— Ou pense nas penas — Thea murmurou.

— Penas destruídas — ele a lembrou.

Thea recomeçou a caminhar entre as árvores que ladeavam uma depressão no solo.

— Conhece esse lugar? É ainda chamado de lago de Rosamund, embora hoje em dia tenha

sido aterrado. Era muito popular entre os suicidas.

— Um lago continua sendo um lago mesmo quando está seco. Um Cave nunca deixa de ser

um Cave. Uma deusa nunca deixa de ser um ente superior. — Darien puxou-a de encontro a ele e

beijou-a sem encontrar resistência. E muito rápido ele a afastou, mantendo as mãos em seus

ombros. — Há magia entre nós, Thea...

— Sim.

— ...mas também as sementes de nossa destruição.

— Você é um guerreiro, por que não anseia lutar por nós?

— Eu luto demais e muito bem. Não é esse o ponto?

— Não tem importância! Isto é, não é que não me importe, mas prefiro viver com o guerreiro

do que sem você. Isso faz sentido?

— Muito e não posso permitir...

Thea recuou.

— Por que tem de dizer isso o tempo inteiro? Tenho uma nova proposta.

— Do que se trata?

— Amanhã partiremos para Somerset — Thea disse. — Provavelmente não voltaremos a

Londres até o outono. A primeira parte da proposta é nós não nos comprometermos antes disso.

— E a segunda?

— Discutiremos o assunto quando nos encontrarmos de novo.

— Discutir. Estamos à beira de uma explosão aqui, num parque público...

— Entre as árvores — Thea retrucou.

— Mesmo assim. E em quatro meses ou mais você espera que conversemos?

— Talvez possamos ver a tolice de nossa excitação.

— Caso contrário?

Thea abaixou o olhar e depois o fitou.

— Nós nos casaremos. Estamos acertados?

Darien olhou-a com os lábios estreitados.

— Presumo que até lá você tenha recuperado o juízo. Pois muito bem, seja como quiser.

Não foi muito gentil, mas Thea evitou sorrir enquanto caminhavam de volta para a casa dela.

Era uma promessa e eles manteriam a palavra empenhada.

Os Yeovil deixaram Londres e Darien continuou as atividades sociais, sem abandonar uma

pequena chama de esperança, mesmo sabendo que não seria o marido certo para Thea. Teria de

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impedir que ela continuasse com aquela loucura, sob pena de arruinar-lhe a vida. No entanto, em

seu íntimo, acreditava poder restaurar a reputação dos Cave e assim ser merecedor dela.

Espantava-o a falta que sentia de Thea. Quando ela estava na cidade, mesmo sem a ver

durante dias, poderia encontrá-la quando quisesse. Naquela altura, Thea encontrava-se

irremediavelmente afastada.

Pelo menos Foxstall também estava ausente, pois retornara ao norte, não sem antes se queixar.

— Justo quando eu fazia progressos com a Srta. Debenham.

Se Darien desconfiasse do prosseguimento daquela união, teria impedido o desastre de

qualquer maneira.

— Com algumas mulheres, penso que a ausência seria o estratagema, mas não com ela —

Foxstall lamentara. — Uma verdadeira borboleta.

— Não sei por que você se incomoda.

— Quinze mil e a sólida influência dourada de sua família! Não sei como você deixou a outra

escapar entre os dedos, ainda mais depois de a ter levado ao baile a fantasia.

— A ideia de ir até lá foi de lady Thea.

— Espero que faça bom uso disso.

Haveria certa malícia no tom de Foxstall? Ninguém parecia suspeitar do que estava

acontecendo.

Darien fizera uma visita a lady Harroving no dia seguinte ao baile para desculpar-se sobre o

incidente, mas o objetivo principal era descobrir o que se dizia sobre o closet desarrumado. Nem

uma palavra, mas ficara sabendo que o carrasco era o conde de Glenmorgan, conhecido por sua

beligerância e que fora dissuadido por seus amigos da intenção de desafiar Darien.

— Suponho que a oposição da família pudesse fazer diferença, mas ela é voluntariosa

suficiente para conseguir o que deseja — Foxstall disse. — Você ainda vai me encontrar aninhado

no seio da família Debenham. Sinecuras suculentas. Lugar no Parlamento. Casa no melhor local da

cidade.

Por cima de meu cadáver.

— A volta a Lancashire não o incomoda? — Darien indagou.

— Sou perito em escrever cartas. Deseje-me boa sorte, velho amigo.

— Boa viagem — Darien falou. — Bons ventos o levem.

Na ausência de Foxstall, Maddy decidiu divertir-se com Darien e ele gostou de manter-se

ocupado.

A briga com Glenmorgan não prestigiara sua reputação. Alguns homens admiraram a ação

arrojada, mas outros rotularam-na como impolida. Uma disputa entre cavalheiros se resolvia em um

duelo organizado e nunca com uma briga na cozinha. Então foi preciso trabalhar com maior energia

para recuperar o terreno perdido.

As manhãs, os almoços e as noites eram passados com um ou mais membros da Confraria em

cafés, encontros científicos, salas de boxe e festas para jogos. Quando a presença feminina era

indispensável, apelava para a bela Laura Bali, a tranquila Cressida St. Raven, a animada Clarissa

Hawkinville e até para a mordaz Arabella Hurstman, tia de Middlethorpe.

Ao ver aquela mulher de rosto lavado e vestido simples, duvidara de sua utilidade, mas um

passeio com ela pelo parque em hora de movimento fora como um tônico social. Sob o olhar firme

de Arabella, os mais relutantes sorriam para ele pela primeira vez. Com os mais teimosos, ela o

conduzia até eles e ordenava que dessem apoio a uma pobre vítima do rancor e da malevolência.

Não inteiramente nesses termos, mas sempre com efeitos positivos.

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Provavelmente ela os amedrontava com o guarda-chuva, assim como acontecia com ele.

Gostava dela, mas não da fria e distante lady Cawle, mas supunha que a condescendência em

falar com ele por alguns momentos seria um selo de aprovação.

Foi até mesmo recebido pela realeza. Várias alavancas tinham sido postas em ação e duas

semanas após os Yeovil terem deixado a cidade, Darien foi convocado para uma audiência privativa

com o príncipe regente em Carlton House. Seu principal padrinho era o irmão do regente, duque de

York, comandante em chefe do Exército e pessoa calorosa.

O regente pareceu apenas indulgente, mas Darien apreciou a honra e o que isso significaria

em sua campanha, e seu autocontrole fora muito exigido. O regente de grande circunferência e

roupas vistosas parecia um Pup mais velho. Uma pena ter perdido o encontro mítico.

Até mesmo a arte foi recrutada. Luck Armiger não fugira com o dinheiro, mas trabalhava

arduamente em sua tarefa. O desenho a óleo provava sua habilidade, pois transformara o olhar de

uma estátua em um de ação, com o cavalo e o condutor ansiosos por uma batalha. Darien pagou

pela pintura completa e Maria ofereceu-se para expor o quadro numa galeria, uma representação

ilustrada de um Cave glorioso.

Embora achasse a ideia absurda, Darien aceitou pela causa.

Em meio a isso tudo, Pup se casou com Alice, aproveitando o lauto café da manhã que ele

mesmo providenciara para depois da cerimônia e foi passar a lua de mel na casa de campo de lorde

Arden. Darien sentiu falta de Pup. Sem o rapaz, o desânimo retornou à Mansão Cave, junto com os

fantasmas.

Fora isso, tudo ia bem.

No entanto, não entendia por que se esconder no gabinete naquela manhã ensolarada, com

papéis sem vistoriar a seu redor, bebendo conhaque em excesso. A pena prateada poderia ser uma

pista.

Girou-a entre os dedos. Ele a encontrara presa num dos galões da fantasia de cavalheiro. Era

uma fraqueza conservá-la, mas era tudo o que lhe restaria de Thea por muitos meses ou talvez para

sempre.

Havia um problema sério. Há mais de um mês não tinha notícias de Frank, o que o

preocupava. Fizera indagações no almirantado e não tivera notícia de nenhuma campanha em que o

irmão estivesse envolvido. E nada mais poderia fazer, exceto sair rumo a Gibraltar.

Deixou o conhaque de lado e concentrou-se nos livros e papéis que tinha diante de si.

Esquecera as tentativas de entender os inventários a fim de preparar-se para assumir seu lugar

no parlamento. Antes disso, queria algum entendimento sobre a infinidade de temas a serem

votados. Aprender grego e latim em Harrow fora bem menos trabalhoso do que sua luta para ser

aceito e merecedor de Thea. Faria tudo por isso.

Passado algumas semanas sem notícias de Maddy, Thea recebeu uma carta que resolveu ler

no terraço, diante do lago tranquilo e dos cisnes. Esperava comentários salazes, mas deparou-se

com um palavreado bombástico.

Estou sendo tão maltratada, Thea! Mamãe se pôs contra Fox e sem razão. O que importa se

ele não tem fortuna ou título? Eu tenho um bom dote, a influência de nossa família pode render

posições lucrativas e tenho certeza de que ele ganhará um título qualquer dia. Como se eu me

importasse com tais coisas.

A verdade é que ele deseja se casar comigo! Estou completamente apaixonada, ou estaria se

ele não estivesse naquela horrível Lancashire e mamãe não me proibisse de escrever. Na verdade,

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tenho mandado cartas diariamente.

Ela mandou avisar papai que me mandou uma carta proibindo qualquer contato. É

preocupante contrariar papai, por isso rezo para que ele nunca descubra. Se você estivesse em

Londres, eu lhe pediria para enviar algumas cartas. Você não pode vir para cá? Estou surpresa

que não tenha seguido Darius até Londres.

Na verdade, após três semanas em Long Chart, Darius, recuperado e inquieto, decidira voltar

para Londres e Thea não discutira. Os problemas de Canem Cave eram em parte da

responsabilidade de Darius e ele teria de fazer o possível para ajudar. O duque já tinha voltado para

prosseguir no trabalho parlamentar. Thea poderia ter ido, mas preferira ficar no campo e contara

com o apoio da mãe.

Aquele fora provavelmente o maior teste de força de vontade que já enfrentara. Não por causa

de Darius. Com a recuperação dele, os laços haviam sido atenuados. Ela ainda o amava, mas o

irmão tinha sua própria vida e sentia muita falta de Mara. As cartas diárias escritas pelos dois

haviam se tornado uma brincadeira amorosa. A tentação provinha de Darien.

Ela se sentia recompensada por sua falta de vontade. Em Londres, Maddy tentaria enredá-la

em decepções, o que já acontecera. Agradeceu a Deus por estar fora disso, mas a ferroada no final

da carta a fizera sofrer.

Lorde Darien é visto em toda parte e parece que a vergonha da família foi extinta. Na falta de

Fox, eu me divirto com ele sempre que posso.

Thea olhou os cisnes despreocupados e tentou não pensar em Leda.

Teria de resistir à vontade de ir para Londres e rechaçar o perigo. Eles haviam feito uma

promessa e era preciso esperar para ver aonde os sentimentos os levariam.

Darien voltou para casa depois de uma sessão no Jackson's e encontrou um convite para ir à

casa de Nicholas Delaney. Apesar de todo apoio da confraria, pouco vira Delaney. Supôs que os

divertimentos sociais não agradassem ao outro e suspeitou que Delaney ficava fora de seu caminho

por achar que Darien o considerava irritante.

Isso podia ser verdade. Delaney fora muito desagradável em Harrow.

Delaney nada fizera de excepcional, mas fora muito descontraído e confiante para um garoto

de catorze anos. Nada semelhante à confiança de um Arden, certo de seus futuros poder e riqueza

ou de um Bali, protegido pelo brilhantismo. O jovem simplesmente estava feliz consigo mesmo e

não mudara. Tendo aceitado a ajuda e as responsabilidades daí advindas, Darien concordara com o

convite.

Não conhecia a casa de Delaney. Em estrutura arquitetônica, parecia-se com a sua e com a

maioria das casas londrinas. Mas em seu interior, a atmosfera era o oposto da Mansão Cave. Luz,

vida e uma espécie de harmonia pacífica.

Delaney saudou-o com simpatia e levou-o até uma biblioteca excepcional. A quantidade de

livros era tanta que havia vários empilhados no chão. No entanto, a casa não era arrumada.

— Não repare na desordem — Delaney desculpou-se. — Quanto mais permaneço aqui, mais

livros eu compro. Em suas preces noturnas, Eleanor pede para sairmos daqui. Estou tentando

decidir o que levar para Red Oaks e o que deixar aqui. — Ele salvou um livro que ameaçava

escorregar da beira da mesa e olhou a lombada do mesmo. — Talvez goste desse. O século das

invenções.

— Qual século? — Darien perguntou por perguntar. Delaney deveria ser um erudito

antiquado, mas brilhava com vitalidade.

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— Diria que o décimo segundo. Um século que contou com muitos inventos que deveriam ser

lembrados. Darius está aqui e gostaria de lhe falar.

Darien levou dois segundos para entender e encontrar uma resposta.

— Ele pensa que o cão vai morder?

Delaney fitou-o com olhar penetrante.

— Ele provavelmente pensa que merece isso.

— E eu terei de dar-lhe a absolvição?

— Eu disse a Darius que bastaria visitá-lo, mas ele não quis forçar um encontro que milorde

não quisesse.

Era importante que Darius fosse irmão de Thea, mas Darien não soube distinguir em que

sentido. Não queria falar com Darius até descobrir, o que não deixava de ser ridículo.

— Não tenho objeções — Darien disse.

— Então direi a ele. Darius está conversando com Eleanor, mas tenho certeza de que Francis

vai querer comer de novo e é possível que agora mesmo esteja se empanturrando como um porco,

de modo que ela vai adorar ser resgatada.

Delaney saiu. Darien abriu o livro que tinha nas mãos e espantou-se com um diagrama

estranho. Quando a porta foi aberta, ele fechou o livro. Deixou-o sobre a mesa e virou-se.

Darius estava com ótima aparência depois de ter-se libertado do ópio.

— Um pedido de desculpas há muito devido o deixará embaraçado? — Darius perguntou.

— Provavelmente. É preciso fazer isso?

Darius sorriu.

— Uma boa pergunta, mas acho que sim e não pelas palavras. Se eu não houvesse dito cave

canem, alguém mais o teria dito. Mas eu gostaria de pedir perdão por não ter notado os resultados e

por não me ter importado. Eu gostaria que nada daquilo tivesse acontecido e por isso as desculpas

se fazem necessárias, não é?

— Suponho que sim, mas eu não estou em posição de atirar pedras. Causei sofrimento a todos

e mutilei o pobre Trigwell. Há poucos anos escrevi a ele, pedindo desculpas. Ele foi benévolo, mas

então já estava nas ordens sacras.

— É mesmo? Ele tinha mesmo inclinação eclesiástica.

Seguiu-se um silêncio pesado.

— Sua família foi muito bondosa comigo — Darien afirmou. — Creio que os débitos foram

pagos.

— Minha dívida paga pelos outros. — Darius hesitou. — Viu mesmo eu cair?

Darien encarou-o.

— Acha que eu menti?

Darius corou.

— Novamente peço desculpas. Foi apenas um pensamento que me ocorreu. O ópio causa

fenômenos estranhos na nossa mente.

— Se eu não tivesse presenciado, poderia ter mentido. Se é que isso faz sentido.

— Entendo. Thea disse que tudo começou por causa de seu irmão. Obteve resultados?

Ouvir o nome de Thea deixou-o paralisado por um momento.

— Não sei. Tenho mantido Frank informado, mas está nas mãos dele tentar novamente a

sorte. Tenho muita vontade de dizer aos Dynnevor para que se enforquem, mas o amor não conhece

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razão, não é?

— Pensei que o amor não conhecesse leis.

— O que frequentemente prova o caso. — Darien entendeu que Darius, como irmão de Thea,

deveria ser tratado com carinho. —Não há inimizade entre nós e eu lhe ofereço meus votos de

felicidade junto a lady Mara.

Darien estendeu a mão que foi aceita talvez com espanto.

— Quais seus planos para o verão? — Darius perguntou, enquanto os dois se dirigiam para a

porta. — Sei que minha mãe adoraria sua visita em Long Chart.

Uma tentação que quebraria o pacto.

— Impossível — Darien negou. — Primeiro tenho de tratar das sessões do Parlamento que

provavelmente irão até o Natal. Depois terei de dar um banho de civilização em Stours Court. Se

ainda me restar um sopro de vida na ocasião, vou me ocupar com um pedaço de terra esquecido por

Deus em Lancashire.

— Sempre me alegro — Darius afirmou quando eles entraram no hall — por ser o filho mais

novo.

— Eu também já fui uma vez.

Eles se despediram, sorrindo.

Thea reconheceu uma falha no acordo com Darien, na ocasião em que se preparava para

viajar a Lincolnshire para o casamento. Esquecera que o trajeto incluía uma passagem por Londres.

Era o melhor caminho e em Londres, onde se encontravam Darius e o duque, ficariam por uma

noite.

Chegaram no final da tarde e sairiam na manhã seguinte. Como não fora planejado nenhum

evento social, Thea supôs que estaria a salvo, exceto da própria tentação devoradora.

Não havia imaginado que a mãe convocaria Darien para um relato dos eventos. Se ao menos

tivesse sido avisada, não estaria com ela na pequena sala de estar quando Darien foi anunciado.

Eles se entreolharam e Thea calculou que ele parecia mais descontraído e muito mais atraente.

Darien fez uma reverência.

— Lady Thea, espero que tenha aproveitado sua estadia no campo.

— Foi ótimo, obrigada, Darien. Milorde irá para o campo quando o parlamento suspender as

sessões?

Os olhares e o ar entre eles falavam outra linguagem. Se a mãe de Thea não estivesse

presente, todas as questões que os envolviam poderiam ter terminado em uma violenta explosão.

O lacaio voltou para anunciar a Srta. Debenham, e Thea aproveitou a oportunidade para sair.

Encontrou Maddy na sala de recepção vestindo traje de noite.

— Quando me disseram que você estava aqui, tive de vir. Por que não me avisou que viria a

Londres?

— Estamos apenas fazendo uma pausa na viagem.

Maddy agarrou o braço de Thea.

— Você tem de persuadir seus pais a falarem a favor de Fox. Todos cumulam Darien de

atenções e ele é um Cave! Não há nada que desabone a família de Fox, a não ser a falta de dinheiro

e de um título.

— Você sabe que mamãe não dá muita importância para tais coisas.

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— Nesse caso ela poderá interceder por Fox, não é? O pobre homem foi ferido horrivelmente

para proteger a todos nós e será uma atrocidade afastar-se dele.

— Maddy, ninguém está fugindo dele. Fox está em Lancashire.

— É a mesma coisa!

Thea sacudiu a cabeça.

— Sente-se e procure acalmar-se, Maddy. Quer um pouco de chá?

— Chá! Como eu posso tomar chá? Você tem vinho?

— Vinho? — Thea repetiu, surpresa.

— Por que não? Ah, você é tão sem graça!

— Então não sei por que você veio até aqui — Thea irritou-se.

— Para procurar sua ajuda! Thea, estou morrendo de amor. Morrendo! Fox é o único homem

com quem me casarei. Você não pode imaginar o que é sentir tal paixão.

— Obrigada.

O tom seco impressionou Maddy que franziu a testa.

— Thea, algumas pessoas têm grandes emoções e outras, não. Por isso você não me entende.

Por favor, prometa que falará com seus pais. Se eles falarem com mamãe...

Thea gostaria de ajudar, apesar de perdida nos próprios anseios proibidos.

— Maddy, ele será um bom marido?

— Excelente!

— O regimento dele está partindo para a índia. Não tenho certeza se...

Maddy riu.

— Tolinha! Ele venderá a patente assim que nosso casamento for permitido, mas temos tão

pouco tempo. Por favor!

Thea não gostava de Foxstall, mesmo sem um motivo aparente, o que não tinha nexo. Darien,

por exemplo, se revelara uma pessoa bem diferente do que parecia ser.

— Tentarei — prometeu.

Maddy beijou-a e saiu, apressada. Thea suspirou e pensou em Darien que ainda deveria estar

com a duquesa. Desistiu de voltar para a sala em nome da promessa.

Na manhã seguinte, na hora do desjejum, Thea falou com a mãe sobre o assunto de Maddy e

Foxstall.

— Minha filha, nesse caso, creio que Margaret está correta. Claro que ela quer um título e

uma boa renda para Maddy. Por que não? A pobreza nem sempre é romântica. E temos

Marchampton que está apaixonado por ela, mas ouvi dizer que o pai de Marchampton se opõe ao

enlace por causa do comportamento estouvado de Maddy. Não sei o que será daquela menina.

— Talvez Foxstall seja o homem certo para ela.

— Infelizmente, não.

— Por quê?

— Não se deve dizer isso para uma donzela, mas você é sensível o suficiente para entender. A

pedido de Margaret, fizemos algumas indagações. A lista das conquistas do capitão Foxstall é

longa.

— A maioria dos homens não é exatamente virtuosa, mamãe, mas pode se modificar com o

casamento.

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A duquesa suspirou.

— Eu sei, mas enquanto cumulava Maddy com atenções, ele se envolvia com outras

mulheres.

— Não!

— Muito desagradável. Muitas não eram mulheres da sociedade, mas uma, e que isso fique

entre nós, era Maria Harroving.

— Santo Deus, mas ele estava no baile com Maddy.

A mãe deu de ombros.

— Ele também passou muito tempo com lady Harroving.

— Eu me lembro de Maddy ter dito que iria com outra pessoa, mas que planejava encontrar-

se com Foxstall no baile.

A duquesa sacudiu a cabeça.

— Nenhum senso de decoro. Se Margaret tivesse perguntado, eu teria dito para não deixar

Maddy comparecer ao baile. Em você eu posso confiar, sei que manterá a linha, mas Maddy

excederá os limites se tiver oportunidade.

Thea sentiu-se horrivelmente culpada e por isso mesmo insistiu.

— Se essa é a natureza de Maddy, alguém como o capitão Foxstall não seria o marido certo

para ela?

— De maneira nenhuma. Ele bebe, joga e é cruel. Será um marido terrível, ainda mais para

Maddy que não tem uma natureza condescendente. Ela exigirá muito de Fox e ele poderá castigá-la.

Se Maria Harroving se casasse com ele, poderia dar certo. Ela é muito experiente e tem dinheiro

mas também juízo. O regimento dele vai logo para a Índia, o caso será esquecido e logo poderemos

procurar um parceiro à altura de Maddy. Um homem mais velho, enérgico, mas sensato e que a trate

bem.

— Mamãe...

— Thea, de outro modo será a ruína dela.

Thea desistiu. Fizera o possível, mas nada diria a Maddy. Deixaria Londres após o café da

manhã e a cada volta das rodas, mais se afastaria de Darien.

Apesar de temer um coração despedaçado, Thea integrou-se com a alegria das festividades do

casamento. Talvez Darius estivesse certo ao dizer que Brideswell era um local mágico. Ali tudo

parecia mais leve e até mesmo o futuro soava promissor. Thea dançou ao redor da fogueira de mãos

dadas com dois campônios. Usava o vestido amarelo e os cabelos soltos, e divertiu-se com o

espanto dos aldeãos ao escutarem que aquela era uma roupa campestre.

Pensou em Darien o tempo todo e chegou a imaginar, durante a cerimônia, que prestava o

juramento. Para o melhor ou o pior, para a riqueza ou a pobreza. Para isso o casamento era feito e

não para a cuidadosa proteção de fortunas iguais e segurança perfeita. Naquela altura, conhecia bem

seu coração e sua mente.

Por causa disso, não lutou contra a decisão da mãe de ficar por algum tempo em Londres na

volta. Afinal, não prometera não voltar até o outono, simplesmente assumira isso.

Para diminuir sua animação poucas horas depois de chegar à Mansão Yeovil, Thea recebeu a

visita de Maddy.

— Graças a Deus que você está aqui! — Maddy declarou já nos aposentos de Thea. — Estou

ficando louca.

— O que houve?

— Mamãe não me deixa vê-lo.

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— Ver quem?

— Não me provoque. Fox, é claro!

— Mas ele está no norte.

— Não, está aqui. Uma licença quinzenal antes da viagem de navio. — Maddy desamarrou o

chapéu e deixou-o no chão. — Estamos dispostos a nos casarmos.

— Oh, Deus.

— Não fique assim. Sei que não gosta de Fox, mas isso é porque ele é muito enérgico para

uma flor delicada como você.

— Maddy, se quer uma ouvinte atenciosa, não me insulte. — Thea controlou a paciência.

— Não seja tão ácida, Thea. Estou desesperada. Eu fugiria para Gretna, mas nesse caso meu

pai não me daria meu dote inteiro. É muito injusto que somente parte dele seja fixado por lei. O

restante ele prometeu acrescentar quando se tornou mais rico.

— Ele poderia ser persuadido com o tempo, quando vir que você é feliz no casamento e

Foxstall provar ser um bom marido.

— Pelo amor de Deus! Imagine só viver sendo observado, temendo tomar qualquer atitude ou

até mesmo discutir.

— Maddy, o que você quer de mim?

— Simpatia, embora eu esteja vendo o poço secar.

— Eu gostaria de ajudá-la, mas não sei o que fazer. Não poderei persuadir seus pais a verem a

situação com bons olhos e meus pais concordam com os seus. Ele não é, obviamente, o marido

ideal.

— Mas é o que eu quero — Maddy teimou. — Mamãe está esperando que eu desista e fique

com March, mas eu não o tolero.

— Claro que não, se não o ama.

— Eu amo Fox. — Maddy ficou em pé. — Eu o adoro! Mal suporto os momentos passados

longe dele!

Observando a atuação vulcânica, Thea reconheceu os próprios sentimentos, embora não se

comportasse com tanta exuberância.

— Prometa que me ajudará — Maddy pediu.

— A fazer o quê?

— Não sei ainda, mas pensarei em alguma coisa.

— Não a ajudarei a fugir.

— Você é mesmo uma tola. Eu já lhe disse que isso não servirá.

Apenas prometa.

— Se eu puder, ajudarei. — Thea queria ver-se livre da prima. Maddy pôs o chapéu.

— Eu me casarei com Fox. Cheguei a pensar em Darien, mas ele é quase tão tolo como você.

Os dois combinam bem.

— Tolo?—Thea deu uma risada. — Ele quase matou um homem na minha frente.

— Tenho certeza de que se trata de um tolo assassino — Maddy contestou e saiu.

Thea esperava não vê-la por um bom tempo. Pensou em avisar a mãe ou a tia, o que lhe

pareceu sem sentido. Afinal, Maddy tinha bons motivos para não fugir. Como ela era menor de

idade, não havia outra maneira de se casar com Foxstall. Seria possível escrever cartas secretas e

sair para encontros clandestinos. Thea estava certa de que Maddy cometia tais deslizes havia anos,

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mas seria capaz de compreendê-la se a prima sentisse por Foxstall o que ela sentia por Darien.

Darien não apareceu naquela noite, nem no dia seguinte. Thea resolveu dar um passeio com

Harriet nos lugares londrinos da moda. Foi até o Hatchard à procura dos últimos romances e

caminhou na Oxford Street até Harriet começar a resmungar. Nem sinal de Darien, a não ser uma

pintura dele na janela de uma loja.

O que a absorveu por um momento. Darien estava magnífico em esplêndido uniforme

hussardo, montado num cavalo cinzento, pronto para a batalha. Outros paravam para observar e

Thea ouviu o comentário de uma mulher.

— O irmão era um louco, mas lorde Darien é um rematado herói.

Tudo prosseguia bem e Thea gostaria de partilhar a alegria com ele. Naquela noite ela e a mãe

foram ao teatro, e como Darien não apareceu, achou melhor perguntar à duquesa.

— Ele deve estar visitando a duquesa de York em Oatlands.

— Excelente. — Thea foi sincera. Aquele era um sinal de seu progresso social e o motivo por

que não o encontrara.

No dia seguinte ele voltou a Londres, conforme uma breve nota na Gazette, mas não apareceu

na mansão Yeovil. Naquela noite, antes do jantar que contaria com a presença do embaixador da

França e de outros diplomatas, até mesmo a duquesa notou seu descaso.

— Gostaria de ver Darien, embora eu ache excelente que ele esteja ocupado e em companhia

tão eminente.

Ocupado em evitar-me, Thea concluiu.

Era possível que ele estivesse sendo nobre, mas e se tivesse resolvido não querer para esposa

a extravagante filha de um duque? A incerteza continuaria, pois ela não poderia procurá-lo para

perguntar.

CCaappííttuulloo IIXX

No dia seguinte, após passar a manhã esperando notícias de Darien, Thea recebeu uma carta

de Maddy.

Caríssima Thea,

Sinto muito me ter exaltado, mas estou sofrendo e isso fica pior com Fox na cidade. Não

posso ir a lugar nenhum sem acompanhante. Mamãe não confia em minha criada, mas disse que se

você vier comigo, poderei dar um passeio. Graças aos céus por sua reputação ilibada! Ouvi falar

de uma livraria interessante não longe de nossa casa. Diga que virá para acompanhar-me ou

cortarei a garganta.

Sua prima que a ama,

Maddy.

Thea meneou a cabeça, mas pensou em ser útil a alguém. Falou com a mãe, pediu a

carruagem e logo estava a caminho da casa de Maddy, na companhia de Harriet. Chegando lá,

dispensou o veículo e pediu ao cocheiro para voltar em duas horas.

Maddy estava aflita para sair.

— Parece que estou numa prisão — queixou-se assim que puseram os pés na rua. — Muito

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obrigada, Thea!

Para uma prisioneira, sua aparência estava ótima. Corada, com olhar brilhante e usando um

traje azul que se ajustava à perfeição.

— Você não trouxe sua criada? — Thea perguntou.

— Eu tinha certeza de que Harriet viria junto e mamãe não confia em Susannah. E com razão.

— Maddy deu uma risadinha.

— O que há de tão especial nessa livraria? — Thea perguntou, enquanto caminhavam.

— Thicke e Stelburg. Não é um lugar da moda, mas me disseram que lá existem livros um

tanto picantes.

— Maddy!

— Não se exalte. Não é nada muito escandaloso. São semelhantes aos romances de Minerva,

mas as heroínas prisioneiras e os heróis vigorosos vão além de alguns beijos. Caroline tem um e é

muito divertido. Se tenho de viver encarcerada, preciso de diversão.

Thea evitou repreendê-la de novo. A leitura não causaria danos e se servisse para distrair a

prima de Foxstall, valeria a pena.

Durante o trajeto, Maddy encarregou-se dos boatos sociais, mas quando chegaram ao

endereço, Thea hesitou. A loja tinha mau aspecto, era estreita e os livros mal apareciam pela janela

suja. Contudo Maddy entrou e Thea teve de segui-la, demorando alguns instantes para se adaptar à

obscuridade.

À direita, um homem sombrio estava debruçado atrás de uma pequena mesa, absorto em um

volume. Em frente, estendiam-se prateleiras com diversas obras até o fundo, iluminadas por

lamparinas fracas e ocasionais. Maddy desaparecera.

O lugar cheirava a madeira podre e papel embolorado. Thea queria achar os tais livros e sair

logo dali. Percorreu as estantes, fazendo estalar as tábuas do solo.

Havia fregueses, todos homens, mas pelo menos pareciam respeitáveis. Viu alguns jovens que

deviam ser estudantes, outros mais velhos, talvez eruditos, e um clérigo.

Onde estaria Maddy? Naquele ambiente simples, o vestido azul brilharia como um farol.

Devido ao silêncio no ambiente, não teve coragem de chamá-la em voz alta, mas percorreu

uma passagem vazia à procura da prima.

Andou por outro corredor estreito e teve de se espremer entre a prateleira e um homem

carrancudo. Desistiu e voltou até a mesa.

— O senhor viu uma moça de azul? Ela é minha prima.

O homem levantou a cabeça, fungou e entregou-lhe uma folha dobrada e com lacre.

Com o coração disparado, Thea rompeu o lacre. De imediato, reconheceu a escrita rebuscada

de Maddy nas primeiras palavras.

Perdoe-me, Thea.

Miserável! Consciente do interesse do homem, foi para a rua continuar a leitura.

Perdoe-me, Thea, pelo ardil, embora eu pense que foi uma maneira muito inteligente de

ganhar minha liberdade. Não se preocupe, sua parte foi cumprida. Faça o que quiser nas próximas

duas horas, depois me pegue na livraria e leve-me para casa, que a mamãe nem vai desconfiar.

Estarei com Fox, resolvendo nosso futuro! Sei que você vai me ajudar, mas se não o fizer,

lembre-se que o roto não deve falar do esfarrapado. Penas prateadas foram encontradas no closet

de lady Harroving, mas ninguém sabe disso a não ser Fox e eu. Tenho certeza de que seria péssimo

se os outros soubessem.

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Sua prima que a ama,

Maddy.

A ama? Maddy a estava chantageando!

Thea imaginou se seus olhos estavam salientes e sentiu as pernas bambas. Santo Deus, as

penas prateadas teriam realmente sido encontradas? Bem notara que a pobre coruja piorara de

aspecto.

Encontradas por quem? Na certa pela lavadeira que contara para lady Harroving que dissera a

seu amante.

Sua conexão ainda não fora conhecida, mas não seria difícil de concluir.

— O que houve, milady? — Harriet preocupou-se. — Onde está a srta. Maddy?

Não havia como esconder.

— Foi embora. Oh, céus...

— Raptada? Posso ajudar?

— Não! Fique quieta, preciso pensar. — Thea começou a andar para não atrair atenção. —

Ela fugiu, com mais um de seus truques. O que eu poderei fazer?

— Contar para a mãe dela, milady.

Em verdade, Thea não procurava conselhos.

— Não posso fazer isso. Cale-se.

Maddy teria decidido fugir para se casar? Era preciso prevenir tal fato, mas se contasse para

tia Margaret, Maddy a arruinaria. Era errado, mas não valeria a pena correr riscos. Se soubesse onde

Foxstall estava morando, poderia descobrir o que acontecera. Se os dois tivessem partido numa

diligência postal, seria preciso agir. Se Maddy estivesse lá com ele, seria apenas embaraçoso.

— Milady...

— O quê? — Thea emergiu de seus pensamentos.

— Para onde vamos, milady?

Thea olhou ao redor. Estavam numa rua desconhecida e se não tomasse cuidado, acabaria

perdida. Como descobrir onde Foxstall vivia?

Darien. Ele deveria saber. Mas não poderia ir até a casa dele.

Então lembrou-se de ele caçoar por ela estar confinada por teias de aranhas. Muito bem, as

teias seriam afastadas.

— Harriet, como iremos daqui até Hanover Square? Não pode ser muito longe.

— Não sei, milady.

— Pergunte àquele homem.

Harriet revirou os olhos, mas perguntou a um respeitável senhor de meia-idade que deu as

explicações.

— Para onde estamos indo? — Harriet apressou-se atrás de Thea.

— Para a casa de lorde Darien. Harriet agarrou-lhe o braço.

— Não para aquela casa, milady. Ela está coberta de sangue!

Harriet se referia ao assassinato ou à escada?

— Duvido que ainda esteja. Decida se vem ou não. Eu preciso de algumas informações. —

Thea prosseguiu com Harriet em seu encalço e resmungando.

Quando chegaram à quadra, Thea hesitou. O que ele pensaria? Como reagiria? Mas naquela

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altura, não havia volta.

Era um local elegante, calmo, com o jardim central muito bem cuidado e os quatro terraços

das casas bem conservadas onde habitavam famílias prósperas. Thea ignorava o número da casa de

Darien, mas sabia que havia um brasão sobre a porta representando um cão negro rosnando. As

pessoas comentavam aquilo com desaprovação.

Ela encontrou o que procurava. Fora o cachorro, nada de alarmante. Não havia vestígios de

sangue. Subiu os degraus, bateu com a aldrava e teve a impressão de ser observada de todas as

janelas da quadra. A insensata que entrava na toca do cão raivoso.

Ninguém respondeu e ela bateu de novo. A casa não podia estar deserta. Bateu pela terceira

vez.

A porta foi aberta e apareceu uma jovem de rosto redondo.

— Pois não?

A criada parecia pronta a fechar-lhe a porta na cara, por isso Thea empurrou-a e entrou. A

moça afastou-se, de queixo caído.

— Quero falar com lorde Darien.

A jovem de olhar arregalado correu para os fundos da casa, onde deveria ser a área dos

criados. Ela fora chamar reforços para expulsar a visitante?

Em vez de um hall espaçoso, havia um corredor largo que se estreitava onde a escada

começava. Portas abertas nas laterais mostravam uma sala de recepção e uma de estar. Outra porta

era visível no final do corredor.

Em vez de procurar em sala por sala, Thea foi até a escada e chamou.

— Darien! Sou eu, Thea. Onde está você?

Darien abriu a porta fechada nesse pavimento, com o cenho franzido, vestindo colete e em

mangas de camisa.

— O que diabos está fazendo aqui?

Frio. Irado. Aquilo respondia a uma questão.

— Tratando de assuntos demoníacos. — Thea escondeu a pontada de dor. Virou-se e apontou

uma cadeira no hall. — Harriet, fique aqui. — Decidida, usando a raiva para esconder as lágrimas,

foi até a porta onde Darien se encontrava.

Era um gabinete muito simples, com uma escrivaninha e estantes vazias. Sobre a mesa, vários

livros impressos.

— Onde o capitão Foxstall se encontra alojado?

— Por quê?

— Não é de sua conta.

— Você está em minha casa.

Eles se entreolharam. Talvez Darien não estivesse irado nem indiferente.

Ao vê-lo sem gravata e com a camisa aberta, Thea engoliu em seco ao vislumbrar um pedaço

do peito à mostra. Os cabelos desalinhados sugeriam que ele passara várias vezes os dedos pela

cabeça. Thea teve vontade de arrumá-los.

— Maddy está com o capitão Foxstall e espera que eu lhe forneça um álibi, mas eu não posso.

Ela pode estar cometendo um engano terrível.

— E qual seria esse engano?

Na presença de Darien era difícil pensar.

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— Talvez seja apenas um namoro, mas tenho de impedi-la. Maddy pode estar pensando em

fugir para se casar.

— Isso é tão desesperador?

— Minha família é contra Foxstall, pois ele tem sido investigado.

— Pobre Fox, mas temos de impedir a fuga que não seria aconselhável para nenhum dos dois.

— Darien pegou o paletó que estava nas costas de sua cadeira e vestiu-o. O chapéu e as luvas se

encontravam numa pequena mesa perto da porta. — Vou descobrir o que está acontecendo.

— Sabe onde ele mora?

— Sei.

— Irei junto.

— Não.

Darien virou-se para sair e Thea agarrou-lhe o braço.

— Eu preciso.

Eu preciso estar a seu lado.

Os músculos de Darien se tornaram rígidos e sensações se propagaram dali para o corpo de

Thea. Ela tirou a mão e recuou.

— Deixe-me resolver isso, Thea — ele falou com voz firme. — O caso poderá se tornar

desagradável.

— Por isso mesmo. Maddy é capaz de fazer uma cena terrível.

— Milady poderá impedi-la?

— Provavelmente. E se ela — Thea mordeu o lábio — estiver sofrendo?

— Se ele a estuprar? Isso não serviria aos propósitos dele e Fox nunca precisou disso. Ele tem

jeito com as mulheres.

— Suponho que elas se comovam com seu ferimento de guerra — Thea comentou, amarga.

— Em geral, mas aquele não é ferimento de guerra. Ele conta uma história tocante, mas a

cicatriz é superficial. Ele nasceu com a face torta.

— Um mentiroso? Mais uma razão para salvar Maddy. Por que não vamos logo?

Darien suspirou e apontou a porta, mas nenhum dos dois se moveu.

— Por que você não veio me ver?

— Nosso acordo era para o final do ano.

— Ou para quando eu estivesse em Londres.

— Não me lembro disso.

— Talvez sua memória esteja fraca.

Os lábios dele tremeram. Esperança desfraldada.

— Nós estamos aqui para as sessões do Parlamento — Thea explicou.

— E nosso acordo? Ainda não tivemos tempo suficiente, Thea. Você sabe disso.

— Sei? — Thea se aproximou, segurou-lhe o pescoço e sentiu uma pulsação na sua palma. —

Eu não mudei de opinião. E você?

— Também não.

Thea passou a ponta do dedo nos lábios de Darien e ele o beijou.

— Vamos, Thea, salvar sua prima, embora eu confesse ter certa simpatia por aqueles que são

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levados à loucura pelo... desejo.

Ele quase dissera pelo amor!

— Espere, preciso contar-lhe algo. Maddy me ameaçou.

— Ameaçou com o quê?

— Contar aos outros sobre nós. Ela deu a entender que sabia. — Thea tirou a carta da

pequena bolsa. — Leia.

Darien o fez com os lábios estreitados.

— Isso pode ser uma suposição.

— E se for verdade? Mamãe me disse que... lady Harroving foi amante de Foxstall enquanto

ele cortejava Maddy. Outro motivo para Maddy não se casar com Fox, e deve por isso que ele soube

das penas. Mas como ele pôde contar a Maddy sem revelar...?

Darien tomou-a nos braços.

— Acalme-se. Mesmo que houvesse penas no closet, a história não se espalhou. Lady

Harroving pode não ter feito a ligação, mas se o fez, hesitaria em ofender sua família. De qualquer

maneira, é provável que haja incidentes similares em seus bailes a fantasia. E se isso se tornar o

falatório na cidade, logo ela não terá mais convidados.

Thea apoiou-se em Darien, onde ela queria estar e seus olhos marejaram lágrimas.

— Odeio o fato de ela saber. Apesar de tudo...

— ...deseja que nada tivesse acontecido. Eu sei.

Thea o fitou.

— Jamais lamentarei ter estado ao seu lado.

Darien beijou-a com gentileza.

— Espero que isso seja verdade. Vamos, precisamos efetuar um salvamento.

Relutantes, eles se afastaram e foram até a porta.

— Se nós os encontrarmos, Thea, deixe-o para mim. Ele não é um bom inimigo.

— É menos provável ele me atacar — Thea conjeturou.

— Não tenho muita confiança nisso. Fox é capaz de qualquer coisa para escapar imune.

Thea estremeceu.

— Temos de libertar Maddy. — Ela voltou para o hall. — Harriet, vou com milorde buscar

Maddy. Será melhor você ficar aqui.

Harriet ficou em pé.

— Milady não está pensando em deixar-me nesta casa, não é?

— Estou levando o monstro comigo. — Thea arrependeu-se do que disse e fitou Darien.

Ele segurava o riso e ela sorriu também. Maldisse os esquemas de Maddy, mas se não fosse a

prima, não estaria ali.

O que fazer? Não queria levar Harriet para evitar o escândalo se Maddy estivesse a sós com

Foxstall. Se mandasse a criada de volta à Mansão Yeovil, haveria muitas perguntas.

— Existe algum lugar onde você gostaria de passar uma hora, Harriet?

— E deixá-la sozinha com ele, milady?

— Estarei perfeitamente segura com lorde Darien — Thea afirmou com frieza. — Onde você

gostaria de esperar por mim, Harriet?

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— Na Abadia de Westminster, milady. — Onde eu possa rezar para milady recobrar o juízo.

— Está bem. — Thea fitou Darien. — Como iremos para lá?

— Com uma carruagem de aluguel.

O sorriso de Darien fez Thea supor que ele notava a ignorância dela em relação às coisas

práticas da vida.

Eles deixaram a Mansão Cave e seguiram para a abadia. De novo Thea imaginou quantas

pessoas os espionavam, o que não a incomodou. Seus sentimentos não haviam mudado, por isso

queria ser vista com Darien e estar ligada a ele na mente de todos.

O ponto mais próximo de parada das carruagens ficava a pouca distância. Thea já tinha visto

fileiras de veículos danificados e entendeu que deviam ser de aluguel, mas não sabia como aquilo

funcionava. Darien aproximou-se da primeira carruagem da linha, ajudou Harriet a entrar, falou

com o cocheiro e deu dinheiro a ele. Harriet foi levada embora não sem antes lançar um olhar de

advertência para Thea. Tenha cuidado!

Darien ajudou Thea a entrar na carruagem seguinte que estava em péssimo estado. O assento

se inclinou tanto que ela temeu cair na palha imunda do piso.

— Desculpe-me. — Darien sentou-se em frente. — Se não pegarmos o próximo da fila,

poderá haver um tumulto.

— Está tudo bem. Além disso, o problema é meu, não seu.

— Qualquer problema seu passará a ser meu — ele disse simplesmente.

A situação era incerta, Maddy era uma praga, mas naquele veículo desconjuntado Thea se

sentia no paraíso ao lado de Darien. Estar sozinha com ele era um escândalo por si só, embora

nunca houvesse entendido por que carruagens fechadas eram consideradas antros de perdição. Seria

preciso uma acrobacia até mesmo para beijar, ainda mais com os ossos chocalhando por causa das

pedras da pavimentação e das oscilações malucas quando o veículo virava as esquinas.

Thea riu subitamente.

— Do que está rindo? — Darien perguntou, agarrado a uma tira de couro e com os olhos

brilhantes de humor.

— De tudo. Por que o dourado? — Havia traços de pintura a ouro nos painéis internos.

— Muitos veículos de aluguel são antigas carruagens de cavalheiros. Este deve ser bem

antigo.

— Imagino quantas histórias ele teria para contar.

Ficaram em silêncio até a carruagem dar uma guinada e parar, rangendo as molas. Darien

abriu a portinhola, desceu e ajudou Thea a descer diante de uma estalagem de madeira onde havia

uma placa pendurada: A Coroa e a Pega e uma pintura da ave corvídea com uma coroa no bico. A

hospedaria parecia sólida e respeitável.

Thea nunca havia entrado numa estalagem londrina e, quando o fez, o local lhe pareceu

diferente daquelas em que a família se hospedava nas viagens. Um homem de sobrecasaca se

adiantou.

— Qual é o quarto do capitão Foxstall? — Darien perguntou. O homem atarracado de rosto

vermelho franziu os lábios.

— Permita que eu leve seu cartão para cima, sir?

— Não. — Um guinéu mudou de mãos.

— Número seis, sir. Em cima, à direita.

Eles subiram e no alto da escada Darien tocou no braço de Thea.

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— Tem certeza de que não quer esperar lá embaixo? Se sua prima estiver com Foxstall, ela

não gostará da interferência.

— Ela odiará, mas eu tenho de ficar. No caso de...

— Ela estar machucada, eu o matarei por sua causa.

Thea agarrou o braço dele.

— Não quero violência.

— Existem as horas certas para isso.

Aquele assunto ainda pairava entre eles, mas ali não era o momento para discuti-lo.

— Então com o mínimo de força, por favor.

— Será sempre como quiser.

Darien aproximou-se da porta pintada com o número seis, e Thea apressou-se a segui-lo. Ela

não escutou vozes e pressupôs que Foxstall estivesse ali ou o estalajadeiro não os mandaria subir. E

onde estaria Maddy?

Darien levantou a mão para bater na porta, mas girou o trinco e abriu-a. Eles entraram numa

sala confortável e vazia. Thea escutou vozes, além da porta de comunicação.

Ela se adiantou e abriu-a, sufocando um grito de espanto.

Em uma cama grande e desarrumada, Maddy e Foxstall descansavam e riam. Pelo que Thea

pôde ver, eles estavam nus. Os risos cessaram imediatamente e Maddy, corada, puxou o lençol

sobre o busto. Então ela ergueu as sobrancelhas e sorriu com afetação.

Darien puxou Thea para trás, mas ela se soltou e adiantou-se.

— Maddy? Você ficou maluca?

O sorriso da prima apagou-se.

— Recriminação, Thea, numa hora dessas? Pare com esses falsos ares de santidade. Se tivesse

seguido minhas instruções, não estaria aqui nem ficaria perturbada.

Thea vacilou, mas Darien a amparou. Ela não conseguia tirar os olhos de Maddy, dos ombros

musculosos de Foxstall e de seu peito piloso. Sorridente e com o queixo torto, ele tinha um aspecto

demoníaco. Ferimentos de guerra...

— Não precisa ficar tão chocada, prima. — Maddy aconchegou-se no ombro de Foxstall. —

Se não imaginou isso, por que veio até aqui?

— Pensei que você estivesse fugindo para se casar... Maddy, não permitirei que faça isso

consigo mesma.

— Já está feito. — Thea receou vomitar. — Eu quis dizer casar-se com ele.

— E como pretendia me impedir? Contando para todo mundo? Falando com meu pai e com o

seu. Que insistirá para que nos casemos, se não imediatamente, pelo menos quando eu ficar grávida.

E é o que eu quero. Você é mesmo uma tola, Thea.

Era mesmo por jamais ter imaginado o plano desastroso de Maddy. Na expressão de Foxstall

não se via nenhuma ternura, apenas um triunfo zombeteiro. Não havia nenhum traço de

preocupação com a jovem que acabava de desonrar.

— Não permitirei que façam isso — Thea gritou. — Se os dois se casarem, farei com que tio

Arthur segure seu dote de tal jeito que Foxstall jamais poderá usá-lo!

— Vadia! — Foxstall disse com violência.

Darien enrijeceu-se.

— Vamos embora, Thea, nada mais temos a fazer aqui.

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Ela, porém, não se conformava.

— Olhe para ele, Maddy! Fox não a quer nesses termos. Ele será um marido horrível que só

saberá mentir e trapacear. Até mesmo essa cicatriz honrosa não é nenhum ferimento de guerra, ele

nasceu assim. Outra coisa. Ele dormiu com dezenas de outras mulheres em Londres enquanto fingia

cortejá-la. Fox não vai mudar. Ele é podre e sempre será.

— Fox? — Maddy murmurou. Foxstall olhava para Thea com rancor.

— Não se preocupe, Fox, não acredito nela.

Foxstall empurrou Maddy para o lado.

— O jogo terminou, Maddy, vá embora. Com sua prima alvoroçando sua família, não

teríamos nem um pêni.

— Isso não é verdade! Meu dote é grande...

— Mas não o suficiente para mim.

— Depois de nos casarmos, meus pais mudarão de idéia. Não a escute.

— Agora vai se tornar enfadonha? — Foxstall perguntou. — Ela está certa sobre as outras

mulheres ou acha que eu me contentaria com as provocações de uma virgem durante semanas?

Maddy sufocou um grito e saiu da cama, enrolada na colcha.

— Verme desprezível!

Ela atirou nele a jarra de água, a tigela e o castiçal. Ele defendeu-se com o braço, rindo.

— Vai me pagar por isso, Foxstall! Eu o arruinarei... — Maddy virou-se para se atirar nos

braços de Darien que não teve escolha a não ser largar Thea.

— Venha — Darien disse para Thea, levando Maddy para o outro quarto.

Thea juntou as roupas da prima espalhadas pelo chão, sentindo o olhar fixo de Foxstall, uma

fera pronta para matar. Tropeçou no sabre embainhado e teve vontade de pegar a arma para se

proteger. Recuou, apertando o traje de Maddy contra o peito.

— Você pagará por isso — Foxstall afirmou com a boca retorcida que talvez pretendesse

sorrir. — Penas prateadas. Quanto será que elas valem agora em Londres?

Thea sentiu um gosto azedo na garganta.

— Nem um pêni — ela falou em tom baixo para Darien não escutar e não cometer nenhuma

violência. — Prefiro andar pelas ruas em penitência coberta de sacos de aniagem e cinzas.

Thea bateu a porta, inspirou fundo e virou-se. Maddy continuava nos braços de Darien,

chorando e se lamentando sobre maldades e traição.

— Pare com isso. — Thea puxou a prima. — Você pode ter sido traída em muitos aspectos,

mas veio para cá por vontade própria premeditando maldades.

Maddy fitou-a, agarrada na colcha.

— O que você sabe a respeito de paixão, sua tola?

— Penas prateadas?

— Nunca acreditei nisso. Você sempre teve ciúmes de mim!

Darien tapou-lhe a boca.

— Você previu que ela faria uma cena.

Maddy arregalou os olhos, mas não teve coragem de largar a colcha para se desvencilhar.

— Ficarei no corredor até que se vista — Darien anunciou. — Mas diante da porta porque não

confio em Foxstall. — Saiu depois de fitar a porta de interligação.

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Maddy ficou sem palavras, mas apenas por alguns instantes. Logo se recuperou e largou a

colcha, expondo com atrevimento os belos quadris e seios, a cintura estreita e os mamilos róseos

projetados para frente. Madura seria a palavra acertada em aparência, no perfume doce e em algo

mais que emanava dela.

Thea sentiu-se enjoada.

— Olhe bem, você nunca saberá o que é isso — Maddy murmurou.

— Penas prateadas — Thea respondeu no mesmo tom e entregou a camisa para a prima.

Enquanto ajudava Maddy a se vestir, Thea pensava em Darien. Ele silenciaria Foxstall e o

mataria se ela pedisse. Um duelo. O que arruinaria a meta tão arduamente conseguida. Se matasse

Foxstall, Darien teria de fugir do país.

E se Foxstall, um bom lutador, matasse Darien?

Maddy terminou de vestir-se e as roupas caras fizeram a diferença. Nenhuma lágrima ou

vergonha. Se estivesse com o coração partido, ninguém perceberia. Estaria preocupada com o risco

de engravidar?

O que aconteceria com Maddy?, Thea se preocupou.

Maddy olhou a porta por alguns instantes.

— Vamos, já estou vestida.

Elas saíram para o corredor, seguidas por Darien. Desceram a escada e Maddy escondeu o

rosto sob o véu. Thea, que nada fizera de errado, corou ao perceber que todos os observavam.

Saíram para a rua e Darien chamou uma carruagem de aluguel que estava por perto.

— Bem, qual a sentença? — Maddy ironizou, já dentro do veículo. — Serei enforcada?

— Se desistiu de Foxstall, não vejo necessidade de dizer para ninguém — Thea afirmou.

— E se eu estiver grávida? — Maddy falou com desafio. — O que farei se não posso me

casar com o pai da criança?

— Deveria ter pensado nisso antes.

— Eu pensei! A ideia era essa e você estragou tudo! Não sei por que a envolvi nisso.

— Nem eu.

— Para onde vamos? — Darien perguntou.

Apesar da calma aparente, Thea sentiu a tensão de Darien. Era evidente que ele desejava

voltar para a estalagem e lutar com Foxstall, embora tivesse prometido não usar de violência.

Deveria libertá-lo da promessa?

— Para a livraria — ela disse. — Minha carruagem deve voltar logo.

Prosseguiram o trajeto em silêncio e ao encontrar o veículo dos Yeovil esperando, mudaram

de carruagem e logo chegaram à casa de Maddy.

Margaret apareceu na porta.

— Ah, que bom que já voltaram. Mas onde estão os livros, querida?

— Não havia nada que se aproveitasse — Maddy respondeu com naturalidade. — Nós

tivemos a companhia de lorde Darien, não é maravilhoso?

— Claro — Margaret não pareceu convencida. Ela devia ser uma das que não o aceitavam. —

Entrem, vamos tomar um chá...

— Não, obrigada — Thea recusou. — Preciso ir para casa. Até logo, tia Margaret, Maddy.

Thea sorriu para a prima e, atrás da mãe, Maddy fez uma careta.

— Temos de buscar Harriet — Thea disse, enquanto seguia com Darien para a carruagem.

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Darien instruiu o cocheiro e eles saíram, desta vez sem tantos solavancos. Thea deixou

escapar uma lágrima.

— Não chore por ela — Darien disse com suavidade. Ela não vale isso.

— Ela é como uma irmã para mim. O que posso fazer por ela?

— Nem sempre se pode ajudar os outros, mas eu posso me livrar de Foxstall.

— Nada de violência.

— Thea, não posso deixar o fato como está.

— Por causa das penas? — Ela fitou o olhar resoluto. — Maddy também sabe. Silenciá-lo não

resolve o problema.

— Acha mesmo que ela nos trairia?

— Espero que não, mas...

— Maddy não pode fazer nada sob o risco de expor a si mesma, enquanto Foxstall não se

importa. Ele destrói por maldade.

— Ele pode matá-lo.

— Não.

— Não se pode ter certeza. Não suporto a ideia de vê-lo morto nem que o mate.

Darien passou o nó dos dedos na face úmida de Thea.

— Eu sei, mas preciso destruir Foxstall pelo que ele fez com sua prima e pelas ameaças de

constrangimento a você.

— O que importa isso? — Thea procurou imitar o tom de Maddy. — Se ele falar, teremos

apenas de nos casar. Isso será tão ruim?

— Sim. Acha mesmo que eu lhe permitiria enfrentar o escândalo e a vergonha, sendo que

posso prevenir o pior?

As lágrimas deslizavam pelo rosto de Thea e ela usou o lenço para tentar contê-las.

— Merecemos o escândalo e a vergonha, afinal agimos de maneira errônea. Por que alguém

deve morrer?

— Ele não vai perecer por ter levado sua prima para a cama.

— E se você morrer? — Thea gritou.

Darien tomou-a nos braços e embalou-a com gentileza.

A carruagem parou diante da Abadia de Westminster. Eles se afastaram e Darien limpou o

rosto de Thea com o próprio lenço, ignorando o criado de libre que aparecera pronto para abrir a

portinhola.

— Isso é como uma batalha — Darien afirmou. — Algumas esposas choram e imploram para

seus maridos não partirem. Lágrimas nunca modificam o dever, somente o tornam mais difícil. Por

favor, Thea, não chore.

Ela assoprou o nariz.

— Isso não é justo. Quero modificar as coisas.

— Não é possível.

— Eu o escutei dizer que faria o que eu quisesse.

— Agora não mais.

Thea sentiu que Darien queria beijá-la, mas não o fez por causa do lacaio parado do lado de

fora como uma estátua.

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— O que fará se eu voltar com o sangue dele nas mãos?

Ela gostaria de dizer que nada importava, mas era preciso ser honesta.

— Não sei.

Darien deixou Thea e Harriet, altiva e com os lábios estreitados, na Mansão Yeovil e foi

embora antes da duquesa aparecer.

Voltou à estalagem o mais depressa possível, mas não encontrou Foxstall. O dono do

estabelecimento afirmou ignorar seu paradeiro, explicando que ele saíra um pouco antes e sem

pressa.

Considerou a hipótese de vasculhar Londres, mas Foxstall poderia permanecer escondido, se

quisesse. Uma boa ideia seria recorrer à Confraria, cujos membros tinham uma rede de pessoas e

criados bem-informados.

Foi até a casa de Delaney e descobriu que eles haviam deixado a cidade. Procurou Stephen

Bali e Arden. Os dois estavam fora de Londres.

Recorreu a Van.

— Pelo menos você está aqui — Darien resmungou.

— Se ainda estiver precisando de babás, há uma reunião da Confraria na casa de Marlowe em

Nottingham.

— Modere a linguagem.

— Está bem. O que houve?

Darien não podia contar os detalhes.

— Foxstall passou dos limites. Preciso resolver o assunto, mas ele deve estar se escondendo.

— Eu lhe avisei sobre ele.

— Você estava certo. Por favor, avise a todos que preciso saber se ele for visto.

— Está bem. Você irá á casa de Rathbone esta noite? Uma reunião para jogar cartas.

— Apresente minhas desculpas. Eu não seria uma boa companhia.

Darien passou os dois dias seguintes à procura de Foxstall, sem sucesso. Evitou Thea, mas

mandou-lhe um recado assegurando que tudo terminaria bem e que esperava manter aquela

promessa. Como parte do plano, fez uma visita a lady Harroving.

A dama mostrou-se muito interessada por ele e, com alguma lisonja e um pouco de flerte, foi

possível descobrir que ela não associara Thea às penas. Certamente alguém cometera travessuras no

closet e algumas penas tinham sido lá encontradas. Mas um pouco de conversa sobre o assunto

provara que estivera certo ao garantir para Thea que nada seria divulgado. Os criados de lady

Harroving seriam despedidos se espalhassem boatos sobre o baile a fantasia.

Ela não fez segredo de seu relacionamento com Foxstall e explicou que as penas estavam em

cima de sua penteadeira quando ele a visitara. Ela contou onde as mesmas tinham sido encontradas

e supôs que servissem para um jogo amoroso que poderia se repetir. Darien despediu-se e suspirou,

aliviado.

Contudo, ainda havia perigo. A briga começara com Thea perto do closet e uma boa gorjeta

poderia soltar a língua dos criados. Se Foxstall unisse os fatos e os espalhasse, não poderiam ser

negados. Por isso, ele teria de se calar.

Thea passou dois dias preparada para o escândalo ou um duelo, ou ambos, mas também

lutando com a própria reação à violência. E para se casar com Darien, teria de entrar em acordo com

isso. Gostaria de poder mentir, mas quando lhe dissesse que o amava, assim como tudo que o

envolvia, isso teria de ser verdade.

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A mãe a perturbava, perguntando a toda hora por que Darien não ficara para falar com ela e

fazendo conjecturas sobre sua ausência.

— Ah, mas ele estará na igreja amanhã — a duquesa disse no sábado, e Thea passou o dia

num deslumbramento irracional.

Quando chegaram à igreja de St. George, Darien não se encontrava lá. Thea olhou tantas

vezes para a porta que a mãe lhe perguntou se tudo estava bem. O culto começaria em minutos.

Estaria Darien tão determinado em evitá-la?

Nisso um sacristão passou uma mensagem para o duque que a leu rapidamente.

— Darien não poderá vir — ele murmurou e estreitou os lábios.

O coração de Thea bateu com receio. Precisava de detalhes, mas ao ouvir os sons do órgão,

todos se levantaram. Teria Darien encontrado Foxstall e lutado com ele? Estaria fugindo da lei ou

fora ferido?

Rezou com fervor nunca sentido pelo bem-estar de Darien e por outra chance. O terror cego

finalmente a convenceu de que não poderia viver sem ele.

— Papai, o que houve com Darien? — Thea perguntou, quando saíram da igreja.

— Uma coisa desagradável na casa dele. — O pai tentava parecer descontraído, enquanto

caminhavam para a carruagem, mas Thea entendeu que algo de grave acontecera.

Coisa desagradável não significava morte. Na casa dele excluía um duelo.

Aflita para sair dali, teve de deter-se com os pais para os cumprimentos habituais. Foi quando

notou murmúrios aterrorizadores.

— Um cadáver ensanguentado!

Virou-se para ver quem falava.

— Thea.

A reprimenda cortante da mãe a fez voltar-se e sorrir, no instante em que foram abordados por

lorde e lady Rotherport, um casal de idosos que se dedicava aos boatos.

— Um horror — lady Rotherport disse com olhar brilhante —, mas dada a família,

compreensível.

— Não vejo a pertinência — a duquesa disse. — A família de Darien nada tem a ver com a

morte de um porco.

— Porco? — Thea espantou-se.

— Chocante — a mãe concordou com um olhar que ordenava que Thea se controlasse.

— Aconteceu nos jardins de Hanover Square — lady Rotherport protestou. — À noite e no

mesmo ponto onde Mary Wilmott foi encontrada.

Thea sentiu-se aliviada por Darien estar bem, pelo menos fisicamente. Para ele, deveria ter

sido horrível.

— Quem teria feito isso? — ela perguntou.

— Uma trilha de pegadas vai da carcaça até a Mansão Cave — lorde Rotherport disse com

satisfação. — Assim como antes. Coitados dos Wilmott.

— Felizmente eles deixaram a cidade — o duque disse, aborrecido.

— Somente lady Wilmott, Yeovil. Sir George continua aqui. Estaria ele matando porcos no

jardim?

Thea pensou. O pai inconformado de Mary Wilmott poderia ser levado a tais extremos.

Darien não deveria estar morando naquela casa.

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— Vamos, Yeovil, temos de oferecer nosso apoio a lorde Darien. Que inconveniente

fastidioso para ele — a duquesa falou e liderou a marcha até a carruagem.

Thea seguiu a mãe, fazendo esforço para pensar que cadáveres e corpos eram apenas

fastidiosos.

A carruagem partiu e o pai de Thea virou-se para a esposa.

— Sarah, querida...

— Se não formos, vai parecer que o estamos abandonando.

— Está bem — ele suspirou.

Ao chegar a Hanover Square, ouviram-se vozes iradas e o duque inclinou-se para espiar.

— É uma multidão, Sarah. Não vai adiantar. — Ele instruiu o cocheiro para continuar por um

lado mais quieto da quadra e ir embora.

— Mas Darien... — Thea protestou, virando a cabeça para ver a casa dele.

— Lorde Darien é capaz de cuidar de si mesmo.

— Charles, a casa de Maria não é longe daqui — a duquesa disse. — Deveríamos ir até lá e

mandar alguém para ver o que está acontecendo.

O duque concordou e deu a ordem para o cocheiro.

Thea deu graças aos céus por não ter visto Darien na quadra. A multidão a assustava tanto

como o ato vil. Naquela altura, com tanta miséria no país, um agrupamento parecia formar-se a

partir do nada e logo se tornava enfurecido. Pessoas inocentes tinham sido feridas e mortas, e

frequentemente os ricos e poderosos eram o alvo natural. Para uma aglomeração não importava se

os ocupantes de um coche particular fossem opressores ou pessoas que trabalhavam para diminuir o

sofrimento.

Fazia semanas que não havia manchas de sangue, mas Darien conservara o hábito de

examinar a frente da casa todas as manhãs antes de sua cavalgada. Até naquele dia quando vira uma

pegada na porta.

Fora até a cozinha, pedira para Ellie limpar e saíra pelos fundos, rumo à estrebaria. Por que

não olhara mais adiante para ver o restante das pegadas? Teria mandado limpar toda a sujeira antes

que alguém a notasse. E assim, quando tinha voltado da cavalgada, encontrara uma atmosfera tensa

na cavalariça. Sem desmontar, acenou para Nid que se aproximou para contar a história

horripilante.

— Bando de idiotas, pensando que milorde ficou maluco e começou a assassinar porcos. E o

humor está péssimo.

O instinto de Darien o dirigia para o confronto, mas sabia quando a precaução era o mais

sensato. Não tinha vontade de ser encurralado em sua casa por uma multidão enraivecida e sofrer

provocações. Foxstall? Estava certo de que o homem queria prejudicá-lo.

— Vá até a mansão — instruiu o cavalariço — e diga para os Prussock saírem, se for

possível. Caso contrário, que se afastem das janelas e não se exponham ao perigo para proteger a

casa. Você também. Voltarei logo para restaurar a ordem.

Cavalgou rumo à casa de Van e lembrou-se de que deveria estar na igreja, consolidando sua

reputação de devoto que tinha amigos nas altas esferas. Riu com amargura. Tudo mudara. Mary

Wilmott e Marcus Cave estariam na boca de todos outra vez e ele, de volta ao princípio.

Seria vingança de Foxstall? Ele bem seria capaz disso, mas apenas a vergonha social seria

branda demais para seu conceito.

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Encontrou Van e Maria de saída para a igreja, mas eles decidiram não ir e analisar a situação.

Um casal de criados foi mandado para averiguar a situação e uma mensagem foi enviada para

Yeovil que estava na igreja.

Os criados voltaram e disseram que a aglomeração aumentava de tamanho e se tornava

enraivecida. O cadáver do porco estava dentro de um vestido azul e alguns insistiam que se tratava

de uma pessoa. Outros afirmavam que a morte do porco fora para esconder sangue humano.

— Na certa falando dos loucos Cave — Darien disse com a cabeça entre as mãos.

— Logo se descobrirá que ninguém está faltando — Maria opinou. — O que, pelo menos,

porá um fim nos boatos.

— Espero que não deem por falta de ninguém em Hanover Square. — Darien olhou para

cima. — Mas se uma mulher tiver desaparecido em Londres a noite passada, acharão que sou o

culpado. A única diferença entre mim e Marcus é que ele era muito louco para encobrir o crime.

— Temos de descobrir quem fez isso — Van afirmou — e por quê. Acha que pode ser os

Wilmott?

— Não acredito nisso — Maria protestou. — Eles são pessoas decentes. Lady Wilmott está

fora da cidade e sir George não é essa espécie de homem. Se ele tivesse de tomar uma atitude, ele

confrontaria Canem na rua ou até cuspiria em seu rosto. Mas nada como o que foi feito. Isso é

muito peculiar. Você tem inimigos?

Darien deu risada.

— Eu me refiro a inimigos pessoais.

— Não nessa dimensão. — Darien decidiu não mencionar Foxstall.

— Então quem estaria empenhado em destruir sua tentativa de restaurar a reputação da

família?

— Almirante sir Plunkett Dynnevor?

— Não estou brincando — Maria disse com severidade —, e ele está em Gibraltar.

— Ele não iria tão longe para impedir que a filha se casasse com Frank — Van admitiu.

— Por que não? — Darien considerou. — Eu faria isso se fosse ele.

— Vamos nos acalmar — Maria falou. — Pessoas não fazem nada sem motivo. Qual seria

esse?

— Talvez não fosse uma pessoa. — Darien levantou-se. — Talvez seja o espírito

amaldiçoado de Marcus. — Viu os olhares espantados. — Acho que a casa é mal-assombrada.

— Pode ser verdade — Van concordou. — É preciso sair de lá. Venha morar conosco.

— Depois disso? — Darien espantou-se.

— Principalmente por isso.

— Não.

— Ele está certo, Van. Mudar-se sem esclarecer o caso seria péssimo. De fato...

A aldrava bateu na porta. Eles ficaram em silêncio, preocupados. Mas como os problemas

seguiriam Darien até ali? O lacaio entrou.

— Madame, o duque e a duquesa de Yeovil estão embaixo, com lady Theodosia Debenham.

Maria sorriu, aliviada.

— Traga-os para cima, Simon.

Eles se levantaram para saudar os visitantes e Darien se aborreceu. Não queria os Yeovil

metidos naquela confusão sórdida. Principalmente Thea. Fitou-a de revés e notou uma expressão de

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furiosa militância.

Não, amor. Não tome meu partido.

Os detalhes tiveram de ser repetidos.

— Um vestido. —A duquesa estava chocada.

— Não seria difícil comprar um porco vivo em Mayfair? — Thea indagou.

— E transportá-lo — Maria interveio. — Eles gritam.

— Ou vestir o bicho — Van considerou. — Aqui pode haver uma certa linha de investigação.

— Ainda não — a duquesa negou. — Darien, creio que é necessário voltar para Hanover

Square. Sua ausência pode ser tomada como culpa ou fuga.

— Seria perigoso — Thea contestou.

— Seu pai e Vandeimen irão com ele no coche. Espero que os magistrados já tenham

estabelecido a ordem.

Thea ficou em pé e aproximou-se de Darien.

— Sinto muito que isso tenha acontecido. — Ela estendeu as mãos. — Tome cuidado.

Darien preferia que Thea se mantivesse à parte, mas tomou-lhe as mãos e, ignorando a

audiência, beijou-as.

— Sua confiança significa muito para mim.

As feições de Thea se descontraíram e ela mordeu os lábios trêmulos. Darien fez uma mesura

e saiu antes que ambos cedessem à emoção.

A chegada em Hanover Square da carruagem do duque de Yeovil com os criados de libre

provocou nova excitação na turba.

Soldados impediam que as pessoas entrassem no jardim cercado, mas a circunferência estava

apinhada de curiosos. Muitos se aglomeravam em volta das pegadas sangrentas e da entrada como

formigas ao redor de um pote de geleia. Outros formavam pequenos grupos que tagarelavam à

espera de novos acontecimentos.

Darien saiu do grande coche e houve uma comoção geral.

— Ali está Cave! Ele já está preso! — alguém gritou. O duque desceu, olhou ao redor e fez-se

silêncio.

— O visconde Darien não está preso — ele disse com clareza, sem gritar. — Estamos aqui

para descobrir a verdade sobre essa brincadeira de mau gosto.

Darien admirou a dignidade simples que teve um efeito positivo geral. Os que estavam na

frente murmuravam o que fora dito para quem não escutara. Ninguém mais gritou e o ar parecia

eletrizado.

Dois homens saíram dos jardins e se aproximaram. Um era oficial militar, capitão Waring da

Cavalaria da Guarda e o outro, homem gordo em trajes civis, era o sr. Evesham, o magistrado.

— Fico feliz com contar com a ajuda de Vossa Graça — Evesham disse. — Um

acontecimento muito desagradável e todos querem ver sangue, embora não seja realmente um

crime. Não temos nem mesmo um estatuto contra matança de porcos. Mas esse bando... — ele

indicou com a cabeça a multidão que se esforçava para escutar — ...tive receio que eles

enforcassem o visconde Darien se ele viesse para cá desprotegido. Por isso pedi a ajuda de um

militar.

A despeito das palavras do magistrado, Darien supôs que ele pensava em prendê-lo.

— Para acalmá-los, milorde, teríamos de fazer uma busca em sua casa, se contarmos com sua

bondosa permissão, pois seus criados não querem abrir a porta.

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— Sob minhas ordens, embora eu não tenha objeções contra uma investigação organizada.

Talvez possamos formar um grupo com duas pessoas melhor categorizadas dos que estão aí, além

do capitão Waring e do duque.

O magistrado apontou dois homens bem-vestidos que pareciam sóbrios. Eles se apresentaram

como Sr. Hobbs, um sapateiro e o Sr. Linlithgow, funcionário de um banco.

Evesham anunciou em voz alta o que seria feito e pediu a todos que voltassem a seus afazeres,

embora ninguém aceitasse a sugestão. Todos esperaram o resultado da busca.

Evesham ficou ao lado de Darien que deu graças pela presença de Van. O magistrado e a

multidão pareciam cães de guarda bem treinados. Quietos, mas prontos para morder se ele tentasse

fugir.

Em quinze minutos os quatro voltaram e Evesham anunciou o resultado.

— Não há vestígios de sangue na Mansão Cave, nem sinais de desordem ou violência, muito

menos de um cadáver. Tudo não passou de uma maldade e se o autor for encontrado, será punido.

Agora se ocupem com o Dia do Senhor ou terei de dispersá-los à força.

As pessoas começaram a se movimentar lentamente de volta para suas casas ou para fora da

quadra.

Darien foi, com o duque e Van, ver a vítima da violência.

O vestido azul era desconcertante, mas o cadáver era um porco com a garganta cortada e já

servindo de festim para as moscas.

— Um animal jovem — Darien afirmou.

— Nem mesmo um ano — o duque concordou.

— Mais fácil de lidar — Van disse. — Uns vinte quilos? Um homem poderia carregá-lo sem

muito esforço, mas como Maria disse, ele berra.

— Talvez o tivessem drogado — Darien sugeriu.

— É uma possibilidade — Van admitiu. — Pelo menos o coitado teria morrido feliz.

— O que vamos fazer com ele, milorde? — O magistrado interveio, parecendo aborrecido

pela discussão prática.

— Isso nada tem a ver comigo, sir, mas pagarei para ele ser cortado e distribuído

gratuitamente. — Darien moderou o tom. Não adiantava fazer outro inimigo. — Obrigado por seu

excelente desempenho, Evesham. O caso poderia ter-se tornado bem mais grave.

— Sem dúvida, milorde. — O magistrado animou-se com o elogio. — Os crimes notórios

custam a ser esquecidos.

Evesham tratou de tomar providências para a remoção do porco, e Darien olhou a casa,

imaginando o que poderia fazer a respeito do caso.

— Eu ficaria feliz de nunca mais ter de entrar aí, mas também não vou fugir.

— Você poderia tirar aquele cão danado de cima da porta — Van sugeriu.

— Está esculpido na rocha.

— Destrua-o com a marreta.

— Simples, não é? — Darien deu um riso forçado. — Muito bem, mas não de imediato.

Qualquer coisa que eu faça agora será encarada como consciência pesada.

— Então vamos até minha casa para discutirmos o assunto.

— Primeiro quero falar com os criados.

Darien encontrou os Prussock na cozinha, bebendo chá com conhaque, como se tivessem esse

direito.

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— Onde está Lovegrove?

— Foi embora, milorde — a Sra. Prussock respondeu com um sorriso afetado. — Disse que

não suportava a tensão. Ele levou o tinteiro de prata do gabinete e não sei mais o quê.

— Por que a senhora não o impediu?

— Nós estávamos confusos. Darien controlou a raiva.

— Obrigado por seguirem minhas ordens. Ficarei fora por um tempo. Será desnecessário

dizer para continuar com a vigilância. Ninguém deve entrar.

Teria Lovegrove encenado o drama para ocultar o roubo? Pareceu-lhe improvável para um

bêbado.

Foi até seu quarto onde não deu por falta de nada. No gabinete, é claro, faltava o tinteiro.

Guardava dinheiro, joias e documentos importantes num cofre que ficava escondido atrás de um

conjunto de prateleiras. Lovegrove não conhecia o esconderijo. Nem mesmo Darien soubera antes

do advogado tê-lo informado. Havia apenas duas chaves, uma ficava com ele e a outra, com o

advogado.

Aproximou-se das prateleiras, afastou-as e destrancou a porta de metal. Conforme imaginara,

nada faltava. Reconhecia bêbados contumazes e sabia que eles não seriam capazes de elaborar

planos complicados. Lovegrove podia ser um covarde, mas não era ladrão. Exceto de conhaque.

Estava convencido de que os Prussock haviam usado a fuga do criado para cometer mais

roubos. Teria de despedi-los ou chamaria os Runners para investigar os crimes? A resolução ficaria

para outro dia.

Resolveu não deixar a casa. Depois de explicar a Van o ocorrido, voltou e sentou-se no

gabinete para analisar os inventários abandonados. Pelo menos assim evitaria Thea.

Seria melhor ela se manter afastada enquanto não se localizasse Foxstall e o brincalhão infeliz

não identificado.

Não teve muito progresso com os relatórios por causa das interrupções. Todos os homens com

quem travara um bom relacionamento resolveram aparecer para prestar apoio. Acabou achando

graça e riu quando St. Raven tirou as mantas holandesas da sala de estar e pediu chá. Prussock

trouxe o pedido e seus cabelos pareciam arrepiados.

Se o espírito de Marcus ainda estivesse ali, seus cabelos também ficariam em pé por volta da

meia-noite, após a despedida dos visitantes.

Em vista dos acontecimentos, Darien não se surpreendeu ao descobrir, na manhã seguinte

depois de sua cavalgada habitual, que os Prussock haviam partido. Levando, com certeza, mais

algumas peças de valor. Voltou ao estábulo para falar com Nid.

— Não fui até a mansão hoje, milorde. Tomei o café da manhã aqui com os outros

cavalariços. Bem, eu não podia imaginar, embora não tenha me espantado. Eles eram muito

estranhos. — Nid cocou o nariz. — Não gosto levantar suspeitas, mas vi Prussock há duas noites.

Pensei que ele estivesse com uma mulher e fiquei surpreso. Mas agora imagino se não era o porco.

— Então foi Prussock...? Mas por quê? Sempre fui mais tolerante do que eles mereciam.

— Sim, mas eles não estavam satisfeitos com milorde por aqui. Tinham um belo lugar para si

mesmos e assim seria por muito tempo, enquanto a história não fosse esquecida. Penso que eles

estavam tentando afugentá-lo. Talvez eu devesse ter-lhe dito algo, milorde, mas nunca imaginei que

eles chegariam a tanto.

— Nem eu. Eles também andaram roubando objetos da casa. Não tenho dúvida de que viviam

como lordes, sempre que podiam. Esse é um assunto para os Runners, mas os Prussock devem estar

longe.

— Tem razão, milorde. Deseja que eu faça alguma coisa? Cozinhar ou...

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Darien se lembrava das tentativas de Nid na cozinha do Exército.

— Não, mas eu lhe darei dinheiro para pegar comida de algum restaurante. Verei se posso

contratar outras pessoas, o que não será fácil depois do episódio do porco.

Voltou para a mansão e verificou as perdas. A prata restante fora levada, junto com pequenos

vasos e até uma cortina de brocado da sala de estar. Foi quando descobriu que o cofre fora

arrombado.

Amaldiçoou a própria estupidez. Se suspeitara dos Prussock, por que não ficara de

sobreaviso? Na véspera, um deles deveria tê-lo seguido enquanto ele vistoriava a casa. A segurança

dos cofres era seu esconderijo. Com um pouco de tempo e força bruta, eles se tornavam

vulneráveis. Mandou Nid procurar por um Bow Street Runner, sem muita esperança de conseguir

seus objetos de volta.

Deteve-se no hall, testando a sensação de uma casa vazia. Nem mesmo um fantasma. Sentiu-

se um tolo. O que fazer àquela altura?

Pensou na hipótese de mudar-se para a casa de Van, com a desculpa da falta de criados, mas

esperaria um ou dois dias até a raiva ceder.

No entanto não pensava fazer daquela casa seu lar.

CCaappííttuulloo XX

— Uma mensagem para milady — Harriet anunciou. Thea levantou os olhos do desjejum que

ainda não comera. Não estava desanimada, não depois da maneira como Darien se despedira na

véspera. Mas estava absorta nas maneiras de superar os obstáculos.

A notícia da maldade feita pelos criados de Darien vinha sendo espalhada pela cidade por

todos os meios. Thea sugerira a mudança dele para a Mansão Yeovil e passara uma hora de

antecipação deliciosa antes de receber a resposta. Uma recusa cortês.

Sua preocupação era com os cuidados pessoais de Darien e da mansão, mas ele poderia comer

em uma das dezenas de casas de amigos. Além disso, se fosse necessário, um soldado saberia viver

de maneira modesta.

No cômputo geral, a situação não era tão ruim. Seria preciso apenas um momento a sós com

Darien para convencê-lo que o amava e que teria de se casar com ele.

A carta era de Maddy e Thea resistiu à vontade de não a abrir, mas acabou rompendo o lacre.

A letra de Maddy estava tremida e a pena devia ser péssima, pois a tinta ia rapidamente de escura à

pálida, além da página estar borrada. Thea começou a ler, franzindo o cenho.

Thea, querida Thea,

Sei que me comportei muito mal com você, mas eu estava sofrendo muito com a traição de

Fox. Agora sei que cometi uma grande estupidez. Fui até a casa de Darien pedir-lhe para não

matar Fox. Sei que isso foi uma tolice, mas não posso deixar de amá-lo.

Seria a mancha de uma lágrima? Maddy!

Mas Darien assumiu uma atitude horrível. Ele me odeia porque o ameacei e ele me torturou

até eu prometer não mais falar de penas. Agora ele saiu e vai matar Fox de qualquer maneira.

Tenho de fugir daqui antes que ele volte, mas não tenho roupas.

Sem roupas!, ela engoliu em seco tentando entender.

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Mesmo estando com raiva de Maddy, Darien não a faria sofrer.

Já o vira consumido pelo ódio, mas ele nada faria contra uma mulher. Talvez apenas quisesse

assustar Maddy para ela não revelar o que havia acontecido no baile de lady Harroving. Nada de tão

terrível, mas sem roupas? Seria suficiente para voltar com o nome à lama.

Esfregou a mão no rosto, satisfeita por Harriet ter voltado para a área dos criados.

Uma coisa era certa. Teria de tirar Maddy para fora da casa de Darien antes que a prima fosse

descoberta ali, seminua e desvairada. Acabou de ler a carta, achando dificuldade por causa dos

garranchos.

Por favor, Thea, ajude-me. Não há ninguém aqui, nem mesmo os criados. Ele deve tê-los

mandado embora para que pudesse fazer isso comigo. Deixei a porta da frente destrancada para

facilitar sua entrada. Por favor, não me traia! Traga algumas roupas e me leve embora daqui.

Tenho de avisar Fox!

Thea continuou sentada, confusa. Qual seria a verdade sobre os criados sumidos? Releu a

carta. Maddy afirmava que fora para a casa de Darien por conta própria, portanto ele não poderia ter

planejado aquilo. Típico de Maddy. Atrapalhadas e exagero. Darien nada teria feito a não ser

assustá-la.

De nada adiantaria ficar sentada ali como uma tola. Correu para seu quarto de vestir,

imaginando qual o traje serviria para Maddy. Nenhuma de suas camisas ou espartilhos. .Procurou

nas gavetas e no armário até encontrar um vestido solto com cintura de elástico. Acrescentou um

casaco comprido e um par de sapatilhas. Isso teria de dar certo.

Fez um pacote e hesitou. Deveria contar à mãe? Seria o mais sensato, mas quanto menos

pessoas soubessem, melhor.

E se Darien tivesse se descontrolado? Não acreditava nisso.

Limpou as lágrimas e vestiu um manto. Aproveitaria a oportunidade para seguir a sugestão de

Darien e deixar a casa sem que a vissem. Desceu, rezando para não encontrar ninguém que pudesse

interrogá-la. Entrou na estufa e, pelas portas, foi para o jardim.

O mistério era a entrada pela estrebaria, mas quando caminhou pelas vias tortuosas e belas

sebes dispostas para criar a ilusão de espaços maiores, encontrou o muro alto que fazia parte da

estrebaria. Na parede havia uma porta. Tentou a maçaneta e a porta se abriu. Muito simples, mas

poderia haver do outro lado um recinto cheio de pessoas.

Mas quem impediria lady Theodosia Debenham de chegar até a cocheira por ali?

O local estava cheio de madeira e couro, na certa materiais para carruagens. Escutou vozes,

mas não próximas. Uma janela mostrou-lhe para onde desejava ir e quando espiou no corredor, viu

uma porta aberta que dava para a alameda.

Em minutos, afastou-se da casa, pela primeira vez sozinha em Londres.

Antes de alcançar a rua, puxou o capuz para frente e apressou-se em busca de um ponto de

carruagens. Teve certeza de que o cocheiro sabia tratar-se de uma jovem dama que não deveria estar

sozinha, mas ele pegou o xelim sem comentários e levou-a até a igreja de St. George.

Dali ela caminhou, entrando na quadra cautelosamente, sem notar nada de errado. Hanover

Square não aparentava nenhuma diferença. Uma mulher de capa carregando um embrulho poderia

atrair a atenção, mas não havia alternativa. A passos rápidos, rumou para a casa de Darien. Quando

subiu os degraus da entrada, o cão negro pareceu rosnar para ela.

Hesitou. Até aquele momento não lhe ocorrera que Darien pudesse causar-lhe sofrimento.

Não causaria. Se não acreditasse nisso, seu mundo desmoronaria. Maddy deveria ter

exagerado o caso. Pôs a mão no trinco e, conforme o prometido, a porta se abriu.

Entrou, olhos e ouvidos atentos. Sempre havia criados, mesmo com a família ausente. Onde

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estaria Maddy? Os cabelos da nuca se arrepiaram como se um espírito maligno estivesse ao redor.

— Maddy? — sussurrou, fechando a porta e sentindo-se pior na obscuridade.

Silêncio. Pela primeira vez imaginou se não se tratava de uma artimanha. Maddy não faria

isso.

Ou faria? Se fosse uma armadilha, Thea nem podia imaginar o que faria com a prima.

— Maddy — chamou, mais alto.

— Aqui. — Um grito agudo, breve e apavorado veio da sala à esquerda. Seu coração disparou

e ela se desculpou mentalmente antes de correr.

Uma mão cobriu-lhe a boca e um braço forte abraçou-a.

Um homem. Grande.

Não era Darien.

No espelho em frente, viu um reflexo azul e prata, mas então o capuz foi totalmente puxado

para frente, deixando-a cega.

Um uniforme hussardo. Foxstall!

O terror invadiu-a. Maddy. Certamente Maddy não poderia...

No mesmo instante, entendeu que a prima nada tinha a ver com isso. Maddy não escrevera

aquela carta nem estava ali. Ela havia sido atraída por Foxstall que procurava vingança.

Thea se debateu violentamente, mas uma mão enorme apertou-lhe a garganta. Ela agarrou os

dedos grossos, mas não conseguiu respirar direito. Em meio à escuridão que a envolveu, soube que

Foxstall queria vingar-se de Darien e dela.

Outra dama assassinada, dessa vez de verdade na Mansão Cave.

Darien entrou na sua casa pelos fundos, passou pela área dos criados e foi para o hall,

imaginando o que estaria acontecendo.

Durante dias esperara alguma maldade de Foxstall, o que então acontecia. Inutilmente.

Ao retornar de sua cavalgada, Nid lhe entregara uma carta que viera parar na estrebaria. Era

um pedido incoerente de Pup para que o encontrasse em uma estalagem em Putney, do outro lado

do rio. Fora direto para lá e encontrara Pup se refestelando com um lauto café da manhã e crente

que havia sido ele quem combinara o encontro.

A mensagem para Pup tinha sido entregue por Foxstall que também se oferecera para levar a

chave para a Mansão Cave. E assim a arma fora entregue ao inimigo. Mas com que finalidade?

Darien explicara o engano, mandara Pup para casa e voltara para a Mansão Cave o mais

depressa possível. Tirou as luvas, o chapéu e deixou-os com a bengala sobre a mesa do hall,

esperando problemas.

E encontrou-os.

Sangue no piso do hall.

Pegadas sangrentas como as do dia anterior. Ele se ajoelhou e tocou com os dedos no líquido

escuro. Manchas recentes. Seria mais sensato procurar Evesham, mas se Foxstall deixara um corpo

na casa, na certa se esmerara para fazer Darien parecer culpado do crime.

Olhou a escada e viu manchas vermelhas no corrimão. Seu coração disparou. Desta vez seria

o corpo de uma pessoa e não de um porco?

Pegou a bengala e subiu devagar, sentindo o perigo a cada passo. Fosse o que fosse, esperava

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que Foxstall estivesse ali. Mais do que nunca, precisava matá-lo. As manchas se tornavam mais

escassas, mas conduziam até os fundos da casa.

Ao seu quarto? Aproximou-se da porta, mas nada escutou. Nem mesmo o tique-taque do

relógio do hall.

Ninguém dera corda nele desde que os Prussock haviam fugido.

Todavia, seu instinto preveniu-o de que havia algo em seu quarto. Agarrou o trinco, virou-o e

abriu a porta.

Tudo parecia normal, até mesmo o jogo de xadrez que tirara do gabinete. Mas o cortinado ao

redor da cama estava fechado.

Ele nunca os puxava no tempo de calor. Adiantou-se com o maior cuidado que as botas lhe

permitiram e escutou um ruge-ruge atrás das cortinas.

Então não se tratava de um cadáver. Uma cobra? Um cão raivoso? Isso combinava com a

perversão mental de Foxstall.

Sem tirar os olhos da cortina, abriu o paletó e puxou o sabre.

Esqueceu disso, não foi, Foxstall? Qualquer vingança malévola que possa ter feito aqui

resultará num fim rápido, sangrento e você será o próximo.

Tirou a lâmina da bainha, aproximou-se da cama e procurou analisar os leves sons.

Cautelosamente, afastou as cortinas com a ponta da lâmina. Havia um tecido sobre a cama.

Outro porco vestido?

Nenhum ruído. Nenhum silvo ou rosnado. Nenhum movimento.

Com a arma, abriu o cortinado para a direita, os anéis chocalhando, deixando a luz do dia

entrar.

No mesmo instante, jogou a arma para o lado.

— Meu Deus, Thea? O que lhe aconteceu?

Pálida, os olhos arregalados de puro terror, ela estava amarrada.

Darien pegou o sabre de novo e cortou a tira de pano que lhe segurava os braços.

Thea gritou e, por instinto, Darien tampou-lhe a boca.

— Calma, amor, sou eu, Darien. Eu a libertarei em um instante.

Foxstall, a morte é boa demais para você. Eu o esfolarei vivo, centímetro por centímetro.

Thea agitava a cabeça e tentou agarrá-lo, mas ele não podia deixá-la gritar. Se alguém viesse,

ela sofreria ainda mais. Suas roupas estavam rasgadas...

Darien cortou as tiras que lhe prendiam as mãos e os pés, largou o sabre e tomou-a nos

braços. Thea começou a soluçar sem controle e ele não soube avaliar se era de alívio ou ainda de

pavor. Ele subiu na cama, apertou-a de encontro a si, embalou-a e disse o que lhe veio à cabeça.

Então ele viu sangue na própria mão.

— Thea, pare, você está sangrando de novo. Tomarei conta de você.

Ela o empurrou, de olhar fixo na mão ensanguentada de Darien.

— Solte-me! Solte-me!

Darien obedeceu e Thea jogou-se no chão com os cabelos em desalinho e fitando-o como se

ele fosse um animal selvagem.

— Thea. — Ele suspirou, com o coração apertado, e procurou manter-se sereno. — Eu não a

machucarei, deixe-me cuidar de você.

Darien estendeu a mão, viu o sangue e limpou-a na calça. Quando ela ficou mais calma, ele

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sentou-se no chão a seu lado, pegou o lenço e pressionou no ferimento do pescoço de Thea.

Felizmente não era profundo, assim como não era grave o arranhão numa das faces. Mas ela estava

com hematomas. Foxstall teria tentado estrangulá-la?

E os ferimentos não visíveis poderiam ser piores.

Thea estava quieta, mas não sossegada. Darien tirou o paletó, colocou-o nos ombros dela, pôs

um pouco de conhaque em um cálice e levou-lhe aos lábios.

— Tome, meu amor, vai ajudar.

Sem tirar os olhos de Darien, ela entreabriu os lábios e bebeu um gole. Engasgou, tossiu e

recomeçou a chorar, desta vez nos braços de Darien.

— Ah, amor, tudo dará certo. — Ele não mencionou matar, mesmo que isso não lhe saísse da

mente.

Darien a embalava, incapaz de pedir detalhes. Quando achou que ela estava melhor, ele a

deixou em pé e tirou-lhe da face os cabelos manchados de sangue.

— Venha, vou levá-la para sua casa...

Nisso ouviu-se um estrondo em baixo seguido de vozes, na verdade gritos de quem subia a

escada.

A mente de Darien raciocinou com a clareza fria que o mantivera vivo nas batalhas.

O restante do plano de Foxstall.

Pegá-los ali.

Com o sabre na mão direita, ele levou Thea para fora do quarto e em direção à escada de

serviço. Odiava abandoná-la, mas as alternativas eram piores.

— Fique aqui enquanto resolvo isso.

Darien fechou a porta e recuou no corredor com o sabre estendido no exato momento em que

os invasores começavam a subir a escada principal.

— O que está acontecendo aqui? — gritou.

— Vá para o inferno! — um homem de cara vermelha rosnou diante da matilha. — Quem

você matou agora, cria de Satã?

Era sir George Wilmott. Darien não chegou a responder.

— A cama dele está suja de sangue! — alguém gritou. Ele esquecera o estado do quarto.

Todos se lançaram contra ele, mas se detiveram quando o viram agitar o sabre. Darien não

pretendia matar ninguém, mas não queria ser trucidado por uma turba que o considerava outro

Marcus.

Acima de tudo, Thea não podia ser encontrada, ou sua reputação ficaria em tiras como o

vestido. Encarou o olhar furioso de Wilmott.

— Não fiz nada de errado, pode chamar o magistrado. Eu descerei e poderemos resolver o

caso.

— Resolver! — Sir George deu uma gargalhada. — Desta vez resolveremos com a cadeia, o

que dará um fim nos Cave para sempre.

— Então terá de encarcerar-me também.

A nova voz estava acostumada a dar ordens em meio a tempestades.

Alguns continuaram a prestar atenção em Darien, enquanto a maioria se virava para ver Frank

parado com seu uniforme naval azul, sem sorrir, mas transmitindo claramente boa vontade e

camaradagem honesta.

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Ninguém perguntou quem ele era. Os cabelos e olhos negros, e o traçado do queixo

declaravam-no um Cave, mas como sempre, a magia de seu charme funcionou.

O desconcerto amenizou o objetivo da turba. Sir George murmurou qualquer coisa sobre

herança maldita, fitando Darien com ódio. O que não era de se surpreender, dado o estado do

quarto.

Darien notou que estava manchado com o sangue de Thea.

Frank olhava o irmão, interrogativo, como se pretendesse lutar contra todos, mas Darien

sacudiu a cabeça.

— Qualquer que seja o problema — Frank disse com autoridade —, o mesmo deverá ser

resolvido em ordem. Todos para baixo.

Os demais começaram a descer, mas sir George resistiu.

— E deixá-lo para trás? Vá na frente, Darien, para garantir que não fugirá.

Poucas pessoas ousariam falar com Canem Cave dessa maneira, ainda mais ele estando com

uma lâmina na mão, mas o homem estava certo ao sentir-se seguro nesse momento. Darien passou

adiante e todos se afastaram tanto pelo sabre que ele empunhava como pela raiva que ele não

escondia. Não teve como avisar Frank para tomar conta de Thea, pois os manifestantes os

separaram para descer a escada estreita e chegar no hall apertado.

— Para fora — Frank ordenou.

Ele provavelmente tentava reduzir o perigo de um acidente, mas Darien teria recusado se

pudesse. Não queria tumulto do lado de fora para que não o vissem com a arma na mão e sujo de

sangue. Mas talvez fosse melhor que todos presenciassem o desenrolar dos acontecimentos.

Ao sair para a luz do dia, no alto dos degraus externos, ele viu uma multidão enfurecida e

entendeu que o perigo era real. Se resolvessem enforcá-lo ali mesmo, nem Frank poderia impedi-

los.

Foi quando viu Foxstall atrás de todos, encostado na cerca, vestindo o uniforme hussardo,

observando seu plano funcionar, sorrindo com a boca torta.

Nada mais importava.

Darien desceu os degraus e atravessou a rua. As pessoas se espalharam gritando para que o

parassem, mas nada fizeram.

Foxstall ainda sorriu por um segundo antes de se endireitar e puxar o sabre para se defender

do golpe mortal de Darien com um clangor de metal contra metal.

— Alguém detenha este louco! — Foxstall gritava, enquanto se defendia e se esquivava.

Ninguém tentou, embora Darien ouvisse Frank chamar seu nome em protesto.

— Ele fez isso! Ele... — Darien omitiu detalhes para não envolver o nome de Thea.

— Fiz o quê? — Foxstall mostrava os dentes, alerta ao perigo. — Desta vez a batalha está

perdida, Canem. Por que alguém não o golpeia na cabeça? Não quero machucar o idiota.

— Sou eu quem pretende matá-lo — Darien afirmou, arfando.

Foxstall não duvidou da afirmação.

— A forca será seu destino.

— Valerá a pena.

Darien tentou atingir a cabeça de Foxstall, mas o choque com a lâmina do outro mandou seu

braço para cima. Os dois eram bem treinados para lutar até em cima de um cavalo, mas Darien teria

de mudar a estratégia para matar Foxstall.

— Eu vencerei de qualquer forma — Foxstall provocou, se esquivando. Seu plano era parecer

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relutante e esperar a intervenção de alguém. — Eu o matarei ou você será enforcado. E antes

possuirei sua mulher.

Darien rugiu, procurando atingir as pernas do inimigo, mas este se desviou. No movimento de

retorno, Foxstall enredou-se na peliça arrematada de pele. Recuou um pouco para dar tempo de

desenrolar-se e virou-se para jogar o tecido pesado sobre a espada curta de Darien, pretendendo

atingi-lo no coração.

Ninguém brincava.

Darien livrou-se do tecido e tentou afastar-se, mas a investida de Foxstall atingiu-lhe as

costelas. Mal se equilibrando, investiu simplesmente para impedir a vantagem de Foxstall.

E sua lâmina foi enterrada fundo, vibrando com o impacto. Darien virou a cabeça e viu que

atingira o pescoço.

O sangue jorrou da artéria. Foxstall abriu os olhos e a boca em surpresa, e suas pernas

amoleceram. A queda teria puxado Darien junto, se ele não tivesse largado o sabre. Foxstall moveu

os lábios e morreu com os olhos arregalados.

Darien fitou-o, fazendo esforço para respirar.

Foxstall fora uma espécie de amigo no começo. Fora um bom oficial durante a guerra, mas

um canalha em outros aspectos. O mundo ficaria melhor sem ele, principalmente depois do que ele

fizera.

Thea.

O silêncio foi rompido por gritos e gemidos. Cauteloso, Darien puxou o sabre e virou-se.

Frank já estava ao seu lado, pálido, resoluto, com o alfanje desembainhado.

— Isso irá a julgamento — ele murmurou.

Com as cercas às costas e a multidão cada vez mais irada, não havia escapatória. Darien

entendeu que teria sorte se não fosse enforcado ou linchado. E por que Frank teria de estar ao seu

lado para sofrer o mesmo destino?

Nisso uma carruagem chegou com os cavalos galopando, ao mesmo tempo em que uma tropa

avançava do outro lado da quadra.

— O magistrado e reforço — Darien comentou. — Três vivas.

— Estou feliz em vê-los — Frank disse.

Darien não tinha essa certeza. Apesar da justificativa, ele matara um homem. Se fosse um

duelo, haveria protocolo. De outra forma, seria encarado como assassinato aos olhos da lei. Homens

já haviam sido enforcados por motivos semelhantes.

Se fosse levado aos tribunais, o julgamento seria na Câmara dos Lordes. Um fogo de palha a

ser adicionado à carga dos Cave, e Thea poderia ser envolvida. Teria ela força e coragem para fugir

da casa sozinha?

— O que ele fez? — Frank indicou o cadáver de Foxstall, sem muita preocupação.

— Imagine que tenho uma boa causa.

— Claro.

— Ele estuprou e feriu uma dama de boa família em nossa casa. Ela ainda está lá dentro, na

escada de serviço. Posso me cuidar. Vá falar com ela.

— Como? — Frank indagou, descrente.

Eles estavam encurralados pela aglomeração que ainda parecia pronta para despedaçá-los.

Os soldados montados abriram passagem para Evesham. Sir George veio com ele, mais

calmo, mas demonstrando uma satisfação horrível.

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— Loucos, todos eles — sir George declarou. — Venho dizendo isso há tempos. Esse aí

matou naquela casa amaldiçoada e correu para assassinar aquele nobre oficial, um mero espectador.

— Não era nada disso — Darien declarou, embora duvidasse de que a razão fosse aceita ali.

— Cale-se! — Evesham ordenou a sir George. — Queremos a lei e a ordem, não discursos

inflamados. Capitão, dissolva a turba. Ao primeiro sinal de violência — ele berrou —, lerei o Riot

Act. — Ele se referia a uma lei permitindo aos soldados usar as armas contra civis.

O efeito foi imediato.

— Agora — Evesham prosseguiu —, alguém me diga o que aconteceu aqui. O senhor. — Ele

apontou para um homem de meia idade vestido de preto.

O camarada adiantou-se e fez um relato coerente do que ocorrera.

— O senhor diz que lorde Darien não foi provocado? — Evesham indagou.

— Só posso atestar o que eu vi, sir. Milorde saiu correndo da casa e atacou o oficial que

parecia estar observando os acontecimentos.

— Ele é louco — sir George insistiu. — Como todos os Cave. — Cuspiu.

Evesham fitou Frank com olhar penetrante.

— O senhor também é um Cave?

— Tenente Cave, da Marinha Real.

— Pelo que eu saiba, ele nada tem a ver com isso — sir George afirmou, relutante.

Darien teve de apreciar a justiça do outro. O homem realmente acreditava na história que

vinha repetindo e queria sangue. Mas apenas de quem merecia.

— Abaixe sua arma, tenente — Evesham disse para Frank e virou-se para Darien. — Renda-

se pacificamente, milorde, ou terei de matá-lo.

Como um cão danado. A frase permeou silenciosamente o ar.

Darien entregou a Frank o sabre ensanguentado que estendeu a arma como cabo para a frente.

O capitão da tropa adiantou-se e pegou-a, com semblante não satisfeito.

— Visconde Darien, o senhor está preso por assassinato. Virá pacificamente?

— Claro. — Quanto antes aquilo terminasse, mais cedo Frank poderia tomar conta de Thea.

— Dirija-se a meu coche, milorde...

— Parem com isso!

O grito fez com que todos se voltassem para a mansão. Thea estava no degrau, ainda com o

casaco verde-escuro de Darien, o vestido rasgado e os cabelos desgrenhados.

Darien adiantou-se e o capitão da Cavalaria impediu-o de continuar, apontando o sabre

ensanguentado em seu peito.

— Frank, faça alguma coisa. Tire-a daqui antes que ela seja reconhecida.

Frank tentou abrir caminho por entre pessoas e cavalos, mas Thea, descalça, desceu correndo

os degraus e atravessou a praça, gritando.

— Parem! Parem! Não foi ele!

As pessoas se afastaram, algumas espantadas, outras consternadas e muitas satisfeitas com o

prospecto de um novo drama entre a nobreza.

Darien olhou para o oficial da Cavalaria a quem infelizmente, não conhecia.

— O senhor tem minha palavra de que não fugirei.

O homem, apesar do sorriso simpático, negou com um gesto de cabeça.

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Frank chegou perto de Thea, segurou-a, disse algo e ela mostrou-se admirada por ver alguém

tão parecido com Darien.

— Leve-a embora, Frank. Ela precisa de cuidados, ele a machucou.

Thea se desvencilhou.

— É verdade, ele me machucou! — ela gritou, apontando Foxstall. — Ele me atraiu para uma

armadilha, feriu-me e queria que todos pensassem que a culpa era de lorde Darien.

— O que é isso agora? — O magistrado pareceu não acreditar.

Thea virou-se para ele.

— O capitão Foxstall odiava lorde Darien. O senhor tem de acreditar em mim.

— Qual seu nome?

— Não é de sua conta — Darien apressou-se a dizer. — Frank, leve-a embora. Ela está

chocada e fora de si — ele falou com sir George —, mas espero que o senhor comprove que não

matei nenhuma dama em minha casa.

— Isso porque chegamos a tempo.

— Ele estava me ajudando! — Thea puxou o lenço de Darien manchado de sangue. — Veja,

isto é dele!

— Frank... — Darien começou.

— A senhora não vai a lugar nenhum — o magistrado interrompeu-o — até eu saber qual seu

papel nisso tudo, ainda mais que não sei de quem se trata.

— Sou lady Theodosia Debenham, filha do duque de Yeovil — Thea explicou com clareza.

— E lorde Darien é meu futuro marido.

Frank fitou Darien, atônito.

— Sei que se tratou de uma luta irregular — ela continuou, altiva ;—, mas não é de se admirar

que lorde Darien tenha atacado o capitão Foxstall depois de eu ter contado quem me agrediu tão

brutalmente.

Darien, que tentara impedi-la de falar, então a olhava, humilhado pela coragem de Thea.

— Agora — Thea disse com a soberba dignidade que uma vez o enfurecera —, por favor,

posso me aproximar dele?

Os presentes abriram caminho e ela caminhou de queixo erguido, como se ninguém mais

existisse, direto para os braços de Darien.

— Você não deveria ter feito isso.

Thea, tremendo, aconchegou-se no peito de Darien.

— Deveria, sim. Por favor, Darien, leve-me para casa.

— Os senhores têm minha palavra — Darien disse para o capitão, o magistrado e para sir

George — que não tentarei escapar à lei, mas lady Thea precisa ser levada daqui.

A filha de um duque meio vestida diante dos olhos fascinados da multidão era um trunfo.

— Use minha carruagem, milorde — o magistrado ofereceu.

— O quê? — sir George explodiu. — Deixá-lo escapar com a vítima?

Thea soltou-se e encarou-o.

— Homem idiota, não sou vítima dele!

Darien teve vontade e rir.

— Por que não vem conosco, sir George? Sua proteção será preciosa.

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A afirmação deixou o homem perplexo, mas só por um momento. Em seguida, pediu uma

pistola de um dos cavaleiros.

— Bem-vindo a casa — Darien disse para Frank. — Tome conta de tudo. Há uma pequena

chance de me permitirem voltar mais tarde para limpar a sujeira.

Frank concordou, sem nada perguntar.

Darien ergueu Thea e levou-a até a carruagem, ignorando sir George que vinha atrás dele. Foi

mais difícil não tomar conhecimento da presença dele sentado na carruagem no lado oposto, com a

pistola empunhada.

Darien sentou Thea no colo, abraçou-a e sentiu-se incapaz de varrer o horror de sua vida,

horror que ele trouxera.

Diante da Mansão Yeovil, o cavalariço desceu para tocar a aldrava. Darien saiu do coche com

Thea nos braços que o fitava como se ele fosse seu salvador. Quando chegou à porta, a mesma

estava tão aberta quanto a boca do lacaio.

— A duquesa está em casa? — Darien entrou.

O criado levou alguns instantes para se recompor.

— Sim, sir!

— Vá chamá-la.

Outro criado e uma criada entraram no hall, ambos boquiabertos.

— Leve-me ao quarto de lady Thea — Darien pediu à criada.

A moça hesitou antes de reparar no olhar severo de Darien e apressar-se escada acima.

— E o outro cavalheiro? — o lacaio perguntou. Darien olhou por sobre o ombro e viu sir

George.

— Ele pode fazer o que quiser, contanto que não nos aborreça.

Darien estava deitando Thea na cama quando a duquesa entrou.

— Deus do céu, o que houve?

— Isso — Darien sentiu-se constrangido — é uma história muito complicada.

Thea estendeu as mãos para a mãe que correu para ela.

Darien pretendia sair do quarto de costas, mas o duque o fez voltar e fechou a porta.

Thea soluçava nos braços da mãe que, pálida e assombrada, fitou o marido.

— O que houve? — o duque perguntou.

Darien endireitou-se.

— Ela foi feita prisioneira pelo capitão Foxstall e por minha causa. — Pressionou as mãos no

rosto. — Foi minha culpa.

— Não!—Thea negou.

Darien fitou-a.

— Se eu não tivesse entrado na sua vida, nada disso teria acontecido.

— O que Foxstall fez com minha filha — o duque perguntou, feroz. — E onde ele está?

— Eu o matei — Darien respondeu

O duque respirou fundo.

— Isso pelo menos é satisfatório.

— Vossa Graça, Thea declarou diante de meia Londres que está comprometida para se casar

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comigo.

— O quê? — O olhar do duque foi interrogativo.

Thea sentou-se, afastando-se delicadamente da mãe.

— Nada do que houve foi culpa de Darien. Recebi uma mensagem pedindo ajuda e pensei que

fosse de Maddy. Fui até lá e Foxstall me fez prisioneira. — Ela estremeceu. — Ele tentou esconder

a identidade, mas não adiantou. Consegui vê-lo no espelho antes de ele tentar me estrangular. —

Ela levou a mão ao pescoço.

— Meu Deus — o duque murmurou.

— Ah, minha querida. — A duquesa tirou a mão de Thea do pescoço e olhou a pele

escurecida, manchada de sangue.

— Pensei que ele fosse me matar, mas eu recobrei os sentidos. Na cama...

A duquesa tornou a abraçá-la.

— Está tudo bem, querida. Não precisa dizer mais nada.

Thea sacudiu a cabeça.

— Ele vendou meus olhos e tentou disfarçar a voz, fazendo-a parecer com a de Darien. Disse

que me odiava e fez um corte no meu pescoço e outro na minha perna. Pensei que ele fosse me

matar, mas então ele afrouxou a venda de meus olhos. Quando consegui tirá-la, ele ja tinha ido

embora.

— Thea — a duquesa perguntou depois de alguns instantes —, ele não a violou?

— Oh, não!

— Graças a Deus — o duque disse, e Darien ecoou.

— Muito bem, agora precisamos de uma história para contornar isso. — O duque virou-se

para Darien. — Metade de Londres?

Foi a vez de Darien fazer o relatório.

— Os acontecimentos no quarteirão foram testemunhados por cerca de quarenta pessoas, um

magistrado, dois oficiais da lei e vinte cavaleiros. Isso inclui eu ter matado Foxstall em um duelo

sangrento e completamente irregular, e Thea sair correndo para impedir que eu fosse linchado.

— Você está certo — o duque afirmou. — Teria sido bem melhor se não tivesse se

intrometido em nossas vidas.

— Eu sairei, embora tardiamente, Vossa Graça. Dei minha palavra de voltar e enfrentar a lei.

Darien saiu do quarto, imaginando se veria Thea novamente. O duque seguiu-o e ele

preparou-se para comentários mordazes bem merecidos.

O duque adiantou-se em silêncio, desceu a escada e apontou o escritório. Não havia criados à

vista, mas certamente eles estavam escondidos pelos cantos. As novidades logo estariam espalhadas

por Londres inteiras e mais além.

— Lamento profundamente ter envolvido lady Thea nisso — Darien disse quando entraram

no gabinete do duque —, e farei qualquer coisa para amenizar as consequências. Deixarei o país e

até poderei pôr um fim na minha desastrosa existência.

— Duvido que isso pudesse ajudar — o duque afirmou com frieza, e Darien sentiu-se como

um adolescente nervoso. — Não tenho ideia da extensão do mal que você causou, Darien, mas

descobrirei. Parece que minha sobrinha rebelde teve uma boa contribuição, mas Thea jamais

deveria ter deixado a casa sozinha.

— Um bom coração não é um defeito.

— Você pode negar que ela estava tentando esconder alguma loucura de minha sobrinha,

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quando deveria ter contado para a mãe dela?

Desta vez, Darien sentiu-se como um colegial diante de um mestre implacável e vingativo.

— Não haverá julgamento — o duque afirmou —, muito menos um sensacional diante da

Câmara dos Lordes. Não quero que minha filha seja chamada como testemunha no caso.

— Eu também não quero tal coisa.

— Como Foxstall teve acesso à sua casa?

— Ele pegou a chave de um amigo comum, sir. — Não havia necessidade de explicar a

participação de Pup no caso.

— Aceite minha sugestão. No futuro, guarde melhor as chaves de sua casa. Bem, ele decidiu

usar sua casa para seus propósitos malévolos e você o surpreendeu...

— Perdão, Vossa Graça, mas ele estava placidamente observando os eventos na rua quando

eu o vi e o matei.

O olhar sombrio do duque culpou-o pela inconveniência dos fatos.

— Quando você inesperadamente voltou para casa, Foxstall escapou, mas ficou espionando à

espera de uma oportunidade.

O que fazer? Se o duque de Yeovil pudesse amarrar tudo isso num pequeno pacote para ser

enterrado, Darien não se oporia.

— Você o viu, notou a culpa estampada em seu rosto e correu para segurá-lo com intenção de

entregá-lo à lei. Ele resistiu violentamente e você não teve alternativa. Para defender-se, acabou por

matá-lo.

— Corri para matá-lo, Vossa Graça, pelo que ele fez com Thea, mas se sua história for aceita,

que assim seja.

O duque anuiu, analisando Darien com olhar frio. Até onde sabia, o duque nunca estivera no

Exército, mas naquele momento Wellington seria capaz de recompensá-lo por seus esforços.

— Existe alguma veracidade nesse noivado?

— Não, Vossa Graça. Thea disse isso para tentar me proteger.

— Este caso dificilmente contribuirá para melhorar a reputação de sua família.

— Exato, Vossa Graça.

— Mas se Thea declarou um compromisso diante de testemunhas, vestida dessa maneira, será

melhor esperar um pouco. Como estivemos fora da cidade, Thea e a duquesa poderão retornar para

Long Chart sem despertar muito interesse. Em vista de seus planos, você desejará voltar para suas

propriedades e tentar deixar tudo em ordem para seu futuro.

— Claro que farei isso — Darien retrucou, seco. — Mas como assumi meu lugar no

Parlamento, terei de ficar em Londres até o final das sessões, sir.

Os lábios estreitados do duque evidenciaram seu desagrado.

— Está certo. Quando os comentários cessarem, Thea o liberará do compromisso. Duvido de

que alguém se surpreenda com isso.

Darien fez uma mesura, deixou o gabinete e rumou para a porta casa, esperando que sir

George não o estivesse esperando com discursos bombásticos. Sua paciência estava quase esgotada,

independentemente da justificação das queixas.

Em vez de sir George, encontrou Frank. Ele segurava seu paletó e estendeu-o a Darien que

nem se dera conta de como estava pouco vestido.

— A duquesa desceu e entregou-me seu agasalho. Ela mandou dizer que lady Theodosia está

se recuperando bem e deseja recebê-lo amanhã cedo, antes de elas partirem para Somerset.

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Darien envergou o paletó manchado de sangue, mas com o perfume de Thea,

— Ela não deve ter falado com o duque ainda. — Darien seguiu na frente de Frank até a saída

e a porta foi aberta por um lacaio. — O que aconteceu com as autoridades? — perguntou, já na rua.

— O magistrado insistiu em inspecionar a Mansão Cave e pareceu satisfeito. Não encontrou

nada, exceto a bagunça nos seus aposentos. Mas ele ainda quer falar com você e com Lady Thea.

Sir George foi embora para tentar encontrar um crime e acusá-lo como responsável. Onde estão os

criados? Você é suspeito também de tê-los matado.

Darien sacudiu a cabeça,

— Temos um cavalariço. Os outros foram embora, levando o que restava da prataria.

Precisamos voltar para lá.

— Não. Não podemos viver naquela casa. Existe uma boa estalagem na próxima rua.

— Como é que você sabe disso? — Darien perguntou.

— O lacaio me disse.

— Uma solução simples, mas eu preciso de minhas coisas. Onde estão as suas?

— Na estalagem de treinamento. Eu não tinha certeza se você ainda estava morando na casa.

Por que foi para lá?

— Sinceramente, não sei.

— Há sangue na sua camisa, você está ferido?

Darien lembrou-se da lâmina de Foxstall passando sobre suas costelas e tocou o ferimento.

— Nada sério.

Frank segurou seu braço.

— Vamos. Mais tarde pegaremos suas coisas. Agora você precisa de comida, de um conhaque

e de um pouco de paz.

— E como terei sossego com você por perto? — Darien queixou-se, mas de repente, a

despeito do desastre, da perda e do sofrimento, o mundo pareceu melhor. — E como vai sua bela

Millicent?

— Millicent? Ah, ela pertence ao passado. Ela se acovardou tanto com as objeções do pai que

o brilho tornou-se vulgar. O almirante também se encarregou de enviar-me para diversas patrulhas.

Por um tempo ela mandou cartas manchadas com lágrimas, mas quando eu vim para cá ela estava

apaixonada por um capitão.

Darien começou a rir.

CCaappííttuulloo XXII

Pouco depois Darien encontrava-se em uma confortável sala de estar da estalagem Dog and

Sun, feliz com a situação inusitada de Frank cuidando dele e muito bem, por sinal. Nesses dois anos

de separação, Frank se transformara em um homem maduro que se dedicara integralmente à vida

naval e às expedições aos Estados Bárbaros do norte da África.

— Espero que você pare logo com tantos mimos — Darien disse, apesar de satisfeito.

Frank sorriu.

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— Está bem, mas admito que voltar para casa também foi alarmante, pois ouvi muitos

comentários. O que se passou por aqui?

Entre goles de cerveja e bocados de uma excelente torta de carne, Darien contou a Frank os

acontecimentos recentes, sem citar a motivação original.

— Fiquei surpreso ao saber que você deixou o Exército, ainda mais para entrar nesse mundo

— Frank comentou —, mas entendo como se sentiu ao final da guerra. É mais ou menos o que

estou passando.

— O quê? Só por causa de Millicent e do pai dela?

— Oh, não. Eu já lhe disse, a escapatória foi uma sorte. Não desejo me comprometer antes de

estar com os pés firmes no chão. Estou deixando a Marinha.

— Tem certeza da decisão?

— Digamos que a fome juntou-se à vontade de comer. Seria conveniente a Dynnevor mandar-

me para cá caso Millicent vacilasse, mas fui eu quem pediu. Durante anos não passei de Portsmouth

nas minhas vindas à Inglaterra, embora não possa me queixar de enfado.

— Pensei que você gostasse de viver no mar.

Frank esvaziou o copo e tornou a enchê-lo com a jarra.

— Gosto, mas não à loucura. Creio que eu também teria sido feliz no Exército ou em qualquer

outro local que provesse ação contra o inimigo. Muitos outros oficiais adoram aquela vida, os

navios e o mar, e se sentem mal quando estão baseados na costa. Não me parece justo tomar o lugar

que tantos desejam.

— Entendo, mas e a questão do dinheiro? Claro que eu posso mantê-lo, mas...

Frank riu.

— Nós discutiríamos muito se eu fosse seu dependente. Não esqueça do dinheiro proveniente

das presas marítimas. A Marinha é um pote de ouro.

— Eu não sabia que você se envolveu em capturas valiosas.

— Não extraordinárias, mas suficientes. Como primeiro tenente, minha parte das presas do

último ano foi compensadora.

— Sou capaz de pedir-lhe um empréstimo — Darien notou o olhar sombrio do irmão e sorriu.

— Estou brincando. Tenho dinheiro suficiente e com os melhoramentos que pretendo implantar na

propriedade, nada precisarei. Quais são seus planos? — Ele estava um pouco alarmado, pois Frank

sempre acabava aterrando a seus pés.

— Não tenho ideia — Frank disse, feliz. — Não é esplêndido? Fui para a Marinha aos doze

anos e não tive direito de me manifestar nesses dez anos desde...

— Sinto muito.

— Ora, pare com isso — Frank fingiu-se de carrancudo. — Você convenceu papai a alistar-

me cedo e eu agradeço a você e a Deus por isso. Aproveitei a vida, mas estou pronto para algo

novo. Bem, e quanto a você? Haverá um julgamento?

Darien ficou satisfeito que a felicidade de Frank independesse disso.

— Provavelmente não. Ao duque de Yeovil não interessa um julgamento. A história passará a

ser que eu estava tentando prender Foxstall, mas ele resistiu e eu o matei mais ou menos por

acidente. Por falar nisso, ele não violou Thea.

— Malevolência e estupidez? — Frank disse. — O mundo será melhor sem ele.

— Sim. Chegamos a ter uma certa amizade, ele era um bom soldado.

Darien sentia necessidade de contar algumas histórias que mostrassem o lado positivo de

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Foxstall, mas Frank não se mostrou muito impressionado. Ambos sabiam que coragem cega e a

capacidade de matar eram comuns, mas a honra e a integridade eram mais importantes.

— O que pensa fazer agora, Darien?

Darien levantou-se, levando o copo de cerveja, e foi até a janela eu dava para o pátio da

estalagem. Mesmo aquela não sendo um posto de parada para troca de cavalos, havia muito

movimento.

— Ir para Stours Court assim que terminarem as sessões do Parlamento. Preparar a

propriedade para nosso falso futuro feliz.

— Por que falso?

— Ninguém pode ser feliz em Stours Court. — Darien ficou surpreso com a própria certeza.

— Podridão seca, podridão úmida, vigília junto ao leito de morte e lembranças.

— Acabe com isso.

— Essa será provavelmente sua herança, pois duvido de que eu me case.

— Esqueça. Você poderá sobreviver a mim se resolver levar uma vida pacífica.

— Essa é uma capacidade que está ausente em mim. — Darien contou o que havia acontecido

no baile a fantasia.

— O que você poderia fazer? Conde ou não, o homem era um porco e abusou de sua dama.

— É bom tê-lo por aqui, Frank. — Darien sorriu.

— Estou vendo — Frank apoiou-o. — Parece que você tem se deixado levar pela depressão.

Deve ser aquele cão negro que só falta rosnar toda vez que você entra em casa. É preciso acabar

com ele. Sabe o que representa um cão negro? Melancolia e mau augúrio. De qualquer forma não se

deve usar a casa, mas o cão tem de ser removido. Não viu a placa da estalagem?

— Um cão e o sol.

— O sol nascente e Sirius na constelação Cão Maior. Depende sempre da maneira que você

vê as coisas.

Darien riu, mas sabia que estava perto de passar dos limites.

— Você e Thea precisarão de um lar melhor.

— Nós não nos casaremos. — Darien olhou o copo vazio.

— Não? Admito que a situação é um pouco tensa, mas vocês dois me pareceram muito afeitos

um ao outro.

— Eu gosto demais de Thea para permitir que ela se case comigo e depois desse incidente,

duvido de que a família consinta no enlace.

— Mulheres costumam ser muito persistentes. Falo por experiência própria.

— Uma caçada implacável?

Frank riu, mas não respondeu.

Darien encostou-se na janela, ouvindo os ruídos da vida normal que o cercava, vendo diante

de si que um Cave não significava inexoravelmente um proscrito.

Então era ele quem causava os problemas e era mais parecido com a família do que pensara.

— Thea teve uma vida protegida, portanto eu a deixo excitada. Mas ela já teve evidências do

estrago que posso causar. Se ainda não recuperou o juízo, certamente não tardará a fazê-lo e esse

será meu presente a ela. Thea continuará na bela, cortês e organizada Long Chart e entenderá que

aquele é seu lugar. Durante meses, metade do país haverá de nos separar e quando nos

encontrarmos de novo, seremos apenas bons amigos.

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Frank demonstrava não acreditar nas palavras de Darien.

— Frank, grandes amores também morrem. Você teve a prova disso.

— Eu não diria que Millicent foi um grande amor. Para todos os efeitos, tome conta de Stours

Court e as coisas se resolverão.

— Droga, você parece Candide. Tudo é para melhor nesse melhor dos mundos possíveis.

— Mas fique de sobreaviso — Frank disse. — Vamos ver o que você pensa amanhã depois de

encontrar sua dama.

— Duvido que eu seja admitido naquela casa.

— A vontade da duquesa e de Thea devem ter prevalecido.

— Então se presume que Thea quer me ver.

— Aposto vinte e cinco libras que sim.

— Eu sempre fui contrário a apostas altas.

— Não quer arriscar seu dinheiro sendo o parente pobre? — Frank caçoou.

— Não quero apostar sobre o assunto.

Frank levantou-se e aproximou-se de Darien.

— Desculpe-me. O que você fará se ela não a quiser?

Darien deu de ombros.

— Talvez me aventurar com você. Mas no momento seria melhor voltarmos para a Mansão

Cave, lidar com os danos e pegar meus pertences.

Eles foram a pé, pois Frank queria andar pela cidade. Darien hesitou quando chegaram à

quadra, mas não havia evidências físicas dos últimos acontecimentos. Talvez o duque tivesse

providenciado a remoção do sangue e de outros vestígios. Mas a lembrança da desordem e da morte

estava no ar.

Um casal saiu de uma das casas, parou, espantou-se e saiu correndo.

— Cave, cave — Darien murmurou.

— Uma morte violenta na porta de casa é um pouco perturbador — Frank disse —, não

importa quem você seja.

— Não vai me permitir fazer drama? — Darien perguntou ao destrancar a porta.

— Não vejo vantagem nisso.

Darien entrou na frente.

— Eu gostaria que os fantasmas retornassem, só para você ver. Mas tenho certeza de que

também eles eram uma maquinação dos Prussock.

— Quem?

— Ainda não lhe contei sobre minha fantástica coleção de criados... — Darien interrompeu-

se. Eles ouviram uma batida no andar de cima e um ooooohhh... que flutuou no ar. Frank e Darien

se entreolharam e subiram a escada correndo.

— Eu lhe digo que não é Marcus — Frank disse no último degrau. — É muito débil para ser

ele.

Um rugido ecoou na frente.

Os dois pararam e apesar da idade, da autoridade e da guerra, foram com muito cuidado em

direção da sala de estar ainda coberta.

Houve um gemido gutural, junto com sons de arrastar os pés.

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Darien arrepiou-se ao entrar na sala e desejou estar na posse de seu sabre, embora a arma

fosse inútil contra um espírito maligno.

Uma forma envolta numa capa levantou-se.

Darien percebeu que se tratava de um ser vivo no instante anterior em que a manta holandesa

foi tirada e apareceu Pup sorridente.

— Como foi, Canem? Eu lhe dei um susto?

— Apresente-o, Canem — Frank pediu depois de um instante sem respirar.

Darien precisava de um drinque forte.

— Frank, quero lhe apresentar Pup Uppington. Pup, este é meu irmão, Frank.

Pup aproximou-se, fascinado, com a mão estendida.

— Tenente Cave, é uma honra conhecê-lo! Que bom ver você, Canem. Eu estava um pouco

preocupado com a história de Foxstall e por isso vim vê-lo. Nid Crofter contou-me o que aconteceu

e um homem deixou uma mensagem para você.

Pup entregou a carta. Era de Evesham, marcando um encontro para o dia seguinte. A menção

a Sua Graça, o duque de Yeovil, fazia crer que o duque já iniciara seu trabalho.

— Está tudo bem agora? — Pup indagou. Não havia motivo para entrar em detalhes.

— Vai se harmonizando. O que foi esse negócio do fantasma?

— Ouvi dizer que você queria algum, por isso caprichei. E não foi bom?

Darien sacudiu a cabeça.

— Posso ajudar? — Pup perguntou. — Você não pode morar aqui sem criados. Se quiser,

pode ficar conosco.

— Não, obrigado — Darien disse —, mas agradeça à Sra. Uppington.

— Uma ótima mulher. Não se importa com nada e é uma boa administradora. Temos sempre

a melhor comida e do jeito que eu gosto. Você estava certo, Canem, uma esposa é melhor do que

uma rameira.

Darien escutou um som de riso abafado de Frank, mas não ousou olhar.

— Tenho certeza de que ela está sentindo sua falta — Darien disse —, por isso é melhor

voltar para casa. Obrigado por ter vindo.

— Certo — Pup anuiu. — Apareça quando quiser e acredito que agora entendo um pouco

sobre a vida de casado. — Ele deu um sorriso largo e foi embora, assobiando fora do tom.

Frank largou-se no sofá descoberto e tentou esconder o riso no braço acolchoado.

Depois de ouvir a porta da frente bater, Darien sentou-se ao lado do irmão e riu até chorar.

Frank certamente não notou algumas lágrimas por outro motivo.

Eles se recompuseram e Darien mostrou ao irmão o retrato do pai deles. Frank estremeceu e

cobriu-o de novo. Depois de andar pela casa, concordaram que nada lhes interessava exceto os

pertences de Darien.

Encheram a arca de madeira que não foi suficiente para acomodar todas as roupas recentes da

moda. Darien estendeu no chão uma manta, atirou por cima o que ficara faltando e fez uma trouxa.

Lovegrove teria desmaiado. Pobre Lovegrove.

Com um último olhar, eles saíram e trancaram a casa. Na estrebaria, Darien pediu a Nid para

procurar um homem que tivesse um carrinho de mão para levar a arca e a trouxa à estalagem Dog

and Sun, e depois se mudar com Cerberus para lá. Em seguida, andaram pela alameda e Darien

desejou nunca mais voltar à Mansão Cave.

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118800

Na estalagem havia um recado de Van, convidando-os para jantar naquela noite. Darien não

teve como recusar, embora preferisse não tocar mais no nome de Foxstall.

Na casa de Van e Maria, encontraram St. Raven e Cressida, além de Hawkinville e Clarissa.

Natalie, a bela sobrinha gorducha de Maria também estava presente. Observando a atração de Frank

por jovens beldades, Darien decidiu, mesmo sem saber se era certo, tentar a abordagem

despreocupada de Frank em relação à vida.

Depois do jantar, sem os criados, os eventos foram discutidos.

— Não queremos lady Thea exposta ao falatório público. — Cressida St. Raven não gostava

de atrair atenção.

— Algumas damas gostam de notoriedade — o animado St. Raven provocou-a.

— Nenhuma dama gosta — Maria contestou.

— Então uma grande parte da sociedade não é nobre. — Van deu um sorriso largo.

— Por favor — St. Raven pediu —, não proclame que a nobreza é desalmada ou teremos de

prendê-lo por traição e revolta.

Em seguida houve uma breve discussão séria sobre as rebeliões e as maneiras sensatas e

idiotas que o governo adotava em relação a elas. Mas logo o bom humor voltou quando Frank

contou o episódio de Pup imitando um fantasma e Hawkinville relatou a história de uma

escaramuça com Pup que Darien desconhecia.

— Foi bom ter tomado conta dele, Canem — Clarissa Hawkinville acrescentou — em vez de

ignorá-lo. Ele deve sentir-se confuso e preocupado.

— Como qualquer um de nós — Darien afirmou. — Não queira me fazer de santo. Ele

sempre me seguia por toda parte, o que eu poderia fazer?

— Deixá-lo afogar-se no Loire. — Van fitou Darien antes de descrever outro subalterno

infeliz que encontrara.

Não se falou mais em tumultos e mortes. Foi um final estranho para um dia horrível, ou

melhor, uma noite agradável entre... amigos.

Antes de ir embora, Darien procurou falar com Maria.

— Como está Thea?

Os olhos bondosos se mostram preocupados.

— Foi uma experiência terrível e ela está abalada.

— Os ferimentos dela são sérios?

— Oh, não. Ninguém lhe contou? Foram cortes superficiais, feitos para amedrontar. O plano

foi desprezível. Fico feliz que o tenha matado.

— E Thea, o que achou?

— Não sei, não quis perguntar. Quais são seus planos?

Indireta delicada.

— Quando as sessões do parlamento forem encerradas, irei com Frank para Stours Court ver

como está aquele lugar. Ele sugeriu demolir tudo e essa pode ser uma ideia acertada. Preciso pensar

no que fazer com a Mansão Cave. Eu não gostaria de voltar a morar lá, mas ela não pode

permanecer vazia. Tentei vender ou alugar, mas não houve pretendentes.

A resposta foi evasiva, mas Maria não insistiu.

Na manhã seguinte, Darien mandou uma mensagem para a duquesa de Yeovil, perguntando se

poderia visitá-la. Não queria expor ninguém ao inconveniente de ter de mandá-lo embora. A

resposta veio sem demora. Ele estava sendo esperado. Thea e a mãe viajariam em uma hora.

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Darien vestiu-se com apuro e venceu o curto trajeto, resistindo à vontade ridícula de correr.

Cada minuto a mais na caminhada seria um minuto a menos com Thea. Mas de qualquer modo o

encontro com ela seria curto. Passou por uma florista e comprou um buquê de ervilhas-de-cheiro

perfumadas, depois achou uma tolice chegar com flores.

Sua entrada foi autorizada por um lacaio impassível, o mesmo que na véspera o deixara entrar

com Thea nos braços. Certamente muitas reações se passavam sob o verniz exterior.

A duquesa saiu de um das salas de recepção, sorriu diante das flores e convidou-o a segui-la.

Thea estava na sala, ao lado da lareira vazia, esperando alguma coisa. Ao vê-la pálida e

cansada, ele teve vontade de tomá-la nos braços.

— Darien chegou, minha filha — a duquesa falou, saiu e fechou a porta.

Surpreso, ele se voltou para a mulher que adorava e a quem deveria abandonar. Então por que

trouxera as flores? O perfume delas começou a se espalhar pelo recinto.

Thea vestia um costume de viagem cinza-azulado que lhe acentuava a palidez. O corpete era

baixo, com rufos brancos e gola alta. Os cabelos tinham sido penteados num coque alto e nas

orelhas ela usava pequenas pérolas. Ele se lembrou do vestido vermelho.

— Como está, Thea? — Foi só o que lhe ocorreu dizer.

— Bem.

Darien adiantou-se e ofereceu-lhe as flores. Thea agradeceu com um sorriso e inalou o

perfume.

— Adoráveis. — Thea apontou o sofá. — Não quer sentar-se?

Ela sentou-se primeiro e pôs as mãos no colo, segurando o ramalhete. Darien acomodou-se na

outra extremidade, pensando por que não planejara com mais cuidado aquele encontro.

— Seus ferimentos? — ele perguntou.

— Superficiais, mas incomodam. E os seus?

— A mesma coisa.

— Como está você?

— Muito bem. Foi uma sorte Frank ter voltado. — Um assunto sobre o qual poderia

conversar. — Ele não é mais meu irmãozinho e cuidou bem de mim. — Logo depois, entendeu que

falava de Frank como um pai que babava pelo filho. Ou como um homem desesperado para

esconder o que se passava em seu coração. — Desculpe.

Thea sorriu e tornou a cheirar as flores.

— Não há do quê. Fico feliz que tenha encontrado alguém da família e ontem ele foi um

enviado de Deus.

— Sim.

— Então — ela prosseguiu, ainda escondida entre as flores —, estamos comprometidos para

nos casarmos.

— Seu pai achou melhor assim.

— E você?

— Isso encobrirá algumas particularidades. Sinto muito, pois um pouco de escândalo sempre

vai parar sobre o acontecimento e depois você terá de romper o noivado. — Ele tentou sorrir.

— Ou não — Thea retrucou, séria.

Darien fitou os olhos grandes e desafiadores.

— Não vai dar certo, Thea.

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— Não tenho direito de opinar?

— Não. Você já teve ocasião de ver por duas vezes como eu sou. É a minha natureza. Em

minha vida não conheci a paz e tive poucos amigos verdadeiros. Se os problemas não me acharem,

eu certamente os encontrarei e eles serão resolvidos de maneira brutal. O que não a agradará.

— Nas duas vezes você procurava me salvar. — Thea se endireitou por trás das flores. — Eu

tenho direito de opinar.

— Thea, meu amor... — A mudança, de tratamento foi um erro.

— Se me ama, é absurdo desistir. Darien ficou em pé e afastou-se.

— O amor não é suficiente.

— O amor é precioso.

— Mas nem sempre sobrevive.

— E se ele nunca voltar para nós dois?

Darien ficou de costas.

— Darien, eu o estou contendo em nosso acordo.

— Que acordo?

— Que decidiremos no outono.

A esperança ressurgiu para ele ter de matá-la dentro do peito.

— Até sua volta a Londres.

— Eu o estou prendendo ao espírito da promessa original, para ver como nossos sentimentos

sobrevivem. De qualquer modo, teremos de ficar noivos durante algumas semanas, até o mundo

esquecer as origens do fato. — Thea deu um sorriso tênue. — Você não pode me impedir, a menos

que pretenda me repudiar, o que arruinaria a reputação dos Cave. Darien fitou-a, sem responder.

— Como não sabemos quando as sessões do Parlamento serão reabertas, digamos que será no

começo do outono? Setembro?

— Está me parecendo que minha opinião não vale.

Thea se levantou, com postura graciosa e as flores nas mãos.

— Se quiser, Darien, poderá desistir em setembro.

— Assim como você.

— Claro. Por acaso lembrou-se de um anel? — Thea indagou.

Darien demorou alguns segundos para entender.

— Desculpe-me, eu...

Thea tirou um anel do bolso e estendeu a mão com a joia.

— Você tem muitas preocupações e também não me parece justo comprar um para uma

situação hipotética.

Darien segurou o anel formado por cinco pequenos rubis ao redor de uma pérola.

— Do tesouro do ducado?

Thea sorriu, maliciosa.

— Ele pertenceu a uma Debenham que foi amante de Rupert de Rhine, mas falhou em

conquistar seu príncipe.

Darien olhou a peça, segurou a mão esquerda de Thea e deslizou o anel no dedo esguio.

— Não sou nem prêmio nem príncipe, Thea. Você é muito melhor do que eu.

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— Sei disso, sendo filha de um duque e com um belo dote. Não esqueça desse dote quando

tomar a decisão, pois ele poderá ser muito proveitoso para suas propriedades.

Sem querer, ele também sorriu.

— Você é uma mulher terrível.

— Lembre-se de que as filhas se parecem com as mães.

— E se os filhos saírem parecidos com os pais?

— Talvez isso desapareça depois do segundo. Preciso de apenas um momento com seu irmão,

para saber se a mácula é inevitável.

Thea aproximou-se e beijou-o, e o perfume elevou-se entre eles com o calor.

Darien atirou o ramalhete no sofá e tomou-a nos braços. Para seu desgosto, lágrimas vieram-

lhe aos olhos e apertaram sua garganta. Lutou contra elas antes de roçar os lábios nos dela. Nada

mais se permitiu, nem mesmo quando viu o brilho úmido no olhar de Thea.

Afastou-se.

— Desejo-lhe uma viagem agradável e segura.

A despeito dos cílios úmidos, Thea estava perfeitamente composta.

— Suponho que você irá logo para Stours Court.

— Foi o que seu pai recomendou.

— Não faça isso se não quiser, mas é o mais acertado. Provavelmente terá de fazer

demolições, mais pelas lembranças do que por outros motivos.

— Por acaso consegue ler a minha mente?

Thea riu.

— Não se trata de mágica. Maria mandou um recado.

— Ah, as três Parcas. Thea inclinou a cabeça.

— O quê?

— Nada. Se eu demolir a casa e se, em caso extremo, você se tornar minha esposa, ficaremos

sem lar. — Era um assunto perigoso, mas tentador.

— Há uma propriedade em Lancashire — ela lembrou.

— Pior ainda.

— E a Irlanda?

— Não sei, mas é um país conturbado e estou cansado de guerra.

— Então compraremos uma nova, Canem. Decidi chamá-lo assim, como fazem seus amigos.

Por acaso se importa?

— Não.

— Será muito agradável — Thea pegou as flores e foi até a porta — procurar uma casa.

Poucas pessoas de nossa posição social podem escolher onde querem morar. Nossa casa poderá ser

perto de Long Chart ou perto de Darius, em Brideswell. — Observou a reação dele. — Ou perto de

uma região de caça, o que mais lhe agradar.

Darien adiantou-se e segurou-lhe a mão.

— Se isso acontecer, a casa será de seu agrado.

— Está certo, mas será melhor esclarecer seu gosto, pois eu a escolherei para você.

Thea abriu a porta e eles encontraram a duquesa no corredor, supervisionando criados e

bagagem, mas talvez escutando. A duquesa virou-se e sorriu.

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— Darien, quanto à sua casa...

— Deus — Thea murmurou —, esqueci de avisá-lo.

— Suponho que você não pretenda viver lá — a duquesa comentou. — Muito sensato, meu

querido menino.

Ele se tornara o querido menino da duquesa?

— Eu poderia persuadi-lo a contribuir para nossa causa? Tenho em mente um abrigo para

alguns dos casos mais difíceis entre os veteranos feridos, órfãos e mulheres infelizes. Eles poderiam

viver todos juntos, ajudando-se mutuamente. Os habitantes da quadra não estão acostumados a

pessoas dessa espécie, mas eles não serão perturbados e creio que ficarão satisfeitos por se verem

livres das lembranças dos Cave.

A duquesa mostrava-se ansiosa pela concordância. Darien riu e beijou-lhe a mão.

— Vossa Graça é minha salvadora em tudo. Considere a casa sua.

— Deles, Darien querido. Deles. Ah, quanta bondade. Thea, agora realmente precisamos ir.

Thea foi levada para uma carruagem que estava à espera delas antes de Darien pensar sobre o

assunto. Ele deixou a casa que invadira havia meses, lutando em uma nova guerra, essa contra a

esperança. Diziam que o tempo curava as feridas, mas também a distância modificava os

acontecimentos.

No lar que Thea amava, rodeada por carinho e ordem, ela passaria a vê-lo como uma presença

funesta que lhe causara sofrimentos. Darien bem gostaria que isso não se concretizasse.

Caminhou pelo parque, lembrando-se dos incidentes. Ali ele instigara Thea a mudar, a ser

mais corajosa e a afastar as teias de aranha. Mas a natureza mais profunda permanecia,

independentemente de como parecesse aos outros.

Ele poderia controlar seu gênio violento. Não lamentava ter matado Foxstall e faria tudo de

novo, mas com a ajuda divina nada semelhante voltaria a acontecer.

Glenmorgan? Aquilo poderia ter sido resolvido de maneira melhor, sem brigas nem duelos.

Aprendera no exército que havia o momento certo para a violência, mas essa máxima certamente

não se aplicava quando alguém ofendia a mulher que ele adorava e idolatrava.

Observou três crianças correndo para a água onde dois cisnes deslizavam.

Cisnes.

Se uma deusa chegara à Terra por ele, ele também poderia modificar-se na mesma dimensão.

Depois de cumprir os deveres parlamentares, Darien e Frank foram para Stours Court. A

viagem foi vagarosa porque Frank, não acostumado a cavalgar, também queria explorar as regiões

rurais por onde passavam. Pouco ultrapassaram a carroça que levava os pertences deles.

A viagem foi esclarecedora até para Darien que não passara muito tempo na Inglaterra,

embora não tivesse o entusiasmo demonstrado por Frank.

— Eu cheguei no inverno — Darien comentou, sentado num banco do lado de fora de uma

estalagem em uma aldeia pequena. Naquela tarde agradável, eles tomavam cerveja. Abelhas

sugavam o néctar de uma cesta de flores pendurada nas proximidades e dois pequenos gatos

brincavam aos pés deles. — E o regimento foi mandado para o norte, onde o sol não brilhava e a

chuva prosseguia interminável por semanas a fio.

— Eu gostaria de conhecer o país inteiro. — Frank pegou um bichano que arranhava suas

botas. — Peludo e macio. — Quando ele o deixou no chão, o animal miou e acompanhou-o por

toda parte.

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No devido tempo, chegaram a Stours Court e embora o sol do verão abençoasse aquele dia,

nada havia de mágico. O local, bem mais rústico do que cuidado, fez Darien pensar em ir embora.

Wytton, o novo administrador, realizara bastante, mas havia sido instruído para se concentrar nos

melhoramentos da terra e das edificações principais, sem perder tempo com a casa, jardins e

aspectos pouco práticos.

Decisão sensata. Um olhar e foi confirmada a ideia de demolição.

— Estranho. — Darien deteve Cerberus. — Da última vez em que estive aqui, tive a

impressão de que a propriedade era um fardo do qual não poderia me livrar, como a rocha de

Prometeu ou o albatroz do navegante. Agora me parece apenas uma casa feia, velha e corroída pela

umidade. Imagino se papai pensava a mesma coisa. O abandono não é novo, até o estábulo está no

mesmo caminho.

— Eu me lembro — Frank confirmou. — Na última década vim aqui algumas vezes.

— Você não faz questão de conservar a casa?

— Claro que não, Darien. Se ela fosse de madeira, eu poderia sugerir uma fogueira, mas as

pedras escuras darão risada do fogo.

— A madeira interior deve estar tão úmida que nem queimaria. Vamos, não acho que ela cairá

sobre nossas cabeças.

Wytton na certa achara que a estrebaria precisava de reparos. Ele consertara o telhado e os

jovens cavalariços pareciam animados e saudáveis.

Como preparação para a visita, Darien enviara ordens havia semanas para dispensar os

antigos criados de seu pai, embora providenciando indenizações ou pensão até para os que tinham

sido bastante cruéis. Ser o responsável pela custódia da herança dos Cave estava se revelando uma

tarefa dispendiosa. Ordenara a Wytton para contratar novos criados, mas não sabia se isso seria

possível. No passado, poucos se habilitavam a trabalhar ali.

Além dos cavalariços, encontrou uma cozinheira e uma copeira na cozinha limpa. As duas

mulheres fizeram uma cortesia cautelosa, mas sem receio diante de Darien e Frank. A cozinheira

avisou-os de que havia duas arrumadeiras e eles logo se depararam com duas jovens robustas que

faziam as camas, limpavam o chão, tiravam o pó e poliam. Elas também pareceram precavidas, mas

sorriram. Vinte e quatro horas com Frank as deixariam alegres como cotovias.

Apesar dos melhoramentos, não havia esperanças para a casa. Nenhuma limpeza, por mais

profunda que fosse, removeria o cheiro de podridão, e apenas a remoção completa do telhado

poderia corrigir as inúmeras áreas úmidas do forro superior. De que adiantariam os reparos se a casa

estava numa terra tão encharcada que mais parecia um pântano? Quem poderia saber por que aquele

local fora escolhido para construir a moradia?

— Eu não gostaria de dormir aqui — Frank olhou um arqueamento no forro do quarto

preparado para ele —, mas as criadas se esforçaram tanto, que não há como recuar. Noblesse oblige.

— Isso acontece com frequência.

Eles foram obrigados a ocupar os quartos, cumprimentar as arrumadeiras pelo empenho,

jantar e elogiar a cozinheira. Pelo menos não havia necessidade de mentir. As criadas tinham feito o

melhor possível, mas quando a casa fosse demolida, elas perderiam os empregos. Darien não via

outra solução.

Wytton jantou com eles. Era um homem robusto de meia-idade, acostumado a trabalhos

pesados e gostava de conversar. Darien admirou a vontade de Frank em inteirar-se dos problemas.

Fez tantas perguntas, que Wytton achou melhor se retirar bem cedo.

— Você esgotou o pobre Wytton — Darien comentou, enquanto tomavam vinho do Porto.

— São assuntos fascinantes. Quem poderia supor que a drenagem fosse tão importante?

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— Quem planejou esta casa deveria ter considerado esse aspecto.

— E por toda parte. Eu pensava que as árvores servissem apenas de enfeite, para fazer

mastros e mobília. Os bosques, árvores podadas...

Frank continuou falando, e Darien levantou-se, tentando mudar de assunto.

— Que tal se eu fosse até Greenshaw? — Frank perguntou assim que deixaram a sala de

jantar. — Não para sempre, mas eu gostaria de ver como me sairia na administração de uma

propriedade.

Darien não demonstrou surpresa.

— Aquele é um local árido, mas se você quiser... — Eles tinham em comum fazer tudo com

consciência.

Quando passaram pelo hall revestido de madeira, pararam diante da arca de carvalho. Darien

ergueu a tampa. Como sempre, estava vazia. Mas dentro havia as marcas que fizera com sua

pequena faca quando ainda era criança e tentara escapar dali.

— Guardar ou jogar fora?

— Guardar — Frank disse.

— Por quê?

— Nunca mostre que está com medo. Você me ensinou isso.

Darien fechou a tampa.

— Eu queria nunca ter de fazer isso.

— Somos o que somos por causa daquilo que fomos.

Aquela era uma maneira surpreendente de ver as coisas.

Mas Frank era Frank, e ele era Cave. Passara uma boa parte do tempo revisando sua vida e

encontrara pouco para se arrepender.

Os irmãos passaram as semanas seguintes de maneira agradável, vasculhando a propriedade,

com Frank fazendo perguntas ao administrador antes de ir a Londres para ultimar as providências

de seu desligamento da Marinha de Sua Majestade. Ao voltar, já como civil, dedicou-se, ao lado de

Darien, a decidir o que deveria ser poupado antes da demolição.

A mobília era antiga e fora de moda, mas o que estava em bom estado e livre de cupins, foi

guardado.

Foram à igreja, onde causaram alvoroço, mas foram bem recebidos e até contaram com alguns

convites. Entre esses, o de sir Algernon Ripley que veio pessoalmente convidá-los para um baile se

realizaria em Kenilworth, que ficava nas proximidades.

— Minhas filhas jamais me perdoariam se eu não os convidasse.

As filhas de Ripley eram jovens e animadas, e junto com a maioria das outras mulheres

presentes, caíram de amores por Frank. Em nova política de otimismo, Darien presumiu que Frank

estava acostumado e suportaria o assédio. Ele próprio não foi exatamente bem recebido, talvez pela

fama do novo visconde ou pelas maneiras mais contidas. Mas não foi condenado ao ostracismo, o

que o agradou sobremaneira.

Ao ver Frank escapar de um trio de donzelas de olhar brilhante, uma delas com não mais de

quinze anos, Darien entregou a ele uma taça com ponche.

— Imagine como seria ruim se você tivesse o título para acrescentar a seu charme. Agradeça-

me por tê-lo salvo, meu rapaz.

— Eu faço isso diariamente. — Frank sorriu. — Mas tenho a salientar que você não tem sido

muito solicitado.

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— Eu me revesti com a dignidade gelada de um par do reino.

— Ainda Thea?

— Sempre ela. — Darien esvaziou a taça.

— Thea deve estar se divertindo em bailes e festas.

— Espero que esteja. Quero que ela avalie os encantos de sua vida normal e as virtudes das

pessoas bondosas e não dramáticas. Mas se ela decidir ser sensata, você terá de produzir a nova

geração de Caves e, portanto, de volta à luta.

Frank tomou o ponche e ficou sério.

— Isso parece muito teatral. Thea, a única.

— É o lógico. Não seria justo casar-se com outra com metade do coração, e não acho que eu

seja feito para fingimentos ou mediocridade. Se meu coração mudar... — Darien deu de ombros. —

Contudo, se quer meu otimismo, estou pensando em reconstruir Stours Court. Vejo a possibilidade

de erguer uma casa nessa área, embora eu ainda não saiba como resolver o problema da umidade.

— Também pensei nisso — Frank concordou como se a escolha fosse um assunto simples. —

Vou dançar novamente, desta vez com aquela loira tímida. Se estiver planejando fazer parte da

sociedade local, é melhor dançar um pouco.

— Droga, você está certo. — Darien olhou ao redor. — E seguramente com uma esposa.

— Canem, Canem! O que o faz pensar que esposas são seguras?

Darien riu e tirou a Sra. Witherspoon para dançar uma valsa. Na casa dos quarenta e sem-

graça, ela corou.

Thea teria ficado contente em esperar a passagem dos dias em solidão, mas teria de sustentar a

promessa implícita de levar uma vida normal. De todo modo, era necessário. As histórias de

Londres haviam alcançado Somerset e era preciso apagar as chamas da especulação por toda parte.

Se ela ficasse reclusa e triste, poderiam culpar Darien.

Para evitar isso, ela se mostrava feliz com o noivado. Ela e mãe não se cansavam de

mencionar o heroísmo sempre que o nome de Darien era mencionado, até dar a impressão de que

ele salvara Thea diretamente das garras do malévolo Foxstall. Elas não corrigiam o engano.

Quando o Parlamento encerrou as sessões, Avonfort voltou à sua propriedade e Thea

preparou-se para mais problemas. Contudo, ele não fez mais nenhuma proposta, demonstrando

frieza e desaprovação. Thea ignorou-o, apesar de ansiosa para encontrar alguém que tivesse visto

Darien recentemente.

O duque chegou um dia depois e informou a filha de que Darien fora para Stours Court,

conforme o esperado.

Ou o ordenado, Thea refletiu, sem pedir mais informações por saber que o pai não aprovava

Darien como genro. Ela abençoava o noivado, pois isso lhe permitia mencionar o nome dele em

público.

Na biblioteca, encontrou alguns livros que mencionavam os Cave e Stours Court, e estudou-os

secretamente, como se fosse um pecado. Leu sobre a heroica família Stour e sobre a chegada dos

Cave. Imaginou se Darien sabia que o Cave que recebera a propriedade casara-se com uma viúva

que fora a última sobrevivente dos Stour. Se ele não soubesse, ela não via a hora de contar-lhe.

Um guia das mansões nobres em Warwickshire tinha uma gravura da casa descrita como de

pouca significância arquitetônica e muito mal situada. Pobre Canem, Thea pensou e desejou estar

com ele para administrar o problema. Enquanto isso passava o dedo nas janelas, imaginando em

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qual quarto ele estaria e se realmente se encontraria lá.

Era possível que Darien estivesse visitando sua propriedade em Lancashire ou mesmo a da

Irlanda, embora nenhum livro houvesse mencionado qualquer uma das duas. Ele poderia ter ido

caçar na Escócia ou jogar em Brighton. Talvez tivesse embarcado num navio em sentido contrário.

Ele poderia estar morto! Não, eles a teriam informado se seu noivo houvesse morrido.

Os jornais de Londres que recebiam não mencionavam o nome dele e por que o fariam?

Darien não era mais o centro das atenções. Ela se esforçara bastante para isso, mas no momento

daria tudo para saber algo sobre ele, desde que não fosse relacionado a outra mulher.

Era certo que ele manteria a promessa, mas isso não significava que ele não poderia mudar de

ideia.

Por carta nada recebia de útil, pois a maioria de seus amigos se encontrava em Somerset com

ela. Pensou em escrever a um dos membros da Confraria ou para as esposas, mas daria a impressão

de que estava espionando. Se os Delaney tivessem aparecido, ela poderia ter feito perguntas, mas

eles certamente não viriam porque Darius não estava ali.

Recebeu uma carta de Maddy que estava em exílio no País de Gales. Depois do episódio de

Foxstall, o pai de Thea fizera muitas perguntas e ela tivera de contar o caso da livraria e do encontro

com Foxstall, ainda mais que Harriet espalhara parte da história para os outros criados. Thea

mantivera certos detalhes em segredo, mas a última façanha e outras aventuras de Maddy haviam

esgotado a paciência de tio Arthur. Ele mandara a filha visitar um parente distante que vivia,

segundo Maddy, rodeado por nada a não ser montanhas e ovelhas.

A carta fora um misto de contrição e ressentimento que deixou Thea incerta quanto aos

verdadeiros sentimentos da prima em relação a ela, a Darien e até a Foxstall. Pelo menos, Maddy

não estava grávida e essa era uma grande bênção. Thea respondeu à carta, tentando não ferir os

sentimentos da prima, sem a certeza de que poderiam ser amigas de novo. Maddy não ajudara os

planos de Foxstall, mas Thea não podia afastar a sensação de que o comportamento da prima estava

na raiz de todos os problemas.

Agosto chegou, mas o outono estava longe. A paciência de Thea se esgotava com tantas

festas, piqueniques e corridas de cavalo, ainda mais com a falta de notícias de Darien. Tentava

convencer-se de que a honra dele exigia o silêncio implícito no pacto que ela propusera.

O que não a impedia de refletir, principalmente à noite, se os sentimentos dele não haviam

fenecido. Procurava acalmar-se e dizer a si mesma para ter fé e esperar até o fim de setembro. Ah,

como era difícil esperar.

Na segunda semana de agosto, procurou o pai.

— Papai, preciso falar com o senhor.

— Então vamos passear no jardim, é uma manhã muito bonita para ficarmos em casa.

Era um belo dia de verão e à tarde poderia esquentar muito. A propriedade parecia uma

pintura, semelhante às aquarelas que mostrara para Darien... havia tanto tempo. Gramados bem

cuidados se estendiam até o lago onde cisnes nadavam. Mais adiante, cervos passeavam entre as

árvores frondosas. Nos canteiros de flores, abelhas procuravam pólen e borboletas voejavam.

Perfeito, mas não era o que ela queria. Por isso, teve de munir-se de coragem.

— Papai, se eu decidisse casar-me com lorde Darien, o senhor ficaria desgostoso?

Ele deu alguns passos, com as mãos às costas.

— Quer saber se eu a proibiria? Não, minha querida. No final do ano, você terá completado a

maioridade e embora me agradasse supor que meu desprazer a deteria, duvido que isso pudesse

suplantar o verdadeiro amor. Mas eu tenho minhas reservas. Ele não será um marido tranquilo e

você sempre me pareceu uma pessoa que não gosta de drama e abalos.

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Thea procurou manter-se equilibrada.

— Papai, isso talvez seja como o vinho. No começo, muitas pessoas não o apreciam e

finalmente acabam gostando muito.

— Mesmo assim, a moderação é necessária e Darien pode não ser capaz disso. — O duque

sacudiu a cabeça e sorriu. — Aqui estou eu, pai de uma filha única. Minha adorada, nenhum

homem do mundo seria bom o suficiente para você.

Eles param à sombra de uma grande faia.

— Papai, está me dizendo que eu não deveria procurar seus conselhos?

— Era o que você estava fazendo?

Thea corou porque não era o que pretendia. Na verdade testava a água, mas com intenção de

mergulhar.

— Você é uma jovem muito sensata. Não torça o nariz como se isso fosse um insulto.

— As pessoas sempre dizem isso a meu respeito e elas em geral me acham tola.

— Esse é um exagero para ser dito para quem aprecia uma vida calma.

— O senhor também pensava assim quando tinha a minha idade?

Ele riu.

— Não tenho certeza se eu já tive a sua idade e você é muito amadurecida para sua juventude.

Sua mãe e eu confiamos no seu bom julgamento e por isso deixaremos que tome sua decisão. Seu

desejo de esperar algum tempo para considerar o assunto mostra seu juízo. E ninguém pode afirmar

que você somente o viu nos seus melhores momentos.

Thea riu, corando, e arriscou.

— Então eu posso ir à procura dele?

— O quê? Isso não, Thea.

— Mas eu vou ficar maluca sem poder sair daqui — ela protestou. — Sei que nós

combinamos no outono...

— Como é?

Thea esquecera que só Darien e ela sabiam dos detalhes do acordo, e então ela teve de

explicar. O pai recomeçou a andar.

— Então é por isso que ele não fez tentativa de entrar em contato com você. Admito que tive

a impressão... E será justo interromper o tempo dele de reflexão?

— De qualquer maneira, ele já deve ter tomado a decisão, assim como eu já tomei.

O duque riu, sacudindo a cabeça.

— Sua mãe também era impaciente.

— Era?

— E é até hoje, quando tem um projeto em mente. Quando decide fazer uma coisa, ela quer

realizar isso imediatamente. — Ele continuou a andar até o lago que parecia um espelho e parou um

momento para a contemplação. — Muito bem, minha querida. Eu seria um péssimo pai se a

permitisse mergulhar na insanidade. Se estiver certa do que pretende, eu a levarei até Stours Court.

Preciso certificar-me se Darien poderá lhe dar o conforto que você necessita.

Thea se atirou no pescoço do pai e abraçou-o com efusão.

— Todos os confortos e muito mais.

Thea e o pai viajarem numa carruagem de posta, acompanhados por Harriet e o criado do

duque que foram num veículo com as bagagens. Levaram três dias para chegar em Stours Court e,

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finalmente, se aproximaram de um território bem mais plano do que o condado de Long Chart. O

tempo esfriara no caminho para o norte e o céu estava com nuvens ameaçadoras.

Ela se lembrou da pintura A Ira de Deus e imaginou qual colina próxima teria sido o local do

evento. Esperava que Deus não estivesse inclinado para nenhuma demonstração ativa naquele dia,

pois já sofrerá o suficiente.

Insistira com o pai para não anunciarem a chegada. Queria que Darien se surpreendesse e

adorasse vê-la, mas também receava que, avisado, ele tentasse evitá-la. Na verdade, havia uma

mistura de esperança e medo quando avistaram a casa junto aos portões que deveria pertencer à

propriedade dele.

Uma mulher robusta veio abrir os portões de ferro e fez uma cortesia quando eles passaram.

— Se quiser, podemos voltar — o duque falou.

— Não! Estou apenas nervosa com a ideia de Darien não estar aí.

Ele não pareceu convencido e Thea descruzou as mãos, tentando aparentar calma.

A carruagem chocalhou um pouco ao passar pelo caminho que levava a casa, mas a

propriedade não se encontrava em estado deplorável. O gramado era mantido curto pelas ovelhas,

um método comum e prático. Havia muitas árvores e belas paisagens. E, numa elevação, as ruínas

românticas do castelo Stour.

E onde estaria a casa? A vereda estava terminando, mas não havia nenhuma construção

substancial à vista.

O coche seguiu por um atalho rumo a uma edificação de dois andares, a estrebaria. Thea

entendeu que o a grande área lamacenta e cheia de entulho devia ser onde a casa de Darien estivera.

Perdida, olhou a estrebaria de onde saíram alguns cavalariços.

— Thea?

Ela relanceou um olhar ao redor e ali estava Darien. De botas, calção, camisa aberta no peito,

parecendo um camponês com a pele escurecida pelo sol, e tão espantado quanto ela.

Um cavalariço abriu a portinhola e ela desceu os degraus.

Direto numa poça de lama.

Parou, olhar arregalado, os pés encharcados e levantou a saia.

Darien correu e tomou-a nos braços.

— Deus do céu, Thea! O que está fazendo aqui? Agora, quero dizer. Eu...

Thea desandou a rir pela insanidade da situação. Passou os braços no pescoço dele e beijou-o

com todo coração.

Acabaram por separar os lábios, mas continuaram de olhar fixo um no outro.

— Onde está sua casa? — O sorriso largo de Thea causou dor nas suas bochechas.

— Foi para o céu das casas — Darien sorriu. — Espero ter alguma coisa construída para você

no outono. Uma villa paladiana ou algo...

Para milady. No outono.

Darien não mudara de ideia e Thea riu suavemente, encostando a cabeça na dele.

— Mas onde você está morando?

— Na cabana de um guarda-caça. — Ele olhou para a carruagem. — Aquele é o duque, seu

pai?

— Ele queria certificar-se de que meu futuro marido poderia proporcionar-me conforto

suficiente.

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— Estou perdido. — Darien sorriu ao carregá-la até um local seco, onde a deixou no chão. Se

a segurasse um pouco mais, talvez o duque não notasse. Mas depois daquele beijo...

Darien ordenou que a carruagem fosse até um local mais seco e o duque apeou. Os criados do

veículo que os seguiam tinham sido mais cautelosos. Thea ficou aliviada ao constatar que o duque

estava mais divertido do que nervoso, mas temeu que ele quisesse adiar o casamento, o que ela não

suportaria.

— Os pés de minha filha estão molhados — o duque disse com brandura que destoava das

circunstâncias.

— Vossa Graça, o melhor que tenho para lhe oferecer é a sala do estribeira.

Darien tomou-a novamente nos braços e, com olhar bem-humorado, carregou-a até um recinto

simples, caiado, que contava com uma mesa, bancos de madeira e um aparador. Deixou-a em um

dos assentos, ajoelhou-se, sorrindo com olhar mais intenso, desamarrou e tirou-lhe as botas curtas.

Arrepiada com o toque das mãos de Darien em seus pés, Thea imaginou se ele tentaria tirar

suas meias com o duque observando. Não ficou sabendo, pois Harriet irrompeu no quarto,

reclamando, escandalizada.

Darien soprou um beijo, levantou-se e foi para o lado do duque que observava a cena do lado

de fora.

— Bem, Darien, vejo que não faz as coisas pela metade.

— Eu tento, milorde.

— Então deseja casar-se com Thea? Após esse beijo, é melhor que sua resposta seja positiva.

Darien olhou para Thea e sorriu.

— Sim.

Harriet saiu com os sapatos e as meias molhadas e foi procurar peças secas. Thea notou

Darien fitar seus pés nus e balançou-os.

— Imediatamente — Darien acrescentou.

— Eu adoraria — Thea concordou.

— O casamento será daqui a três semanas, em Long Chart — o duque afirmou. — Até lá,

Darien, espero que tenha arranjado uma casa aceitável e criados para minha filha, aqui ou em outro

lugar.

— Eu gostaria de construir um lar aqui — Darien falou para Thea —, mas só se for de seu

agrado, meu amor.

Nenhum homem aceitaria a ideia de que a localização era descabida.

— A propriedade é agradável e eu gosto do castelo, mas e o pântano?

— Tenho procurado resolver isso com a drenagem, mas não tem sido fácil.

— Então por que não construir numa região mais alta?

— Tal mãe, tal filha. Claro, estou tentando construir no mesmo lugar como se ele fosse

sagrado, mas sua percepção enxergou a coisa certa. — Darien foi até a porta e olhou ao redor.

Thea irritava-se por estar confinada ao banco e Harriet apressou-se em calçar-lhe meias e

sapatilhas secas. O calçado não era adequado à ocasião, mas era o que havia. Thea levantou-se e

parou para olhar o pai que, deslocado naquele ambiente simples, fez sinal para ela sair.

Thea passou a hora seguinte com Darien, andando com cuidado e algumas vezes sendo

carregada, o que não a desagradou em absoluto, enquanto procuravam a localização perfeita para a

casa deles. O lar. O paraíso.

Decidiram por um lugar alto, sem umidade nem inconveniência, e Thea virou-se, de mão dada

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com Darien, para o entulho da outra.

— E a terra pantanosa se transforma num lago.

— Tudo é para melhor nesse melhor dos mundos possíveis.

— Isso mais parece uma citação. De quem é?

— De Voltaire em Candide. Uma história muito boba.

— Pelo menos soa feliz.

— Pelo contrário, é um colar de infortúnios.

— Então não faremos parte dela. — Eles se beijaram de maneira suave. Tão perto do prêmio,

não precisavam de escândalo. Depois voltaram à estrebaria, sempre de mãos dadas. — Eu já o

informei sobre sua semelhança com o Corsário'?

— O corsário de Byron? Não disseram que a história baseou-se nele mesmo? Está me

acusando de ser poético?

Thea achou graça da noção.

— Mas é preciso admitir que seu surgimento na sociedade foi em meio a uma atmosfera de

solidão e mistério.

— Não por minha escolha. — Darien apertou-lhe a mão. — Não a ouvi dizer que estivesse

preocupada por isso, mas aqui não sou um proscrito. De fato, a pequena nobreza local é tão

hospitaleira que me sentirei feliz pelo resgate.

— Resgate?

— De jovens damas ansiosas para fazer vista grossa diante de meus defeitos para se tornarem

viscondessas.

— Que defeitos? Por isso é que não quero esperar até setembro.

Darien tomou-a nos braços e beijou-a de novo.

— Verdade?

— Sim. — Thea aconchegou-se em seu peito. — Mas somente por que eu não podia mais

suportar o afastamento.

Estarem juntos era tão irresistível que eles continuaram abraçados por alguns momentos.

— Canem, há o problema de um local para ficarmos. Volte comigo para Long Chart. A casa

pode esperar e nós a construiremos juntos. Apesar do que meu pai disse, eu adorarei ficar na cabana

do guarda-caça por um tempo.

Darien beijou-lhe a ponta do nariz.

— Fico feliz que pense assim. Eu estava imaginando para onde teria ido minha deusa.

Thea riu.

— Onde está seu irmão?

— Foi para Lancashire treinar administração agrícola. Não sei onde o interesse dele vai

terminar.

Eles retornaram de braços dados. Discutindo Frank, o lar, o futuro e tudo mais. Quando

chegaram à estrebaria, a paciência do duque se esgotara. Informou-se sobre uma estalagem decente

e foi embora com Thea. Darien trocou de roupa e alcançou-os. Foram dormir depois de um jantar

admirável e no dia seguinte, saíram juntos para Long Chart e o casamento.

A duquesa não partilhava das dúvidas do marido quanto ao enlace. Chorou de alegria e

mergulhou com afinco nos preparativos do casamento do ano. Nada do que Thea dissesse poderia

mudar seu pensamento e, contanto que a mãe não adiasse a data, Thea deixou-a em paz. Mas

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escapava com Darien sempre que possível.

Eles caminharam e cavalgaram pelo campo e Thea mostrou ao noivo seus lugares favoritos.

Pela primeira vez, Darien admitiu tocar flauta, mas o fez apenas diante dela e ao ar livre. Mas como

tinha uma boa voz, os dois acabaram fazendo um dueto diante dos outros.

Teriam música na casa deles.

Ficavam pouco tempo a sós, pois o condado inteiro queria encontrá-los e as funções sociais se

sucediam sem trégua. Alguns dos vizinhos queriam conhecer o atual Darien e isso não foi difícil

porque ele se modificara muito. Darien ainda conservava o poder e o vigor que de início a atraíram

e apavoraram, mas ele se apresentava mais descontraído e de coração mais leve.

Frank apareceu na semana anterior ao casamento e Thea pensou que ele poderia ser a causa

maior da mudança. A devoção entre os irmãos não contava com muitas efusões, mas era profunda.

Na companhia de Frank, ninguém podia ser frio ou circunspeto.

Mas Darien não aceitou a opinião dela.

— Não, minha Thea. Eu só melhorei por sua causa.

Darius e Mara também chegaram, numa demonstração de felicidade conjugal. Thea ficou feliz

ao ver que a raiva e o ressentimento entre Darien e Darius haviam sumido, mas aborreceu-se

quando Darien apareceu com um galo na cabeça depois de uma luta fictícia entre os dois homens.

Debaixo de uma árvore e com a cabeça da Darien em seu colo, Thea aplicava compressas de

vinagre.

— Valeu a pena por isso — ele disse com os olhos fechados — mas eu acho que um doce

beijo agiria melhor do que vinagre.

No dia seguinte, Darien desafiou Darius para uma disputa de sabres, porém Mara e Thea

vetaram a ideia. Os dois resolveram aceitar um desafio de uma corrida até o campanário que

envolveu a maioria dos jovens da área. Thea murmurou qualquer coisa a respeito de Conrad e

Medora e teve de explicar a Mara.

Na véspera do casamento, a duquesa ofereceu um baile. Centenas de pessoas atenderam ao

convite e muitos permaneceram na casa, o que lotou Long Chart. De novo, não houve chance para

Thea e Darien ficarem a sós, mas no dia seguinte... ah, o dia seguinte... e naquela noite eles

poderiam dançar.

A duquesa queria que Thea encomendasse um vestido novo, mas ela preferiu o vermelho.

Mas dessa vez com o espartilho correto.

— Pérolas, querida? — a mãe perguntou. — Talvez meus rubis...

— Não, mamãe. É exatamente assim que eu desejo ficar. A mãe sacudiu a cabeça, mas não

protestou.

Quando Canem a viu, a reação foi tudo com que ela sonhara. Eles dançaram em uma noite de

magia, no mundo que era só deles.

— Eu lhe disse que haverá fogos à meia-noite? — Thea perguntou enquanto dançavam uma

valsa.

Darien desatou a rir e todos se encantaram com a loucura dos noivos.

Eles assistiram abraçados a queima de fogos e ocasionalmente Darien beijava-lhe os cabelos

murmurando que Thea era seu fogo, sua faísca e sua beldade da noite. As explosões terminaram e o

baile continuou, mas não por muito tempo. O enlace estava marcado para as dez da manhã e,

portanto, ninguém dançaria até a madrugada.

O vestido de noiva de Thea era de musselina branca bordada com miosótis e ela trazia os

cabelos enfeitados com miosótis de seda. A cerimônia foi discreta e efetuada na capela privativa do

duque, apenas com a presença da família. Depois houve uma grande comemoração nos jardins para

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todos da região.

Thea e Darien cumpriram seus deveres, mas escaparam no meio da tarde em uma carruagem

coberta de flores que recebeu aplausos e vivas no caminho até saírem da propriedade Yeovil.

— Ufa — Darien largou-se no assento. — Se tivesse me avisado, lady Darien, eu poderia ter

fugido.

— Verdade, lorde Darien?

— Não. Venha cá.

Thea usava um chapéu, um desafio menor, mas nada que fizesse um herói de guerra

empalidecer, segundo Darien.

Eles haviam emprestado uma casa a vinte e cinco quilômetros de Long Chart e quando lá

chegaram, tiveram de suportar o mínimo de cortesia dos criados antes de encontrar seus aposentos.

Thea sentiu-se ridiculamente envergonhada. O sol entrava pela janela aberta, e ouvia-se o

cantar dos pássaros, a conversa de pessoas no jardim e um cão ladrar ao longe.

— Talvez devêssemos esperar até a noite — ela sugeriu, apesar da ânsia.

— Como quiser, minha querida.

Thea o fitou, sabendo que ele se sentia como ela.

— É que...

— Posso fechar as cortinas, assim os pássaros nada verão. Thea desatou a rir, jogou-se nos

braços de Darien e tudo pareceu correto.

Darien controlou-se para despi-la devagar e ternamente afastar a ansiedade com beijos e risos.

Ele conseguiu tirar as próprias roupas ao mesmo tempo, de modo a ficar nu antes dela.

A luz do sol incidiu sobre ele, a pele morena e o físico tão belo que Thea parou para observá-

lo. Depois caminhou, vestida apenas com a camisa de seda, para tocar as cicatrizes no braço, no

lado, na parte de baixo do ventre...

Envergonhada, tocou a masculinidade de Darien, saudosa da rigidez quente.

Darien tirou a última peça de Thea, apertou-a de encontro ao peito e beijou-a. Ergueu-a no

colo e carregou-a até a cama, deitando-a gentilmente no linho frio. Ela estremeceu por causa do

cheiro dos lençóis limpos que acenderam ainda mais seu desejo.

Thea estendeu os braços e Darien deitou-se a seu lado. Eles se beijaram e se tocaram com

maior intimidade do que haviam feito antes. Quando ele a penetrou, ela sentiu um golpe de dor e foi

isso que completou perfeitamente o que fazia tempos haviam iniciado. Finalmente formavam um

único ser.

Após um momento de quietude, Darien se moveu. Thea riu suavemente diante da sensação e

acompanhou-o, revelando novas e deliciosas descobertas, no seu corpo, no dele, até a paixão crescer

e explodir, como ela esperava havia tanto tempo. E foi ainda melhor do que antes.

— Fogos de artifício. — Thea espreguiçou-se com deleite langoroso. — Mas não à meia-

noite.

Darien abraçou-a.

— Haverá muitas noites, mas também muitos sóis. Eu lhe prometo que...

Thea pôs os dedos nos lábios dele.

— Não se atormente, amado. Nós simplesmente existimos e nada poderia ser melhor, Canem

Cave.

— Posso ser Canem Cave, mas será que estou ao lado da Ilustre Inatingível?

Thea sorriu.

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— Jamais para o senhor meu marido. Amado meu, torne-me sua novamente.

Eles se tocaram de novo, beijaram-se e, com pássaros cantando, Darien acedeu.

ROMANCES NOVA CULTURA

Clássicos Históricos Especial

Leia na edição 367

O Bárbaro

BRETANHA, 65 D.C. - Assim que viu o brilho perigoso nos olhos do soldado romano, Wynne

soube que estava perdida. Não podia se esquecer, contudo, de que era celta, e ele, um inimigo de

seu povo. Mas como resistir àqueles olhos cor de âmbar que acariciavam cada curva de seu corpo e

aos braços fortes que a faziam derreter-se de paixão?

Aquela deusa loira era um fruto proibido, mas Valerian achava impossível resistir a tão suave

e inocente flor em botão, cuja pele sedosa e doces lábios de mel o incendiavam de desejo! Uma

necessidade premente e incontrolável o dominava diante de tanta formosura, e Valerian viu-se

dividido entre o dever e a lealdade, e o anseio de conquistar aquela mulher de corpo e alma. e fazê-

la entregar-se ao êxtase da paixão...