24
LUCAS, Mônica. (2016) Johann Mattheson e o ideal do Músico Perfeito. Per Musi. Ed. por Fausto Borém e Lia Tomás. Belo Horizonte: UFMG, n.35, p.100‐123. 100 DOI: 10.1590/permusi20163506 ARTIGO CIENTÍFICO Johann Mattheson e o ideal do Músico Perfeito Johann Mattheson and the ideal of the Perfect Musician Mônica Lucas Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil [email protected] Resumo: O Der Vollkommene Capellmeister (“O mestre‐de‐capela Perfeito”) é o último escrito musical de Johann Mattheson (1671‐1764) e, sem dúvida, sua obra mais ambiciosa. Ela representa o mais importante dos escritos pertencentes ao gênero de preceptivas musicais conhecidas como Musica Poetica – um conjunto de tratados surgidos entre os sécs. XVI e XVIII que faz uso sistemático de conceitos oriundos da instituição oratória para descrever os elementos da composição e da actio musical. Neste texto discorrer‐se‐á sobre a noção do músico‐orador perfeito. Inicialmente, será examinada a maneira como Mattheson se representa em sua autobiografia, não como sujeito individual, mas como tipo cortesão humanista, cristão, luterano, propondo uma leitura da mesma a partir do universo poético‐retórico. Nesta parte, será possível definir também o tipo constituído pelos destinatários da obra. Com isto, será possível evidenciar como o autor alemão emula lugares‐comuns já apresentados em retóricas latinas, em especial o De Oratore ciceroniano e a Institutio Oratoria, de Quintiliano ao definir o mestre‐de‐capela perfeito. Finalmente, serão examinados lugares‐comuns diretamente ligados à ideia do músico perfeito: a possibilidade de se atingir a perfeição, os requisitos para alcançá‐la, assim como a contribuição da natureza e da arte para esta tarefa e a importância de conhecimentos extrínsecos à técnica musical para se atingir este ideal. Palavraschave: retórica musical em Johann Mattheson; ideal do músico perfeito; Musica Poetica no séc. XVIII. Abstract: Der Vollkommene Capellmeister (“The perfect master of chapel”) is Johann Mattheson´s (1681‐1767) last and most ambitious work. It is also the most important writing belonging to the genre of musical preceptives known as Musica Poetica, a group of treatises edited between the 16th and 18th centuries which make systematic import of concepts of the rhetoric tradition in order to describe musical elements. In this article, we concentrate on the notion of the perfect music‐orator. First, we examine the

Johann Mattheson e o ideal do Músico Perfeito - scielo.br · definir o mestre‐de‐capela perfeito. Finalmente, serão examinados lugares‐comuns diretamente ligados à ideia

  • Upload
    hanga

  • View
    226

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  100

DOI:10.1590/permusi20163506

ARTIGOCIENTÍFICO

JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito

JohannMatthesonandtheidealofthePerfectMusician

MônicaLucasUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,SãoPaulo,[email protected]

Resumo:ODerVollkommeneCapellmeister(“Omestre‐de‐capelaPerfeito”)éoúltimoescrito musical de Johann Mattheson (1671‐1764) e, sem dúvida, sua obra maisambiciosa.Elarepresentaomaisimportantedosescritospertencentesaogênerodepreceptivas musicais conhecidas comoMusica Poetica – um conjunto de tratadossurgidosentreossécs.XVIeXVIIIquefazusosistemáticodeconceitosoriundosdainstituiçãooratóriaparadescreveros elementosda composiçãoedaactiomusical.Nestetextodiscorrer‐se‐ásobreanoçãodomúsico‐oradorperfeito.Inicialmente,seráexaminadaamaneiracomoMatthesonserepresentaemsuaautobiografia,nãocomosujeitoindividual,mascomotipocortesãohumanista,cristão,luterano,propondoumaleitura da mesma a partir do universo poético‐retórico. Nesta parte, será possíveldefinirtambémotipoconstituídopelosdestinatáriosdaobra.Comisto,serápossívelevidenciarcomooautoralemãoemulalugares‐comunsjáapresentadosemretóricaslatinas,emespecialoDeOratoreciceronianoeaInstitutioOratoria,deQuintilianoaodefinir o mestre‐de‐capela perfeito. Finalmente, serão examinados lugares‐comunsdiretamenteligadosàideiadomúsicoperfeito:apossibilidadedeseatingiraperfeição,osrequisitosparaalcançá‐la,assimcomoacontribuiçãodanaturezaedaarteparaestatarefaeaimportânciadeconhecimentosextrínsecosàtécnicamusicalparaseatingiresteideal.Palavras‐chave:retóricamusicalemJohannMattheson;idealdomúsicoperfeito;MusicaPoeticanoséc.XVIII.Abstract:DerVollkommeneCapellmeister (“Theperfectmasterofchapel”) is JohannMattheson´s(1681‐1767)lastandmostambitiouswork.ItisalsothemostimportantwritingbelongingtothegenreofmusicalpreceptivesknownasMusicaPoetica,agroupoftreatiseseditedbetweenthe16thand18thcenturieswhichmakesystematicimportof concepts of the rhetoric tradition in order to describemusical elements. In thisarticle,weconcentrateonthenotionoftheperfectmusic‐orator.First,weexaminethe

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  101

manner by which Mattheson represents himself in his autobiography, not as anindividualsubject,butasatype–humanist,cortesan,christian,lutheran–suggestingareadingof thisworkfromthepoetic‐rhetoricalperspective.Thisallowsustoalsodiscussthepotentialaddresseesofthiswork.ThisarticlealsoshowshowMatthesonemulatescommonplacesalreadypresentedinlatinrhetorichandbooks,especiallyDeOratore,byCicero,andIntitutioOratoria,byQuintilian,whenhediscussestheperfectKapellmeister.Finally,wewillexaminecommonplacesdirectlyconnectedtotheideaofthe Perfect Musician: the possibility to attain perfection and the requirements toaccomplishit,aswellasthecontributionofnatureandartandtheimportanceofnon‐musicalknowledgetoperformthistask.Keywords:MusicalRhetoricinJohannMattheson;theidealofthePerfectMusician;MusicaPoeticainthe18thcentury.

Dataderecebimento:12/12/2015

Datadeaprovaçãofinal:15/04/2016

1‐Introdução

Entregueparaaimpressão,comoafirmaJohannMatthesson,nodia7dejulhode1738,

e vindo à luz em 1739, o Der Vollkommene Capellmeister – “O mestre‐de‐capela

Perfeito”‐éseuúltimoescritomusicale,semdúvida,suamaiorobra.Elaconstitui,

ainda,omaisimportantedosescritospertencentesaogênerodepreceptivasmusicais

conhecidascomoMusicaPoetica–umconjuntodeescritosdossécs.XVIaoXVIIIque

fazusosistemáticodeelementosoriundosda instituiçãooratóriaparadescreveros

elementosdacomposiçãoedaactiomusical.

Estetextoconcentrar‐se‐ánanoçãoretóricadomúsico‐oradorperfeitoapresentada

por Mattheson em sua importante obra, mostrando como ele emula autoridades

antigas. Para isto, inicialmente, será examinada a maneira como Mattheson se

representaemsuaautobiografia,nãocomosujeito,mascomotipocortesãohumanista,

cristão, luterano,propondoumaleituradamesmaapartirdogêneroliterárioquea

retóricaconhececomovida.Esta leiturapermitirásupor tambémo tipo constituído

pelosdestinatáriosdaobra–ocortesãoigualmenteeruditoeengenhoso.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

102

Aseguir,discutireialgunsdoslugares‐comunsjáapresentadosemretóricaslatinase

tambémusadosporMatthesonparaconstituiro idealdomestre‐de‐capelaperfeito.

Serãoexaminadoslugares‐comunsdiretamenteligadosàideiadomúsicoperfeito:a

possibilidade de se atingir a perfeição, os requisitos para alcançá‐la, assim como a

contribuiçãodanaturezaedaarteparaestatarefaeaimportânciadeconhecimentos

extrínsecosàtécnicamusicalparaseatingiresteideal.

2. JohannMatthesonsegundoo“FundamentoparaumArcoTriunfal”

Aprincipal fontede informaçãoarespeitodocompositor JohannMattheson(1681‐

1764)ésuaautobiografia,incluídaem“Fundamentoparaumarcotriunfal,emqueas

vidas,obraseméritosdosmaisvirtuososmestres‐de‐capela,compositores,estudiosos

musicais,artistassãoapresentadasparamaioredificação”,1porelepublicadaem1740.

Trata‐sedeumaobraabrangente,queincluividasde149músicos,queeleconheceu

emgrandepartepessoalmente.Estacoleçãodebiografiasestáclaramenteinseridano

gênerodasvidasdepersonagensilustres(Suetônio,Plutarco,Tácito,e,jánoséc.XVI,

asvidasdeartistaspublicadasporVasari).Sendoassim,éobradirigidaahomensde

letras,cujoconteúdonãodeveserlidosubjetivamente,masemchaveretórica,como

escrito de louvor ou vitupério. Nesta obra,Mattheson representa‐se como um tipo

cortesão e erudito.Nela, eledescreve suaeducação e atuaçãomusical, profissional,

literáriaefilosófica,seucontatocompoetaseseutrânsitopeloscírculosletradosde

Hamburgo.

Mattheson foi aluno da Gelehrtenschule des Johanneums, cuja história e reputação

remontamàautoridadedeLutero(ainstituiçãofoifundadaporJohannesBugenhagen,

um dos colaboradores mais próximos e diretos do Reformador). É sabido que os

ginásiosluteranosforamgrandesresponsáveispeladifusãodosstudiahumanitatisno

1GrundlageeinerEhrenpforte,vorandertüchtigstenCapellmeister,Componisten,Musikgelehrten,Tonkünstler,u.Leben,Wercke,Verdienste,u.erscheinensollen.ZumfernenAusbauangegebenvonMattheson(Hamburg,1740).

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

103

mundoreformado2.Estaorientaçãohumanistaficaclaraemumolharàsordenanças

deensinodestesestabelecimentos,concentradasnoestudodagramática,dapoesiae

daretóricalatina(e,emmenormedida,grega).Nestaescola,Matthesontravoucontato

comautores latinosantigos, emespecialCícero,masaindaTácito,Plauto, Sêneca,e

tambémmodernos,sobretudoErasmo,mastambémVossiusePetrusRamus.3

Éinteressantenotarque,naEhrenpforte,Matthessonnãofaznenhumareferênciaaseu

mestre de música. Contudo, menciona dois importantes homens de letras que lá

ensinaram:PaulGeorgKrüsikee JohannesSchultze, ambosprofessoresdepoesiae

retóricagregaelatinanasecondaenaprima,asclassesmaisavançadas.Destaforma,

Mattheson, aomesmo tempoque se representa como letrado,desprezaa formação

musicalproporcionadapelaantiga instituiçãodaMusicaPoetica,baseadanaprática

contrapontística. Em todos os seus escritos musicais, fica clara a defesa do estilo

moderno,galante,melódicoebaseadonobaixo‐contínuo.

Matthesonmostraaindaserconhecedordasprincipaishabilidadesgalantes,externas

ao programa curricular dos ginásios luteranos: dança, desenho, cálculo, equitação,

esgrima.Alémdaslínguasestudadasnaescola,Matthesonafirmaaindatersededicado

aoaprendizadodaslínguasvulgares:italiano,francêseinglês.Elemencionaaindao

estudo da história, direito e política inglesas, além do direito, comércio e política

internacionais.Matthesonasseguraterseexercitado“noestilodacorte”,cumprindoo

protocoloesperadonaeducaçãodogalant‐homme,tipoquemencionadiversasvezes

emseusescritoscomosendoodestinatáriodesuaspreceptivasmusicais.Asatividades

ligadas ao exercício diplomático são comumente recomendadas pelos manuais

humanistasdecortesania.

A despeito da publicação de diversos tratados musicais e da estreita ligação que

mantevedurantetodaavidacomaartedossons,Matthesonnãoperseguiuacarreira

2Paramaioresinformaçõessobreestainfluência,cf.BARNES(2002),p.258‐265.

3Paramaioresinformaçõessobreaeducaçãoluterana,cf.LUCAS(2014)eVORBAUM(1863).

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

104

demúsico,masadeadidodiplomático.Aindajovem,tornou‐sepreceptor(Hofmeister)

de CyrillWich, filho do legado britânico emHamburgo. Estesmestres particulares

foramreconhecidamenteimportantesdifusoresdosstudiahumanitatisnaAlemanha.4

Depreceptor,passouàocupaçãodesecretárioeescritordecartasedocumentosdopai

de Cyrill, JohnWich. Com amorte deste, Cyrill sucedeu o pai no cargo.Mattheson

acompanhou‐oportodaavida,comosecretário.Nãohádúvidadequeastarefasde

Matthesonnestafunçãonecessariamentesevaleramdeconhecimentosretóricos,em

especial da ars epistolaria (escrita de cartas), matéria integrante das preceptivas

escolares.AscartasdeCíceroconstamcomoleiturasobrigatóriasnasordenançasdas

escolasluteranas,tendoservidocomomodeloparaosescritosdogêneroepistolar.

Mattheson transitou por diversas academias literárias de Hamburgo, em que se

cultivavaapoesiaalemã,alémdalatinaegrega,emulandoauctoritatesantigas.Nelas,

Mattheson travou contato com os poetas Heinrich Brockes, Johann Gottsched,

FriedrichvonHagedorneFriedrichHunold(Menantes),autores importantesparaa

difusão de ideais humanistas, pela vertente francesa dagalanterie, naAlemanha.O

cultivodepoesiaemlatimeemvernáculoécentralnosstudiahumanitatis.Autores

humanistas tiveram uma reconhecida preocupação em valorizar e ampliar o

vocabuláriodaslínguasvulgares.Estaatençãotambémtransparecetambémnaobra

literáriadeMattheson,sejaemsuasprópriastraduções,sejaemsuascríticasaousode

estrangeirismosporautorescomoGottschedouJohannScheibe,eemsuaspropostas

desubstituiçãodestestermospelosequivalentesalemães.5

Mattheson também foi editor e colaborador de revistas culturais, gênero literário

surgidonaAlemanhanoiníciodoséc.XVIII.Oimportantepapelexercidopelasrevistas

nadifusãodeideiashumanistasparasegmentoscadavezmaioresdapopulaçãotem

4Paramaisinformaçõessobreesteassunto,cf.BARNES(2002),p.374‐377.

5Emummanuscritode8páginas,de1744,elediscutepormenorizadamenteatraduçãodeGottscheddosEntretienssurlaPluralitédesMondes,1686,deFontenelle.EmBeyträgezurKritischenHistorie,comentaoCritischerMusikus,deJohannScheibe.Emambososcasos,propõealternativasalemãsparaaterminologiafrancófilaempregadaporestesautores.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

105

sidoamplamentediscutidoenãonecessitaserretomadonesteartigo6.Matthesonfoi

editordaprimeirarevistamusicalalemã,CriticaMusica(1722‐1725),ecolaborador

ativodediversas revistas germânicasdedicadas à filosofia, artes e história, comoa

NiedersächsischeNachrichten vonGelehrte Sachen (“notícias da baixa saxônia sobre

assuntoseruditos”).

Matthesonescreveuquatroimportantestratadosmusicais.Trêsforampublicadosem

sua juventude, num espaço de tempo de 8 anos, enquanto que o último e mais

importante,foipublicadoquase20anosapósestesprimeiros,em1739.

Ostrêsescritosorquestraisdejuventude–Dasneu‐eröffneteOrchestre(“Aorquestra

recém‐Inaugurada”,1713);DasbeschützteOrchestre(“Aorquestraamparada”,1717)

e Das Forschende Orchestre (“A orquestra Investigativa”, 1721)– são geralmente

compreendidos como estudos preliminares a Der Vollkommene Capellmeister (“O

Mestre‐de‐Capela Perfeito”, 1739), já que este último amplia e aprofunda as

informaçõescontidasnosescritosanteriores.

Embora não haja dúvida que as obras de Mattheson pertençam ao gênero de

preceptivas musicais conhecido comomusica poetica, o fato de elas não estarem

escritasemlatim(línguacorrentedestaspreceptivas),esimemalemão,indicaquenão

sevoltam,comoamaiorpartedesuascongêneres,paraopúblicoescolar.Mattheson,

emdiversos pontos de seus tratados, indica seu destinatário como sendoogallant

homme.

GalantesegundoodicionáriodeRaphaelBluteau(1728,v.4p.10)éumtipocortesão,

polido,naturalmenteeducado,queconheceosprotocolosdecircunstância, tempoe

lugar da corte, sabendo sempre deleitar. No mundo germânico, o homem galante

também aparece descrito, como por exemplo no discurso referencial de Christian

Thomasius,proferidonaUniversidadedeLeipzigem1690.EmHamburgo,autoresque

6Paramaisinformaçõessobreoassunto,cf.MORROW(1997),p.1‐18.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

106

transitarampelosmesmoscírculossociaisqueaquelesfrequentadosporMattheson,

como Gottsched, Hagedorn e Hunold, também dirigem suas preceptivas, poesias e

novelasaopúblicogalante.EmDasForschendeOrchester(“aorquestrainvestigativa”,

1721), Mattheson diz que “entende‐se por um galant‐huomo, alguém firme, hábil,

capaz,honesto,valent’uomo(...).7(MATTHESON,2004(1721),p.276).

As “três orquestras”, como são conhecidos os tratadosmusicais deMattheson que

antecedemOMestre‐de‐CapelaPerfeito,sãoabertamentededicadasaopúblicogalante.

Estadestinaçãoaparecenotítulodedoisdeles:

“AORQUESTRArecém‐inaugurada/ouinstruçãouniversalsobre/comoumGalant‐

hommepodealcançarumacompreensãoperfeitadaelevaçãoedadignidadedanobre

música/paraformarseuGoutatravésdela,/entenderosTerminostechnicoserazoar

adequadamentesobreestaadmirávelciência”.8(Hamburgo,1713)

“AORQUESTRAprotegida(...)emquenãoapenasoverdadeirogallant‐homme,que

nãoexerceestaprofissão,mastambémmuitosdosprópriosmúsicospodemformaro

conceitomaisclaroeverdadeirosobreaciênciamusical/habilmentedepuradoda

poeira escolástica, / comunicado / e colocado verdadeira e propriamente”. 9

(Hamburgo,1717)

7Dieitaliänerverstehendurcheinengalanthuomo,einenwackern,geschickten,tüchtigerundredlichenKerl,unvalent’uomo(…).Undinsolchen,alsseinenrechtengenuinenVerstande,nehmenwirdasWortauchhier”8Neu‐eröffneteORCHESTRE/oderuniverselleundgründlicheAnleitung/wieeinGalant‐HommeeinevolkommenenBegriffvonderHoheitundWürdederedlenMusicErlangen/seinenGoutdarnachformieren/dieTerminostechnicosverstehenundgeschicklichvondieservortrefflichenWissenschafftraisonnierenmöge(Hamburg,1713).

9DasBeschützteorchestre(…)Worinnichtnureinemwürcklichengallant‐homme,derebenkeinPorofessions‐Verwandter,sondernauchmanchenMusicoselbstdiealleraufrichtigsteunddeutlichsteVorstellungmusicalischerWissenschafften/wiesichdieselbevomSchulstaubtüchtiggesäubert/eigentlichundwahrhafftigverhalten/ertheilet(Hamburg,1717).

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  107

Nofrontispíciodeseuúltimoemaiortratado,lê‐se,comotítulocompleto,“OMESTRE‐

DE‐CAPELAPERFEITO,/Istoé/Demonstraçãodetalhada/Detodasascoisas/Que

devesaber,conhecerelevartotalmenteemcontaaquelequepretendedirigir/Uma

Capela/comdignidadeeutilidade:/Concebidocomoensaiopor/MATTHESSON.”10

(Hamburgo,1739)

Nesta leitura, chama imediatamente atenção a primeira proposta do título: a de

descreveroMestre‐de‐Capelaperfeito,assimcomoaclararelaçãocomomodelode

perfeiçãooratóriapropostaporCíceroeQuintiliano.Comonestasretóricasclássicas,

sãodiscutidasquestõesqueenvolvemaconstituiçãodestetipoideal:apossibilidade

de se alcançar a perfeição prometida no título, assim como no que constitui esta

qualidade;seaperfeiçãoéumahabilidadenatural,sepodeserpolidapelaarte,e,caso

isto sejapossível,quais conhecimentos (gerais e/ouespecíficos) contribuemparaa

construção desta perfeição. Estas ideias serão apresentadas e discutidas abaixo, de

modoafundamentaracompreensãodestaobracomoemulaçãoderetóricasclássicas.

3.Omestre‐de‐capelaperfeito

Oidealdeperfeiçãomoralquepregaumarelaçãoestreitaentreéticaeretóricaéde

origem grega, e tem como modelo principal a Retórica aristotélica. Contudo, ele

tambémestádescritonosescritoslatinos–aobratardiadeCícero,emespecialoDe

oratore,eaInstitutioOratoriadeQuintiliano.Estaquestãoé,ainda,fundamentalpara

a construção do ideal do cortesão perfeito e, sendo uma questão humanista, foi

amplamentediscutidanosmeiosaristocráticositalianosetambémnoâmbitoescolar

daAlemanhareformada.Nestesentido,épossívelcontextualizarafiguraMestre‐de‐

Capelaperfeitonumalongatradição,daqualMatthesontambémépartícipe.

                                                            10DERVOLLKOMMENECAPELLMEISTER/Dassist/GründlicheAnzeige/AllederjenigenSachen/Dieeinerwissen,können,undvollkomeninnehabenmussDereinerCapelle/MitEhrenundNutzenvorstehenwill:/ZumVersuchentworffenvon/MATTHESON(Hamburg,1739).

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  108

O pano de fundo que norteia a preocupação em caracterizar o orador perfeito é o

conhecidodesprezodePlatãopelaarteretórica.EmdiálogoscomoGórgias(1987(380

a.C),502e)ofilósofonegaquearetóricapermitaatingiroconhecimentoverdadeiro.

Por isto,paraele,aretóricarepresentaapenasadulaçãoeengano.11Aristótelestem

opiniãodiversadadeseumestre,ecreditaumvalorpositivoàretórica,aoafirmarque

obomoradorestaránecessariamentecomprometidocomaVerdade.Estaéaposição

defendidanãoapenasporAristóteles,masaindapordoisgrandesoradoresromanos,

CíceroeQuintiliano.

Quintiliano é exaltado pelo próprio Lutero, justamente pela preocupação ética que

transparecenaInstitutioOratoria.AssimcomoCícero,Quintilianotambémsepreocupa

em responder às possíveis acusações platônicas contra a retórica. Explicitamente

baseadoemCatão,Quintilianoapresentaafamosanoçãodequeooradorperfeitoéum

vir bonus dicendi peritus: “seja, portanto, o orador que descrevemos, como aquele

definidoporM.Catão:umhomembom,hábilnafala”(QUINTILIANO,1998(c.95),XII,4,

p.354)12.Eleenfatizaocomprometimentoéticodoorador:“nãoapenasafirmoqueo

oradoridealdeveserumbomhomem,masafirmoaindaquenenhumhomempodeser

umorador, amenosque sejaumhomembom.” (QUINTILIANO,1998 (c.95),XII,I,4,

p.356).13

O ideal do vir bonus teve grande circulação durante os sécs. XVI, XVII e XVIII,

reformuladonogêneroliterárioconhecidocomoinstitutioaulica,ouescoladecorte,

que compreende os manuais devotados à descrição do príncipe ou do cortesão

perfeitos.Nomundoluterano,estesmanuaisforamutilizadosnoprogramapedagógico

                                                            11ParaumadiscussãomaisdetalhadasobrePlatãoeaRetórica,cf.Mc.COY(2010).

12sitergonobisorator,quemconstituimus,is,quiaM.Catonefinitur,virbonusdicendiperitus;verum,idquodetillepossuitpriusetipsanaturapoetiusacmaiusest,utiquevirbonus(...).”

13Necqueenimtantumiddico,eum,quisitoratorvirumbonumesseoportere,sednefuturumquidemoratoremnisivirumbonum.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  109

dosginásios.14Noséc.XVI,esteidealdeperfeiçãopassatambémaserdiscutidonas

poéticas musicais. No âmbito italiano, a referencial obra de Gioseffo Zarlino,

InstitutioneHarmoniche(1558),descrevedaseguintemaneiraomúsicoperfeito:

MúsicoéaquelequenaMúsicaéperitoequetemafaculdadedejulgar,

nãopelosom,maspelarazão,aquiloquetalciênciacontém;esepuser

emobraascoisaspertencentesàprática,farásuaciênciaaindamais

perfeita,eMúsicoperfeitopoderáchamar‐se(...)Nãodigo,porém,que

ocompositorequealguémqueseexercitanosinstrumentosnaturais

eartificiaisseja,oudevaserprivadodestenome,desdequeelesaiba

eentendaaquiloqueoperaetransformetudoissocomarazão.(...)Se

comumsónomedevêssemoschama‐lo,nósochamaríamosdeMúsico

Perfeito.(Zarlino,citadoporTETTAMANTI,2010,p.30‐31)15

As ideias de Zarlino são corroboradas pela instituição luterana damusica poetica, sendo

propagadas por autores de obras escolares, como Listenius, Fink, Orydrius etc. – cujas

definições domusicuspoeticus contemplam a figura domúsico que domina tanto amusica

theorica quanto a composição e a prática instrumental e do canto. Sendo assim, ao ser

retomadapeloDerVollkommeneCapellmeister, a transposiçãodo ideal dovirbonuspara o

âmbito musical já constitui um lugar‐comum, antecedido por pelo menos dois séculos de

escritosmusicais.

Mattheson deixa claro, desde o início de sua maior obra, que o mestre‐de‐capela

perfeitonãodescreveumapessoasubjetiva,massimumtipoideal,que,emessência,é

uma emulação do virbonus de Catão. Com efeito, o prefácio deOMestre‐de‐Capela

                                                            14EntreasobrasmaisdifundidasnaAlemanha,encontram‐setraduçõesdeAlbertoGuevara,BaltazarGracián,GiovannidellaCasaeBaldassareCastiglione(cf.BARNES,2002,p.138‐149).

15Musicoessercolui,chenamusicaèperito,&hàfacultadigiudicare,nonperilsuono;maperragionequello,queintalscienzasicontient.Ilqualeseallecoseappartinentialapratticadaráopera,faràlasuascienzapiùperfetta.&Musicoperfettosiportràchiamare.(...).Nondicoperò,che´lcompositore,&alcunocheessercitilinaturali,oartificialiistrumentisai,odebbaesserprivodiquestonome,purcheeglisappia&intendaquello,cheoperi;&deltuttorendaconvenevolragione(...).Secomumsolonomelodovessimochiamare,lochameremoMusicoPerfetto.(trad.deGiuliaTettamanti).

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  110

Perfeito principia com uma explicação do título. Ele assemelha sua obra a outras

emulações do virbonus, comdestaque para a escola de corteL'Ambassadeur et ses

fonctions, (Haia,1682) de Abraham deWicquefort. Ele afirma, ainda, que este tipo

perfeitoapareceaindaemoutroscontextos:odiplomata,ogeneral,osábioestóico(ao

estilo de Sêneca). Para Mattheson (1992 (1739), p.9), todos estes autores

“descreveramcoisasepessoassegundooconceitoquepossuíamdeperfeição”.16Estes

exemplos justificamapreocupaçãodeMatthesonemredigirumaobradedicadaao

mestre‐de‐capelaperfeito.

CíceroeQuintilianonãodescartamapossibilidadedeooradorperfeitoviraexistir,aindaque

istojamaistenhaocorrido.Mattheson,operandonachavecristã,negaestapossibilidade,uma

vezque,paraele,aperfeiçãoéexclusivamenteatributodivino.Paraele,otermoperfeiçãosó

pode ser aplicado em comparação com outras coisas damesma espécie ou em oposição à

imperfeiçãoquenelasaparece:“honesto,porexemplo,nãodescreveohomemabsolutamente

honesto,masaquelequeagedemaneiramaisíntegradoqueaspessoascomuns”.Omestre‐

de‐capelaperfeito,paraMattheson,éumtipogalante.

Umavezdefinidoogalant‐hommecomodestinatáriodoDerVollkommeneCapellmeister,fica

claraapreocupaçãoéticaquesubjazaotratado,apresentadajánotítulo:“omestre‐de‐capela

perfeito, contendodescriçãodas coisasnecessáriasàquelequedeseja conduzirumacapela

com dignidade e utilidade.” Em diversos pontos de sua extensa obra teóricamusical,

Matthesonmanifestaseudirecionamentoético.NaOrquestraInvestigativa,eleafirma:

AristidesQuintiliano,quandodiscorre sobrea finalidadedamúsica,

mostradecertaformaseusentido.Elenãoécontrárioatodoprazer

quesederivadamúsica,masafirmaqueesteprazernãoéaverdadeira

intençãodamúsica.Oprazeré,poracaso,umarecreaçãodoespírito.

                                                            16InsolchergutenAbsichthabenauchandre,undauchzwarlöblicheWerkedergleichenAuffschrifftgeführet(…)SenecagestehetvonseinemstoischenWeisen,CicerovonseinemvollkommenenRedner,andrevonandernVollkommenheiten,,dasdergleichennochniemalsinderWeltanzutreffengewesen;dennochhabendieseVerfasser(…)ihreSachenundPerssonennachdenvollkommenstenBebriff,densiedavongehabt,vorgestellet.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  111

MasseusentidoverdadeiroéautilidadeeacompreensãodaVirtude.

(MATTHESON,2004(1721),p.174|)17

Apreocupaçãocomosefeitosmoraisdamúsicaémaisdetalhadamentedescritapor

Matthesonnumacoleçãodeescritos intitulada“Opatriotamusical,quecompartilha

suas observações detalhadas sobre as harmonias espirituais e mundanas, e sobre

aquilo que diretamente delas depende, com variedade agradável, para que seja

incentivada em todo o leitor a edificação moral” 18 , 1728. Na Décima Primeira

Consideraçãodestaobra,Matthesonafirma:

Bastarecordaràqueleaquempareceestranhoqueamúsicaserefira

aestascoisas,queestaciênciaéumaperfeitaimagemdamoderaçãoe,

consequentemente, também da tolerância, e de todas as virtudes.

Aqueleque,atravésdamúsica,nãoaprendeavirtude,nãoédignode

que sua garganta seja apta ao cantar ou seus dedos, ao tocar. 19

(MATTHESON,1728,p.89)

DentreascomposiçõesmusicaisdeMattheson,chamaatençãoacoleçãodesonatas

paraviolinooutraversoacompanhadasdebaixo‐contínuo,intituladaDerBrauchbare

Virtuoso(“Ovirtuoseútil”),de1727.Noprefáciodestaspeças,Matthesonapresentaa

etimologiadotermoitalianovirtuose,dolatimvirtus.Elequestionaseesteconceitose

refereàvirtusintelectualis,ouseja,àforçadojuízo,ouàvirtusmoralis,àretidãonos

                                                            17AristidesQuintilianus,wennervondemEndzweckderMusicredet,gibtseinenSinnungefehralsozuerkennen:EstistwederalleLust,diemanausderMusicschöpfet,zutadeln,nochauchdieseLustdieeigentlicheAbsichtbeyderMusic.DieLustistzwarzufälligerWeiseeineGemüths‐Ergötzung.AberderrechtvorgesetzteZweckistderNutzzurErgreiffungderTugend.”In:DieForschendeOrchestre,p.174p.174.18DerMusikalischePatriot,welcherseinegründlicheBetrachtungen,überGeist‐undWeltl.Harrmonien,samtdem,wasdurchgehendsdavonabhänget,InangenehmerAbwechselungzusolchemEndemittheilet,DaßGOttesEhre,dasgemeineBeste,undeinesjedenLesersbesondereErbauungdadurchbefördertwerde.AnsLichtgestelletvonMattheson(Hamburg,1728).

19Demesfrembdscheinensolte,dasssichauchdieMusikaufdieseDingedeutenlasse,derbeliebenurzuerwegen,dassdieseWissenschafteinrechtesEbenbildderMässigkeit,undfolglichauchderGeduld,jaallerTugendenist.WerkeineTugendausderMusiklernet,deristnichwerth,dassseinHalszumsingen,nochseineFingerzumspielen,geschicktseynsollen.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

112

costumes.Ovirtuose,ouseja,aquelequesedestacaporumaexcelênciatécnica,deve

possuirambasasqualidades,intelectualemoral.

Osvirtuosesquepossuemapenasaaptidãointelectualnãopodemser

entendidos como úteis, já que, sendo esta uma qualidade

eminentementemoral, dependedaação.Por isto, estes artistas não

podem ser considerados virtuoses no sentido estrito do termo: “é

possível ser umvirtuose (teórico),masno âmbito geral, ser inútil e

vergonhoso (...). Os músicos teóricos, se não souberem agir, serão

inúteisoumesmonocivos.Osmúsicospráticos,poroutro lado,não

sabemnecessariamenteoque sejamoshábitos (Mores), e,por isso,

podempossuirvícioscomoagula,abebida,afaltadevergonha,obafo

detabaco,afaltadegentileza,afaltadepureza,afaltadeDeus,ohábito

depraguejaretc.(MATTHESON,1720,p.3)20

Consequentemente,somentepoderáserchamadovirtuose,noverdadeirosentidoda

palavra, aquele que unir bons hábitos à excelência prática.Mattheson retoma uma

leituraobrigatóriadasescolas luteranas,oDecivilitatemorumpuerilium (1530)de

ErasmodeRotterdam,aoafirmarqueumvirtuoso,pormaishábilqueseja,develevar

os bons hábitos (Sitten) para o íntimo de sua alma” (MATTHESON, 1720, p.2). É

possívelperceber,emtodososescritosdeMattheson,apreocupaçãoemvinculara

música à edificaçãomoral. É evidente que esta preocupação está fundamentada na

concepção latinadovirbonuseemsuasemulaçõeshumanistas,emespecialo ideal

francês do galant homme, considerando a enorme circulação destas ideias na

Alemanhareformada.

20DieVirtusintellectualiskandemnachbeyeinemSubjectogänzlichoderzumTheilvondermoralentblössetseynundismancherzwareinVirtuoso,abergemeiniglicheinschändlicherundunbrauchbarer.(…)Derowegenmussmanihnen[denVirtuosen]nurteutschsagendassihrenvornehmstenSittenininfolgendenStenenbestehen:fressen,Saufen,Unverschämtheit,Tobackgestank,Unhöfflichkeit,Unreinlichkeit,Gottlosigkeit,Schweren,fluchten,Verläumden,Schelten,grstigeRedenundThaten,falscheit,Vergendung,Faulheit,Müssigangunddergleichen.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  113

4.Requisitosparaaperfeição

Dentre os lugares comuns que Mattheson retira de retóricas latinas e utiliza na

definição de seu mestre‐de‐capela, serão abordados neste artigo aqueles que se

referemàideiadeperfeição:aoposiçãoentrearteenaturezaeaconsequentedefinição

damúsica(assimcomodaoratória)comoarte,alémdaideiadequeooradornãodeve

restringir seus conhecimentos apenas às técnicas específicas, devendo, antes, ser

possuidordeconhecimentouniversal.

Noquedizrespeitoàoposiçãoentrearteenatureza,alémdadefiniçãodostermos,

surgemduasquestõesbásicas:épossívelprescindirdealgumadasduas,ousãoambas

essenciaisnaformaçãodobomorador?emcasodeasduasseremfundamentais,qual

delasémaisimportante?Cíceroentendepornaturezaashabilidadesinatasdoorador.

No que concerne à disposição física, é importante que ele tenha língua ágil, boa

capacidade pulmonar, voz sonora e boa aparência. Além disto, ele deve possuir

engenho,ourapidezdeespírito:“émisterqueooradorsemostreagudonainvenção,

riconaamplificaçãoenoornato,firmeetenaznamemória”(CÍCERO,1942(55a.C),

I,25,113‐114,p.80‐81).21Nodecorrerdeseulivro,Matthesontambémmenciona,como

qualidadesnaturaisdomestre‐de‐capelaperfeito,boavoz,engenhoeentusiasmo.

Aarte,demaneiradiversa,constituiacategoriadashabilidadespassíveisdeensinoe

deexposiçãosistemática.NolivroIdoDeoratore,Crasso,aoresponderumaquestão

deAntonio,afirmaquearteé,numsentidogeral,umahabilidadequesedefinepor

princípiosclaros,bemconhecidos,independentesdetodaopiniãoesujeitaàciência.

Contudo,numsentidomaisestrito,elechamaarteaoconjuntodeobservaçõesfeitas

na prática por homens discretos e entendidos, escritas, e, portanto, divididas e

classificadas.Aestasegundacategoriapertenceaartedobemdizer(CÍCERO,1942(55

a.C.),I,2,8,p.8‐9).

                                                            21Nametanimiatqueingeniiceleresquidammotusessedebent,quietadexcogitandumacuti,etadexplicandumornandumquesintuberes,etadmemoriamfirmiatquediuturni.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  114

HeinrichLausberg(1995(1949),§28,p.85)defineartecomo“umafaculdadepossuída

porumindivíduoecomprovadanaprática,comofimdelevaracabo,comsucessoe

repetidas vezes, empresas importantes”. A arte visa à perfeição, o que justifica as

inúmerasdescriçõesdoOrador,doCortesãooudoMúsicoperfeitos.Lausbergafirma,

ainda,que,comoobjetodeensino,aarteé“umsistemaconstituídopelaexperiência

que o mestre adquiriu na sua própria criação artística e no ensino de regras

doutrinárias(...)ordenadasconsequentemente,comofimdelevaracabo,comsucesso,

arealizaçãoartística”(CÍCERO,1942(55a.C.),§28,p.86).

Nestesentido,aretóricapodeserentendidacomoumaarte.Emumafamosadefinição

deQuintiliano,aretóricaconstitui“aartedobemdizer”(arsbenedicendi),econstitui

oassuntodaspreceptivasoratórias.

Nas preceptivas latinas, lemos que tanto arte quanto natureza concorrem para a

formação do orador perfeito. Contudo, a primeira, por se tratar de umadisposição

inata, não é ensinável. Para estar em condições de alcançar a perfeição, é preciso

conheceraarte,oudoutrina,assuntodaspreceptivasretóricas.

NaInstitutioOratoria,Quintilianonosdiz:

Bem sei que ainda se costumaquestionar se é a naturezaquemais

contribuiparaaeloquência,ouseéadoutrina(arte).Naverdadeisso

nada tem que ver com o propósito da nossa obra, pois um orador

consumadonãopodeserconstituídosenãoapartirdeambas(...)Por

que se se separaumada outra, a natureza,mesmo semadoutrina,

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

115

valerá muito, mas a doutrina nada poderá sem a natureza.

(QUINTILIANO,1998(c.95),II,19,1‐2,p.147)22

EmseudiscursosobreopoetaÁrquias,Cícerotambémdiscorresobreestatópica,ediz

que

Frequentemente,maisvezes importaramparao louvordavirtudea

natureza sem doutrina (arte) do que a doutrina sem a natureza. E

possoaindaasseveraroseguinte:quandoadistintoseexcelentesdons

naturais se somaumacerta instruçãoedoutrina,não seiquepossa

existir demais preclaro e singular. (CÍCERO, 1986 (62 a.C.), VII,15,

p.45)23

HoráciotambémversasobreesteassuntoemsuaepístoladedicadaaosPisões(Arte

Poética):“tem‐seperguntadoseumpoemasetornadignodelouvorpelanaturezaou

pelaarte.Eunãovejodequeserveotrabalhosemumaveiafértil,nemdequeserveo

engenhorude;assimumacoisareclamaoauxíliodaoutraeconspiramamigavelmente

(HORACIO,1984(18a.C.),408‐411,p.23e36).24

Mattheson emula seus antecessores latinos, ao discorrer sobre este lugar‐comum,

emboranotratadonãohajaumadescriçãogenéricasobreoassuntoesimdiversas

referênciasaeles,porexemplo,nocapítulosobreainventio:

Muitospossuemacapacidadedeencontrarmilharesdeboasideiasa

partir do espírito livre, por possuírem uma imaginação forte (...).

22Scioquaerietiamnaturaneplusadeloquentiamconferatandoctrina.Quodadpropositumquidemoperisnostrinihilpertinet(nequeenimconsummatusoratornisiexutroquefieripotest)[...]Namsipartiutrilibetomninoalteramdetrahas,naturaetiamsinedoctrinamultumualebit,doctrinanullaessesinenaturapoterit.23Saepiusadlaudematqueuirtutemnaturamsinedoctrinaquamsinenaturaualuissedoctrinam!Atqueidemegohoccontendo:cumadnaturameximiametilustremaccesseritratioquaedamconformatioquedoctrinae,tumilludnescioquidpraeclarumacsingularesolereexsistere.Cf.aindaI,79,91e113.

24Naturafieretlaudabilecarmennaarte,quaesitumest;ergonecstudiumsinedivitevenenerudequidprositvideoingenium;alteriussicalteraposcitopemresetconiuratamice.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

116

Outros compõem incomparavelmente bem, mas não têm a menor

capacidade para obter pensamentos de maneira imediata, sem

raciocínio.(...)Aquelesqueencontramseuspensamentosantescomo

fantasiarsãoverdadeiramenteosmelhores.Contudo,(...)anatureza

(...) e a técnica são extremamente necessárias e requeridas para o

compositor e para omestre‐de‐capela. (MATTHESON, 1991 (1739),

II,2,50‐61,p.107‐108).25

ParaCícero,aarteapenaspodetornarmelhoroqueébompornatureza,ouaguçare

corrigirdealgummodooquenãoéperfeito.OmesmovaleparaMattheson.Paraele,o

mestre‐de‐capelaperfeitodeve ser “alegre, bemhumorado, inabalável, trabalhador,

ativo e ordeiro. A preguiça, o excesso de sono e a vida voluptuosa assim como a

impaciênciaeaansiedade,devemserodiados.”(MATTHESON,1991(1739), II,2,55,

p.107). 26 Ele afirma ainda a necessidade do trabalho, da disciplina, e do estudo

constante para alcançar a perfeição (MATTHESON, 1991 (1739), II,11,58, p.107),

fazendo,comisto,louvoràarte.

No que tange à questão do conhecimento, retóricas latinas afirmam que o orador

perfeitodeveserversadoemdiversasáreasdosaber,e,destemodo,semerudição,não

é possível se alcançar a perfeição. Para Cícero, a eloquência é possível e desejável,

contanto que o orador não discorra sobre todos os assuntos semde fato conhecer

nenhum. Neste referencial diálogo, Cícero, na pessoa de Crasso, afirma que a

eloquêncianãoserestringeapenas,comosugereseuinterlocutorQuinto,aum“certo

engenhoeexercício”(CÍCERO,1942(55a.C.),I,5,17,p.14‐15).Pelocontrário,elaexige

o concursodetodasasdemaisartesqueoshomenscultospossuem:“ooradorperfeito

25VielebesitzendieGabe,ausfreiemGeisteundstehendenFussestausenderleyguteEinfällehervorzubrinetn(…).AnderehabennichtdasgeringsteVermögen,etwasausdemStegereiffe,ohneBedenckzeit,zuvollstrecken.Diejenigen(…)soihreGedanckenerstmitFantasirenentdecken(…)sindwircklichdieallerbesten.(…)Nehmlich:dasNaturell,dieLustundderFleiss[sind]einemComponistenundVorgesetztenaufunzertrennlicheArthöchst‐nöthigunderforderlich.

26 [Es ist erfordert], dass ein Componist und Vorsteher derMusik einesmuntern, auferäumten,

unverdrossenen,arbeitsamenundthätigenWesenssey;dochauchordentlichdabey:woranesofft

beydenallerlebhafftestenfehlet.DerMüssigangmuss,gehassetwerden.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  117

requer a agudeza dos dialéticos, as sentenças dos filósofos, o estilo dos poetas, a

memória dos jurisconsultos, a voz dos trágicos e os gestos dos melhores atores”.

Ninguém,naopiniãodeCrasso,poderáserumoradorperfeitosenãoalcançaruma

instruçãouniversalnasciênciasenasartes”Sendoassim,asabedoriaégeradorado

poderoratório.(CÍCERO,1942(55a.C.),I,14,63,p.46‐47)27.

Cícero inclui, em sua proposta de erudição universal, o conhecimento das leis, da

Antiguidadeedodireitocivil.ParaQuintiliano(1998(c.95),I,1,4‐6,p.20‐23),oorador

deve,ainda,serversadonafilosofia,sobretudomoral,mastambémnatural,enalógica.

Além destas, ele deve conhecer a retórica, a gramática, a música, a geometria e

astronomia‐conhecimentosquefuturamentevirãoaconstituirasartesliberales.

Mattheson, igualmente, dedica um capítulo inteiro de seu importante tratado às

qualidadesextra‐musicaisdocompositor.Eleafirmaque,emprimeirolugar,

umcompositornãodestacar‐se‐áemsuaartesemerudição.Umpintor

pode ser artista, mas se não for historiador, fará um quadro que,

emboratecnicamenteperfeito,nãoexpressaráosmovimentosdealma

condizentescomoconteúdodahistória.Omesmosesubentendedo

compositor:seutrabalhopodeserobrademestrededicado,masselhe

falta erudição, não saberá levar em consideração a naturezade seu

texto,comoacontececomopintoreaspaixõesdeseuquadro.Beer

acrescenta: uma coisa é a destreza técnica no pincel, outra, a

habilidadenaexpressão.(1991(1739),II,2,4,p.100)28

                                                            27Illudverius,nequequemquamineodisertiunesseposse,quodnesciat;neque,siidoptimesciat,ignarusquesitfaciundaeacohendaeorationis,diserteidipsumposse,dequosciat,dicere.28EinungenannterFranzösischerSchrifftellermeldetausdrücklich:einComponistwerdenimmerinseinerKunsthervorragen,fallserkeineGelehrsamkeitbesitze.EinMahlerkannwoleinKünstlerseyn;isteraberkeinHistoricus,sowirderzwareinkünstlichesBild,dochnichtdieGemüths‐Bewegungen,welchees,nachdemInhaltderGeschichte,habensollte,ausdrücken.EingleichesverstehemanvoneinemComponisten;seineArbeitkanendlichdasStückeinesfleissigenMeistersheissen;weilesihmaberanderGelehrsamkeitmangelt,haterdieNaturdesTextes,wiederMahlerdieLeidenschafftenseinesBildes,nichtinAchtnehmenKönnen.Beersetzthinzu:EinandersseykünstlichimPimsel;einaderskünstlichimAusdruk.UnddarinhaterkeinUnrecht.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  118

Cícero (1942 (55 a.C.), II,6, p.200‐201) conclui, afirmando que a arte, ou seja, a

habilidade técnica, jamais poderá ser posta plenamente em prática sem o

conhecimentodasmatérias.Mattheson,demaneirasemelhante,enfatizaqueomúsico

quenãovaialémdesuasferramentasespecíficaséumpedante(MATTHESON,1991

(1739),II,2,31).Paraele,omúsicodeveserpoetaeatémesmoprofeta(MATTHESON,

1991(1739),II,2,9).Valelembrarqueamúsicaéumadasdisciplinasmaisimportantes

nocurrículoescolarreformado.

ParaCícero,éfundamentalqueooradorpossuaerudiçãonomaisaltograu:“senas

demais artes basta uma tolerável mediania, no orador é necessário que estejam

reunidasemgraumáximotodasasqualidades”(CÍCERO,1942(55a.C.),I,28,128)29.

MatthesonecoaCícerojánaepígrafedoMestre‐de‐CapelaPerfeito,aocitarumadágio

deErasmo:“pleraqueressunt,qussifaciasacriter,plurimusconducunt;sinignaviter,

officiunt. Velut ea, quae mediocritatem non recipiunt, quod genus est Musica

Poeticaque.Suntrursusquaedam,quaedegustassesitsatis.”(“quantasatividadessão

admiráveisseaelasnosdedicarmosintegralmente,eprejudiciaisnosaplicarmosde

maneiramorna.Hácoisasquenãoaceitamamediania;entreestas,encontram‐sea

músicaeapoesia.Hácoisasquedevemserdegustadasplenamente.”)(MATTHESON,

1991(1732),p.9)30.

Para Cícero e Quintiliano, a erudição geral antecede os conhecimentos específicos,

emboraambossejamindissociáveis.Conhecimentosquepertencemtantoaoâmbito

                                                            29Quaeenimsingularumrerumartificessingulasimediocriteradeptisunt,probantur,ea,nisiomniasiunmasuntinoratore,probarinonpossunt.30OadágiodeErasmodiz:Oportettestudiniscarnesautedereautnonedere(Quandoselheoferecemcarnedetartaruga,éprecisocomerounãocomer).Naexplicação,Erasmodiz:comeounãocomeatuatartaruga:éprecisoescolher,assimdizumiâmbicoproverbialdirigidoàquelesque,decidindorealizarumatarefa,afazemvagarosamente,nuncaaterminandooudeladesistindo.(...).Diz‐sequeacarnedetartaruga,comidaemquantidadesmoderadas,écausadoradeconstipação,queédesfeitaquandoamesmaéconsumidaemgrandesquantidades(...).Éumamaneiradedizer:decida;váaguerraounãová;estudeounãoestude.Lembre‐sedequantasatividadessãoadmiráveissenosdedicamosintegralmenteaelas,esãoprejudiciaissenosdedicamosaelasdemaneiramorna,jáqueestas,comoamúsicaeapoesia,nãoadmitemamediocridade(ERASMO,2001,X,10,60,p.130).

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

119

geral quanto ao específico são, para Cícero, a escolha correta das palavras, o

conhecimento das paixões humanas, a amenidade e graça no discurso, a rapidez e

oportunidadenoresponderenoatacar,abelezaeagudezanoestiloeaurbanidade.

São, ainda, necessários para o orador os conhecimentos próprios do ator: a actio

(experiência acerca dos movimentos do corpo, dos gestos, dos semblantes e das

inflexõesdavoz)eamemoria.

Matthesontambémespecificaalgunsconhecimentosgeraisnecessáriosparaomúsico

perfeito:conhecimentodosaspectosmatemáticosdostemperamentosedaharmonia;

conhecimentodalínguagregaelatina,suficientesparaentenderescritossobremúsica,

alémdadalínguafrancesae,sobretudo,italiana,línguasprópriasdogalant‐homme.O

mestre‐de‐capeladevetambémserversadonamelopoesia,ouseja,apoesiaadequada

àmúsica; semo conhecimentodesta, incorreránosvíciosdamonotonia, das ideias

repetidas e do excesso de dissonâncias. O músico perfeito deve saber dominar as

paixõesdesuaaudiência,eparaisto,Matthesondescreve‐asnocapítulo3daprimeira

parte de O Mestre‐de‐Capela Perfeito. Por fim, ele deve cantar e tocar bem um

instrumento,preferencialmentedeteclado,edominarouaomenosconhecerosoutros

instrumentos.Porfim,omúsicoidealdevedominaroestilodecomposiçãoitaliano,

emboranão seja essencial ter ido àquelepaíspara aprendê‐lo (MATTHESON,1991

(1732),II,2,1‐46,p.99‐106).

UmtraçotipicamenteluteranodaobraliteráriaMatthesonéseuinteressepeloestudo

damúsica sob a perspectiva ética e teológica. Esta preocupação é característica de

escritosmusicais humanistas, como a referencial descrição domúsico perfeito por

GioseffoZarlino,emseuIstitutzioneHarmoniche,eumassuntosemprepresentenas

poéticas musicais produzidas no âmbito luterano. 31 Ela também aparece no Der

Vollkommene Capellmeister. No fim da vida, Mattheson se aprofunda nos aspectos

teológicosdamúsica.32

31Maisinformaçõessobreaideiadomúsico‐cortesãoemPORTO,Delphim(2013,p.11‐25).

32Especialmenteemumescritonãopublicado,intitulado“BehauptungderhimmlischenMusikaus

denGründenderVernunft,Kirchen‐LehreundheiligenSchrift”[Defesadamúsicacelestebaseada

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

120

5‐Conclusão

Neste texto, ficou claro como a vida de Mattheson, publicada na Grundlage einer

Ehrenpforte pode ser lida, a partir da perspectiva retórica, não como narração

subjetiva,mas, sob a perspectiva retórica, como escrito codificado, sujeito a regras

preceituadasparadiferentesgênerosliterários.Omesmopodeserditoarespeitoda

descriçãoqueMatthesonapresentadomúsico‐oradorperfeitoemDervollkommene

Capellmeister. Neste último e referencial escrito, as descrições do músico‐orador

perfeitoemulammanuaislatinosdeeloquência.

Apartirdestachavedeleitura,oobjetivodopresentetextofoiodeevidenciarediscutir

algunsdoslugares‐comunsaplicadosporMatthesonàdescriçãodomestre‐de‐capela

perfeito. Estes lugares já figuram em preceptivas clássicas, integram os escritos

humanistasereaparecemnaspoéticasmusicais.Autilizaçãodesteslugaresépossível

poisMatthesonpartedopressupostoqueamúsicaécomparávelaodiscursoverbal,o

quepermiteaeleafirmarqueosprincípiosdaoratóriasejamtambémadequadosà

música.

O primeiro dentre os lugares comuns apresentados neste artigo é constituído pelo

própriotítulo,queprometedescreveroidealdeperfeiçãomoraldomestre‐de‐capela,

nos moldes do orador idealizado por Cícero e Quintiliano. A questão inicial, a

capacidadehumanaparaatingiraperfeição,nãoépassívelderespostataxativa,mas

serveparaabriradiscussãoparaasqualidadesdesejáveisaomúsico‐cortesão.

Asegundaquestão,queavaliaaimportânciadacontribuiçãodanaturezaedaartepara

aconstituiçãodooradorperfeito,tambémdámargemamuitasopiniões,masconstitui,

igualmente,umexcelenteartifícioparajustificaraexistênciadomaterialqueoleitor

tememsuasmãos:ummanualqueensinaospreceitosdaartemusical.Matthesonnão

narazão,nadoutrinadaIgrejaenaEscriturasagrada”].Paramaisinformações,cf.CANNON(1968)p.101ep.207.

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  121

se detém explicitamente na dicotomia arte‐natureza,mas ela é evidente em várias

passagensdesuaobra.

Mattheson,comoseusantecessoreslatinos,enfatizaaimportânciadosconhecimentos

geraisparaaformaçãodomúsico‐oradorperfeito.Diversosdestesconhecimentossão

comunstantoaooradorquantoaomestre‐de‐capela:conhecimentodeoutrasciências

eartes,domíniosobreaspaixões,agudezaetc.Outrossãoprópriosdecadaarte,sejaa

música, seja a oratória. Contudo, a despeito destas diferenças, é possível notar que

todos afirmam que o artista perfeito deve extrapolar os conhecimentos técnicos

específicos. Esta asserção é recorrente em escritos sobre oratória, assim como nos

manuaishumanistasdecortesania.

A discussão do uso que Mattheson faz dos lugares‐comuns relativos à perfeição

oratória‐musicalmostrademaneiraclaracomooautorseamparanatradiçãoretórica,

recuperada por humanistas italianos e do mundo luterano, para produzir a mais

importanteobradainstituiçãodaMusicaPoetica,obraqueaindahojeseguesendoa

maisprofundatransposiçãodosprincípiosretóricosparaalinguagemmusical.

Referências

1.BARNES,Wilfried.(2002)Barockrhetorik.Tübingen:MaxNiemeyer.

2.BLUTEAU,Raphael.(1712)“Galante”.In:VocabulárioPortuguezeLatino(Coimbra,1712‐1728).Disponívelem:http://www.brasiliana.usp.br/pt‐br/dicionario/edicao/1.Acessoem3ago.2014.

3.CANNON,BeekmanC.(1968)JohannMattheson.SpectatorinMusic.Yale:Archon.

4.CÍCERO(1942).DeOratore(c.55a.C.).Harvard:Loeb.

5.CÍCERO(1986).EmdefesadoPoetaÁrquias(ProArchiaPoetaOratio,62a.C.).MemMartins:Inquérito(trad.MariaIsabelRebeloGonçalves).

6.ERASMOdeRotterdam.(2001)TheAdagesofErasmus.Toronto:UniversityofTorontoPress(trad.WilliamBarker).

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  122

7.HORÁCIO.(18a.C.)ArtePoética.SãoPaulo:Musa(trad.DanteTringali).

8.LAUSBERG,Heinrich.(1995)ElementosdeRetóricaLiterária.3ªedição.Lisboa:Gulbenkian(1ªed.1949).

9.LUCAS,Mônica.“EmulaçãodeRetóricasClássicasemPreceptivasdaMusicaPoetica”.Opus.SãoPaulo:ANPPOM.v.20n.1,p.71‐94.Disponívelemhttp://www.anppom.com.br/opus/data/issues/archive/20.1/files/OPUS_20_1_lucas.pdf.Acessoem9dez.2014.

10.MATTHESON,Johann.(2004)DasBeschützteOrchestre(Hamburg,1717).Laaber:LaaberVerlag.

11._______.(2004)DasForschendeOrchestre(Hamburg,1721).Laaber:LaaberVerlag.

12._______.(2004)DasNeu‐eröffneteOrchestre(Hamburg,1713).Laaber:LaaberVerlag.

13._______.(1720)DerBrauchbareVirtuoso.Disponívelemhttp://erato.uvt.nl/files/imglnks/usimg/d/d4/IMSLP18784‐PMLP44426‐Matthesson_Der_Brauchbare_Virtuoso.pdf.Acessoem4out.2012.

14._______.(1728)DerMusikalischePatriot.Disponívelemhttp://archive.org/details/DerMusicalischePatriot1728.Acessoem10out.2012.

15._______.(1991)DerVollkommeneCapellmeister(Hamburg,1739).Kassel:Bärenreiter.

16._______.(1740)GrundlageeinerEhrenpforte.Disponívelem:http://imslp.org/wiki/Grundlage_einer_Ehren‐Pforte_%28Mattheson,_Johann%29.Acessoem5nov.2012.

17.McCOY,Marina.(2010)PlatãoeaRetóricadeFilósofoseSofistas.SãoPaulo:Madras.

18.MORROW,MarySue.(1997)GermanMusicCriticisminthelateEighteenthCentury.Cambridge:CambridgeUniversityPress.

19.PLATÃO.(1987)Górgias(c.380a.C.).Madrid:Gredos.

20.PORTO,Delphim.(2013)GirolamoDiruta:IlTransilvano–diálogosobreamaneiracorretadetocarórgãoeinstrumentosdeteclado.Umestudosistemáticodotratadoedamúsicaemprincípiosdoséc.XVII.SãoPaulo:EscoladeComunicaçõeseArtesdaUniversidadedeSãoPaulo(DissertaçãodeMestradoemMúsica).

LUCAS,Mônica.(2016)JohannMatthesoneoidealdoMúsicoPerfeito.PerMusi.Ed.porFaustoBorémeLiaTomás.BeloHorizonte:UFMG,n.35,p.100‐123.

 

  123

21.QUINTILIANO,MarcusFabius.(1998)InstitutioOratoria(c.95a.C.).Harvard:Loeb

22._______.(2005)Ciênciadobemdizer.AconcepçãoderetóricadeQuintilianoemInstitutioOratoria,II,11‐21.SãoPaulo,Humanitas(tradução:MariaBeatrizÁvilaVasconcelos).

23.TETTAMANTI,Giulia.(2010)SilvestroGanassi:obraintituladaFontegara:umestudosistemáticodotratadoabordandoaspectosdaflauta‐doceedamúsicainstrumentaldoséculoXVI.Campinas:InstitutodeArtesdaUniversidadeEstadualdeCampinas(DissertaçãodeMestradoemMúsica).

24.VORBAUM,Reinhold.(1863)EvangelischeSchulordnungen,vol.II:DieevangelischenSchulordnungendessiebzehntenJahrhunderts.Gütersloh:Bertelsmann.

Notasobreaautora

MônicaLucasgraduou‐seemmúsicanaUniversidadedeSãoPauloeespecializou‐se

nainterpretaçãodamúsicaantiganoRealConservatóriodeHaia(Holanda),obtendo

diplomasemflauta‐doceeemclarineteshistóricos.Coordenadesde2001oConjunto

deMúsicaAntiganaECA‐USP.Seutrabalhocomopesquisadora,financiadodesde2002

pela FAPESP (doutorado, pós‐doutorado e auxílio à pesquisa), envolve o estudo da

instituiçãodaMusicaPoetica.Éautorade"HumoreAgudezaemHaydn:osQuartetos

deCordasop.33"(AnnaBlume/FAPESP,2008).Desde2013,éChefedoDepartamento

deMúsica da ECA‐USP, onde também atua como docente, sendo responsável pelas

disciplinas“HistóriadaMúsica”,"HistóriadaÓpera"e“IntroduçãoàRetóricadaMúsica

Setecentista”.