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José Mauro de Vasconcelos - Arraia de Fogo

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Não sei se depois de tanto trabalho terei escrito realmente umlivro que divirta. Divertir foi sempre a menor de todas as minhaspreocupações ao preparar e lançar um trabalho ao público.Honestamente, sempre procurei mostrar ao comodismo da cidadeuma parte do Brasil desconhecido. O público geralmente não tomaconhecimento de todo sacrifício que um livro como "Arraia de Fogo"exige. Na realidade, nem mesmo a mim interessa esse aspecto, depoisdo trabalho pronto.

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  • JOS MAURO DE VASCONCELOS

    Arraia de Fogo

    EDIES MELHORAMENTOS

    Comp. Melhoramentos de So Paulo, Indstrias de Papel Caixa Postal 8120, So Paulo

    EOx IX-1969

    Obras do Autor, nas Edies Melhoramentos:

    BARRO BLANCO

    ...LONGE DA TERRA ARARA VERMELHA

    CORAO DE VIDRO ROSINHA, MINHA CANOA

    O MEU P DE LARANJA LIMA AS CONFISSES DE FREI ABBORA

    DOIDO BANANA BRAVA

    VAZANTE O GARANHO DAS PRAIAS

    RUA DESCALA O PALCIO JAPONS

    DO PINHEIRO AO LIVRO. UMA REALIZAO MELHORAMENTOS

  • PARA CICCILLO MATARAZZO

  • EXPLICAO No sei se depois de tanto trabalho terei escrito realmente um

    livro que divirta. Divertir foi sempre a menor de todas as minhas preocupaes ao preparar e lanar um trabalho ao pblico. Honestamente, sempre procurei mostrar ao comodismo da cidade uma parte do Brasil desconhecido. O pblico geralmente no toma conhecimento de todo sacrifcio que um livro como "Arraia de Fogo" exige. Na realidade, nem mesmo a mim interessa esse aspecto, depois do trabalho pronto.

    Quero apenas apresentar o que realmente existe sobre a dureza da selva, sobre a solido da vida, que muitas vezes nos pode levar loucura. A selva nua, sem fantasias jornalsticas ou sensacionalismo de manchetes. A selva do heri cotidiano, onde ele permanece no s no bom tempo de turismo, mas sempre. Espera a chuva e combate a selva com a mesma serenidade dos dias agradveis.

    Quero tambm, na minha histria, ressaltar minha grande admirao por Orlando e Cludio Vilas Boas. Principalmente Cludio, pelo seu devotamento, quase sublime, causa dos ndios. Quem conhece o seu rosto triste e sua pacincia, grava na memria a verdadeira mscara do bandeirante desinteressado, do homem que oferece a vida sem dela nada esperar, para um futuro menos ingrato daqueles que moram na selva.

    Poder "Arraia de Fogo" ser uma histria sem aventurescas sensaes, mas apenas obedeci ao que me pediu o corao.

    Ainda mais, quando a gente no pode dizer a verdade completa e conta algo semelhante verdade, no est traindo a verdade. Por isso, no temo as conseqncias que este livro possa trazer-me...

    O AUTOR

  • NDICE PRIMEIRA PARTE - O HOMEM E A SELVA ........................................................ 6 Primeiro Captulo - Os Txucarrames ......................................................................... 7 Segundo Captulo - O Visitante ................................................................................ 15 Terceiro Captulo - A Segunda Canoa ...................................................................... 23 Quarto Captulo - O Posto Capito Vasconcelos ...................................................... 33 Quinto Captulo - A Gripe ........................................................................................ 45 Sexto Capitulo - A Injeo De Coramina ................................................................. 58 Stimo Capitulo - Mais Gripe ................................................................................... 70 Oitavo Capitulo - Um Coronel Que Era Mdico ....................................................... 81 Nono Capitulo - O Canto Da Morte .......................................................................... 98 Dcimo Capitulo - O Jacobim ................................................................................. 111 SEGUNDA PARTE - O COARUPE ...................................................................... 124 Primeiro Capitulo - A Lagoa Do Ipavu ................................................................... 125 Segundo Captulo - Dois Dias De Quase Amor ...................................................... 135 Terceiro Captulo - A Primeira Canoa .................................................................... 146 Quarto Capitulo - O Segredo De Quilomo .............................................................. 156 Quinto Capitulo - Um Pouco Mais Que A Solido ................................................. 165 Sexto Captulo - O Banco ....................................................................................... 174 Stimo Capitulo - Araguaia, O Rio Da Vida ........................................................... 185 Oitavo Captulo - O Coarupe .................................................................................. 195 Nono Capitulo - O Massacre ................................................................................... 207 Dcimo Capitulo - O Tmulo De Um Prncipe....................................................... 217 SOBRE O AUTOR (*) ........................................................................................... 224

  • PRIMEIRA PARTE - O HOMEM E A SELVA

  • Primeiro Captulo - Os Txucarrames A noite descia, pesada e calma, envolvendo a terra, a selva, em seu

    manto triste. Cai escorregou o p por entre a varanda da rede e ensaiou um novo

    embalo. Com o movimento, um cheiro de suor e barro exalou-se do ambiente. E parecia vir de todo canto. Suor e barro, grudados na rede, no corpo, na alma, na tristeza. O corpo mole convergia para o centro da rede, encolhido de inutilidade. No queria despertar e nem poderia adormecer novamente.

    Levou as mos aos olhos e esfregou-os vagarosamente. Parecia sentir sob a mo intil as rugas e o empapuamento das plpebras. Cocou o corpo e novamente o cheiro de suor e barro aumentou. Precisava reagir, libertar-se, trocar a roupa, caminhar at ao rio e banhar-se, mas o relaxamento total reduzia-o ao nico movimento de embalar a rede...

    Fora, o crepsculo se alastrava na mata, chamando para o sono as garas da praia. O rio diminua a marcha, para dormir. Na selva, despertava a noite em mil brados e a tarde se convertia numa mar de cores, inundando o cu. O vento fresco da noite de vero soprava com preguia, molemente... Por vezes parecia trazer para o rancho grande o rudo das cachoeiras.

    Quilomo apareceu porta. Sua sombra comprida ampliou a escurido do rancho.

    J alimpei os vidros do lampio. S farta o querosene. Cai levantou-se, aproximando-se do preto, enquanto apanhava o querosene para abastecer o lampio; perguntou roucamente:

    Ainda tem muitos por a? Acendeu o fsforo e deu com os olhos de Quilomo fitando seu rosto

    empalidecido. Certamente o preto estava sentindo o cheiro de bebida. Quilomo movimentou os lbios cados. A fala saiu lenta, porque tudo

    nele parecia lento, vagaroso, mole, indolente... Uns poco. Cada dia, eles se afasta mais... Que vo de uma vez para o meio do inferno 1 Retornou rede e deitou-se. A cabea latejava e o frio da selva

    aumentava com o escurecer. Olhou entre as frestas do rancho. A pindaba cortada certinha se alinhava, formando a parede, e dividia o escuro em tiras.

    Balanou mais a rede e o cheiro de suor e barro reapareceu, incomodando-o. Fechou os olhos desesperadamente. Uma sonolncia morna pesava sobre todos os seus movimentos. Foi adormecendo sem notar.

    Num canto, a galinha choca regougou enjoada...

  • Quando despertou, o lampio fora colocado no alto. O fogo aceso deixava escapar das panelas o cheiro do peixe cozido que conseguia disfarar aquele outro permanente: o do suor e do barro.

    Quilomo colocava os pratos de gata sobre a mesa tosca. O arroz desprendia uma fumaa tnue.

    T pronto. Ergueu-se, sentindo a cabea tonta e as pernas bambas. Arrastou o

    banco, sentando-se pesadamente. Quilomo imitou o seu gesto. Enquanto derramava colheradas de arroz no prato, perguntou, sem

    levantar a cabea: Cad Cano? T l fora. Cai assobiou finamente. Em segundos, a figura do indiozinho apareceu,

    trazendo nas mos uma lata de goiabada que lhe servia de prato. No est com fome? Cano, o ndio Meinaco, sorriu. Ele ria sempre. Nos seus olhos morava a

    bondade da loucura. Fitou o homem com prazer. Riu de novo, balanando a cabea afirmativamente.

    Um pouco da tristeza de Cai desvaneceu-se ao contemplar aquele rosto redondo, onde os cabelos estavam cortados em forma circular. Os olhos pequenos sumiam com o sorriso. Os braos, que principiavam a tornar-se fortes, ofereceram a lata de goiabada para receber a comida.

    Sente. Cano obedeceu. No havia maior felicidade do que sentar-se junto do

    "titio" caraba. Farinha? Cano assentiu, ainda sorrindo. Se a gente no pe a comida na sua boca, voc morre de fome. Cai mastigava o peixe quase insosso. Precisavam fazer economia de sal

    porque a nova remessa no chegara ainda. Orlando Vilas Boas j deveria ter aparecido para reabastec-los. Entretanto, demorava. Possivelmente acontecera alguma coisa a mais... sempre estava acontecendo alguma coisa a mais naquele serto bruto e esquecido...

    O pium na roa tava danado! comentou Quilomo. Tava uma misera. Se a gente bota a camisa, qu'isperana! num genta o calo do Sol; se... se a gente tira a camisa, praga fais lixa...

    Cai pousou a colher sobre a mesa e espiou Quilomo. Os beios do negro pendurados e ensalivados estavam acabando de se encolher.

    Algum deles deu mo a voc hoje? Quilomo entreabriu as gengivas mostrando os dentes grandes e

    amarelados do fumo que vivia mascando.

  • Que o qu. Eles so que nem os otro. To se aviciando. Coisa "rim" logo aprende. Ds que a gente faa roa e levante casa, eles no quer nada mais...

    Querem sim... Cai levantou a cabea e deparou com uma poro de Txucarrames em

    volta e sua frente. Os beios cortados e esticados com grossos batoques de jatob. Os olhos espiando, espiando. Sempre soltando um sorriso e exclamando: "Mitire... Mitire..." Bonito... Bonito...

    Tudo era bonito. At as vidas que eles tinham massacrado: ora com borduna, ora com flechas e tambm com os calibres vinte e dois ou quarenta e quatro, roubados aos seringueiros e aos brancos.

    Querem sim. Querem acabar com o restinho de arroz e o pouco de farinha que temos. Se Orlando no chega, quanto tempo mais dura o mantimento?

    Bem uma meia dzia de cinco ou seis dia... suspirou desanimado. A gente tem de procurar caa e

    implorar desses beiudos um pouco de mandioca, beiju, batata-doce e banana.

    Tornou a apanhar a colher e comeu em silncio. At ao fim da refeio nada disse. Sua ateno prendia-se ao fundo do prato, que se esvaziava; era como se a vida e tudo o mais tivesse perdido toda a importncia.

    Quilomo arrotou e com a faca principiou a fabricar um cigarro de palha. Bom que tivesse um cafezinho... Levantou-se, espreguiando-se compridamente. Sua figura enorme, luz

    do lampio adquiria propores ainda maiores. Caminhou um pouco, estirando as pernas, e dirigiu-se para o canto do rancho onde sua rede se encontrava enrolada.

    Atou o punho e deitou-se. Sua voz veio grossa, entremeada de saudade: Numa hora desta, se eu estivesse em minha terra... Balanou a rede,

    que rangeu no caibro. Era um convite ao canto: "Ai que sodade do meu Amazonas... Acho que morro e num vorto l... Tenho sodade das canarana Que anda o rio sem se cansa... A voz foi-se perdendo aos poucos. Quilomo no aprendera o resto da

    msica... Uma idia atravessou seu crebro. Sentou-se e observou a tristeza do branco, que continuava ainda espiando o prato de comida. Tomou um ar srio antes de comear a falar.

    Patro... (todas as vezes que precisava falar decisivamente tratava o

  • outro por patro)... Cai adivinhou a coisa no ar... J sei... Voc vai embora de novo... Quilomo gaguejou: Sabe de uma coisa? Eu v mesmo. Isso aqui num d futuro pra

    ningum... O branco sorriu compreensivamente. Que no d, todo mundo sabe... mas voc vai... depois sente saudade

    e volta. Eu tambm j fui assim. Um estremecimento... um calafrio perpassou-lhe a espinha. Sem querer

    voltava sua condenao. O outro no deu tempo para que a sua dor se aprofundasse. Agora a coisa otra. Sempre fui sozinho. No tenho irmo de jeito

    nenhum. Nasci no Riacho, l pro fim do Maranho. E agora vou bota casa. Da rtima veis deixei uma mui m'esperano...

    Cai engoliu em seco. Mas dominou-se. Era preciso ser duro. Sobretudo, no poderia ter o direito de pensar. Tinha jurado que se deixaria enroscar pela brutalidade da selva. Por vezes, sentia que ela, em sua totalidade, era suave ante o furor de um homem...

    Ento, Quilomo, voc est apaixonado... O outro soltou uma gargalhada to forte que os Txucarrames viraram-se

    para olh-lo. Explicou com os dedos compridos: Nego num sabe o que isso. Nego s gosta. Quando voc pretende ir embora? Logo que a Lua entre no crescente, porque vou viaja de noite e de dia.

    A zinga vai trabai duro. Mas se o senh percis de mim, aguardo at a chegada de "seu" Orlando...

    No se incomode comigo. Por mim, voc pode partir at amanh... Quilomo ergueu-se e veio para junto do homem. Cano deu volta mesa e retirou o prato sujo do "tido". Depois, ficou

    olhando para a panela de arroz e para o resto do peixe. Pode dar para os ndios, sim. Os Txucarrames, entenderam a conversa e aproximaram-se sorrindo: Mitire... Mitire... Cai retirou-se do barraco e foi espiar a noite l fora. Fazia frio e com o

    passar das horas, a umidade entranhava-se cruelmente. Nas madrugadas mais frias, precisavam at acender o fogo.

    A noite era negra e estrelada. Fogueiras estavam acesas em volta do acampamento. Os Txucarrames tinham feito as suas pauprrimas cabanas, se que se podia chamar assim queles amontoados de palha de banana, que mal davam para acolher um homem agachado.

    De todos os ndios que vira, nunca encontrara tribo to primitiva. Eram

  • incapazes de fabricar um utenslio qualquer. E suas casas, mesmo nas grandes aldeias, reuniam-se naqueles amontoados de palha de banana. E se algum parente de outra aldeia aparecia para visit-los; eles aumentavam a madeira do rancho e iam puxando novos cmodos. No tempo das guas, as cabanas eram to pequenas e inconfortveis que muitos dormiam com os ps para fora, ao relento, ao sabor das picadas das muriocas...

    Cai pensou nos problemas do posto. Tambm era preciso lazer uma poro de inovaes ali. Mas, como? No tinha gente suficiente. Eram apenas: Quilomo e ele; Cano, o indiozinho Meinaco que cozinhava e lavava a loua; que sumia no mato para caar, e outras vezes ajudava, trazendo do rio tucunars e piaus. O posto fora criado to rapidamente, devido s circunstncias, que nem sequer recebera um nome ainda. Possivelmente, Cludio e Orlando Vilas Boas dariam um jeito de mandar dois ou trs trabalhadores para socorr-los.

    Uma estrela cadente percorreu a noite como um risco de giz. Mas ele no formulou nenhum desejo. A vida estava de certo modo encerrada e, ao longe, desapareciam as esperanas.

    Tornou a martirizar-se com os pequenos problemas do seu mundo momentneo. Precisava trazer toras de pindaba do mato e fazer um puxado. A, sim, construiria a cozinha e uma saleta de jantar. Era urgente a separao da cozinha, para no dar naquilo: um contnuo ajuntamento de ndios beiudos, devorando com os olhos o que eles estavam fazendo com a boca. Os dias se passavam e nada acontecia, para melhor. O eterno problema do "amanh farei" juntava-se ao desnimo dos dias quentes, em que nada realizavam...

    S ento notou que Quilomo se postara a seu lado, olhando a noite sem dono. Aquele era o nico trabalhador e queria ir-se embora.

    Sei que o senho... No precisa falar, Quilomo. Eu entendo e no estou magoado. Voc

    quer casar-se, construir casa... um direito que lhe assiste... Tornou-se mais humano. Como sua noiva?

    Pequenina, mida, cabelo "rim" e se chama Margarida... Cai riu. E como que vai ser? Voc tem mais de dois metros e ela pequena

    assim? Quilomo riu forte e sadiamente. A gente d um jeito; ou ela istica ou eu incoio... As luzes das fogueiras cresceram junto ao acampamento dos

    Txucarrames. Vamos ver? Daqui a pouquinho comea a cantoria... Se eu fosse o senh num ia no... Cai procurou o rosto do preto, mas a sombra e o prprio negror da pele

  • escondiam a emoo. Que quer voc dizer, Quilomo? Nada de mais, no. Ao longe, vultos se aproximavam da fogueira, trazendo grandes pedaos

    de pau seco. As chamas cresceram na noite. Cano vinha chegando em direo ao rancho, trazendo um feixe grande

    de lenha. Parou junto do branco, como a pedir permisso. Pode levar... Cano entrou. Esse demnio no faz nada sem licena... Nenhum co gosta mais de seu dono, do que ele do senho... Os vultos

    dos ndios aproximaram-se da fogueira. Vai comear a cantoria... Quilomo pigarreou. Patro... eu perciso lhe fala mesmo. Novamente procurou o rosto invisvel. Apenas o brilho da fogueira ao

    longe descobria a chama dos olhos de Quilomo. Eu v imbora... Voc j disse. Mas estou cum receio... No de eu, mas do senho... Fez uma pausa e a custo recomeou a conversa to difcil: Quanto tempo fais que a gente trabaia junto? No me lembro. Assustando bem carculo uns seis ou sete ano que me ajuntei no

    Servio. E o senh sempre estava junto tambm, num foi? Sim. Eu acho que o senh tambm adevia de ir embora. Eu tou falando

    porque sou seu amigo... Eu sei. O senh num tem mais pacincia pra lida cum cabco... Cai sentiu um n na garganta e os olhos molhados. Felizmente, a noite

    amiga escondia tudo. O negro tambm estaria sentindo a mesma coisa. Eu tento me controlar, mas s vezes me falta pacincia. , voc tem

    razo. Estou cansado. s vezes, seria capaz de pegar a "vinte e dois" automtica e descarreg-la sobre esses vagabundos. Quem sabe se a Fundao Brasil Central no tem razo em querer acabar com os ndios para vender mais depressa as suas terras?!...

    O corao batia apressado. Respirou profundamente para acalmar-se. Sua voz saiu irnica:

    Matar, nunca. Morrer, se preciso for. mais ou menos isso. E sobre isso eu jurei. Recebi minha condenao e o meu uniforme de presidirio esse lema...

  • O senh num atirava num ndio, atirava? Atirava, sim. No comeo, no. Mas eu no tenho a pacincia de

    Cludio Vilas Boas, que "faz das tripas corao" para satisfazer esses indolentes. Eu, se for atacado, voc vai ver. Esses desgraados so uns ingratos; a gente tem um trabalho danado com eles e qualquer um que aparea, enganando com quinquilharias, eles correm para bajular...

    Calou-se revoltado. Eu conheo bem o senh e num de hoje. O senh no dava nenhum

    tiro... As vozes elevaram-se na noite. Os homens davam o brao aos homens; e as mulheres, com a metade da

    cabea raspada, faziam coro com vozes estridentes. O p, batendo surdamente no cho, marcava o ritmo.

    Iuparan!... Iuparan!... Iuparan ambi!... Iuparan!... Iu-pa-ra-n... Reur, renanan Reur, renanan Renanan Renanan Nana Nana... Ficavam repetindo vrias vezes a cantiga dolente... Abaixou a cabea, desanimado. Estou mentindo, Quilomo. Eu nunca mataria nenhum deles. Era como

    se acabasse com o resto de minha vida. Por que o senh no vai comigo? O desnimo aumentou. Bem que eu queria, mas no posso. Prometi a tanta gente... Jurei ao

    Cludio. Seria quebrar minha promessa e o resto de confiana que poucos tm sobre minha honra...

    O senh podia ir para um lug que ningum soubesse... Colocou a mo no ombro de Quilomo. intil, amigo. No h soluo... S isso... apontou os ndios

    danando e cantando... Est fazendo frio. Vamos entrar? No conseguiu mover-se porque a mo de Quilomo pesava sobre o seu

    ombro. Perciso lhe diz mais... O senh est bebendo munto.

  • A mo descaiu pesadamente. Cai penetrou no rancho. Deitou-se na rede.

    Cano veio chegando suavemente e sempre sorrindo. Na sua linguagem atrapalhada engrolou:

    "Titio", dormir? Sim, meu filho. Ele pegou sua minscula rede, que mal recebia o corpo encolhido, e

    armou-a. Todo ndio xinguano tinha a mania daquelas redes minsculas. Cai sorriu, recordando-se de que uma vez, nos Jurunas, Orlando fizera

    uma rede dum saco de estopa para um garoto dormir e quando amanhecera, encontrara o pai dormindo junto com o filho.

    Depois, Cano foi at ao pote e trouxe uma caneca d'gua, colocando-a junto da lanterna eltrica do "titio".

    Abriu o cobertor, mas antes de deitar-se fez fogo perto. O frio da noite ia ser intenso novamente.

    Ergueu-se e olhou para "titio". Os olhos de Cai fixavam-se em todos os seus movimentos; fitava o doidinho. O corpo franzino, mas que o tornaria, brevemente, um homem forte.

    Riu para o branco. "Titio", dormir? Foi at rede e abraou Cai. Sentiu a barba crescida roar-lhe o rosto.

    Todas as noites repetia aquilo. E todas as noites Cai aspirava o cheiro de peixe que escapava das suas mos sujas.

    Durma bem, meu filho. Cubra-se, que o frio grande... Quilomo apagou o lampio. Cai virou o rosto na rede e sentiu o algodo

    umedecido. Aquela palavra "titio" era tudo que a vida lhe deixara de ternura...

    A madrugada ainda ia alta quando um vulto penetrou no rancho e veio

    sacudir a sua rede. Era uma velha Txucarrame. Acordou, meio aborrecido, mas precisava ter pacincia. Cai... Sabia do que se tratava. Levantou-se com sacrifcio, apanhou a lanterna

    eltrica e dirigiu-se ao ranchinho fechado que servia de almoxarifado. A fechadura do cadeado estava gelada. Abriu a porta e procurou um cobertor. Murmurou consigo mesmo:

    Bonito! S temos trs de reserva. Quero ver, quando acabar, se esses beiudos vo compreender!

    Voltou para o rancho. Junto da rede de Cano avivou o fogo e espiou o menino que dormia. Envolveu-o mais nas cobertas. O frio era mesmo grande e o dia estava longe de nascer.

  • Segundo Captulo - O Visitante Que frio, marmo! Quilomo esfregava as mos enquanto as chamas aumentavam no fogo. Cano tambm se encontrava de p e se aproximara do fogo. A umidade

    da manh fizera cair sobre o rio uma cortina de bruma, que aos poucos o sol iria dissipando.

    Rele um pouco de rapadura, que eu preparo um ch de quarqu coisa. Cano obedeceu, apanhando na cintura a sua faca de caa, presente de h

    muito tempo do "titio". As raspas grossas e douradas caram sobre a mesa. Quilomo enfiou a mo na palha do rancho e retirou-a trazendo umas

    velhas cascas de limo. Tem que ser disso mesmo. Cai balanou a rede, espiando, desanimado, o amanhecer. Sempre a

    mesma coisa. Quilomo saiu. Na certa ia em busca de beiju para tomar com o ch de

    casca de limo. Num canto do rancho, a galinha cacarejou, incomodada. Olhou-a

    demoradamente. Dentro em breve os pintinhos estariam nascendo; fizera besteira ao gastar os ltimos ovos no choco. Com a escassez de alimentos, melhor seria... Mas agora era tarde. Das quatro galinhas que trouxera, aquela sobrara por milagre. Os bichos do mato, ou mesmo os ndios, arranjaram um fira mais rpido para o que ele chamava de criao.

    "Titio"... Voltou-se e encontrou Cano com a caneca de ch sua frente. Sentou-

    se na rede e sorveu a bebida, lentamente. O frio ainda invadia tudo e o ch estava despertando energia e fome.

    A bruma da manh comeava a dissipar-se, enquanto ia cedendo o lugar luz, ainda muito fraca, do Sol.

    Do lado dos ranchos dos Txucarrames a fumaa saa pelo teto e pelos lados. Aos poucos, eles apareciam e se dirigiam para o lado do Xingu. Mulheres caminhavam, levando vasilhames de barro onde traziam gua para as cabanas. Os ces, magros e sempre esfomeados, ostentando cicatrizes e por vezes orelhas decepadas, andavam em silncio, de uma maneira esticada, acompanhando os donos. No raro arreganhavam as dentuas afiadas ao encontrar algum inimigo.

    Quilomo, ainda com o caneco na mo, aproximou-se de Cai. Cada dia os bichos to sumindo mais...

  • Bom que fossem para... Mas no terminou o palavro. Apenas deu de ombros, indiferente. Quilomo insistiu no assunto. Eu no tou gostando disso. Cai encarou-o e dessa vez sorriu antes de falar. Pra voc no tem importncia. Voc est mesmo decidido a ir

    embora. O assunto ficou encerrado. Quilomo foi buscar o machado e a foice que

    estava encostada na parede. O homem permaneceu olhando o ambiente. Os vultos dos ndios a

    encaminhar-se para o rio. O pedao da mata derrubada. Mal derrubada, mesmo. A falta de auxlio era uma coisa evidente em todas as partes. Ali, no lugar daqueles troncos que j secavam, derrubados, seria construdo o futuro campo de aviao. A idia fazia parte dos planos de Orlando e Cludio, que ainda teimavam em permanecer naquela vida dura e intil. Bem fizera Leonardo que a essas horas navegava o Araguaia para cima e para baixo, transportando cargas para os garimpos. Sorriu, lembrando a exuberncia e o entusiasmo de Leonardo por tudo...

    Caminhou tambm para as bandas do rio. Ia lavar-se. Sem se virar, assobiou, e Cano apareceu correndo e sorrindo.

    Banha, "titio"? Respondeu com um som rouco e inexpressivo. A distncia entre o rancho e o rio ultrapassava quinhentos metros e ele a

    fez sem sentir. O mato, beira do caminho, encontrava-se orvalhado e de to frio

    machucava os ps. Os Txucarrames voltavam correndo, emitindo gritos para estimular-se e

    aquecer o corpo recm-lavado e que ainda escorria gua. As mulheres tambm retornavam quase correndo, no s pelo frio como tambm pelo peso dos potes.

    Eles passavam por Cai e nem sequer se detinham para cumprimentar o moo. Uma surda irritao mordia-lhe o ntimo. E o problema voltou a preocupar-lhe os pensamentos. Ainda era muito cedo para ter vindo ali fazer o posto. Eles no compreendiam que as coisas estavam acabando e que nada havia para apresentar. Aquela era a pior situao para quem comeava a tarefa de aproximao. O ndio, no habituado a uma negativa, tornava-se estranho e mal-encarado. E aqueles ainda eram mais terrveis por causa dos grandes batoques pendurados nos beios. E os lbios descaindo ou suspendendo, quase a tocar o nariz, tornavam os Txucarrames assustadores.

    Chegou ao rio e, como por milagre, ningum ali havia. Aquilo era outro sinal significativo. Eles tinham sado para banhar-se e quela hora o rio

  • sempre ficava coalhado de vultos escuros. Cai sondou os lados. Nenhum barulho d'gua movendo-se. Os Txucarrames iniciavam a luta. Tinham ido buscar outro stio para lavar-se.

    Despiu a roupa e reparou que o corpo se tornara magro e os msculos eram apenas fibras nodosas, onde a pele branca aparecia sem brilho. Entretanto, apesar de sentir uma a uma as costelas, o corpo parecia pesar mais; talvez fosse isto um reflexo do mormao e definhamento que lhe ia na alma.

    Jogou-se ao rio. Cano imitou-o e mergulhou longamente. Apareceu longe, com os cabelos escorrendo e o sorriso nos lbios. Cai tambm sorriu tristemente. Aquele, coitado, no sabia nada. Para ele, tudo estava bom.

    Retirou-se e tornou a sondar o ambiente. Quilomo tinha razo. Os Txucarrames estavam desaparecendo e alguns que permaneciam iam se afastando aos poucos numa demonstrao de quebra de amizade. E por que Orlando no chegava nunca? Ainda bem que existia um caixo com conservas e o seu "estoque particular" continha mais de uma dzia de garrafas de cachaa. Voltaram-lhe as palavras do negro: "O senhor est bebendo muito". Que importava? mesmo, que importava tudo?

    Voltou a vestir-se. Agora sentia o corpo um pouco mais leve. Precisava dar uma ajuda a Quilomo.

    Apanhou a "vinte e dois" e entregou-a a Cano. Hoje voc fica aqui tomando conta. Se algum ndio fizer qualquer

    coisa, atire pra cima. O olhos do Meinaco adquiriram uma certa tristeza. No gostava de estar

    longe do "titio". Quando o fogo estiver apagando ponha mais lenha, e se o feijo

    estiver secando, jogue mais gua na panela. Apanhou o machado, saiu do rancho e acompanhou Quilomo. O arroz, a gente faz na hora do almoo. Atravessaram a aldeia dos Txucarrames e foram-se em direo roa.

    No precisaram caminhar muito porque a roa estava sendo feita perto. Nos outros lugares, costumavam derrubar a mata a umas duas lguas do posto. Ali no era aconselhvel.

    Nenhum ndio fora encontrado no caminho. Quilomo adivinhou-lhe o pensamento.

    Antigamente (falava "antigamente" como se estivessem enterrados ali h muito tempo. Naquelas bandas at o dia anterior se transformava em "antigamente") eles aparecia pra ajud.

    O rio e a caa so mais agradveis que o cabo do machado. Na hora do almoo eles surgiro de qualquer maneira. No se assuste.

    No alto, o sol incomodava o corpo, dando o primeiros sinais de calor. E

  • os piuns pousavam sobre braos e rosto picando mida e doridamente. Os paus cados principiavam a tornar-se maduros; no .entanto, a mata em

    p, enrodilhada de cips, levantava uma galharia verde e selvagem como se desejasse que o sol derretesse logo o orvalho da noite.

    Os pssaros voavam para longe e os machados principiaram a cantar no tronco. Eles debruavam-se sobre os talhos e arrancavam lascas cheirosas das rvores. O peito esquentava, a mo comeava a doer; ento, fazia-se necessrio uma pequena pausa para renovao de ar nos pulmes.

    O rei da mata, o jatob, dominava tudo. Seus galhos enormes e suas folhas pequenas apareciam por toda a selva.

    A gente derruba jatob aparece mais... Um suor inundava o rosto do rapaz. A fraqueza esfriava-lhe o peito.

    Havia perdido a prtica do trabalho duro. A alimentao deficiente e a ausncia de tudo tornavam-lhe pesados todos os movimentos e sobretudo a vontade.

    Deu com Quilomo adivinhando-lhe os pensamentos. O patro no devia de t vindo. J estou aqui... Espantou os mosquitos do rosto e suspendeu o machado. No desferiu o

    golpe. Soltou-o no cho e virou-se, rpido, para Quilomo. O negro tambm estava tomado de surpresa.

    Tiro? Cano est atirando. Aconteceu alguma coisa. Vamos l. Os dois desabalaram carreira em direo ao posto. Antes mesmo de

    chegarem, encontraram Cano que vinha sorrindo. Ele parou para controlar-se e com dificuldade falou:

    Caraba, "titio"... Orlando?... Cludio?... O Meinaco abanou a cabea negativamente. Caraba. Quem, demnio, ser? Principiaram a andar apressadamente. Penetraram no rancho e, sentado

    num banco, encontrava-se um homem de uns trinta e poucos anos. Bom dia! Espero no ter vindo causar incmodos. Estendeu a mo e

    Cai apertou-a molemente. No gostava, por princpio, de visitas, principalmente de desconhecidos. Fixou o homem, esperando mais explicaes.

    Eu sou o padre Domingos... O silncio permaneceu no ambiente. Quilomo examinava,

    desconfiadamente. Como poderei...

  • Dessa vez o padre ficou sem jeito. O senhor ... Cai... Como os ndios me chamam... No sei se o senhor se aborrece em trat-lo assim... Cai deu de ombros. Coou a barba e encarou o padre bem de frente. Como o senhor veio? Desci no posto do Jacar. A Fundao Brasil Central fez-me o

    convite... Cai sorriu cinicamente, soltando um "hum" de chateao. No grande recomendao para ns. Sente-se. Os Txucarrames estavam cercando o ambiente e alguns deles, vencido o

    medo, aproximaram-se do forasteiro. O padre disfaradamente olhava os ndios nus e tentava esconder a sua

    inquietao. Como chegou at aqui? Tinha um ndio juruna visitando o Jacar. Ofereci-lhe uns presentes e

    descemos. Cad o juruna? Foi buscar o resto da carga na canoa. Cai acercou-se da porta e espiou na direo do rio, curioso para saber

    que ndio era. Os jurunas estavam pacificados e eram amicssimos dos Vilas Boas. Tinham uma qualidade que poucos ndios possuam: sabiam ser amigos e no costumavam trair a algum.

    Que veio o senhor fazer aqui? Ver. Eu sou um ministro de Cristo. Minha misso salvar almas. Cai voltou-se, irritado. Padre, o dever de hospitalidade me obriga a receb-lo neste rancho.

    Mas esse dever no me obriga a aceitar o que o senhor pensa. Tudo o que o senhor acaba de dizer soa falso.

    Fez uma pausa e de novo a ironia cresceu nos seus olhos. Que almas o senhor quer salvar: a minha ou a deles? O padre

    descontrolou-se e no respondeu. O senhor naturalmente vai demorar-se pouco. Mas o tempo suficiente

    para descobrir que aqui no h trs coisas: O rio no tem tartarugas. O mato no tem arara vermelha. E Deus uma coisa completamente sem necessidade... Triste conversa inicial, a nossa!...

    Padre Domingos abaixou a cabea. Era moo e cheio de iluses. Estava na poca em que o homem gosta de agir. No esperava encontrar num branco tamanha adversidade...

    Falou com voz branda: O corao da gente sente necessidade de certas coisas...

  • Mudou de assunto: Tinha-me falado a respeito do senhor... pensei que exagerassem... Isso tambm no tem importncia onde nos encontramos, padre. A

    selva penetra na gente... Aqui o limite da vida. O senhor ficar o tempo que quiser, mas l apontou as casas dos ndios l o senhor no poder penetrar. Somente com permisso federal. O senhor a tem?

    No me falaram disso... Sou um funcionrio e tenho de cumprir ordens... Um vulto se aproximava, sobrecarregado de coisas. Todo o

    aborrecimento do rapaz dissipou-se num largo sorriso. Espia, Quilomo, quem vem l... Dah, o juruna. Saiu para receber o amigo. Dah... Um sorriso de dentes alvssimos iluminou o rosto do ndio que chegava.

    Os olhos pequenos do juruna sumiram, enquanto ria. Como que voc veio parar aqui, seu "cara-de-bode"? Padre desceu de avio no Jacar. Precisou de juruna com zinga, eu

    vim. Me d um pouco dessa carga. Ajudou a carregar os "trens" para dentro do rancho. Os Txucarrames

    aproximaram-se de Dah, sorrindo. Uns alisaram as suas costas ou bateram em seus ombros.

    Os beiudos esto te conhecendo, Dah. Voc lembra do medo da gente na primeira vez?

    Eles 'to muito manso agora? Nada, Dah. Os presentes do posto acabaram. Eles comeam a se

    afastar meio zangados. Voc no teve notcias do Orlando? No mandaram nada de Capito Vasconcelos?

    Ouvi contar que Orlando foi de avio pra Goinia. Foi busca remdio e comida.

    Dentro do rancho, Dah sentou-se num dos bancos toscos. Com os olhos espiava tudo em volta e demorava-se a olhar os rostos dos Txucarrames, procurando reconhec-los.

    Cai tornou a notar a presena do padre. Infelizmente no temos mais caf. Seno ofereceramos ao senhor. Teve um sorriso triste. Faz mais de quinze dias que o caf acabou. O padre levantou-se e dirigiu-se para a carga trazida por Dah. Abriu

    uma sacola e retirou uma lata. Aqui tem caf torrado. Foi da viagem. Depois arranjarei um pouco do

    caf cru que trago. Pelo menos d para alguns dias.

  • O rapaz recebeu sem nada dizer. Procurou Cano. V, Cano. Bote gua no fogo. O Meinaco obedeceu imediatamente. Cai lentamente empurrava a rede... e a vida. Um pouco de paz enchia

    sua alma. Pelas informaes, Orlando no chegaria at onde estavam antes de um ms ou mais. A epidemia da gripe e sarampo acabara em Capito Vasconcelos? Entristeceu-se porque muitos ndios tinham morrido estupidamente. Aqueles nunca mais...

    Fora, os Txucarrames faziam fogueira. Dah permanecia dentro do rancho; no queria aproximao com os Txucarrames por causa do feitio. Encostado na parede, espiando a noite e assobiando, Quilomo na certa fazia os seus clculos para o futuro.

    O padre apanhou um banco e foi sentar-se perto de Quilomo. Interrompeu o devaneio do homem. Na certa, ele no se ambientara

    ainda e sentia necessidade de um calor humano... Disseram que esses ndios cantavam todas as noites... Que canta, canta mesmo... Mas agora eles ficaro zangado e to

    vortando para a aldeia. Fica longe daqui? Uns trinta quilmetro bem marchado... Por que eles se zangaram? Por nada. Ainda no so manso. Pensa que a gente percisa arruma

    presente toda hora. Quando a gente chegou aqui tinha ndio que nem enxame de abeia. De poquinho em poquinho eles vo sumino.

    Isso pode ser perigoso? No bom, no. Eu, se fosse Cai, abria unha daqui... Vocs esto acampados h muito tempo? Um ms e coisa, "seu" vigaro. O senhor j tinha estado aqui antes? Eu vim mais Orlando e Cludio. Ele tambm apontou para a rede

    do rapaz. Esta forma a tercera veis. No comeo foi triste. Os beiudo aparecia nas margens do rio e corria. Era ndio cumo nunca vi. Parecia "grogol" dando em coco. A gente vinha, deixava de passage fumo, pito, uma puro de trem e se afastava. De poquinho eles viero se aproximano. Vinha se encostano de um pau para otro... se chegando, se chegando...

    Quilomo fez uma causa e riu force. Cum todo caboco assim mesmo. Esse que t l dentro, Dah, era

    danado de brabo. Os juruna o senh deve de t passado na aldeia deles junto do Morena era uma gente danada, Nossa Senhora! Dava um frio na gente...

    Quilomo esfregou os ombros com as mos compridas.

  • Falando em frio, esta noite vai s horrvel! O senhor tem coberta boa? Estou bem servido. Bom, vou deita. Meus io j 'to at confundindo a luis das coivara. O

    senh quer sabe de mais arguma coisa?... Padre Domingos riu. Gostaria de saber por que chamam o senhor de Quilomo?... Foi uma graa de "seu" Orlando. Meu nome Jeremias. Mas "seu"

    Orlando disse que eu tenho brao de quilmetro, perna de quilmetro, beio de quilmetro. A fiquei sendo Quilmetro. Despois, cumo os ndios e o povo no falava dereito, fiquei sendo Quilomo. Pegou...

    Voltou para o interior do rancho. Padre Domingos permaneceu ali, fitando o cu estrelado. Toda a selva

    dormia calmamente. Por vezes, apenas um grito estranho sacudia o silncio. Os Txucarrames deveriam estar dormindo. Ficou com pena da pobreza dos brutos. Tanto frio, tanta falta de agasalho, tantas vidas em busca de uma outra vida mais humana, merc do frio que penetrava pelas desabrigadas cabanas soprando entre as folhas secas de banana.

    Voltou-se, lentamente. O lampio bruxuleava, querendo apagar... Os homens encolhiam-se nas redes. Elas estavam paradas. Apenas a de Quilomo dava os ltimos embalos.

    Olhou devagar a mesa tosca, os bancos desajeitados, os homens encolhidos pelo frio e devorados de solido. Sentiu um n na garganta, porque ao seu pensamento voltava a frase do chefe do posto:

    No temos necessidade de Deus! E, realmente, Deus no parecia estar em parte alguma para onde olhasse.

  • Terceiro Captulo - A Segunda Canoa Meia-noite na alma! Despertou enregelado, com a certeza de que se

    iludira. No podia ter dormido. Do jeito que se encontrava, nem mais a paz da noite e do sono se diferenciavam. Doam-lhe as partes mais desabrigadas, porque o frio era mesmo intenso. Fechava os olhos com fora, os dentes se entrechocavam; encolhia-se mais no seu abandono e na sua misria, enquanto a angstia suava passiva dentro do seu peito. Aquilo tambm era a vida. Irritado descobriu a cabea. A luz do fogo era apenas um pontinho minsculo extinguindo-se...

    Enxergou os vultos na rede, todos eles embolados, cabeas cobertas, defendendo-se o mais possvel do rigor do inverno.

    Fez um esforo, desceu da rede. Seus ps tocaram o cho frio. Agachou-se e juntou lenha para uma coivara. Apanhou no fogo uma acha quase extinta e soprou-a. Conseguiu avivar uma chama azulada que depois se avermelhou. Aproximou a lenha e soprou mais a chama. Em pouco, as labaredas ardiam crepitantes. Voltou a deitar-se e esperou que a pequena fogueira dissipasse um pouco o seu sofrimento. Ningum se apercebera do seu gesto.

    O Meinaco dormia sempre do mesmo jeito. O frio parecia incomod-lo menos que aos outros. Era a idade... e ademais, estava acostumado... era uma parte da selva...

    Fixou a vista nas chamas ondulantes, esforando-se, tentando dormir. Tudo intil! Sentia ali junto rede, a presena "dele", do padre. Antes dele, a vida j se tornara agressiva, suja, bbeda. Por mais que fizesse fora, caminhava cego para a bebida, com vontade de estourar, rebentar, sumir, sobretudo esquecer. E agora, quando ele se fosse? Preferia que partisse logo. Sentia-se mal, recordando os ltimos momentos, as ltimas horas. Tudo era confuso e terrvel. At as costas doam pelo esforo do machado na roa. Doam tanto como nos primeiros dias, quando aportara ali. A derrubada da pindaba, o arrastar da madeira at onde estavam. A apara das estacas para fabricar um rancho. Um "posto". Ridculo chamar tudo aquilo de "posto". Posto da misria e fome, praia da cachaa, albergue da indigncia e do frio. Orlando que no viesse logo e no sabia o que estava para acontecer. Recordou-se da frase de Orlando: ou seria de Cludio? "Juzo... eu tenho confiana em voc..." Antigamente, ele prprio tinha confiana no que fazia. Naquele tempo havia amor no que praticava. Agora, s dio. Tudo fedia a rancor, tristeza, maldio e desgraa. Quando Orlando chegasse, proporia voltar para o Araguaia. No! Mil vezes, no. Todo mundo sabia de sua

  • histria. Quando passasse em qualquer parte comentariam, s suas costas, sobre o assassinato. Todo crime tem um tringulo... sempre dois homens e uma mulher... "Eu sou mesmo uma besta. Matei um homem por causa de uma amante. Foi. S que esse amante de minha amante tinha uma mulher e filhos. E o jri? Coisa absurda e injusta. Inventaram a legtima defesa, porque fora um jornalista clebre, porque estivera, como bom correspondente, na guerra, prestara bons servios em desbravamentos... sertanista! Manchetes de jornais... sertanista de merda! Isso sim! Inventaram por causa da sua frustrada dignidade: legtima defesa. Tudo errado. Sim, porque matara sem pena nenhuma. Foram seis tiros disparados de cara a cara. O corpo caindo e a bala comendo... o corpo emborcado e um resto de luz sem significao nos olhos que paravam... legtima defesa..."

    Rolou na rede. No queria pensar nisso. No valia a pena. Que condenao maior havia

    do que o presdio na selva, onde os guardas eram botocudos nojentos, imundos, famintos e traioeiros? Ora, os juzes sabiam que aquilo era pior do que qualquer cadeia. No se lembrava bem, porque naquela poca uma apatia tremenda o possura. No se recordava das sesses, do que o advogado ensinava, do que a acusao dizia. Eram muitas e muitas horas. Dedo contra sua conscincia. Calor. Gente enchendo a sala. Gente tentando varrer-lhe o ntimo. Gente sedenta de condenao querendo v-lo derrotado, humilhado. Palavras e palavras. Bocas sua frente, falando, falando. Uma verdadeira loucura. Depois... de quem viera a idia de que ele era um homem que ainda poderia ser til sociedade? De quem? Os seus feitos, suas viagens de meio aventureiro, pesavam bem e mesmo no houvera crime. Tudo legtima defesa. Um absurdo!

    A cara dele, do padre. Uma cara boa. Sentia-se mal, porque recebera um branco daquele jeito. Duramente,

    cruelmente. E na selva, depois de tantos dias de viagem, quando dois brancos se encontram, so verdadeiros poos de ternura e fraternidade. Os olhos dele o fitavam desconfiados; por mais que disfarassem, havia neles a pergunta silenciosa: Cometeu o crime ou foi legtima defesa? Viajara para ali ora que estpido! para salvar almas, pois que era missionrio de Cristo. Alma de quem? Os Txucarrames tinham alma? Quilomo tinha alma? Ele tinha alma? E o Meinaco, que vivia no cu da loucura branda, tinha alma? Viajar tanto, para qu? Frias de batizados, frias de missa, fuga de beatas? Sabia l... O essencial consistia em no deixar transparecer sua culpa, sua tremenda culpa. No tinha remorso. Nem mesmo a mulher que...

    No! No! No queria pensar. Prendeu as mos na cabea, tentando esmagar os pensamentos. Jurara que no pensaria mais. Estava traindo todos os seus propsitos. Ento? Ento...

  • Revolveu-se mais na rede. O suor escorria pelas axilas, apesar do gelo em sua fronte.

    Resolveu tornar-se cnico defendendo-se de si mesmo. "Bem. Matei, e da? Matei como se mata a um co. Descarreguei

    somente seis tiros porque no havia mais munio na arma. Sa de casa para matar. Tive sorte porque ele tambm estava armado e no tinha licena para carregar a arma. Eu no era um heri de guerra, um sertanista, um jornalista, cuja pena lanava fogo e destruio? O desgraado tinha pssima pontaria. Nem discutimos; atiramos ao mesmo tempo. Ele parou logo porque era mau atirador. No me incomodei com seus olhos parados. No tive uma reao de fuga. O homem estava dormindo com a minha amante. Para o pblico, ele, casado, deixando uma mulher sofrer privaes com os filhinhos... sempre os filhinhos tm o maior quinho de fora nas tragdias e ajudam as absolvies. No, nem me impressionei com os seus olhos parando, perdendo a luz. Desagradvel foi o ajuntamento. No fugi, entreguei a arma... pronto. Estou aqui. Os botocudos no sabem de nada. Quilomo, se conhece minha histria, no ter capacidade para cont-la. O Meinaco me quer mais bem do que a um pai. Coitado, pensa, na tragdia de sua vida, que o meu filhinho..."

    Conseguiu acalmar-se aps o conflito que tivera consigo mesmo. Fitou a fogueira que distribua mais calor. Os vultos embuados. Quilomo! Quilomo ia embora. Isso sim, dava tristeza. Viera acompanhando-o dessa vez, com certeza obrigado. Porque pretendia viajar para mais longe. Cortar o Araguaia, o Tocantins e tantos outros rios para buscar sua noiva pequena, mida, que teria de "esticar-se ou ele encolher". Riu. Quem diria que um preto daqueles tinha uma noiva chamada Margarida? No que deixasse de merecer. O preto era uma jia. Nenhuma estrela do cu tinha a beleza de sua alma nobre e amiga... Quilomo... Mas Margarida era um nome engraado... tinha os cabelos ruins...

    O fogo dava estalos embaladores. Os olhos se fechavam agora, o cansao tomava conta dele...

    "De hoje em diante, nunca mais pensarei no que passou". Dormiu com a cabea pendente, fora da rede. Durante trs dias mais, manteve-se naquele silncio em presena do

    padre Domingos. Tentava compreender seus pontos de vista. O homem castrara-se espiritualmente, gostava de Deus, vivia para Deus. Era assim mesmo... uma das maneiras que na vida muita gente escolhe para operar...

    No discutia, porque nem sequer tinha vontade de falar. Breve ele partiria, com o seu sorriso plstico de bondade e nunca mais, possivelmente,

  • escutaria sua voz... ou recordaria seu rosto de barba feita... ou seu hbito branco, de acordo com o calor dos trpicos, sempre limpo e asseado.

    No se incomodou com sua presena. At que fora camarada, dividindo alguma lataria, caf e acar... Se ele quisesse falar com os ndios ou presente-los, que o fizesse, pois os dias passariam. Por vezes, tinha certeza de que o padre, sem prtica, lastimava a presena de um bruto como ele lidando com os caiaps. Um bbado de olhos vermelhos, sujo e fedendo a barro, duro, sem um resqucio de bondade, dando uma idia do que era o corao humano aos silvcolas... ria por dentro. Na sua santa ingenuidade "ele" misturava tudo. Nem de leve desconfiaria de que os beiudos estavam ali pelos presentes. Quando acabasse o estoque... idiota!...

    Via o padre a distribuir espelhinhos, colares, tentando cantar com eles. Ser que o padre Domingos acreditava no furor sanguinrio com que os Txucarrames tinham assassinado (e com razo) os seringueiros que invadiam as suas terras? Acreditava, nada! To bons e to dceis!

    Que ordem era aquela que dava permisso a um padre, que nunca vira selva, a penetrar no mais bruto serto brasileiro? Talvez embevecido pela idia de Deus, padre Domingos estivesse sondando a possibilidade de incrementar ncleos religiosos para o futuro. Misses e outras coisas que cresciam por toda parte como a erva daninha. Sacrifcios inteis e trabalhos incompletos. Vcios incontrolveis; trazer a idia de Deus, cu e inferno, produzir no crebro do bruto o caos absoluto...

    Ainda bem que ali j fora fincado o marco do S.P.I. e se tornara zona proibida "fabricao" de novas almas santas. No se tomava de cimes quando o padre se aproximava dos Txucarrames, para mim-los. Longe ainda o perigo da catequese, se bem que todas comeassem do mesmo jeito. Entretanto, at que conseguisse aprender meia dzia de palavras daquele linguajar to complicado, precisaria dispor de tempo. Quatro dias no chegavam para nada. Se fosse com os Carajs ou Javas... irritar-se-ia e muito. Alguns anos de sua vida foram gastos com aqueles ndios, mas os Txucarrames no tinham conseguido nenhuma grama de sua ternura...

    Restava esperar o pior, o momento da partida... a hora em que Quilomo, balanando e empalidecendo os beios carnudos, chegaria sem jeito e de olhos fitando a terra, para lhe dizer:

    Cai, se o senh num se importa, a gente viaja amanh. A Lua deu de cresce e a gente pode aproveita um pedao da noite...

    No perguntaria ao negro por que tanta pressa. Nem pediria que retardasse de um segundo sua viagem. Era lei da selva; ningum se sacrificaria a outrem sem que houvesse um motivo de fora maior. Pedir-lhe que desistisse da viagem... demonstrar que iria ficar na mais brbara solido... isso nunca. J fizera planos para receber esse momento com a

  • maior indiferena. Quilomo mesmo empregara certa vez uma frase que lhe servia muito agora: "Vive em serto bruto o mesmo que vive pisando em arraia de fogo". Desconhecia melhor comparao. O serto era a arraia traioeira, pintada, com o esporo cruel pronto para ferir sem escolher. Impor o sacrifcio de permanncia ao negro atestaria o seu egosmo. E sua vida no valia tanto. Melhor dito, no significava nada...

    tardinha, quando se aproximava a hora do jantar, o rancho se enchia de Txucarrames. E eram todos uma doura coletiva para o padre Domingos. Ele deixava at que as crianas, e mesmo os grandes, enfiassem os dedos no seu prato e retirassem pedaos ou bolas de comida, enquanto pronunciavam: "Mitire.. Mitire..."

    Que quer dizer mesmo "mitire", Cai? Bom, bonito. Eles esto dizendo que o senhor muito bom. Ria por dentro. Que adiantava dizer ao padre que ele estava errado,

    permitindo toda aquela intimidade? Isso se fazia com os velhos ndios j amigos de muitos anos de contacto. Porque esses saberiam manter um limite e nem se zangariam se aquela intimidade fosse vetada alguma vez. Se chamasse a ateno sobre o que se passava, o padre criticaria em silncio aquela sua mania de demonstrar sertanismo, de ser dono do assunto. O tempo, com sua justeza e indiferena, que resolvesse tudo. Se um dia o padre Domingos desse mesmo para missionrio, aprenderia a diferenciar as coisas. O mesmo acontecera h alguns anos, na barra dos Tapiraps, quando missionrios americanos, querendo ser "bonzinhos demais" emprestavam as espingardas 22 para quem pedisse. Depois, as armas eram passadas para outros e desses para mais adiante. Resultado: um dia quiseram saber das armas e encontraram coronhas sem cano e canos sem gatilho. Ento eles descobriram que, para emprestar, precisavam saber a quem, ndio era assim mesmo...

    Quilomo achegou-se da rede de Cai. No qu com, Cai? Deixe um prato para mim junto do fogo. Balanou a rede e lembrou-se de Cludio Vilas Boas, que sempre comia

    depois dos outros, e tinha a mania de deixar o prato no fogo para mais tarde.

    Quando acabaram de jantar, Dah, o Junina, pegou o bolinho de sua rede e a coberta ensebada. Com pacincia estendeu a tipia...

    Cai comentou: Tu um juruna muito sem-vergonha, Dah! Onde j se viu preguia

    maior? Manda a mulher fazer uma rede grande. Agora fica a todo encolhido parecendo uma guariba.

    Dah riu.

  • J acostumou, Cai... Depois meteu-se na rede, encolheu os joelhos com as mos entre eles. S

    a cabea apoiada continuava de fora. Com os olhinhos brilhantes espiava tudo. Observava o padre Domingos enchendo o caneco no pote e oferecendo gua para os Txucarrames.

    Dah olhou significativamente para Cai. Parecia adivinhar-lhe os pensamentos. "Vai mal, vai mal"... Estava dando mau costume queles bichos. No dia seguinte, quando o pote se encontrasse seco, nenhum deles seria capaz de ir at o rio para ench-lo novamente. No fosse Cano ou ele mesmo...

    O padre Domingos ficou sentado por uns momentos no banco e bocejou forte.

    Os ndios, j sem ter o que comer, e cansados das "carcias" cio padre iam desaparecendo. Chegara a hora do frio e do sono.

    Cano entrou no rancho com uma braada de lenha seca. Jogou-a a um canto e sem cerimnia trepou na rede de Cai. Cai pegou as mos do menino e cheirou-as.

    Est danado, fedendo a peixe! Mas no se incomodou. Melhor seria observar o sacerdote. Padre

    Domingos bocejou, cocou o peito, levantou-se, distendeu os braos, espreguiando, passou a mo na barba para verificar o comprimento e veio vagarosamente em direo rede.

    Quilomo gentilmente desenrolou-a e ligou as cordas dos punhos na madeira do rancho.

    O padre bocejou, agradecendo, sentou-se, tirou as botinas, deitou-se, puxou a coberta.

    A gente fica to cansado aqui, que nem tem vontade de rezar. Ainda bem que me dispensaram de dizer missa neste serto. Tambm, como poderia trazer os paramentos e outras coisas nessas viagens?

    Cai pensou em redargir. Dizer que j viajara com um padre que trazia tudo aquilo... No ntimo, gostou da franqueza do sacerdote. Era sinal de que estava se humanizando.

    Esses ndios so verdadeiras criancinhas! Adorveis!... Voc, Cai, no nota porque j deve ter-se acostumado...

    Deve ser isso mesmo. Sentiu o brao dormente sob o peso da cabea do Meinaco. Olhou e viu

    que seus olhos estavam fechados... Cano... psiu!... Sacudiu o menino com brandura. V armar sua rede, meu filho. Seno voc pega no sono aqui mesmo. O ndio obedeceu. Enquanto Cai esfregava o brao teve uma idia

  • sbita: Padre Domingos, o senhor conhece Dah? Esse a? Esse mesmo. Ns somos amigos. Viajamos juntos. Vou pedir que ele lhe conte uma histria. Dirigiu-se para Dah e comentou qualquer coisa em camaiur. Insistiu.

    Os olhinhos matreiros de Dah estavam fixando o padre com desconfiana. Estou pedindo para ele contar uma histria. Vou puxar o fio... Novamente virou-se para Dah. Conte, Dah. Padre Domingos amigo. Foi Jub quem matou os dois

    camaiurs, no foi? No me lembro bem... No, Cai. No foi Jub, no. Foi eu. O rosto do padre Domingos mostrou espanto e ateno. Pois olhe, Dah, eu estava certo que tinha sido Jub. Foi no. Foi assim. Falava mido, manso; quase no se escutava o que dizia. E no era

    medo, no. Na aldeia dos juruna tinha dois camaiur que foi roubado em

    pequeno. Assim; mostrou com a mo o tamanho dos ndios eles ficaro grande l e no fugiro no. Um dia morreu Parrai. Eu disse pro meu tio: eles que to botano feitio. A, morreu outro juruna. Meu papaizinho Toru ficou doente e morreu. A eu falei pro meu tio: Camaiur est matando tudo de feitio. Vai morrer tudo juruna. Vamo mata eles? No, disse meu tio. Vamo, home. Voc tem medo? Pois eu vou... sa e procurei um deles.

    Eva, vamo mata mutum? Est de noite. Vamo, home. Voc 't cum medo? Ele veio; quando cheguei longe dei com borduna nele. Pegou na cabea e

    ele morreu todinho. Voltei l e falei pro outro. Tamacu, vamo mata mutum? Est de noite. Vamo. Voc num home? 'Ta cum medo? Ele veio. Quando estava longe eu dei de borduna nele. Borduna pegou

    no ombro e ele morreu. A, eu bati na cabea e ele morreu... morreu todinho. Juntei os dois, fui na canoa pro outro lado do rio pra eles no fede junto da aldeia e pronto...

  • E depois? Depoge, nada. Voc no ficou pensando muito neles? No! Nem ficou com pena deles? No. Deitou-se e enroscou-se na coberta ensebada. Cai comentou: Pois , padre Domingos. Tudo uma questo de higiene. Os homens

    estavam dando feitio. E ningum pode negar que esse ndio no amigo. Cludio disse que encontrou os dois corpos com a cabea separada dos troncos. Entretanto, esse amigo mesmo. Quase dez anos de contacto com a gente. Quer ver uma coisa? Dah!

    Hum? Voc gosta de caraba? Gosto. Gosto de Orlando, Cludio, Leonardo e Cai. E do padre Domingos? No. Voc matava ele? No. Pra qu? Cai levantou-se para apagar o lampio. Padre Domingos perdera o sono

    e podia rezar o que bem quisesse, porque a noite era longa. Ficou impressionado com a descoberta. Aquele era o ndio com quem viajara sozinho dias e dias, dormindo ao seu lado, nas praias...

    Quilomo tinha chamado Cano e levou-o para longe. Falou com as mos,

    com os olhos, com os beios pendentes. Falou com a alma. Olha, Cano. Olha para mim. Veje se tu me intende. Os olhos do ndio fitavam indiferentes o preto. Faa um poo de fora. Eu, o padre e Dah vamo imbora. Intendeu?

    Imbora fez o gesto indicando a subida do rio. O ndio estava num dos seus momentos de loucura e indiferena. S

    compreendia o que "titio" falava. Quilomo desesperava-se. Depositou a mo sobre o ombro da criana.

    assim. A gente vai embora. Tu fica cum Cai. Num deixa ele faz mar prs ndio. Num deixa, no. Leva ele pra pesca. Pra caa. Num deixa ele beb muito... Compriende?

    Os olhos do Meinaco estavam sem brilho. No entendia nada. Cano. Eu s teu amigo. Num deixa Cai martrat os ndio. Seno os

    ndio mata ele. Fez o gesto da bordunada. Em seguida, da flechada. Nem uma rstia de

  • luz nos olhos parados. bobage. 'To perdeno tempo. Ele s intende mesmo Cai. Soltou a

    mo que caiu pesada e balanando. Virou-se e procurou o rio. Estavam arrumando as cargas. Os Txucarrames vinham satisfeitos

    trazendo caixotes e volumes pequenos. Cai apreciava a cena. Quando o padre fosse embora, voltariam a se

    tornar carrancudos e sem dirigir-se a ele. Talvez que nos primeiros dias, por causa da comida, ainda se achegassem, depois...

    Quilomo conversava com Dah. Vou corta uma zinga das boa. Voc numa e eu notra, batendo gua o

    dia intero e um pedao da noite, a gente chega logo... Cai veio escutar a conversa. Pra que mais de uma zinga? Pra ele e eu. Cai sorriu. Basta uma. Voc vai levar minha canoa. A que nos trouxe. Todos encararam Cai firmemente. Julgavam que estivesse brincando. Falo srio. Isso no tem utilidade nenhuma pra mim. Quando muito

    usaria para pescar. Nesse caso vocs trocam. Eu fico com a canoa de Dah e vocs levam a do Servio.

    Padre Domingos no sabia o que dizer. Quilomo pensava rapidamente. Tinham que aceitar. Quilomo no ignorava que Cai, cedendo a canoa, perdia o contacto e a possibilidade de fugir, se precisasse. Perdia qualquer ligao com a vida... Chamou o padre de lado, longe, para que ningum escutasse.

    O senh pode arruma gasolina no posto do Jacar? Posso. O senh devorveria a gasolina que a gente gastasse at l? Devolveria. Ento precisamo aceit o mot. Despois na viage eu exprico. Retornaram ao local anterior. Que que resolveram? Quilomo, voc est cheio de mistrios! Padre Domingos tem gasolina. Voc impresta o mot e no Jacar ele

    d de vorta. bom, pruque eu to cum pressa. Pressa de deixar um amigo?... Quilomo gaguejou e apenas pde inventar esta desculpa: No. que eu quero cheg logo. Preciso viaja. Casamento num

    espera. Quilomo, no seria melhor voc levar o Meinaco? Nunca! Ele sua nica ajuda aqui. Despois, ele prifiria morre a ir

    s'imbora.

  • Ele criana, no tem querer... Experimente, entonce. Gritou pelo menino que estava vendo a canoa. Cano... Aproximou-se correndo. Cai fechou o semblante e falou srio: Voc vai buscar sua rede e suas coisas. Voc vai voltar para perto de

    Cludio. Os olhos tiveram lampejos de inteligncia. O sorriso morreu no rosto e

    dava a impresso de que uma ligeira palidez o atacava. Abraou-se ao rapaz e s conseguiu dizer "titio", escondendo a cabea contra o corpo de Cai.

    bobage. Ele morre se a gente leva... Comearam a preparar-se para a viagem. Cai olhou o cu. So duas horas e pouco. Ainda d para vocs pegarem um pouco de

    estrada. O motor foi colocado. Tudo pronto. Sobr umas lata de gasolina, Cai. Ficou no rancho. A que vocs tm, chega? Chega. Veio o momento da despedida. Cai trancou o corao e abriu um sorriso

    que no conseguiu disfarar sua tristeza. Por um segundo tentou no compreender o significado da mo do padre que se estendia e no ouvir a voz agradecendo a permanncia.

    Na vez de Quilomo s enxergava os lbios grossos e trmulos que teimavam em fazer compreender o motivo de sua partida. Num gesto de emoo incontida, apertou o preto entre os braos e sentiu toda a fraqueza de seu destino. E quando deixou o negro desprender-se daquele abrao, continuou sentindo aquela certeza: o tamanho do grande vazio de seu pequeno mundo.

    A embarcao desgarrou do porto e o motor funcionou. Na barranca do rio, Cai sentou-se para acompanhar o afastamento da canoa, subindo a correnteza: o motor cantando forte; o vulto de Quilomo de costas; o padre sentado mais frente... Dah dominando a proa...

    Eles iam para o Kuluene, subiriam o Tuatuari e encontrariam o posto Capito Vasconcelos, de onde vieram estupidamente e no fazia muito tempo.

    No queria ter pressentimentos; todavia, perdia a ltima coisa que o ligava ao passado e vida.

    Partia a segunda canoa...

  • Quarto Captulo - O Posto Capito Vasconcelos Comeava a entardecer. Uma calma morna estendia-se por todos os lados. Cludio Vilas Boas

    dedilhava, ao que parecia, uma velha valsa de Canhoto, na viola duas vezes colada e transformada em violo. Nesse momento seus olhos fixavam-se ao longe. Estranho aquele modo de agir. Os culos de aros antigos no impediam a fuga de seus sonhos. Ningum pensaria tambm que ele sentisse falta de alguma coisa. Na mata, no corao selvagem do serto, nisto resumia-se o seu mundo: um chinelo, uma rede e ela cercada de crianas, grandes e pequenas. Grandes e pequenas tinham a mesma mania de deitar-se na rede. Nunca era vista uma delas que no estivesse cheio de gente. Todos se espremendo, todos se acomodando. Pouco' se lhes dava se aquilo causava dano ou incmodo, ou mesmo, se quem procurava deitar-se se sentia muito cansado...

    A msica prosseguia e os olhos de Cludio continuavam fitos ao longe. Seu rosto adquiria mais palidez e sua barba pontuda mais negror, embora j alguns fios brancos nela despontassem. Seus olhos talvez buscassem, naquela fuga para o infinito, alguma coisa que ningum jamais suspeitaria o que fosse. A valsa quase sempre era entoada tarde, quando o calor aumentava e quando no estava programada nenhuma excurso pelo misterioso Xingu, ou pelo Kuluene cheio de surpresas. Ento, sim; era preparar os motores, ajeitar as canoas, juntar toda espcie de presentes, pegar a munio que nunca seria utilizada para matar um ndio, chamar os que quisessem seguir... Orlando apanhava um chapeuzinho ensebado irmo do chapu igualmente sujo, de lutas, de Cludio e quase em silncio, porque ningum precisava falar muito, iam atender alguma tribo, descobrir novos rios, batizar novos lugares, pacificar os que continuavam a no desejar contacto

    com a civilizao e distribuir compreenso, amor e presentes... Cludio parou e virou-se para Cai que se balanava perto: Meu repertrio sempre o mesmo. O outro sorriu. 'Tava bonito. A verdade que a msica o enchia de amargura. Fixava as mos

    bondosas de Cludio, que tinham o dom de ser fortes e por vezes de se tornarem violentas, e seu peito ia enchendo-se de tristezas. Ento, sentia vontade de erguer-se, caminhar at ao Rio Tuatuari, para banhar-se em suas guas geladas e transparentes, recobrar nimo e afastar aquele gosto amargo da boca... mas no ia, o corpo deixava-se ficar como castigo; apenas podia

  • enfiar o p na parede e ensaiar um novo gesto de indolncia... Kaxinavi, a pequena camaiur, nuazinha como todas as crianas, ergueu-

    se do cho e juntamente com Katsamalo, outra indiazinha que tinha um defeito nos quadris, aproximou-se da sua rede.

    Cai... A voz era doce e mida. Ele virou-se e sorriu. Tinha visto nascer aquele

    diabinho. Kaxinavi encostou-se rede e foi escorregando para dentro. Suas mos

    acariciaram a barba do rapaz. Por fim, deitou-se a seu lado. Katsamalo imitou-lhe o gesto.

    Elas falavam e mexiam com o rapaz. Misturavam o portugus aprendido, com a lngua de origem. Por qualquer coisa riam.

    Cai, quiarr p? Quiarr... Voc quer ir banhar? Daqui a pouco ns vamos. Quiarr... Pegou na mo de Cai e puxou-a. J pulara ao cho. O rapaz levantou-se

    molemente. Mas eu no vou de jipe. Est precisando consertar... Notou que as crianas ficaram meio desapontadas. Todos gostavam de

    utilizar o jipe para qualquer coisa; para apanhar jarras d'gua, para ir ao banho ou mesmo para carreiras pelo campo de aviao. Bastava que Cludio acionasse o motor e viam-se vultos escuros correndo, cada qual esforando-se mais para conseguir melhor acomodao. O jipe ficava preto como se estivesse coberto de formigas grandes.

    Vamos... Mas as duas no se movimentaram. Sabonete, Cai... "Suas" diabinhas, vocs no esquecem nada. Cai olhou para Cludio. Vamos tomar banho? Agora no. Vou dar uma espiada no que temos para jantar. Saiu do

    rancho. J agora no o acompanhava somente Katsamalo e Kaxinavi. Outro garotos e ndios feitos seguiam-no. Todos gostavam de tirar sua parte do sabonete.

    E voc, no vai? Cai parou junto de um toquinho de gente que o espiava. De quem esse? filho de Lituari, o truma. Quiarr? O garotinho suspendeu os braos. Seu instinto dizia-lhe que ele era

    muito pequenino para fazer a caminhada at ao rio, naqueles pezitos midos. Vamos, "seu" moo...

  • Abaixou-se e tomou a criana nos braos. Depois enfiou-a a cavalo sobre os ombros. Sentia o calor de suas pernas gordinhas e queimadas roando-lhe contra o rosto barbado.

    Naquele instante esqueceu-se de tudo e sentiu-se um pouco como antigamente.

    Atravessaram o campo de aviao e tomaram a estrada do rancho. Com o suor grudava-se-lhes nos ps a camada de poeira. Estava bem quente mesmo. Dali a trs horas, porm, o frio viria rondar toda aquela mataria e o rancho.

    Desceram a barranca. Depositou o menino no cho. Sabe que voc est ficando pesado, "seu" moo? A meninada atirou-se na gua transparente, formando ondas que faziam

    as canoas se balanarem. No rio, algumas mulheres, depois do banho, vinham saindo com as jarras

    grandes sobre a cabea. E os colares azuis escorriam gua, os cabelos negros tornavam-se ligados e mais lisos.

    Passavam por ele e sorriam. Pueric, Cai... Boa tarde. Elas iam subindo a ladeira, ondulando as ndegas, sempre arredondadas

    pelo esforo da subida e pelo peso sobre a cabea. A meninada ruidosa ficava chamando. Cai, quiarr p? Espera que j vou. Comeou a despir-se. Olhava as guas claras do Tuatuari e via os corpos

    mergulhando nelas. Pisou de leve. A gua estava fria. No ms de junho e julho o banho ali

    era gelado. Era preciso tomar coragem e entrar n'gua depressa... os mosquitos piuns ajudavam na deciso.

    Cai, p er crie... Os outros gritavam em coro: Cai, p er crie... Ele ria. No estou com medo, no, "seus" "caras-de-bode". Mergulhava

    rpido e via-se imediatamente assaltado por todos os lados pela garotada; agarravam-lhe as pernas; subiam-lhe pelas costas, seguravam-lhe os braos, numa algazarra de ensurdecer.

    Um mais rpido tomava-lhe o sabonete da mo e esfregava-se ligeiro. Outro avanava e apossava-se do sabonete. O sabonete afundava, eles mergulhavam alegremente e iam busc-lo.

    Depois juntavam pedras e jogavam-nas nos lugares mais fundos e disputavam para ver quem as apanharia primeiro.

  • Sentiu saudades dos carajazinhos do Araguaia. Talvez nesse mesmo instante eles estivessem fazendo a mesma coisa. Os carajs, to suaves, to doces e to nobres, que muita gente costumava chamar de ladres, de ndios sujos e mentirosos. Muitos no possuam compreenso humana, por isso no lhes davam o merecido valor. Lembrava-se das praias de Santa Isabel e da meninada lutando, chamando-o para o banho; da crianada pedindo-lhe anzis, brinquedos, tudo. Fora ele quem lhes ensinara a fazer papagaios. E era uma balbrdia danada quando todos queriam papagaios ao mesmo tempo. Formava uma fila dos impacientes e via-se atrapalhado sem saber como arranjar papel para satisfazer a todos. Ficava com os dedos grudando da cola mal feita de farinha de mandioca. Quanta coisa eles queriam...

    E as bolas de gude! Jogavam com uma brutalidade incrvel, esforando-se para espatifar a do adversrio. E s queriam bolas novinhas. No compreendiam nunca por que aquilo se acabava ou por que Cai trazia to poucas...

    Ensaboou mais o corpo. O vento da tarde agitava docemente as palmeiras que nasciam dentro d'gua.

    A meninada tinha atravessado o rio e punha-se a pular na outra margem. Cai mergulhou para tirar o sabo e quando voltou tona, deu com o

    filho de Lituari sozinho beira do rio, espiando, sem reclamar o seu quinho na brincadeira dos outros. Ele, como todo filho da mata, era paciente... e sabia que seu dia de brincar viria com o tempo.

    Pobrezinho! Encaminhou-se para ele. O corpo pequeno s enfiava os ps n'gua. Por

    certo o instinto o avisava de que o rio, enquanto no pudesse venc-lo, era um inimigo perigoso.

    Quiarr? Ele sorriu e novamente levantou os braos. Trouxe o garotinho para o fundo e mergulhou, deixou que ele se

    debatesse alegremente, agitando os braos, e brincasse espadanando gua sobre o seu prprio rosto.

    Depois colocou-o sobre a canoa e comeou a ensabo-lo. A voz indecisa murmurou: Catu!... Catu, sim, "seu" "cara-de-bode". Desse tamanho e j sabe o que

    bom. O garoto estendeu o brao e indicou o rio: Poinh-nh ipir... Cai riu. Sim. Muito peixe. Tudo isso para voc, quando crescer. Voc vai ser

    dono do peixe, do rio, vai ter seu arco e suas flechas, vai viver pedindo anzol

  • a Cai, a Orlando, a Cludio, pensando que a gente tem fbrica... mas no importa... agora, vamos, pule...

    O corpo do menino, brilhante de espuma, o que fazia com que se acentuasse mais a cor queimada, ficou indeciso. Os olhos fixaram-se em Cai...

    Vamos, pule... eu seguro voc. O corpo oscilou e caiu n'gua. Cai imediatamente segurou-o e sorriu. O

    medo desaparecera do rostinho inquieto por segundos. Agora tinha novamente adquirido a confiana no amigo...

    Catu, Cai... Ah! Malandro, j aprendeu meu nome em to pouco tempo...

    Carregou o menino para a beira do rio. Comeou a vestir-se mesmo sem enxugar o corpo.

    Um grito veio de cima da lareira. Ei! Cai!... Suspendeu os olhos. Era Tacunim, o camaiur. Tacunim fora um dos

    primeiros civilizados; ajudava muito aos irmos Vilas Boas; falava quase bem o portugus.

    Cai, Cludio mandou chamar voc depressa... Acabou de vestir-se rapidamente e encaminhou-se para junto de

    Tacunim. Mas esse j se adiantara apressadamente em direo do acampamento.

    Vamos, "seu" mole! Suspendeu o filho de Lituari sobre os ombros. Assim melhor, no? Caminhou mais rpido do que viera. Por que Cludio mandara aquele

    recado? Alguma coisa de grave... O sol comeava a esconder-se. Os papagaios aproximavam-se dos

    grandes jatobazeiros e ficavam discutindo numa algaravia que nem Deus entendia.

    As ltimas juritis chamavam os companheiros para o ninho. Milhares de rudos enchiam a mata, com o morrer da tarde. Alto, muito alto, uma gara solitria ia em busca do Kuluene...

    Observava tudo aquilo, quando foi despertado daquela espcie de sonho pelas crianas que vinham em correria, gritando seu nome.

    O vulto do rancho grande aparecia, destacando-se majestosamente,

    cercado das outras pequenas casas de pindaba. Tudo aquilo tinha sido obra dos Vilas Boas, depois que a Fundao Brasil Central os obrigara a retirar-se do posto do Jacar, no Kuluene. Quando pensavam nisso, uma onda de

  • revolta ainda os estremecia a todos. Cai olhou para os lados e observou a luz que se fazia nas outras

    cabanas, totalmente de palha, que serviam de abrigo a qualquer tribo que viesse visitar o acampamento. Hoje, eles se davam bem, razoavelmente bem. Porque h alguns anos passados, quando diferentes tribos se visitavam, havia no posto Capito Vasconcelos a mais simptica cordialidade. Depois que dali se afastavam e se encontravam no mato, podia sair at morte.

    Nunca o acampamento ficava totalmente vazio. Quando isso acontecia, o que era raro, tomava um ar de tristeza muito grande. Quase sempre os camaiurs, que eram mais numerosos e talvez os primeiros a adquirir o contacto civilizado, permaneciam junto dos Vilas. Suas aldeias eram mais prximas. Devido a essa aproximao maior, um fenmeno curioso se manifestou e espalhou-se pela regio: como os irmos Vilas aprenderam a falar o camaiur, todos os outros ndios de diferentes naes comearam a aprender o idioma para entrar em contacto com os brancos. De maneira que com o correr do tempo, a lngua camaiur ficou sendo quase uma frmula obrigatria para que todos se entendessem. E foi uma soluo justa imposta pela natureza sbia, porque todas as casinhas feitas para receber os ndios estavam cheias de camaiurs, ualapetis, uaitis, kuikuros, cajabis, trumas e s vezes jurunas. Mais raro ainda os uaurs. Breve, e era esperana do Servio de Proteo aos ndios, ali tambm apareceriam os terrveis caiaps, chamados pelos ndios de Txucarrames. O Servio j procurara aproximao, umas duas ou trs vezes, na aldeia deles, l perto da cachoeira de Von Martius. Era do plano de Orlando Vilas Boas fazer um pequeno posto e um campo de aviao. Talvez no prximo vero. Os Txucarrames mostravam-se mansos agora e sedentos de civilizao...

    Cai sorriu. E quando fosse a vez dos suis?... Bem, esses iriam demorar muito.

    Recordou-se do caso de Cludio Vilas Boas, que correra dos suis, com flechas caindo por todos os lados; Cludio parar, apanhara trs flechas como lembrana e curiosidade, e em seguida, sem que desse um s disparo para assust-los, recomeara a fuga... Coisas bonitas do serto, que ningum sabia.

    S o fato de construrem aquele rancho, carregando madeira da mata cheia de pium; a escavao do cho, a disposio de tudo, a montagem dos paus, a confeco do telhado, dando um aspecto decente casa erguida no pleno abandono da selva, era grandioso. Quem no conhecesse essas coisas, nunca poderia avaliar quanto custara tudo. Depois, vinha o campo de aviao, o cuidado de conserv-lo bem, porque sem o auxlio de fora a vida tornava-se madrasta. Os brancos eram poucos e se os ndios no quisessem oferecer ajuda, no seria justo obrig-los. As bandeiras modernas no

  • possuam o direito das de outrora: a fora da morte. Depois do rancho principal feito, vinham os menores, em volta. Nesses

    os cajabis ajudavam muito. Erguiam pequenas casas bem feitas e arejadas. Cai tornou a sorrir, enquanto continuava imerso nesses pensamentos. Os cajabis eram engraados. Tinham uma natureza ciumenta... por vezes

    seu cime era doentio. Gostavam de andar sempre limpinhos. Passavam o dia na roa plantando mandioca, que os outros que no ajudavam comiam. Atrs do acampamento, faziam as suas prprias casinhas... Chegavam ndios de fora, exigiam morar nos lares dos cajabis. Pois eles no brigavam; saam, encolhiam-se todos no mesmo rancho, at que se resolviam a fazer novas casas. Orlando e Cludio resolveram dar fim quela histria. Quem chegasse e quisesse permanecer no acampamento que fizesse as suas prprias casas. Eles prometiam uma, duas vezes, mas, um dia, esqueciam-se de tudo; ou ficavam morando nas velhas cabanas que a chuva no destrura no tempo das guas, ou davam um jeito de se acomodarem em qualquer canto, sem o trabalho de levantar casas bonitas...

    Outro problema brbaro eram os ces. Meu Deus! Um latir infernal durante a noite. Qualquer barulho suspeito, qualquer ameaa desconhecida, fazia a regio estremecer de tanto latido. O ndio, carinhoso e amigo dos ces, deixava aumentar a sua criao continuamente. Vinha visitar o posto e abandonava os animais porque, segundo julgava, os "carabas" tinham sempre comida que os avies traziam. Mal sabia dos apertos que os brancos passavam. Por vezes, a comida ficava reduzida a um simples prato de feijo ou arroz. A caa desaparecia, o peixe falhava ou no havia ningum que dispusesse de tempo... Quando o rudo do avio da FAB enchia o cu, sempre as coisas melhoravam. No s a comida, como os jornais, um rosto amigo vindo de fora, uma voz diferente, elevavam o nimo de que todos precisavam sempre... Mas os ces eram cada vez mais numerosos e como proibir quela gente de trazer os seus animais?

    Cai despertou dos seus pensamentos. Estava entrando no rancho grande. Um lampio fora aceso a um canto e uma poro de ndios se amontoava em sua volta. Aproximou-se curioso. Cludio debruava-se sobre um ndio estendido num banco.

    Afastou os ndios que sua chegada abriam passagem. Que foi, Cludio? Veja. Os olhos de Cludio estavam congestionados e sua testa vincara-se de

    rugas. Os desgraados! Cai sabia que Cludio se referia Fundao Brasil Central. Veio do Jacar.

  • Cai tomou o pulso do ndio, que gemia. Depois passou as mos em sua testa que escaldava. De seu peito saa um ronco entremeado de gemidos.

    Voc botou o termmetro? Quase quarenta graus. Deve estar com pneumonia. A palavra

    escapou dolorida, sibilando, dos lbios de Cai. Gripe! Os ndios entenderam e conversaram entre si. A palavra "morte" para

    eles tinha o mesmo sentido. O pior no isso. Avinarrai diz que vem a uma poro, morrendo,

    arrastando-se pelo mato. Diz que no s gripe. Tm uma doena nova que derruba muita gente...

    Cai ergueu-se, meio desanimado. O ndio poderia estar exagerando. Mas tambm poderia ser verdade. Dominou o dio sbito.

    Vai dar penicilina? Cludio apontou a seringa, que era fervida, sobre a mesa. Depois retirou

    umas chaves do bolso. Pegue no almoxarifado uma rede e uma coberta. No, apanhe duas

    redes. A mulher dele est aqui tambm. Cai saiu e quando voltou com o pedido, a injeo fora aplicada. Armou

    a rede nos paus do rancho e ajudou Cludio a transportar o doente. Cobriu-o devagar porque, a cada movimento, ele soltava gemidos de dor.

    Sua voz ainda encontrou carinho para expressar-se: 'T vendo Avinarrai? Voc desobedece e vai para o Jacar... l os

    "carabas" so rins... voc acha que Cludio no seu amigo... que Orlando no seu amigo... voc no gosta de Cai?

    O ndio abriu os olhos e tentou sorrir. Nada disse. Desceu as plpebras novamente.

    Carolina, a ndia cajabi, que tinha domnio absoluto na cozinha (ai de quem invadisse o seu reinado!) bateu na enxada velha, chamando os homens para o jantar. Nunca um som fora mais triste. O ambiente to calmo de h poucas horas voltava a possuir um aspecto sombrio; j algumas vezes isto acontecera...

    Vamos comer, Cludio? Agora no. Carolina faz um prato para mim. Sempre se dava a mesma coisa com Cludio. Nunca se aproximava da

    refeio juntamente com os outros. Uma hora depois, ou pouco mais, apanhava o seu prato e trazia-o para a rede. Punha-se a comer no escuro, sempre dividindo o alimento com os ndios que se acercavam.

    Cai espiou a mesa sem toalha, o panelo de arroz, o caldeiro de feijo fumegante; as colheres e os garfos enfiados num vidro de boca enorme; a cuia de farinha; um ensopado de carne picada onde pedaos de ossos finos apareciam...

  • Que isso? Tepori, o cajabi, marido de Carolina, sorriu mostrando a falta dos dentes

    superiores. Quati. Eu cacei... Cai encheu o prato e sentou-se na meia parede feita de troncos fincados.

    As duas araras vermelhas de Orlando, sobre sua cabea, comearam a falar incompreensivelmente e a locomover-se de um lado para outro. Eram talvez as duas nicas araras vermelhas do Xingu. Orlando as trouxera do baixo Araguaia. Suas penas valiam tudo naquela regio. Qualquer pena cor-de-sangue era moeda comercial.

    Cai mastigou um pouco, mas a comida no queria descer. Olhou os rostos dos cajabis em volta. Todos limpinhos, de cabelos escorrendo ainda sob os velhos casquetes de soldado. Roupa lavada... apetite voraz. Tinham passado o dia derrubando a mata para ampliar a roa e aquele, para eles, era o momento mais sagrado.

    Depois espiou os outros ndios nus em volta. Kalukumar, o uati, com o corpo todo pintado de vermelho e o colar de unhas de ona apertando o pescoo. Em volta de sua cintura, outro colar de contas azuis, o mesmo que qualquer indgena do Xingu gostava de usar na ilharga. A crianada nuinha esperava que sobrasse alguma coisa. Mapucaiaca, o ualpeti grando e musculoso, tambm nu e todo pintado de vermelho, os cabelos empastados de urucum formando folhas compridas, olhava para a mesa, num gesto de espera.

    A comida no descia. Cai tinha certeza de que eles j sabiam do que estava para vir. Entretanto, a fome conseguia afastar o espantalho da doena.

    Os ces magricelas rosnavam e mordiam-se continuamente, esperando do lado de fora os restos que sobrassem... o mais audacioso que penetrasse no ambiente levaria um pontap ou uma paulada que o faria gritar ou torn-lo-ia manco por vrios dias...

    A comida no descia, mesmo... tudo intil... a vida era bruta e triste... diferente de antigamente...

    Cai levantou-se, com o prato cheio na mo. Carolina!... A ndia gorda e pressurosa apareceu rindo. Todo mundo gostava dela

    porque era simptica e boa, mesmo. Por sua causa os Vilas deixavam de ver muita malandragem praticada per seu marido Tepori.

    Que , Cai? Voc fez o prato de Cludio? 'T junto do fogo. Carolina ficou espiando Cai derramar o prato cheio de comida para os

    ces. Um desapontamento escureceu mais seu rosto luzidio.

  • 'T ruim, Cai? No. No isso. Eu no estou bem. A comida est muito gostosa... Vou buscar um pouco de caf. bom... A ndia voltou com o bule de caf e Cai, preocupado, serviu-se em

    silncio. Antes de se retirar fez sinal para quem quisesse servir-se. Os ndios

    avanaram para os pratos e circundaram a mesa. Desamarrou a rede, e, deitado, ps-se a palitar os dentes. Ouvia a rede de

    Cludio gemendo nos punhos. A noite j estava escura e o frio chegava aos poucos. As muriocas da

    boca da noite tambm fugiam para a mata com medo do frio. Cludio devia encontrar-se muito mais preocupado ainda. O que a gente far, Cludio? Vamos esperar. Primeiro, pensei em chamar Quilomo e mand-lo de

    motor at ao Jacar. Voc iria com ele buscar os doentes que esto l... mas, se eles vm vindo a p, vocs podero desencontrar-se.

    Calou-se. Logo sua calma desapareceu... Aqueles filhos da puta!... Sempre enganando os ndios!... E os burros

    vo acreditando em promessas! Esses desgraados estragam toda a nossa vida de trabalho.

    No melhor esperar o correio? Dentro de dois dias a FAB dever chegar.

    Tambm pensei nisso. Mesmo porque, se houver muito doente, na canoa no caber todo mundo.

    O jeito era fazer uma poro de viagens. Calaram-se, pensando o quanto seria difcil tudo aquilo. Porque, no

    mnimo, gastariam doze horas entre cada ida e cada volta. Como que eles deixam os ndios morrerem mngua, sem o menor

    gesto de piedade?... So uns miserveis... mas precisamos pensar bem, enquanto os outros

    esto l dentro comendo e no escutam... o que pensa voc, Cludio, obre essa doena nova de que Avinarrai falou?

    Talvez coqueluche, talvez uma gripe mais forte... qualquer coisa que levar muitos deles... amanh vamos tentar falar com a ilha do Bananal e particular... no... melhor esperar; se a coisa for mesmo grave a gente pede socorro.

    Como est o estoque de penicilina? Chegar para uns trinta casos. Espero que no seja preciso tanto. Sulfa, tem muita? Bastante para uma situao normal... Calaram-se.

  • Voc no vai jantar? Carolina fez seu prato. No tenho vontade. Mais tarde. Bom que Orlando venha nesse avio. Na certa ele chega. O arroz tambm est acabando. Que voc acha de Avinarrai? Vamos ver se a penicilina faz efeito. Dei sulfa tambm. Se o

    organismo reage... o pior que ndio como bicho, d uma doencinha e eles deixam de comer. Entregam-se totalmente... voc vai ver o que acontece amanh...

    Durante a noite ningum podia dormir. E dessa vez no eram os ces... Avinarrai gemia e delirava febrilmente. Parecia, naquele rouquejar arfante, lanar queixas contra os brancos, ora no dialeto camaiur, ora num portugus errado.

    O frio tornava-se cruel; as cobertas eram insuficientes para o corpo quase sempre sem calorias. A tristeza aumentava mais a insnia.

    Cludio levantava-se esfregando os braos e rondava a rede do camaiur doente. Sua mulher, j avanada em idade, punha-se de ccoras junto ao fogo, reavivando-o, colocando novos pedaos de pau seco.

    Cai tambm se aproximava a todo o instante. Ia at cozinha, reavivava o fogo, esquentava o caf que sorvia a largos tragos.

    A noite arrastava-se fria. A manh custava a nascer para trazer as ltimas novidades.

    Pobres ndios, to fortes, to nobres e ao mesmo tempo to frgeis. Imaginou os camaiurs, derreados pela gripe, que caminhavam pela selva, em busca do acampamento. Todos amontoados em suas pequenas redes de fibra, acendendo fogo para afugentar o frio terrvel...

    Nem podia falar a Cludio porque sabia que ele pensava a mesma coisa. Que crueldade a da Fundao Brasil Central. No. No havia dvidas.

    Eles queriam matar os ndios, acabar de vez com suas vidas, para poder efetuar sem dificuldades as transaes de suas terras. Um ndio nada significava; valia menos que uma fera que poderia ser vendida a um jardim zoolgico qualquer...

    Pensou em Utamapu, to grande, to forte e com aquela nobreza de gestos. Utamapu, cacique dos camaiurs, sendo atrado pela Fundao. E com ele, todos os outros ndios ingnuos do alto Xingu. Ganhavam uns presentes insignificantes, escutavam as intrigas que formulavam contra os Vilas Boas, revoltavam-se contra aqueles a quem deviam gratido... tudo por causa de engodos e mentiras. Erguiam casinholas mal feitas em volta do acampamento do Jacar e ficavam espiando a vida dos brancos. Dali, contavam-se coisas horrveis. Que at as mulheres dos ndios eram utilizadas pelos brancos responsveis pelo posto. O mais triste era saber que aquele

  • posto no Kuluene tinha sido obra dos irmos Vilas Boas. E ainda mais, com a inimizade reinante entre a Fundao e o Servio, foi lanada uma proibio: Nenhum dos Vilas poderia pisar naquele posto. Isso enchia Cludio de desgosto e Orlando de tristeza. Ento acontecia o inevitvel: Os ndios acampados no Jacar, abandonados e mal alimentados, sem a mnima assistncia mdica, adquiriam as doenas dos brancos. Os brancos impassveis deixavam que eles enfraquecessem. At que o desespero e o medo da morte faziam com que se lembrassem dos amigos no posto Capito Vasconcelos. Retornavam enfraquecidos e cabisbaixos...

    Era necessrio que os Vilas esquecessem mais aquela ingratido e se lanassem dia e noite contra os males, tentando debel-los...

    Cai depositou a caneca sobre o fogo. Torceu os dedos. Era verdade, sim. Ningum podia negar. A Fundao queria matar os

    ndios para vender suas terras. Os milionrios paulistas j tinham adquirido at a lagoa do Ipavu dos camaiurs... e como teriam comprado essas terras? Como teriam tido cincia daquela lagoa?... Um dia, mais tarde, os ndios acabariam e as suas terras teriam que tomar outro destino. Desumanos que as vendessem agora, enquanto vivos... e para qu? Para assegurar latifndios a milionrios inconseqentes? Para garantir o futuro de filhos, de netos indolentes?... Por acaso eles mereceriam aquilo?...

    Cai saiu da cozinha e foi procurar a rede. Ningum poderia dormir. Quilomo balanava-se. Cludio tambm. Fez meia volta e saiu do rancho. Foi buscar algo no depsito. Empurrou a porta do ranchinho... apontou a lanterna eltrica para o que procurava... no precisava nem da luz... seus dedos encontrariam aquilo, mesmo no escuro.

    Apanhou um caixote e trouxe-o para o cho. Despregou a tbua e enfiou a mo por entre as palhas das garrafas.

    Retirou uma. Era cachaa. A cachaa que trouxera da cidade. Limpou-a das palhas. O vidro estava gelado. Fora, caa uma bruma fria

    que envolvia tudo. O tempo, nesse ano, ia $er bem duro de agentar...

  • Quinto Captulo - A Gripe Encontrava-se de novo na rede, quando abriu os olhos. Como voltara at

    ali no importava. Sentia as pupilas em fogo e mal-estar no estmago. A manh prometia um dia quente e colorido de sol.

    Olhou para a rede de Cludio. Ele j se levantara. Avinarrai continuava gemendo. Ergueu-se e foi direto rede do ndio. Estava melhor. Seus olhos

    reconheceram Cai e sorriram... Algum postara-se ao lado de Cai. "Titio!"... Olhou o menino Meinaco que sorria para ele. Em sua carinha de louco

    estampava-se a maior pureza que j vira. Cai esfregou os cabelos do Meinaco.

    Por onde voc andou, "cara-de-bode"? Ele sorriu e engrolou uma linguagem onde poucas palavras eram

    inteligveis. L... Apontou na direo da lagoa do Ipavu. Dormiu na aldeia dos camaiurs? O doidinho acenou com a cabea. Cai riu. Sabia que nenhum ndio faria mal ao Meinaco. Foi novamente

    cozinha. J o indiozinho se adiantara e voltava com um caneco cheio d'gua para que lavasse o rosto. Depois, tomou caf com uma lasca de beiju. Nem acabara de comer quando Tapiri, o camaiur veio cham-lo, porque Cludio precisava dele.

    Onde ele est? Nas casas dos ualapetis? Dirigiu-se para o lado esquerdo do acampamento. A gurizada veio cerc-

    lo festivamente. Uma aglomerao de ndios, nas cabanas dos ualapetis, discutia em voz

    alta. Aproximou-se mais. Os ndios cercavam Cludio Vilas Boas e

    mostravam um certo mau humor. Alguns se afastaram para Cai passar. O que h? Os ualapetis querem ir-se embora. Dizem que vo pescar na boca do

    lago do Tuatuari e depois partiro para a aldeia. Kanato adiantou