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PECADO ORIGINAL INTRODUÇÃO Uma antropologia completa deve levar em conta os dados da Revelação, porque o homem não é só um ser criado como os outros, mas tem um fim próprio (uma teleologia própria) ligado à natureza de ser inteligente. Todo ser criado tem uma teleologia que o transcende, pelo próprio fato de ser obra de um Deus transcendente. Instruídos, no entanto, pela Revelação Divina, sabemos que o homem foi chamado, já desde suas origens, a participar intimamente da vida divina e da familiaridade com Deus (justiça original); e que, por uma livre e pessoal transgressão do plano divino, ele se tornou réu de culpa, perdendo com isso os direitos de filho, que, muito acima dos dons puramente naturais, Deus lhe concedera (pecado original originante). Esta perda voluntária e responsável da adoção inefável no seio da família divina é transmitida individualmente a cada um dos descendentes do primeiro homem (pecado original originado). Com efeito, por este pecado pessoal primitivo, toda a humanidade nasce ferida na sua íntima elevação sobrenatural, isto é, nasce privada do que de mais sublime pôs nela a livre bondade criadora de Deus: a condição de filho adotivo. Tal privação, causada pelo pecado pessoal do primeiro homem, torna-se, em cada um de seus descendentes, pecado da natureza, próprio de cada indivíduo, pelo fato mesmo de ser homem. Sendo esta condição de filho um dom gratuito de Deus, é evidente que, por suas próprias forças, jamais poderia o homem recuperá-la. Sem dúvida, isto não se pode conhecer pela razão, nem existe documento histórico capaz de dissipar as névoas que envolvem a origem da humanidade. Mas o dogma do pecado original é o núcleo da antropologia revelada, sem o qual não se pode compreender a antiga esperança de um Redentor, nem Sua vinda na pessoa de Cristo, nem a existência da Igreja e dos sacramentos instituídos pelo Senhor Jesus para recuperar, conservar e aperfeiçoar aquele estado de justiça original. O dogma do pecado original projeta sobre o homem uma visão ao mesmo tempo realista e otimista. Realista, ou seja, o homem não é onipotente: por mais que se exalte sua dignidade, sua poderosa inteligência, seu domínio sobre o mundo, toda a sua atividade humana é insuficiente para lhe devolver a condição perdida de filho de Deus a que foi chamado e em que consiste a vida eterna. A Igreja, desde os tempos de Pelágio, teve sempre que defender esta verdade contra o

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PECADO ORIGINAL

PECADO ORIGINAL

INTRODUO

Uma antropologia completa deve levar em conta os dados da Revelao, porque o homem no s um ser criado como os outros, mas tem um fim prprio (uma teleologia prpria) ligado natureza de ser inteligente. Todo ser criado tem uma teleologia que o transcende, pelo prprio fato de ser obra de um Deus transcendente. Instrudos, no entanto, pela Revelao Divina, sabemos que o homem foi chamado, j desde suas origens, a participar intimamente da vida divina e da familiaridade com Deus (justia original); e que, por uma livre e pessoal transgresso do plano divino, ele se tornou ru de culpa, perdendo com isso os direitos de filho, que, muito acima dos dons puramente naturais, Deus lhe concedera (pecado original originante). Esta perda voluntria e responsvel da adoo inefvel no seio da famlia divina transmitida individualmente a cada um dos descendentes do primeiro homem (pecado original originado).

Com efeito, por este pecado pessoal primitivo, toda a humanidade nasce ferida na sua ntima elevao sobrenatural, isto , nasce privada do que de mais sublime ps nela a livre bondade criadora de Deus: a condio de filho adotivo. Tal privao, causada pelo pecado pessoal do primeiro homem, torna-se, em cada um de seus descendentes, pecado da natureza, prprio de cada indivduo, pelo fato mesmo de ser homem. Sendo esta condio de filho um dom gratuito de Deus, evidente que, por suas prprias foras, jamais poderia o homem recuper-la.

Sem dvida, isto no se pode conhecer pela razo, nem existe documento histrico capaz de dissipar as nvoas que envolvem a origem da humanidade. Mas o dogma do pecado original o ncleo da antropologia revelada, sem o qual no se pode compreender a antiga esperana de um Redentor, nem Sua vinda na pessoa de Cristo, nem a existncia da Igreja e dos sacramentos institudos pelo Senhor Jesus para recuperar, conservar e aperfeioar aquele estado de justia original.

O dogma do pecado original projeta sobre o homem uma viso ao mesmo tempo realista e otimista. Realista, ou seja, o homem no onipotente: por mais que se exalte sua dignidade, sua poderosa inteligncia, seu domnio sobre o mundo, toda a sua atividade humana insuficiente para lhe devolver a condio perdida de filho de Deus a que foi chamado e em que consiste a vida eterna. A Igreja, desde os tempos de Pelgio, teve sempre que defender esta verdade contra o naturalismo racionalista, que reduz a ordem sobrenatural da salvao ao esforo da vontade humana.

Alm disso, o pecado original explica, de modo coerente e realista, o estado atual da natureza humana: porque o pecado original debilitou a vontade e obscureceu a inteligncia do homem de tal modo que, ainda quando se decide pelo bem, continua atrado para o mal; isto o que se chama concupiscncia.

No pessimista esta viso realista do homem. Embora inclinada ao mal, a natureza humana no intrinsecamente corrompida, como pensava Lutero (que se ps nos antpodas de Pelgio). Pelo contrrio, afirma a doutrina catlica que o homem, mesmo no estado atual, pode conhecer com certeza as verdades religiosas de ordem natural, e ser transformado interiormente pela graa de Cristo para recuperar a justia original. Sem correta concepo do dogma do pecado original, impossvel compreender a doutrina catlica sobre a justificao, defendida pelo Conclio de Trento contra as posies luteranas. Entre estes dois desvios extremos o otimismo pelagiano, que identifica as possibilidades da natureza com a graa de Deus, e o pessimismo luterano, que exalta a graa divina sobre as runas da liberdade humana -, a F catlica mantm um equilbrio realista que pode ser resumido nestes cinco pontos:

1) Ado foi constitudo em justia e santidade.

2) Houve uma falta original cometida por Ado; como conseqncia desta falta, Ado foi privado da justia e santidade, ferido na prpria natureza e sujeito morte.

3) Por causa deste pecado de Ado, perderam seus descendentes a justia original, e cada pessoa herda esta culpa com verdadeiro carter de pecado prprio em cada um, transmitido por gerao e no por mera imitao [propagatione, non imitatione, transfusum omnibus inest unicuique proprium], e ficaram sujeitos morte.

4) Este pecado (original) s pode ser remido pelos mritos de Jesus Cristo e sua remisso se aplica tambm aos recm-nascidos por meio do Batismo, que lhes restitui a santidade e o direito vida eterna. Mas o Batismo no os livra da concupiscncia, que, alis, no se identifica com o pecado.

5) S o monogenismo compatvel com o dogma do pecado original [de pecato originali, quod procedit ex peccato vere commisso ab uno Adamo].

Conclio de CartagoO primeiro ataque srio, dentro da Igreja, contra a doutrina do pecado original proveio do pelagianismo. Pelgio, monge de origem irlandesa, vivia em Roma no comeo do sculo V. Seu severo ascetismo e as duras pregaes que fazia contra a dissoluo dos costumes na capital de um imprio decadente deram-lhe grande prestgio entre seus discpulos. Ao entrarem em Roma as tropas de Alarico (410), fugiu para a Siclia e depois para Cartago, junto com o advogado Celstio, continuando a pregar com ardor o mais rigoroso moralismo, baseando-se nas exigncias da natureza e insistindo na eficcia do esforo humano, para conseguir a virtude, deixando pouco ou quase nada ao de Deus na conquista da salvao. claro que esta asctica dependia de uma teologia que implicava a reinterpretao da doutrina catlica do pecado original. Segundo Pelgio, o pecado de Ado no teve outra conseqncia para seus descendentes seno a de ter dado um mau exemplo. Alm disso, um e outros eram mortais antes do pecado e nascem em igualdade de condies. Ado e seus descendentes para Pelgio podiam salvar-se s com o esforo da vontade, sem que, para Ado, fosse necessria a graa, e, para as crianas, necessrio o Batismo.

Santo Agostinho (354-430) percebeu logo a gravidade de tais afirmaes e imediatamente foram elas condenadas num snodo em Cartago (411). Cinco anos depois (416) ocuparam-se da doutrina pelagiana outros dois novos snodos: um em Cartago (63 bispos), outro em Milevi (59 bispos). Ambos foram confirmados pelo Papa Inocncio I. A esta confirmao alude Santo Agostinho quando exclamou: Causa finita est! Mas o assunto no se encerrou. Vai a Roma Celstio e consegue fingidamente, com rodeios doutrina pelagiana, que o Sucessor de Inocncio I, o Papa Zzimo (417-418), absolva Pelgio. Insistem os bispos africanos e o Papa lhes responde que est disposto a ouvi-los e que sua deciso anterior no fora definitiva. Chega a Cartago a carta de Zzimo no dia 29.04.418. A 1 de maio se renem mais de 200 bispos e suas decises mais importantes sobre o pecado original e a graa foram confirmadas pelo Papa, e integradas, vinte anos depois, numa coleo, recolhida provavelmente por So Prspero de Aquitnia, conhecida pelo nome de Indiculus e aceita pela Igreja como expresso de sua Tradio.

O cnon 1 recorda que a morte de Ado foi conseqncia do pecado e no uma necessidade j predisposta; o cnon 2 confirma: a) que as crianas podem ser batizadas; b) que o Batismo das crianas redime o pecado original, no sentido verdadeiro e prprio. Ainda que no trate de precisar uma interpretao de Rm 5, 12, fundamenta, no entanto, na exegese tradicional e universal de tal texto a F da Igreja sobre o pecado original. O contedo deste cnon 2 expressamente referendado pelo Papa Zzimo e pelo Indiculus. Quanto ao cnon 1, mais difcil encontrar uma confirmao oficial com valor universal.

Texto: Hrd 1, 926-927; PL 56, 486-487

Cnon 1. Foi decidido [placuit] por todos os bispos (), reunidos no santo Conclio da Igreja em Cartago, que: quem disser que Ado, o primeiro homem, foi criado mortal, de modo que, pecasse ou no pecasse, teria de morrer corporalmente [in corpore], isto , que sairia do corpo no por castigo do pecado mas por necessidade da natureza, seja antema.

Cn. 2. Igualmente, foi decidido [placuit]: quem negar que as crianas recm-nascidas [parvulos recentes ab uteris matrum] devam ser batizadas, ou disser que, efetivamente, so batizadas para a remisso dos pecados, mas que de Ado nada herdaram do pecado original que tenha de ser expiado pelas guas do Batismo [lavacro regenerationis], donde se conclua que nelas a frmula batismal para a remisso dos pecados deva ser entendida no como verdadeira, mas falsa seja antema. Porque aquilo que diz o Apstolo: Por um s homem [per unum hominem] entrou o pecado no mundo, e com o pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, pois nele [in quo] todos pecaram (Rm 5, 12), no deve ser entendido de modo diferente de como sempre o entendeu toda a Igreja Catlica. E , com efeito, por esta regra de F que tambm as criancinhas, incapacitadas ainda de cometer pecados pessoais, so verdadeiramente batizadas para a remisso dos pecados, a fim de que, na regenerao [batismal], se purifique [mundetur] nelas o que pela gerao contraram.

Indiculus (sc. V)Este documento uma espcie de Syllabus, no qual se expe a F tradicional sobre a graa, para defender Santo Agostinho de seus adversrios. Foi atribudo ao papa Celestino I, porque desde o sculo VI aparece junto com a carta que este dirigiu aos bispos das Glias (431), a pedido de So Prspero de Aquitnia e de Santo Hilrio de Poitiers, grandes defensores do bispo de Hipona. O indiculus foi provavelmente composto por So Prspero e seu valor foi em toda a parte reconhecido como expresso da Tradio da Igreja sobre a graa. Assim o afirma o Papa So Hormisdas numa carta a Possessor de 13.08.520.

Cap. 1. Na desobedincia de Ado todos os homens perderam o poder natural [naturalem possibilitatem] e a inocncia, e ningum teria podido, pelo livre-arbtrio, erguer-se do abismo daquela runa, se a graa do Deus misericordioso no o levantasse, como o declara e diz o Papa Inocncia, de feliz memria, na carta ao Conclio de Cartago: Depois de outrora ter experimentado mal [perpessus] o livre-arbtrio, ao usar insensatamente seus prprios bens, ficou [o homem], ao cair, submerso nas profundezas de seu pecado, e nada achou por onde pudesse dali levantar-se; e, enganado para sempre por sua liberdade, teria ficado prostrado pela opresso desta runa se mais tarde no o tivesse levantado, com Sua graa, a vinda de Cristo, que, por meio da purificao de um novo nascimento [novae regenerationis], lavou, com as guas do Batismo [sui Baptismatis lavacro], toda a mancha [vitium] passada.

Carta Sicut rationi do Papa Hormisdas (13.8.520)A autoridade do Indiculus foi confirmada pelo Papa Hormisdas nesta carta ao bispo africano Possessor.

5. O que cr e professa a Igreja Romana, isto , a Igreja Catlica, sobre o livre-arbtrio e a graa de Deus ainda que possa ser abundantemente conhecido por vrios livros do Bem-Aventurado Agostinho, principalmente os dirigidos a Hilrio e a Prspero est contido tambm em documentos especficos dos arquivos eclesisticos; se no os tendes e os credes necessrios, vo-los enviaremos ().

Conclio de Orange (3.7.529)Reuniu-se este conclio provincial, presidido por So Cesrio de Arles (470-543), para acabar com as controvrsias semipelagianas. Ainda que o objeto primeiro do conclio fosse o problema da graa, seus dois primeiros cnones reafirmaram a doutrina tradicional sobre o pecado original. O primeiro trata dos efeitos malignos que a culpa de Ado trouxe ao homem, inclusive em suas faculdades espirituais; o segundo volta a condenar a doutrina pelagiana, como j o fizera o XVI Conclio de Cartago.

TEXTO: Msi 8,712.

Cnon 1. Se algum disser que, pelo pecado de Ado, o homem todo no foi mudado para pior, isto , segundo o corpo e a alma, mas, seduzido pelo erro de Pelgio, julgar que, ficando ilesa a liberdade da alma, s o corpo est sujeito corrupo, contradiz a Escritura, que diz: A alma que pecar morrer (Ez 18, 20) e No sabeis que, se vos entregais a algum como escravos para obedecer, ficais escravos daquele a quem obedeceis? (Rm 6, 16) e pois fica-se escravo daquele por quem foi vencido (2 Pd 2, 19).

Cn. 2. Se algum afirmar que o pecado de Ado prejudicou s a ele e no tambm a sua descendncia, ou declarar que por um s homem passou a todo o gnero humano s a morte do corpo, que certamente pena do pecado, mas no tambm o pecado, que a morte da alma, atribuir a Deus injustia, contradizendo o Apstolo, que diz: Por um s homem [per unum hominem] entrou o pecado no mundo, e com o pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, pois nele [in quo] todos pecaram (Rm 5, 12).

Conclio de Trento Decreto Ut fides (sess. V 17.6.1546)Os decretos da quinta sesso contm normas para o ensino da Sagrada Escritura nas catedrais, nos mosteiros e na pregao ao povo. A nica parte dogmtica dedicada ao pecado original, tendo em vista particularmente a identificao luterana entre pecado original e concupiscncia inata e constante do homem. Como o Batismo no apaga a concupiscncia, Lutero entendia que ele tambm no destri o pecado, nem haveria por que administr-lo s crianas, porque elas no precisariam dele para entrar na vida eterna. Concordava, portanto, com os pelagianos ao declarar intil o Batismo das crianas, mas por motivos opostos: os pelagianos, porque, segundo eles, Ado no teria transmitido a seus descendentes seno um mau exemplo; Lutero, porque as crianas so incapazes de concupiscncia. Outros, como Erasmo, negavam que a passagem de Rm 5, 12 se referisse ao pecado original; outros ainda, hereges antigos (valentinianos, maniqueus e priscilianistas) negavam que o pecado original fosse transmitido aos filhos de pais cristos.

Por tudo isso, no quis limitar-se o conclio aos erros particulares de Lutero, mas examinou a questo de modo global, em cinco densos cnones, aos quais juntou uma declarao que renova as constituies de Sixto IV (27.2.1477 e 4.9.1483) sobre a Imaculada Conceio, para manifestar explicitamente que no era sua inteno incluir no decreto sobre a universalidade do pecado original a Bem-Aventurada e Imaculada Virgem Maria.

DECRETO UT FIDESPromioPara que nossa f catlica, sem a qual impossvel agradar a Deus (Hb 11, 6), extirpados os erros, permanea ntegra e incorrupta em sua pureza, e o povo cristo no seja levado ao sabor de qualquer vento de doutrina (Ef 4, 14) uma vez que aquela antiga serpente (Ap 12, 9; 20, 2), perptua inimiga do gnero humano, entre os muitssimos males que afligem a Igreja de Deus em nosso tempo, suscitou no s novas mas at velhas dissenes tambm sobre o pecado original e seu remdio: o sacrossanto, ecumnico e universal Conclio de Trento, legitimamente reunido no Esprito Santo, sob a presidncia dos mesmos trs Legados da S Apostlica, querendo desde j chamar novamente os extraviados e fortalecer os vacilantes, seguindo o testemunho da Sagrada Escritura, dos Santos Padres e dos mais autorizados Conclios, e o juzo e sentir [consensum] da prpria Igreja, estabelece, confessa e declara o que segue sobre o pecado original.

Das conseqncias do pecado de Ado1. Se algum no confessar que Ado, o primeiro homem [primum hominem Adam], ao transgredir o mandamento de Deus no paraso, perdeu imediatamente a santidade e justia em que tinha sido constitudo, e que, pela ofensa deste pecado de desobedincia [praevaricationis], incorreu na ira e indignao de Deus, e portanto na morte com a qual Deus o ameaara antes (cf. Gn 3, 3), e, com a morte, no cativeiro sob o poder daquele que depois teve o imprio da morte (Hb 2, 14), isto , o diabo, e que toda a pessoa de Ado, segundo o corpo e segundo a alma, por aquele pecado de desobedincia foi mudada para pior [totumque Adam per illam praevaricationis offensam secundum corpus et animam in deterius commutatum fuisse] seja antema.

Da transmisso sua descendncia2. Se algum afirmar que o pecado [praevaricationem] de Ado prejudicou s a ele e no sua descendncia; que a santidade e justia recebida de Deus, que ele perdeu, a perdeu s para si e no tambm para ns; ou que, manchado pelo pecado de desobedincia [per inobedientiae peccatum], s transmitiu a todo o gnero humano a morte e as penalidades do corpo, mas no o pecado, que a morte da alma seja antema, pois contradiz o Apstolo, que afirma: Por um s homem [per unum hominem] entrou o pecado no mundo, e, com o pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, pois nele [in quo] todos pecaram (Rm 5, 12).

Do remdio contra o pecado original3. Se algum afirmar que o pecado de Ado, que, por sua origem, um s, transmitido a todos com a gerao [propagatione] e no por imitao, inerente a cada um como prprio [propagatione, non imitatione, transfusum omnibus inest unicuique proprium], possa ser tirado [tolli] pelas foras da natureza humana ou por outro meio [remedium] que no seja pelos mritos do nico Mediador [unius mediatoris], Nosso Senhor Jesus Cristo, o Qual, feito justia, santificao e redeno para ns (1 Cor 1, 30), nos reconciliou com Deus em Seu sangue (cf. Rm 5, 9-10); ou negar que os prprios mritos de Jesus Cristo se aplicam tanto aos adultos como s crianas por meio do sacramento do Batismo, devidamente conferido segundo as diretrizes da Igreja seja antema. Porque no h sob o cu outro Nome, dado aos homens, pelo Qual [in quo] devamos ser salvos (At 4, 12). Da aquela palavra: Eis o Cordeiro de Deus, eis Aquele que tira o pecado mundo (Jo 1, 29). E a outra: Todos os que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo (Gl 3, 27).

Da necessidade do Batismo4. Se algum negar que devam ser batizadas as crianas recm-nascidas [recentes ab uteris matrum], ainda quando filhos [fuerint ... orti] de pais batizados, ou disser que so batizados para a remisso dos pecados, mas que de Ado nada contraem do pecado original que tenha necessidade de ser purificado [expiari] nas guas do Batismo [regenerationis lavacro], para alcanar a vida eterna, donde se conclua que a forma do Batismo para a remisso dos pecados se entende nelas, no como verdadeira, mas como falsa seja antema. Porque o que diz o Apstolo: Por um s homem [per unum hominem] entrou o pecado no mundo, e com o pecado a morte; e assim a morte passou a todos os homens, pois nele [in quo] todos pecaram (Rm 5, 12) no se deve entender de outro modo, mas como sempre o entendeu toda a Igreja Catlica. Assim, por esta regra de F, recebida da Tradio Apostlica, at as crianas, que nenhum pecado pessoal puderam ainda cometer [nihil peccatorum in semetipsis adhuc committere potuerunt], so verdadeiramente batizadas para a remisso dos pecados, para que nelas, pela regenerao [batismal], se purifique o que pela gerao contraram [ut in eis regeneratione mundetur, quod generatione contraxerunt]. Porque quem no renascer da gua e do Esprito Santo no pode entrar no Reino de Deus (Jo 3, 5).

Da natureza do pecado original5. Se algum negar que, pela graa de Nosso Senhor Jesus Cristo, conferida no Batismo, se d a remisso [reatum (...) remitti] do pecado original, ou ento afirmar que no se destri [tolli] tudo o que tem verdadeira e prpria razo de pecado, mas [disser] que apenas se risca [radi] ou no se leva em conta [imputari] seja antema. Pois nos batizados [in renatis] nada aborrece a Deus [nihil odit Deus], porque nada h de condenao naqueles (Rm 8, 1) que verdadeiramente pelo Batismo esto sepultados com Cristo na morte [consepulti sunt cum Christo per baptism in mortem] (cf. Rm 6, 4), que no andam segundo a carne (Rm 8, 1), mas, despojando-se do homem velho e revestindo-se do homem novo, criado segundo Deus [veterem hominem exuentes et novum, qui secundum Deum creatus est, induentes] (cf. Ef 4, 24; Cl 3, 9-10), se tornaram [effecti sunt] inocentes, imaculados, puros, sem mancha e filhos amados de Deus, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo [heredes quidem Dei, coheredes autem Christi] (Rm 8, 17), de tal modo que nada h absolutamente que lhes possa retardar a entrada no cu. Ora, que a concupiscncia ou inclinao ao pecado [concupiscentiam vel fomitem] permanea nos batizados, confessa-o e reconhece [sentit] este santo conclio, concupiscncia que, deixada para o combate, no pode causar dano aos que nela no consentem e virilmente resistem pela graa de Jesus Cristo. Pelo contrrio, quem tiver combatido segundo as regras receber a coroa (2 Tm 2, 5). Esta concupiscncia algumas vezes chamada pecado pelo Apstolo (cf. Rm 6, 12-20; 7, 14.17.20) declara o santo conclio que a Igreja Catlica nunca a entendeu como pecado, como se, verdadeira e propriamente dito, fosse pecado nos [que so] batizados [in renatis], mas porque procede do pecado e ao pecado inclina [sed quia ex peccato est ad peccatum inclinat]. Se algum, pois, pensar o contrrio seja antema.

Da iseno de Maria6. Declara, no entanto, este conclio que no inteno sua incluir neste decreto (em que trata do pecado original) a Bem-Aventurada e Imaculada Virgem Maria, Me de Deus, mas que devem ser observadas as constituies do Papa Sixto IV, de feliz memria, sob pena de se incorrer nas sanes nelas contidas, que [agora] o conclio renova.

Erros de Miguel BaiusBaius (Michel de Bay: 1513-1589), professor de teologia na Universidade de Louvain desde 1551, foi mandado como telogo ao Conclio de Trento em maio de 1563. Assistiu s trs ltimas sesses e colaborou na redao do decreto sobre o purgatrio e na elaborao do Catecismo Romano. Tinha um sugestivo mtodo de ensino: reduzia ao mximo a parte escolstica, com preferncia para o estudo da Escritura e dos Santos Padres, principalmente Santo Agostinho. Mas frequentemente esquecia a Tradio da Igreja e o desenvolvimento do dogma para deter-se muito literalmente em certas afirmaes agostinianas, sem levar em conta a unidade harmnica do pensamento do santo. No de estranhar, portanto, que logo viesse a ter dificuldades com as autoridades eclesisticas.

O erro fundamental de Baius est na concepo excessivamente otimista do estado primitivo do homem. O telogo de Louvain reconhecia que a justificao e os dons concedidos a Ado no eram parte integrante da natureza humana, mas acrescentava que uma coisa e outra eram exigncias da prpria natureza do homem (cf. as proposies de n. 21, 23, 24, 26 e 78), e por isso pode-se dizer que eram naturais. Sem elas Deus no poderia criar o homem (prop. 55). Ora, Ado, por seu pecado pessoal, perdeu estes dons, e perdeu-os tambm para sua descendncia, porque todo pecado pode ser transmitido (prop. 52), j que o voluntrio no da essncia do pecado (prop. 46). Aqui Baius reage contra Pighi e Contarini, que identificavam o pecado original com o castigo nos descendentes de Ado. Segundo Baius, o pecado original um pecado pessoal que se identifica com a concupiscncia, porque o carter de voluntrio no requisito para que haja pecado. No um mero castigo pela culpa de Ado, mas verdadeiro pecado pessoal. Como poderia Baius defender, depois do Conclio de Trento, que o pecado original se identificasse com a concupiscncia? Respondia ele que o conclio negava a identificao nos batizados, in renatis, mas no nos outros. E acrescentava: se o Batismo apaga o pecado original e a concupiscncia continua, porque o Batismo perdoa o pecado original quanto culpabilidade, mas no quanto ao ato: transit reatu, manet actu.

Datam de 1552 as primeiras reclamaes contra Baius, e as denncias ocorreram na Sorbonne, na corte de Filipe II e em Roma. Em 27.6.1560 a Sorbonne condenou 18 proposies de Baius; em 1564, as Universidades de Alcal e Salamanca impugnaram 9; e em 1.10.1567, depois de minucioso exame dos escritos de Baius, no qual tomou parte Francisco de Toledo, o Papa Pio V condenou 70 proposies do professor de Louvain com a Bula Ex omnibus afflictionibus. Por considerao pessoa de Baius, a bula foi dirigida Universidade de Louvain, mas no foi impressa nem afixada em pblico, o que deu margem a que alguns a considerassem apcrifa. Por isso, a pedido dos bispos dos Pases Baixos, ela foi confirmada doze anos depois, por Gregrio XIII, com a Bula Provisionis nostrae, de 29.1.1579.

Os erros de Baius sobre o pecado, a graa, a liberdade, as relaes entre a graa e a natureza foram condenados globalmente, sem especificao da correspondente censura teolgica.

.BulaEx omnibus afflictionibusde Pio V (1.10.1567)[Proposies condenadas]Do estado original21. A elevao e exaltao da natureza humana participao da natureza divina foi devida integridade do estado original [primae conditionis], e, por isso, deve-se dizer que natural, e no sobrenatural.

23. absurda a sentena daqueles que dizem que o homem, originalmente [ab initio], foi elevado, por um especial dom sobrenatural e gratuito, acima do estado de sua prpria natureza, a fim de que, pela F, Esperana e Caridade, prestasse sobrenaturalmente culto a Deus.

24. Homens inconsistentes [vanis] e ociosos, seguindo a tolice dos filsofos, inventaram a idia, que deve ser atribuda ao pelagianismo, de que o homem foi de tal modo constitudo desde o incio que, por dons acrescentados sua natureza, foi [sobrenaturalmente] elevado pela liberalidade do Criador e adotado como filho de Deus. [NOTA: Estes filsofos de que fala Baius, com tanto desprezo, so os Escolsticos.]

26. A integridade da primeira criao no foi uma elevao [exaltatio] no devida natureza humana, mas [era] seu estado natural [naturalis eius conditio].

55. Deus no poderia criar o homem no incio, no estado em que agora nasce.

78. A imortalidade do primeiro homem no era benefcio da graa, mas sua condio natural.

Do pecado original46. O [carter de] voluntrio [voluntarium] no pertence essncia e definio do pecado, e nem questo de definio, mas de causa e origem, [saber] se todo pecado deve ser voluntrio.

47. Por isso o pecado original [peccatum originis] verdadeiramente tem carter [rationem] de pecado, sem nenhuma relao ou referncia vontade, da qual teve origem.

48. O pecado original [peccatum originis] voluntrio na criana por [sua] vontade habitual, e habitualmente [habitualiter] a domina, porque ela no interpe [non gerit] um ato de vontade contrrio.

49. Da vontade habitual dominante segue-se que a criana que morre sem o sacramento do Batismo [regenerationis], se tivesse chegado ao uso da razo, teria odiado a Deus em ato [actualiter], blasfemado contra Ele e resistido sua lei.

52. Todo pecado [scelus] de tal natureza que pode corromper seu autor e todos os seus descendentes, do mesmo modo como o fez a primeira transgresso.

Profisso de F de Paulo VI (30.06.1968)A Profisso de F, ou Credo do Povo de Deus, encerrou o Ano da F proclamado por Paulo VI (1967-1968) e pretendia expressar a F Catlica levadas em conta as circunstncias atuais. Era lgico, portanto, que o Papa tratasse, com especial ateno, do dogma do pecado original, expondo as verdades fundamentais a que j nos referimos.Do pecado original16. Cremos que em Ado todos pecaram, o que significa que a falta original, cometida por ele, fez com que a natureza humana, comum a todos os homens, casse num estado tal em que padece as conseqncias dessa culpa. Este estado j no aquele em que ela se encontrava antes em nossos primeiros pais, constitudos que foram em santidade e justia, estado em que o homem no conhecia o mal nem a morte. A natureza humana assim decada, despojada do dom da graa que a revestia, ferida nas suas prprias foras naturais e subjugada ao domnio da morte que transmitida a todos os homens; e neste sentido que cada homem nasce em pecado. Professamos, pois, com o Conclio de Trento, que o pecado original transmitido com a natureza humana, por propagao [com a gerao], no por imitao e que, portanto, inerente a cada um como prprio [propagatione, non imitatione, idque inesse unicuique proprium].17. Cremos que Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo Sacrifcio da Cruz, nos resgatou do pecado original e de todos os pecados pessoais cometidos por cada um de ns, de modo que verdadeira a sentena do Apstolo: Onde abundou o pecado superabundou a graa (Rm 5, 20).18. Cremos num s Batismo, institudo por Nosso Senhor Jesus Cristo para a remisso dos pecados, e que o Batismo deve ser conferido tambm s criancinhas, que ainda no foram capazes de cometer algum pecado pessoal, de modo que, tendo nascido privadas da graa sobrenatural, renasam da gua e do Esprito Santo (Jo 3, 5) para a vida divina em Jesus Cristo.A GRAA

INTRODUOA lei da graa como a atmosfera que d oxignio a toda a teologia catlica; mais: o prprio conceito de teologia inclui o da graa, porque o cristianismo uma religio revelada: no um produto da razo humana, mas um dom de Deus comunicado ao homem para lhe confidenciar Sua vontade misericordiosa. A teologia crist, propriamente dita, nasce do estudo da Revelao, isto , do debruar-se sobre o que Deus revelou, de modo inteiramente gratuito, sobre Si mesmo, sobre o homem, sobre seu destino e do mundo. Sem esta mensagem vinda dos cus, e portanto sem a graa, inconcebvel a existncia da teologia crist, porque a Revelao, a que deve corresponder, da parte do homem, a humilde aceitao dos mistrios da F, um conhecimento sobrenatural que eleva a humanidade a um novo modo de existir superior, intangvel s por seus recursos naturais. ainda a Revelao que nos diz o que Deus quis ser para ns e o que quis que fosse o homem para Ele: um amigo pessoal e prximo, que Se comunica no amor e na familiaridade recproca, que Se d ao homem numa doao absolutamente insuspeitada que penetra at o ntimo da natureza humana para elev-lo s alturas inacessveis em que habita a Trindade, onde ento participar eternamente de uma vida semelhante de Deus.

Esta antropologia crist ensinada pela Sagrada Escritura quando narra que o homem foi constitudo na justia original, mas que a perdeu pelo pecado. Sem a noo da graa impossvel compreender esta antropologia e os problemas que lhe so inerentes na dialtica crist do natural-sobrenatural, da natureza-graa, muito menos ainda se pode compreender o que seja o pecado como ruptura transcendental das relaes de amizade com um Deus que Se tinha dado gratuitamente ao homem. O Deus que infunde a graa no , porm, um ser abstrato, um motor imvel: o nico Deus verdadeiro e pessoal: Pai, Filho e Esprito Santo. Donde se conclui que a graa traz consigo a vida ntima do grande mistrio da Trindade, porque ela , na sua essncia profunda, a doao das trs Pessoas divinas, que penetram no homem transformando-o num templo.

O pecado rompe esta comunho sobrenatural com Deus: consumado o pecado, jamais poderia o homem, por suas prprias foras, restabelecer uma relao a que no tinha direito e que por culpa sua perdeu, tanto para si como para os seus descendentes. Por isso, j desde o incio dos tempos se delineia a expectativa de um Salvador, que outro no seno o prprio Filho de Deus, que Se encarna para reintegrar a humanidade na intimidade com Deus por meio de Sua morte e ressurreio: Mas quando chegou a plenitude dos tempos Deus enviou Seu Filho [...] para que recebssemos a adoo de filhos (Gl 4, 4.5). A graa toma assim uma colorao essencialmente cristolgica e, desde as origens da humanidade, conexa com a Obra de Cristo Salvador. Outra finalidade no tem qualquer ao de Jesus seno o superabundante restabelecimento da primitiva comunho sobrenatural com Deus: Mas onde abundou o pecado superabundou a graa (Rm 5, 20). Consuma-se a doao de Deus por meio da doao filial do Verbo Encarnado, o primeiro de uma multido de irmos que constituem a grande famlia dos filhos de Deus, da qual Ele a Cabea: esta a Igreja, povo de Deus, constituda visivelmente, como convm ao mundo material em que se desenrola a vida humana, mas ao mesmo tempo instrumento eficaz da graa divina, que , na realidade, a graa de Cristo. Jesus fundou a Igreja dando-lhe o carter sacramental, capaz de alcanar o homem em cada instante de sua vida: tais so os sacramentos.

Os santos que a Igreja venera so pessoas que foram dceis ao dom de Deus: neles se contempla o modelo original do que pode ser a alma humana que no interpe obstculos graa, porque a santidade, a que todos so chamados, outra coisa no seno o fruto pleno da graa, que no seu desenvolvimento harmnico alicera as grandes virtudes crists.

Finalmente, a graa tem uma consumao final, individual, social e at csmica na vida sem fim e na bem-aventurana eterna, com a dimenso corporal na ressurreio da carne.

A graa, portanto, envolve toda a histria da salvao, que conhecemos pela Revelao; ao mesmo tempo pressupe a colaborao do homem: aqui nascem os delicados problemas do harmonioso equilbrio que protege a liberdade humana. Surge tambm a questo de saber se o homem pode chegar, por si s, a estes fins sobrenaturais: E se foi pela graa, no foi pelas obras; do contrrio, a graa j no seria graa (Rm 11, 6).

Por tudo isso, voltamos verdade inicialmente afirmada: a teologia catlica respira inteiramente numa atmosfera de graa.

O Pelagianismo e o XVI Conclio de Cartago

I. O PELAGIANISMO

O primeiro ataque perigoso ao dogma catlico do pecado original proveio do pelagianismo, que deitava razes bem mais profundas: na negao da ordem sobrenatural e, portanto, da graa. Segundo os pelagianos Ado foi criado nas mesmas condies em que agora se acha o homem, ou seja, mortal e com todas as qualidades inerentes natureza humana, sem nenhuma elevao sobrenatural adoo divina e participao da vida do Criador. Pelo pecado se tornou merecedor de castigo, mas a culpa afirmam os pelagianos permanece circunscrita s a ele, Ado, e no a seus descendentes, a no ser pelo mau exemplo. Alm disso, tanto Ado como os seus descendentes possuem uma vontade livre, absolutamente independente de Deus e dotada de poderes ilimitados, quer para o bem, quer para o mal. So dois, portanto, os pilares e linhas mestras desta heresia: um naturalismo que exclui a ordem sobrenatural e a independncia da vontade humana com relao a Deus.

claro que os pelagianos falam tambm da graa, mas para eles ela no passa de dons externos, como a Revelao, a lei, o exemplo de Cristo e sobretudo a liberdade, que a capacidade de fazer o bem, que Pelgio chama graa por excelncia.

XVI Conclio de Cartago (1.5.418)

Depois da denncia de Santo Agostinho, foi trabalho deste conclio mostrar a inconsistncia das teses pelagianas.

3. Igualmente foi deciso [deste conclio] que quem disser que a graa de Deus, pela qual o homem recebe a justificao [iustificatur] por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo, s vale para a remisso dos pecados j cometidos, mas no como ajuda para no comet-los seja antema**.

[NOTA: Aqui a graa designada por gratia qua iustificatur homo; no cnon 5, por gratia iustificationis. Pelo contexto deve-se entender a graa como um auxlio sobrenatural de Deus, essencialmente diferente da natureza. Compreende, portanto, a graa santificante e a graa atual.]

Graa e conhecimento4. Igualmente, quem disser que a graa de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor s nos ajuda a no pecar, porque por ela nos revelado e manifestado o sentido dos preceitos [intellegentia mandatorum] para sabermos o que devemos desejar, o que evitar, mas que por ela no nos dado amar tambm e fazer o que sabemos que deve ser feito seja antema. Porque, uma vez que diz o Apstolo: A cincia infla, mas a Caridade edifica (1 Cor 8, 2), terrivelmente mpio crer que temos a graa de Cristo para obtermos a cincia que infla e no para obtermos a Caridade que edifica, uma vez que saber o que devemos fazer e o que devemos amar para faz-lo so dons de Deus, porque a Caridade que edifica impede que a cincia possa inflar. E como de Deus est escrito: Ele que d [docet] ao homem a cincia (Sl 93, 10), assim tambm est escrito: O amor [Caritas] vem de Deus (1 Jo 4, 7).

5. Igualmente foi deciso [deste conclio] que quem disser que a graa da justificao nos dada para que mais facilmente possamos cumprir, pela graa, o que com o livre-arbtrio nos mandado fazer, como se, ainda que no nos fosse dada a graa, pudssemos sem ela, embora no facilmente, mas pudssemos cumprir os mandamentos de Deus seja antema. Na verdade, o Senhor, ao falar dos frutos dos mandamentos, no diz: Sem Mim mais dificilmente podeis fazer, mas diz: Sem Mim nada podeis fazer (Jo 15, 15).

A graa faz evitar o pecado6. Igualmente foi deciso [deste conclio] que a propsito do que diz o Apstolo So Joo: Se dissermos que no temos pecado enganamo-nos a ns mesmos e a verdade no est em ns (1 Jo 1, 8) quem o interpretar no sentido de que preciso dizer que por humildade temos pecado, no porque verdadeiramente assim o seja seja antema. Porque o Apstolo prossegue e acrescenta: Mas se confessarmos os nossos pecados, [Deus] fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda iniqidade (1 Jo 1, 9). Donde suficientemente se v que isto no dizemos s por humildade, mas tambm por veracidade, j que o Apstolo podia dizer: Se dissermos no temos pecado a ns mesmos nos exaltamos e a humildade no est em ns. Mas assim como, ao contrrio, disse: Enganamo-nos anos mesmos e a verdade no est em ns, mostra satisfatoriamente que quem disser que no tem pecado no diz a verdade, mas a falsidade.

7. Igualmente foi deciso [deste conclio] que quem disser que os santos na orao dominical dizem: Perdoai as nossas ofensas [debita nostra] (Mt 6, 12) no se referindo a si mesmos, porque j no tm necessidade deste pedido, mas aos outros de sua comunidade, que so pecadores, e que por isso cada santo individualmente no diz Perdoai-me as minhas ofensas [debita me], mas Perdoai-nos as nossas ofensas [debita nostra], de modo a entender que o justo no pede isto para si, mas antes para os outros seja antema.

Santo e justo era de fato o apstolo So Tiago quando dizia: Com efeito, cometemos todos muitas faltas (Tg 3, 2). Por que motivo, pois, acrescentou todos seno porque esta sentena se conciliava com o salmo, onde se l: No chames a juzo o Teu servo, porque na Tua presena nenhum vivente justo (Sl 142, 2)? E na orao da sapientssimo Salomo: No h ningum que no peque (3 Rs 8, 46). E no livro do santo J: Na mo de todo homem Ele pe um selo para que o homem conhea suas obras (J 37, 7). Por isso, tambm Daniel, santo e justo, ao dizer no plural sua orao: Pecamos, cometemos iniqidades (Dn 9, 5.15), e tudo o mais que ali confessa com sinceridade e humildade, para que ningum pensasse, como pensam alguns, que ele falasse no de seus pecados, mas antes dos pecados do seu povo, acrescenta: Quando () orava e confessava os meus pecados e os pecados do meu povo (Dn 9, 20) ao Senhor meu Deus, no queria dizer os nossos pecados, mas disse os seus pecados e os do povo, porque, como profeta, previu estes [hereges] que haveriam de entend-lo to mal.

8. Igualmente foi deciso [deste conclio] que todo aquele que pretender que as prprias palavras da orao dominical: Perdoai-nos as nossas ofensas [debita nostra] so ditas pelos santos por humildade e no para confessar uma realidade [ut humiliter, non veraciter hoc dicat] seja antema. Quem de fato pode admitir que se faa orao mentindo, no aos homens, mas ao prprio Deus, dizendo com os lbios que se quer ser perdoado, enquanto no corao se afirma no ter faltas [debita] a serem perdoadas?

Embora o pelagianismo, como tendncia a negar o mundo sobrenatural e a graa, sobreviva ainda em muitos espritos, como problema dogmtico a questo foi definitivamente liquidada nos conclios africanos do sc. V, aprovados pela Igreja universal, de tal modo que o pelagianismo propriamente dito acabou no sc. V. Outra coisa o que chamaramos semipelagianismo. O termo relativamente moderno e seria melhor falar de antiagostinismo, porque na prtica foi uma reao excessiva contra algumas frases de Santo Agostinho sobre a economia da graa e sobre a relao entre a livre vontade do homem e a ao de Deus na ordem da salvao.Santo Agostinho sempre defendeu a supremacia da graa ao sustentar quatro teses: 1. Todos os atos que conduzem salvao so praticados com a ajuda da graa; 2. A salvao um dom gratuito de Deus; 3. Deus quer a salvao de todos; 4. A liberdade humana permanece intacta, mesmo sob o influxo da graa. Quatro verdades que, j em vida de Santo Agostinho, parecia difcil conciliar.A resistncia mais obstinada veio dos monges do sul da Frana: contra Santo Agostinho levantaram-se em particular Joo Cassiano e So Vicente de Lrins, que escreveu o Commonitorium, provavelmente dirigido, em polmica, ao santo Doutor. Enquanto a tese agostiniana era de que Deus predestinava gratuitamente a quem Ele quisesse, a objeo dos adversrios era de que pela graa inicial se exigem e bastam os prprios mritos, porque Deus geralmente concede a graa santificante queles que, no exerccio da prpria liberdade, dela se tornaram merecedores; caso contrrio, nem haveria igualdade de condies para todos, nem se respeitaria a liberdade humana.So Prspero de Aquitnia e Santo Hilrio de Poitiers, este de origem africana, ambos de vasta cultura, avisaram a Santo Agostinho e pediram ao Papa So Celestino I que defendesse o santo bispo com uma carta circular dirigida aos bispos das Glias (431), mas Santo Agostinho j estava morto (430). Limitou-se o Papa a defender a autoridade do santo bispo de Hipona, mas sem tomar posio em favor de todas as suas afirmaes. No sculo seguinte So Cesrio de Arles (501-542) conseguiu realizar um conclio em Orange (Arausicano II) e fazer condenar a teologia semipelagiana. As decises do conclio foram depois aprovadas por Bonifcio II (530-532).O Indiculus foi inicialmente atribudo a Celestino I porque desde o sc. VI aparece nos manuscritos junto com a citada carta aos bispos gauleses; hoje a tendncia atribuir sua autoria a So Prspero de Aquitnia. fora de dvida que o Indiculus expresso da F tradicional da Igreja; tanto assim que foi inserido nas Decretais por Dionsio, o Pequeno (por volta do ano 500), e assim o recomenda o Papa So Hormisdas (514-523) ao bispo africano Possessor como um testemunho que reflete a autntica F da Igreja.Porque alguns, que se gloriam do nome de catlicos, persistindo, por malcia ou ignorncia, nas idias [j] condenadas dos hereges, ousam contradizer os pensadores de comprovada piedade [piissimis disputatoribus]; e embora no hesitem em anatematizar Pelgio e Celstio, censuram, no entanto, nossos mestres como se tivessem exagerado e declaram que seguem e aprovam exclusivamente o que prescreveu e ensinou a sacratssima S do Bem-Aventurado Apstolo Pedro, pelo ministrio de seus Pontfices, contra os que negam [contra inimicos] a graa de Deus: por isso, foi necessrio averiguar diligentemente qual foi o juzo dos chefes da Igreja Romana sobre a heresia surgida em seu tempo e o que determinaram se devesse saber sobre a graa de Deus contra os perniciosos defensores do livre-arbtrio. Acrescentaremos tambm algumas decises dos conclios africanos, que sem dvida as fizeram suas os bispos apostlicos, quando as aprovaram. Por isso, para que os que duvidam possam mais plenamente ser instrudos, damos a pblico num breve [indiculo], a modo de compndio, as constituies dos Santos Padres, por meio do qual todo aquele que no for por demais obstinado identifique o ponto central nestas breves mas autorizadas citaes que damos aqui e que, portanto, j no lhe sobra razo alguma para contestar, se quisermos pensar e falar de catlicos.Do pecado original e do livre-arbtrioCap. 1. Na desobedincia de Ado todos os homens perderam o poder natural [naturalem possibilitatem] e a inocncia, e ningum teria podido, pelo livre-arbtrio, erguer-se do abismo daquela runa, se a graa do Deus misericordioso no o levantasse, como o declara e diz o Papa Inocncia, de feliz memria, na carta ao Conclio de Cartago: Depois de outrora ter experimentado mal [perpessus] o livre-arbtrio, ao usar insensatamente seus prprios bens, ficou [o homem], ao cair, submerso nas profundezas de seu pecado, e nada achou por onde pudesse dali levantar-se; e, enganado para sempre por sua liberdade, teria ficado prostrado pela opresso desta runa se mais tarde no o tivesse levantado, com Sua graa, a vinda de Cristo, que, por meio da purificao de um novo nascimento [novae regenerationis], lavou, com as guas do Batismo [sui Baptismatis lavacro], toda a mancha [vitium] passada.Da necessidade da graa2. Ningum bom por si mesmo se no lhe der a participao de Si Aquele que o nico Bom [qui solus est bnus] (cf. Mt 19,17; Mc 10,18; Lc 18,19). Isto declarado no trecho da mesma carta do mesmo Pontfice, que diz: Acaso podemos, daqui para a frente, esperar algo de bom daqueles espritos que pensam que seja por mrito prprio que so justos, sem levar em considerao Aquele de quem recebem diariamente a graa e que confiam poderem conseguir to grande coisa sem Ele? (Inocncio I, Epistola In requirendis)3. Ningum, nem mesmo depois de ter sido renovado pela graa do Batismo, capaz de escapar das ciladas do demnio e dominar as concupiscncias da carne, se no receber de Deus a ajuda diria da perseverana na boa conduta. Isso confirmado pelo ensinamento do mesmo bispo quando diz na mesma carta: Porque embora tenha Ele redimido o homem dos pecados passados, mas sabendo que de novo podia pecar, muitos meios reservou para soergu-lo, de modo que, ainda depois destes pecados, pudesse corrigi-lo, oferecendo-lhe diariamente remdios, sem cujo auxlio e sustentao jamais podemos vencer os erros humanos. de fato inevitvel que, se vencermos com Seu auxlio, sejamos vencidos se Ele no nos ajudar.4. Que ningum faa bom uso do livre-arbtrio seno pela graa de Cristo [per Christum] declara-o o mesmo doutor na carta ao Conclio de Milevi: doutrina perversa de mentes degeneradas, pensa tambm nisto: foi precisamente a liberdade que enganou o primeiro homem, de tal modo que, afrouxando com excessiva indulgncia os freios, por presuno caiu no pecado. E dele no teria podido sair se a Providncia no o tivesse restitudo ao primeiro estado de liberdade com a regenerao da advento de Cristo (Epstola Inter ceteras)5. todo o empenho e todas as obras e mritos dos santos devem ser referidos glria e louvor de Deus, porque ningum O agrada seno por aquilo que Ele mesmo lhe d. A esta afirmao nos dirige a legtima autoridade do Papa Zzimo, de feliz memria, quando, escrevendo aos bispos de todo o mundo, diz: Ns, porm, por moo de Deus [instinctu Dei], tudo referimos conscincia dos nossos irmos bispos, porque todos os bens devem ser atribudos a seu Autor, donde provm (Zzimo, Tractoria 3). E os bispos africanos veneraram com tal honra estas palavras, que irradiam luz da mais pura verdade, que assim lhe responderam: O que puseste na carta, que tiveste o cuidado de enviar a todas as provncias, dizendo Ns, porm, por moo de Deus etc. compreendemos como se tu, ao atalhar rapidamente, tivesses decapitado com a espada da verdade aqueles que, contra o auxlio de Deus, exaltam a liberdade do arbtrio humano. O que, pois, fizeste com um arbtrio to livre seno grav-lo inteiramente na nossa conscincia [in nostrae humilitatis conscientizam retulistis]? E no entanto, com F e sabedoria, compreendeste e com veracidade e confiana declaraste que isto foi feito por moo de Deus. E verdadeiramente assim , porque a vontade preparada pelo Senhor (Pr 8,35) e Ele move o corao de Seus filhos com paternais inspiraes, para que faam algum bem [boni aliquid]. Porque todos aqueles que so conduzidos pelo Esprito de Deus so filhos de Deus (Rm 8,14), e assim nem pensemos que falta nosso arbtrio, nem duvidemos que em cada bom movimento da vontade humana tem mais fora o Seu auxlio [magis illius valere non dubitemus auxilium].6. De tal modo Deus age nos coraes dos homens e no prprio livre-arbtrio que um santo pensamento, um piedoso propsito e todo o movimento de boa vontade vm de Deus, porque por Ele podemos algum bem, sem Ele nada podemos (cf. Jo 15,5). Para fazer esta profisso nos instrui o mesmo doutor Zzimo quando fala aos bispos do mundo inteiro sobre o socorro da graa divina: Que tempo, pois, existe diz ele em que no necessitemos de Sua ajuda? Por conseguinte, em todos os nossos atos, dvidas, pensamentos e sentimentos, deve ser invocado nosso Auxiliador e Protetor. Seria soberba, portanto, que a natureza humana, presumisse algo de si, quando clama o Apstolo: Nossa luta no [s] contra a carne e o sangue, mas contra os principados e potestades [do inferno] (), contra os espritos malignos [espalhados] pelos ares (Ef 6,12). E como ele mesmo diz outra vez: Infeliz de mim! Quem me livrar deste corpo de morte? A graa de Deus por meio de Jesus Cristo Nosso Senhor (Rm 7,24-25). E de novo: Pela graa de Deus sou o que sou e Sua graa em mim no foi estril; antes, tenho trabalhado mais que todos eles; no eu, mas a graa de Deus, que est comigo (1 Cor 15,10).