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"Este livro reflete o percurso de Ali Kamel e também o de muitos brasileiros que levaram a sério os que propõem a política de cotas raciais eaqueles que formulam as políticas sociais do governo. Oque aqui se discute não diz res- peito apenas à universidade pública ou aos que recebem os benefícios so- ciais. O que está em pauta é a nossa concepção de nação, o nosso destino como país e o nosso futuro. Os textos de Ali Kamel têm sido fonte riquíssi- ma de informação e de discussão para pesquisadores pelo país afora. Os artigos revelam um cientista social acostumado a fazer perguntas e a de- sarmar as armadilhas do óbvio, de discursos que têm pretendido se impor como discursos de verdade. Eu, particularmente, me encanto com seu esti- lo direto e elegante de tratar essas questões e, mais ainda, com o encontro com esse independente, iconoclasta e ousado crítico da política brasileira." YVONNE MAGGIE - . - EDITORA NOVA FRONTEIRA SEMPRE UM BOM LIVRO - - EDITORA NOVA FRONTEIRA

KAMEL, Ali - Não somos racistas

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Page 1: KAMEL, Ali - Não somos racistas

"Este livro reflete o percurso de Ali Kamel e também o de muitos brasileiros

que levaram a sério os que propõem a política de cotas raciais e aqueles que

formulam as políticas sociais do governo. Oque aqui se discute não diz res­

peito apenas à universidade pública ou aos que recebem os benefícios so­

ciais. O que está em pauta é a nossa concepção de nação, o nosso destino

como país e o nosso futuro. Os textos de Ali Kamel têm sido fonte riquíssi­

ma de informação e de discussão para pesquisadores pelo país afora. Os

artigos revelam um cientista social acostumado a fazer perguntas e a de­

sarmar as armadilhas do óbvio, de discursos que têm pretendido se impor

como discursos de verdade. Eu, particularmente, me encanto com seu esti­

lo direto e elegante de tratar essas questões e, mais ainda, com o encontro

com esse independente, iconoclasta e ousado crítico da política brasileira."

YVONNE MAGGIE

- .• •

-EDITORANOVA

FRONTEIRA

SEMPREUM BOM

LIVRO •- ­EDITORANOVA

FRONTEIRA

Page 2: KAMEL, Ali - Não somos racistas

Não somos racistas é um livro nasci­

do do espanto. Movido pelo instinto de

repórter, Ali Kamel, diretor de jornalis­

mo da Rede Globo, começou a perce­

ber que os diversos projetas instituin·

do cotas raciais, em tramitação no

Congresso, dividem o Brasil em duas

cores, eliminando todas as nuances

características da nossa miscigena­

ção. Ali Kamel constata que, nesta di­

visão entre brancos e não-brancos,

os "não-brancos" são considerados

todos negros: "Certo dia, caiu a ficha:

para as estatísticas, negros eram to­

dos aqueles que não eram brancos.

Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo,

escurinho, moreno, marrom-bom­

bom? Nada disso, agora ou eram

brancos ou eram negros. [ ... ) Pior:

uma nação de brancos e negros onde

os brancos oprimem os negros. Outro

susto: aqLlele país não era o meu."

A tentativa de entender e reconhecer

este novo país fez com que o jornalis­

ta, ex-aluno do Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais da UFRJ, revisse anti·

gas leituras e pesquisasse documen­

tos, livros e teses. Oprimeiro capítulo

de Não somos racistas mostra como a

política de cotas começou a ser cons­

truída no governo Fernando Henrique

Cardoso em grande sintonia com o

que pensava, nos anos de 1950, o en­

tão jovem sociólogo Fernando Henri·

que Cardoso.

-NAO SOMOS RACISTAS

Page 3: KAMEL, Ali - Não somos racistas

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UMA REAÇÃO AOS QUE QUEREM NOS TRANSFORMAR NUMA NACÃO BICOLORjc

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~­EDITORANOVA

FRONTEIRA

Page 4: KAMEL, Ali - Não somos racistas

© by Ali Kamel

Direitos de edição da obra em língua portuguesaadquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Todos osdireitos reservados. Nenhuma parte desta obra podeser apropriada e estocada em sistema de banco dedados ou processo similar, em qualquer forma oumeio, seja eletrônico. de fotocópia, gravação etc.,sem a permissão do detentor do copirraite.

EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.Rua Bambina, 25 - Botafogo - 22251-050Rio de Janeiro - RJ - BrasilTel.: (21) 2131-1111- Fax: (21) 2286-6755http://www.novafronteira.com.bre-mail: [email protected]

Cip-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Para Patrícia, Alice e Sofia

K23n Kamel, AliNão somos racistas : uma reação aos

que querem nos transformar numa naçãobicolor / Ali Kamel - Rio de Janeiro: NovaFronteira, 2006

ISBN 85-209-1923-5

1. Brasil - Relações raciais. 2. Discri­minação - Brasil. 3. Racismo - Brasil. I.Título.

COD 305.8CDU 316.356.4

Page 5: KAMEL, Ali - Não somos racistas

Prefácio

Agradecimentos

A gênese contemporânea da nação bicolor

Raças não existem

Sumiram com os pardos

O que os números não dizem

Negros e brancos no mercado de trabalho

Alhos e bugalhos

As cotas no mundo

Estatuto das raças

"Classismo"t o preconceito contra os pobres

Pobres e famintos

O dinheiro que não vai para os pobres

Educação, a única solução

Há solução

SUMÁRIO

9

15

17

43

49

59

73

81

89

97

101

105

115

129

139

Page 6: KAMEL, Ali - Não somos racistas

PREFÁCIO

Yvonne Maggíe

ERA UM.-\ SEXTA-FEIRA, FI1\Al DE TARDE QUE\TE DE MARÇO DE 2004. ESTAVA

descendo as escadarias do Instituto de Filosofia e Ciências So­

ciais (IFCS) da UFRJ, onde sou professora há mais dt.' trinta anos,

quando vi um cartaz anunciando um debate sobre o projeto de

reforma universitária com a presença do reitor Aloísio Teixeira e

de Ali Kamel, entre outros convidados. Resolvi assistir ao evento.

O salão nobre estava lotado de uma platéia colorida com algumas

lideranças de movimentos negros e estudantes de história, filosofia

e ciências sociais. Apesar de anunciarem um debate sobre a refor­

ma universitária, os estudantes disseram que iriam discutir as cotas

raciais. Fiquei surpresa. Entre os temas discutidos peios estudantes

universitários o racismo não costumava ser ponto de pauta.

Ali Kamel foi o primeiro a falar, criticando vivamente a política

de cotas. O ;ornalista, que é também cientista social e ex-aluno do

IFCS, expãs o seu ponto de vista de um modo muito singular. Não

negava o racismo que, em suas palavras, é um mal que atinge a

humanidade, mas sustentava que aqui o racismo não é estrutural

e o "classismo" é O mal maior.

O debate no IFeS foi tão emocional como todos os que se se­

guiram com diferentes personagens e em diferentes cenários. Sua

estrutura, quase ritual, em forma de drama social, mudou pouco

nesses últimos anos. Posições contra e a favor das cotas na mesa e,

Page 7: KAMEL, Ali - Não somos racistas

10 NÃO SOMOS RACISTAS PREFÁCIO 11

quem "preto" e "negro" eram, até pouco tempo, sinônimos. En­

tre os 56,8 milhões de pobres, as estatísticas div'Ulgadas pelos que

apóiam as cotas raciais falam em 65,8% de negros e não 7,1% de

pretos. Omite-se que os autodeclarados brancos são efetivamente

34,2% entre os pobres, e os autodeclarados pardos, 58,7%. Por­

tanto, diz Ali Kamel, "se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa

cor é parda". Esta "descoberta", publicada no Globo pela primeira

vez em 2003, foi a primeira de uma série que permitiu colocar em

xeque um discurso que tentava se impor como verdade para toda

a sociedade, o discurso que visava a construir a nação dividida em

brancos e negros.

No terceiro e quarto capítulos, chama a atenção para as dificul- ~dades de concluir, com os dados apresentados, que é o racismo que ~ Iproduz as desigualdades entre brancos e negros (pretos e pardos nas .4 festatísticas oficiais). Outros pesquisadores já haviam apontado essa ~~inconsistência, mas à boca pequena, intramuros r no ambiente aca- ~ 1"dêmico. Diz mais: mesmo se descrevermos o país, conceitualmente '-.:3 ~dividido entre negros e brancos, esses resultados não nos autorizam ~a afirmar que tais desigualdades se devem ao racismo dos brancos, jf 1-como afirmam os defensores da política de cotas. I

Mas os modelos estatísticos divulgados pela imprensa não são o

único alvo de Ali Kamel que se insurge, no capítulo sete, contra

o Estatuto da Igualdade Racial para mostrar que este documento

é prova irrefutável de que há quem queira ver o país cindido ra­

cialmente. O documento, diz ele, é uma prova de que "querem­

nos uma nação bicolor, apenas negros e brancos, com os brancos

oprimindo os negros". A solução dada por estes que vêem assim o

nosso país nesse documento é investir aâ mH/seam em cotas raciais

de todos os tipos. Será esse o Brasil que queremos?, pergunta ele.

Ali Kamel formula então uma outra e muito mais ousada hipó­

tese. E se o problema for a pobreza e não o racismo? Os capítulos

oito e nove respondem a esta pergunta afirmando que as desigual­

dades no Brasil não podem ser explicadas pelo racismo porque o

na platéia, um grupo ruidoso que clama pelas cotas raciais e acusa

de racistas os que criticam a política.

Acusados de defender os privilégios de uma elite branca que

se beneficiou e se beneficia com o racismo, o que na nossa so­

ciedade é crime que envergonha, os críticos da política de cotas

raciais ficam acuados. Se isso ocorre com aqueles que estão no

meio acadêmico ou em ambientes menos formais, mais ainda com

Ali Kamel que, além de cientista social e jornalista, é também um

importante executivo de jornalismo das Organizações Globo. Exe­

cutivos de grandes redes, usualmente, não manifestam suas posi­

ções pessoais sobre temas nacionais. Por isso, sua participação no

debate público é tão importante para demonstrar que as empresas

da mídia são instituições formadas por alguns indivíduos que têm

opiniões próprias, uma outra batalha que Ali Kamel vem travando

com muitas patrulhas de plantão.

Logo no início deste livro, cuja base são os artigos que Ali Ka­

mel vem publicando no jornal O Globo, há um capítulo sobre

"raça". "Raças não existemN, diz o autor. Ressuscitar esse conceito

já negado pela ciência seria uma armadilha para o país. Ali Kamel

enfrenta sem medo os números que, em geral, levaram muitas

pessoas a se envergonhar do "nosso racismo". Pergunta ainda o

propósito de unir "pretos" e "pardosN em uma única categoria,

a categoria "negro", e vê aí o desejo dos movimentos negros que

querem o país dividido em brancos e negros, idéia essa que de­

senvolve no segundo capítulo. "Sumiram com os pardos N revela

o "truque" que é usado para descrever o país dividido. Os movi-

\

mentos negros e também os cientistas sociais que se colocaram

a favor da política de cotas chamam de "negros" o conjunto de

"pretos" e "pardos" conforme as estatísticas oficiais. Assim] em vez

de uma população de 5,9% de pretos, as estatísticas divulgadas em

prol da política de cotas falam em 48% de "negrosN

• Os 42% de

autodeclarados pardos não aparecem. Essa démarche metodológica

é explicada em pé de página e confunde a maioria das pessoas para

1]

Page 8: KAMEL, Ali - Não somos racistas

12 NÃO SOMOS RACISTAS

que coloca pretos, pardos e brancos pobres em desvantagem é a

própria pobreza.

Depois de ter debatido com os movimentos negros e os for­

muladores da política de cotas, e acreditando que era preciso in­

vestir em programas sociais consistentes, Ali Kamel dirigiu seu

olhar crítico para a questão das políticas de transferência de ren­

da. Com a mesma paciência e metódico procedimento socioló­

gico com que decifrou os números das desigualdades "raciais",

discutiu as estatísticas divulgadas pelo governo, mostrando que

o combate à pobreza está errando a pontaria e que os mais pobres

não estão realmente sendo atendidos. A argumentação que ele

expôs por meses nos artigos quinzenais do Globo está na segunda

parte do livro e cumpre assim a difícil tarefa de discutir políticas

públicas com instrumental sociológico, usando uma linguagem

que pode ser entendida por pessoas não familiarizadas com o

jargão acadêmico.

O último capítulo, antes da conclusão, é uma resposta à pergun­

ta que não quer calar sempre que se criticam as políticas públicas.

O que fázer? Ali Kamel sugere uma saída que mesmo parecendo

simples não está sendo tomada como prioridade: investimento

macico na educacão básica. Os' vultosos recursos utilizados em, ,

programas sociais deveriam ser dirigidos para as escolas. Em boa

hora, cita Sergio Costa Ribeiro, que também criticou vivamente a

política educacional que se estabeleceu como consenso entre edu­

cadores e formuladores de política de todas as correntes e partidos,

de todas as ideologias e seitas desde os anos 1930. Costa Ribeiro

conseguiu também desfazer discursos de verdade e fez o Brasil des­

cobrir que as crianças e jovens não saíam da escola precocemente

para trabalhar. Saíam da escola depois de muitos anos passados

nela sem serem promovidos e sem direito a diplomas. Fez isso

olhando e decifrando números para descobrir que havia na pri­

meira série do ensino fundamental, no início dos anos 1980, qua­

tro vezes mais crianças de sete anos do que esta coorte de idade no

PREFÁCIO 13

Brasil. Graças a esta descoberta, as políticas educacionais puderam

ser redefinidas em meados dos anos 1990. Hoje. portanto, há mais

esperança do que naqueles anos 1980.

Sergio Costa Ribeiro demonstrou para os brasileiros que não

se devem temer patrulhas ideológicas quando se trata de ques­

tões que afetam o país de forma tão centraL Mas, com a aceitação

das suas hipóteses, que também pareceram ousadas na época em

que foram formuladas, acabou provando que água mole em pedra

dura tanto bate até que fura. Ali Kamel vai pelo mesmo caminho.

Este livro reflete o percurso de Ali Kamel e também o de muitos

brasileiros que levaram a sério os que propõem a política de cotas

raciais e aqueles que formulam as políticas sociais do governo. O

que aqui se discute não diz respeito apenas à universidade pública

ou aos que recebem os benefícios sociais. O que está em pauta é

a nossa concepção de nação, o nosso destino como pais e o nos­

so futuro. Os textos de Ali Kamel têm sido fonte riquíssima de

informação e de discussão para pesquisadores pelo país afora. Os

artigos revelam um cientista social acostumado a fazer perguntas

e a desarmar as armadilhas do óbvio, de discursos que têm preten­

dido se impor como discursos de verdade. Eu, particularmente, me

encanto com seu estilo direto e elegante de tratar essas questões e,

mais ainda, com o encontro com esse independente, iconoclasta e

ousado crítico da política brasileira.

Rio de Janeiro, 16 de abril de 2006

Page 9: KAMEL, Ali - Não somos racistas

AGRADECIMENTOS

FAZER UM LIVRO COMO ESTE REQUER ii AJUDA DE MUlTAS PESSOAS E, NESSE

momento, quero agradecer a todas. A primeira delas é minha

mulher, Patrícia Kogut, sempre a primeira a ler meus artigos e a

comentá-los, melhorando-os com seus comentários inteligentes e

bem-humorados.

Não posso deixar também de agradecer a um grupo de cientis­

tas sociais que, mesmo divergindo de mim em muitos aspectos,

ajudaram-me, lendo os originais e fazendo críticas preciosas.

Ao longo de muitos anos, sempre encontrei em José Roberto

Pinto de Góes a figura de um amigo e de um irmão. Mais recente­

mente) tive dele também o olhar do historiador brilhante, que me

pôs no rumo certo sempre que eu me desviava dele. Se não obteve

êxito sempre, a culpa não é dele, mas de minha teimosia.

Yvonne Maggie, uma das antropólogas de maior brilho em nos­

so país, brindou-me com a sua amizade e com uma troca de e­mails que alimentou meu gosto pela discussão: sei que ela guarda

reservas em relação a posições minhas, mas sei ainda com mais

certeza que isso não a afasta um milímetro sequer da disposição

de ouvir e ponderar.

A Peter Fry, eu agradeço pela leitura de seus livros e de seus arti­

gos, que me levaram por caminhos que eu gostei de trilhar, apesar

de ele me mostrar, muitas vezes, que o caminho que trilhei era um

atalho que ele não percorreria.

Page 10: KAMEL, Ali - Não somos racistas

16 NÃO SOMOS RACISTAS

Numa página de agradecimentos, não posso deixar de mencio­

nar o IBGE: num país como o nosso, a existência de uma insti­

tuição assim, tão permanentemente excelente ao longo dos anos,

é simplesmente um bálsamo. Quando se tem noção dos apertos

financeiros do instituto, a dedicação e a competência de seus pes­

quisadores se sobressaem ainda mais. Minhas reflexões sobre o

terna só são possíveis graças ao trabalho deles, graças a publica­

ções que se mantêm, como rotina, em tempos bons ou em tempos

maus. Meu acesso a esses trabalhos, e o de toda a imprensa, é sem­

pre aberto pela generosidade e paciência de Luiz Mario Gazzaneo,

Silvia Maia e Maria Lea.

Por fim, é importante mencionar que eu não teria tido minha

atenção disciplinadamente voltada para os temas deste livro não

fossem as colunas que passei a escrever no jornal O Globo, quin­

zenalmente, a partir de 2003. Da mesma forma, meu trabalho co­

tidiano na TV Globo, que me põe minuto a minuto frente ao que

se passa no Brasil e no mundo, dá a mim uma posição confortável

de observador (se faço bom uso disso, o leitor julgará). Assim, não

posso deixar de agradecer, pelo estímulo e pela paciência, a meus

colegas de jornal e de T\~ todos eles, mas especialmente a Aluizio

Maranhão, Carlos Henrique Schroder, Merval Pereira e Rodolfo

Fernandes. Terezoca, que poucos chamam de Maria Theresa Pi­

nheiro, tem um papel importante nisso tudo: é o meu "grilo fa­

lante" particular, sempre disposta a dizer o que pensa, sem medo

de me contrariar (ao contrário, com certo gosto).

João Roberto Marinho tem sido sempre um incentivador, e sou

grato a ele, de coração, pelas oportunidades que tive. A sorte dos

leitores, e espectadores, é que a crença que ele e seus irmãos Ro­

berto Irineu e José Roberto Marinho têm na pluralidade de idéias

faz com que O Globo e a TV Globo abram igualmente espaços para

colegas que pensam o oposto de mim.

Essa é a beleza de uma imprensa livre.

A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR

FOI UM MOVIMENTO LENTO. SURGIU NA ACADEMIA, Ei\TRE ALGUNS SOCIÓLOGOS

na década de 1950 e, aos poucos, foi ganhando corpo até se tornar

política oficial de governo. Mergulhado no trabalho jornalístico

diário, quando me dei conta do fenômeno levei um susto. Mais

urna vez tive a prova de que os grandes estragos começam assim:

no início, não se dá atenção, acreditando-se que as convicções em

contrário são tão grandes e arraigadas que o mal não progredirá.

Quando acordamos, leva-se o susto. Eu levei. E, imagino, muitos

brasileiros devem também ter se assustado: quer dizer então que

somos um povo racista?

Minha reação instintiva foi me rebelar contra isso. Em 2003, pu­

bliquei no Globo um artigo cujo título dizia tudo: "Não somos racis­

tas." Depois dele, publiquei outros tantos e, hoje, vendo-os no con­

junto, tenho a consciência de que fui me dando conta do estrago

à medida que ia escrevendo. Escrevi sempre na perspectiva de um

jornalista, de alguém especializado em ver o imediato das coisas.

Outros lutaram em seus campos, sempre com muita propriedade.

Gente como os historiadores José Roberto Pinto de Góes, Manolo

Florentino, José Murilo de Carvalho e Monica Grin, os antropólo­

gos Yvonne Maggie, Peter Fry e os sociólogos Marcos Chor Maio, Ri­

cardo Ventura e Demétrio Magnoli e o jornalista Luis Nassif, entre

tantos outros, tentaram alertar a sociedade brasileira para o perigo

nos jornais, em artigos especializados, em seminários e em livros.

Page 11: KAMEL, Ali - Não somos racistas

18 NÃO SOMOS RACISTAS

Na perspectiva de jornalista, de alguém mais próximo do ci­

dadão comum, espantei-me diante de algumas descobertas. Um

exemplo, o conceito de negro. Para mim, para o senso comum,

para as pessoas que andam pelas ruas, negro era um sinónimo de

preto. Nos primeiros artigos, eu me debatia contra urna leitura

equivocada das estatísticas oficiais acreditando nisso. Certo dia,

caiu a ficha: para as estatísticas, negros eram todos aqueles que

não eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escuri­

nho, moreno, marrom-bombom? Nada disso, agora ou eram bran­

cos ou eram negros. De repente, nós que éramos orgulhosos da

nossa miscigenação, do nosso gradiente tão variado de cores, fo­

mos reduzidos a uma nação de brancos e negros. Pior: urna nação

de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro

susto: aquele país não era o meu.

O debate em torno de raças no Brasil sempre foi intenso. Dei­

xando de lado todo o debate entre escravocratas e abolicionistas, o

século XX foi todo ele permeado por essa discussão. Nas primeiras

décadas do século passado, o pensamento majoritário nas ciências

sociais era racista. Mas até ele reconhecia que o Brasil era fruto da

miscigenação. O racismo era decorrente justamente dessa consta­

tação: para que o país progredisse, diziam os sociólogos, era pre­

ciso que se embranquecesse, diminuindo a porção negra de nosso

povo. Foi Gilberto Freyre quem mais se destacou em se contrapor

a um pensamento tão abjeto corno este.

Freyre não foi o autor do conceito de "democracia racial", não

foi ele quem cunhou o termo, hoje tão combatido. Aliás, era aves­

so a tal conceito, porque o que ele via corno realidade era a mesti­

çagem e não o convívio sem conflito entre raças estanques. Usou

em discursos a expressão urna ou duas vezes, a partir da década de

1960, mas sempre como sinónimo de um modelo em que a mis­

cigenação prevalece. Jamais edulcorou a escravidão. Casa grande e

senzala, a obra-prima de Freyre, dedica páginas e mais páginas ao

relato das atrocidades que se fizeram contra os escravos. Está tudo

A GÊNESE CONTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 19

ali, todos os sofrimentos impostos aos escravos: o trabalho desu­

mano nas lavouras, as meninas menores de 14 anos, virgens, vio­

ladas na crença de que o estupro curaria a sífilis, as mucamas que

tinham os olhos furados e os peitos dilacerados apenas por desper­

tar os ciúmes das senhoras de engenho. Freyre não omite nada;

expõe. É claro que também reconhece no branco português uma

elasticidade, sem o que não poderia ter havido mistura. Éclaro que

descreve certo congraçamento entre o elemento branco e o negro.

Essas características de Casa grande e senzala, no entanto, foram tão

realçadas com o decorrer do tempo que muitos hoje acreditam,

erradamente, que Freyre escondeu os horrores da escravidão para

fazer do Brasil mais do que urna democracia racial, um paraíso.

O papel de Freyre, porém, foi outro, muito mais marcante. No

debate com o pensamento majoritário de então, o que Freyre fez

foi resgatar a importância do negro para a construção de nossa

identidade nacional, para a construção da nossa cultura, do nosso

jeito de pensar, de agir e de falar. Ele enalteceu a figura do negro,

dando a ela sua real dimensão, sua real importância. A nossa mis­

cigenação, concluímos depois de ler Freyre, não é a nossa chaga,

mas a nossa principal virtude. Hoje, quando vejo o Movimento

Negro depreciar Gilberto Freyre, detratando-o corno a um inimi­

go, fico tonto. Os ataques só podem ser decorrentes de uma leitura

apressada, se é que decorrem mesmo de uma leitura.

Corno bem tem mostrado a antropóloga Yvonne Maggie, a visão

de Freyre coincidiu com o ideal de nação expresso pelo movimen­

to modernista, que via na nossa mestiçagem a nossa virtude. Num

certo sentido, digo eu, a antropofagia cultural só poderia ser mes­

mo uma prática de uma nação que é em si uma mistura de gentes

diversas. Esse ideal de nação saiu-se vitorioso e se consolidou em

nosso imaginário. Gostávamos de nos ver assim, miscigenados.

Gostávamos de não nos reconhecer como racistas. Como diz Peter

Fry, a "democracia racial", longe de ser uma realidade, era um alvo

a ser buscado permanentemente. Um ideal, portanto.

Page 12: KAMEL, Ali - Não somos racistas

20 NÃO SOMOS RACISTAS

Isso jamais implicou deixar de admitir que aqui no Brasil existia

o racismo. É evidente que ele ex:istia e existe, porque onde há ho­

mens reunidos há também todos os sentimentos, os piores inclu­

sive. Mas a nação não somente não se queria assim como sempre

condenou o racismo. Aqui, após a Abolição, nunca houve barrei­

ras institucionais a negros ou a qualquer outra etnia. E para com­

bater as manifestações concretas do racismo - inevitáveis quando

se fala de seres humanos - criaram-se leis rigorosas para punir os

infratores, sendo a Lei Afonso Arinos apenas a mais famosa delas.

Mas a partir da década de 1950, certa sociologia foi abando­

nando esse tipo de raciodnio para começar a dividir o Brasil

entre brancos e não-brancos, um pulo para chegar aos que hoje

dividem o Brasil entre brancos e negros, afirmando que negro

é todo aquele que não é branco. Nos trabalhos de Florestan

Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e, mais

adiante, Carlos Hasenbalg, se a idéia era "fazer ciência", o resulta­

do sempre foi uma ciência engajada, a favor de negros explorados

contra brancos racistas. A idéia que jazia por trás era que a imagem

que tínhamos de nós mesmos acabava por ser maléfica, perversa

com os negros. Era como se o ideal de nação a que me referi tivesse

como objetivo o seu contrário: idealizar uma nação sem racismo

para melhor exercer o racismo. O papel da ciência, "para o bem

dos negros", seria desmascarar isso, tirando o véu da ideologia e

substituindo-a pela realidade do racismo. Esse raciocínio levava,

porém, ao paroxismo de permitir a suposição de que um racismo

explícito é melhor do que um racismo envergonhado, esquecen­

do-se de que o primeiro oprime sem pudor, enquanto o segundo,

muitas vezes, deixa de oprimir pelo pudor.

A chave metodológica encontrada por essa certa sociologia foi

importar dos Estados Unidos uma terminologia que não era a nos­

sa, revestindo-a de uma nova roupagem. Na construção de Oracy

Nogueira, aqui como lá, seríamos negros e brancos, mas lá o racis­

mo seria de origem (demarcado pela ascendência) e aqui, de marca

A GÊNESE CQNTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 21

(determinado pela aparência). Lá, se um cidadão de pele branca e

olhos e cabelos claros tiver um negro como antepassado, distante

que seja, toda a carga de preconceitos e interdiçôes contra os ne­

gros em geral recairá sobre ele. Aqui, mais valeria a aparência do

que a origem: um cidadão de pele, olhos e cabelos claros, mesmo

tendo negros na família, será mais bem aceito que os negros em

geral - mas, na visão de Oracy, apenas até que ocorra uma briga]

quando, então, o primeiro xingamento a surgir na cabeça do bran­

co será chamar o negro de il seu negro isso; seu negro aquilo".

Oracy relaciona toda uma série de atributos relacionados ao

preconceito de origem e ao de marca. Onde há preconceito de ori­

gem, diz ele, o negro é excluído de certos direitos, segregado, nao

pode ter relações de amizade com brancos, e, como conseqüência,

é muito mais consciente do preconceito que recai sobre si e, pOI

isso, mais propenso a lutar corno grupo pelo fim de injustiças.

Onde o preconceito é de marca, explica Oracy; o negro é malS pre­

terido do que excluído (mas pode inclusive vir a ser aceito como

um igual, como exceção), é assimilado (e, nesse sentido, tenderia

a desaparecer, pela miscigenação, o que, na visao dos brancos e

sempre segundo Oracy, seria um resultado altamente esperado"

pode cruzar as fronteiras da cor no estabelecimento de relações

de amizade, e, como conseqüência, é menos consciente do pre­

conceito que sofre e, por isso, menos disposto a lutar como grupo

pelos seus direitos. Muito inteligente essa distinção entre marca

e origem, mas, na verdade, entendo que, diante de duas realida­

des absolutamente distintas - a situação do negro nos EUA e no

Brasil - o que essa construçã.o teórica de Oracy faz é torná-Ias

parecidas, semelhantes.

Em vez de ver as nossas especificidades e, diante delas, opor-nos

frontalmente à situação americana, Oracy acaba por nos igualar,

tornando-nos, como sociedade, tão racistas quanto os americanos.

Ao reconhecer que no Brasil as relações de amizade inter-raciais,

os casamentos mistos, a inexistência de barreiras institucionais

Page 13: KAMEL, Ali - Não somos racistas

22 NÃO SOMOS RACISTAS

contra os negros, a ausência de conflito e de consciência de raça

são uma realidade entre nós, Oracy poderia simplesmente chegar

à conclusão de que não somos uma sociedade em que o racismo

é o traço dominante. Mas ele prefere se apegar às manifestações

concretas de racismo que aqui existem - xingar o negro disso e

daquilo, preterir o negro em favor do branco etc. - e dizer que

elas são a regra, quando na verdade são, se não a exceção, mani­

festações minoritárias em nosso modo de viver.

O racismo, lá e aqui, é sempre de origem. Lá, um sujeito de pele

e olhos claros será considerado negro apenas e se a sua ascendên­

cia for conhecida, já que os americanos ainda não têm o dom da

vidência: se esconder a sua origem, passará incólume. Quem du­

vidar deve ler o romance A marca humana, de Philip Roth, em que

um homem, filho de negros, nasce com pele e olhos claros, decide

renegar a família e vive em paz como judeu até ser, injustamen­

te, acusado de racismo por uma aluna negra. Um homem branco

aqui, mas de família negra, não sofrerá as agruras do racismo ape­

nas se as suas origens não forem descobertas por um racista. Se

forem, sofrerá.

O que quero dizer é que racistas são iguais, aqui ou lá fora. Im­

põem um sofrimento terrível. É evidente que nos EUA o racismo é

rotineiramente mais duro, mais explícito, mais direto. Mas como

saber se o xingamento aberto dói mais ou menos do que o des­

prezo velado? Não tenho dúvidas de que um arranhão dói menos

do que uma amputação, mas quem poderá dizer se o sofrimento

na alma que o racismo impõe é maior ou menor dependendo da

rispidez do ato racista? Não nego que lá o repúdio é total a tudo

o que vem dos negros; aqui, quase todos, mesmo os racistas, en­

cantam-se com o que se considera ter vindo da África. Mas a nossa

principal diferença em relação aos americanos não é apenas por­

que aqui, quando existe, o racismo se revela de maneira menos

óbvia. A nossa diferença é que aque não há como negar, há um

menor número dessa gente odiosa, os racistas.

A GÊNESE CONTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 23

Não me agrada, portanto, essa diferença entre racismo de origem

e racismo de marca, por mais engenhosa que ela seja. Sei que estou

na contramão das interpretações sobre a obra de Oracy, aplaudi­

do por nos reconhecer como diferentes. Mas é o que eu digo: ele

não faz isso com o propósito de nos diferenciar, mas de explicar

que, apesar das diferenças, somos iguais. Apesar de aparentemente

diferentes, brasileiros e americanos são igualmente racistas. Tive

pela primeira vez essa visão da obra de Oracy quando, num de­

bate no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, diante de toda a minha argumentação

sobre como éramos uma sociedade essencialmente diferente no

tocante ao racismo - mais tolerante, buscando, ao menos como

propósito, a prevalência da crença de que as cores não tornam

ninguém melhor ou pior - o sociólogo Carlos Alberto Medeiros,

com ar de enfado, aparteou-me dizendo: "Oracy Nogueira já ex­

plicou tudo isso. Aqui o preconceito é de marca; lá, é de origem."

E, depois de explicar didaticamente uma coisa e outra, concluiu

dizendo que aqui e lá somos racistas. Foi a primeira vez que, para

mim, ficou claro que a obra de Oracy, inteligente e instigante, na

verdade faz o que eu sublinho: iguala-nos em vez de nos diferen­

ciar. E o Movimento Negro deu o salto: "Ora, se lá e cá, apesar das

diferenças, somos igualmente racistas, por que não aplicar aqui o

remédio de lá, como cotas raciais?" E deu-se a importação acrítica

de uma solução americana para um problema americano. Hoje,

nós, brasileiros, estamos tendo que nos haver com ela, apesar de

nossas diferenças abissais.

Não; nossa especificidade não é o racismo. O que nos faz diferen­

tes é que aqui, indubitavelmente, há menos racismo e, quando há,

ele é envergonhado, porque tem consciência de que a sociedade

de modo geral condena a prática como odiosa. Isso é um ativo de

que não podemos abrir mão. O que a sociologia que dividiu o Bra­

sil entre negros e brancos não percebe é que} ao fazer isso, chan­

celou a construção racista americana segundo a qual todo mundo

Page 14: KAMEL, Ali - Não somos racistas

24 NÃO SOMOS RACISTAS

que não é branco é negro. É usar de uma metodologia racista para

analisar o racismo.

O trágico é que essa sociologia ganhou espaços, cresceu e, como

disse há pouco, foi totalmente acolhida pelo Movimento Negro

já no final dos anos 1970. Hoje em dia, ganhou ares de verdade

oficial. Quando me dei conta, o governo Fernando Henrique, com

as melhores intenções, já tinha avançado em nossa remodelagem

como uma nação bicolor, de negros e brancos, em que os últimos

oprimem os primeiros. É engraçado relembrar um episódio famo­

so ocorrido em 1994, no início da campanha eleitoral. Em respos­

ta a Orestes Quércia, seu oponente, que o acusara de ter as "mãos

brancas", um eufemismo para acusá-lo de nunca ter pego no tra­

balho pesado, o então candidato Fernando Henrique declarou: "O

candidato disse que eu tinha as mãos brancas. Eu, não. Minhas

mãos são mulatinhas. Eu sempre brinquei comigo mesmo, tenho

o pé na cozinha. Eu nunca disse outra coisa, eu não tenho precon­

ceito." A ironia é que, com essa declaração, Fernando Henrique,

para si próprio um branco, parecia discordar de Oracy Nogueira e

demonstrar, que, no Brasil, é a origem e não a marca que define

a "raça". Ao contrário de gerar solidariedade de "raça", a declara­

ção de Fernando Henrique caiu como uma bomba no Movimento

Negro, que ameaçou processá-lo por considerar os termos em que

se expressouUpejorativos" e "preconceituosos". "Só se ele é filho

de mula. Mulatinho é o cruzamento com mula, não com negro",

chegou a declarar Sueli Carneiro, do Instituto da Mulher Negra.

Talvez tanto quanto os seus livros específicos sobre cor e raça, os

seus discursos no governo são um bom caminho para que enten­

damos o que estava na cabeça do politico que iniciou a moldagem

institucional de um país bicolor. Em 2000, por exemploJ FH vol­

taria a falar de sua cor, ressaltando as suas origens. Na recepção ao

presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, ele disse: "Basta olhar

para mim para ver que branco no Brasil é um conceito relativo."

Naquele mesmo discurso, porémJ FH ressaltou que o Brasil tinha

A GÊNESE CONTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 25

uma vantagem em relação a outros países: "Nós, os brasileiros,

gostamos de ser misturados." Apesar desse reconhecimento, e fiel

à tradição sociológica que dá forma à construção teórica da nação

bicolor, da qual é fundador, ele salientou que os estudos no Brasil

mostrariam que as desigualdades sociais não têm uma explicação

apenas na pobreza, mas têm um fundamento racial. Para FH, a

conseqüência, portanto, seria a necessidade de avançar, cada vez

mais, em políticas que garantissem a inclusão da população negra.

Um ano mais tarde, durante uma cerimônia sobre direitos huma­

nos, o presidente explicaria ainda melhor o que pensa do tema,

valendo-se para tanto de sua experiência como jovem pesquisador

na década de 1950:

Passei anos de minha vida, como sociólogoJ /lO inicio de minha carrei­

ra, estudando os /legros e a discriminação racial no Brasi/nas camadas,

naturalmente, mais pobres do pais, '1[/e são as populações negras. De Süo

Paulo até o Rio Grande do Sul, naqllela época, '105 anos 1950J

acredito

que nüo houve favela que eu nüo tivesse palmilhado e mJO houve possibi­

lidade de que eu /1(10 tivesse aproveitado pam nâo apenas estudar, mas,

com Florestalz Fernandes, com Octávio [anni, com Rerwto Jardim e com

tantos outros, para demonstrar a realidade brasileira qlle, na época, anos

50, não era percebida ainda pelas nossas elites como se t()sse aflitiva.

Pelo contrário, se vivia embalado na ilusão que LISO llillli já era uma

democracia racial perfeitaJ quando não era, quando até hoje não é.

Em 2000, Fernando Henrique concordou em reeditar Cor e mo­

bilidade social em Florianópolis, que escrevera com Octávio Ianni,

mas este não deu o aval à iniciativa. FH então lançou Negros em

Florial1ópolis: relações sociais e económicas, o mesmo livro, mas sem

a parte segunda, escrita por Ianni. Na ocasiãoJ quando discursava

no lançamento do livro, FH voltou a falar de mestiçagem:

Quando começam a discutir lIluito, mostro li mill/w cor. 7('IIl j'iÍrios

aqui que podem fazer a mesma coisa. Isso [/(ll1i (; f>UlIlCO) L dII\'Íi/05() (1 11('

Page 15: KAMEL, Ali - Não somos racistas

26 NÃO SOMOS RACISTAS

seja. Agora, que tem a moda de ver pelo DNA, vê-se que a imensa maio­

ria dos brasileiros tem sangue indígena. Nós somos nlUito mestiços.

Dessa vez, FH tira o pé da cozinha e o põe na oca, não imagino

por quê. As pesquisas do geneticista Sérgio Pena nos mostram que

87% dos brasileiros têm ao menos 10% de ancestralidade genômi­

ca africana. As mesmas pesquisas mostram que apenas 24% dos

brasileiros têm ao menos 10% de ancestralidade genômica ame­

ríndia. Somos portanto mais negros do que índios. Não importa.

FH nos reconhece majoritariamente mestiços, o que nos diferen­

ciaria do resto do mundo. Mas, na verdade, como Oracy, ele aca­

ba por nos tornar semelhantes aos americanos. Acompanhem o

raciocínio que ele desenvolve no mesmo discurso:

Costumo dizer: o importante aqui não é só às vezes dizer que te­

mos muitas raças. Temos preconceito sim. Mas há um certo gosto pelo

mestiço também. Em outros países, outras situações, há até países que

avançaram democraticamente muito, mas avançaram cada um do seu

lado. Aqui, houve mistura. Não estou dizendo que seja bom ou mau.

Acho bom. Mas o fato é que isso altera também o tipo de preconceito, o

modo como se faz o preconceito. As vezes, até acentua, porque as pessoas

queTeln fingir que não têm mistura. Mas têm, alguns, nem todos.

É, a meu ver, o mesmo trajeto de Oracy: mostrar-nos diferentes

na aparência para nos revelar iguais, talvez piores, na essência:

disfarcadamente sonsamente, racistas. Ainda no mesmo discurso,> '

ele explica de onde vem essa sua crença, relembrando o tempo de

jovem pesquisador:

Nunca me esquecerei de que, nas muitas favelas pelas quais andei,

as {ammas negras viviam sempre nas áreas mais pobres. O setor mais

miserável da favela era onde estavam as famílias negras. Portanto, dizer

que é só uma questão de classe não é certo.

A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 27

Em essência, como tentarei mostrar aqui, o discurso do presi­

dente continuou o mesmo do jovem sociólogo. É verdade que o

presidente põe uma ênfase maior na "mistura", admitindo-a, mas

ao mesmo tempo frisando que, de algum modo. ela pode agravar

o problema do racismo. Em seus trabalhos da juventude, a "mistu­

ra", ou melhor, "o gosto pela mistura" não é sequer abordado: nas

sociedades que estudou, só havia espaço para brancos explorando

negros e mestiços, cada qual sempre no seu canto. Mobilidade so­

cial em Florianópolis (1960), em parceria com Octávio Ianni, e Ca­

pitalismo e escravidão no Brasil meridional (1962) tornaram-se dois

clássicos da sociologia que repudiou como falsa a auto-imagem de

tolerância que o Brasil tinha de si. Ambos são, em grande medida,

prisioneiros de um arcabouço teórico datado, de um marxismo

que, embora tenha se pretendido livre dos reducionismos meca­

nicistas, não conseguiu pleno êxito na empreitada. Pecados da ju­

ventude. Apesar disso, lê-los hoje é fundamental para entender

por que foi no governo Fernando Henrique que o projeto daqueles

que nos querem transformar numa nação bicolor alçou um vôo

tão alto. FH presidente foi sempre seguidor do jovem sociólogo

Fernando Henrique.

É importante que o leitor tenha acesso a algumas passagens que

eu classifico como fundamentaiS dos livros. As citações são exten­

sas, mas importantes. Em Cor e mobilidade social em Florianópolis,

o jovem FH analisa a Florianópolis da década de 1950 a partir das

condicionantes do passado de Desterro (nome que Florianópolis

teve até o século XIX). Em linhas gerais, ele dirá, bem ao estilo

marxista, que, como o nível de desenvolvimento económico e as

características da economia de Santa Catarina eram mais ou me­

nos os mesmos da época da escravidão, pouca coisa tinha mudado

nas relações entre brancos e negros.

Parece-nos que o ritmo de mudança da sociedade global, em Flo­

rianópolis, não ofereceu muitas oportunidades de ascensão social aos

Page 16: KAMEL, Ali - Não somos racistas

28 NÃO SOMOS RACISTAS

elementos egressos da escravidão ou das camadas sociais dependentes.

As mudanças recentes apenas a(etaram as condições nas quais eles pres­

tam, regularmente, os seus serviços. Tomando-se trabalhadores livres

e assalariados, nem por isso conseguiram até recentemente, em escala

apreciável, novas oportunidades de especialização e classificação social.

FH chega a dizer que a situação poderia vir a melhorar com a

consolidação da sociedade de classes e com um desenvolvimento

económico maior, mas, por todo o livro, ele insistirá na tese de

que o preconceito racial será uma barreira contra a ascensão dos

negros. E de onde vem esse preconceito? Novamente, a explica­

ção se ampara na comparação entre o período pré e pós Abolição.

Numa comunidade em que, sem grandes riquezas, o branco, mes­

mo durante a escravidão, teve de se submeter a trabalhos também

executados pelos cativos, o preconceito não poderia vir de uma

superioridade económica explícita do branco, mas de atributos

subjetivos, restos persistentes da ideologia do tempo em que a or­

dem escravocrata estava de pé:

Numa comunidade do tipo de Desterro, a discriminação que se exercia

primeira e naturalmente quanto ao escravo trans(eria-se para os negros

em geral e seus descendentes mestiços. Este processo, que existiu em todo

o Brasil, era possível por causa da seleção de certos caracteres (ísicos

como elementos capazes de justificar uma desigualdade social em termos

da existência de wna desigualdade natural. Mas em Desterro, por callsa da

coexistência do trabalho livre com o trabalho escravo e da inexistência

de condições materiais que possibilitassem a emergência de um estilo de

vida senhorial, a IIdesigualdade natural" entre negros e brancos sempre

(ai enfatizada vigorosamente, como uma espécie de elemento cOlllpen­

satório da pequena di(erença nas condições sociais de produção entre os

negros e os brancos: ambos produziam de motu proprio os meios neces­

sários à solirevillência. Dessa (orma a discriminação que o senhor exercia

sobre o escravo pôde transformar-se na discriminação dos brancos, ainda

que pobres, sobre os negros em geral, ainda que li"res. E a discriminação

A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 29

racial pôde preservar-se mais (aci/mente depois da Abolição, porque esta

não extinguiria obviamente nenhuma /Idesigualdade natural".

Assim, para o jovem FH, em Florianópolis era o fato de que am­

bos, negros e brancos, trabalhassem mais ou menos igualmente

que reforçava o preconceito: já que socialmente brancos e negros

não estavam distantes, era o apego a atributos naturais suposta­

mente superiores que justificava o preconceito de brancos contra

negros. Por outro lado, FH também diz no livro que, em cidades

mais opulentas, o racismo advinha exatamente da dominação se­

nhorial do branco sobre o negro: era a superioridade económica

que determinava a superioridade da raça. Na visão do jovem FH,

portanto, o preconceito era produto da superioridade económica

do branco, quando ela existia, e da ausência dela, como em Floria­

nópolis. Ou seja, é como se não houvesse saida, já que situações

opostas provocam um mesmo resultado. Dessa ótica, pode-se con­

cluir que, para o jovem FH, o homem branco acabava por ser, em

si, racista.

Em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, um livro poste­

rior, o jovem sociólogo segue o mesmo caminho, analisando não

o racismo dos racistas, mas dos brancos em geral, tendo como

pano de fundo o Sul brasileiro:

Com a desagregação da ordem servil, que naturalmente antecede,

como processo, a Abolição, foi-se constituindo, pouco a poucol o '1pro_

blema negro" e, com ele, intensificando-se o preconceito com novo con­

teúdo. Nesse processo o preconceito de cor ou raça transparece nitida­

mente na qualidade de representação social que toma arbitrariamente a

cor ou outros atributos raciais distinguíveis, reais ou imaginários, como

(onte para a se/eção de qualidades estereotipáveis. De um momento

para ° outro, o negro - que fora sustentáculo exclusivo do trabalho

na escravidão - passa a ser representado como ocioso, por ser negro, e

assim por diante.

Page 17: KAMEL, Ali - Não somos racistas

30 NÃO SOMOS RACISTAS

E prossegue:

Cabe, entretanto, ponderar que as representações estereotipadas fa­

ziam-se com "base na realidade". Seria falso supor que os brancos impu­

tassem todos os atributos negativos aos negros como uma simples projeção

ou como simples recurso de autodefesa imaginário. Não se pode dizer que o

negro desordeiro, ocioso, bêbado etc. era uma imagem criada pelo branco.

Ao contrário, e muito pior, o branco não criou apenas essa representação

do /Jegro: fê-lo, de fato, agir dessa fonna. E o fez tanto porque criou as con­

dições de vida e de opção para os negros indicadas acima, quanto porque

passou, ao mesmo tempo, a representá-los com essa imagem.

Ou seja, agora, os brancos, e não apenas os racistas, são respon­

sáveis por fazer com que os negros sejam bêbados, desordeiros e

ociosos, e estes de fato seriam assim, o que é uma generalização

absurda. É uma visão demoníaca do processo social, porque todo

branco é assim e todo negro é assado. Em Cor e mobilidade, o bran­

co atribuía características negativas ao negro para compensar uma

"igualdade" social dada por trabalhos mais ou menos equipará­

veis. Agora, o negro já não trabalha, por culpa do branco, que, por

esse motivo, o demoniza. Mas como a "base real" para a demoni­

zação do negro é criada pelo branco, este é por sua vez demoniza­

do por FH.

Não há meio tom.

Em Capitalismo e escravidão outro fenômeno chama a atenção:

o engajamento. FH analisa com atenção as edições do jornal O

Exemplo, editado por negros. Todo artigo que esteja em linha com

as suas teses é aplaudido; todo artigo que as contraria é dado como

exemplo de subordinação do negro à ideologia do branqueamen­

to_ Convencido de que a razão da desigualdade é o racismo dos

brancos, FH desde o início repudia a hipótese de que o preconcei­

to seja contra o pobre em geral e não contra o negro. Ele cita, com

o objetivo de refutá-lo, o artigo de Décio Vital, publicado pelo

jornal em 1893, em que o autor dá o seguinte testemunho:

A GÊNESE CONTEMPORÃNEA DA NAÇÃO BICOLOR 31

Na verdade, o único meio de um pobre-diabo pôr-se a salvo dessa fera,

desse monstro que faz de um pacato burguês um herói (o recrutamento) é

andar enfronhado numa sobrecasaca, seja ela preta ou esverdeada, azul

ou cor de burro quando foge, a questão é ser ou parecer o fato de gala.

{. ..} E não há dúvida que tem produzido efeito o meu estratagema: a

minha pessoinha ainda não foi violada, até pelo contrário tem sido alvo

de interessantes equívocos: as patrulhas me deixam passar livremente e

muitas vezes tenho ouvido um dos soldados dizer para o outro: "Deixa

esse moço passar porque parece ser gente decente, é algum bacharel baia­

no ou dentista carioca." E eu acolho essa opinião com soberba, porque,

em Sllma, é uma felicidade ser tratado por moço para quem costumavam

apelidar de briguet, gente ordinária, vagabundos e quejandos pelo fato

de ter a cor bronzeada.

A reação de FH foi passar ao largo da discussão sobre se o pre­

conceito racial pode ser mais apropriadamente descrito como o

preconceito contra o pobre. Ele preferiu apontar o autor do artigo

como um exemplo nítido do negro que, explorado, procura absor­

ver, acriticamente, o ideal de nação sem preconceitos raciais, "de­

fendido pelos brancos". É curioso que FH dê voz a um negro dis­

cordante, mas para diminuí-lo, para colocá-lo na posição daquele

que não sabe o que diz. Mais adiante no livro nos deparamos com

outro exemplo desse tipo de postura. Ele cita, novamente para

desmerecer, um artigo de Miguel Cardoso, também publicado em

1893 em O Exemplo, em que o jornalista negro diz:

Em nosso primeiro artigo nos comprometemos a provar o contrário

do que se estabelece ou por outra se tem estabelecido com relação ao que

se chama preconceito de raça; preconceito este que muitos dos nossos

julgam alusivos aos homens de cor em geral. Mas isso tanto assim não

é que muitos de nossos irmãos são chamados a ocupar cargos públicos;

e alguns os ocupam debaixo de alta responsabilidade, bem a contento

daqueles de quem são delegados; mostrando assim serem dignos de fi­gurar no grande círculo da igualdade social. Vê, pois, o leitor que para

Page 18: KAMEL, Ali - Não somos racistas

32 NÃO SOMOS RACISTAS

esses não existe o preconceito de raça de que se queixarn m1litos. {...}

[ulgo assim provado que a i1l5trução é o único motivo pelo qual eles têm

o mérito que lhes é dispensado e de que se toma merecedor todo homem

que se impõe a co1l5ideraçào pública, pelos seus atas, ilustraçào e isenÇi70

de carâter.

Em outro artigo, o mesmo Miguel Cardoso, ainda citado pelo

jovem FH, escreve:

Quando em primeiro artigo pedimos a nossos irmãos de raça para não

olvidarem-se de mandar educar seus filhos, foi porque razào I10S sobrava

para assim proceder, certos de que cumpriríamos um dever de lealdade para

aqueles que S<10 nossos iguais. Sim! Temos razào para assim proceder, re­

petimos, porque muitos pais e màes esquecem o dever que têm de eduCllr

seus filhos, sem pensar que assim concorrem pan1 que a ignorância seia

mantida muito além de nossa expectativa.

o que faz o jovem FH? Diante do sinal inequívoco de que a

educação talvez fosse a porta para pôr fim às desigualdades e, por

tabela, para reduzir o preconceito, ele prefere classificar o depoi-

mento como quimera:

A ilusão fundamental, neSse caso, não estava propriamente na ne­

gação da existência de barreiras e preconceitos que condicionavam a in­

tegração do negro à sociedade de classes, mas na compreensào errôl1ea

do sentido dessas barreiras e preconceitos: o bmlJco repudiaria o negro

enquanto homem ignorante, não enquanto hornem negro,

Errônea? Então em vez de explorar esse caminho, verificar o

nível educacional dos negros de então, compará-los ao nível edu­

cacional dos brancos pobres de então, refletir até que ponto a hi­

pótese pode ou não ser válida, o jovem FH apenas a classifica de

errônea? Apesar de reconhecer no livro que a posição defendida

por Miguel Cardoso - o preconceito é contra o pobre - não era

A GÊNESE CONTEMPORANEA DA NAÇÃO BICOLOR 33

solitária, mas esteve sempre acompanhada de muitos outros arti­

gos, críticas e editoriais de O Exemplo, o jovem FH ignora a todos e

cita apenas outro articulista do mesmo jornal, Esperidião Calisto,

que escreveu "Pelo dever", para criticar a "ilusão da sociedade sem

preconceitos", Diz Calisto:

Quanto a um ou outro elemento de cor preta ou parda ocupar posição

oficial de origem meramente política, é porque desgraçadamente ainda

existem muitos a quem os bafejos de efémeras regalias obcecam-lhes de

tal maneira os sentimentos nobres, que não sentem ecoar em sua alma

os estalidos das palmatoadas dadas entre muros da cadeia, em homens

justamente conceituados, negociantes estabelecidos, simplesmente por­

que trazem o estigma da cor preta ou parda!

Sobre este artigo, o jovem FH não poupa elogios: "É uma das

mais vigorosas e lúcidas páginas já escritas sobre a significação da

ascensão social de alguns negros no período inicial de formação

de sistemas de classe."

Miguel Cardoso é ilusão, submissão à ideologia branca, partidá­

rio do branqueamento; Esperidião Calisto é lucidez, vigor, verda­

de. Por que um diz a verdade enquanto o outro se ilude? A respos­

ta, espirituosa, é urna só: porque o "verdadeiro" pensa como FH.

É curioso que o problema da educação tenha sido apenas su­

perficialmente abordado nos dois livros do jovem FH. Em Cor e

mobilidade, há menção a uma pesquisa restrita a um pequeno gru­

po de estudantes em que se diz que apenas 5% deles eram negros.

Por que tão poucos; como se dava o acesso de negros às escolas;

haveria a interdição de negros às escolas; que impactos a educação

de negros poderia vir a ter no futuro deles? Não, o jovem FH não

se interessa por esses temas.

Fernando Henrique foi sem dúvida um excelente presidente.

Mudou a face do país em muitos aspectos de maneira extremamen­

te positiva: livrou-nos da inflação, tornou uma realidade a noção

Page 19: KAMEL, Ali - Não somos racistas

34 NÃO SOMOS RACISTAS

de que não existe país sem responsabílidade fiscal, reformou as

instituições, tornando-as mais republicanas e impessoais, deixou

para trás, com as privatizações, o Estado-produtor, colocando o

país na direção do Estado-regulador e fornecedor de serviços, ini­

ciou a modernização da administração pública e começou a criar

uma rede de proteção social àqueles que, mesmo diante de todos

os recursos, não se movem sozinhos. Mas mudou também a face

do país em pelo menos um caso de uma maneira cujos efeitos

podem vir a ser extremamente negativos. Quando se analísa o

governo do presidente Fernando Henrique, tendo-se tomado co­

nhecimento do que ele pensava quando jovem, entende-se me­

lhor o impulso que políticas de preferência racial tornaram em

seus dois mandatos.Neste campo, nunca foi de fato tão mentirosa a frase falsamente

atribuída a ele: "Esqueçam o que eu escrevi." A visão do jovem

sociólogo, em essência, manteve-se na ação do presidente. Se a

desigualdade entre negros e brancos reside em grande medida no

racismo, não adianta apenas o esforço de investir na educação dos

pobres, negros e brancos, com a intenção de tornar o país mais

justo. Começar a investir na educação foi um passo que FH de

fato deu: foi em seu governo que praticamente 100% das crianças

de 7 a 14 anos passaram a freqüentar a escola. Mas, ao mesmo

tempo, FH deu curso à institucionalização da nação bicolor. Se o

racismo na sociedade brasileira é de fato um entrave substantivo à

mobilidade dos negros, educação somente não basta. Já em 1995,

primeiro ano do mandato, FH criou o Grupo de Trabalho Intermi­

nisterial para a Valorização da População Negra, com representan­

tes da "comunidade afro-brasileira", como foi dito à época. Signi­

ficativamente no dia 13 de maio de 1996, FH lançou o Programa

Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Entre muitas açôes mais

do que pertinentes para o combate ao racismo, o programa tinha

metas claras no caminho da nação bicolor. Vale a pena destacar

algumas delas:

~l

iA GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 35

"Inclusão do quesito 'cor' em todos e quaisquer sistemas de infor­

mação e registro sobre a população e bancos de dados públicos."

"Incentivar e apoiar a criação e instalação, em níveis estadual e

municipal, de Conselhos da Comunidade Negra."

"Apoiar a definição de ações de valorização para a população

negra e com politicas públicas."

"Apoiar as ações da iniciativa privada que realizem a discrimi­

nação positiva."

"Desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos

cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia

de ponta."

E, talvez, a mais significativa das propostas:

"Determinar ao IEGE a adoção do critério de se considerar os

mulatos, os pardos e os pretos como integrantes do contingente

da população negra."

Felizmente, a determinação jamais entrou em vigor, e muitas

das outras propostas demoraram a sair do papel (algumas jamais

saíram). Em outubro de 2001, o Brasil foi signatário da III Con­

ferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo,

Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, que se

realizou em Durban (África do Sul). E no dia seguinte, como me

disse uma amiga, todos nós acordamos num país diferente, com­

prometido oficialmente com a adoção de políticas de preferência

raciaL Foi um processo longamente estruturado, mas à época pou­

co acompanhado, pouco conhecido, pouco debatido. A dimensão

do esforço foi dada pelo próprio presidente num discurso sobre

direitos humanos já citado aqui:

Participamos ativamente da reunião havida em Durban. Não foi

uma participação qualquer. Foi uma participação baseada em um pro­

cesso longo de preparação, de quase dois anos. Esse processo ofereceu

aos brasileiros uma oportunidade extraordinária de discussão e de re-

Page 20: KAMEL, Ali - Não somos racistas

36 NÃO SOMOS RACISTAS

flexão para a superação do racismo e das diversas (onnas de discrimina­

ção em nossa sociedade.

o projeto era audacioso, como previu o presidente no mesmo

discurso:

o Conselho Nacional de Combate à discriminação deverá estudar a

adoção de políticas afinnativas em favor dos afro-descendentes. Essas

políticas se referem a temas concretos: investimentos preferenciais na

área da educação, saúde, habitação, saneamento, água potável, controle

anzbiental nas regiões ou áreas habitadas majoritariamente por afro­

descendentes, quer dizer, as mais pobres do país, em geral; destinação

de recursos públicos, inclusive com a participação da iniâativa privada

nas bolsas de estudo para estudantes negros, projetas de desenvolvimento

sustentável nas comunidades quílombolas, projetas para a (onnação de

lideranças negras, projetas de apoio a enlpreendedores negros, projetas

de intercâmbio com países africanos e troca de experiências com institui­

ções de outras regiões.

Em 13 de maio de 2002, FH lançou ° segundo Programa Nacio­

nal de Direitos Humanos (PNDH) e, na mesma data, instituiu, por

decreto, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, muito ambi­

cioso. Destaco aqui, porém, um único ponto, o inciso primeiro

do artigo segundo, que resume bem o espírito do programa, ao

determinar"a observância, pelos órgãos da Administração Pública

Federal, de requisito que garanta a realização de metas percentuais

de participação de afro-descendentes, mulheres e pessoas portado­

ras de deficiências físicas no preenchimento de cargos em comissão

do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS". Em pleno

ano eleitoral, e tendo apenas o segundo semestre para se viabilizar,

o plano não foi adiante. Mas a mudança de mentalidade no país

já havia sido operada. FH estava consciente disso. No discurso de

lançamento do segundo PNDH, o presidente, depois de inventariar

brevemente o que o seu governo tinha feito na área até ali, disse:

A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 37

Quero concluir reafinnando que tão importante quanto medidas con­

cretas que têm sido adotadas pelo govemo federal, bem como pelos esta­

dos e municípios, é a mudança que está ocorrendo /10 plano das menta­

lidades. Alteram-se, a olhos vistos, os padrões de legitimidade. Práticas

que eram toleradas, há alguns anos, não o sâo Imlis, seja no tocante à

comunidade negra, seja na questão do género ou, ainda, no tratamento

das minorias e de outros grupos mais vulneráveis.

o discurso de FH é a demonstração de satisfação por ter con­

tribuído, de modo decisivo, para que as mazelas que afligem os

negros não mais fossem atribuídas à pobreza, mas passassem a

ser tratadas também como produto do preconceito e do racismo

da sociedade brasileira. Para quem, desde jovem, se dedicou com

afinco ao tema, era mesmo um momento especial.

De fato, o ambiente no Brasil passou, cada vez mais, a ser extre­

mamente propício para que discussões desse tipo aflorassem país

afora. O governo FH jamais propôs formalmente ao Congresso

a adoção de cotas para negros em universidades (o máximo que

fez, como mostrei há pouco, foi apoiar a adoção de políticasafir­

mativas nesse campo, sem especificar quais). Mas o país andou

sozinho. Em novembro de 2001 a Universidade do Estado do Rio

de Janeiro tornou-se a primeira universidade a adotar o sistema

de cotas, no que foi seguida por muitas outras, num processo

rápido de disseminação: Universidade de Brasília, Universidade

Estadual de Mato Grosso do Sul, Universidade Estadual da Bahia

e tantas outras.

Quando eu já finalizava os trabalhos com vistas à publicação

deste livro, tive oportunidade de uma rápida conversa sobre o

tema com o ex-presidente. Quando eu lhe disse que a ação dele

no governo, no tocante à questão raciat guardava coerência com

o que ele escrevera quando jovem, ele respondeu: "Eu acho que

tenho sido razoavelmente coerente com o que penso. Claro, evo­

luí com o tempo, mas guardei meus valores." Como já apontei

Page 21: KAMEL, Ali - Não somos racistas

38 NÃO SOMOS RACISTAS

mais acima, à diferença do jovem sociólogo, em nossa conversa o

ex-presidente pôs mais ênfase no gosto do brasileiro pela mistura,

em contraposição às situações vividas por outros países, mas, uma

vez mais, ele se alongou na explicação sobre que perigos esse gosto

pode trazer:

Aqui é e (espero) será sempre outra coisa. Se é assim, por que progra­

mas especiais? No fundo, porque eu acho que a vigência do mito da de­

mocracia racial não é o coroamento da convivência mais amena e gostosa

que de fato há entre nossos "brancos" e os outros, mas é uma ponta de

negação ideológica da mistura que constitui o cerne da nossa "etnia".

Na conversa, ele se revelou contra cotas nas universidades:

Daí a enrijecer o espírito com cotas vai uma distância grande e nela

mora o perigo. Eu prefiro, por exemplo, a solução dada no Itamaraty

[bolsas para estudantes negros se aperfeiçoarem para o concurso de en­

trada} do que a rigidez de somar não sei quantos pontos às notas de

quem for "negro" ou "índio".

E concluiu, fazendo uma espécie de ponte entre o que pensa­

va quando jovem e o que pensa agora, na maturidade, revelando

mais coerência do que contradição:

A dificuldade para lidar com essas questões no Brasil é que não dá

para"americanizar" e, eventualmente, criar racismo, nem para descui­

dar e deixar, em nome de nosso igualitarismo racial teórico, que os ne­

gros e que tais continuem à margem das oportunidades.

Um leitor mais apressado, tendo em mente a força que a adoção

de cotas raciais tornou no país, poderia concluir que estamos dian­

te de um caso clássico do cientista que. em relação à sua criatura,

lamenta: "Criei um monstro." Não creio que se trate disso. Não

há contradição entre o fato de FH ser contra as cotas e, ao mesmo

A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 39

tempo, seu governo ter contribuído para que elas tenham se tor­

nado urna realidade. No comando da nação, inequivocamente, FH

adotou políticas que tinham como pressuposto a existência, entre

nós, de entraves motivados pelo racismo para o progresso social

dos negros. Uma vez iniciado o processo, ele ganhou força pró­

pria e adquiriu contornos que ninguém molda a priori. O Estado

nunca foi FH, e, justiça seja feita, ele nunca agiu para que fosse.

Não importa que pessoalmente ele rejeitasse, e ainda rejeite, as

cotas - a adoção delas só se tornou possível porque, no governo,

ele agiu de forma decisiva para que o ideal de nação miscigenada

e tolerante fosse substituído pela nação bicolor em que brancosoprimem negros.

É FH quem opera e institucionaliza essa mudança. O que o

presidente Lula fez depois foi dar seqüência, foi seguir adiante,

e, também aqui, corno em tudo mais, sem sutilezas e de manei­

ra canhestra. Criou uma Secretaria da Igualdade Racial, patroci­

nou o projeto que torna obrigatória a política de cotas nas uni­

versidades federais e apoiou o Estatuto da Igualdade Racial, que

racializa todas as relações entre os cidadãos do Estado brasileiro.

Lançou ainda as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura

Afro-brasileira e Africana, em que se diz textualmente que os ne­

gros foram submetidos a uma política de eliminação física depois

da Abolição, uma falsidade histórica, como denunciou o histo­

riador José Roberto Pinto de Cóes. Nisso foi ajudado por ONCs,

institutos de pesquisas, nacionais e estrangeiros, que, ao apontar

corretamente a desigualdade entre brancos e negros, deram como

justificativa o racismo, sem que os números lhes dessem base paratanto.

E se os três, o jovem FH, o presidente FH e o presidente Lula,

estiverem errados? Num país em que no pós-Abolição jamais exis­

tiram barreiras institucionais contra a ascensão social do negro,

num país em que os acessos a empregos públicos e a vagas em

Page 22: KAMEL, Ali - Não somos racistas

40 NÂO SOMOS RACISTAS

instituições de ensino público são assegurados apenas pelo mérito,

num país em que 19 milhões de brancos são pobres e enfrentam as

mesmas agruras dos negros pobres, instituir políticas de preferên­

cia racial, em vez de garantir educação de qualidade para todos os

pobres e dar a eles a oportunidade para que superem a pobreza de

acordo com os seus méritos, é se arriscar a pôr o Brasil na rota

de um pesadelo: a eclosão entre nós do ódio racial, coisa que, até

aqui, não conhecíamos. Quando pobres brancos, que sempre vi­

veram ao lado de negros pobres, experimentando os mesmos dis­

sabores, virem-se preteridos apenas porque não têm a pele escura,

estará dada a cisão racial da pobreza, com conseqüências que a

experiência internacional dá conta de serem terríveis.

A nação que sempre se orgulhou de sua miscigenação não me­

rece isto.

Ao longo dos últimos anos, tenho me dedicado a debater todas

essas questoes. A minha ênfase tem sido refutar leituras apressa­

das de estatísticas oficiais, que distorcem a realidade em favor de

um Brasil bicolor. Tenho procurado mostrar que, mais que ao ra­

cismo, a má situação do negro no Brasil se deve à pobreza e que

não existem atalhos fáceis para superá-la, como cotas ou políticas

assistencialistas. O único caminho seguro para que o país se torne

mais justo é a educação.

Eu acredito que majoritariamente ainda somos uma nação que

acredita nas virtudes da nossa miscigenação, da convivência har­

moniosa entre todas as cores e nas vantagens, imensas vantagens,

de sermos um país em que os racistas, quando existem, envergo­

nham-se do próprio racismo. Os leitores que pensam como eu te­

rão neste livro um guia que desmistifica o discurso oficial, procura

dar uma leitura correta das estatísticas e tenta mostrar por que os

gastos com políticas assistencialistas, paradoxalmente, perenizam

a pobreza em vez de superá-la. Este livro é uma seqüência dos

artigos que publiquei no Globo sobre o tema, reescritos, atuaLiza-

1 A GÊNESE CONTEMPORÂNEA DA NAÇÃO BICOLOR 41

dos, ampliados. Os leitores que pensam diferente terão mais uma

oportunidade de se dar conta de que aqueles que, como eu, são

contra a transformação do Brasil numa nação bicolor e condenam

a adoção de medidas racistas para combater o racismo não estãodo outro lado.

Estamos todos do mesmo lado. Mas temos soluçoes diferentes

para o problema que aflige a todos.

Page 23: KAMEL, Ali - Não somos racistas

RAÇAS NÃO EXISTEM

NAO FAZ MUITO TEMPO, UM COMENTARISTA DE TV A CABO DrSSE, CONFIANTE,

que certas doenças e certas qualidades são geneticamente deter­

minadas pela raça. Ouvi também um jornalista de rádio dizer, em

relação a um jogador humilhado em campo porque é negro, que

nada se pode fazer quando se quer mencionar o nome de uma

raça: "O nome da raça é negra", ele disse. E, claro} impossível es­

quecer o então candidato Lula, em 2002, afirmando, num deba­

te, que certamente haveria uma maneira científica de determinar

se alguém é da raça negra. O curioso é que as três manifestações se

deram num contexto de repúdio ao racismo. O que eles desconhe­

cem é que acreditar que raças existem é a base de todo racismo.

Raças não existem.

Nos últimos trinta anos, este é o consenso entre os geneticistas: os

homens são todos iguais ou, como diz o geneticista Sérgio Pena,

os homens são igualmente diferentes.

O mesmo não se dá com os animais. Tomemos o exemplo dos

cães. Todos sabemos que há várias raças da espécie canina. Elas são

bem diferentes entre se tanto na aparência quanto no comporta­

mento: há raças maiores e menores, compridas e curtas, inteligen­

tes e obtusas, dóceis e agitadas. Qualquer um saberá dizer, de longe,

qual é o bassê e qual é o dogue alemão. Pois bem, o que faz o bassê

e o dogue alemão serem de raças diferentes é que bassês se pare-

Page 24: KAMEL, Ali - Não somos racistas

44 NÃO SOMOS RACISTAS

cem mais com bassês, do ponto de vista da genética, do que com

dogues alemães. Reúna um grupo de bassês: haverá animais mais

compridos que outros, mais altos que outros, com focinhos

mais pontudos que outros. Mas a variabilidade entre bassês será

sempre menor do que entre bassês e dogues alemães.

Com homens, isso não acontece, e é isso a nossa beleza, a nossa

riqueza, a nossa sorte. Fico totalmente perturbado de comparar

homens e cães, mas é a falta de informação de muitos que me leva

a usar expediente tão constrangedor.

Consideremos dois grupos. O primeiro com aqueles que o senso

comum diz ser da "raça" negra: homens de cor preta, nariz acha­

tado e cabelo pixaim. O segundo com aqueles que o mesmo senso

comum diz ser da "raça" branca: homens de cor branca, nariz afi­

lado e cabelos lisos.

Desde 1972, a partirdosestudosdeRichardLewontin, geneticista de

Harvard, o que a ciência diz é que as diferenças entre indivíduos

de um mesmo grupo serão sempre maiores do que as diferenças

entre os dois grupos, considerados em seu conjunto. No grupo de

negros haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inte­

ligentes, destros, canhotos, com propensão a doenças cardíacas,

com proteção genética contra o câncer, com propensão genética

ao câncer etc. Nó grupo de brancos, igualmente, haverá indivíduos

altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos,

com propensão a doenças cardíacas, com proteção genética contra

o câncer, com propensão genética ao câncer etc. Ou seja, no inte­

rior de cada grupo, a diversidade de indivíduos é grande, mas ela se

repete nos dois conjuntos. A única coisa que vai variar entre os dois

grupos é a cor da pele, o formato do nariz e a textura do cabelo, e,

mesmo assim, apenas porque os dois grupos já foram selecionados

a partir dessas diferenças. Em tudo o mais, os dois grupos são iguais.

Na comparação odiosa, dois bassês são geneticamente mais homo­

géneos do que um bassê e um dogue alemão e, por isso, formam

duas raças distintas. Com os homens, isso não acontece.

RAÇA5 NÃO EXISTEM 45

O genoma humano é composto de 2S mil genes. As diferenças

mais aparentes (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz)

são determinadas por um conjunto de genes insignificantemente

pequeno se comparado a todos os genes humanos. Para ser exa­

to, as diferenças entre um branco nórdico e um negro africano

compreendem apenas uma fração de 0,005 do genoma humano.

Por essa razão, a imensa maioria dos geneticistas é peremptória:

no que diz respeito aos homens, a genética não autoriza falar em

raças. Segundo o geneticista Craig Venter, o primeiro a descrever

a seqüência do genoma humano, "raça é um conceito social, não

um conceito científico".

Uma fonte de confusão são estudos freqüentemente divulgados

em que se diz que uma doença é mais comum entre negros ou en­

tre brancos, ou entre amarelos. Isso nada tem a ver com raca mas, ,

com grupos populacionais, que se casam mais freqüentemente

entre si. Seria preciso que os genes que determinam a cor da pele

também determinassem essa ou aquela doença para se relacionar

a "raça" e a doença, e isso não existe. A ciência já mostrou que a

associação entre raça e doença não passa de um mito, como me

disse o geneticista Antônio Solé-Cava, da UFR].

Por exemplo, o caso da anemia falciforme entre negros. Sabe-se

hoje que quem tem essa doença é também mais resistente à ma­

lária. Não à toa, o gene da anemia falciforme é mais freqCiente Em

algumas áreas da África onde a presença do mosquito transmissor

da malária é maior, fato determinado pela seleção natural. Nas ou­

tras regiões da África, o gene da anemia falciforme é raro. A~sim,

não se pode dizer que todo negro tem uma maior probabilidace

de ter este gene: apenas aqueles, mesmo assim nem todos, com

antepassados vindos de certas regiões onde o mosquito transmis­

sor era numeroso.

Além disso, se os negros oriundos daquelas regiões têm :11aLS

freqüentemente o gene da anemia falciforme, isso não tDrna o

gene exclusivo desse grupo. Isso vale para qualquer doença, Pald

Page 25: KAMEL, Ali - Não somos racistas

46 NÃO SOMOS RACISTAS

qualquer grupo. Tão logo o indivíduo portador de certo gene se

case com outro que não tenha o gene, o filho dessa união poderá

vir a herdá-lo. No caso de um negro e uma branca: se o filho her­

dar uma pele mais clara e se casar com uma branca, o filho dessa

nova união poderá ser branco e, mesmo assim, herdar o gene. De­

finitivamente, não existem genes exclusivos de uma determina­

da cor. Numa sociedade segregada como a americana, talvez seja

mais comum que grupos populacionais tenham uma carga gené­

tica mais parecida. Em lugares em que a miscigenação predomina,

como aqui, isso é muito mais improvável.

A COI da pele não determina sequer a ancestralidade. Nada ga­

rante que um indivíduo negro tenha a maior parte de seus ances­

trais vindos da África. Isso é especialmente verdadeiro no Brasil,

devido ao alto grau de miscigenação. O geneticista Sérgio Pena já

mostrou isso num estudo brilhante. Usando os marcadores mole­

culares de origem geográfica, ele analisou o patrimônio genético

de cidadãos negros da cidade mineira de Queixadinha e descobriu

que 27% deles tinham uma ancestralidade predominantemente

não-africana, isso é, maior do que 50%. Considerando-se os bran­

cos de todo o Brasil. descobriu-se que 87% deles têm ao menos

10% de ancestralidade africana. Nos EUA, esse número cai para

apenas 11%. Ou seja, no Brasil, há brancos com ancestralidade

preponderante africana e negros com ancestralidade preponde­

rante européia. Somos, graças a Deus, uma mistura total.

A crença em raças, porém, não é apenas fruto da ignorância.

Volta e meia surge dentro da própria ciência alguém disposto a

desafiar o consenso reinante: o destino de todos eles é o esqueci­

mento, mas, quando surgem, fazem muito barulho. É o caso do

biólogo britânico Armand Marie Lerai. Em 2005, ele escreveu um

explosivo artigo para o New l'ork Times, asseverando que raças não

somente existem como seu conceito é bem-vindo, já que ajuda­

ria no diagnóstico e tratamento de certas doenças, mito, como

vimos, já desfeito. Os argumentos de Leroi são na verdade uma

RAÇAS NÃO EXISTEM 47

revalidação das antigas crenças dos antropólogos do século XVIII

que criaram a noção de raça. Em resposta, dezenas de cientistas

escreveram artigos reafirmando as descobertas da genética. Não

disseram, mas eu repito o que sempre digo: o racismo está em todo

lugar. Entre cientistas, inclusive.

Raça, até aqui, foi sempre uma construção cultural e ideológica

para que uns dominem outros. A experiência histórica demonstra

isso. No Brasil dos últimos anos, o Movimento Negro parece ter se

esquecido disso e tem revivido esse conceito com o propósito de

melhorar as condições de vida de grupos populacionais. A estraté­

gia está fadada a nos levar a uma situação que nunca vivemos: o

ódio racial. Onde quer que o conceito de raça tenha prevalecido,

antagonismos insuperáveis surgiram entre os grupos, e deram ori­

gem muitas vezes a tragédias. Por que aqui seria diferente?

Alguns sociólogos defendem a manutenção do conceito de

raça, mesmo admitindo que, do ponto de vista científico, raças

não existem. Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, por exemplo} diz

em seu livro Classes, raças e democracia que raça seria a única cate­

goria analítica" que revela que as discriminações e desigualdades

que a noção brasileira de 'cor' enseja são efetivamente raciais e

não apenas de 'classe"'. Não entendo a explicação. Se alguém dis­

crimina alguém por acreditar que existem elementos inatos em

seu grupo que o tornam superior a outros grupos, e se essa crença é

falsa, continuar usando a noção de raça terá como efeito inequívo­

co o reforço da noção de raça, e não o contrário. As discriminações

não serão nunca "efetivamente" raciais, porque raças n;jo existem:

as discriminações serão sempre efetivamente "odiosas", "hracio­

nais", "delirantes", "criminosas". Elas só seriam "efetivamente"

raciais se a motivação da discriminação estivesse calcada em uma

realidade - a existência de raças humanas -, e não numa crença

irracional.

Guimarães também alude, sem dar nomes, a uma outra V"erten­

te das ciências sociais, que ele chama de pragmática. Nas palavras

Page 26: KAMEL, Ali - Não somos racistas

48 NÃO SOMOS RACISTAS

dele: "Assim como aceitamos, há séculos. a teoria copernicana

sem que deixemos de organizar as nossas experiências diárias em

torno da crença de que o sol se põe e se levanta, assim também

acontece com a crença em 'raças'. Continuamos a nos classificar

em raças, independente do que nos diga a genética." Não sei de

onde essa tal corrente tirou comparação tão descabida. Copérnico

jamais revogou o dia e a noite, nem o fato de que "efetivamente"

o Sol nasce e se põe diariamente. O que ele fez foi demonstrar que

não é o Sol que gira em torno da Terra, mas a Terra que gira em

torno do Sol, o que, se tem influência nula no raiar do dia e no

entardecer, modificou totalmente a vida do homem no planeta,

tornando possível um entendimento melhor do universo e coisas

mais práticas, como ir à Lua e pôr um satélite em órbita, o que pos­

sibilita coisas tão comezinhas como falar ao telefone ou transmitir

imagens e dados vencendo distâncias continentais. Assim como

Copérnico deixou para trás "certezas" baseadas não em fatos, mas

na fé, a genética permitiu enterrar de vez a crença odiosa de que

existem grupos de homens com características tais que os diferem

fundamentalmente de outros, tornando-os uns superiores aos ou­

tros. Ignorar isso é abraçar o irracionalismo.

Raças não existem. No Brasil, país miscigenado, isso é ainda

mais evidente. Nos próximos capítulos vou mostrar, porém, como

se tem feito um esforço enorme para pôr fim a essa verdade.

SUMIRAM COM OS PARDOS

O LEITOR CERTAMENTE JA OUVIU OU LEU ESTA FRASE: A. POBREZA NO BRASIL

tem cor, e ela é negra. É uma frase sempre presente nos trabalhos

de pesquisadores que culpam o racismo brasileiro pela situação de

penúria em que vive a maior parte dos negros. Os números que

eles divulgam são de fato eloqüentes. Eles sempre dizem que os

brancos no Brasil são 51,4°/h da população; e os negros, 480/<>. E se

perguntam: "Será que a pobreza acompanha esses mesmos crité­

rios demográficos?" E respondem que não: dos 56,8 milhões de

brasileiros pobres, os brancos são apenas 34,2<)'ú, e os negros repre­

sentam 65,8% do total. E concluem: os negros são pobres porqueno Brasil há racismo.

Os números são eloqüentes, mas inexatos. Segundo o IBGE,

os negros são 5,9% e não 48%. Os brancos são, de fato, 51,4%

da população. A grande omissão diz respeito aos pardos: eles são

42% dos brasileiros. Entre os 56,8 milhões de pobres, os negros

são 7,1%, e não 65,8°;b. Os brancos, 34,2%, e os pardos, 58,7%.

Portanto, se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa cor é parda. O

que fazem os defensores da tese de que no Brasil brancos oprimem

os negros é juntar o número de pardos ao número de negros, para

que a realidade lhes seja mais favorável: é apenas somando-se ne­

gros e pardos que o número de pobres chega a 65,8%. Isso fica

evidente na seguinte tabela:

Page 27: KAMEL, Ali - Não somos racistas

50 NÃO SOMOS RACISTAS

TOTAL DE BRASILEIROS E BRASILEIROS POBRES, SEGUNDO A COR.

BRASIL - PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMicíLIOS

(PNAD) 2004

Total 182 57 31,2%

93 19 34,2%

11 4 7,1%

76 34 58,7%ardas 87 38 65,8%

Os artigos desses pesquisadores, seguindo as categorias usadas

pelo IBGE, primeiro estratificam a população entre brancos, pretos

(que eu chamo aqui negros), pardos, amarelos e indígenas para,

logo depois, agrupar negros e pardos e chamá-los a todos de negros

(desse ponto em diante, em todas as estatísticas, há apenas menção

a negros, mas, na verdade, os números se referem sempre à soma

de pardos e negros). Geralmente os pesquisadores fazem a seguinte

observação, em letras pequenas, ao pé da página: 1/ A população ne­

gra ou afro·descendente corresponde ao conjunto das pessoas que

se declaram pretas ou pardas nas pesquisas do IBGE." É somente

assim que a já batida afirmação de que o Brasil tem a maior popula­

ção negra depois da Nigéria se sustenta: juntando-se os negros aos

pardos de todos os matizes, do quase branco ao quase negro.

Como apontei na introdução, trata-se de uma metodologia nas­

cida na sociologia da década de 1950 e hoje vitoriosa: negros são

todos aqueles que não são brancos. Nas universidades, tal con­

ceituação hoje é tão corrente que, diante de uma argumentação

como a minha, os especialistas, constrangidamente, costumam

me desqualificar dizendo que eu não sou"do campo". De fato não

sou. Embora tenha me formado em ciências sociais em 1983, toda

a minha vida profissional foi dedicada ao jornalismo. Não consi­

dero isso um problema, porém. Isso me alinha à imensa maioria

SUMIRAM COM OS PARDOS 51

dos brasileiros que diante de nossa gente enxerga todo um arco­

íris de cores, do mulato clarinho ao mulato escuro, do cafozo ao

mameluco, do moreno ao escurinho, do pretinho ao marrom­

bombom. É preciso então que os leitores tenham em mente que,

toda vez que estiverem diante de uma estatística que envolva a cor

dos indivíduos, os números relativos aos negros englobam sempre

os números relacionados aos pardos. Na caminhada que esse livro

propõe, esse esclarecimento é fundamental. Eu sempre chamarei

os pretos de negros.

O problema é definir o que é pardo. Para mim, é constrangedor

ter de discutir nesses termos, eu que não tenho a cor de ninguém

como critério de nada. Mas, infelizmente, é a lógica que reina no

debate, e eu tenho de me curvar a ela. A funcionária do lBGE que

me ajuda com os números se disse parda ao censo, "parda como a

Glória Pires". Mas, para muitos, a Glória Pires é branca. Digo isso

com real preocupação: quem é pardo? O pardo é um branco meio

negro ou um negro meio branco? Chamar um pardo de afro-des­

cendente é mais do que inapropriado, é errado.

Tenho uma amiga cujo pai é negro assim como todos os ascen­

dentes dele. A mãe é italiana, assim como todos os ascendentes

dela. Como chamá-la apenas de afro-descendente? Por que lógi­

ca? Se alguma lógica existe, o correto seria chamá-la de ítalo-afro­

descendente ou afro-ítalo-descendente, como preferirem. E como

todos os pardos são, na origem, fruto do casamento entre brancos

(europeus) e negros (africanos), os pardos deveriam ser generica­

mente chamados de euro-afro-descendentes. Teriam, ainda assim,

direito a cotas ou a outras políticas de preferência racial ou o pre­

fixo "euro" os condena irremediavelmente? Falando assim, tão

cruamente, pretendo deixar claro como todas essas d€ft:hições são

em si racistas. Porque não devemos falar em negros, pardos ou

brancos, mas apenas em brasileiros.

Somar pardos e negros, portanto, seria apenas um erro meto­

dológico se não estivesse na base de uma injustiça sem tamanho.

Page 28: KAMEL, Ali - Não somos racistas

52 NÃO SOMOS RACISTAS

Porque todas as políticas de cotas e ações afirmativas se baseiam na

certeza estatística de que os negros são 65,8% dos pobres, quando,

na verdade, eles são apenas 7,1%. Na hora de entrar na universidade

ou no serviço público, os negros terão vantagens. Os pardos, não.

Do ponto de vista republicano, isso é grave. Na hora de justificar as

cotas, os pardos são usados para engrossar (e como!) os números.

Na hora de participar do benefício, são barrados. Literalmente.

Em 2003, a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul insti­

tuiu cotas para negros em seu vestibular: 20% das vagas, 328 luga­

res. Para a seleção, 530 estudantes se disseram negros e tiveram de

apresentar foto colorida de tamanho cinco por sete. Uma comis­

são de cinco pessoas foi constituída para analisar as fotos segundo

alguns critérios. Só passariam os candidátos com o seguinte fenó­

tipo: "Lábios grossos, nariz chato e cabelos pixaim", na definição

dos avaliadores. Setenta e seis foram rejeitados por não terem tais

características. Provavelmente, eram pardos.

Que o Brasil é injusto, não há dúvida, mas criar mais uma in­

justiça é algo que não se entende. Por que os pardos, usados para

justificar as cotas, terão de ficar fora delas, mesmo sendo tão po­

bres quanto os negros? Porque alguns têm nariz afilado ou cabelos

ondulados? E por que os brancos, mesmo pobres, serão conde­

nados a ficar fora da universidade? Os defensores de cotas raciais

dizem que os brancos são "apenas" 34,2% dos pobres. Apenas?

Estes 34,2% significam 19 milhões de brasileiros, um enorme con­

tingente que será abandonado à própria sorte. A simples existên­

cia de tantos brancos pobres desmentiria por si só a tese de que a

pobreza discrimina entre brancos e negros: em países verdadeira­

mente racistas, o número de pobres brancos jamais chega próxi­

mo disso. Da mesma forma, o enorme número de brasileiros que

se declaram pardos, 76 milhões numa população de 182 milhões,

já mostra que somos uma nação amplamente miscigenada. Como

o pardo tem de ser, necessariamente, o resultado do casamento

entre brancos e negros, o número de brasileiros com algum negro

SUMIRAM COM OS PARDOS 53

na família é necessariamente alto. Isso seria a prova de que somos

urna nação majoritariamente livre de ódio racial (repito que, sim,

sei que o racismo existe aqui e onde mais houver seres humanos

reunidos, mas, certamente, ele não é um traço marcante de nossa

identidade nacional).

Todos esses números só reforçam a minha crença de que políti­

cas de cotas raciais são extremamente prejudiciais e injustas. Em

todas as universidades que instituíram políticas assim, há discus­

sões antes não conhecidas entre nós: negros acusando nem tão

negros assim de se beneficiarem indevidamente de cotas; pardos

tentando provar que o cabelo pode não ser pixaim, mas a pele é

escura; e brancos se sentindo excluídos mesmo sendo tao pobres

quanto os candidatos negros beneficiados pelas cotas. Dizendo

claramente: corremos o sério risco de, em breve, ver no BrasH o

que nunca houve, o ódio racial.

Os defensores de cotas raciais se justificam, alegando que cha­

mam a pardos e negros indistintamente de negros porque os dois

grupos têm desempenhos em tudo semelhantes em diversos indi­

cadores sociais. Como eu disse, seria rotina acadêmica juntá-los e

chamá-los de negros. E tentam afastar o perigo que venho apon­

tando, dizendo que ninguém discute que as cotas beneficiarão tan­

to negros como pardos, justamente porque pertencem a urna mes­

ma categoria social. Isso seria um pouco mais tranqüilizador, mas

creio, no entanto, que esteja apenas no campo das boas intenções.

Do contrário, como explicar o que aconteceu em Mato Grosso do

Sul, onde negros entraram e pardos foram barrados? E há outros

casos que comprovam que os meus temores são concretos.

Em 9 de novembro de 2001, o então governador do Rio, Anthony

Garotinho, sancionou a lei 3.708, instituindo as cotas na Uerj den­

tro de um espírito mais largo. Eis o que diz o artigo prim€iro:

Fica estabelecida a cota mínima de até 40% para as popu[aç,5es 1legra

e parda no preenchimento das vagas relativas aos ClIrsos de graduação

Page 29: KAMEL, Ali - Não somos racistas

54 'IÃO 50MOS RACISTAS

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ([lerj) e da Universidade

Estadual do Norte Fluminense ([lent).

Notem que a lei fala em negros e pardos. A ser verdadeira a tese

de que chamar pretos e pardos de negros é rotina, o Movimento

Negro e os defensores de cotas raciais teriam cometido uma redun­

dância na elaboração da lei.

Mas não se tratou de redundância. Para a lei, que naquele mo­

mento refletia o pensamento do cidadão médio, negro era sinôni­

mo de preto e pardo era pardo mesmo, como sabem todos aqueles

que, como eu, vivem a vida real. Mas não passou muito tempo

para que os defensores das cotas raciais estreitassem a lei. Afinal,

no primeiro vestibular, entraram muitos pardos com nariz afilado,

cabelos lisos e pele em tom claro. Aproveitando a necessidade,

constatada pelo governo do estado, de harmonizar a lei das cotas

raciais com uma outra lei que instituía também cotas para alunos

da rede pública, unificando-as numa só lei, os defensores das cotas

se mobilizaram de tal modo que os pardos foram excluídos da le­

gislação. A lei 4.151, sancionada em 4 de setembro de 2003, vetou

as cotas aos pardos, com a seguinte redação do artigo primeiro:

Com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e económicas,

deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para in­

gresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:

[ - oriundos da rede pública de ensino;

[[ - negros;

[fI - pessoas com deficiência, nos tennos da legislação em vigor, e

integrantes de minorias étnicas.

Os pardos sumiram. A nova lei revogou as anteriores.

Eo sumiço dos pardos não foi obra de nenhum conceito abran­

gente de alguns pesquisadores que consideram que pardos são

negros. Foi ato deliberado. Porque a mesma lei abre dois parágra-

, SUMIRAM COM OS PARDOS 55

fos para definir coisas simples, um para definir o que entende

por "estudante carente" e, outro, para definir o que entende por

"aluno oriundo da rede pública". Mas não há nenhum parágrafo

para definir o que entende por negro (poderiam, se quisessem

incluir os pardos, explicitar que, para o legislador, "negros são a

soma de negros e pardos", mas não o fizeram). E, pior, acrescen­

taram um parágrafo, aceitando a autodeclaração como forma de

os negros se inscreverem, mas ordenando que a universidade

crie mecanismos para combater fraudes. Felizmente, até aqui,

não seguiram o exemplo de Mato Grosso do Sul e exigiram fo­

tos. Mas outras universidades enveredaram por caminhos aindamais estranhos.

No edital em que explicita as regras do vestibular, a Universida­

de de Brasília adotou em 2003 o sistema de cotas para negros, mas

com uma novidade: o estudante pardo também poderá se bene­

ficiar das cotas. Parecia que, finalmente, uma injustiça começava

a ser reparada. Mas a novidade era apenas aparente e se destinava a

fugir do problema exposto acima. O que a UnB propôs foi um ab­

surdo, do ponto de vista da lógica, da ética e das leis de igualdade

racial que, até aqui, regiam a nossa República.

Porque o edital dizia o seguinte, no seu item 3.1: "Para concor­

rer às vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros,

o candidato deverá: ser de cor preta ou parda; declarar-se negro(a)

e optar pelo sistema de cotas para negros."

Ou seja, o aluno pardo terá de se olhar no espelho, constatar,

mais uma vez desde que nasceu, que a cor da sua pele não é negra

(ou preta) nem branca, é parda. Feito isso, ao preencher a ficha de

inscrição, ele terá de assinalar a opção que mais bem caracteriza a

cor de sua pele: pardo. E, em seguida, será instado a mentir, decla­

rando-se negro. Esse procedimento não resiste à lógica, porque, se

o aluno é pardo, ele não pode ser negro. Não resiste à ética! porque

obriga o aluno a mentir, declarando-se negro, quando na verdade

ele é pardo. E não resiste às leis de igualdade racial de nosso país,

Page 30: KAMEL, Ali - Não somos racistas

56 NÃO SOMOS RACISTAS

porque ninguém pode ser discriminado pela cor da pele. Isso é

racismo.

Mas o edital foi além. Ele também feriu as leis que impedem

toda possibilidade de submeter cidadãos a constrangimentos mo­

rais. E não é outra coisa que acontecerá a milhares de alunos par­

dos que venham a ser barrados no sistema de cotas. Porque ele

será chamado de mentiroso. O edital estabeleceu o seguinte, no

item 3.2: "No momento da inscrição, o candidato será fotografado

e deverá assinar declaração específica relativa aos requisitos exigi­

dos para concorrer pelo sistema de cotas para negros."

E o item 3.3 concluiu: "O pedido de inscrição e a foto que será

tirada no momento da inscrição serão analisados por uma Comis­

são que decidirá pela homologação ou não da inscrição do candi­

dato pelo sistema de cotas para negros."

Portanto, o candidato pardo terá de se dizer obrigatoriamente

negro, e, depois, sua foto será analisada por uma comissão que ve­

rificará que ele, não sendo negro, mentiu, e, logo, não tem direito

a participar das cotas. A inclusão de pardos é apenas uma ilusão,

uma maneira encontrada para fugir das críticas. Porque está clara

a intenção da UnB: só se beneficiarão das cotas os negros pretos

(um pleonasmo) ou os pardos negros (uma impossibilidade ótica).

E quem terá o poder para decidir quem é uma coisa ou outra, num

país de miscigenados como o nosso, é uma comissão de umas pou­

cas pessoas, únicas capazes de fazer tal distinção.

Pode fazer sentido acadêmico juntar negros e pardos numa ca­

tegoria "negros", com a justificativa de que os dois grupos com­

partilham de um mesmo perfil socioeconômico. Mas esses poucos

exemplos que relatei aqui mostram a distância entre os conceitos

formulados em gabinetes universitários e a prática do dia-a-dia.

Não vou nem dizer que, sendo os pardos mais numerosos que os

negros (42%) e os pretos (5,9%), talvez fizesse mais sentido ape­

lidar o grupo resultante dessa soma de "pardos" e não de "ne­

gros". Mas, para que não pairasse qualquer dúvida, melhor teria

I SUMIRAM COM OS PARDOS 57

sido chamar o grupo pelo nome correto: "os negros e os pardos."

Isso evitaria toda sorte de mal-entendidos. Ou de ilusões. Porque

é estatisticamente impossível dizer quem, entre os 42% de pardos

no Brasil, é mais escuro, mais claro, menos branco, menos escuro.

Será a maioria ou a minoria ou o quê? Ninguém sabe.

Apesar de tudo isso, todas as estatísticas sobre o assunto se re­

ferem a negros, pondo sob o mesmo rótulo também os pardos.

Esclarecido o truque, os próximos capítulos vão demonstrar como

se lêem tortamente as estatísticas envolvendo os negros no Brasil.

Page 31: KAMEL, Ali - Não somos racistas

o QUE OS NÚMEROS NÃO DIZEM

QUER CHEGAR A CONCLUSÕES PRÕXIMAS DA VERDADE? ENTAo vA AOS

números, mas a todos e não apenas àqueles que são favoráveis à

sua tese. Nos últimos anos, os brasileiros foram invadidos por uma

tonelada de números mostrando as péssimas condições em que vi­

vem os negros (negros e pardos). Sempre citando tabelas do IBGE,

pesquisadores têm se agarrado principalmente a um dado especí­

fico para demonstrar que no Brasil os brancos oprimem os negros:

o salário dos negros e pardos é a metade do salário dos brancos,

mesmo quando o nível educacional é o mesmo. É verdade? É, mas

os dados não demonstram o racismo.

Porque os números estão sempre incompletos. Geralmente, a

fonte de tudo é a Síntese de Indicadores Sociais, feita com base

nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)

e divulgada anualmente. Como o interesse maior é por brancos,

negros e pardos, na brochura, tudo está restrito a esses segmentos.

Os números relativos àqueles que se denominam amarelos jamais

são citados. Mas eles estão disponíveis a qualquer pesquisador na

base de dados do IBGE. E são reveladores.

No Brasil, os amarelos ganham o dobro do que ganham os tam­

bém autodenominados brancos: 7,4 salários mínimos contra 3,8

dos brancos (os autodenominados negros e pardos ganham dois).

Ora, se é verdadeira a tese de que é por racismo que os negros e

Page 32: KAMEL, Ali - Não somos racistas

60 NÃO SOMOS RACISTAS

VALOR MÉDIO DO RENDIMENTO E NÚMERO MÉDIO DE ANOS DE

ESTUDO, POR COR DAS PESSOAS. BRASIL - PNAD 2004

F t · IBGE Pesquisa Nacional por Amostra de Domicmos. Microdados, CD-ROM.on e. , , d na de

Notas: Renda de todas as fontes das pessoas de dez anos e mals~ ocupa as na semareferência. Exclusive sem rendimento, sem declaração de rendimento e anos de estudonão determinados.

o QUE os NÚMEROS NÃO DIZEM 61

pode ser dito com mais propriedade em relação aos pobres, sejam

brancos, negros, pardos ou amarelos. São os pobres que têm as pio­

res escolas, os piores salários, os piores serviços. Negros e pardos

são maioria entre os pobres porque o nosso modelo económico foi

sempre concentrador de renda: quem foi pobre (e os escravos, por

definição, não tinham posses) esteve fadado a continuar pobre.

Mas o leitor deve estar se perguntando: como pode um negro

e um pardo com o mesmo nível educacional ganhar menos do

que um branco? Não pode. Nem as estatísticas dizem isso. O que

elas mostram é que negros e pardos, com o mesmo número de

anos na escola que brancos, ganham menos. Isso não quer di­

zer que tenham recebido a mesma educação. Basta acompanhar

este exemplo hipotético: um negro, por ser pobre, estudou 12

anos, provavelmente em escolas públicas de baixa qualidade e,

se entrar na universidade, não terá outra opção senão estudar em

faculdade privada caça-níqueis (o Programa Universidade Para

Todos, ProUni, do governo federal, destinado a dar bolsas a es­

tudantes carentes, não resolve o problema, mas o perpetua); o

branco, por ter melhores condições financeiras, estudou também

12 anos, mas fazendo o percurso inverso, estudou em boas escolas

privadas e cursará a universidade numa excelente escola públi­

ca. A diferença salarial decorre disto e não do racismo: "Você é

negro, pago um salário menor." Infelizmente, não há estatística

que meça quanto ganham cidadãos de cores diferentes com igual

qualificação educacional. Da mesma forma, não é correta a afir­

mação de que brancos e negros, em funções iguais, ganhem salá­

rios desiguais. O IBGE não mede isso. Não há tabela mostrando

que marceneiros brancos ganhem mais que marceneiros negros.

O que ele faz é estratificar os segmentos em categorias: com car­

teira, sem carteira, domésticos, militares, funcionários públicos

estatutários, por conta própria e empresários. Ou por setores: in­

dústria, comércio, agricultura etc. Mas nunca por função ou ofí­cio ou nível hierárquico.

I

2,0

6,26,4

2,13,8

8,4

7,4

10,7Número médio de

anos de estudo

Valor médio do

rendimento, em

salários mínimos

pardos ganham menos, haverá de ser, em igual medida, também

por racismo que os amarelos ganham o dobro do que os brancos.

Se o racismo explica uma coisa, terá de explicar a outra, elementar

princípio de lógica. E, então, chegaríamos à ridícula conclusão de

que, no Brasil! os amarelos oprimem os brancos.

Não, o racismo não explica nem uma coisa nem outra. Por­

que não somos racistas, repito. A explicação se encontra no nível

cultural e na condição económica dos diversos segmentos da po­

pulação. Vejamos: os amarelos estudam, em média, 10,7 anos; os

brancos estudam menos, 8,4 anos; e os negros, menos ainda, 6,4

anos. Os amarelos estudam mais e, por isso, ganham mais. Nada

a ver com a cor. Ao visualizar a seguinte tabela, o leitor terá mais

clara a relação entre renda e anos de estudo:

Diante desses números, mais lógico seria supor que é preciso ge­

rar renda e distribuí-la de maneira mais justa, para que os mais po­

bres possam melhorar de vida. E investir em educação tendo como

alvo os pobres em geral, e não apenas os negros, para que todos te­

nham a chance de ter uma vida mais digna. Melhor ensino, melhor

salário. Porque tudo o que se diz em relação aos negros e pardos

Page 33: KAMEL, Ali - Não somos racistas

62 NÃO SOMOS RACISTAS O QUE OS NÚMEROS NÃO DIZEM 63

Portanto, onde o racismo poderia estar mais presente, na casa

das pessoas, ele não está: a diferença salarial entre trabalhadores

RENDIMENTO MÉDIO MENSAL REAL DOS TRABALHADORES DO~1ÉSTICOS

NO TRABALHO PRINCIPAL, DA SEMANA DE REFERÊNCIA, DE DEZ ANOS

OU MAIS DE IDADE, POR GRANDES REGiÕES. BRASIL - 2003/2004

que esteja, é possível que um negro classificado como analfabeto

funcional receba menos do que um branco, bastando para isso que

esteja no nível 1 e o branco no nível 2. Se é verdade que os negros

e pardos são a maior parte dos pobres, numericamente ao menos

é muito provável que haja mais negros e pardos no nível 1 do que

brancos, o que poderia explicar as diferenças salariais.

A prova dos nove seria saber se analfabetos funcionais, de mesmo

nível, trabalham em funções iguais com salários diferentes. O IBGE

não mede isso. A única ocupação cujo rendimento o IBGE mede é a

dos domésticos. Entre eles, porém, apenas 27% ou não têm instru­

ção alguma ou são analfabetos funcionais. Mas é o grupo que pode

ser analisado. Na média nacional, um doméstico branco ganha

R$269, e um negro, R$261. No Sudeste, os brancos ganham R$303, e

os negros, R$29 7; no Centro-Oeste, brancos ganham R$ 251, e negros,

R$248; no Norte, os brancos recebem R$220, e os negros, R$192;

em duas regiões, negros ganham mais do que brancos no Sul,

brancos ganham R$263, e negros, R$276; e, no Nordeste) brancos

ganham R$162, e negros, R$176. Veja a tabela:

261

192176

276297

248

220

303263

162

269

251

Nordeste

Norte

SulSudeste

Centro-Oeste

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilias.

Vejamos o que acontece com militares e estatutários: de fato,

negros ganham R$1.170,90 e brancos, R$1.477,51. Mas, novamen­

te, é a qualificação educacional que conta para a diferença, não a

cor. Ou alguém imagina que no século XXI, num país republicano

como o Brasil, que se orgulha da sua "Constituição Cidadã", um

servidor público, civil ou militar possa ganhar mais por causa da

cor? Impossível, as carreiras são tabeladas. Ocorre é que quem não

tem dinheiro não se gradua em general, por exemplo, seja branco

ou negro, porque não tem recursos para cursar as escolas prepara­

tórias. Há, provavelmente, mais cabos de origem humilde (portan­

to, mais negros) do que generais de origem humilde.

Mas a tabela mais citada mostra que analfabetos funcionais negros,

em qualquer função, ganham 31,6% menos que os brancos. Nesse

caso, não haveria desnível educacional que explicasse a diferença sa­

larial. Será? O Instituto Paulo Montenegro faz pesquisas para estabe­

lecer o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf), através

de testes de leitura. No último estudo, os pesquisadores lembram que

o IBGE seguiu sugestão da Unesco ao considerar analfabeto funcio­

nal aquele com menos de quatro anos de estudo, mas se perguntam:

"Será que quatro anos garantem o alfabetismo funciona!?"

O instituto quer provar que o analfabetismo funcional pode atin­

gir séries mais avançadas. Mas, para nossos propósitos, é valiosa

a análise sobre as diferenças entre os que têm até quatro anos de

estudo. Entre aqueles que jamais foram à escola, ainda assim 20%

se encontram no primeiro de três níveis: têm habilidade baixa, só

localizam informações simples em enunciados de uma única frase.

Entre aqueles que têm de um a três anos de estudo, 32% são anal­

fabetos absolutos, 51% estão no nível 1 e 18% estão no nível 2: têm

uma habilidade básica, são capazes de localizar informações em car­

tas e notícias. Assim, é impossível pegar números frios do IBGE e ga­

rantir que todos os que têm até quatro anos de estudo formam uma

base homogênea. Seria necessário saber quantos brancos e quantos

negros estão nos níveis 1 e 2. Portanto, dependendo do nível em

Page 34: KAMEL, Ali - Não somos racistas

64 NÃO SOMOS RACISTAS

domésticos negros e brancos não é tão acentuada. E aqui vai uma

curiosidade. Domésticos pardos têm salários menores do que do­

mésticos negros: na média nacional, R$221; no Norte, R$207; no

Nordeste, R$159; no Sudeste) R$264; no Sul, R$233; e no Cen­

tro-Oeste, R$238. Ora, como explicar isso à luz da tese corrente

(de Oracy Nogueira e tantos outros) de que o preconceito racial

é maior quanto mais escura for a cor da pele? A ser verdade, do­

mésticos negros deveriam receber menos do que pardos, que são

mais claros. Isso é mais um indicador de que o racismo não serve

para justificar diferenças salariais. Hoje, muitos querem encontrar

soluções rápidas para pôr fim a desigualdades produzidas ao longo

de séculos, não pelo racismo, mas pela pobreza. O único caminho,

porém, é investir na educação.

O olhar torto para as estatísticas, no entanto, parece não dar

trégua. A Síntese de Indicadores Sociais registra que praticamente

100% das crianças de 7 a 14 anos, de todas as cores, estavam na

escola. Mas constata também que, entre os jovens de 15 a 24 anos,

48% dos brancos cursavam o ensino médio, enquanto 41% dos

negros ainda cursavam o ensino fundamental. E, na mesma faixa

etária, 31% de brancos estavam no ensino superior, contra apenas

14% de negros.

Concluir, porém, a partir desses números, que somos racistas é

indevido. Porque seríamos esquizofrênicos: com crianças de até 14

anos, os brancos seriam tolerantes, permitindo o livre acesso de

negros à escola. Mas, assim que completassem 15 anos, os brancos

se transformariam em racistas nojentos.

Isso faz algum sentido?

Em 1991, 86,5% das crianças brancas de 7 a 14 anos estavam

na escola contra apenas 71 % das negras. Na época, muitos disse­

ram que a razão era o racismo. E a história provou que não: o que

afastava as crianças da escola era a pobreza e a falta de investimen­

tos em educação. Uma medida do governo FH ajudou a pôr um

fim nisso: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino

o QUE OS NÚMEROS NÃO DIZEM 65

Fundamental (Fundef), que repassou dinheiro às prefeituras de

acordo com o número de matrículas. É razoável supor que o mes­

mo acontecerá nas faixas etárias mais elevadas, se o governo Lula

e os seguintes radicalizarem na decisão de investir em educação,

ampliando as verbas pesadamente para o ensino médio.

Mas não tem jeito. Toda vez que sai a Síntese de Indicadores

Sociais é a mesma coisa: as páginas de todos os jornais se inun­

dam de matérias mostrando que o racismo no Brasil é grande.

Os números do IBGE não mostram isso. Nem as análises técnicas

que precedem as tabelas. Mas não adianta. Só há olhos para ver

racismo.

O IBGE sabe que não pode escrever aquilo que os números não

mostram. Mas, nas entrevistas à imprensa, os técnicos avançam o

sinal e levam os jornalistas a uma conclusão que o próprio insti­

tuto se recusa a tornar oficial. Vejam o que declarou o pesquisador

José Luiz Petrucelli, na divulgação da pesquisa de 2004: "Não se

trata do racismo de pessoas sobre pessoas, mas da estrutura da

sociedade, que resiste a integrar os pretos e pardos. Apesar de o

sistema de cotas ser emergencial e provisório, grandes instituições

como a Universidade de São Paulo resistem a adotá-Ias."

A frase contém uma ofensa, uma inverdade e um absurdo.

A ofensa é chamar de racistas os membros do Conselho Uni­

versitário da USP. O que a universidade faz é preservar o siste­

ma de mérito: entram os melhores, independentemente da cor.

Não há racismo, é justamente o contrário: ali não há filtro racial.

Em vez de cotas, a USP preferiu adotar mecanismos para tornar

possível a entrada de pobres em geral, e não somente de negros

e pardos. E sem ferir a meritocracia. É assim que patrocina um

excelente curso pré-vestibular, que já atendeu a cinco mil alunos,

voltado a estudantes de baixa renda. E inaugurou em 2005 um

campus com cursos noturnos, na zona leste de São Paulo, onde

a população é majoritariamente pobre. As duas medidas têm se

mostrado efetivas.

Page 35: KAMEL, Ali - Não somos racistas

66 NÃO SOMOS RACISTAS

A inverdade e o absurdo é dizer que não se trata de um racismo

de pessoas sobre pessoas, mas da estrutura da sociedade. Como as­

sim? Então os brasileiros não são racistas, mas as suas instituições

são? Por quê? Porque foram racistas no passado e deixaram de ser,

esquecendo-se de reformar as instituições? Ou as instituições são

produto de poucas mentes abjetas, com poder ditatorial, que tira­

nizam os brasileiros com seus mecanismos racistas?

Nada disso faz sentido. O racismo sempre é de pessoas sobre

pessoas, e ele existe aqui como em todas as partes do mundo. Mas

não é um traço dominante de nossa cultura. Por outro lado, nos­

sas instituições são completamente abertas a pessoas de todas as

cores, nosso arcabouço jurídico-institucional é todo ele "a-racial".

Toda forma de discriminação racial é combatida em lei.

Os mecanismos sociais de exclusão têm como vítimas os po­

bres, sejam brancos, negros, pardos, amarelos ou índios. E o prin­

cipal mecanismo de reprodução da pobreza é a educação pública

de baixa qualidade. E é isso o que mostram os números do IBGE.

Urna leitura apressada, porém, leva sempre aos mesmos erros.

Que não são exclusividade nossa. As instituições internacionais,

ligadas à ONU, engajaram-se fortemente na campanha que deseja

provar que somos estruturalmente racistas. Um exemplo de desta­

que é o Relatório de Desenvolvimento Humarw (RDH), divulgado pelo

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em

2005. O relatório não traz produção própria: é um "cozido" dos mui­

tos estudos que nos últimos tempos tentam provar que, no Brasil,

brancos dominam negros (o Pnud chama negros o conjunto de ne­

gros e pardos). Mas o que se comete ali é o que eu chamo de sensa­

cionalismo acadêmico. No capítulo "As desigualdades sócio-raciais",

há uma atrocidade. Primeiro, eles dizem que, em 1982, 58% dos ne­

gros e 21% dos brancos estavam abaixo da linha da pobreza, contra

47% dos negros e 22% dos brancos em 2001. Mas, em vez de trocar

isso em miúdos, preferiram dar destaque a outro recorte. Declararam

que, entre 1992 e 2001, o número absoluto de brasileiros abaixo

O QUE OS NÚM EROS NÃO DIZEM 67

da linha da pobreza caiu cinco milhões, mas todos brancos ou de

outras "categorias raciais": o número de negros pobres teria crescido

quinhentos mil. É como se só brancos melhorassem de 'Vida. No site

do Pnud, essas informações estavam em grande destaque.

Fiz as contas, e espero que o leitor me acompanhe, apesar da

aridez do terreno. Repetindo: com base nos números do próprio

Pnud, no período entre 1982 e 2001, o percentual de negros e par­

dos pobres caiu de 58% para 47% e o de brancos pobres se man­

teve praticamente estável, de 21 % para 22%. Em números absolu­

tos, em 1982 havia 15 milhões de brancos pobres e 31,6 milhões

de negros e pardos pobres e, em 2001, 20,1 milhões de brancos

pobres e 36,9 milhões de negros e pardos pobres. Portanto, em 19

anos, em função do aumento populacional, o número de negros

e pardos pobres cresceu 5,3 milhões, apesar da queda percentual, e

o número de brancos pobres cresceu 5,1 milhões, apesar da estabi­

lidade em termos percentuais. Apopulação total de negros e pardos

no período cresceu 44,2%, enquanto a população total branca cres­

ceu 27,6%. Portanto, a diferença maior de negros e pardos pobres

no período - trezentos mil - mais do que se justifica pelo maior

crescimento populacional do grupo em relação aos brancos. Se

levarmos isso em conta, verificaremos que 25,6% dos brancos

que se somaram à população brasileira no período eram pobres

e que essa proporção foi menor entre os negros e pardos: 22,1%. E

mais: se percentualmente a pobreza entre negros e pardos tivesse

se mantido estável (58%), como ocorreu com os brancos, o núme­

ro de pobres negros e pardos em 2001 deveria ser de 45,6 milhões

e não de 36,9 milhões. Logo, 8,7 milhões de negros e pardos es­

caparam da pobreza. A melhora na situação do negro e do pardo

foi expressiva: a pobreza caiu muito mais acentuadamente entre

os negros e pardos do que entre os brancos. Naturalmente, o Pnud

não fez essas contas, preferindo aquele outro recorte "sensaciona­

lista". Eu chamo isso de manipulação. Visualmente, uma tabela

sobre todas essas contas poderia ficar assim:

Page 36: KAMEL, Ali - Não somos racistas

68 NÃO SOMOS RACISTAS

ALGUNS INDICADORES SOBRE POBREZA, POR COR DAS PESSOAS

População71,5 91,2 27,6% 54,5 78,6 44,2%(milhões) (1)

Total de pessoas

abaixo da linha da15,1 20,1 5,1 31,6 36,9 5,3

pobreza (milhões)

(3)

Proporção de

pessoas abaixo da 21% 22% 1% 58% 47% -11%

linha da pobreza

Simulação para

o total de pessoas

abaixo da linha

da pobreza se

a proporção 15,0 19,2 4,1 31,6 45,6 14,0

em 1982 se

mantivesse

constante em

2001 (milhões)

Simulação para

o total de pessoas

que escaparamO 8,7

da pobreza

entre 1982 e 2001

(milhões)

Fonte: (1) IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.(2) IBGE, População projetada para 1982.

(3) Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).Relatório de Desenvolvimento Humano, 2005.

o QUE os NÚMEROS NÃO DIZEM 69

A coisa é freqüente. Também em 2005, saiu um estudo compa­

rando o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de brancos e

negros (incluindo os pardos) em municípios brasileiros. O estudo

em si era uma bobagem: se 66% dos pobres são negros e pardos,

não é surpreendente que o IDH da maior parte dos negros e par­

dos, em qualquer município, não seja alto. Pois bem: o estudo

destacou com estardalhaço que em apenas sete municípios o IDH

dos negros e pardos era alto, situação em que os brancos se encon­

tram em 1.591 municípios. É uma escolha estatística pela pior no­

tícia. Eu poderia ter feito outra opção. Por exemplo: em 88% dos

municípios pesquisados, os negros e pardos têm IDH médio-alto e

médio; o mesmo acontece com os brancos em 69% das cidades. Areportagem não fez essa conta, claro.

Um outro estudo mostrou que seria preciso aplicar R$67 bilhões

em ações voltadas para negros (incluindo os pardos) em sanea­

mento básico, educação e habitação para que brancos e negros e

pardos tivessem um mesmo padrão social. Não consigo entender

como alguém pode fazer uma conta como essa. Qual seria o re­

sultado se o governo enveredasse por esse caminho? Um país em

que os negros e pardos estariam em ótimas condições, mas os 19

milhões de brancos pobres continuariam com índices humilhan­

tes. Isso não faz o menor sentido. A conta não deve ser quanto é

preciso para tirar os negros (incluindo os pardos) da pobreza, mas

quanto é necessário para tirar os pobres da pobreza, negros, pardose brancos.

Com freqüência, porém, dizem que minhas afirmações são fruto

do que chamam de pensamento convencional. E eu concordo: de

fato, chego a essas conclusões usando apenas o raciocínio lógico. É

justamente a falta do pensamento convencional que embaça o de­

bate. Certa vez, vi na TVE do Rio de]aneiro alguém defendendo a

ação do Ministério Público do Trabalho: "Esse programa é uma re­

volução silenciosa porque está fazendo as empresas olharem para

dentro de si e verem que não têm trabalhadores negros. O progra-

Page 37: KAMEL, Ali - Não somos racistas

70 NÃO SOMOS RACI STAS

ma está combatendo os clichés de que o racísmo é um problema

económico, social e educacionaL. Porque, na verdade, está sendo

demonstrado que há vários negros capazes em número suficien­

te, e eles não estão sendo absorvidos pelo mercado de trabalho."

Taí um pensamento não convencional. Ou bem é verdade que

o racismo barra os negros nas universidades ou bem é verdade

que as universidades despejam no mercado todos os anos muitos

profissionais de qualidade que não são absorvidos pelas empresas

por racismo. Os dois fenómenos não podem coexistir na mesma

medida. Apesar disso, as cotas são vistas como remédio para am­

bos os fenómenos.

Outro argumento freqüente dado como prova de racismo é a

distribuição geográfica de brancos e negros (incluindo os pardos)

nos bairros das cidades. Naquele mesmo programa da TVE, um

professor repetiu o que muitos dizem: nas favelas cariocas, 90%

dos habitantes são negros. Não é verdade. Nas favelas da cida­

de do Rio, segundo o IBGE, 58,6% se declaram negros e pardos,

contra 41,4% que se dizem brancos, um contingente altamente

expressivo. Onde está o racismo? Considerando todas as favelas

pesquisadas, 22°/ó delas, ou 114 comunidades, têm mais brancos

do que negros e pardos, entre elas a Rocinha, onde os brancos são

54%, Rio das Pedras, com 58% de brancos e o morro do Timbau,

com 61% de brancos. No Brasil) 59,7% dos favelados são negros,

e 40,3%, brancos.

PROPORÇÃO DE PESSOAS RESIDENTES EM FAVELAS NO BRASIL E NA

CIDADE DO RIO DE JANEIRO, POR COR DAS PESSOAS. BRASIL - 2000

O QUE OS NÚI.lEROS NÃO DIZEM 71

Espero sinceramente que este capítulo, coalhado de números,

tenha ficado suficientemente claro para mostrar como as estatís­

ticas têm sido usadas de maneira enviesada, turvando um debate

que devia ser cristalino: o nosso problema é a pobreza e não umasuposta desigualdade racial.

No próximo capítulo, vou tentar desmontar a tese de que há

racismo no mercado de trabalho brasileiro.

Brasil

Cidade do Rio de Janeiro

Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2000.

40,3%

41,4%

59,7%

58,6%

Page 38: KAMEL, Ali - Não somos racistas

NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO

NÃo PASSA MUITO TEMPO SEM QUE A IMPRENSA DIVULGUE ALGUMA PESQUISA

"demonstrando" que os negros são discriminados no mercado de

trabalho. É como se não somente OS departamentos de recursos

humanos mas todos os departamentos de nossas empresas fossem

dirigidos por racistas inveterados. Do tipo que olha para um can­

didato a algum posto de trabalho e pensa: "É negro, pago menos."

Não há mal-intencionados entre esses pesquisadores, mas a visão

é torta.

Vejamos o caso do Instituto Ethos, que luta com muito esfor­

ço para promover o conceito de responsabilidade social nas em­

presas. A cada dois anos, este instituto, em parceria com outras

entidades, divulga um estudo sobre a participação do negro nas

quinhentas maiores empresas do país. E sempre lamenta, em coro

com os jornais, o mau posicionamento do negro no mercado de

trabalho. A grande grita sempre gira em torno do fato de que uma

parte expressiva das empresas não sabe responder quantos negros

há em cada nível funcional. Em 2003, o número era de 27%; em

2006, caiu levemente para 24%. Esses dados sempre são divulgados

como indício de que, no Brasil, existe racismo. Um paradoxo.

Quase um terço das empresas demonstra a entidades seriíssimas

que "cor" ou "raça" não são filtros em seus departamentos de RH

e, exatamente por essa razão, as empresas passam a ser suspeitas

Page 39: KAMEL, Ali - Não somos racistas

Ano

NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO 75

1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004

PROPORÇÃO PERCENTUAL DE CRIANÇAS NEGRAS (INCLUINDO AS

PARDAS) DE 10 A 14 ANOS ANALFABETAS. BRAS IL

A pesquisa do Ethos mostra isso, mas o instituto e os jornais

preferem destacar os dados ainda negativos. Manchetes vão para o

fato de que, embora os negros (incluindo os pardos) sejam 48% da

população, apenas 26,4% dos empregados das quinhentas maio­

res empresas são negros e pardos (o número era de 46% e 23,4%,

respectivamente em 2003). Isso é mostrado como prova de que

no Brasil existe racismo, mas a própria pesquisa mostra que talvez

isso se deva principalmente à condição educacional dos pobres.

Em 1992, o analfabetismo atingia 19,2% das crianças negras entre

10 e 14 anos; em 2004, esse número caiu para 5,5%.

30%

25%

20%

15%

10%

5%,

0%1992

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicnios. Microdados, CD-ROM.

Na reportagem do Globo que divulgava o estudo do Ethos, dizia­

se que, em 1992, 51,2% das crianças negras (incluindo as pardas)

estavam atrasadas no ensino escolar e que, em 2002, esse núme­

ro desabou para 22,3%, uma queda de trinta pontos percentuais.

Nas tabelas que fiz, não encontrei esses dados, mas, de qualquer

formaj a redução foi drástica. Em 1992, 52,4% das crianças negras

(incluindo as pardas) estavam atrasadas na escola; esse número de­

sabou em 2002 para 28,3% e, em 2004, caíra ainda mais: 24,6%.

de racismo. Elas são acusadas por aquilo que as absolve. Tempos

perigosos, em que pessoas com ótimas intenções não percebem

que talvez estejam jogando no lixo o nosso maior património: a

ausência de ódio racial.

Há toda uma gama de historiadores sérios j dedicados e igual­

mente bem-intencionados, que estudam a escravidão e se depa­

ram com esta mesma constatação: nossa riqueza é esta, a tolerân­

cia. Nada escamoteiam: bem documentados, mostram os horrores

da escravidão, mas atestam que, não a cor, mas a falta de educação

é que explica a manutenção de um indivíduo na pobreza. Não

negam o racismo, porque ele sempre existirá em alguma medida,

mas, com números, argumentam que a inexistência da intolerân­

cia racial tem raízes na nossa história. A verdade é que a escravidão

não assentava sua legitimidade em bases raciais, pois era grande

a mobilidade social dos escravos. Tão grande que, na região de

Campos, na virada para o século XIX, um terço da classe senho­

rial era de "pessoas de cor", segundo censos da época. Números

como esses têm sido revelados por estudos mais recentes de de­

mografia histórica. Era assim em Minas e na Bahia. Ou seja, uma

vez alforriados, a cor não era impedimento para que os negros

fossem aceitos como iguais pelos brancos e pudessem comparecer

ao mercado de escravos, na condição de compradores, segundo

o relato de muitos viajantes da época, como Henry Foster, que

acabou se estabelecendo como fazendeiro em Pernambuco: bas­

tava ter dinheiro. Hoje, se a maior parte dos pobres é de negros e

pardos, isso não se deve à cor da pele. Não existe isso, no Brasil:

"É negro, deixa na pobreza." Nos últimos cem anos, nosso modelo

foi concentrador de renda: quem era pobre boas chances teve de

continuar pobre. Há pelo menos uma década, o país tem tentado

enfrentar esse desafio, ainda que timidamente. Com crescimento

económico e uma melhor distribuição de renda, a condição do ne­

gro vai melhorar acentuadamente. Porque, aqui, a discriminação

pela cor não é estrutural.

74 NÃO SOMOS RACISTAS

Page 40: KAMEL, Ali - Não somos racistas

76 NÃO SOMOS RACISTAS

Ora, em vez de se concluir que, com essa tendência, tudo indica

que nos próximos anos a participação dos negros e pardos nas em­

presas será muito maior, preferiu-se destacar o retrato congelado da

situação de hoje e decretar: os negros e pardos não são tão numerosos

como deveriam ser naquelas empresas, não por questões educacio­

nais comuns a toda a população pobre, mas porque as empresas são

racistas. A pesquisa costuma destacar que negros e pardos ganham

metade do que ganham os brancos, mas não pondera que os pri­

meiros, por serem pobres, tiveram uma educação pior e, por isso, no

agregado, estão menos preparados que os brancos e, em conseqüên­

cia, têm salários menores. Já discutimos isso no capítulo anterior.

É uma maneira embaçada de ver as coisas. Há muitos indícios

de que a discriminação por cor não atue acentuadamente no mer­

cado de trabalho. Numa das reportagens sobre a pesquisa do Ethos

publicada no jornal O Globo, um funcionário de uma das empresas

foi entrevistado. Ele deu um testemunho eloqüente de que nunca

enfrentou racismo no emprego. Textualmente, eis o que ele disse:

"Sempre que disputei uma vaga, fiquei com o emprego. Sou um

bom profissional e, sem dúvida, um profissional de sorte."

Ou seja, ele atestou que nunca a sua cor fora impedimento para

conseguir uma vaga, o determinante era o seu talento. Mas o dis­

curso bem-intencionado que vê racismo em tudo está começando

a ficar tão disseminado que se preferiu publicar o seguinte subtítu­

lo: "O técnico Leílson Gomes credita parte de sua ascensão profis­

sional à sorte." Este é o perigo: o que é um património passa a ser

encarado como obra do acaso. Não, Leílson ganhou todas as vagas

que disputou porque nós, brasileiros, conseguimos construir um

país que, apesar de muitos defeitos, tem uma grande qualidade:

a inexistência de ódio racial. Isso não é sorte. É o fruto da cons­

trução de gerações que experimentaram sempre a tolerância. Se

perdermos isso agora, não será azar. Será o resultado de boas inten­

ções que não conseguem ver a riqueza que temos. Trata-se de uma

campanha que não dá tréguas, e vem agora de todos os lados.

NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO 77

O IBGE, por exemplo. Pressionado pelo Movimento Negro,

realizou em 2004 uma pesquisa sobre emprego e raç;c, e, com

base nela, os jornais concluíram que os dados "compr:JVavam"

que os negros (incluindo os pardos) são discriminados no mer­

cado de trabalho. Foi um erro, um passo além do qu<' os nú­

meros permitiam dizer. A pesquisa revelou que os negros - a

soma de pretos e pardos - eram a maioria dos desempregados,

tinham as piores ocupações e ganhavam a metade do :5alário elos

brancos (essa ficção, quem é branco no Brasil?). Mas nada nos

estudos permitia dizer que os negros e pardos estão nessa con­

dição porque o Brasil é racista ou porque os brancos são racistas

ou porque os empregadores discriminam os negros e pardos. A

pesquisa não mostrava, porque isso seria impossível, que um

engenheiro negro ganhava metade do que ganhava um enge­

nheiro branco. Ou que um porteiro branco recebia o dobro do

que recebia um porteiro negro. Como já mostrei no capítulo

anterior, os negros vivem essa situação porque são, na :naioria,

pobres e, como todos os pobres, tiveram acesso a escola;; piores,

a um ensino deficiente. Sem estudo, não há trabalho, não há

emprego, não há bons salários.

O governo, no entanto, em vez de concentrar esforço> para ele­

var a qualidade de ensino no Brasil e para dar escola de bo m nível

a todos os pobres, sejam brancos, negros ou pardos, parece pu:­

ferir colocar a culpa nos brasileiros brancos. É, sem dú"tda, urna

solução simples: tira a responsabilidade de si próprio, fal crescer

um sentimento de culpa nos brancos, leva os negros a culpar os

brancos pelas condições em que vivem e a agradecer ac governo

o favor de denunciar a situação. Mas não resolve o pme lema, e

pode criar outros, tão ou mais sérios: repito, o ódio r;ceal, senti­

mento que até aqui desconhecíamos, e demandas impossíveis ele

atender. Daqui a pouco, anotem, haverá quem proponha uma lei

estabelecendo aumento salarial de não sei quantos por cento aos

negros para que a distorção salarial seja sanada. Para jXUtD:r ~en-

Page 41: KAMEL, Ali - Não somos racistas

78 NÃO SOMOS RACISTAS

sata, a proposta será de pequenos aumentos anuais por um prazo

de x anos, até que negros e brancos ganhem salários iguais. Se os

negros no Brasil ganham menos porque são discriminados, nada

mais correto do que corrigir a situação por decreto.

Não, nada é simples. O mal deste país não é o racismo. Ele existe

aqui, como em todo lugar, mas, entre nós, nem de longe se trans­

formou na marca de nossa identidade. Sempre nos orgulhamos do

nosso ideal de nação, um país de miscigenados, em que o próprio

conceito de raça faz pouco sentido. Há pouco tempo, a Grã-Bre­

tanha esteve em meio a uma campanha para que os britânicos se

aceitassem como uma nação multiétnica: no metrô de Londres,

havia cartazes em que se viam uma jovem muçulmana envolta

num véu feito da bandeira nacional, um negro com um boné de

rapper também nas cores da bandeira, um asiático com um apli­

que na roupa nas mesmas cores e um branco com uma bandeira

simulando uma mochila. Todos britânicos, mas sem mistura. Uma

nação multiétnica, portanto.

Até há pouco, os brasileiros riríamos dessa iniciativa. Querendo

deixar o racismo para trás, os brancos britânicos se esforçam ao

menos para acolher como concidadãos pessoas de cores diversas,

desde que não se misturem. Os que vêem o Brasil como racista

querem dar dois passos atrás. Não nos reconhecem nem como

a nação miscigenada que sempre quisemos ser, nem como uma

nação multiétnica, com uma infinidade de cores, cafuzos, mame­

lucos, mulatos, brancos, pardos, pretos. Querem-nos uma nação

bicolor, apenas negros e brancos, com os brancos oprimindo os

negros. É triste.

O nosso problema não é o racismo, mas a pobreza e o modelo

econômico que, ao longo dos anos, só fez concentrar a renda: os

que eram pobres permaneceram pobres ou ficaram mais pobres;

e os que eram ricos, ricos ficaram ou enriqueceram ainda mais.

O Brasil deveria estar unido para resolver esse problema, distri­

buindo renda e investindo maciçamente em educação. Quando os

NEGROS E BRANCOS NO MERCADO DE TRABALHO 79

pobres deste país tiverem uma educação de qualidade, todos terão

a mesma chance no mercado de trabalho. E as distorções entre

brancos e negros terão um fim.

No próximo capítulo, vou mostrar como negros e brancos po­

bres se parecem.

Page 42: KAMEL, Ali - Não somos racistas

IiI

ALHOS E BUGALHOS

ATÉ AQUI, TENHO TENTADO DEMONSTRAR QUE OS NÚMEROS NÃO MENTEM,

mas enganam quem não OS quer ler sem preconceitos. O que os

defensores da tese de que aqui os brancos oprimem os negros têm

feito é comparar alhos com bugalhos. Mas, para que os números

digam a verdade, é preciso comparar alhos com alhos e bugalhos

com bugalhos. É o que pretendo fazer neste capítulo.

Se alguém pegar a massa de números relativos a todos os bran­

cos do país e comparar com a massa de números relativos a todos

os negros (incluindo os pardos) do país, como fazem os cotistas,

não estará chegando a lugar algum. Porque a média de todos os

brancos somados - os paupérrimos, os pobres, os de classe média,

os ricos, os milionários - é uma ficção, o branco médjo só existe

nas estatísticas. Assim como o negro médio também não existe na

vida real. De pouco nos serve, portanto, saber que um branco em

relação a um negro ou a um pardo, em média, é tantas vezes me­

nos analfabeto, tem tantos anos a mais de escolaridade ou rece­

be um salário tantas vezes maior. É preciso comparar brancos e

negros de mesma característica. Se houver diferenças, aí, então,

talvez, se possa buscar, entre as razões, o racismo.

O máximo que os pesquisadores fazem é pegar grandes gmpos e

compará-los. Por exemplo: os 25% mais pobres entre os r.egros (sem­

pre incluindo os pardos) e os 25% mais pobres entre os brancos. Mas

Page 43: KAMEL, Ali - Não somos racistas

82 NÃO SOMOS RACISTAS

estes dois grupos não são iguais: neles estão negros e brancos resi­

dentes em áreas urbanas e rurais, com nenhum, um, dois, três ou

quatro filhos, com rendas que variam de zero até o limite máximo

escolhido. Com tantas variáveis, os dois grupos não são comparáveis.

E as diferenças encontradas entre eles podem ter muitos motivos: ra­

cismo, número de filhos, área de domicílio (rural ou urbana), renda.

Nem mesmo o critério de renda, isoladamente, resolve o pro­

blema. Suponhamos que se comparem brancos e negros que te­

nham R$100 de renda per capita. Mesmo assim, os dois grupos

não são iguais. Um casal negro com quatro filhos, morador da

zona rural, mesmo tendo uma renda per capita de R$100, tem uma

vida completamente diferente de um casal branco, morador de

zona urbana, com renda per capita de R$lOO, mas sem filhos. O

primeiro, apesar de ter renda familiar total de R$600 (o casal, mais

quatro filhos) talvez viva pior do que o segundo, com renda total

de R$200. Porque criar, em sentido amplo (educar, divertir, vestir,

tratar da saúde), quatro crianças é extremamente dispendioso.

A meu pedido, o estatístico Elmo lório pegou os dados brutos

da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE de 2004,

acessíveis num CD-ROM a todos os brasileiros, e fez as tabulações

relativas a brancos, negros e pardos, residentes em áreas urbanas,

com um filho e rendimento familiar total de até dois salários (po­

bres, portanto). São grupos comparáveis, porque, ao menos em

tese, têm as mesmas condições de vida, as mesmas possibilida­

des, as mesmas dificuldades. É comparar alhos com alhos. Pobres

com pobres. Eu poderia ter escolhido brancos, negros e pardos da

área rural, com dois filhos e renda de dois salários mínimos, ou

brancos, negros e pardos com quaisquer outras características, não

importa, desde que pobres: o importante é que os grupos fossem

comparáveis. Se um grupo tiver melhores indicadores sociais do

que o outro, a razão pode ser de fato o racismo.

Feita a comparação entre os três grupos que escolhi, o resulta­

do foi o que eu esperava: brancos, negros e pardos pobres têm as

ALHOS E BUGALHOS 83

mesmas dificuldades, o mesmo perfil. Onde está o racismo? Nas

contas de quem confunde alhos com bugalhos.

A pesquisa mostra que a semelhança entre os três grupos é cons­

tante e que as diferenças numéricas são estatisticamente desprezí­

veis - 73% dos brancos, 72% dos negros e 69% dos pardos sabem

ler e escrever. A média de anos de estudo para os brancos, negros

e pardos é de cinco anos. Trinta e seis por cento dos brancos, 35%

dos negros e 36% dos pardos têm entre quatro e sete anos de estu­

do. Doze por cento dos brancos, 11% dos negros e 10o;ó dos pardos

estudaram entre 11 a 14 anos. Praticamente nenhum branco, ne­

gro ou pardo estudou mais de 15. O ensino fundamental foi o cur­

so mais elevado que 54% dos brancos, 57% dos negros e 61% dos

pardos freqüentaram. Já para 24% dos brancos, 22% dos negros e

21 % dos pardos, o curso mais elevado que já freqüentaram foi o en­

sino médio. O número de brancos, negros e pardos que concluíram

o ensino superior é desprezível, embora a vantagem seja dos bran­

cos. A paridade entre os três grupos pode ser vista nesta tabela:

Proporção de pessoas que73% 72%

sabem ler e escrever69%

Número médio de anos de estudo 5 5 5

Proporção de pessoas com 4 a 736%

anos de estudo35% 36%

Proporção de pessoas com 11 a 1412%

anos de estudo11% 10%

Proporção de pessoas que têm o ensino

fundamental como curso mais elevado54% 57% 61 %

Proporção de pessoas que têm o ensino24%

médio como curso mais elevado22% 21 %

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicoios. Microdados, CD-ROM.

Page 44: KAMEL, Ali - Não somos racistas

84 NÃO SOMOS RACISTAS

A vida é difícil para brancos, negros e pardos: 45% dos brancos,

45% dos negros e 47% dos pardos começaram a trabalhar entre os

10 e os 14 anos de idade; 25% dos brancos, 25°;{) dos negros e 23%

dos pardos começaram a trabalhar um pouco mais tarde, entre

os 15 e os 17 anos de idade. A maior parte dos brancos, negros e

pardos ou não tem carteira assinada ou trabalha por conta pró­

pria: 36% dos brancos, 39% dos negros e 40% dos pardos não têm

carteira assinada; e 24% dos brancos, 23% dos negros e 27% dos

pardos trabalham por conta própria.

Proporção de pessoas que começam a45% 45% 47%

trabalhar entre 10 e 14 anos de idade

Proporção de pessoas que começam <l25% 25% 23%

trabalhar entre 15 e 17 anos de idade

Proporção de pessoas ocupadas sem36% 39% 40%

carteira de trabalho assinada

Proporção de pessoas ocupadas por24% 23% 27%

conta própria

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Microdados, CD-ROM.

Há muitos outros dados, mas estes são os essenciais.

Esta pesquisa não deixa dúvidas de que não é a cor da pele que

impede as pessoas de chegar à universidade, mas a péssima quali­

dade das escolas que os pobres brasileiros, sejam brancos, negros

ou pardos, podem freqüentar. Se o impedimento não é a cor da

pele, cotas raciais não fazem sentido. Mas tampouco fazem senti­

do cotas sociais, porque não é a condição de pobre que impede os

cidadãos de entrar na universidade, mas o péssimo ensino público

ALHOS E BUGALHOS &S

brasileiro. A única solução é o investimento maciço em educação,

e jamais soluções mágicas como cotas.

Onde quer que tenham sido adotadas, as cotas não beneficiam

os mais necessitados, mas apenas os mais afortunados entre os ne­

cessitados. Elas agravam os conflitos onde eles existem, em vez de

atenuá-los, e fazem surgir disputas mortais entre os potencialmen­

te favorecidos e os não-favorecidos, grupos que antes conviviam

harmoniosamente.

Evidentemente, o exercício que fiz aqui é bastante restrito, por­

que o grupo estudado é pequeno, comparativamente ao conjunto

da população. Mas quando se quer comparar alho com alho e bu­

galho com bugalho, não há alternativa. Infelizmente, o IBGE, até

aqui, não tem feito pesquisas mais amplas que atendam aos requi­

sitos que acredito imprescindíveis para se averiguar se o racismo

no Brasil é não somente estrutural, mas se constitui uma barreira

que impeça a mobilidade de negros.

De todos os dados de que disponho, nenhum aponta nessa di­

reção. Nosso arcabouço jurídico-institucional, definitivamente,

garante igualdade de direito a todos os cidadãos, independente·

mente de cor, religião ou crença política. Nossas leis combatem,

explicitamente, atas de racismo, punindo-os com severidade. E,

mais importante, quando se analisam os dados disponíveis 50bre a

participação dos negros na vida universitária do país, nota-5e com

c1arezaqueelesestãolonge,muitolonge,dedemonstrarumapnrtlzeiaentre brancos e negros. Da maneira como a coisa é dita pelos

defensores da tese de que no Brasil brancos oprimem negros, tem-se

a impressão de que não há negros em nosso sistema de ensino

superior. Mas será que as portas do ensino superior estão mesmo

fechadas para negros?

Uma pesquisa feita pelo Ministério da Educação em 2003 entre

os estudantes de nível superior que se submeteram ao chamado

"provão" mostra resultados surpreendentes: 4,4% dos alLlnos de

universidades federais se declararam negros, sendo que él popula-

Page 45: KAMEL, Ali - Não somos racistas

86 NÃO SOMOS RACISTAS

ção de negros no pais era} naquele ano. de 5}9%. Nas universida­

des estaduais} o número era mais expressivo: os que se declararam

negros foram 5,5%. Os pardos eram} nas federais, 30}3% e} nas

estaduais, 30J 5%. A população brasileira que se declarava parda na

época era de 41,4%.

Existe, claro, uma defasagem, mas dada a péssima qualidade de

ensino a que os negros e pardos têm acesso J por serem pobres, a

participação deles no ensino superior surpreende positivamente.

Onde está a gritante defasagem?

A pesquisa ganha ainda mais importância quando se atenta

para um detalhe: ela foi feita entre os 390 mil alunos} de 26 áreas,

que estavam cursando o último ano de estudos, quando estão

prestes a se formar. Portanto, ela é o retrato da situação de negros

e pardos depois de todos os gargalos.

Logo que assumiu o governo, Lula mudou o "provão". Com o

nome de Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes),

ele deixou de ser feito por todos os estudantes do último ano dos

cursos analisados e passou a ser feito} também obrigatoriamente,

apenas por uma amostra deles (os alunos ingressantes no ensino

superior também passaram a ter de se submeter ao teste). Com

isso} perdeu a característica de ser "censitário". Mesmo assim, os

resultados divulgados com base na prova de 2004 continuam a

surpreender positivamente. Dos formandos em universidades fe­

derais chamados a fazer o Enade} os negros eram 2}8%, e os par­

dos} 25,6%. Entre os iniciantesJ os negros eram 3,3%} e os pardos}

26}6%. Nas estaduais, os negros formandos que fizeram o Enade

eram 2,9910} e os pardos, 24,3%. Já os negros iniciantes eram 3,5%,

e os pardos, 23,7%. A presença de negros e pardos tanto no pri­

meiro ano de estudo como no último está longe de ser a nulidade

que muitos pregam.

Isso só me leva a uma conclusão: se os governos municipais,

estaduais e federal decidirem elevar a educação à condição de

prioridade, investindo na qualidade de nosso ensino básico} nos-

ALHOS E BUGALHOS 87

sas universidades estarão coalhadas de estudantes de todas as to­

nalidades.

Sem a necessidade de cotas raciais que} como mostrarei no capL­

tulo seguinte, jamais apresentaram bom resultado nos paises que

decidiram adotá-las como atalho.

Page 46: KAMEL, Ali - Não somos racistas

AS COTAS NO MUNDO

SE A SITUAÇÃO DO NEGRO É TAL COMO A QUE DESCREVO ATÉ AQUI, CHEGOU

a hora de perguntar: a adoção de cotas raciais para o ingresso de

estudantes negros e pardos nas universidades é um remédio que

se justifica de fato? Quais foram os efeitos que cotas raciais tive­

ram nos países que as adotaram? Entender o que acontece lá fora

é fundamental para que tentemos antever o que pode se dar com

o nosso país. Nesse sentido, um livro é leitura obrigatória: Açao

afinnativa ao redor do mundo, um estudo empírico, de Thomas

Sowell, um dos mais renomados intelectuais americanos, profes­

sor de Stanford, que se dedicou a estudar o assunto por sete anos

consecutivos. O livro é uma pesquisa sobre o efeito das ações afir­

mativas e da adoção de cotas na Índia, na Malásia, no Sri Lanka,

na Nigéria, nos Estados Unidos e em outros países. As conclusões,

calcadas em fatos e números, são demolidoras.

Quando as cotas surgiram na Índia, seus defensores diziam que

elas durariam dez anos. Isso foi em 1949, e até hoje elas estão em

vigor, ampliadas. O mesmo aconteceu em toda parte, em todos

os países do mundo que adotaram a experiência. O motivo é sim­

ples: depois de conceder um benefício assim, que político se dis­

põe a retirá-lo, correndo riscos eleitorais imensos? O Brasil não é

exceção: dez entre dez projetos prevendo a adoção de cotas raciais

dizem que elas serão temporárias. O Brasil também não será uma

Page 47: KAMEL, Ali - Não somos racistas

90 NÃO SOMOS RACISTAS

exceção no futuro: livrar-se das cotas será uma tarefa praticamente

impossível numa democracia de massas como a nossa, em que a

pressão de grupos organizados é decisiva na eleição de um parla­

mentar ou mesmo de um presidente.

O mesmo motivo explica uma segunda característica. Uma vez

adotadas políticas de preferência para um grupo, logo surgem

políticos propondo a adoção de ações similares para outros gru­

pos, sempre em busca de votos. As cotas na Índia, para citar ape­

nas um exemplo, destinavam-se a beneficiar os então chamados

intocáveis, que representavam 16% da população, e membros de

outras poucas tribos fora do sistema de castas (8%). A lei abria,

porém, uma brecha, dizendo que as cotas poderiam também be­

neficiar "outras classes atrasadas". Foi o bastante para que, hoje,

o maior número de cotas beneficie essas "outras classes", que

representam 52% da população, e não apenas os intocáveis. Nor­

malmente, as cotas surgem para reparar, junto aos descendentes,

discriminações odiosas que tolheram o desenvolvimento social

e económico das gerações passadas de certos grupos sociais. Isso,

no entanto, não impediu que, há poucos anos, a Índia entrasse

num acirrado debate sobre a adoção de cotas especiais para eu­

nucos, mesmo sabendo que, por definição, eunucos não geram

descendência.

Esse tipo de irracionalismo é comum quando as cotas são

adotadas: logo, grupos e mais grupos de pressão reivindicam be­

nefícios para si, numa espiral sem fim. Hoje, nos Estados Unidos,

por exemplo, o maior conjunto de cotas se destina às mulhe­

res, que, em nenhuma hipótese, podem ser classificadas como

minoritárias.

Uma vez adotadas, os grupos que ficam de fora das cotas

usam toda sorte de "desonestidade" para que possam se bene­

ficiar delas. É da natureza humana. Quando, nos EUA, cotas

foram adotadas para beneficiar descendentes de índios, houve

um aumento exponencial de indivíduos, muitos deles louros de

AS COTAS NO MUN[)O 91

olhos azuis, dizendo-se membros daquela minoria. O censo de

1960 mostrava que havia cinqüenta mil descendentes de ín­

dios com idade ente 15 e 19 anos. Vinte anos depois, o número

de descendentes de índios com idade entre 35 e 39 anDS era de

mais de oitenta mil, uma impossibilidade biológica: ilQ mínimo

trinta mil cidadãos (se nenhum dos originais tivess€ morrído],

visando um benefício a que não tinham direito, passaram a se

identificar como índios, talvez usando para isso um Jongínguo

e esquecido antepassado. Na China, nos anos 1990, de2 milhões

se redesignaram como membros de minorias, para se beneficiar

dos acessos facilitados a universidades e para burlaI a pwibi­

ção de ter mais de um filho, imposta à etnia majoritária Han.

No Brasil, antes mesmo de cotas serem uma imposiçãG legal em

todo o país, casos semelhantes já tinham ocorrido desde que as

primeiras universidades adotaram políticas de preferência racial.

Logo no primeiro vestibular da Derj, discussões abjetas sobre se

tal candidato era ou não negro passaram a ocorrer, despdtando

os piores sentimentos do ser humano.

Um dos pontos altos do livro de Sowell é que ele pro\i<l, inegUL­

vocamente, que tais políticas não beneficiam seus desiinatários

iniciais, mas apenas os mais afortunados do grupo. Na jndia, 630;ú

dos intocáveis continuam analfabetos. Na Malásia} oo.de cotas

privilegiam os malaios contra seus concidadãOS chinese:s} os e~­

tudantes das famílias malaias que constituem os 17()Jo mais ricos

recebem metade de todas as bolsas. O livro está repleto de exem­

plos, inclusive dos EUA. Em nenhum caso, trata-se de corrupção:

cotas são apenas um dos fatores para se entrar na uni'"ersidade.

Igualmente essenciais são o preparo intelectual e o nÍ'I'"E'l econó­

mico. Quem sabe mais e tem levemente mais dinheirCt e recur­

sos, mesmo pertencendo a uma minoria discriminada, teJá mals

chances do que aqueles que são menos preparados e m~ü pobres.

Entre os mais miseráveis, serão sempre os menos mise~ávE'is que

se beneficiarão das cotas, porque os que vivem na basoe da piJi-

Page 48: KAMEL, Ali - Não somos racistas

92 NÃO SOMOS RACISTAS

mide social mal têm condições de saber que um certo direito lhes

dá benefícios.

A grande tragédia que as políticas de preferências e de cotas

acarretam é a disseminação de conflitos e, no limite, o ódio. O

sentimento de que o mérito não importa esgarça o tecido social.

Na Índia, os registros de atrocidades contra os intocáveis eram de

13 mil nos anos 1980; pularam para mais de vinte mil nos anos

1990 (o número de mortos era quatro vezes maior nos 1990 do

que nos 1980). Na Nigéria, a adoção de políticas de preferência

racial levou a uma guerra civil, provocando o cisma que criou Bia­

fra (mais tarde reincorporada), sinónimo de fome e miséria. Sri

Lanka, quando da independência, era uma nação em que duas

etnias, com língua e religião diferentes, conviviam harmoniosa­

mente. Com a adoção de políticas de preferência étnica, o que se

viu foi uma das mais sangrentas guerras civis. Nos EUA, o número

de conflitos raciais foi crescente a partir da década de 1970, ano de

adoção das cotas.

O pior de tudo é que as cotas não são necessárias. Nos EUA,

os chineses e os japoneses que lá chegaram no início do século

passado eram miseráveis. Por esforço próprio e sem cotas, esses

dois grupos se desenvolveram, educaram-se e, ao longo dos anos,

proporcionalmente, tomaram mais lugares dos brancos america­

nos em universidades de prestígio e em bons postos de trabalho

do que os negros com cotas. Apesar disso, contra eles não há o

ressentimento que há contra os negros, porque a percepção é que

os asiáticos alcançaram isso por mérito, e os negros, não. A per­

cepção, no entanto, é falsa e injusta. Porque os negros americanos

avançaram mais, muito mais, antes da adoção das cotas, do que

depois dela.

Em 1940, os jovens negros americanos entre 2S e 29 anos

tinham, em média, quatro anos de estudo a menos do que os jo­

vens brancos. Em vinte anos, a diferença caiu para dois anos. E,

em 1970, a diferença era de menos de um ano, 12,1 contra 12,7.

AS COTAS NO MUNDO 93

Em 1940, 87% dos negros estavam abaixo da linha da pobreza. Em

1960, este número caiu dramaticamente para 47%, uma que­

da de quarenta pontos. Todos esses avanços foram conseguidos

sem a ajuda de ninguém. A Lei dos Direitos Civis, que garantiu

a igualdade das raças, é de 1964, e as cotas só surgiram depois

de 1970. Nos anos 1960, o número de negros abaixo da linha da

pobreza caiu mais 17 pontos, ficando em 30%. Depois da adoção

das cotas, porém, em toda a década de 1970, esse número caiu

apenas um ponto, ficando em 29%. Negros que conseguiram

sozinhos este estrondoso êxito são vistos hoje pela maior parte

dos brancos como em débito porque teriam alcançado tal feito,

não por mérito, mas devido a cotas. (Aqui, é inevitável que eu

faça um paralelo com o Brasil. Em 1991, 74°;b das crianças negras

estavam nas escolas, contra 869''Ó das brancas; hoje, 100% delas

estão na escola, passo fundamental para que tenham chance de

entrar na universidade. Em vez de radicalizar esse processo, au­

mentando a qualidade do ensino básico, e assim dar chances

iguais para que negros e brancos entrem na universidade, o Bra­

sil entupiu o Congresso de projetas propondo a adoção de cotas

que apenas acrescentarão mais um estigma ao negro brasileiro

como aconteceu nos EUA: o de ingressar na universidade sem

mérito.)

Se as cotas pouco impacto tiveram na ascensão económica dos

negros americanos, quem, então, se beneficiou delas? Os negros

que já tinham conseguido, por esforço próprio, sair da condição

de pobreza. De 1967 a 1992, os 20% mais ricos entre os negros ti­

veram sua renda crescendo a uma taxa igual à dos 20% mais ricos

entre os brancos; mas os 20% mais pobres entre os negros tiveram

uma queda duas vezes maior nos rendimentos do que os 20% mais

pobres entre os brancos.

Na verdade, as cotas foram contraproducentes. Uma lei no Te­

xas permitiu a entrada na universidade de todos os alunos que

estivessem entre os 10% mais aptos de suas escolas. Um estudante

Page 49: KAMEL, Ali - Não somos racistas

94 NÃO SOMOS RACISTAS

da escola"A", mais fraca, poderia estar entre os 10% mais aptos

apenas com uma nota 5, e teria, assim, o ingresso garantido na

universidade. E um aluno da escola "B", muito mais forte, com

nota 8, poderia ficar de fora se os 10% mais aptos da escola tives­

sem notas maiores. O resultado é que passou a ser tentador para

bons alunos se matricular em escolas de ensino ruim, para que o

acesso à universidade estivesse garantido. Isso dá bem a medida

do que pode acontecer aqui com as cotas para alunos da rede pú­

blica. Como alguns estudantes já disseram, vai ser maciça a trans­

ferência de alunos de boas escolas particulares para a rede pública

ou, pelo menos, a dupla matrícula crescerá muito. E quem sairá

perdendo serão os alunos pobres, que terão escolas superlotadas e

com qualidade decrescente.

Há outros aspectos bizarros nos EUA. Estudo de 1988 mostrou

que as notas no SAT (Scholastic Assessment Test, uma espécie de

Enem) de estudantes cotistas em Berkeley, universidade de elite,

eram de 952 pontos, acima da média nacional de 900, mas muito

abaixo das notas dos demais alunos de Berkeley: brancos, com

1.232, e asiáticos, 2.254. Eram alunos negros maravilhosos, que

teriam um futuro brilhante em muitas outras universidades. Mas,

em Berkeley, 70% deles não se formaram. O fracasso não acon­

teceu somente nas escolas de elite. Na Universidade de San José,

menos disputada, também 70% dos cotistas não se formaram. O

trágico é que é altamente provável que os 70% de cotistas reprova­

dos em Berkeley tivessem obtido êxito em San José, onde teriam

entrado sem a necessidade de cotas.

Essa experiência internacional esteve sempre ao alcance de to­

dos. Apesar disso, os defensores de cotas raciais fecharam os olhos

e preferiram ignorar o que a realidade tinha a ensinar. Errar, ig­

norando toda a experiência internacional sobre o assunto, é ca­

minhar conscientemente para o desastre. No futuro, se se repetir

aqui o que aconteceu lá fora, não haverá desculpas.

AS COTAS NO MU"IOO ~5

Os negros brasileiros não precisam de favor. Precisam apenas

de ter acesso a um ensino básico de qualidade, que lhes pennita

disputar de igual para igual com gente de toda cor. Infelizm€nte, o

que vou mostrar no capítulo seguinte é que nossos parlamenta.res

pensam diferente. Muito diferente.

Page 50: KAMEL, Ali - Não somos racistas

ESTATUTO DAS RAÇAS

HA VEZES EM QUE É IMPOssíVEL FUG1R DE UM CLICHÉ: A ENSENSATLZ HUMANA

não tem limites. Nos últimos anos a campanha para desfazer o

nosso ideal de nação miscigenada foi tão grande que deu origem

a iniciativas que dão medo. Uma visita à relação de pIOjetos de

lei em tramitação no Congresso Nacional dá conta de que as ini­

ciativas para racializar as relações sociais brasileiras são inúmeras.

Talvez o símbolo maior dessa insensatez seja o projeto que institui

o Estatuto da Igualdade RaciaL

Quando terminei de ler todo o projeto, a minha sensaçjo era

de que, se aprovado, o estatuto deixará para trás, de uma vez por

todas, o Brasil que conhecemos e criará um outro pab, cindido

racialmente, em que a noção de raça, base de todo racismo, estará

no centro de tudo, quando deveria estar definitivamente enter­

rada. O projeto, cujo embrião pode ser encontrado lá atrJs, no

primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, no gov'erno

FH, teve longa tramitação no Senado, onde foi aprovado, €. ago­

ra, está na Câmara, onde se prevê que a tramitação também seja

longa. Ainda bem. Se eu disser a alguém que se trata de uma lei

sul-africana do tempo do apart/1eíd, e pedir que leia algu:ls de seus

artigos, certamente não haverá nenhum estranhamento.

"O quesito raça/cOI, de acordo com a autoclassificaçãú, e o que­

sito gênero serão obrigatoriamente introduzidos e coletados em

todos os documentos em uso no Sistema Único de Saúd€"J diz o

Page 51: KAMEL, Ali - Não somos racistas

98 NÃO SOMOS RACISTAS

artigo 12, arrolando os documentos: cartões de identificação do

SUS, prontuários médicos, formulários de resultado de exames

laboratoriais, inquéritos epidemiológicos, pesquisas básicas, apli­

cadas e operacionais etc. O artigo 17 determina o mesmo para os

documentos da Seguridade Social, e o 18 estabelece que as cer­

tidões de nascimento contenham também a cor do bebê, o que

não acontece hoje. Da mesma forma, os empregadores públicos

e privados terão de incluir o quesito cor em todos os registras de

seus funcionários, tais como formulários de admissão e demissão

no emprego e acidentes de trabalho.Como conciliar a autodeclaração com as regras acima? O pa­

ciente chega inconsciente ao hospital e morre: quem dirá se ele é

branco, negro ou pardo? O filho nasce e o pai diz que ele é branco:

e se, quando crescer, o filho se olhar no espelho e chegar à conclu­

são de que é negra?Como se vê, definitivamente, os brasileiros seremos definidos

pela "raça", um conceito que a ciência repudia. Será o fim do país

que se orgulhava de sua miscigenação, que sabia que ninguém é

inteiramente branco ou inteiramente negro, que tinha orgulho

de seu largo gradiente de cores. Seremos transformados num país

bicolor, num país não de brasileiros simplesmente, mas de bra­

sileiros negros, de um lado, e brasileiros brancos, do outra. E a

suposição será a de que os dois lados não se entendem.

Os disparates do estatuto são muitos. Contra toda evidência

científica, o projeto parte do pressuposto de que existem doenças

raciais. Assim, dispõe o artigo 14: "O Poder Executivo incentivará

a pesquisa sobre doenças prevalentes na população afro-brasileira,

bem como desenvolverá programas de educação e saúde e campa­

nhas públicas que promovam a sua prevenção e adequado trata­

mento." Ou seja, o estatuto acredita que haja "doenças de negra"

(embora, a despeito de ser um "estatuto da igualdade racial", não

faça menção a "doenças de branco"). Isso é um absurdo, do ponto

de vista da ciência. De fato, há doenças cuja origem é genética,

ESTATUTO DAS RAÇAS 99

mas elas não estão relacionadas à cor do indivíduo, como já mos­

trei no capítulo primeiro. Em sociedades segregadas, como a ame­

ricana ou a sul-africana, em que os grupos populacionais não se

misturam, é provável que haja prevalência de certas doenças em

determinados segmentos. Mas isso nada tem a ver com a cor.

Há de tudo no estatuto: a permissão para que tradicionais

mestres em capoeira dêem aulas em escolas públicas e privadas;

a obrigatoriedade do ensino da história geral da África e do ne­

gro no Brasil para alunos das redes oficial e privada; e a permis­

são para que praticantes das religiões"africanas e afro-indígenas"

ausentem-se do trabalho para realização de obrigações litúrgicas

próprias de suas religiões, "podendo" tais ausências serem com­

pensadas posteriormente. Não fica claro se brancos terão também

direito a dar aulas de capoeira ou a fazer suas obrigações da um­

banda e do candomblé durante o expediente (já que, no Brasil,

são também assíduos freqüentadores de terreiros). Mas o que mais

preocupa no estatuto é a cizânia que pode causar no mercado de

trabalho. Diz o artigo 62: "Os governos federal, estaduais e muni­

cipais ficam autorizados [...] a realizar contratação preferencial de

afro-brasileiros no setor público e a estimular a adoção de medidas

similares pelas empresas privadas." Uma das medidas previstas é a

adoção de uma cota inicial de 20% para o preenchimento de todos

os cargos DAS (vagas que não exigem concurso público); esta cota

será ampliada até que se atinja a correspondência com a "estrutura

da distribuição racial nacional". E de que modo as empresas priva­

das serão estimuladas a contratar preferencialmente negros? En­

tre outras coisas, pela exigência de que empresas fornecedoras de

bens e serviços ao setor público adotem programas de igualdade

racial. Em outras palavras: que contratem preferencialmente ne­

gros. Num país em que ninguém sabe ao certo quem é branco e

quem é negro, a medida é de difícil aplicação. Mas o pior é que ela

poderá ser um estímulo para o surgimento de rancores em grupos

e pessoas que se sintam preteridas, algo que desconhecemos até

Page 52: KAMEL, Ali - Não somos racistas

100 NÃO SO MOS RACISTAS

aqui. Mas que a experiência internacional diz ser a regra, como

demonstra o livro de Thomas Sowell citado no capítulo anterior.

Sim, claro, o estatuto estabelece também a obrigatoriedade de co­

tas raciais para o ingresso de estudantes no ensino superior. E acres­

centa cotas para programas de TV, filmes e anúncios publicitários.

É um outro Brasil que este estatuto quer fundar. O que os brasi­

leiros precisam decidir é se desejam este novo Brasil. Meu palpite

é que, se o tema fosse posto em referendo, com campanhas es­

clarecedoras de ambas as partes, o resultado mostraria que ainda

sonhamos com o ideal de uma nação orgulhosa de sua miscigena­

ção, em que raça e cor não importam.

O que eu tenho cada vez mais claro é que, no Brasil, o maior

preconceito é contra os pobres em geral, não contra indivíduos

dessa ou daquela cor. E é isso o que pretendo discutir a seguir.

II /1

ClASSISMO I O PRECONCEITO CONTRA OS POBRES

A FACE MAIS FEIA DA SOcrEDADE BRASILEIRA, MAS QUE FREQÜE'JTEMENTE SE

manifesta de maneira inconsciente, é o que chamo de "classis­

mo": o preconceito contra os pobres. Estou cada vez mais seguro

de que o racismo decorre essencialmente do "classismo". O negro

que dirige um carro de luxo e é confundido com um motorista,

e, por isso, maltratado, é mais vítima de "classismo" do que de

racismo. Uma vez desfeito o mal-entendido, um tapete vermelho

se estende para a vítima. Em outros países, o negro, mesmo rico,

continuaria a ser discriminado, dirigindo um fusca ou um Merce­

des. Isso não torna o "classismo" menos odioso que o racismo. São

sentimentos igualmente repulsivos, como toda forma de precon­

ceito. É impressionante que o relato que farei a seguir seja muito

parecido com o que mencionei na introdução deste livro, citando

Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, de Fernando Henri­

que Cardoso. O jornalista negro Décio Vital, segundo o relato de

FH, contava em artigo para o jornal O Exemplo que decidira usar

sempre uma sobrecasaca para não parecer pobre, evitando, assim,

com sucesso, o preconceito. O artigo de Vital foi publicado em

1893. O relato a seguir é de 2005. Ele era negro; a senhora do meu

relato se diz branca. Ambos têm um traço em comum: a pobreza.

B. é empregada doméstica. Branca, segundo ela própria e o

consenso brasileiro. O patrão dela, como parte da remuneração,

paga-lhe um excelente plano de saúde. B. é visivelmente pobre:

Page 53: KAMEL, Ali - Não somos racistas

102 NÃO SOMOS RACISTAS

na maneira de vestir, digna e decente, mas com roupas baratas; na

maneira de falar, com um vocabulário restrito e sem seguir a nor­

ma culta; na maneira de agir, sempre muito tímida em ambientes

formais.

Certa vez, B. passou mal e procurou uma clínica de "fundo de

quintal", na definição dela. Quando soube, o patrão estranhou:

"Por que você não procurou os melhores hospitais? Seu plano

cobre." Numa segunda ocasião, B. foi direto ao melhor hospital.

Dirigiu-se ao balcão e disse que não estava se sentindo bem. Com

cara de desprezo, a recepcionista disse que aquele era um hospi­

tal particular. B. respondeu que sabia e mostrou-lhe a carteira do

plano de saúde. A recepcionista, que provavelmente ganhava um

salário menor do que o de B. e morava num bairro semelhante ao

dela, perguntou, sem atinar para a ofensa contida na pergunta:

"Essa carteirinha é sua mesmo?" Depois, mandou que B. esperasse.

E, como estava acostumada nos hospitais públicos, B. ficou espe­

rando por um bom tempo, até se dar conta de que estava sendo

mal atendida. Saiu sem se queixar, e se dirigiu a outro hospital par­

ticular. Com uma ou outra diferença, a cena do primeiro hospital

se repetiu. Cansada de esperar, B. procurou a clínica de "fundo de

quintal" e foi atendida.

O curioso é que B., poucos dias depois, estava furiosa com um

entregador de restaurante que "subiu pela frente" para entregar a

comida. "Hoje em dia, só tem folgado", disse B. Tudo isso me foi

relatado pelo patrão de B. na mesa de um restaurante. E eu mes­

mo o vi destratando um garçom que não entendia bem o que ele

estava pedindo.

É certo que o desprezo contra os pobres é universal, existe em

todas as partes do mundo, e eterno, sempre existiu e, infelizmen­

te, jamais deixará de existir. Mas, entre nós, ele se reveste de carac­

terísticas que são, acentuadamente, mais nossas.

Aqui a pobreza vem acompanhada de baixíssimo nível de edu­

cação formal e informação, o que torna o nosso pobre, em geral,

"CLASSISMO", o PRECONCEITO CONTRA OS POBRES 103

mais submisso, menos consciente de seus direitos. Em vez de B.

"rodar a baiana" nos dois hospitais, ela preferiu se retirar. Em paí­

ses desenvolvidos, embora o "classismo" exista como aqui, os seus

efeitos são menos ostensivos, porque o pobre de lá, com maior

nível de instrução e sabedor dos seus direitos, dificilmente sofre

calado o preconceito. A exceção aqui é o banditismo em larga es­

cala. Ou oito ou oitenta. Por outro lado, o nosso gigantismo po­

pulacional e a nossa enorme desigualdade social provocam dois

fenômenos: a distância entre os que têm algum dinheiro e os po­

bres é enorme, mas os dois contingentes são grandes. Nossa "elite"

é do tamanho de alguns países europeus e sul-americanos, o que

faz com que exista sempre à vista um remediado para destratarum pobre.

Ao lado disso, a nossa miscigenação é uma realidade e derru­

ba por terra o argumento de que somos estruturalmente racistas.

Não podemos ser. Um dado, a miscigenação, desmente o outro,

o racismo. Evidentemente, como sempre me preocupo em dizer, o

racismo existe aqui como em todo lugar, mas não é, nem de longe,

uma marca de nossa identidade nacional. Analisando bem de perto,

é o "classismo" a razão oculta por trás da maior parte de manifes­

tações aparentemente racistas. Como os negros são a maioria entre

os pobres, uma relação automática e inconsciente entre pobreza e

negritude se estabelece, e o preconceituoso destrata o negro.

Prova disso é que grande parte das ocorrências de racismo se

dão com negros que não são pobres. São barrados em hotéis de

luxo, confundidos com motoristas, seguranças, quase sempre na

suposição de que são pobres. Ou alguém imagina que a um bran­

co, visivelmente pobre, seria permitido entrar nos salões sem

problemas? O caso de Flávio Ferreira Santana, o dentista paulista

negro assassinado por cinco policiais em 2004, exemplifica o que

quero dizer.

Se os cinco policiais que o mataram eram também negros, in­

formação que não vi em nenhuma das reportagens sobre o caso,

Page 54: KAMEL, Ali - Não somos racistas

104 NÃO SOMOS RACISTAS

como falar de racismo? O dentista morreu porque foi confundido

com um pobre. E um pobre, saindo de um carro novo, só sendo

bandido, concluíram de forma odiosa os policiais. Mas, e os poli­

ciais, não são eles mesmos pobres? Se o fato de serem negros me

faz dizer que não pode ali ter havido racismo, por que o fato de

serem pobres não me impede de apontar para o "classismo" como

o motivo do crime?

A razão é uma só. O preconceito contra os pobres é tal que um

pobre sempre encontra um mais pobre para descontar o precon­

ceito que ele próprio sofre na pele.

É por tudo isso que tenho uma preocupação e uma esperança.

A preocupação é que as políticas de cotas raciais jamais elimi­

narão as bases de um preconceito que não é racial, mas social. Ao

contrário, as cotas poderão criar no Brasil um racismo que até aqui

não conhecíamos. Entre os pobres, cor não é nem privilégio nem

demérito de ninguém. As cotas farão com que passe a ser, estimu­

lando no Brasil a cisão racial da pobreza. É um risco enorme.

A esperança é que uma política educacional, justa e eficaz, e

uma geração de renda consistente, mais bem distribuída, ao dimi­

nuírem a pobreza, diminuam também o "classismo". Talvez, não

eliminaremos de nossa alma esse sentimento mesquinho. Mas ha­

verá menos gente para sofrê-lo.

O que pretendo analisar a seguir são as estratégias - a meu ver

erradas - que os governos vêm adotando no Brasil para combater

a pobreza.

POBRES E FAMINTOS

SE o PROBLEMA BRASILEIRO É A POBREZA, E NÃO o RACISMO, DIMENSIONÃ-LA

é um pré-requisito básico a qualquer política pública que vise a

erradicá-la, ou, sendo mais realista, amenizá-la. Desgraçadamen­

te, até hoje persiste no Brasil uma confusão conceituai que tem

provocado um mal enorme ao país: confundir fome e pobreza,

dois fenômenos que nem sempre andam juntos (no caso do Bra­

sil, quase nunca). Como nenhum homem de bem pode admitir

que outro passe fome, se um governante confunde o número de

pobres com o número de famintos, fatalmente dedicará esforços

gigantescos para matar a fome de quem não passa fome. Como

o dinheiro no Brasil é escasso, o dinheiro usado com o propósito

errado faltará, como está faltando, na única área que pode tirar

um pobre da pobreza: a educação. Esse é o nó em que nos encon­

tramos. O trágico é que a confusão pode não ser um erro, fruto do

desconhecimento. Mas uma estratégia eleitoral.

Entreatos, filme de João Moreira SaBes sobre os bastidores da

campanha de Lula em 2002, pode dar ao espectador a impressão

de que capta os flagrantes de Lula como se a câmera fosse invisí­

vel. O cineasta já disse que não é isso: como a câmera é ostensiva,

o então candidato mede o que fala, por mais improvisado que

pareça o discurso. É, assim, ainda mais revelador um dos trechos

do filme. Lula conversa sobre o absurdo das estatísticas no Brasil

com Gilberto Carvalho, seu assessor de campanha e, mais tar-

Page 55: KAMEL, Ali - Não somos racistas

106 NÃO SOMOS RACISTAS

de, secretário particular no governo. Lula diz: "Eu lembro que

fui a Paris e falei: 'O Brasil tem 2S milhões de crianças de rua. JI'

Voltando-se para Gilberto, demonstra incredulidade: "Isso é uma

Argentina! Não existe isso!" Ele continua: "Frei Betto um dia foi

na igreja e disse que cinco milhões de pessoas morrem de aborto

por ano. Não é possível, rapaz!" E pergunta: "Quantas pessoas

passam fome nesse país, Gilberto? Eu acho o número de 53 mi­

lhões tão absurdo!" Lula conclui, conformado: "Mas os números

são do IBGE. II

Taí o problema! Os números não são do lBGE: censo e Pnad

não dizem quem passa fome. O que o IBGE registra é a renda

dos brasileiros. Com base nela, pesquisadores tentam inferir quan­

tos brasileiros são famintos. O resultado dependerá do método

utilizado, e há muitos, um para cada gosto. Há quem se fixe ape­

nas num corte de renda, estabelecendo meio salário mínimo de

renda per capita como limite da pobreza, por exemplo. Há pes­

quisadores que se baseiam no número de calorias que consideram

necessárias para manter um indivíduo vivo e o preço da cesta de

alimentos capaz de gerar essas calorias. A necessidade calórica pode

ser de 2.100, segundo a FAO (Food and Agriculture Organization),

2.288, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), ou 1.800,

segundo muitos especialistas. A determinação da cesta não é sim­

ples: ela pode ser regional ou nacional, pode conter os alimentos

mais baratos ou aqueles que a cultura local gosta de consumir.

Isso explica a infinidade de números. Os indigentes seriam 47

milhões, para um pesquisador da FGV (Fundação Getúlio Vargas);

25 milhões, para um pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada); ou 17 milhões, para o Banco Mundial. Os

pobres seriam 58 milhões, segundo o pesquisador do IPEA; 61 mi­

lhões, segundo outra pesquisadora da FGV; ou 34 milhões, segun­

do o Banco Mundial. Com tantas disparidades, de que lado estará a

razão? O governo adotou o critério de renda, R$100, o equivalente

a meio salário mínimo até abril de 2003, os S3 milhões (11,2% das

POBRES E FAMINTOS 107

famílias) a que se referia Lula, número já defasado. Esta passou a

ser a meta ambiciosa do programa para pôr fim à fome.

Como as outras linhas de pobreza, a que o governo escolheu

para trabalhar - R$lOO de renda per capita - é um dado estatísti­

co relevante, que serve para o país ter uma idéia de si e para o go­

verno levar em conta no planejamento de políticas públicas. Mas,

de posse dessa informação, o governo não pode sair por aí atrás de

11,2 milhões de famílias, acreditando que elas sejam exatamente

as únicas famílias pobres no país e, pior, que todas passem fome. É

tomar ao pé da letra o que é apenas uma convenção estatística.

Isso leva a situações absurdas. Por exemplo: na hipótese de que

o país não cresça, mas o salário mínimo seja aumentado, cada vez

que isso acontecer, automaticamente, o número de pobres e de fa­

mintos seria também aumentado. O simples aumento do mínimo

não faz a renda das pessoas aumentar, especialmente entre os mais

pobres. Porque não se aumenta renda por decreto. Se o salário

sobe de R$260 para, por exemplo, R$300, o número de pessoas

que dispõem de menos de meio salário mínimo sobe imediata­

mente. Antes, quem tinha renda per capita entre R$130 e R$150,

para o governo, não era nem pobre, nem faminto. Com o aumen­

to, passa a ser. Mas isso não é fome, é efeito estatístico.

Veja o que acontece exatamente hoje. Num casebre, mora uma

família com renda per capita de R$lOO, apta, portanto, a ser bene­

ficiada pelo Bolsa Família. No casebre ao lado, a renda per capita é

de R$1l0. Ou R$140. Ou até R$150, não importa. Apesar de mo­

rarem no mesmo bairro e terem as mesmas dificuldades, por dife­

renças irrisórias na renda, esses vizinhos ficarão de fora do Bolsa

Família. Para se ter uma idéia, se cerca de um terço dos brasileiros

estão abaixo da linha da pobreza por ter renda per capita inferior

a meio salário mínimo, dois terços têm renda per capita de apenas

um mínimo: entre um extremo e outro, uma multidão com renda

variando de R$130 a R$260. Se o governo atingisse amanhã a meta

de beneficiar 11,2 milhões de famílias que ganham até meiD salá-

Page 56: KAMEL, Ali - Não somos racistas

108 NÃO SOMOS RACISTAS

rio mínimo de renda per capita, estaria deixando de fora milhões

que ganham apenas poucos reais a mais. Diria de boca cheia que

matou a fome de todos os que passavam fome. E estaria mentindo

duplamente: não matou a fome porque fome não existia naquelas

proporções; e deixou de fora uma multidão com perfil socioeconô­

mico muito parecido com o dos beneficiados, mas que ganhavam

apenas alguns pouquíssimos reais acima da linha da pobreza.

Usar a linha da pobreza como norte para achar famintos é um

erro. Pelos motivos apontados acima e por mais este: o pobre pode

ter uma renda monetária que o coloca abaixo da linha da pobreza,

mas, ao mesmo tempo, ter um roçado, umas galinhas, um por­

co, uma horta que lhe fornecem alimentos necessários para não

passar fome. O IBGE, essa instituição de altíssima qualidade que

presta inestimáveis serviços ao país, concluiu em 2004 a Pesquisa

de Orçamentos Familiares (POF). Trata-se de um trabalho maravi­

lhoso. Os pesquisadores ficaram em média nove dias na casa das

famílias, anotando tudo o que entrava como renda e tudo o que

era consumido. Renda e despesa, monetárias ou não: a mandio­

ca plantada no quintal era computada antes de ser comida como

renda não-monetária e, depois, como despesa não-monetária. Os

resultados encontrados foram muito positivos. Como o que mos­

tra o consumo per capita de alimentos entre as famílias com renda

total de até R$400, aquelas que seriam o público-alvo do Bolsa Fa­

mília, considerando que a família média seja composta de quatro

indivíduos. Estão relacionados apenas 65% dos alimentos consu­

midos. Fazendo-se a conversão calórica deles, fica-se sabendo que

eles proporcionam às famílias 1.200 calorias/dia. Considerando

que ficaram de fora os outros 35% dos alimentos e que as famí­

lias gastam mais 12% do seu orçamento se alimentando fora ào

domicílio, não é um disparate supor que tais famílias tenham um

consumo diário de calorias próximo de 2.100, o ideal recomenda­

do pela FAO (especialistas dizem que o mínimo necessário para se

manter vivo são 1.500 calorias).

POBRES E FAMINTOS 109

Tais suposições foram confirmadas pela segunda parte da POF,

divulgada no fim de 2004. Foi a primeira pesquisa que mediu

realmente quantos famintos o país tem. Financiado pelo governo

Lula, o IBGE mediu peso e altura de uma parcela estatisticamente

representativa de todos os brasileiros, mostrando a quantidade de

pessoas emagrecidas, a única medida que mostra se um indivíduo

sofre ou não de fome crónica. A OMS considera que uma popu­

lação que tenha entre 3% e S% de indivíduos emagrecidos não

sofre o fenômeno da fome (essa seria a porcentagem de indivíduosgeneticamente magros).

Os resultados não poderiam ter sido mais animadores: o índice

de pessoas abaixo do peso é de 4%, número menor que os S%, con­

siderados normais pela OMS. No início dos anos 1970, homens e

mulheres com déficit de peso eram o dobro do que são hoje. Hoje,

nosso índice é muito melhor do que o do México, onde há 9% de

indivíduos emagrecidos. E muito abaixo dos índices encontrados

em países onde há comprovadamente fome endêmica, como Haiti

(20%), Etiópia (40%) e Índia (50%). A pesquisa mostrou que, ao

contrário do que se supunha, a obesidade, em todas as faixas de

renda, é um problema mais grave do que o da fome. Esta hoje pode

ser encontrada apenas em regiões da zona rural do Nordeste e em

áreas isoladas, como o Vale do ]equitinhonha. Atinge a milhares

de pessoas, mas nunca a milhões. Matar a fome dessas pessoas é

uma tarefa que o país pode enfrentar com método, sem despender

a fortuna que despende hoje em programas assistencialistas.

A reação do governo, porém, foi a mais negativa possível. Em

vez de comemorar, criticou o quanto pôde a pesquisa do IBGE e

proclamou que manteria sem alterações as metas ambiciosas do

seu programa Bolsa Família. Chegaram a criar um esdrúxulo e

inexistente conceito de ({fome gorda", segundo o qual os pobres

estariam acima do peso por consumirem muito açúcar, gordura e

farinha. Ou não leram a pesquisa ou mentiram deliberadamente.Vejam:

Page 57: KAMEL, Ali - Não somos racistas

110 NÃO SOMOS RACISTAS

1) Os de menor renda per capita (1/4 do salário mínimo) têm

uma dieta equilibrada. Têm à disposição as proporções certas de

carboidratos, proteínas e gorduras. A proporção de proteínas ­

12% - é considerada ótima, com a vantagem de que 45% delas

vêm de origem animal.

2) Em todas as tabelas, fica provado que a participação de fa­

rinhas na dieta dos mais pobres é normalíssima, cerca de 7% de

todos os quilos de alimentos adquiridos. A farinha de trigo re­

presenta apenas 1% de todas as calorias disponíveis. Mesmo que

os pobres se entupissem de farinha, não engordariam. Porque as

farinhas que comem têm baixo valor energético, ao contrário do

que imaginam os leigos.

3) A participação do açúcar é alta, como em todas as faixas

de renda, mas é melhor entre os mais pobres do que entre os de

maior renda per capita. Os mais pobres tem 69% da dieta vindos

de carboidratos (o normal é um mínimo de 55% e um máximo de

75% segundo a OMS). Treze por cento desses carboidratos vêm

do açúcar. Os de renda mais alta têm apenas 52% da dieta vindos

de carboidratos (abaixo do mínimo de 55% recomendados). 11%

deles vêm do açúcar. Portanto, o açúcar, entre os mais pobres, re­

presenta 13 pontos percentuais em 69 (56% dos carboidratos, por­

tanto, não são açúcar). E, entre os de maior renda, representa 11

pontos percentuais de 52 (41% não são açúcar). Os de renda mais

alta, portanto, proporcionalmente, têm mais açúcar na dieta.

4) A dieta dos pobres tem um nível adequado de gorduras, 19%

(o mínimo recomendado é 15%). Entre os de maior renda, a gor­

dura representa 34%, quatro pontos acima do recomendado.

5) Insistiram muito no dado de que, segundo a mesma pesqui­

sa, 44% da população, cerca de 77 milhões de brasileiros, "consu­

miriam" menos de 1.900 calorias, o que é menos do que a FAO

recomenda. Pura mentira. O lBGE diz expressamente que não

mediu as calorias "consumidas", mas apenas as calorias "dispo­

níveis" em cada domicílio. Simplesmente porque boa parcela do

POBRES E FAMINTOS 111

orçamento do brasileiro é gasto COm alimentação fora de casa:

24%, em média, 12% entre os mais pobres e 37% na faixa de

maior rendimento. Essas calorias não foram medidas. Como tam­

bém não foram medidas as calorias provenientes de alimentação

"não adquirida", Como merenda escolar e alimentação fornecida

no local de trabalho. Se, numa casa, duas crianças estão na escola

e lá almoçam, a família adquirirá uma quantidade menor de ali­

mentos. A disponibilidade calórica no domicílio será, portanto,

menor do que o recomendado, sem que isso signifique que as

calorias ingeridas estejam abaixo do patamar recomendado. Se es­

tivessem, a pessoa emagreceria, e isso não acontece para a imensatotalidade dos brasileiros.

Não há dúvidas de que o problema da fome não é mais o que

era. Isso não quer dizer que os gastos com o social tenham de di­

minuir, mas eles devem ser realocados. Insistir em gastar mais R$9

bilhões ao ano, todos os anos, Com o Bolsa Família, é mais do que

apenas um desperdício, é um erro. Gaste-se o necessário, e o res­

tante poderia ser gasto com educação, investimento que ajudaria a

tirar milhões da pobreza, esta sim a grande chaga nacional.

O governo, no entanto, insiste no erro. E cria, dia após dia,

justificativas para persistir no erro. Tão logo tomou conhecimento

dos primeiros resultados da Pesquisa de Orçamento Familiar tra­

tou de encomendar ao lBGE uma outra pesquisa para demo~strarque, se há poucos magros, há muitos famintos em potencial. O

problema é que as perguntas da pesquisa foram feitas de tal modoque os resultados eram mais do que previsíveis.

"Nos últimos três meses, os moradores deste domicíllo come­

ram apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiroacabou?"

Certamente, o leitor terá tido dificuldade para entender per­

gunta tão mal formulada. Qualquer um teria. Mas ela fez parte do

suplemento sobre segurança alimentar da Pnad-2004, do lBGE.

A pesquisa pretendeu avaliar "o acesso à alimentação de qualida-

Page 58: KAMEL, Ali - Não somos racistas

112 NÃO SOMOS RACISTAS

de, em quantidade e regularidade adequadas a um padrão de vida

satisfatório". Os pesquisadores foram a campo entre setembro e

dezembro, e o custo do suplemento, R$2 milhões, foi pago pelo

Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Os resultados, com­

pletamente previsíveis, apresentaram sempre um falso positivo.

Para provar isso, vou reproduzir aqui algumas perguntas da pes­

quisa e imaginar possíveis respostas:

"Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram

a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem

comprar ou receber mais comida?" "Sim", diria o hipotético en­

trevistado, pensando nas duas caixas de biscoitos finos que a filha

come toda semana e que ele teme não ter mais dinheiro para com­

prar na mesma quantidade."Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio fica-

d / I . d )"ram sem dinheiro para ter uma alimentação sau ave e vana a.

"Sim", diria o entrevistado, acreditando que a dieta alternada de

carne ou ave ou peixe, com feijão, arroz e salada, que a sua família

come todos os dias, por ser repetitiva, é pouco saudável, quando,

na verdade, é a recomendada pelos nutricionistas.

"Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou mais de

idade diminuiu, alguma vez, a quantidade de alimentos nas refei­

ções porque não havia dinheiro para comprar comida?" "Sim", di­

ria o nosso personagem, que, antes, comia uma verdadeira "mon­

tanha" e ainda repetia, e, em função de restrições orçamentárias,

passou a comer apenas a "montanha", sem repeti-la. .

"Nos últimos três meses, algum morador de 18 anos ou maIS

de idade, alguma vez, sentiu fome mas não comeu porque não

havia dinheiro para comprar comida?" "Sim" seria a resposta de

alguém que, no fim da tarde, deixasse de comer um sanduíche no

McDonald's, porque o dinheiro está curto, sendo obrigado a matar

a fome no jantar, em casa.Das 36 perguntas, apenas três são formuladas de maneira clara.

Em apenas uma dessas três, o manual técnico do entrevistador

POBRES E FAMINTOS 113

afirma que não se deve levar em conta óleo, manteiga, sal, açúcar

etc. Em todas as outras, nada instrui o entrevistador sobre como

esclarecer previamente o entrevistado para evitar as distorçõesapontadas acima.

O IBGE, cuja excelência é inquestionável, e os técnicos do MDS

fizeram, no entanto, todo o dever de casa. Antes de aplicar a pes­

quisa, avaliaram o questionário com especialistas e fizeram grupos

de discussão compostos pelo público-alvo para testar o entendi­

mento de algumas palavras e conceitos ("alimentação saudável",

"alimento nutritivo", "dinheiro suficiente", "fome"). Fizeram

as modificações necessárias e, depois, aplicaram o questionário,

como teste, em quatro cidades. O resultado, segundo o IEGE, foi

positivo: a insegurança alimentar mais severa foi constatada entre

os de mais baixa renda. O questionário foi, assim, "validado" para

aplicação nacional. Como de todo esse trabalho técnico resulta­

ram perguntas tão mal formuladas é algo que me intriga.

Contudo, mesmo se a redação fosse perfeita, a pesquisa conti­

nuaria a ter pouco valor. O problema é da própria metodologia,

adotada em muitos países. O questionário brasileiro, por exemplo,

foi inspirado no americano, que vem sendo aplicado desde 1995.

Embora nem de longe apresente os vícios de redação do seu con­

gênere brasileiro, o americano gera o mesmo equívoco. Embora o

órgão pesquisador advirta que nos EUA não há a mesma fome do

"Terceiro Mundo", sua crença é a de que o país sofra insegurança

alimentar. Difícil conciliar essa crença com a constatação de que

mesmo nas regiões mais pobres das mais pobres cidades america­

nas é impossível deixar de achar pessoas gordas.

O maior programa americano de combate à fome é o Cartão

Alimentação (Food Stamp Program), criado em 1939 e que passou

por muitas evoluções até se tornar permanente em 1964. Quem

imagina que o Fome Zero ou o Bolsa Família sejam inéditos está,

portanto, enganado. O programa distribui cartões magnéticos (an­

tes eram cupons), utilizados para adquirir comida em lojas cre-

Page 59: KAMEL, Ali - Não somos racistas

114 NÃO SOMOS RACISTAS

denciadas. Todos abaixo da linha da pobreza têm direito a receber

o benefício. São 21,3 milhões de beneficiários, que recebem, em

média, US$80 per capita (o beneficio máximo para famílias de três

pessoas é de US$393). O cartão alimentação é igual ao Bolsa Famí­

lia, com duas diferenças: aqui, o beneficiário não precisa provar

nada e, com o dinheiro, pode comprar o que quiser. O Cartão Ali­

mentação americano é apenas um dos 15 programas de distribui­

ção de alimentos nos EUA, ao custo de US$41,6 bilhões ao ano.

Apesar disso, a última pesquisa feita lá indica que 36,3 milhões

de americanos, incluindo 13,3 milhões de crianças, vivem em la­

res com insegurança alimentar. Destes, 6,6 milhões de adultos e

três milhões de crianças vivem em lares onde pelo menos uma

pessoa passou fome propriamente dita.

Se nem na nação mais próspera do planeta, com os seus pro­

gramas assistenciais multimilionários, a insegurança alimentar foi

resolvida, o problema não é do país, mas do conceito de insegu­

rança alimentar. Que os Estados Unidos queiram gastar bilhões de

dólares com programas assim é um problema deles. Eles podem.

Mas construir aqui um megaprograma social para matar a fome

de quem não tem fome é um erro que não devíamos cometer.

Ainda mais porque do jeito que os programas assistencialistas es­

tão desenhados em nosso país] sem mecanismos de controle, o

dinheiro sequer tem ido para os mais pobres entre os pobres. É isso

o que vou mostrar no capítulo a seguir.

o DINHEIRO QUE NÃO VAI PARAOS POBRES

NUM'" CONVERS" DE P. OUCOS MINUTOS NO FINAL DE 200

me disse que <Tostaria d 5, o PRLSIDENTE LULAb e contrapor argum t .

cas ao Bolsa Família "T t en os as minhas críti-_ . ra a-se de um pro

nao foi desenhado para d grama emergenciat eleurar para sempre" I'

acrescentando que ta b' ' exp lCOU o presidentem em ele queria d' '

beneficiários mas ape' ver re uZldo o número de, nas a medida que I

condições precárias "'f '" nenos gen te esteja em• IV as e megavel q .

mental para melh ' ue aquele dInheiro é funda-orar a VIda daquelas pess "

como exemplo a sua pró' ". oas, emendou, dandopna expenenCla d '

destino em São Paul e menmo reLrante nor-a, quando uma moed d " .

fundamental para a sob ". a e CInCO tostões]' erareVlvenCla da famíll'a

Eu lh .e respondi que nada t' hm a contra o pcontra a abrangência di' _. rograma em si, mas

e e. nao eXIstem 11 2 .passando fome no país A ' mIlhões d€ famílias

. resposta do pr'd 'tindo mais ou menos o qu " d' eSI ente fOI objebva, repe-

e Ja lssera no film d J -que citei no capítulo ante' . /( _ e e oao MoreiraSaIles,

nor. Nao posso d' ,IBGE. Se os necessitados fore lscutu os números do

F' . m menos, tanto melhor"01 aSSIm que, em 2003 I ., no ançamento d B 1

anunciou como meta at d ' o o sa Família, Lulaen er as famílias que

2001 (única então d' . ' segundo a Pnad de. ISpOlllvel), tinham rend f '.Igualou inferior a R$IOO At' d a amIllar per capita

. e ezembro de 2004tribuiu o Bolsa FamT ' o governo dis-

. I la para 6,5 milhões d f "aSSIm, ainda havia, em 2004 10 . _ e amlhas, E, mesmo

, ,5 mIlhoes de famílias com renda

Page 60: KAMEL, Ali - Não somos racistas

116 NÃO SOMOS RACISTAS

familiar per capita igualou inferior a R$lOO, considerando os ren­

dimentos após a concessão do benefício. Ou seja, mesmo tendo

distribuído esse caminhão de dinheiro, o estoque de pobres só foi

reduzido em setecentas mil famílias. Por si só, isso é um indício

forte de falta de foco: o dinheiro pode estar indo para quem tem

renda per capita superior a R$100. Ou seja, além de ir para quem

não tem fome, o dinheiro está beneficiando quem, na definição

do próprio governo, não é sequer pobre.

Falo em indício porque hoje é impossível saber com exatidão

para quem está indo o dinheiro do Bolsa Família. Para que uma fa­

mília se candidate ao benefício, é preciso que ela conste do Cadas­

tro Único, criado em 2001 com o objetivo de identificar todas as

famílias brasileiras abaixo da linha de pobreza. Mas quem faz esse

cadastro? As prefeituras. De que modo? Como bem entendem. As

pessoas preenchem um formulário e declaram a renda da família,

sem que precisem apresentar comprovação (isso está previsto em

lei). Se a família tem renda per capita igualou inferior a R$100, ela

está apta a receber o benefício. O governo vem trabalhando jun­

to às prefeituras para melhorar a qualidade do cadastro, mas, até

aqui, tudo continua como antes. Hoje, nada pode assegurar que as

famílias beneficiárias são de fato as mais pobres.

Para agravar tudo isso, não há qualquer instrumento estatís­

tico oficial que possa mostrar ao governo se o Bolsa Família está

atingindo o alvo certo. O capítulo sobre programas de transfe­

rência de renda da Pnad 2004, divulgado em 2006, tem muitas

limitações, pois nada foi dito sobre nenhum programa isolada­

mente, tampoucO sobre quanto da renda de cada domicílio vem

de que programas governamentais. O IBGE alega, com razão, que

quis apenas fazer um panorama geral, traçando o perfil daqueles

que recebem algum tipo de transferência de renda e daqueles que

nada recebem. Alega também que é apenas um coletar de infor­

mações e que não pode se transformar num fiscal do governo, sob

pena de perder a confiança dos entrevistados e, com isso, a qua-

o DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 117

lidade da informação: se o entrevistado antevir que o que disser

sobre os bens que possui e sobre a composição de sua renda pode

se voltar contra ele na forma de suspensão de benefícios, sua ten­

dência será sonegar informações ou até mesmo mentir. A tarefa

de fiscalizar caberia mesmo ao governo, que deveria sair a campo

verificando se os beneficiários fazem mesmo parte ou não do pú­

blico-alvo. Infelizmente, o governo não faz isso.

Tenho lá minhas dúvidas sobre se o temor do IBGE já não é

uma realidade em larga medida. Duvido que uma família que

se beneficia irregularmente de algum programa dê informações

100% confiáveis, mesmo a um órgão como o IBGE. De qual­

quer modo, como não poderia deixar de ser, a pesquisa trouxe

alguma luz ao debate sobre focalização. Só com o Bolsa Família

e com a aposentadoria especial a idosos e deficientes pobres, o

governo planeja gastar esse ano R$19 bilhões, mas, apesar desse

caminhão de dinheiro, apenas 50,3% dos domicílios com renda

per capita de até um quarto do salário mínimo, os mais miserá·

veis do país portanto, beneficiam-se de algum tipo de programa

de transferência de renda. Todo o resto está a ver navios. A boa

notícia é que 91% dos beneficiários moram em domicílios com

renda per capita de até um salário mínimo, o que faz deles cer·

tamente pobres. Mas a pergunta que cabe é esta: é eficaz um

programa que, antes de atender a todos os miseráveis, beneficie

famílias pobres, mas não as mais pobres? Isso denota falta de

foco e de controle.

O IBGE não se referiu na brochura que divulgou a nenhum pro­

grama específico, mas tornou públicos os dados sobre cada um de­

les. O problema é que o instituto não aconselha que cada progra­

ma seja tratado isoladamente: como o Bolsa Família é a junção de

outros quatro programas (Bolsa Escola, Cartão Alimentação, Vale­

Gás e Bolsa Alimentação), e como, até o momento da divulgação

da pesquisa, eles ainda não tinham sido unificados, os entrevista­

dos podem ter se confundido na hora em que prestaram as infor-

Page 61: KAMEL, Ali - Não somos racistas

118 NÃO SOMOS RACISTAS

mações: havia usuários recebendo o novo Bolsa Família e usuários

recebendo cada um daqueles quatro programas. Uma pena.

Há atalhos, porém, para se verificar a falta de foco no Bolsa Famí­

lia. O pesquisador da Pnad, ao registrar a renda do domicílio, estava

orientado a incluir o dinheiro do assistencialismo governamental

numa rubrica chamada "outros rendimentos", que inclui também

dinheiro vindo de aluguel, recebimento de juros e dividendos. Uma

pequena salada. Como, porém, pobre, por definição, não recebe di­

nheiro de aluguel, nem de juros, nem de dividendos, alguns pes­

quisadores têm dito que é fácil ver nesta rubrica a presença do Bolsa

Família: se ela cresceu entre os mais pobres, o dinheiro só pode ter

vindo de programas de transferência de renda. E, de fato, a Pnad

mostra que, para as faixas de rendimento mais baixas, houve um

acentuado crescimento na participação da rubrica "outros rendi­

mentos" na renda total da família: para quem tem renda per capita

igualou inferior a R$lOO, em 2002, essa participação era de 3,7%;

em 2003, subiu para S%; e, em 2004, pulou para 10,2%. Como a

verba aplicada no Bolsa Família cresceu de R$3,6 bilhões, em 2003,

para R$6,S bilhões, em 2004, este aumento na participação de "ou­

tros rendimentos" na renda total das famílias é um indício de que o

programa estaria atingindo o público certo.

Uma análise mais atenta dos números mostra, porém, que essa

não é a única realidade: o vazamento de recursos é grande.

Como todo dinheiro oriundo de programa social deve ser regis­

trado na Pnad na rubrica "outros rendimentos", uma maneira de

se verificar a falta de foco no Bolsa Família pode ser obtida apli­

cando-se o seguinte método:

1) Primeiro, deve-se desconsiderar o valor registrado nessa ru­

brica em todas as planilhas de beneficiários de programas sociais;

assim, obtém-se a renda do beneficiário antes do recebimento do

benefício;

2) Sem o dinheiro do benefício, dividem-se os declarantes to­

mando como ponto de corte uma renda per capita de até R$lOO,

o DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 11~

que é a renda que o público-alvo deve ter, segundo a lei; assim, sa­

beremos quantos beneficiários do Bolsa Família (e programas que

o compõem) estão na faixa de renda adequada.

O resultado é desanimador. Considerando todos os domicílios

com renda per capita de até R$lOO, 48,7% recebem o Bolsa Família

e S1,3% nada recebem. Este último número é o tamanho da exclu­

são: pessoas a quem o programa deveria estar beneficiando e não

está. Outra maneira de ver as coisas: considerando-se os domicí­

lios que declararam rendimentos, dos que recebem o Bolsa Famí­

lia, 62,4% estão na faixa de rendimento correta e 37,6% têm renda

per capita superior aos R$lOO. Este último número revela a falta de

foco: pessoas que recebem o benefício sem ter o direito para tal.

Há quem diga que não há um problema. O Brasil é tão pobre

que se alguém jogar dinheiro para o alto quem o pegará no chão

pode não ser o mais pobre, mas certamente será um pobre. Eu

não penso assim. O Brasil tem leis e elas devem ser respeita­

das. Não é justo que os mais pobres fiquem sem os recursos e

que os menos pobres sejam beneficiados. Há que se ter eficiên­

cia. Do contrário, grandes somas de recursos estarão indo para

quem não precisa, enquanto falta dinheiro para educação, que

emancipa os pobres, e para investimentos em infra-estrutura,

que prepara o país para o crescimento económico e a geração

de empregos.

O Bolsa Família não é o único caso, nem o governo Lula é o

único a errar.

Em 1993, o Congresso aprovou a regulamentação da Lei Or­

gânica de Assistência Social (Loas), criada pela Constituição de

1988. Por ela, idosos de 67 anos ou mais e deficientes físicos

incapacitados para a vida independente e para o trabalho têm

direito a uma aposentadoria de um salário mínimo, desde que

tenham renda familiar per capita inferior a um quarto de salário

mínimo. A partir de outubro de 2003, a idade mínima caiu para

6S anos. Ao idoso e ao deficiente, basta declarar o rendimento,

Page 62: KAMEL, Ali - Não somos racistas

120 NÃO SOMOS RACISTAS

não precisando comprová-lo, um direito que a lei lhes reconhe­

ce. De 1996, quando o benefício começou a ser pago, até 2004,

933 mil benefícios foram concedidos a idosos e pouco mais de

um milhão a deficientes.

Apesar das recomendações em contrário do IBGE, creio que a

pesquisa se presta como uma luva ao se analisar este programa.

A Loas está consolidada e implantada desde 1996, não se encon­

trando numa etapa de transição. como o Bolsa Família. Para se

verificar se os beneficiários estão dentro do público-alvo, pode­

se utilizar o mesmo método explicado anteriormente, apenas to­

mando como ponto de corte a faixa de renda prevista em lei para

os beneficiários: um quarto do salário mínimo. Foi o exercício que

fiz, e o resultado que mostrarei a seguir novamente é muito ruim:

a falta de foco é enorme.

A primeira coisa que se nota é uma grande subnotificação. En­

quanto nos registros do governo cerca de dois milhões de brasi­

leiros recebiam o benefício em 2004, o IBGE revelou 858.508 be­

neficiários em 726.333 domicílios (ou seja, em alguns casos, há

mais de um beneficiário por domicílio, o que a lei permite). Há

duas hipóteses: muitos podem ter omitido o benefício por sabe­

rem que o recebem irregularmente e muitos podem apenas tê-lo

confundido com uma aposentadoria comum do INSS. De qual­

quer forma, o volume dos que declaram o benefício já permite

uma boa análise. Destes, apenas 39,6% moram em domicílios

que, sem o benefício, têm uma renda per capita de até um quarto

do salário mínimo; 60,4% dos beneficiários têm renda superior a

esse limite. Considerando-se que o governo prevê gastar em 2006

R$ll bilhões com esse programa, trata-se de um desvio e tanto.

Isso pode ser confirmado pela análise do perfil socioeconômico

dos beneficiários e dos que nada recebem mesmo estando na faixa

de renda prevista (um quarto do salário mínimo). As discrepâncias

são enormes. O perfil dos que têm renda domiciliar per capita de

até um quarto do salário mínimo e não recebem nenhum benefí-

O DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 121

cio é o seguinte: 58,6% têm geladeira; 5%, freezer; 5,9%, máquina

de lavar; 70,9%, rádio; 70,6%, TV; 0,9%, microcomputador; 62,7%

têm acesso à água tratada; 37,2%, esgoto sanitário; 62,3% dispõem

de coleta de lixo; 81, 1% têm luz elétrica; e 25,1% têm telefone. Jáo perfil dos que recebem o Loas é melhor em todos os itens: 78%

têm geladeira; 8%, freezer; 11%, máquina de lavar; 81%, rádio;

83%, TV; 3%, microcomputador; 76% têm acesso à água tratada;

51%, esgoto sanitário; 76% dispõem de coleta de lixo; 95% têm

luz elétrica; e 51%, telefone. Vejam a tabela a seguir:

PERFIL SOCIOECONÔMICO DOS DOMiCíLIOS QUE RECEBEM O LOAS E

DAQUELES QUE, FAZENDO PARTE DO PÚBLICO-ALVO, NADA RECEBEM.

BRASIL - 2004

Geladeira 58,6% 78,0%

Freezer 5,0% 8,0%

Máquina de lavar 5,9% 11,0%

Rádio 70,9% 81,0%

Televisão 70,6% 83,0%

Microcomputador 0,9% 3,0%

Água de rede geral 62,7% 76,0%

Esgoto sanitário 37,2% 51,0%

Coleta de lixo 62,3% 76,0%

Iluminação elétrica 81,1% 95,0%

Telefone 25,1% 51 ,O%;

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicnios, 2004. Microdados, CD-ROM.

Page 63: KAMEL, Ali - Não somos racistas

122 NÃO SOMOS RACISTAS

Se, de fato, apenas domicílios com renda per capita de até um

quarto do salário mínimo recebessem o benefício, esses resultados

poderiam indicar apenas que o impacto do programa é grande na

melhoria da vida das pessoas: um salário mínimo a mais ajudaria

o grupo que recebe a ter mais bens e serviços do que o que não

recebe. Mas, como mostrei acima, não é isso o que acontece, já

que 60,4% dos beneficiários têm renda superior à exigida. A maior

parte dos que recebem tem um perfil melhor porque já tinha ren­

da maior, mesmo antes de receber o benefício do governo.

Há também outros caminhos que tomam possível aferir a falta

de foco. Nos últimos dez anos, a população de idosos na faixa de

renda prevista pela lei tem sofrido apenas pequenas alterações,

apesar da concessão dos benefícios, um indicativo de que o di­

nheiro pode estar indo para idosos de outras faixas de renda. De

2001 para 2002, foram concedidas 115.550 aposentadorias pela

Loas, mas o número de idosos com 67 anos ou mais com renda

per capita de até um quarto do salário mínimo sofreu uma redução

de apenas 22.078; entre 2002 e 2003, mais 80.278 aposentadorias

foram concedidas, mas o número de idosos pobres aumentou em

11.831; e de 2003 para 2004, embora o governo tenha concedido

mais 268.289 aposentadorias, o número de idosos pobres se re­

duziu em apenas 31.585. De 2004 para 2005, foram concedidas

mais 143.252 aposentadorias, mas o efeito delas no público-alvo

só poderá ser medido quando sair a próxima Pnad.

Mesmo considerando que todo ano mais pessoas chegam aos

67 anos, a Pnad revela que o número dos que chegam à idade limi­

te não é nem de longe suficiente para explicar as discrepâncias. O

mesmo acontece com o número daqueles idosos que, mesmo re­

cebendo a aposentadoria, continuam com renda per capita baixa.

Ou seja, não é que o número de idosos na faixa de renda de até um

quarto do salário mínimo se mantenha estável porque eles são tão

miseráveis que mesmo recebendo a aposentadoria não conseguem

mudar de faixa: a quantidade dos que estão nessa situação é mui-

O DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 123

to pequena. Os indícios apontam, portanto, para um vazamento

grande. Embora a Pnad não permita o mesmo exercício com os

deficientes físicos, o quadro deve ser parecido. O governo diz que,

de dois em dois anos, as famílias beneficiadas são visitadas em,convênio com as prefeituras, para que se confirme se estão dentro

do público-alvo (algo entre duzentas mil e trezentas mil famílias

todos os anos). Até aqui, um milhão de beneficiários foram visita­

dos. Entre 5% e 7% dos benefícios foram cancelados, um número

muito pequeno, diante do que acabo de demonstrar.

Há outro problema grave. Segundo a Pnad, havia, em 2004, 3,7

milhões de famílias urbanas em que um idoso de 65 anos ou mais

recebia uma aposentadoria de um salário mínimo (excluí as áreas

rurais para não considerar aqueles que recebem a aposentadoria

rural, um benefício diferente daquele que estamos analisando).

Todos recebem o benefício porque contribuíram ao longo da vida

ao INSS ou porque trabalharam como funcionários públicos. A

renda obtida pela aposentadoria se mostra importante: sem ela,

1,4 milhão de famílias, 38,4% do total, passaria a ter uma renda

per capita de meio salário mínimo, o que as deixaria abaixo da

linha de pobreza adotada por muitos pesquisadores. Esses mes­

mos números nos colocam diante da sinuca: do jeito que estão

desenhados, os benefícios concedidos pela Loas trazem embutidos

em si uma lógica que os perpetua. Hoje, 933 mil idosos consegui­

ram uma aposentadoria sem contribuir e 3,7 milhões porque ou

contribuíram ou trabalharam tempo suficiente no serviço público.

A pergunta que se faz é: que incentivo para pagar o INSS tem o

cidadão que hoje recebe um ou dois salários mínimos se ele sabe

que, na velhice, quando as despesas são menores, terá assegura­

do, desde já, um benefício de um salário mínimo? Nenhum. O

que deve pensar o sujeito que contribuiu durante anos, conseguiu

sua aposentadoria de um salário mínimo, fundamental para a sua

subsistência e, hoje, percebe que um amigo ao lado, que nunca

contribuiu, conseguiu aposentadoria igual? Isso acabará por levar

Page 64: KAMEL, Ali - Não somos racistas

124 NÃO SOMOS RACISTAS

aqueles que hoje trabalham na informalidade a não ter motivos

racionais para contribuir, o que levará multidões a chegar à velhi­

ce, quando já não podem mais trabalhar, sem renda e sem apoio,

tornando a aposentadoria especial da Loas um imperativo.

Mais uma vez, não discuto o mérito da Loas, mas a sua enorme

dimensão, provocada por falta de foco. Em 2004, a Loas consumiu

R$7,6 bilhões contra R$S,8 bilhões do Bolsa Família, um total de

R$13,4 bilhões. Em 2005, o governo gastou R$6,S bilhões com

o Bolsa Família e R$9,3 bilhões com a Loas, um total de R$IS,8

bilhões. Em 2006, prevê gastar R$19 bilhões com os dois progra­

mas. Enquanto isso, a educação teve no ano passado apenas R$ 7

bilhões para investimentos e, para 2006, a previsão é de R$8,S bi­

lhões. Um programa assistencial bem gerenciado poderia atender

aos realmente necessitados, gastando uma pequena proporção do

que se gasta atualmente e liberando uma enorme soma de dinhei­

ro para educar os nossos jovens.

Por que há falta de foco? De um lado, é impossível negar que o

governo tem sido incompetente no gerenciamento dos programas.

Mas programas assim acabam sempre beneficiando os mais afortu­

nados entre os menos afortunados. O que Thomas Sowell disse sobre

políticas afirmativas (e está retratado no capítulo sétimo deste livro)

vale também para programas assistenciais. Porque é sempre aquele

mais bem equipado entre os menos equipados que chega primeiro:

embora seja também pobre, ele tem mais acessos do que os mais po­

bres, tem mais condições de tomar conhecimento da existência do

programa, consegue entendê-lo mais rapidamente, consegue reunir

antes toda a papelada exigida. E, assim, o dinheiro que visava ao

menos pobre, ao miserável, chega sempre antes nas mãos daqueles

pobres, mas que estão muito longe da situação de miséria a que o

programa se destina. Trata-se de uma inevitabilidade.

Num país em que falta dinheiro para a educação, o governo

precisa corrigir o rumo urgentemente. E, diante da inevitabilidade

apontada acima, repensar a magnitude de seus programas sociais.

O DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRE S 12S

Enquanto não mudarmos esse quadro, nosso futuro não será mUL­to diferente do nosso presente.

É por todas essas razões que eu faço agora essa pergunta: se

alguém rompe a linha da pobreza porque recebe uma ajuda em

dinheiro do governo, é correto que as estatísticas deixem de con­siderar essa pessoa como sendo pobre?

O bom senso diz que não: tire a ajuda e o pobre voltará a ser

pobre, como demonstrei aqui com os exercícios feitos para se ve­rificar falta de foco e exclusão.

Em todas as linhas da pobreza divulgadas em 200S, houve que­

da acentuada no número de pobres. Entre as explicações mais

convincentes, estão o crescimento económico de 2004, a baixa

inflação e o aumento do salário mínimo, com grande impacto nas

aposentadorias e pensões de todo tipo. Para o governo e alguns

pesquisadores, no entanto, o Bolsa Família teria tido um impactodecisivo.

Não acredito nisso: afinal, se a soma de todos os benefícios

atinge alguns bilhões de reais, considerando o benefício médio

mensal, da ordem de R$6S em 2005, cada membro de família be­neficiada recebe apenas R$O,SO por dia.

Mas muitos pesquisadores não pensam assim. E estão errados.

Em um artigo, Ricardo Paes de Barros, Mirela de Carvalho e Samuel

Franco exaltam a importância de programas de transferência de

renda com condicionalidades na redução da desigualdade registra­

da no Brasil: entre 2001 e 2004, o coeficiente de Gini caiu 0,024.

Os pesquisadores fizeram então o seguinte exercício: caso a renda

declarada em "outros rendimentos" (onde se registra o dinhei­

ro do Bolsa Família) fosse zero, o coeficiente de Gini teria caído

0,018. Portanto, 24% (0,06 em 0,024) da queda no coeficiente

de Gini se devem ao dinheiro de programas de transferência de

renda com condicionalidades. Outros fatores explicariam a queda

na desigualdade, segundo eles: 12% da redução seriam devidos a

mudanças nas diferenças de escolaridade entre os trabalhadores,

Page 65: KAMEL, Ali - Não somos racistas

126 NÃO SOMOS RACISTAS

2% viriam da queda do desemprego e 8% viriam do aumento do

salário mínimo. No artigo, os autores concluem, portanto, que é

grande a importância de uma rede de proteção social "centrada

no programa Bolsa Família": "Sua contribuição para a queda na

desigualdade foi 2,5 vezes maior que a do aumento do salário mí­

nimo", dizem.Ocorre que o dinheiro das aposentadorias de idosos e deficientes

físicos pobres, um programa sem condicionalidades e com grande

desvio de foco, como já demonstrei aqui, também é declarado em

"outros rendimentos", e é um montante expressivo de recursos:

se o governo gastou em 2004 R$5,7 bilhões com o Bolsa Família,

gastou mais com as aposentadorias especiais, R$5,8 bilhões. En­

quanto o benefício médio do Bolsa Família em 2004 foi de R$68,

o valor das aposentadorias nunca é menor do que o salário míni­

mo, R$260 naquele ano. Assim, pode-se chegar a duas conclusões:

o papel na redução da desigualdade está bastante exagerado, no

caso do Bolsa Família, e subestimado, no caso do salário mínimo,

embora parte da importância do mínimo venha de um programa

mal focado e que não pede nada em troca aos beneficiários.

Mas imaginemos que o governo e os pesquisadores estejam cer­

tos e que o impacto do Bolsa Família na diminuição da pobreza te­

nha sido de fato grande. Nessa hipótese, seríamos então obrigados

a dizer que o retrato obtido nas linhas de pobreza não teria sido o

de uma pobreza menor, mas de uma pobreza "maquiada". Os ín­

dices estariam anabolizados. Se de fato o pobre rompeu a linha da

pobreza por causa do Bolsa Família, quando essa ajuda for tirada,

o pobre voltará a ser pobre. Porque o Bolsa Família não acaba com

a pobreza, mas apenas atenua os seus efeitos. O que tira um pobre

da pobreza é o emprego. E só consegue emprego quando há um

quadro de crescimento econômico. E só consegue bons empregos

aquele que tem qualificação. Crescimento econômico e educação

de qualidade são a fórmula segura para a um só tempo diminuir a

pobreza e encurtar a desigualdade.

o DINHEIRO QUE NÃO VAI PARA OS POBRES 127

A outra pergunta que faço então é simples: num país como o

Brasil, em que ainda não é universal o acesso a coisas básicas como

educação de qualidade, é justo que o governo gaste um caminhão

de dinheiro em programas como o Bolsa Família? Como já mos­

trei aqui, a questão do Brasil não é a fome: no Brasil o percentual

de pessoas emagrecidas, único indicador que realmente mede a

quantidade de famintos, é inferior ao limite máximo considerado

normal. Se é assim, eu acredito que o Brasil tem necessidades mais

urgentes. Investir em educação é uma delas, porque somente ela é

capaz de emancipar uma pessoa. A outra é ínvestir na infra-estru­

tura do país de modo a superar os gargalos que impedem o nosso

desenvolvimento.

E, no entanto, isso não acontece.

Assim, mesmo se o Bolsa Família fosse realmente eficaz no

"combate à pobreza", o dinheiro gasto com ele até poderia ter

um impacto imediato nos índices de pobreza, mas este seria um

impacto virtual, artificial, aparente. Em qualquer hipótese, no mé­

dio e no longo prazos, o Bolsa Família estará contribuindo, pa­

radoxalmente, para a manutenção de milhões de brasileiros na

pobreza, uma vez que drenará os recursos que deveriam estar indo

para educação e para a infra-estrutura essencial ao crescimento.

Esem educação e sem empregos, ninguém sai, de fato, da pobreza.

Terá de viver, eternamente, de esmola.

É um tiro no pé. Mas que rende votos. Eis, talvez, a origem da

insensatez.

O governo Lula parece ter metido o Brasil num beco sem saída:

quem será o político que terá coragem de explicar o paradoxo e

mexer num programa que atinge uma multidão de eleitores?

Os países que enfrentaram o problema da pobreza com maior

êxito nos últimos anos - Irlanda, Espanha, Coréia, apenas para

citar três exemplos - viram na educação o caminho mais curto

para a superação da pobreza. Investiram muitos Iecursos, quali­

ficando o seu povo que, assim, pôde disputar pOSiD~ de trabalho

Page 66: KAMEL, Ali - Não somos racistas

128 NÃO SOMOS RACISTAS

com salários mais altos. Naturalmente, uma camada da pobreza

continuou pobre. Como me disse certa vez o pesquisador Ricardo

Paes de Barros, do IPEA, há casos em que, mesmo com uma boa

escola ao lado de casa, mesmo com um bom posto de saúde na

vizinhança, mesmo com bom postos de trabalho, certas pessoas,

sozinhas, não saem da pobreza. Os programas sociais devem tê-las

como público-alvo. Mas elas serão sempre a minoria.

No Brasil, o governo as trata aos milhões. O preço? Dinheiro que

é drenado da educação. É o que veremos nas páginas a seguir.

EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOLUÇÃO

DIANTE DAS CRÍTICAS DE QUE os RECURSOS PARA o ASSISTENCIALISMO s.3,o

excessivos e sem foco, drenando os recursos da educação, o gover­

no tem dito que isso não ocorre: os níveis de investimentos públi­

cos no setor seriam proporcionalmente equivalentes aos dos paí­

ses mais adiantados. Uma rápida olhada por nossas escolas Brasil

afora mostra, porém, que nossa juventude vem sendo relegada a

um ensino sem qualidade, que em muito pouco ajudará os pobres

a deixarem a pobreza. Como eu disse em um dos meus artigos, dáuma tristeza grande.

Eu me lembro bem de quando fui apresentado a uma biblioteca.

Estava com 11 anos e tinha acabado de chegar a uma nova escola.

A bibliotecária se chamava Graça, era jovem, gostava do que fazia

e, melhor, gostava da minha curiosidade. Dizendo assim parece

piada, mas eu me encantei pelos segredos da catalogação: aquelas

fichas eram o caminho seguro para um mundo de assuntos, qual­

quer um: bomba atômica, poluição, árabes (um tema caro a um

jovem que vinha de uma família de imigrantes) e, claro, biologia

(aparelho reprodutor, sexo, temas caríssimos a todo pré-adoles­

cente). Havia também, naturalmente, a possibilidade de consultar

a partir dos autores, e eles eram uma multidão, nomes que eu

nunca tinha visto antes. Graça ficava atrás do balcão, terreno proi­

bido para os estudantes pela irmã Emerenciana, responsável pela

biblioteca. Depois de muita insistência, porém, Graça me permitiu

Page 67: KAMEL, Ali - Não somos racistas

130 NÃO SOMOS RACISTAS

ver como os livros ficavam dispostos, todos rotulados de acordo

com o código que constava das fichas: estantes e mais estantes de

livros, o equivalente mais modesto, mas, mesmo assim, muito po­

deroso, do Google de hoje em dia (sem o lixo). No início, o que me

interessou mesmo foi a coleção de As aventuras de Tintim, que eu

li toda, mas, com o tempo, comecei a recorrer à biblioteca sempre

que um assunto martelava na minha cabeça. Na minha formação,

aqueles livros foram fundamentais.

Da mesma forma, o laboratório de ciências da escola provocou

em mim uma impressão que eu nunca vou esquecer. Eram ban­

cadas retangulares de ladrilhos brancos, bem altas, dispostas em

duplas, cada uma com urna pia. :-Jós nos sentávamos em bancos

altos, o que nos fazia sentir importantes. Um dia, na aula de ciên­

cias, depois de apresentados ao aparelho nervoso, fomos conhecer

no laboratório um cérebro conservado em formal. O cheiro forte

nos fez chorar, mas vestir luvas descartáveis e sentir nas mãos as

estruturas do cérebro com seus sulcos e fendas nos fazia ter preco­

cemente os sentimentos que os alunos de medicina têm nas aulas

de anatomia. Não sei quantos de nós se tornaram médicos; sei que

aquelas aulas me fizeram ter a certeza de que a área de humanas

era o meu destino. No mesmo prédio do laboratório, havia uma

sala que apelidávamos de museu, com animais empalhados, inse­

tos catalogados e algo a que apenas os mais velhos do científico

tinham acesso: fetos humanos em diferentes estágios conservados

em formal. No mesmo andar, uma sala de projeção, um cinemi­

nha com cadeiras em patamares diferentes, sempre mais altos,

para que ninguém atrapalhasse a visão.

Os professores me pareciam todos muito bem preparados. E de­

dicados. Davam aulas na minha escola e, no máximo, em mais

uma. Os salários da época deviam permitir isso. Todos tinham o

próprio carro, e estes ficavam estacionados num pátio coberto e

serviam para esconder os meninos mais velhos, que fumavam es­

condido. Os professores moravam nas redondezas, muitos eram

EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOLUÇÃO 131

vizinhos dos alunos. Andavam bem vestidos, sempre com muitos

livros nas mãos. Tinham uma dedicação grande, sabiam dividir a

atenção com todos, na medida certa. Se um aluno saía dos trilhos,

ia conversar na coordenação com ]urídice, uma mulher alta, de

porte esguio, cuja filosofia era nos fazer responsáveis. Diante de al­

guma travessura, ela perguntava: "Você assume que fez tal coisa?"

Quando nós dizíamos que sim, assumíamos, ela nos mandava de

volta à sala de aula, sem castigos. Na primeira vez que isso me

aconteceu, eu achei meio louco. Eu me perguntei: "Não vai ter

castigo?" Depois, entendi: voltar a fazer algo que nós assumíramos

como errado era tão desmoralizante que, embora njnguém fosse

santo, evitávamos fazer. Além de ]urídice, com quem convivi pou­

co, Graça e Seline, coordenadoras do primeiro e do segundo graus,

influenciaram de tal modo a minha formação que os acertos que

tive na vida eu devo atribuir em grande parte a elas.

E, no entanto, o Santa Rosa de Lima era (e ainda é) apenas um

colégio simples de bairro, voltado para a classe média de Botafo­

go, Flamengo e adjacências. Nunca foi um colégio de elite, caro,

nunca constou da lista dos mais badalados, mas tinha um projeto

a que as irmãs dominicanas se dedicavam (e se dedicam) com zelo.

Tampouco era o único com esse perfil; havia (e ainda há) muitos.

O problema é que o esmagamento da classe média é de tal ordem

que uma família com os recursos proporcionais aos que a minha

tinha na época dificilmente pode matricular hoje quatro filhos em

colégios de qualidade.

Todas essas reminiscências me vieram à mente depois de uma

visita à página do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Edu­

cacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao MEC. A boa notícia é

que, diferentemente do que acontecia na minha época, quando

só crianças de classe média como eu estavam na escola, hoje prati­

camente todas em idade escolar estão nas salas de aula do ensino

fundamental. Mas as estatísticas sobre educação me fizeram ter a

certeza de que estamos a anos-luz do que realmente precisamos

Page 68: KAMEL, Ali - Não somos racistas

132 NÃO SOMOS RACISTAS

para educar o nosso povo. Segundo dados de 2003 (os mais recen­

tes), de todas as escolas públicas de ensino fundamentat apenas

23% têm bibliotecas; só S% dispõem de laboratórios de ciências;

13% contam com salas de vídeo; 27% têm computadores; 9% pos­

suem laboratórios de informática; e somente 10% têm acesso à

intemet. Entre os professores que trabalham para a rede pública,

apenas SS% têm curso superior.

É uma situação desoladora, que não levará a maior parte dos

alunos a superar os entraves da pobreza e manterá o Brasil na eter­

na posição de país pobre e desigual.

O que poucos percebem é que também a escola privada não é

um oásis no meio de um sistema de ensino degradado. Oferece

mais recursos, mas, pelas estatísticas, há muitos pais que se esfor­

çam para pagar por um ensino privado que nem de longe lhes dá

o que devia: 24% das escolas privadas de ensino fundamental não

têm biblioteca; 69% não têm laboratório de ciências; 4S% não têm

salas de vídeo; 47% não dispõem de laboratório de informática;

18% não contam com computadores; e 48% estão desconectadas

da intemet. Basta também que os pais se interessem por saber qual

o salário dos professores de seus filhos para que cheguem à con­

clusão de que o dinheiro não é suficiente para que eles sustentem

a família e, ao mesmo tempo, possam comprar livros e fazer os

curSOS necessários para o seu contínuo aperfeiçoamento. Isso vale

para todas as escolas, mesmo as de elite. Outro dia mesmo, um

professor de uma dessas escolas estava me contando que tem de se

desdobrar em muitos "bicos" para ter um salário que lhe permita

ao menos ter alguma dignidade. Mas nem de longe consegue ter o

suficiente para estudar, comprar livros, viajar.

Ninguém está a salvo.

Enquanto isso, o governo prefere continuar gastando bilhões

em políticas assistencialistas sem foco, como tenho tentado mos­

trar neste livro. Em qualquer município é possível, numa rápida

pesquisa, encontrar comerciantes, funcionários públicos e paren-

EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOLUÇÃO 133

tes de vereadores recebendo o Bolsa Família. A imprensa tem mos­

trado isso, e, toda vez, o governo diz que são casos isolados, mas

não são. O Ministério do Desenvolvimento Social tenta limpar o

Cadastro Único, de onde devem sair os beneficiários de programas

sociais, mas o trabalho caminha lentamente, muito lentamente. É

uma promessa nunca cumprida. Ao que parece, o peso desses pro­

gramas assistencialistas numa eleição é entrave para qualquer ação

que tenha por objetivo rediscutir a abrangência dos programas e

seu foco. Uma vez instituído um programa assim, que político tem

a coragem de botar um freio? Thomas Sowell, como mostramos no

capítulo sétimo, tem razão: o mercado de votos impõe que esse tipo

de beneficio seja estendido a grupos cada vez mais numerosos.

Apenas para dois programas - Bolsa Família e os Benefícios de

Prestação Continuada, ambos, a meu ver, com problemas de foco

e público-alvo superestimado - o governo prevê gastar R$19,3

bilhões em 2006. Enquanto isso, o orçamento previsto para inves­

timentos em educação é de R$8,S bilhões. O Fundo de Manuten­

ção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) prevê que a

União participará dele com recursos de R$2 bilhões no primeiro

ano; ao fim de quatro anos, a participação será de R$4,S bilhões ao

ano. Uma quantia ainda assim pequena para modificar o quadro

que tracei aqui.

Esse é o beco em que nos metemos: remediar a pobreza com

recursos que são altos pelo desperdício e falta de foco em vez de

vencê-la com investimentos realmente maciços em educação.

Para fugir dessa realidade, de um tempo para cá, é comum ouvir

dos políticos que o problema brasileiro na educação não é dinhei­

ro. O número mais citado é o volume de recursos investidos na

educação pelo setor público (municipal, estadual e federal) como

proporção do PIB: o Brasil não estaria longe das maiores potências

do planeta ao investir 4%. De fato, o estudo "Education at a Glance,

200S", da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econô­

mico (OCDE), mostra que esse investimento é da ordem de 4,4% na

Page 69: KAMEL, Ali - Não somos racistas

134 NÃO SOMOS RACISTAS 1 EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOlUÇÃO 135

PROPORÇÃO DO PIB GASTO EM EDUCAÇÃO NO BRASIL

E EM ALGUNS PAíSES

Alemanha; 5,3% nos EUA; 4,4% na Austrália; 4,6% na Itália; 4,6%

na Holanda; e de 5,1% na média de todos os países da OCDE.

Para reforçar a tese de que investimos o necessário, passaram

a nos comparar aos países que, com mais êxito, ultrapassaram a

barreira do desenvolvimento com investimentos pesados em edu­

cação: a Coréia investe 4,2% do PIB; a Irlanda, 4,l°/b; a Espanha,

4,3%. Mesmo em relação aos nossos vizinhos latino-americanos,

não fazemos feio: a Argentina gasta 3,9% de seu PIB com educa­

ção; o Chile, 4%; o México, 5,1%. Estamos, portanto, na média,

seja qual for o parâmetro.

Brasil

Alemanha

Austrália

Estados Unidos

Coréia

Espanha

4,0%

4,4%

4,4%

5,3%

4,2%

4,3%

dispor muito mais recursos. Quando esses dados são levados em

conta, a posição do Brasil no ranking de países é vexatória.

Uma boa maneira de se analisar o quanto um país investe num

aluno, sem correr o perigo de comparar custos de vida diferentes,

é medir o gasto público por aluno como proporção da renda percapita. No Brasil, os três níveis de governo investem em cada estu­

dante de ensino fundamental o equivalente a 11,3% da renda per

capita. No ensino médio, em que pese a maior complexidade, essa

proporção cai para 10,9%. Façamos as comparações com os países

desenvolvidos. Na Alemanha, os números são, respectivamente,

16,9% e 21,8%. Nos EUA, 21,2% e 24,5%. Na Austrália, 16,6% e

21,8%. Na comparação com aqueles países que venceram os entra­

ves do desenvolvimento, nossa situação continua trágica. Na Co­

réia, os números são 16,6% e 21,1%. Na Irlanda, 12% e 17,9%. Na

Espanha, 18,9% e 24,3%. Nada melhora quando nos comparamos

aos nossos vizinhos. Na Argentina, os valores são 12,4% e ] 5,8%.

No Chile, 15,8% e 15,7%. No México, 13,89/0 e 18,4%.

GASTO PÚBLICO POR ALUNO COMO PROPORÇÃO DA RENDA

PER CAP/TA NO ENSINO FUNDAMENTAL E NO ENSINO MÉDIO,

NO BRASIL E EM ALGUNS PAíSES

Mas os números enganam.

Parece óbvio, mas ninguém sublinha o fato de que investimen­

tos em educação como proporção do PIB dizem pouco quando

não consideramos o tamanho do PIB e o número de estudantes

atendidos. Imaginemos dois países. O primeiro tem um PIB enor­

me e poucos estudantes; o segundo tem um PIB pequeno e mi­

lhões de estudantes. Os dois países podem investir igualmente 4%

do PIB, mas, certamente, no primeiro país, os alunos terão ao seuInvestir a mesma porcentagem do PIB em educação diz pouco,

portanto.

Irlanda

Argentina

Chile

México

4,1%

3,9%

4,0%

5,1%

México

Chile

Arg entina

Irlanda

Espanha

Coréia

Estado s Un ido s

Austrália

Alemanha

Brasil

0% 5% 10% 15% 20% 25°!c

• Gasto n() ensino fundamental .. Gasto no ensino médio

30%

Page 70: KAMEL, Ali - Não somos racistas

136 NÃO SOMOS RACISTAS EDUCAÇÃO, A ÚNICA SOLUÇÃO 137

GASTO PÚBLICO POR ALUNO COMO PROPORÇÃO DA RENDA PER

CAPITA NO ENSINO SUPERIOR, NO BRASIL E EM ALGUNS PAíSES

No ensino superior, a situação se inverte: nós gastamos despu­

doradamente em excesso. No Brasil, gasta-se por aluno o equiva­

lente a 5S,6% da renda per capita ao ano. Na Alemanha, 41,2%; na

Austrália, 25,4%. Na Coréia, 7,3%; na Irlanda, 27,2%; na Espanha,

22,4%. Se a comparação for com os nossos vizinhos, os números

são os seguintes: na Argentina, 17,8%; no Chile, 17,7%; no Méxi­

co,35%.

Por que digo que há excesso? Porque, no Brasil, a relação entre

o percentual de verbas destinadas ao ensino superior e a respectiva

população de estudantes é escandalosa. Na maior parte dos países,

o montante de verbas destinado às universidades excede a propor­

ção de alunos nelas inscritos. Na média, nos países da OCDE, 15%

de todos os alunos estão nas universidades, mas o ensino superior

abocanha 24% do total de verbas destinadas à educação. Énormal:

o ensino superior é mesmo mais caro. No Brasil, porém, vivemos

um descalabro: os alunos inscritos em universidades somam ape­

nas 2% do total de alunos, mas o ensino superior fica com 20% de

todas as verbas aplicadas em educação. Não há nada nem de longe

parecido em qualquer um dos países aqui mencionados.

Diante desses números, entende-se melhor paI que as nossas

escolas públicas do ensino fundamental não têm bibliotecas, labo­

ratórios de ciências, laboratório de informática, acesso à intemet.

Entende-se também por que o professorado é uma classe cada vez

menos prestigiada, que recebe um salário indigno, o que tira dele

inclusive as condições de se aperfeiçoar. Entende-se fundamental­

mente por que estamos perdendo a corrida para superar a pobrezae alcançar o desenvolvimento.

Mas nosso problema, de fato, não é falta de recursos, mas falta

de prioridade. Repito aqui, como num mantra, o que venho escre­

vendo ao longo deste livro: o governo federal quer gastar em 2006

R$S bilhões em educação e R$19 bilhões em programas sociais

superestimados, como Bolsa Família e aposentadorias especiais

para idosos e deficientes físicos pobres. Não se trata, portanto, de

conseguir dinheiro novo, mas de realocar o já existente: redimen­

sionar os programas sociais para atender apenas aos necessitados

e investir a maior parte em educação, o único instrumento que

redime o homem da pobreza.

Todo investimento que desvia dinheiro da educação é contra­

producente, mesmo o antigo Bolsa Escola na dimensão que teve

no governo passado. Porque o número de crianças que não estu­

dam porque precisam trabalhar jamais chega à casa dos milhões.

O grande professor Sérgio Costa Ribeiro já mostrava no jnício da

década de 1990 que o acesso das crianças à escola era de 95%.

Em média, elas passavam oito anos tentando desesperadamente

estudar, mas saíam de lá sem nem de longe concluir o ensino fun­

damental. O que as afastava da escola não era a necessidade de

trabalhar, mas a repetência, o único estímulo que os professores

tinham à mão para que o aluno estudasse.

O remédio contra a repetência foi a progressão automática, mas

Sérgio sempre a criticou, por considerá-la uma medida isolada,

inócua. Mais importante, dizia ele, é dar autonomia às escolas,

tendo como contrapartida a avaliação de desempenho dos alu-

60%50%40%30%20%10%0%

Brasil

Cor éia

Espanha

Irlanda

Arqentina

Chile

México

Austrália

Alemanha

Page 71: KAMEL, Ali - Não somos racistas

138 NÃO SOMOS RACISTAS

nos. Dotar as escolas de recursos materiais e humanos para que

se tornem ao mesmo tempo atraentes e efetivas, com uma didá­

tica nova e professores estimulados e bem pagos. Mas não deixar

de submetê-las a um sistema de avaliação que seja o parâmetro de

tudo: a autonomia e os recursos financeiros extras da escola esta­

riam condicionados por essa avaliação.

Sérgio morreu precocemente e o que vimos foi a adoção indis­

criminada da progressão automática, sem nova didática, sem mais

recursos, sem uma avaliação com resultados práticos: os professo­

res se esforçam para ensinar, mas a escola fracassa.

Diante desse quadro, vamos continuar tendo uma legião de po­

bres que dependerá sempre de uma esmola do governo. Mas esta

esmola jamais tirará os pobres da pobreza. Ao contrário, será um

dos fatores que os manterão pobres. Porque cada dinheiro dre­

nado da educação é um estímulo para que pobres permaneçam

pobres.

HÁ SOlUÇÃO

EM MAIO DE 2005, DIANTE DAS AGRESSÕES RACISTAS QUE JOGADORES NEGROS

sofriam nos gramados espanhóis, Ronaldo deu a seguinte decla­

ração: "Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância. A so­

lução é educar as pessoas. COrÍligo, o preconceito é outro, bemmenos grave. As pessoas me chamam de gordinho."

O mundo desabou sobre ele. Ronaldo, branco? Foram muitas as

ofensas, muitas as piadas. O próprio pai deu declarações dizendo

que não sabia onde o filho estava com a cabeça, porque certamen­

te ele era negro. Sob pesadas críticas, Ronaldo deu nova declara­

ção, que devia ser aplaudida por todos os anti-racistas do mundo:

"Eu quis dizer que tenho pele mais clara, só isso, e mesmo assim

sou vítima de racismo. Meu pai é negro. Não sou branco, não sou

negro, sou humano. Sou contra qualquer tipo de discriminação."

A crise em torno de Ronaldo era o sinal mais claro de que o

efeito do vírus da nação bicolor - negros e brancos - já está

amplamente disseminado. Em outros tempos, talvez muitos ra­

cistas questionassem a cor de Ronaldo, mas envergonhadamente,

porque a nossa etiqueta social nos impunha ignorar questões re­

lativas à cor. Ronaldo se acha branco? Ótimo, a vida é dele. Para a

maioria, a cor de Ronaldo não seria uma questão. Mas, no Brasilde hoje, vira escândalo.

Vejam que aqueles que defendem a idéia de uma nação bicolor

avançaram um degrau a mais: antes, todo o discurso era a favor

Page 72: KAMEL, Ali - Não somos racistas

140 NÃO SOMOS RACISTAS

da autodeclaração, a própria pessoa decidiria a que grupo "racial"

pertencia. Hoje, eles vão além: dão-se o direito de dizer se Ronaldo

é ou não negro} é ou não branco. Isso é o cúmulo do racismo, e

vindo de pessoas que dedicaram a vida a combatê-lo. É a encruzi­

lhada em que nos encontramos.

Depois de ler os originais deste meu livro, Luciano Trigo, editor

da Nova Fronteira, indagou-me sobre o porquê de} justamente no

momento em que "raça", definitivamente, não é mais um concei­

to aceito pela ciência} o discurso do orgulho racial negro, da nação

bicolor} da divisão do país em raças, da adoção de políticas de pre­

ferência racial, ganhou tanto espaço e tanto eco no BrasiL

Eu arrisco várias respostas, todas elas esboçadas no decorrer dos

capítulos até aqui.

A primeira delas é que} por dez anos, o Brasil teve em seu co­

mando um homem que sempre pensou o Brasil em termos de

uma nação dividida, em que brancos oprimem negros: Fernando

Henrique Cardoso, primeiro como ministro da Fazenda e, depois,

como presidente da República por dois mandatos consecutivos.

Somente aqueles que não leram a obra sociológica de FH podem

imaginar que ele, como presidente, guiaria o país com os olhos vol­

tados para outros paradigmas. Não cabe a mim fazê-lo aqui, mas

fica a indicação: à luz de Dependência e desenvolvimento na Améri­

ca Latina, muito do que o seu governo fez no campo económico

- privatizações, reforma do estado, fim de monopólios - está

em linha e é coerente com o pensamento do sociólogo. A questão

racial, como já demonstrei na introdução} não foi exceção. O ho­

mem que ajudou a construir a tese sobre a nação bicolor no poder

não agiria de outra forma, senão a partir dos pressupostos em que

acreditava. Dez anos de ação, se não mudam, ao menos ajudam,

e muito, a mudar a face de um país. É certo que o presidente era

mais sutil que o jovem sociólogo, reconhecia que aqui havia, e há,

o gosto pela mistura, o que, no entanto, não muda em essência o

fato de que a desigualdade entre negros e brancos se deve em gran-

HÁ SOlUÇÃO 141

de medida ao racismo. Que ele tenha sido e seja pessoalmente

contra as cotas raciais, importa pouco: a adoção delas só é possível

se antes toma corpo todo um processo que substitui o ideal de

nação miscigenada e tolerante pela crença numa nação dividida

entre negros oprimidos e brancos opressores. Equem instituciona­

liza esse processo é FH.

A segunda resposta tem a ver com um ambiente externo favo­

ráveL A subida de FH ao poder coincide com um momento em

que as Nações Unidas desenvolvem um esforço monumental no

sentido de amenizar o racismo presente em grande parte do mun­

do. Esforço que envolve patrocínio} em dinheiro} a campanhas e

estudos mundo afora. O ponto que escapa a muitos é que, talvez

desanimadas de empreender a luta certa - o fim do racismo e a

defesa da mistura de todos os homens num único caldeirão -, as

Nações Unidas se voltam para a luta possível: fazer prevalecer o

respeito pelas diferenças. O resultado esperado dessa luta - como

ideal- é a instauração nos diversos países de nações multiétnícas:

cada um no seu canto, mas todos respeitando e tolerando as dife­

renças. Nada de misturas, nada do cozimento de um só cidadão,

independentemente da cor, da "raça", mas a luta para que todos

os diferentes sejam aceitos como cidadãos. É assim no Reino Uni­

do, que desenvolve campanhas para que os súditos se orgulhem

dos co-cidadãos hindus, árabes, africanos, cada um em seu bairro}

cada qual com a sua "diversidade, mas todos igualmente brltâni­

coso É assim na França, com os franceses "puro-sangue" sendo esti­

mulados a conviver com os franceses-argelinos, com os franceses­

africanos, com os franceses-antilhanos. É assim no mundo todo.

E esse ideal chegou aqui como uma importação acrítica de uma

atitude "bacana". Logo aqui, onde já existia, também como ideal,

uma atitude muito mais revolucionária, muito mais civilizada: a

exaltação das virtudes, não da convivência respeitosa de I}raças",

mas da mistura delas. Desde Oswald de Andrade, com a sua defini­

ção maravilhosa de antropofagia cultural, vivíamos a querer isso:

Page 73: KAMEL, Ali - Não somos racistas

142 NÃO SOMOS RACISTAS

um povo misturado, em que ninguém sabe onde começa o branco

e onde termina o negro. E, no entanto, pouco a pouco, esse ideal

foi sendo substituído pelo respeito à diferença, a etnias diversas. E

passamos a ouvir como se fosse algo muito "chique": "Somos uma

nação multiétnica." Mal percebendo que nações multiétnicas es­

tão num degrau abaixo em termos de ideal civilizatório: no topo,

nações misturadas, em que cor e "raça" são noções de um passado

bárbaro; no meio, nações multiétnicas, em que a discriminação

é odiosa, mas onde a mistura é evitada como "antinatural"; e no

degrau mais baixo, as nações que se orgulham de sua pureza racial,

seja ela qual for.

A terceira resposta, eu a encontro em nossa imensa desigualda­

de. Somos uma nação dividida entre ricos e pobres, e com um abis­

mo entre eles. E, como os negros e os pardos são a maioria entre os

pobres, a saída mais fácil é atribuir a desigualdade ao racismo de

brancos, ignorando que, entre os pobres, há 19 milhões de almas

brancas. Passa-se então a lutar por políticas de preferência racial

que promovam a emancipação de parte da pobreza, sem que os

defensores dessas idéias percebam a monstruosidade que há nelas.

Em vez de defender investimentos que visem à superação de toda

a pobreza - a educação em primeiro lugar -, passa-se a defender

políticas que visam a emancipar apenas os negros.

A quarta e última resposta, e que decorre da anterior, diz res­

peito ao nosso gosto pelas soluções fáceis, pelas soluções mágicas.

Reconhecemos que a educação no Brasil é um desafio ao qual de­

vemos dar prioridade? Então põe-se nas constituições estaduais a

obrigação de se investir ao menos 25% no setor (na Constituição

Federal, a obrigação é de 18%). E qual o resultado? 25% e 18%,

que deveriam ser o piso, passam a ser o teta. A educação continua

sem dinheiro, mas os administradores dormem com a consciência

tranqüila. Nenhuma nação adulta precisa de pisos ou tetas para

investir em educação: basta investir o necessário, e o necessário

depende das necessidades, vejo-me obrigado a dizer uma obvieda-

HÁ SOLUÇÃO 143

de como essa. Outro caminho mágico que seduz são as cotas. Mes­

mo todo mundo sabendo que o problema está na má qualidade

da educação básica, muitos passam a imaginar que basta facilitar o

acesso de negros e pardos às universidades para que todos os pro­

blemas estejam resolvidos, quando, na verdade, eles estarão ape­

nas começando: porque no rastro das cotas, ensina a experiência

internacional, nem sempre vem o resultado esperado em termos

de diminuição de desigualdades, mas quase sempre aparece o ódio

racial. Outro fator de sedução é imaginar que se pode acabar com

a pobreza com políticas assistencialistas. Isso, infelizmente, não é

possível. Tire o dinheiro do programa social e o pobre voltará a ser

pobre, caso tenha saído da pobreza graças ao assistencialismo. E o

pior: num país pobre como o nosso, cada centavo que deixa de ir

para a educação contribui para a manutenção dos pobres na vida

trágica que levam. Sejam brancos, negros, pardos ou de qualquer

outra cor.

Há solução? Há caminho de volta? Eu não tenho dúvidas de

que há. Este livro é fruto dessa certeza. Basta que, como eu, mani­

festem-se todos aqueles que ainda pensam que uma nação mistu­

rada, miscigenada, colorida, sem espaço para diferenças de "raça"

é ainda muito superior a uma nação multiétnica, mas que vive de

nariz tampado.