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5/20/2018 Klein,Madalena-LiteraturaInfantileProduodeSentidosSobreasDiferen... http://slidepdf.com/reader/full/klein-madalena-literatura-infantil-e-producao-de-sentidos-sobr 179 Pro-Posições, Campinas, v. 21, n. 1 (61), p. 179-195, jan./abr. 2010 Literatura infantil e produção de sentidos sobre as diferenças: práticas discursivas nas histórias infantis e nos espaços escolares  Madalena Klein * Resumo: Este artigo apresenta resultados de uma investigação que teve o objetivo de analisar como são produzidos  jeitos de ver e jeitos de ser  por meio das representações sobre o “outro” nos livros de literatura infantil e como essas representações vêm sendo re/produzidas nos espaços escolares por professores e alunos. A investigação desenvolveu-se em duas etapas distintas, articulando metodologias a partir de referencial teórico inscrito no campo dos Estudos Culturais em Educação, sendo elas a análise de discurso e o estudo de recepção. Percebe-se nos enredos uma demarcação da diferença como desvio, como alguém que se distingue/difere da maioria; descrevem-se situações de estranhamento que a presença do “outro” provoca; a esses personagens são atribuídos, em geral, o papel de vítima, herói ou vilão. Há a predominância da abordagem da boa e necessária convivência entre os diferentes e da aceitação e da tolerância, fazendo parte da lógica que perpassa as narrativas construídas por professoras e alunos. Palavras-chave: diferença; discursos; literatura infantil; espaços escolares; estudos culturais. Children’s literature and production of meanings about differences: discoursive practices in children’s stories and in school environments  Abstract:  This article presents the results of an investigation aiming at analyzing how ways of seeing  and ways of being  are produced through representations of the “other one” in children’s literature, as well as how those representations have been (re)produced by teachers and students at school. The investigation was developed in two distinct stages, combining methodologies based on theoretical grounds in Cultural Studies in Education: discourse analysis and reception study. In the stories, it is possible to notice the idea of difference as a deviation, as someone that is distinct/different from the majority of people. There are situations in which the presence of the “other one” is provocative; the characters of such situations are usually assigned the roles of victims, heroes or villains. The perspective of good, necessary living with different ones, as well as acceptation and tolerance, have prevailed in the logic that crosses narratives constructed by teachers and students. Key words: difference; discourse; children’s literature; school environments; cultural studies. * Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (FaE/UFPEL), RS, Brasil. [email protected]

Klein, Madalena - Literatura Infantil e Produção de Sentidos Sobre as Diferenças - Práticas Discursivas Nas Histórias Infantis e Nos Espaços Escolares

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    Literatura infantil e produo de sentidos sobre asdiferenas: prticas discursivas nas histrias infantis e nos

    espaos escolares

    Madalena Klein *

    Resumo: Este artigo apresenta resultados de uma investigao que teve o objetivo de analisarcomo so produzidos jeitos de ver e jeitos de ser por meio das representaes sobre o outro noslivros de literatura infantil e como essas representaes vm sendo re/produzidas nos espaosescolares por professores e alunos. A investigao desenvolveu-se em duas etapas distintas,articulando metodologias a partir de referencial terico inscrito no campo dos Estudos Culturaisem Educao, sendo elas a anlise de discurso e o estudo de recepo. Percebe-se nos enredosuma demarcao da diferena como desvio, como algum que se distingue/difere da maioria;descrevem-se situaes de estranhamento que a presena do outro provoca; a esses personagensso atribudos, em geral, o papel de vtima, heri ou vilo. H a predominncia da abordagemda boa e necessria convivncia entre os diferentes e da aceitao e da tolerncia, fazendo parteda lgica que perpassa as narrativas construdas por professoras e alunos.

    Palavras-chave: diferena; discursos; literatura infantil; espaos escolares; estudos culturais.

    Childrens literature and production of meanings about differences:discoursive practices in childrens stories and in school environments

    Abstract: This article presents the results of an investigation aiming at analyzing how ways ofseeing and ways of being are produced through representations of the other one in childrensliterature, as well as how those representations have been (re)produced by teachers and studentsat school. The investigation was developed in two distinct stages, combining methodologiesbased on theoretical grounds in Cultural Studies in Education: discourse analysis and receptionstudy. In the stories, it is possible to notice the idea of difference as a deviation, as someone thatis distinct/different from the majority of people. There are situations in which the presence ofthe other one is provocative; the characters of such situations are usually assigned the roles ofvictims, heroes or villains. The perspective of good, necessary living with different ones, as wellas acceptation and tolerance, have prevailed in the logic that crosses narratives constructed byteachers and students.

    Key words: difference; discourse; childrens literature; school environments; cultural studies.

    * Professora Adjunta da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Pelotas (FaE/UFPEL),RS, Brasil. [email protected]

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    A diferena como temtica emergente no campo da Educao:aproximaes iniciais

    As polticas de identidade e diferena vm adquirindo legalidade no cenriobrasileiro a partir da promulgao de diferentes polticas pblicas, fruto damobilizao de segmentos da sociedade que colocam como prioritrio para agarantia de direitos sociais e cidadania o tema da incluso social dos gruposconsiderados diferentes. Observamos que essas questes vm mobilizando eincentivando segmentos da sociedade a promover a discusso sobre temticascomo o respeito/a aceitao das diferenas, a tolerncia e a necessidade deimplementao de polticas afirmativas, entre outras. Essas discusses no en-contram uma unanimidade, promovendo diferentes movimentos de adeso ourepdio s muitas medidas que se instalam no cenrio social, cultural e econ-mico.

    No campo da Educao, essa temtica ganha diferentes contornos, trama-dos em jogos de saber/poder decorrentes das trajetrias de inmeros grupossociais e de um conjunto de expertises envolvidas em organizaes governamen-tais ou no, que vm interferindo diretamente nas diretrizes das polticas edu-cacionais. Exemplos que podemos enumerar, sem darmos conta da diversidadede proposies nesse campo, so as aes afirmativas, as polticas de acessibili-dade, as redefinies das polticas de educao especial, entre outras que, noseu conjunto, apontam para um momento de visibilidade e dizibilidade sobre ooutro. Em pesquisa de Zucchetti, Klein e Sabat (2007), as autoras analisamespecificamente trs documentos que compem as polticas pblicas nacio-nais: o Estatuto da Criana e do Adolescente ECA, as Diretrizes Nacionaispara a Educao Especial na Educao Bsica e as Diretrizes Curriculares Na-cionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Hist-ria e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Nesses documentos, so analisadas asregularidades enunciativas que descrevem o outro para quem as polticas de-vem apontar aes afirmativas, de incluso e de cidadania. As autoras argu-mentam que esses documentos, em conjunto, do visibilidade a uma ordemdo discurso sobre a incluso social em nosso Pas na contemporaneidade(Zucchetti; Klein; Sabat, 2007, p. 78). Esses discursos constituem/produzemos saberes e as prticas dos docentes envolvidos na educao daqueles sujeitosnomeados nas polticas analisadas.

    Variados artefatos culturais so produzidos no sentido de dar sustentao aessas polticas e a suas concepes, entre as quais encontramos peas publicit-rias institucionais que narram as diferenas, a introduo de personagens e suastramas dramticas em novelas nas principais emissoras nacionais e a produode peas teatrais e literrias. Ou seja, essa uma discusso que est na emer-

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    gncia de nosso contexto cultural, produzindo regimes de verdade sobre sujei-tos e comunidades especficos.

    Estabelece-se como foco deste artigo a literatura infantil, artefato culturalpresente em diferentes contextos sociais, sendo a escola um espao privilegiadopara a leitura desses materiais. Nos ltimos anos, essa literatura tem sido focode pesquisas na rea da Educao justamente por sua disseminao nas escolas,entre professores e alunos, tanto como material de instruo quanto de lazer.Mais especificamente, pesquisadores como Vidigal (1996), Silveira (2000, 2002,2003), Amaral (2001), Sefton e Martins (2004), entre outros, procuram ana-lisar as formas como a alteridade o diferente vem sendo representadanesses artefatos. Concordamos com Silveira (2003, p. 2) quando argumentaque na ltima dcada uma preocupao mais programtica com a formao dacriana para conhecer e aceitar o diferente vem ensejando uma proliferao dettulos dentro de vrias vertentes da temtica.

    Motivadas por esses debates, estabelecemos como problema de investigaoa ser apresentado neste artigo: como vo sendo produzidos jeitos de ver e jeitos deser, por meio das representaes sobre o outro diferena, alteridade ,nos livros de literatura infantil e como essas representaes vm sendo re/pro-duzidas nos espaos escolares por professores e alunos. Consideramos oportunaa realizao de estudos que problematizem os discursos sobre os sujeitos paraquem as polticas de incluso social vm sendo dirigidas, pois entendemos queos discursos produzem e reproduzem representaes que interferem direta-mente nas prticas sociais e, assim, nas prticas docentes.

    O desdobramento desse objetivo direcionou nossa trajetria investigativa,levando-nos a: identificar e catalogar, em editoras nacionais, livros de literaturainfantil que tematizam a questo da diferena, a partir da promulgao daspolticas pblicas que discutem e almejam a incluso social, preferencialmentea partir de 1990; analisar os discursos e problematizar as representaes sobreo outro nos textos e nas imagens dos livros selecionados; realizar estudo derecepo entre professores e alunos nos espaos educacionais.

    Cabe salientar que nossa inteno no se volta a um estudo na rea daslnguas ou da literatura. Nossa aproximao aos Estudos Culturais em Educa-o direciona nosso olhar aos textos e s imagens das histrias infantis comoartefatos culturais que se inserem nos espaos escolares, somando-se a tantosoutros, na atualidade, interferindo nas prticas docentes e servindo de normativas(exemplos) para as relaes entre os diferentes sujeitos da educao. Assim,consideramos esse um tema emergente nas discusses sobre a formao docen-te e as prticas na escola.

    A investigao previa, inicialmente, duas etapas distintas, com metodologiasarticuladas a partir de referencial terico inscrito no campo dos Estudos Cul-

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    turais em Educao, sendo elas a anlise de discurso e o estudo de recepo.Primeiramente, realizamos o levantamento de ttulos de livros de literaturainfantil em catlogos das principais editoras nacionais que se dedicam publi-cao nessa rea. O objetivo foi selecionar os ttulos que apontassem para enre-dos em que o/s personagem/ns fosse/m identificado/s como pertencentes agrupos nomeados, nas polticas pblicas, a partir da diversidade/diferena, se-gundo recortes de raa/etnia, gnero/sexualidade, necessidades educacionaisespeciais/deficincias, entre outros.

    Interessante para a nossa anlise foi constatar que, nos catlogos ou nos sitesde algumas editoras nacionais pesquisadas, o leitor auxiliado a encontrar his-trias a partir de temticas ligadas aos temas transversais dos ParmetrosCurriculares Nacionais (meio ambiente, pluralidade cultural, tica e cidada-nia, sade, orientao sexual, trabalho e consumo) ou, ainda, a temas diversos,dos quais ressaltamos os seguintes: deficincia fsica, diferenas (aceitao), di-ferenas sociais e raciais, diferentes maneiras de olhar o mundo/pensar, solida-riedade, entre outros.

    Nessa primeira aproximao ao material, foi possvel, atravs dos ttulos edas sinopses presentes nos catlogos, selecionar livros (aproximadamente 38ttulos) que atendiam especificidade da pesquisa. Tambm procedemos auma anlise preliminar das formas como os sujeitos ditos diferentes vm sendonomeados/narrados. interessante ressaltar que a maioria desses livros j tevevrias reedies e reimpresses, o que sugere um alto ndice de circulao.

    Na continuidade da pesquisa, dirigimo-nos aos espaos escolares, com oobjetivo de examinar quais os sentidos que essas histrias produzem entre pro-fessores e alunos. Para isso, utilizamos estratgias dos estudos de recepo emturmas de sries iniciais de escolas pblicas, em que as proposies das profes-soras a partir de histrias por elas escolhidas, e as produes dos alunos daliresultantes constituram o corpus para nossas anlises. Foram selecionadas duasescolas pblicas municipais que, segundo informaes de equipe responsvelpelas polticas de incluso da secretaria municipal de educao, haviam desen-volvido programa de formao em servio, por meio de encontros em que sediscutiram e realizaram dinmicas referentes incluso de diferentes sujeitosnos espaos escolares e ao papel do professor nesse processo. Dessa forma, essasescolas e seus educadores estariam mobilizados em relao temtica que serelaciona aos objetivos de nossa pesquisa.

    Nessas escolas, apresentamos o projeto da pesquisa e solicitamos a partici-pao voluntria de professores; contamos com o engajamento de duas profes-soras na escola A (cada uma desenvolvendo as atividades da pesquisa em duasturmas) e quatro professoras na escola B, cada uma com uma turma. Totalizam,assim, oito turmas a serem observadas em atividades propostas pelas professo-

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    ras. O desafio apresentado a elas foi escolher, entre os ttulos selecionados noscatlogos das editoras, um livro para o qual deveria ser planejada uma aula emque a temtica fosse as diferenas. Os planos organizados pelas professoras, adinmica desenvolvida em aula e as atividades realizadas pelos alunos constitu-em-se, assim, no corpus da segunda etapa da pesquisa, que, no decorrer dainvestigao, foi cruzado com as anlises realizadas durante a primeira etapa.

    Representaes do outro nos artefatos culturais

    Nossa discusso aproxima-se de autores como Hall (1997a, 1997b) e Silva(1999, 2000), que problematizam a representao como um sistema de sig-nificao, ou seja, nela esto envolvidos processos de produo de significadossobre as coisas, as pessoas, os grupos. Por meio das representaes do quedizemos, pensamos, sentimos ou fazemos , construmos e transmitimos sen-tido sobre o mundo. Contudo, isso no se d simplesmente a partir de signifi-cados j existentes ou previamente aceitos. As representaes no so naturaisou definitivas, nem tampouco fixas, estveis ou determinadas. Elas constituemcampos de lutas nos quais os significados so negociados, construdos, impos-tos; elas esto envolvidas em jogos de poder e seus efeitos esto implicados naproduo de identidades e diferenas.

    Seguindo uma perspectiva foucaultiana, Silva (1999) ressalta que os discur-sos se tornam importantes para as anlises das representaes, uma vez quecriam sentidos, produzindo efeitos de verdade. Podemos dizer que os discursossobre a alteridade, o outro/diferente, que perpassam os espaos sociais, vmconstituindo realidades sobre o seu jeito de viver e de conduzir-se. Assim,tambm vm conformando as prticas educacionais em relao a esses sujeitos.Por meio da anlise das formas como os outros vm sendo narrados na literatu-ra infantil, pretendemos problematizar as naturalizaes os efeitos de verda-de produzidas nesses discursos. Na perspectiva em que se inscreve esta an-lise, entendemos que essas verdades no so inventadas propositalmente pelosautores das histrias e que a questo no se detm em procurar desvendar asintenes dos editores ou das instituies envolvidas na proliferao de saberessobre os outros/diferentes. Como argumenta Foucault (1996, p. 17),

    essa vontade de verdade [...] apia-se sobre um suporteinstitucional; ao mesmo tempo reforada e reconduzida portodo um compacto conjunto de prticas como a pedagogia, claro, como o sistema dos livros, da educao, das bibliotecas,como as sociedades de sbios de outrora, os laboratrios hoje.Mas ele tambm reconduzido, mais profundamente sem dvi-da, pelo modo como o saber aplicado em uma sociedade, como valorizado, distribudo, repartido e de certo modo atribudo.

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    Gostaramos, ainda, de salientar aquilo que Silva (2000) caracteriza como apoltica de identidade, na qual a representao entendida como uma formade conhecimento em que esto em jogo as possibilidades de delegao quemtem o direito de representar quem e de descrio como os diferentesgrupos culturais e sociais so apresentados. No ser objetivo deste artigocaracterizar a qual grupo pertencem os autores das histrias analisadas, porm,seria interessante, para futuras investigaes, estabelecer uma cartografia des-sas narrativas, no para identificar discursos mais verdadeiros, mas para anali-sar as condies de possibilidade de suas produes.

    Os significados sobre o outro/diferente so produzidos em diferentes espa-os e circulam em diversos processos ou prticas que se inscrevem no circuitoda cultura1 (Du Gay, 1997; Hall, 1997a; Hall 1997b; Johnson, 1999;Woodward, 2000). A literatura infantil inscreve-se nesse circuito, onde repre-sentaes sobre o outro/diferente produzem identidades e diferenas em umcomplexo jogo de produo, consumo e regulao de significados. Assim, en-tendemos que as histrias que contam sobre personagens nomeados e narradoscomo diferentes produzem mltiplos significados, no estando presos intencionalidade de autores, editores, educadores, alunos. Esses significadosproduzem-se, proliferam, conjugam-se a outros tantos significados. O textoescapa, possibilitando mltiplas leituras: [...] no existe um significado fixonico e, consequentemente, nunca poder existir uma leitura fixa, baseada nanoo de um conjunto de posies ideais-tpicas (Hall, 2003, p. 370).

    Procurando capturar os mltiplos sentidos passveis de serem produzidosno circuito da cultura, consideramos os estudos de recepo como possibilida-de metodolgica que nos abre caminhos para a anlise de teias de significadosque no se esgotam, mas proliferam nos espaos escolares. Cabe salientar que,ao aproximarmo-nos de autores que se utilizam desse modelo investigativo,pretendemos realizar o movimento que Ewald (1993, p. 26) bem descreveu,ao referir-se aos usos que fazia de Foucault: a comparao com chaves de umacaixa de ferramentas possibilita-nos a apropriao, sem a imposio de filiao.Remete-nos ao uso daquilo que produtivo para a investigao, sem, contudo,perder de vista o rigor nas articulaes realizadas.

    Durante o processo investigativo, procuramos estar atentas ao que Hall (2003,p. 354) nos aponta:

    A mensagem uma estrutura complexa de significados que no to simples como se pensa. A recepo no algo aberto e

    1. [...] para se obter uma plena compreenso de um texto ou artefato cultural, necessrioanalisar os processos de representao, identidade, produo, consumo e regulao. Como setrata de um circuito, possvel comear em qualquer ponto; no se trata de um processo linear,sequencial (Woodward, 2000, p. 68).

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    perfeitamente transparente, que acontece na outra ponta dacadeia de comunicao. E a cadeia comunicativa no opera deforma unilinear.

    Dessa forma, ao aproximarmo-nos dos espaos escolares, das prticas queenvolvem professoras e alunos, no pretendamos acolher os sentidos maisverdadeiros sobre o outro/diferente. O que nos mobiliza acolher, nessa ca-deia comunicativa, a emergncia de mltiplos discursos, mltiplas possibili-dades de narrar jeitos de ser e jeitos de ver. Ou seja, procuramos entender querepresentaes so potencializadas, cruzadas, excludas na emergncia de umatrama discursiva que coloca a diferena como foco nas atuais polticas sociais.

    Trilhas da pesquisa: alguns achados

    Apresentaremos, a seguir, os caminhos percorridos na pesquisa, detalhandocada etapa e seus achados. No temos a pretenso de dar conta das mltiplaspossibilidades de anlises, mas de trazer alguns bocados que nos permitamperguntar sobre as condies de produo de sentidos na contemporaneidade,principalmente no campo da Educao.

    Iniciamos a investigao com o levantamento de ttulos de livros de litera-tura infantil em catlogos de algumas das principais editoras nacionais2 que sededicam publicao nessa rea. Esses catlogos vm sendo organizados pelaseditoras, direcionando a ateno ao pblico infantil, como tambm aos pais eaos educadores. Como argumentam Sefton e Martins (2004, p. 279),

    [...] houve um notvel crescimento do mercado consumidorinfanto-juvenil, uma vez que as histrias literrias passaram aser vistas em seu potencial pedaggico. Com um status maior,as editoras de livros infanto-juvenis criaram estratgias ousa-das para vender, investindo em catlogos caprichados, jogosagressivos de marketing junto aos professores e, mesmo, cam-panhas de lanamento de livros. Tais estratgias atraem olharesde todos os envolvidos no processo educativo, principalmente das insti-tuies escolares, j que as mesmas revelam-se como grandesconsumidoras [grifo das autoras].

    Importante ainda salientar que, desde 1997, o Ministrio da Educao teminvestido no Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), por meio daaquisio e da distribuio de obras de literatura s escolas pblicas brasileiras.Em 2005, a Secretaria de Educao Bsica SEB/MEC assumiu a responsabili-

    2. Principalmente os catlogos das seguintes editoras: tica, Companhia Editora Nacional, Cortez,Moderna, Salamandra, FTD, Paulinas, Companhia das Letrinhas, Nova Fronteira, W. V. A, entreoutras (catlogos impressos e divulgados na Internet no perodo 2005/2006).

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    dade de ampliar os acervos das bibliotecas escolares e vem, ano a ano, investin-do no programa; a partir de 2006, tambm comearam a ser beneficiadas asescolas de Ensino Mdio.

    A partir do exposto acima, consideramos oportuno esse olhar sobre os cat-logos das editoras nacionais, uma vez que eles se constituem em um elo comprofessores, pais e tambm, institucionalmente, com a instncia responsvelpela ampliao das bibliotecas nas escolas pblicas, direcionando interesses nosentido das escolhas a serem efetivadas. Nessa primeira aproximao do mate-rial, foi possvel selecionar os livros que atendiam especificidade da pesquisa,bem como proceder a uma anlise preliminar das formas como os sujeitos sonomeados/narrados.

    Algumas das questes que emergiram nessa primeira etapa da pesquisa fo-ram as seguintes: quem so os personagens? Quais as marcas da diferena queso apontadas? Qual o protagonismo conferido ao outro/diferente? Qual asua responsabilidade para que seja aceito (aceitao de si e dos outros)? H anecessidade de um terceiro mediador na relao, ou seja, h necessidadede reconhecimento por parte de um sujeito prximo?

    Em relao a quem so os personagens, eles podem ser humanos ou ani-mais. Quando humanos, o gnero fica bem definido, havendo mais meninasdo que meninos3, porm sem uma predominncia que caracterize prefernciade um gnero sobre outro. So marcadas as diferenas fsicas, sensoriais ecomportamentais. Em duas das histrias, a diferena marcada refere-se raa/etnia4. J quando os personagens so animais, as diferenas so tratadas deforma genrica, no marcadas especificidades5.

    O protagonismo do personagem que carrega a diferena variado. Em al-gumas histrias, o personagem principal tambm aparece como coadjuvanteda narrativa, principalmente quando fica marcada a necessidade de um tercei-ro para mediar a aceitao do outro no meio social.

    Nas sinopses analisadas6, foi interessante perceber que a questo da aceita-o da diferena um dos elementos trabalhados nos enredos da maioria das

    3. Em pesquisa realizada por Silveira (2003), o resultado foi distinto deste: das dez obras analisadas,uma tinha um personagem identificado de forma genrica; em outra, um personagem deimportncia na narrativa, mas no o principal, era feminino. Nas demais histrias, os personagenseram masculinos.

    4. Obra analisada a partir dos catlogos: Menina bonita do lao de fita e O irmo que veio de longe.5. Obras analisadas a partir dos catlogos: Um peixinho especial, A zebrinha preocupada, Draguinho:

    diferente de todos, parecido com ningum.6. Livros de histrias infantis e infantojuvenis analisados no artigo a partir dos catlogos das editoras:

    A chata daquela gorda, Regina Drummond, Editora Cortez; A zebrinha preocupada, Lcia Reis,Editora FTD; Algum muito especial, Miriam Portela, Editora Moderna; Belinha a bailarina, AmyYoung, Editora tica; Draguinho diferente de todos, parecido com ningum, Cludio Galperin,

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    histrias aceitao de si e aceitao pelos outros. As estratgias e os respons-veis por essa aceitao mudam conforme a construo narrativa de cada autor.Em algumas histrias, necessrio que o personagem marcado pela diferenasurpreenda: apesar da deficincia, capaz de realizar alguma coisa! Isso evi-denciado nas seguintes histrias:

    - O irmo que veio de longe - necessidade de um ato herico por parte dopersonagem: [...] Durante uma excurso, Jaci e o irmo de Renato seperdem na mata e ningum consegue encontr-los. o indiozinho quemvai salv-los, conquistando a admirao de todos (Catlogo EditoraCompanhia das Letrinhas, 2005);

    - Belinha a bailarina - apesar da sua deficincia, ela maravilhosa: Masquem precisa ser perfeito quando pode ser simplesmente maravilhoso?(Catlogo Editora tica, 2005);

    - Uma joaninha diferente - ser inteligente e criativo: Uma joaninha sembolinhas descobre uma forma inteligente e criativa de lutar contra opreconceito e a discriminao (Catlogo Editora Paulinas, 2006);

    - No me chama de gorducha - apesar da obesidade, a menina tem fora devontade para reverter a sua situao: Rita sofre de um problema srio:excesso de peso. E detesta o apelido que os meninos da classe lhe deram.Mas ela tem fora de vontade... (Catlogo Editora tica, 2005).

    Em histrias como Urubu queria ser passarinho e O peixinho de asas, os per-sonagens dependem de algum para ajud-los, tanto para aceitarem a si, quan-to para obterem a aceitao de outras pessoas. Contudo, nem sempre as solu-es para a aceitao tm a concordncia da maioria: - Urubu queria serpassarinho: [...] Foi procurar ajuda, queria entender a razo de tanto desprezoe acabou encontrando o urubu-rei. Com ele, Urubuzinho aprendeu que pos-svel vencer o preconceito (Catlogo Editora FTD, s.d.);

    - O peixinho de asas: [...] o peixinho encontra dificuldades para brincar eviver. Quando um bagre encantado aparece para ajudar, todos ficammuito preocupados com a soluo (Catlogo Editora Nova Fronteira,2002).

    Editora tica; Jubonaldo, o leo, Patrcia Gwinner, Editora Paulinas; Longe dos olhos, Ivan Jaf, Editoratica; Menina bonita do lao de fita, Ana Maria Machado, Editora tica; Minha irm diferente,Betty Ren Wright, Editora tica; Na minha escola todo mundo igual, Rossana Ramos, PriscilaSanson, Editora Cortez; No me chama de gorducha, Barbara Phillips, Editora tica; O irmo queveio de longe, Moacir Scliar, Editora Companhia das Letrinhas; O louco do meu bairro, Anna Flora,Editora tica; O peixinho de asas, Maria Alice do Nascimento e Silva Leuzinger, Editora NovaFronteira; Patinho feio, recontado por Ruth Rocha , Editora FTD; P, o pato diferente, ReginaCoeli Renn, Editora FTD; Pelota bolota, Santuza Abras Pinto Coelho, Editora Nacional; Umpeixinho especial, Mrcio Morato Pereira, Editores Associados; Uma joaninha diferente, ReginaClia Melo, Editora Paulinas; Urubu queria ser passarinho, Antonieta Dias de Moraes, Editora FTD.

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    A necessidade de um terceiro, de um personagem mediador na relao dodiferente o outro com os demais personagens faz parte do enredo deoutras histrias, em que um irmo, um parente ou um amigo prximo aparececomo o responsvel por essa aceitao:

    - Algum muito especial: China era diferente das outras crianas porqueera portador da Sndrome de Down. Neste livro, Tico, seu irmo maisvelho, conta como conseguiu estabelecer uma comunicao e uma forteligao com ele (Catlogo Editora Moderna, 2006);

    - Minha irm diferente: O que significa para uma criana ter um irmodeficiente mental? Esse era o problema de Carlo, que aprendeu a amarsua irm Terry do jeito que ela era (Catlogo Editora tica, 2005);

    - O louco do meu bairro: A menina percebe que possvel conviver e gos-tar do garoto chamado de louco pela turma do bairro (Catlogo Edi-tora tica, 2005);

    - Jubonaldo, o leo: Jubonaldo um leo atpico: educado, com hbitosrefinados e muito organizado, morre de medo que os outros saibamdisso. [...] Mas o primo tambm parece diferente dos outros gatos. Osdois acabam confessando que no so exatamente aquilo que os outrosesperam deles. [...] Juntos, decidem enfrent-los (Catlogo EditoraPaulinas, 2006);

    - P, o pato diferente: P trabalhava na marcenaria com seu pai e seusirmos, mas no dava certo. P queria ser msico. Realmente este pati-nho era mesmo diferente. Ele tinha outros sonhos. Vamos torcer para ospais do P darem uma fora pra ele? (Catlogo Editora FTD, s.d.).

    Nas obras mencionadas a seguir, a questo da diferena colocada comoculpa do prprio diferente, sendo que, em ambas, a diferena a obesidade,que tratada como problema a ser superado:

    - Pelota Bolota: Diz que faz regime, mas chupa picol no lugar do caf ecome doce escondida (Catlogo Companhia Editora Nacional, 2005);

    - A chata daquela gorda: A protagonista Simone - era ... uma meninaque no era chata porque era gorda - ela era chata de qualquer jeito!(Catlogo Editora Cortez, 2005).

    Sem aprofundar a discusso, pois no o objetivo deste artigo, considera-mos interessante, contudo, comentar brevemente que a obesidade infantil vemsendo discutida principalmente no mbito da sade pblica e da infncia,havendo investimentos em propaganda institucional no sentido de alerta aodesencadeamento de outros problemas dali resultantes. Nessas histrias, huma lgica construda no sentido de aceitao do sujeito, mas no de sua dife-rena: esta, sim, deve ser curada/superada.

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    Em algumas histrias, o diferente foge como forma de solucionar seus pro-blemas, aprendendo com suas experincias:

    - Draguinho - diferente de todos, parecido com ningum: Quando o peque-no drago percebe que solta gua pelo nariz ao invs de fogo, ficainconsolvel. Ento resolve fugir em busca de um lugar onde haja dra-ges iguais a ele. Na floresta, porm, ele vai tomando contato com asvantagens de ser diferente (Catlogo Editora tica, 2005);

    - Patinho Feio7: Ele era visto entre os outros patinhos como o mais feio detodos. At que um dia, cansado daquela situao, o patinho fugiu parabem longe. Passou por muitos apuros: tiroteio de caadores, ataque deanimais, brincadeiras de crianas malvadas. No vero, encontrou beloscisnes num lago e a descobriu sua verdadeira origem (Catlogo EditoraFTD, s.d.).

    Nas obras at ento analisadas, a responsabilidade para com o diferente ficaa cargo de alguns personagens, porm, em outros livros, esse compromisso dacoletividade:

    - Benedito: Este livro foi escrito sob o desejo de entender e explicar aimportncia da tolerncia para a paz e a felicidade das pessoas que so-frem qualquer tipo de preconceito. Representa, assim, um grito silenci-oso de quem abraa a luta contra a excluso e a discriminao (CatlogoEditora Paulinas, 2006);

    - Aventura no escuro: Aborda de maneira sensvel a questo do deficientevisual, proporcionando s crianas um maior contato e compreenso doproblema (Catlogo Editora Paulinas, 2006);

    - Na minha escola todo mundo igual: Uma escola em que todos os alunosconvivem em harmonia, procurando superar as diferenas e dificulda-des, inclusive fsicas, para que todos sejam, realmente, iguais (CatlogoEditora Cortez, 2005);

    - De onde voc veio? Discutindo preconceitos: O livro trata das origens de umpovo, dando subsdio, assim, discusso sobre o preconceito. Voc vaisentir uma alegria muito grande em ser brasileiro e descobrir como importante valorizar e respeitar as diferenas (Catlogo Editora tica,2005);

    - A zebrinha preocupada: Este livro indicado para explorar as diferenasentre os seres da mesma espcie ressaltando o respeito que devem mere-cer todos aqueles que, por alguma razo, diferem do grupo em que con-vivem (Catlogo Editora FTD, s.d.).

    7. Patinho feio no uma obra da literatura nacional, nem foi escrita na emergncia das polticas deincluso de nosso pas. Mas a histria apresentada pela Editora FTD uma recontagem feita porRuth Rocha, autora nacional reconhecida por suas obras infantis e infantojuvenis.

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    Dessas diversas histrias at aqui mencionadas, duas delas foram escolhidaspelas professoras que foram acompanhadas no seguimento da pesquisa. Soelas:

    - Menina bonita do lao de fita (Machado, 2004), escolhida pela professo-ra que trabalhou com uma turma de 4 srie. A histria infantil reco-mendada para 1 e 2 sries (conforme catlogo virtual), porm nohouve rejeio por parte da turma pesquisada. O enredo trata de expli-car os motivos pelos quais a menina possui determinada diferena tnico/racial , por meio de dados passveis de serem compreendidos,experimentados ou at mesmo comprovados a partir de registros histri-cos. A sinopse no catlogo virtual da editora diz: O coelhinho brancoquer ter uma filha pretinha como aquela menina do lao de fita. Mas eleno sabe como a menina herdou aquela cor (Catlogo Virtual Editoratica, 2007).

    - Draguinho - diferente de todos, parecido com ningum (Galperin, 2005)foi a histria escolhida pela professora de Educao Infantil, turma depr-escola. Estava recomendada para 1 e 2 sries no catlogo virtual. Asinopse do catlogo impresso explica: Est na hora de Draguinho e seusamigos comearem a aprender a soltar fogo pelo nariz. Mas o pequenodrago fica inconsolvel quando descobre que s consegue soltar gua.Ento resolve fugir em busca de um lugar onde haja drages iguais aele. A histria procura abordar a trajetria empreendida pelo persona-gem no sentido de aceitar-se a si mesmo e de ser aceito pelo grupo(Catlogo Editora tica, 2005).

    Cada uma das professoras, aps realizar a escolha do livro, planejou e execu-tou atividades relativas histria. Nossa nica orientao foi de que a temticada diferena fosse abordada a partir das estratgias que elas julgassem adequa-das.

    As professoras utilizaram a estratgia de contagem da histria, porm comalgumas distines. Menina bonita do lao de fita foi lida por uma das alunas,que atendeu ao pedido da professora. Durante a leitura, a professora mostravaas imagens do livro e interrompia com perguntas aos alunos. J a histria doDraguinho foi contada pela professora, amparada no texto e nas imagens, queeram mostradas na sequncia da narrativa. As atividades realizadas pelos alunosforam, em ambos os casos, a elaborao de cartaz coletivo a partir da colagemde material produzido individualmente (na turma de 4 srie, utilizou-se aescrita; na turma de pr-escola, o desenho).

    A turma de 4 srie foi motivada a escrever, em pequenos papis, algumasituao em que perceberam o preconceito (em relao a si ou em relao a

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    outras pessoas). O ttulo do cartaz, sugerido pela professora, foi Com a bocano trombone, fazendo uma analogia denncia de preconceitos.

    Para a histria do Draguinho, a professora sugeriu aos alunos o desenho deum autorretrato como cada um se v. O ttulo do cartaz foi Nossa turmi-nha: amigo que amigo..., procurando desenvolver a ideia de que, mesmocada um sendo diferente do outro, devemos ser amigos uns dos outros e de queamigo brinca junto, respeita, sabe dividir, ajuda, cuida palavrasescolhidas pelos alunos a partir de discusso orientada pela professora.

    Alguns aspectos que consideramos interessantes de serem analisados: ambasas professoras, mesmo com histrias distintas, enfocaram a questo da convi-vncia entre as pessoas, ressaltando ser necessrio respeito, aceitao e tolern-cia. Isso ficou evidenciado com o comentrio do aluno da pr-escola: Ser dife-rente no importa. O importante ter amigos. Tambm nas duas intervenes,a argumentao de bom que sejamos diferentes ficou bem marcada. Essasnarrativas encontram-se bem articuladas aos discursos produzidos e colocadosem movimento pelos textos das polticas pblicas e pelas publicaes que fa-zem referncia a elas.

    Mesmo havendo uma permanente afirmao da positividade da diferena,em alguns momentos as falas de uma das professoras remeteram para o sernormal, como, por exemplo: ser diferente no to ruim assim, ele juntoua sua diferena com o outro normal ou, ainda, o coelho banguela no comiacenoura, tomava suco de cenoura, coitado. Percebe-se aqui a diferena sendonarrada como o desvio de algo que j est normatizado, que a referncia.Como argumentam alguns autores (Duschatzky; Skliar, 2001; Veiga Neto,2001; Silva, 2000, entre outros), os discursos sobre a aceitao da diferenapregam uma lgica da tolerncia, mas permanentemente remetem a uma nor-ma transparente, da qual a diferena diverge.

    interessante tambm analisar o dilogo reiterado entre aluno e professora,quando esta dizia: menina pretinha. A cada referncia feita, o aluno interfe-ria: morena. A professora insistiu, argumentando que era a forma utilizada nahistria, mas o menino manteve sua indignao: morena. At que a professo-ra perguntou: mas por que no posso dizer pretinha, ao que outro alunorespondeu: preconceito, professora. Nesse breve dilogo, percebemos oquanto a discusso sobre as melhores formas de nomeao das diferenas umaestratgia presente nos movimentos sociais e nos espaos escolares, regulariza-da nos textos oficiais e evidenciada nesse dilogo informal entre professora ealunos. Segundo Veiga Neto (2001, p. 108), trata-se de uma proteolingustica dada por algumas figuras de retrica no sentido de protegermo-nos dos incmodos que palavras como normal e anormal podem nos causar.

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    Algumas consideraes, na possibilidade de novas articulaes

    No decorrer de nossa investigao, foi possvel estabelecer algumas conside-raes em relao forma como o outro/a diferena vem sendo narrado naliteratura infantil. Foi possvel comprovar que existe uma intensa produoliterria sendo estimulada e distribuda entre crianas e que os espaos escola-res se constituem em espao privilegiado de consumo dessas obras, comprova-do pelos altos investimentos das instncias gestoras das polticas educacionaisna qualificao das bibliotecas das escolas pblicas. Os temas da incluso e daaceitao das diferenas ganham visibilidade e so demarcados pelas editorasnacionais como itens que atendem aos temas transversais, privilegiando assun-tos como diferenas raciais/tnicas, deficincias e comportamentos, principal-mente.

    O que se pode perceber nos enredos uma demarcao da diferena comodesvio, como algo que se distingue/difere da maioria. Descrevem-se situaesde estranhamento que a presena do outro provoca. Como argumenta Lacerda(2004, p. 4), a normalidade s passa a ser uma questo quando algo no seencaixa. Assim, h uma repetio de enredos em que a diferena identificada/nomeada, e a partir da desenvolve-se uma trama no sentido de superao e/ouaceitao por parte do prprio sujeito e do grupo sua volta.

    Aproximando-nos de Amaral (2001, p. 137), percebemos o que a autorachama de emergncia de esteretipos genricos referidos diferena significati-va (grifo de autora), em que ao diferente atribudo, em geral, o papel devtima, heri ou vilo. Dependendo do papel a ele conferido, a histria desen-rola-se no sentido da superao, do reconhecimento ou do arrependimento.Mas, nessas diferentes situaes, a aceitao e a tolerncia so enunciadas comoatitudes almejadas em relao ao outro. Porm, ele prprio deve aceitar-se e,de certa forma, proceder a algum movimento no sentido de aproximar-se danormalidade. Se no est em condies disso, a vtima; se supera, o heri.Mas tambm outros so culpabilizados pela diferena e pela no superao:so os viles.

    Quando essas histrias chegam ao seu pblico de destino, os sentidos soreafirmados, mas tambm podem criar novas configuraes. Nos momentos desala de aula observados, percebeu-se a predominncia da abordagem da boa enecessria convivncia entre os diferentes. A aceitao e a tolerncia, mesmono sendo nomeadas diretamente, fazem parte da lgica que perpassa as narra-tivas construdas por professoras e alunos.

    Sabemos que nossas anlises no contemplam a infinidade de sentidos pos-sveis de constiturem-se a partir das leituras das histrias infantis. Nem seria esseo nosso objetivo. Procuramos aproximar-nos dos processos de produo, consu-

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    mo, regulao, representao cultural das diferenas em espaos escolares, natentativa de capturar algumas das possibilidades que ali se inscrevem. Sabemosdas limitaes/redues que nossos olhares podem ter produzido. Porm, emnenhum momento almejamos a totalidade. Sabemos que tambm ns, pesqui-sadores, estamos engendrados nas tramas das mltiplas significaes.

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    Recebido em 10 de maro de 2009 e aprovado em 02 de dezembro de 2009.