51
Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin Trabalho apresentado no Seminário de Metodologia de Análise do Direito do Curso de Doutoramento da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa regido pelo Prof. Doutor José Lamego Setembro de 2016

Lacunas e Sistemas Normativos - alexandracoelhomartins.com · O problema das lacunas é um tópico clássico da teoria do direito de orientação analítica e reclama, como ponto

Embed Size (px)

Citation preview

Lacunas e Sistemas Normativos

A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

Trabalho apresentado no Seminário de Metodologia

de Análise do Direito do Curso de Doutoramento da

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

regido pelo Prof. Doutor José Lamego

Setembro de 2016

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

iii

Abreviaturas

IVA Imposto sobre o Valor Acrescentado

LPN Lógica de Proposições Normativas

LN Lógica de Normas

SDL Standard Deontic Logic

TJUE Tribunal de Justiça da União Europeia

UA Universo de Acções

UC Universo de Casos

UD Universo de Discurso

UP Universo de Propriedades

US Universo de Soluções

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

v

Resumo

O problema das lacunas é um tópico clássico da teoria do direito de orientação

analítica e reclama, como ponto prévio, a resposta à questão da incompletude dos

sistemas jurídicos.

A partir da perspectiva logicista-formal de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin,

procede-se à análise das propriedades lógicas e formais dos sistemas normativos, por

forma a alcançar uma conclusão sobre a respectiva (in)completude, necessária ou

contingente, e obter um quadro definitório de lacuna normativa.

Pretende-se delimitar o conceito de lacuna normativa e distingui-la de figuras

próximas: a lacuna de conhecimento, a lacuna de reconhecimento, a lacuna axiológica e a

deficiência normativa ou lacuna de lege ferenda.

Os poderes do juiz e a base fundacional da sua decisão não são idênticos num caso

e noutro(s), pelo que a distinção não reveste implicações (apenas) teóricas.

Em jeito de nota final, apresentam-se alguns pontos de cepticismo sobre a

abordagem lógica.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

1

Abstract

Legal Gaps are a classical topic of analytical Legal Theory. As a preliminary point,

the question regarding completeness of the legal system has to be answered.

In this text, we analyze the logical and formal properties of normative systems,

from the formal-logic perspective of Carlos Alchourrón and Eugenio Bulygin, so as to

reach a conclusion on whether normative systems are (in)complete, and to obtain a

framework for the definition of legal gap.

The objective is to set out a clear notion of legal gap enabling to distinguish it from

other similar concepts with which it is frequently confused with: gap of knowledge, gap of

recognition, axiological gap and law’s imperfection or gap of lege ferenda.

Judges discretionary authority and the grounds for adjudication are not identical in

the case of legal gaps, thus, the distinction does not trigger (only) theoretical implications.

As a final remark, we underline some points of skepticism on the logical approach.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

2

I. INTRODUÇÃO

Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin reconstroem o conceito de sistemas

normativos desenvolvido pela lógica deôntica, na perspectiva de sistemas lógicos

puramente formais, com o objectivo de fornecer ao discurso normativo, que não é

estritamente formal (racional), nem estritamente empírico, uma base pré-analítica

essencial à resolução dos problemas da teoria do direito.

Partindo desta perspectiva, analisam as propriedades lógicas e formais dos

sistemas normativos - completude, consistência (ou coerência) e independência – e, em

função das conclusões alcançadas, delimitam o conceito de lacuna jurídica, inerente à

incompletude ou subdeterminação deôntica, que constitui o objecto deste texto1.

Os autores baseiam-se na distinção, que já remonta a Jeremy Bentham, entre

normas (enunciados prescritivos) e proposições acerca de normas (enunciados

descritivos) e declinam a tese da completude conceptual necessária dos sistemas

jurídicos2. Concluem pela existência de sistemas incompletos que são, aliás, a grande

maioria e o jurista é confrontado com o problema das lacunas.

A completude é, porém, admitida pelos referidos autores como atributo

contingente dos sistemas normativos e ainda como ideal racional para o qual todos os

sistemas jurídicos devem tender.

Nas ordens jurídicas modernas existem situações em que esta qualidade ideal

pode ser empiricamente verificada, como sucede com o exemplo típico do direito penal,

graças à regra de fecho do sistema (closure rule): “nullum crimen, nulla poena sine lege”3.

1 Um outro tópico que a análise dos sistemas normativos suscita é o das antinomias normativas, devidas a inconsistência ou sobredeterminação deôntica, do qual aqui não se cuida, por extravasar a problemática das lacunas. 2 Um dos seus principais percursores, Hans Kelsen, refere que “quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo realizar determinada conduta, permite esta conduta. A aplicação da ordem jurídica vigente não é, no caso em que a teoria tradicional admite a existência de uma lacuna, logicamente impossível. Na verdade, não é possível neste caso a aplicação de uma norma jurídica singular. Mas é possível a aplicação da ordem jurídica – e isso também é aplicação do Direito. (…) o Direito vigente é sempre aplicável, pois não há “lacunas” neste sentido” – in Teoria Pura do Direito, 2.ª edição (1960), Tradução de João Baptista Machado, 7.ª edição da tradução portuguesa, Almedina, 2008, pp. 275-279 (excertos retirados de p. 275 e de p. 277 respectivamente). 3 Regra que consagra, no direito penal, a permissão de todas as condutas que não sejam proibidas. Salienta-se que não estamos, porém, num sistema absolutamente fechado, este só o é em relação ao universo (universo de casos

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

3

O ideal de completude pressupõe que as normas de um dado sistema permitem

correlacionar todos os casos com alguma solução, atribuindo um significado normativo a

todas as acções humanas, numa versão do Princípio de Razão Suficiente “nihil est sine

ratione”, pressuposto usual da actividade científica, enquanto actividade racional, seja de

natureza empírica, formal ou normativa4.

Da exigência que os sistemas devam-ser (as they ought to be) completos, não

pode inferir-se, no entanto, que o sejam (as they are), mas apenas que um “bom” sistema

normativo é completo, à semelhança do que sucede com a “rule of law”, como

representação de um ideal moral de juridicidade, que não se encontra preenchido em

todos os sistemas jurídicos (degenerate law) e que pode ser subvertido sem, contudo, tais

sistemas deixarem de ser identificados com a coisa direito5.

O problema das lacunas é um tópico clássico da filosofia ou teoria do direito de

orientação analítica indissociável de uma correcta abordagem metodológica no processo

de realização do direito. É à face de uma adequada delimitação do conceito de lacunas

que se podem identificar e distinguir realidades próximas, que com aquelas não se devem

confundir.

Para além de legítimas preocupações de cariz analítico, o tema da integração de

lacunas dita desvios ao modelo tipicamente cognoscitivo e dedutivo do processo de

aplicação do direito, porquanto, à face da inevitável obrigação de julgar6, coloca o juiz na

posição de criar uma norma individual, que reveste necessariamente carácter retroactivo

relevantes) das soluções penais, pois a permissão penal não vigora noutros domínios, designadamente civis ou disciplinares. As regras de fecho ou clausura de um sistema jurídico são regras de inferência, i.e., regras de segundo nível, que se referem aos enunciados do sistema, e têm natureza supletiva, pelo que apenas se aplicam quando não se consegue inferir o carácter ou conteúdo deôntico [de obrigação, permissão ou proibição] de uma conduta. Estas regras tornam o sistema a que respeitam completo e preservam, em princípio, a sua consistência (dizemos em princípio, porque pode assim não ser nos sistemas normativos hipotéticos, sendo-o, contudo, nos sistemas categóricos). Para assegurar a consistência, as regras de fecho devem ser permissivas no sentido de “toda a acção não proibida ser permitida” – cf. Carlos E. Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems, Wien New York, Springer Verlag, 1971, pp. 134-144. 4 Cf. Carlos E. Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 6 e 171. 5 Cf. John Gardner, “Hart on Legality, Justice and Morality” in Law as a Leap of Faith, Essays on Law in General, Oxford University Press, 2012, pp. 229-235, e Carlos E. Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 165-180. 6 Veja-se no sistema português o artigo 8.º do Código Civil, que, sob a epígrafe “Obrigação de julgar e dever de obediência à lei” dispõe no seu número 1 que “[o] tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio”.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

4

e não é passível de ser encarada, como preconiza a rule of law, como norma de

orientação da conduta em causa (ou, noutra perspectiva, razão para a acção), mas antes

como um ex post facto.

As lacunas põem, desta forma, à prova alguns “dogmas” tradicionais, a começar

pelo princípio da separação de poderes como limite da função jurisdicional, passando

pelo princípio da legalidade como fundamento da decisão (dever de obediência à lei) e o

princípio da não retroactividade. Razão pela qual reclamam critérios de identificação

precisos e directrizes metodológicas de preenchimento (incluindo as vinculações do juiz

no processo decisório), uma vez que as decisões dos casos omissos não assentam no

sistema primário, de fonte legislativa.

A própria lei pode prever remédios para as situações de lacuna, designadamente

através de regras semelhantes à prevista no artigo 10.º do Código Civil, ou de outras

regras de fecho do sistema. Mantém-se, mesmo nestas condições, a importância da

delimitação do conceito e a sua correcta aferição, pois destas continua a depender a

conformação material (solução) do caso.

Com efeito, quando o artigo 10.º do Código Civil, sob a epígrafe “Integração das

lacunas da lei”, determina, no seu n.º 1, que “[o]s casos que a lei não preveja são

regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos” e dispõe, no seu n.º 3, que

“[na] falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio

intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema” importa precisar

o respectivo âmbito de aplicação.

Bem assim, quando, sob a égide do princípio da legalidade, numa formulação

estrita, o Código Penal Português proíbe o recurso à analogia para qualificar um facto

como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de

segurança correspondente (artigo 1.º, n.º 3), ou a Lei Geral Tributária veda a integração

analógica em matéria de incidência tributária, taxas, benefícios fiscais e garantias dos

contribuintes (artigo 11.º, n.º 4), cabe identificar se na situação em causa existe, na

verdade, uma ausência de conformação jurídica do caso, i.e., uma lacuna.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

5

Não é, pois, indiferente à (adequada) aplicação destas regras a correcta

identificação dos casos omissos e a sua diferenciação relativamente a outras situações.

Em matéria penal e tributária assinalam-se os efeitos permissivos resultantes do fecho do

sistema previsto em caso de lacunas, o que pode conduzir a sentidos decisórios variados,

em função da constatação ou não de uma lacuna, e, dependendo das circunstâncias, por

vezes opostos.

Distintos das lacunas são, por exemplo, os casos de indeterminação semântica,

vaguidade, ou “penumbra”. Neste ponto, e como salienta Herbert Hart, a textura aberta

do direito encerra sempre um grau de indeterminação e a incerteza constitui uma

vicissitude inevitável resultante da natureza da linguagem, suporte do direito, e dos

limites daquela.

Em geral, qualquer norma tem um núcleo central de casos nítidos, incontestáveis

(“core cases”) e, em simultâneo, uma “orla de imprecisão”, de dúvida, de variantes, que

também exigem uma classificação7. Neste sentido, segundo Hart: “There must be a core

of settled meaning, but there will be, as well, a penumbra of debatable cases in which

words are neither obviously applicable nor obviously ruled out. These cases will each have

some features in common with the standard case; they will lack others or be accompanied

by features not present in the standard case. Human invention and natural processes

continually throw up such variants on the familiar, and if we are to say that these ranges

of facts do or do not fall under existing rules, then the classifier must make a decision

which is not dictated to him”.8

Aliás, esta penumbra é, por vezes, intencional e não uma deficiência. A porosidade

dos textos legais pode ter finalidades diversas, desde logo, deixar margem de apreciação

7 Cf. Herbert Hart, O Conceito de Direito (trad. “The Concept of Law” [1961], incluindo o pós-escrito da segunda edição [1994], a cargo de A. Ribeiro Mendes), 6.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, Lisboa, pp. 134-149. Hart considera que a escolha entre alternativas abertas, nestas circunstâncias, sem prejuízo de não ser arbitrária ou irracional não é mero raciocínio silogístico e implica uma actividade judicial criadora, um acto de vontade e não mera actividade cognoscitiva. Este autor perfilha a posição de que os sistemas jurídicos comportam lacunas (incompletude) e que podem existir várias soluções para o mesmo caso, contrariamente a Ronald Dworkin que, alicerçado na sua visão interpretativa de sistema jurídico e no predicado de consistência, reclama a possibilidade de existir sempre uma e uma só solução para cada caso (one right answer), numa “resposta directa” à tese de Hart sobre a textura aberta e a inerente judicial discretion – cf. para maiores desenvolvimentos Ronald Dworkin, Law’s Empire, Harvard University Press, London, 1986. 8 Cf. Herbert Hart, “Positivism and the Separation of Law and Morals”, in Harvard Law Review, 71(4), 1958, pp. 593-629 (transcrição de p. 607).

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

6

aos órgãos executivos (administração) ou jurisdicionais, como forma optimizada de

alcançar a justiça na geometria variável dos casos concretos. Idêntica asserção pode ser

feita a propósito das lacunas.

Importa não esquecer que a um sistema jurídico se pede que satisfaça racionais

ideais de consistência e completude, mas também de justiça. A ideia de completude pode

ser sacrificada a ideais de justiça, circunstância em que deixar lacunas é uma das opções a

equacionar pelo legislador, por considerar que a solução “geral e abstracta” gera

injustiças. Tal não significa o abandono do ideal de completude, pois o legislador pode

“delegar” que o sistema seja completado por outro órgão (administrativo ou

jurisdicional). O requisito (ideal) da completude mantém-se.

Um exemplo de indeterminação deliberada em matéria fiscal9 é-nos dado pela

norma constante do artigo 4.º, n.º 1 do Código do IVA. A incidência objectiva de IVA é

delimitada por dois conceitos base: as operações sobre bens (corpóreos) e as prestações

de serviços. A definição das duas tipologias de operações é realizada através de técnicas

diversas, sendo as prestações de serviços conformadas, a título residual, como quaisquer

operações efectuadas a título oneroso que não constituam transmissões, aquisições

intracomunitárias ou importações de bens (artigo 4.º, n.º 1 do Código do IVA), numa

formulação marcadamente abrangente e díspar daquela que, para efeitos cíveis, é a

noção de contrato de prestação de serviços constante do artigo 1154.º do Código Civil10.

O desiderato desta redacção é a aplicação do imposto ao maior número de casos

possíveis (atenta a vocação do IVA como broad based tax) e, na prática, funciona quase

como uma regra de fecho do sistema, no sentido de que tudo o que não seja enquadrável

na classificação de operação sobre bens (transmissão, importação ou aquisição

intracomunitária de bens) acaba por cair na categoria de prestação de serviços e é

tributável a esse título (embora se trate de uma “regra de fecho” impositiva e não

permissiva).

9 Sujeita aos princípios da legalidade, nas vertentes de reserva de lei e tipicidade e, por tradição, avessa ao fenómeno de integração de lacunas. 10 Segundo o qual “[c]ontrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.”

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

7

Se uma tal definição pela negativa pode constituir um argumento para afastar a

invocação de uma lacuna11 (colocando a discussão jurídica noutro patamar,

nomeadamente o de saber se estará observado o princípio da tipicidade perante uma tal

amplitude da “factispecies” tributária), suscita outros problemas jurídicos no plano da

individualização que têm reclamado o constante desenvolvimento jurisprudencial do

TJUE12. São, todavia, problemas distintos, cuja abordagem metodológica apresenta

contornos e soluções diferenciados.

Assim, retomando o exemplo, perante a questão concreta de saber se uma

indemnização contratual por incumprimento do período mínimo de fidelização está, ou

não, abrangida pelo campo de incidência objectiva do IVA, a resposta não deve ser

alcançada pela consideração de uma lacuna, da qual resultaria por singelo o regime de

não sujeição a imposto, mas, ao invés, pela delimitação do conceito de prestação de

serviços, no sentido de aferir se a referida indemnização pode considerar-se, e em que

condições, a contrapartida (remuneração) de uma prestação de serviços. Como é

antecipável, as soluções de um e outro caminho são bem diversas.

Contextualizámos acima o âmbito desta investigação – a completude dos sistemas

jurídicos e as lacunas sob uma perspectiva logicista-formal. Ao longo do texto,

procuraremos dar nota dos principais argumentos lógicos identificados por Carlos

Alchourrón e Eugenio Bulygin em prol da existência de lacunas e a sua correcta

demarcação. O nosso objectivo não é, contudo, puramente descritivo, pelo que na parte

final problematizamos alguns pontos em jeito de conclusão.

Cabe fazer a ressalva de que o campo de discussão do presente trabalho não versa

a questão (de índole metodológica) respeitante aos procedimentos que os juristas devem

usar (ou usam) para encontrar a solução do caso omisso e resolver uma situação de

11 O que queremos dizer é que qualquer operação/actividade que não corresponda a uma operação sobre bens estaria sempre abrangida pelo sistema, na qualificação residual de prestação de serviços. Não haveria, pois, possibilidade de lacunas. 12 São múltiplos os casos em que o TJUE tem sido chamado a pronunciar-se sobre a interpretação do conceito de prestação de serviços, pois, afinal, nem tudo é prestação de serviços à luz da Directiva que estabelece o sistema comum do IVA na União Europeia (Directiva 2006/112/CE, de 28 de Novembro de 2006, JO L 347, de 11 de Dezembro de 2006). A título de exemplo, podem ver-se os seguintes Acórdãos do TJUE, disponíveis on line em curia.europa.eu ou em eur-lex.europa.eu, Apple and Pear, 102/06, de 08.03.88; Tolsma, C-16/93, de 03.03.94; Jürgen Mohr, C-215/94, de 26.02.96; Landboden, C-384/95, de 18.12.97; Kennemer Golf, C-174/00, de 21.03.02; SPÖ Kärnten, C-267/08, de 06.10.09; e Le Rayon D’Or, C-151/13, de 27.03.14.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

8

lacuna, seja ampliando o alcance das normas existentes, ou mediante a introdução de

novas normas por apelo a argumentos como a analogia, o argumento simétrico a

contrario, os princípios gerais de direito, ou natureza das coisas, entre outros.

Esta exposição situa-se numa fase logicamente anterior, a jusante, e prende-se

com a delimitação do conceito de lacuna, antecedente e condição prévia necessária à sua

concreta recognição e subsequente preenchimento.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

9

II. UMA ANÁLISE LÓGICA DOS SISTEMAS NORMATIVOS

1. Lógica deôntica. Normas e proposições normativas. Validade e verdade

O modelo formal de Alchourrón e Eugenio Bulygin para os sistemas normativos

assenta na lógica deôntica padrão (Standard Deontic Logic “SDL”) e no trabalho

conduzido por Georg Henrik von Wright13 que, em primeira linha, desenvolveu estudos

lógicos aplicados ao raciocínio normativo, numa derivação da clássica lógica

proposicional, adicionando ao cálculo proposicional um par de operadores deônticos

monádicos: O “é obrigatório que” e P “é permitido que”14.

A matéria-prima são as normas (prescritivas) encaradas como entidades

linguísticas, que constituem um caso particular de uso prescritivo da linguagem, numa

concepção pragmática ou expressiva15. A forma gramatical e lógica dos enunciados

jurídicos que expressam prescrições é a de orações hipotético-condicionais16. O termo

norma é empregue em sentido estrito para designar as expressões ou enunciados que

relacionam casos com soluções. Um conjunto de normas é um sistema normativo17.

A análise lógica moderna revela-se eficaz na aplicação a expressões linguísticas,

como conceitos puramente sintácticos, referidos à estrutura sintáctica da linguagem, não

a sentidos ideais, essências. Nesta medida, como sublinha José Lamego, “se a lógica trata

de relações de consequência entre uma conclusão e as suas premissas, então as técnicas

lógicas podem, em princípio, ser usadas para a “reconstrução” formal das inferências

normativas.”18

13 A obra de referência de Georg Henrik von Wright é, neste âmbito, Norm and Action. A Logical Enquiry, London, Routledge & Kegan Paul, 1963. Os autores reconhecem ainda as influências de Rudolf Carnap e Alfred Tarski, sobre o conceito de sistema dedutivo, e de filósofos do direito de matriz positivista: Hans Kelsen, Alf Ross e Herbert Hart. 14 Cf. Georg Henrik von Wright, Norm and Action …, ob.cit., pp. 17-34. Com desenvolvimento adicional, José Lamego, que salienta a influência do positivismo lógico de Viena sobre von Wright, in Elementos de Metodologia Jurídica, 2016, no prelo. Exemplar em ficheiro informático amavelmente cedido aos alunos do Doutoramento em Direito da Universidade Nova de Lisboa, no âmbito do qual foi produzido este texto e que se agradece) p. 188. 15 Em contraposição, a concepção mais tradicional, de base semântica, considera as normas como entidades semânticas, de sentidos ou significados, puramente ideais ou conceptuais. Para mais desenvolvimentos sobre esta distinção veja-se José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 192. 16 Cf. José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 205. Às normas hipotéticas contrapõem-se as normas categóricas. 17 Se bem que a inversa não é verdadeira, pois um sistema normativo pode conter outros enunciados para além de normas – cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit, p.15. 18 Cf. José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 186.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

10

Contudo, como os enunciados normativos não são verdadeiros nem falsos, mas

válidos ou inválidos (por referência aos respectivos critérios de identificação e validade),

têm por esse motivo “menor” aptidão para constituírem objecto de explicação científica,

que radica em proposições verdadeiras ou falsas. Validade e verdade não são

sinónimos19.

Este obstáculo é superado através de uma lógica de proposições sobre normas,

i.e., de expressões normativas interpretadas descritivamente, às quais assiste a

qualificação de verdadeiro/falso, configurando uma Lógica de Proposições Normativas

(“LPN”)20. Neste sentido, von Wright afirma que a lógica deôntica é uma teoria de

expressões interpretadas descritivamente e acrescenta que as leis (princípios, regras) que

são específicas desta lógica respeitam a propriedades lógicas das próprias normas, que

são então reflectidas em propriedades lógicas das proposições normativas21.

O modelo em análise restringe-se às normas prescritivas, consideradas como

enunciados que se empregam para ordenar, proibir ou permitir condutas humanas (“o

que deve ser feito”). As proposições normativas são enunciados descritivos que se usam

para transmitir informações acerca das normas ou das obrigações, proibições ou

permissões por estas estabelecidas.

Merece uma breve referência outra concepção, que se designa por semântica ou

hilética, que sem prejuízo de reconhecer que às normas não assistem valores de verdade,

considera que lhes correspondem outros valores (“válido” e “inválido”) que se

comportam da mesma maneira que “verdadeiro” e “falso”. Com base nesta analogia

formal, preconiza-se a construção de uma lógica de normas. O debate entre as duas

concepções está na origem de uma conhecida troca de correspondência que, durante

anos, ocorreu entre Hans Kelsen (concepção expressiva) e Ulrich Klug (concepção

19 Hans Kelsen refere a este propósito que a ciência jurídica apenas pode descrever o Direito, ela não pode prescrever seja o que for. “[A]s proposições normativas formuladas pela ciência jurídica, que descrevem o Direito e que não atribuem a ninguém quaisquer direitos e deveres, podem ser verídicas ou inverídicas, ao passo que as normas de dever-ser, estabelecidas pela autoridade jurídica – e que atribuem direitos e deveres aos sujeitos jurídicos – não são verídicas ou inverídicas mas válidas ou inválidas”. Cf. “A Teoria Pura …”, ob.cit., p. 85. 20 Não abordamos aqui a Lógica das Normas (“LN”) ou lógica normativa acolhida por Carlos Alchourrón e, mais tarde, por von Wright. Sobre este tópico, vide José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., pp. 197-198. 21 Referindo-se à lógica deôntica, afirma que esta é “a theory of descriptively interpreted expressions” - cf. Georg Henrik von Wright, Norm and Action …, ob.cit., pp. 134.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

11

semântica), em que Ulrich Klug defendia a analogia entre “validade” e “verdade” e Hans

Kelsen rejeitava a correspondência entre “validade” e “verdade” (o isomorfismo entre a

lógica das proposições normativas e a lógica das normas só seria verificável em

determinadas condições ideais que, na prática, não se constatam)22.

A lógica deôntica é um sistema lógico adequado para a reconstrução do modelo

ideal logicista-dedutivista da aplicação do direito e alinha com a tendência moderna de

prevalência do conceito de consequência dedutiva sobre princípios (axiomas ou

postulados).

Esta asserção não é prejudicada pelos recentes desenvolvimentos trazidos pela

“lógica não monotónica” ou lógica do raciocínio corrigível ou revogável (defeasible

reasoning), referente aos raciocínios cujas conclusões não estão estritamente implicadas

pela informação disponível e que podem ser corrigidos ou revogados se nova informação

for adquirida.

Como salienta José Lamego, não é necessário abandonar o quadro da lógica

clássica, que, com ligeiras adaptações, pode acolher um sistema não monotónico “em

termos de uma lógica dos condicionais revogáveis (defeasible conditionals), como

formalização lógica do reforço do antecedente normativo”. Desta forma, ao acrescentar-

se ao antecedente normativo a propriedade relevante (por exemplo, o homicida ter agido

em legítima defesa – “reforço do antecedente”), revoga-se ou corrige-se a conclusão23.

2. Concepção de sistema, sistema normativo e completude

A moderna concepção de ciência pôs em crise a clássica dicotomia aristotélica

entre, por um lado, as ciências racionais e formais, que partiam de princípios aceites

como auto-evidentes (axiomáticos) e prosseguiam por dedução lógica, regidas pelo

racionalismo e pelos postulados da evidência e da dedutividade, cujo paradigma é a

22 Cf. Hans Kelsen e Ulrich Klug, , Normas Juridicas y Analisis Logico, Centro de Estudios Constitucionales, 1988 Madrid, em especial o prólogo de Eugenio Bulygin, pp. 9-26, no qual este conclui que a concepção de Ulrich Klug reclama a elaboração de uma lógica específica das normas, passo que lhe faltou dar. 23 Cf. José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 205. A lógica deôntica tradicional é uma lógica monotónica - o acréscimo de uma premissa adicional a um argumento válido resulta num novo argumento válido Num sistema lógico não monotónico o acréscimo de nova informação pode envolver a perda de validade do argumento (p. 203).

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

12

matemática, e, por outro lado, as ciências empíricas, sob a égide do empirismo e dos

postulados de realidade e verdade.

As ciências racionais e empíricas passaram a usar o mesmo sistema dedutivo que,

entretanto, ganhou vida sem o postulado da evidência. A diferença reporta-se agora à

selecção das primeiras afirmações do sistema (axiomas). Temos, assim, problemas

empíricos, relativos à selecção da base (axiomas) do sistema, e problemas racionais ou

lógicos, relativos à dedução e consequências que se extraem dos axiomas. Estes últimos

são os problemas de sistematização que subjazem à análise lógica e à reconstrução do

raciocínio normativo.

Na ciência do direito, esta visão repercute-se no afastamento da(s) doutrina(s)

jusnaturalista(s) cimentada(s) no sistema racionalista (ideal). O direito positivo substitui o

direito natural e surge um novo conceito de sistema jurídico que provém da aceitação

dogmática das normas do legislador positivo24.

Os axiomas do sistema já não são auto-evidentes, nem imutáveis, mas normas

contingentes emanadas de seres humanos. A tarefa do jurista apresenta, neste contexto,

duas vertentes, descobrir os princípios gerais subjacentes às normas (indução jurídica) e

inferir consequências desses princípios gerais e das normas positivas a fim de resolver os

casos (genéricos e individuais).

A dogmática jurídica continua a ser uma ciência eminentemente racional (não

empírica). Com efeito, o importante não é determinar o que os juízes fazem, mas o que

devem fazer25.

24 Esta importante mudança produz-se no século XIX, com o movimento de codificação napoleónica em França, o surgimento da Escola Histórica de Friedrich Carl von Savigny na Alemanha e, no Reino Unido, as doutrinas positivistas do utilitarismo de Jeremy Bentham e John Austin. Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 50-51. 25 Esta posição não é unívoca. Têm sido plúrimas as abordagens que, unificadas no seu pendor anti-formalista, ensaiaram fundar a ciência jurídica numa base empírica, a partir da primeira metade do século XX, como a escola da livre investigação científica, (François Gény), a jurisprudência dos interesses (Philipp Heck), o Movimento do Direito Livre (Hermann Kantorowicz), o realismo jurídico norte-americano (Oliver Holmes, John Gray, Karl Llewellyn, Jerome Frank), incluindo a recente vertente desconstrucionista ou pós-estruturalista (Roberto Unger, Duncan Kennedy) e o realismo jurídico escandinavo (Axel Hägerström, Karl Olivecrona e Alf Ross). Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., p.52. Note-se que a referência efectuada não tem pretensões de exaustividade.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

13

O carácter empírico de uma ciência não é, todavia, conceptualmente incompatível

com uma estrutura dedutiva face ao moderno conceito de sistema, que somente

distingue entre enunciados primitivos ou axiomas e enunciados derivados ou teoremas. O

conceito de sistema é baseado no de consequência dedutiva que passa a ocupar um lugar

central. A noção de consequência depende das regras de inferência que sejam admitidas.

Um sistema dedutivo é um conjunto de expressões que contêm todas as suas

consequências, sendo o sistema axiomático uma espécie do género sistema dedutivo, ou

seja, um conjunto de consequências de um conjunto finito de expressões ou enunciados:

a base axiomática ou a base do sistema. Qualquer conjunto de enunciados pode servir,

desde que seja finito. Os enunciados não têm de ser verdadeiros, ou independentes, ou

compatíveis. Os sistemas incompletos e/ou redundantes continuam a ser sistemas26.

Enquadrado como sistema dedutivo, um sistema normativo é definido como um

conjunto de enunciados normativos - estabelecem correlações entre casos e soluções -

que contêm todas as suas consequências. Um sistema é puramente normativo se apenas

tiver consequências normativas e não tiver consequências factuais (nenhuma expressão

factual é consequência de X). Os sistemas morais e jurídicos são puramente normativos, a

sua função é regular a conduta humana e não descrevê-la27.

O sistema jurídico ou a ordem jurídica são uma subclasse ou caso especial dos

sistemas normativos, ou seja, um conjunto de enunciados que têm consequências

normativas para um dado universo de casos e um dado universo de soluções.

A juridicidade das normas deriva da verificação do(s) critério(s) de pertença ao

sistema que, na perspectiva positivista, é um critério formal, de pedigree (seja ele uma

regra de reconhecimento, procedimental, de eficácia social ou de consenso). Renuncia-se

à definição do direito ao nível da norma jurídica, substituindo-a por uma definição ao

nível do sistema.

26 Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 54-55. 27 Porém, como referem Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin um requisito não deve ser confundido com um facto. Nem todos os sistemas são puramente normativos, na generalidade os textos legais contêm inúmeros enunciados declarativos, incluindo as Constituições – cf. Normative Systems …, ob.cit., pp. 57-58.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

14

São jurídicas as normas que fazem parte desse sistema pré-estabelecido. Neste

sentido, para Joseph Raz a normatividade do direito, estando dependente das relações

internas entre os enunciados jurídicos, reconduz-se ao conceito de sistema jurídico. O

conceito de norma jurídica depende do conceito de sistema jurídico, pelo que a análise da

estrutura do sistema é indispensável para a definição de norma jurídica28. As partes

(normas) são definidas em função do todo (sistema).

A definição de sistema normativo em termos de consequências normativas

permite acomodar enunciados não normativos que fazem parte do sistema (por exemplo,

definições), sem que tenham de ser tratados como normas incompletas a exemplo de

Hans Kelsen.

O conceito de completude normativa reclama que todos os casos tenham uma

solução e que as soluções dos casos sejam tais que todas as possíveis acções sejam

determinadas deonticamente. Tem uma estrutura relacional, definindo-se em relação a

três elementos ou, melhor dito, consiste numa relação entre três conjuntos: um conjunto

de normas (um sistema normativo), um conjunto de circunstâncias fácticas ou casos

possíveis (um universo de casos) e um conjunto de respostas ou soluções possíveis (um

universo de soluções).

A plenitude do sistema ocorre se (e só se) o sistema concreto em relação a um

universo de casos e a um universo de soluções não tiver lacunas no universo de casos em

relação ao universo de soluções. Um sistema normativo estabelece uma dedução

correlativa entre os elementos de um determinado universo de casos e os elementos de

um universo de soluções.

28 Para maiores desenvolvimentos sobre o conceito de sistema jurídico como sistema de normas veja-se Joseph Raz, The Concept of a Legal System, Clarendon Press, 2nd edition, Oxford University Press, 1980 (reimpressão 1997), pp. 168-170, e, sobre os critérios de pertença ao sistema vide pp. 189-196. No mesmo sentido milita a regra de reconhecimento de Herbert Hart. Diferentemente, para Hans Kelsen norma jurídica é aquela que estabelece uma sanção coercitiva, todas as normas prescrevem sanções. Assim sendo, só algumas normas se ajustam ao esquema kelseniano, que tentou ultrapassar esta “auto-limitação” com a tese das normas incompletas ou fragmentos de normas. Esta teoria não fornece nenhum critério de identidade para as normas – cf. Hans Kelsen, Teoria Pura …, ob.cit. pp. 57-59, 61-65.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

15

Em consequência, uma lacuna normativa no sistema em causa verifica-se em

relação a um universo de casos e a um universo de soluções se, e só se, a lacuna for um

elemento do universo de casos e não pertencer ao domínio do universo de soluções29.

Se a completude do sistema normativo é relativa a certo universo de casos e certo

universo de soluções, então a existência de lacunas é uma questão empírica que só pode

ser avaliada em cada situação particular.

Um sistema aberto pode ser completo relativamente a um dado universo de casos

e a um particular universo de acções, mas incompleto em relação a outros. Um sistema

fechado é necessariamente completo.

3. Problemas de sistematização. Mudanças no sistema e inalterabilidade das

regras de inferência

Cumpre traçar uma linha divisória entre os problemas lógicos relativos à

sistematização dos enunciados normativos e os problemas empíricos a respeito da

identificação prévia desses enunciados. A metodologia ocupa-se da reconstrução racional

dos procedimentos lógicos mediante os quais o cientista justifica as suas afirmações.

A primeira etapa é a identificação e selecção dos enunciados que vão constituir a

base do sistema. Este é um problema empírico. A segunda consiste na reformulação do

sistema para uma base mais simples. É uma actividade dedutiva, que não é puramente

mecânica, sendo perfeitamente compatível com o carácter criador da ciência.

A tarefa mais importante da ciência jurídica é a descrição do direito positivo, a sua

ordenação sistemática e respectiva reconstrução. A descrição do direito compreende a

operação de interpretação que consiste na determinação das consequências que se

extraem das normas (de um conjunto de enunciados de direito), para um problema ou

tópico determinado (a este nível, da ciência do direito e não da judicatura, em regra,

29 Quanto às demais propriedades do sistema, consistência e independência: (i) a primeira considera-se verificada quando um dado caso for relacionado com duas ou mais soluções e a conjugação destas não for uma contradição deôntica; (ii) a segunda verifica-se se duas normas não forem redundantes num determinado caso. Porém, como anteriormente realçado trata-se de um ideal racional e não de propriedades necessárias do sistema – cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 61-62.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

16

casos genéricos30). A interpretação é vista como a construção de um sistema dedutivo

axiomático que adopta os referidos enunciados como axiomas.

Para derivar as consequências das normas, que integram a base do sistema e que

foram previamente seleccionadas por critérios de identificação e pertença31, os juristas

utilizam um conjunto de regras de inferência. São estas que definem a noção de

consequência. O conteúdo de um sistema axiomático é determinado conjunta e

cumulativamente pelos enunciados da sua base e pelas regras de inferência aplicadas. O

seu tratamento sistemático é, porém, recente32.

O jurista não cria a base, identifica-a. O labor de sistematização consiste em

derivar as consequências. Os limites da função cognoscitiva da ciência são transgredidos

quando se invade o terreno da criação do direito que é função política que compete ao

legislador. Daí que a actividade de reconstrução do direito levada a efeito pela ciência

jurídica não possa implicar alterações ao sistema, ou seja, não deve materializar-se na

modificação, eliminação ou adição das consequências jurídicas pré-existentes.

No entanto, Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin consideram um erro grave a

identificação da lógica dedutiva com uma actividade automática, como se todas as

operações no campo da lógica fossem mecânicas, visão que ignora o papel insubstituível

que a imaginação criadora desempenha nas ciências lógicas e matemáticas.

Qualquer mudança do sistema normativo significa uma alteração das suas

consequências normativas. As causas para tanto podem ser de duas ordens:

(a) A modificação da base, seja pela mudança do critério de identificação do

direito, seja pela sucessão no tempo dos enunciados válidos, por exemplo por

via de alterações legislativas; ou

30 Segundo Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 68-69, à ciência do direito interessa determinar o estatuto normativo conferido a certas condutas (universo de acções) em certas circunstâncias (universo de discurso). 31 Aqui se suscitam os clássicos problemas de filosofia do direito acerca da validade e das fontes. A selecção da matéria, sendo empírica e não lógica, está condicionada por dois factores: os enunciados de base devem ser válidos e a base deve conter todos os enunciados que tenham consequências para a matéria, com referência a um dado momento cronológico. 32 Remonta ao primeiro ensaio de von Wright sobre Lógica Deôntica: Logical Studies, Routledge & Kegan Paul, London, 1957.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

17

(b) A modificação das regras de inferência. Num certo sentido, por vezes é mais

fácil mudar as regras de inferência, dado que normalmente não são

expressamente evidenciadas, ficando implícitas, mas uma tal mudança supõe

sempre a modificação dos critérios de identificação do direito, i.e., da “regra

de reconhecimento”.

As mudanças do sistema podem acontecer por via interpretativa, com destaque

para as interpretações jurisprudenciais susceptíveis de provocar uma alteração das

consequências normativas. Vicissitude que coloca a questão de saber se, nestes casos,

estamos perante uma mudança da base ou das regras de inferência.

A ideia de que o juiz ao interpretar a lei de forma distinta modifica a lei implica

reconhecer-lhe uma função criadora do direito, “para além da função judicial”.

Por outro lado, tratar as modificações interpretativas como alterações das regras

de inferência do sistema descaracteriza a noção de consequência definitória do sistema.

As regras de inferência deixam de ser apriorísticas e convertem-se em regras

contingentes, podendo ser introduzidas a qualquer momento novas regras de inferência

ad hoc, com a eliminação das anteriores. O raciocínio normativo perde estabilidade e

torna-se arbitrário ou errático.

Como se salientou supra, a noção de consequência é central a todo o esquema

conceptual da ciência jurídica. Não pode deixar de assegurar-se o status de necessárias (a

priori) às leis que regem a noção de consequência. Isso implica que não devem ser

admitidas outras regras de inferência para além das da lógica.

De onde se conclui que, para um sistema normal, a mudança de consequências

significa uma mudança dos enunciados da base, permanecendo inalteradas as regras de

inferência33.

33 Cf. com maior aprofundamento Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 91-94.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

18

4. Síntese do modelo

4.1. Caracteres ou operadores deônticos

Existem diferentes sistemas de lógica deôntica, sendo o mais comum o que se

baseia nos caracteres normativos “P” (permitido), “O” (obrigatório), “Ph” (proibido) e “F”

(facultativo). Um problema normativo é uma questão sobre o estatuto deôntico de

determinadas acções ou condutas. Estas podem ser permitidas, obrigatórias, proibidas ou

facultativas.

Enunciado deôntico é toda a expressão formada por um operador (caracter ou

modalidade) deôntico, seguido de um conteúdo também ele deôntico, desde que não

seja tautológico (redundante) ou contraditório (inconsistente: “é proibido R” e “é

obrigatório R”).

Adopta-se “P” como operador primitivo e assume-se que todos os outros podem

ser definidos em função de “P”. Se do conjunto de expressões deônticas excluirmos

aquelas que são tautológicas ou contraditórias obtemos um conjunto de afirmações

designadas soluções.

Solução é uma expressão deôntica, não tautológica nem contraditória, uma

modalização dos elementos do universo de acções (“UA”) configurado através de acções

genéricas (tipificadas e não individuais).

Existe um subconjunto de expressões deônticas que se designam constituintes

deônticos, precedidos do operador “P” ou “~P”. Qualquer permissão ou proibição de uma

descrição de situação (state-description) é um constituinte deôntico. Para qualquer

descrição de situação podemos construir dois constituintes deônticos: a sua permissão ou

proibição (par deôntico).

São os elementos do universo de soluções (“US”) que determinam se o sistema é

completo. As normas são completas quando relacionam os casos de qualquer tipo com

uma solução plena. Quando a solução é parcial as normas chamam-se incompletas.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

19

4.2. Âmbito fáctico

O modelo dos “Sistemas Normativos” é construído a partir da reprodução de um

problema real de direito civil argentino, a aquisição do direito de propriedade de um

imóvel por um terceiro, tendo a transmissão sido efectuada por quem não era o legítimo

proprietário (problema também versado no direito português encontrando-se na origem

da figura da aquisição tabular). As possíveis soluções equacionadas variam em função de

determinados elementos reputados relevantes (propriedades), como a boa ou má fé do

putativo transmitente; a boa ou má fé do adquirente e o carácter oneroso ou gratuito do

acto translativo.

Neste caso, saber se a restituição do bem é obrigatória é determinar o estatuto

deôntico da acção.

O âmbito fáctico do problema é-nos dado, por um lado, por um conjunto de

acções básicas (no sentido de que as demais são compostos veritativo-funcionais

daquelas) que constitui o universo de acções e, por outro lado, pelo conjunto de

circunstâncias factuais ou estado de coisas cujos elementos têm uma determinada

propriedade (boa fé, má fé, posse, carácter oneroso ou gratuito, entre outros) que

constituem o universo de discurso (“UD”). No caso, o universo do discurso corresponde às

circunstâncias em que a restituição pode ter lugar.

Cada propriedade divide os elementos do UD em duas classes, a que tem a

propriedade e a que não a tem: “F” e “~F” (esta última negação da propriedade em causa,

propriedade complementar, ou complimentary property). Na teoria dos conjuntos,

corresponde à diferença de conjuntos, ou seja ao conjunto de elementos de B que não

estão em A.

À soma das propriedades presentes ou ausentes dos elementos de um UD dá-se o

nome de universo de propriedades (“UP”). A selecção (pelo legislador) das circunstâncias

relevantes para decidir se deve ou não ocorrer a restituição do imóvel pelo terceiro

adquirente, é uma escolha valorativa e não um problema lógico.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

20

Quando a propriedade definidora é uma conjunção que contém todas as

propriedades do UP ou as suas negações (mas não ambas) o caso definido por essa

propriedade é elementar. O conjunto dos casos elementares é o universo de casos (“UC”).

O número de casos elementares possíveis pode determinar-se facilmente pois é função

das propriedades do UP e determina o âmbito fáctico do problema. No exemplo

concreto, trata-se dos casos em relação aos quais procede a pergunta acerca da

obrigatoriedade de restituição do imóvel por parte do terceiro adquirente ao seu legítimo

proprietário.

Se a noção de plenitude de sistema implica que este resolve todos os casos

possíveis que constituem o universo de casos, o conceito de caso tem de ser restringido,

eliminando as situações de casos impossíveis (contraditórios) e tautológicos

(necessários)34.

A análise lógica postula ainda a distinção entre casos genéricos e casos individuais.

Temos três sentidos de casos genéricos: (i) casos genéricos do universo de discurso

(subclasses do UD); (ii) casos genéricos do universo de casos; ou (iii) simples casos

genéricos (propriedades).

Os casos são caracterizados como propriedades. Qualquer propriedade pode ser

usada para formar uma classe de coisas dentro de um dado universo de coisas: todas as

coisas que nesse universo apresentem tal propriedade. As coisas que não tiverem essa

propriedade formam uma complementary class (classe complementar).

As propriedades podem ser usadas para classificar os elementos de qualquer

universo. Os casos também podem ser usados para classificar os elementos do universo

de discurso. Os elementos do universo de discurso são casos individuais.

34 O que implica que as propriedades do Universo de Propriedades, do qual provém o UC sejam logicamente independentes; que todos os elementos do UD têm de ter alguma propriedade do UP e que nenhuma das propriedades é logicamente vazia (impossível) mesmo que, de facto, não seja exemplificada. Existem casos de UC caracterizados não por um conjunto finito de propriedades, mas através de um valor numérico, por exemplo, a taxa de IRS %. Estas situações dão origem a um número infinito de casos o que não implica que seja impossível resolvê-los todos. Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin Normative Systems …, ob.cit., pp. 21 e 26-27.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

21

Um caso individual do universo de discurso pertence necessariamente a um, e só

um, dos casos genéricos determinados pelo universo de casos. Assim, a solução de todos

os casos (genéricos) do universo de casos também resolve todos os casos individuais do

universo de discurso.

É este processo que possibilita o fenómeno legislativo através do qual se emitem

normas gerais para resolver casos individuais. Uma norma geral é aquela que correlaciona

um caso genérico com uma solução. Indirectamente, essa norma também resolve todos

os casos individuais que pertençam ao caso genérico. O legislador pode resolver um

número infinito de casos através de um número finito de normas.

A lacuna normativa ocorre se (e só se) o legislador não resolver um caso genérico.

O problema da completude surge ao nível dos casos genéricos e não dos casos

individuais, confusão que gera afirmações do género que as lacunas existem porque o

legislador não consegue prever toda a infinita variedade de casos possíveis35.

A infinita variedade de casos é irrelevante para o problema da completude. O

legislador não necessita de prever todos os casos individuais, uma vez que ele não emite

normas para cada caso individual. A sua função consiste em criar normas genéricas que

resolvam casos genéricos. A mesma conclusão resulta da investigação que Donato Donati

desenvolveu sobre o problema das lacunas, em 1910, reconhecendo que todos os casos

possíveis podem ser previstos, se não particularmente, pelo menos como género36.

A subsunção dos casos individuais nos casos genéricos gera os problemas de

penumbra que não devem confundir-se com os problemas de completude normativa. As

locuções “lacuna de conhecimento” (gap of knowledge) e “lacuna de reconhecimento”

(gap of recognition) aludem a questões distintas das lacunas normativas (normative

gaps).

35 Herbert Hart tece uma afirmação semelhante: “os legisladores humanos não podem ter tal conhecimento de todas as possíveis combinações de circunstâncias que o futuro pode trazer”. Cf. O Conceito de …, ob.cit., p. 141. E, bem assim, Hans Kelsen: “A norma jurídica geral positiva não pode prever (e predeterminar) todos aqueles elementos que só aparecem através das particularidades do caso concreto”. Cf. A Teoria Pura …, ob.cit., p. 274. 36 Para maiores desenvolvimentos, Donato Donati, Il Problema delle Lacune dell’Ordinamento Giuridico, Societa Editrice Libraria, 1910, Milano.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

22

4.3. Âmbito normativo

O âmbito normativo de um problema é-nos dado pelo universo de respostas

possíveis. Uma resposta satisfatória é uma solução do problema. Toda a acção de um UA

(e todo o composto veritativo funcional de tais acções, sempre que não seja tautológico

nem contraditório) reveste conteúdo normativo ou deôntico. No exemplo versado,

“Acção R = restituição do imóvel”, ou “Acção ~R = não restituição do imóvel”.

Toda a solução determina deonticamente algum conteúdo.

Quando a solução determina todos os conteúdos que correspondem a um

universo de acções dizemos que é uma solução maximal. O conjunto de soluções

maximais relativas a um UA é o universo de soluções maximais, ou seja, o conjunto de

todas as respostas completas à questão. Neste caso, todas as acções possíveis estão

deonticamente determinadas. Se assim não for, a resposta ou solução é parcial: há pelo

menos uma acção cujo estatuto deôntico não foi determinado.

5. Regras de fecho dos sistemas. O princípio da proibição. Interdefinibilidade

entre permitido e proibido, permissão forte e permissão fraca

Os sistemas normativos não são necessariamente fechados, contudo, é possível o

seu fechamento.

Uma das formas de alcançar a clausura do sistema é através do fechamento dos

casos, i.e., pressupor um conjunto limitado de casos e um conjunto limitado de soluções,

em que todos e cada um dos casos está relacionado com uma solução. No entanto, feito

desta forma, não há qualquer garantia de que o sistema, completo relativo ao universo de

casos e de soluções escolhidos, permaneça completo relativamente a variações destes ou

com referência a outros universos.

Outra modalidade passível de maior sucesso é o fecho do sistema através de uma

regra que qualifique deonticamente todas as acções que não tenham sido qualificadas

pelo sistema em apreço, conforme sucede com o denominado princípio da proibição,

segundo o qual tudo o que não for proibido é permitido. Joseph Raz entende que esta

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

23

tese é válida independentemente do conteúdo que os sistemas jurídicos possam ter:

“[A]ccording to every momentary legal system, every act-situation which is not prohibited

by a specific law of the system is permitted”37.

Os lógicos discordam no que se refere à questão de saber se todo e cada operador

deôntico pode ser definido um em relação ao outro. A definição de proibição em termos

de obrigação (e negação) é incontroversa, mas a definição de permissão em termos de

obrigação (e negação) é mais problemática.

Se os operadores “permitido” e “proibido” forem interdefiníveis, ou seja, se se

considerar que “permitido” significa “não proibido” e que “proibido” significa “não

permitido”, então a afirmação de que os sistemas normativos são sistemas fechados é

trivial e o princípio da proibição limita-se a expressar uma verdade necessária.

Numa primeira fase, é esta a conclusão a que chega von Wright, mas dada a

evidência factual das lacunas, na sua obra Norm and Action rejeita a interdefinibilidade e

considera a permissão um operador deôntico autónomo: “[The] view that a permission to

do a certain thing is the same as the absence or lack of a prohibition to do this thing is

common. I have accepted it myself in previous publications. It seems to me, however, that

this view is in serious error, for a variety of reasons”38. Mais tarde, volta a aceitar a

interdefinibilidade, mas distingue seis conceitos diferentes de permitido e de proibido,

considerando que os sistemas abertos se verificam quando os conceitos de permitido e

proibido em causa não sejam correspondentes39.

Segundo Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, as dificuldades de von Wright

prendem-se com o facto de este abraçar a tese de que a interdefinibilidade de

“permitido” e “proibido” implica que os sistemas normativos são necessariamente

fechados. No entanto, apesar de, do ponto de vista analítico, o princípio da proibição ser

verdadeiro, não fecha o sistema.

37 Cf. Joseph Raz, The Concept of …, ob.cit., pp. 169-170. 38 Cf. Georg Henrik von Wright, Norm and Action …, ob.cit., pp. 87-88. 39 Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 119-120.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

24

Para esclarecer este ponto, retoma-se a distinção fundamental acima escrutinada

entre normas e proposições normativas. Relativamente às normas, verifica-se a

interdefinibilidade dos três caracteres normativos: “permitido”, “não obrigatório”, ou

“não proibido”. Eles são equivalentes e significam o mesmo.

Quanto às proposições normativas a situação é distinta. Dizer que uma acção está

proibida num dado sistema corresponde a afirmar que a norma que a proíbe faz parte

desse sistema ou que é uma consequência do sistema. Essa norma pode expressar que a

acção é “proibida” ou que a acção “não é permitida”. Se do sistema se infere uma norma

que permite a acção, dizemos que ela está permitida no sistema e a norma pode

expressar-se de formas diferentes: a acção “é permitida” ou “não proibida”.

Os conceitos de permissão e proibição aqui em causa são os de permissão forte e

proibição forte, aplicáveis quando no sistema existe uma norma que permite ou proíbe a

acção.

Adicionalmente, cumpre fazer uma distinção entre os caracteres das normas e os

caracteres das condutas. Os caracteres das condutas são elementos das proposições

normativas, os caracteres normativos são elementos das normas. A permissão ou

proibição forte não constituem um caracter da norma, mas da conduta regulada.

Permitido e proibido como caracteres das normas são conceitos contraditórios. Mas a

permissão forte e a proibição forte, enquanto caracteres das condutas, não são

contraditórias, pois cabe uma terceira possibilidade: que do sistema não se possa inferir

nem a permissão, nem a proibição da conduta. É justamente o que se constata quando

entre as consequências do sistema não figura nenhuma norma que permite ou que

proíbe a acção.

Os dois enunciados “do sistema infere-se uma norma que permite a acção” e “do

sistema infere-se uma norma que não permite a acção (que a proíbe)”, não são

contraditórios, nem sequer opostos. Os dois enunciados podem ser ambos falsos, como

também podem ser ambos verdadeiros. Nesta última hipótese, não se trata de uma

impossibilidade, implica apenas que o sistema em causa é inconsistente, pelo menos num

caso, já que as normas “a acção é permitida” e “a acção não é permitida” são, sem

dúvida, contraditórias.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

25

O facto de um sistema conter normas inconsistentes (contraditórias) não implica

que as proposições normativas que descrevem este sistema sejam inconsistentes. Não há

nada de paradoxal numa descrição consistente de um sistema inconsistente.

Se se considera que uma acção é permitida só porque não há uma norma a proibi-

la, estamos perante uma permissão fraca (exprime um facto negativo).

Outra das características das proposições normativas é a possibilidade de dois

tipos de negação. Quando o que é negado não é a proposição mas a norma por aquela

referida estamos perante uma negação interna. Pode também existir a própria negação

da proposição normativa e aí fala-se de negação externa. A título de exemplo, a negação

externa da proposição “a norma que permite a acção é uma consequência do sistema” é

“a norma que permite a acção não é uma consequência do sistema”. A proposição

normativa não é incompatível com a sua negação interna, mas já o é com a sua negação

externa.

A negação interna da proibição forte é uma permissão forte: dizer que a norma

que não proíbe a acção (permite a acção) se infere do sistema ou é uma consequência

deste, é o mesmo que dizer que a acção é permitida no sentido forte.

Porém, a negação externa de um enunciado que afirma a proibição forte da acção

não significa que a acção seja permitida no sentido forte. Este enunciado limita-se a dizer

que uma certa norma (de proibição da acção) não se infere do sistema, mas deixa em

aberto a questão de saber se entre as consequências do sistema existe alguma outra

norma que se refira àquela acção. A acção pode estar permitida no sentido forte

(existindo uma norma que permite a acção) ou ser apenas permitida em sentido fraco

(não existindo nenhuma norma do sistema que permita a acção). Esta última situação

denomina-se “permissão fraca”, o que equivale a dizer que no sistema não existe uma

norma que proíba a acção.

A permissão fraca é um caracter da conduta e não da norma. A diferença da

permissão forte é que esta manifesta um facto positivo (a existência de uma norma

permissiva) e a primeira apenas alude a um facto negativo (a inexistência de norma

proibitiva).

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

26

David Duarte salienta a este respeito que a teoria das permissões fracas e fortes

tem-se mantido, ao longo do tempo, como o principal suporte da negação da

interdefinibilidade40 e, alicerçado na norma permissiva geral, extrai a interessante ilação

de que as “normas de obrigação, quer se trate de normas de proibição ou de normas de

imposição, são todas, por isso, normas excepcionais, na medida em que o respectivo

domínio material conduz à produção de efeitos de sinal contrário aos que decorreriam da

aplicação da norma permissiva”41.

O princípio da proibição, no sentido de que o que não é expressamente proibido

(forte) é permitido (fraco), é verdadeiro, mas tautológico e compaginável com a

existência de lacunas, pois não tem por efeito fechar o sistema. De facto, se a lacuna é um

caso não correlacionado pelo sistema com uma solução, então a permissão fraca

consubstancia uma verdadeira lacuna42.

Uma outra leitura possível do princípio da proibição, que não é a adoptada, faz

derivar de tudo o que não for proibido no sentido forte uma permissão, também no

sentido forte, implicando que a permissão passe a ser uma consequência do sistema43.

Nesta acepção, o princípio não é necessariamente verdadeiro, é uma proposição

contingente, pois só seria verdadeiro se todos os sistemas normativos fossem

absolutamente fechados, completos na relação entre qualquer universo de casos e

qualquer universo de soluções.

Existem autores para quem não existem lacunas porque entendem que o sistema

jurídico providencia os meios necessários para as eliminar. Tal asserção evidencia uma

40 Cf. David Duarte, “Os Argumentos da Interdefinibilidade dos Modos Deônticos em Alf Ross: a Crítica, a Inexistência de Permissões Fracas e a Completude do Ordenamento em Matéria de Normas Primárias”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XLIII, N.º 1, Coimbra Editora, 2002, pp. 257-281. 41 Cf. David Duarte, “Os Argumentos da …”, ob.cit., pp. 279-280. 42 Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin reconhecem que é teoricamente possível definir lacuna como um caso que o sistema não correlaciona com uma solução e que não beneficia de uma permissão fraca. Neste caso, não haveria lacunas. Mas isso seria um “definitional stop” nas palavras de Herbert Hart, ou seja, definir-se-ia o conceito de modo a que a lacuna fosse logicamente impossível, o que não tem qualquer sentido útil. Cf. Normative Systems …, ob.cit., pp. XX. 43 Esta era a posição inicial de Hans Kelsen para quem a completude do sistema era retirada do princípio da proibição, no sentido de permissão forte. No entanto, na 2.º edição da Teoria Pura do Direito (1960), acaba por adoptar o sentido de permissão fraca, mantendo que não há lacunas, porquanto, apesar de aí não se aplicar uma lei específica, se aplicar a ordem jurídica como um todo. Kelsen baseia aquele princípio na concepção do “mínimo de liberdade” – cf. Teoria Pura …, ob.cit., pp. 47 e 275.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

27

contradição nos próprios termos. A possibilidade de eliminar e colmatar lacunas não

implica que elas não existam, pelo contrário, pressupõe precisamente a sua existência.

Outros afirmam que não há lacunas porque há juízes e estes terão de decidir o

caso. Que os juízes têm que decidir não é disputável. O que interessa, porém, saber é

como é que o juiz pode resolver este caso, com que fundamentos e que directrizes e

vinculações deve observar. A obrigação de julgar que impende sobre os juízes nada

acrescenta acerca das lacunas e sobre a forma de resolver os casos não previstos. Como

refere Joseph Raz, se a tese das fontes reclama que (apesar das lacunas) existe jurisdição,

terá de explicar como é que essa jurisdição deve ser exercida.44

Uma outra corrente considera que a legislação pode ser incompleta, mas que

existe um conjunto de enunciados (como, por exemplo, os princípios de direito natural)

que, em articulação com as leis, completam o sistema. É o domínio da tese da plenitude

hermética do direito. De novo, em rigor esta tese não contradiz que as lacunas tornam o

sistema incompleto. A resolução do problema das lacunas, dentro do sistema ou por

apelo a outro sistema (por exemplo, o direito natural, ou a natureza das coisas) é uma

questão distinta e fora do âmbito da análise lógica do sistema.

6. As lacunas

6.1. Reconstrução do sistema normativo – corolários

Do modelo lógico desenvolvido por Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin,

emergem importantes conclusões para a dilucidação do problema das lacunas e o

estabelecimento de limites conceptuais coerentes:

i) Uma lacuna normativa ocorre quando a um caso não corresponde, no sistema

dado, qualquer solução;

ii) Um sistema normativo é incompleto se (e só se) tiver pelo menos uma lacuna. Um

sistema que não tenha lacunas é completo;

44 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons, Sources and Gaps, in The Authority of Law, Essays on Law and Morality, Oxford University Press, 1979, p. 54.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

28

iii) As lacunas e as inconsistências são fenómenos distintos. O sistema normativo é

inconsistente se (e só se) existirem duas ou mais soluções incompatíveis para o

mesmo caso;

iv) A questão acerca de existência de lacunas é sempre relativa a um sistema

normativo. O mesmo caso pode ter soluções distintas em sistemas diferentes.

Determinar se um caso tem uma solução implica, primeiro, identificar as

normas do sistema, a amplitude de casos possíveis (o universo de casos) e de

soluções possíveis (o universo de soluções).

6.2. Distinção entre lacunas normativas (problema lógico), lacunas de

conhecimento e lacunas de reconhecimento (problemas de aplicação)

Como tem sido mencionado, do ponto de vista lógico, uma lacuna normativa

ocorre quando a um caso não corresponde, no sistema dado, uma qualquer solução.

Existem, no entanto, determinados problemas que têm sido tratados a propósito

das lacunas e que não se enquadram nesta definição. Tais problemas colocam-se num

plano distinto.

Antes de mais, convém fazer a destrinça entre os problemas conceptuais que

surgem no plano dos casos genéricos e das normas genéricas, daqueles problemas

empíricos e semânticos que decorrem da aplicação das normas individuais aos casos

individuais, que constitui tarefa do juiz.

A classificação dos casos individuais como pertencentes aos casos genéricos

resulta do processo de subsunção. Neste âmbito, as dificuldades podem surgir

dificuldades por duas razões:

(a) Por falta de informação relativa a um facto relevante (gap of knowledge),

configurando um problema empírico derivado da ignorância sobre alguma(s) da(s)

propriedades do facto: desconhece-se se um determinado caso individual

pertence a um caso genérico o que causa dificuldades na classificação. Esta

dificuldade pode ser (e em regra é) tecnicamente resolvida por recurso a

presunções e regras sobre o onus probandi; ou

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

29

(b) Por indeterminação semântica ou vaguidade dos conceitos (gap of recognition).

Aqui, trata-se de condicionantes de natureza empírico-semântica, que temos

referido como situações de penumbra. Em virtude da indeterminação semântica

de conceitos que caracterizam um caso genérico, não sabemos se um específico

caso individual pertence a um determinado caso genérico.

As lacunas normativas não se enquadram em nenhuma destas espécies. Uma

lacuna normativa é um problema conceptual de ordem lógica.

Numa posição próxima, Karl Engisch preconiza que “já não deveria falar-se de

lacuna quando o legislador, através de conceitos normativos indeterminados, ou ainda

através de cláusulas gerais e cláusulas discricionárias, reconhece à decisão uma certa

margem de variabilidade”45.

O facto de um sistema ser normativamente completo no sentido de que resolve

todos os casos possíveis, sejam genéricos ou individuais, não exclui a possibilidade de

lacunas de reconhecimento ou de conhecimento, o que não significa que o caso não

esteja resolvido no sistema.

Questão autónoma, de natureza axiológica, é a de saber se o caso está bem ou

mal resolvido (se a solução normativa é boa ou má), que se aborda de seguida.

6.3. O problema das lacunas axiológicas. A Tese e a Hipótese de Relevância

Considera-se que dois casos têm um estatuto normativo idêntico quando estão

relacionados com as mesmas soluções ou (ambos) não estão com nenhuma. Têm um

estatuto normativo diferente quando uma dada solução está relacionada com um dos

casos e não com o outro.

Uma propriedade é relevante quando, num determinado estado de coisas, um

caso e o seu correlativo caso complementar têm um diferente estatuto normativo. A

45 Cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, Tradução de J. Baptista Machado, 9ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, Lisboa, pp. 280.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

30

relevância da propriedade é uma (mera) constatação de facto (usa-se aqui o sentido

descritivo, pois numa acepção prescritiva, significaria que algo deveria ser relevante).

A Tese da Relevância é a proposição que identifica o conjunto das propriedades

que “são” relevantes em relação a um universo de acções. A Hipótese de Relevância é a

proposição que identifica as propriedades que “devem ser” relevantes para um universo

de acções.

A questão de saber se uma propriedade deve ser relevante para um universo de

acções é um problema axiológico, supõe um critério de valor (que pode ser subjectivo ou

objectivo, não é isso que está em causa).

Considera-se que um sistema normativo satisfaz o critério de adequação

axiológica dado por uma Hipótese de Relevância se (e só se) a sua Tese de Relevância

coincidir com a Hipótese de Relevância em questão.

Esta é uma condição necessária da adequação, porém, não suficiente. Com efeito,

um sistema para o qual sejam relevantes todas as propriedades que o devam ser pode

não correlacionar alguns casos com as soluções e, neste sentido, pode prever soluções

desajustadas. Deste modo, um sistema normativo pode ser axiologicamente

desadequado (injusto), seja porque (a) não se adequa à Hipótese de Relevância

(selecciona mal os casos); seja porque (b) não relaciona os casos com as soluções devidas,

ou seja, por resolver “mal” os casos que foram correctamente seleccionados (neste caso,

não se verifica qualquer lacuna).

Utiliza-se com frequência a expressão lacuna para designar situações em que a lei

prevê uma solução axiologicamente desadequada, porque o legislador não teve em

conta, no sentido de não ter previsto, uma distinção que deveria ter sido atendida. O

legislador não considerou uma dada distinção ou característica, porque não antecipou a

propriedade em causa, pois se a tivesse considerado não teria dado uma solução

genérica, mas uma solução diferenciada e específica.

É o que sucede quando uma propriedade deva ser relevante para o sistema de

acordo com a Hipótese de Relevância, mas não o seja, de facto (de acordo com a Tese da

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

31

Relevância). Ocorre, nestas circunstâncias a chamada lacuna axiológica que cumpre, de

igual modo, distinguir da lacuna normativa (esta última determinada pelo facto de a lei

não fornecer solução ao caso).

Para a existência de uma lacuna axiológica é necessário que o caso tenha uma

solução, de outro modo seria uma lacuna normativa e estes são conceitos mutuamente

exclusivos e logicamente incompatíveis.

Acresce que a propriedade valorada como relevante tem de ser irrelevante para o

universo de acções e não apenas para o caso em questão. Pois se essa propriedade for

relevante para outros casos do mesmo universo de acções (embora não o seja para esse

caso específico), então não se pode afirmar que a propriedade não foi prevista ou

considerada pelo legislador. Esta situação não se enquadra na definição de lacuna

axiológica, pois o legislador, sabendo e ponderando a propriedade não a quis atender,

deu deliberadamente uma solução injusta. Não existe aqui uma lacuna, mas um defeito

axiológico do sistema.

6.4. O espaço livre do direito

Uma das críticas dirigida ao modelo lógico de sistemas normativos é a de que nos

casos não regulados pelo legislador não existe critério de distinção entre aqueles que o

direito pretende regular, mas não regula, e aqueles que não regula, nem quer regular

(que “não interessam ao direito”). Fernando Atria considera que, ou bem se aceita que

devemos distinguir estas duas categorias de casos, ao que atribui a consequência de,

nestes termos, ser rejeitada a proposição positivista do direito, ou bem que não se aceita

e não é possível distinguir os dois tipos de casos, caindo-se no formalismo (o direito

pretende regular apenas os casos que efectivamente regula) ou no cepticismo (o direito

pretende regular todos os casos)46.

José Juan Moreso realça, em discordância com o argumento, que o mesmo ignora

que os casos são definidos em função das propriedades que, em conformidade com as

fontes admitidas como válidas para a produção do direito, possuem relevância normativa

46 Cf. Fernando Atria et alii, “Réplica: entre Jueces y Activistas Disfrazados de Jueces”, in Lagunas en el Derecho, Marcial Pons, 2005, Barcelona, pp. 159-183.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

32

e não estão correlacionados com nenhuma solução. Deste ponto de vista, nem toda a

situação em que uma conduta não está proibida nem permitida positivamente é uma

lacuna normativa47.

O problema é antigo e foi objecto de reflexão sendo conhecido através de

múltiplas designações (“espaço livre de direito”, “espaço de indiferença normativa”,

“espaço de irrelevância jurídica ou rechtsleerer raum”, entre outros).

A este respeito compulsa-se o entendimento de David Duarte para quem o

ordenamento é naturalmente incompleto, mas a sua incompletude apenas se manifesta

nas normas secundárias, que se reportam a outras normas, ou seja, quando não existe ou

é limitada a ordenação que permite a aplicação de uma norma que carece de outra para

cumprir a sua tarefa de regulação. A lacuna só existe relativamente a insuficiências que

resultem da falta regulativa de uma norma secundária, prescindindo-se das considerações

tradicionais que eram necessárias para a diferenciar do espaço de indiferença

normativa48.

6.5. Cotejo de alguma doutrina

Na teoria jurídica é frequente confundirem-se lacunas normativas e axiológicas e

outros tipos de defeitos axiológicos, misturando problemas de valor e questões

puramente lógicas. Esta confusão é apontada pela doutrina alemã, sem prejuízo de, não

raro, na sua concretização, os autores alemães acabarem por recorrer, de forma

desconcertante, a critérios valorativos.

Karl Engisch pressupõe logicamente o conceito de lacuna que qualifica como uma

deficiência do direito positivo. A lacuna é uma “incompletude insatisfatória no seio do

todo jurídico”, quando o direito não dá resposta a uma questão jurídica49 e implica a

47 José Juan Moreso, “A Brilliant Disguise: entre Fuentes y Lagunas”, in Lagunas en el Derecho, Marcial Pons, 2005, Barcelona, pp. 185-203. 48 Cf. David Duarte, “Os Argumentos da …”, ob.cit., p. 279. 49 Cf. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento …, ob.cit., pp. 276-277. O autor procede a diversas classificações de lacunas: (i) de lege lata ou do direito vigente vs. de lege ferenda, estas últimas correspondentes a deficiências da lei e não à falta de solução, pelo que não as considera verdadeiras lacunas; (ii) voluntárias (intencionais) vs. involuntárias (situações não previstas pelo legislador); (iii) primárias ou originárias vs. secundárias ou supervenientes em virtude da modificação de valorações ou das circunstâncias de facto relativas ao objecto da regulamentação. Relativamente às denominadas “lacunas de colisão”, estas inserem-se na temática das antinomias normativas. Existindo uma contradição

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

33

integração do direito (praeter legem, supplendi causa).

Avaliar se a incompletude é “insatisfatória” apela a uma valoração e o problema

de saber se existe ou não uma solução dada pelo sistema não é, na esteira de Carlos

Alchourrón e Eugenio Bulygin, um problema valorativo é um problema lógico50.

Para Karl Engisch ao discordarmos de uma determinada solução podemos falar de

uma lacuna político-jurídica não autêntica, de lege ferenda, mas não de uma lacuna

verdadeira do direito vigente, de lege lata. Curiosamente, como apontam Carlos

Alchourrón e Eugenio Bulygin, o exemplo citado pelo autor como típico caso de lacuna é

um ostensivo caso de lacuna axiológica (solução insatisfatória porque o legislador não

previu a característica ou propriedade) e não de uma lacuna normativa (ausência de uma

solução). Estava em causa um caso relativo a um aborto (tipificado como crime na lei

penal) realizado por prescrição médica para salvar a vida da mulher. A lei efectivamente

dava uma solução (punindo a conduta) que, porém, o tribunal achou injusta.

A mesma ambivalência surge noutros autores alemães como Karl Larenz. Para

Larenz a incompletude insatisfatória que reclama o conceito de lacuna (e a sua ulterior

integração) é aquela imperfeição que é contrária ao plano do legislador, lacuna e silêncio

não são a mesma coisa51. Porém, a constatação de uma lacuna exige uma valoração

crítica da lei segundo a pauta da sua própria teleologia e do princípio do tratamento igual

daquilo que tem igual sentido.

Deste modo, Karl Larenz convoca critérios axiológicos (descobrir “o plano do

legislador” e a pauta valorativa que lhe subjaz) para a determinação do que é uma lacuna,

numa intersecção que obscurece a destrinça entre problemas lógicos e valorativos, e

sustenta que a analogia e a redução teleológica (operações normalmente equacionadas

no ulterior processo de preenchimento da lacuna) são essenciais à própria fase preliminar

de constatação das lacunas, concluindo que uma lei só pode conter lacunas sempre e na

insanável entre normas, caso que Karl Engisch considera “deveras raro”, e concluindo-se que as normas devem ser invalidadas (nenhuma prevalece sobre a outra) surge a lacuna de colisão que deve ser colmatada segundo os princípios gerais do preenchimento das lacunas – cf. pp. 275-325. 50 Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp.110-111. 51 Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, Trad. José Lamego, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, Lisboa, p. 525.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

34

medida em que falte pelo menos uma regra que se refira a uma questão que não tenha

sido deixada ao “espaço livre do Direito”, enquanto sector que a ordem jurídica deixa por

regular. A solução do problema da lacuna contribui, nesta visão, para a identificação do

mesmo52.

Nesta medida, como o próprio reconhece, só se consegue saber se é uma lacuna

contrária ao plano (ou não) através de um juízo de valoração e não de um juízo sobre

factos ou de uma conclusão lógica (em sentido similar, como se verá adiante, se

pronuncia Riccardo Guastini). A existência ou não de lacuna há-de aferir-se do ponto de

vista da intenção reguladora da lei, dos fins com ela prosseguidos e do plano legislativo

(interpretação histórica e teleológica)53.

Nos casos em que uma norma específica é inexequível e não pode ser aplicada

sem que se acrescente uma nova norma (existe uma norma, porém está incompleta), Karl

Larenz fala de “lacunas normativas”. Contudo, na maior parte das situações, ocorre uma

falta de regulação global (não apenas parcelar) de um problema jurídico, em que a

situação de facto é desprovida de qualquer consequência jurídica. Verifica-se aqui o que

designa por “lacuna de regulação”.

Se a lei não está incompleta, mas defeituosa, por falha de política legislativa, não

pode a questão ser tratada por intermédio da integração de lacunas, não é lícito ao

tribunal completar a lei. A falta de um instituto tão pouco se deve considerar uma “lacuna

do Direito” quando se refere a uma decisão consciente do legislador, que a deixa por

regular e a adscreve ao “espaço livre do direito”. Nestes pontos, não há dissonância da

análise lógica de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin.

Sobre a contraposição entre “lacuna da lei” e “lacuna do Direito”, Karl Larenz

considera que só se pode falar de plano em relação à lei e não à ordem jurídica no seu

conjunto, razão pela qual um sistema aberto não se coaduna com lacunas do Direito e

não se pode deduzir uma faculdade (ou até obrigação) da jurisprudência de colmatar tais

“lacunas de Direito”, que colidiria com o primado de criação das normas pelo legislador54.

52 Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência …, ob.cit., pp. 569-570. 53 Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência …, ob.cit., pp. 529-532. 54 Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência …, ob.cit., pp. 533-535.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

35

Quanto à distinção entre lacunas patentes e lacunas ocultas, as primeiras ocorrem

quando não se encontra prevista qualquer regra para um grupo de casos e as segundas

quando, apesar de estarem previstas regras para casos da espécie, a solução genérica,

segundo o seu sentido e fim, não se ajusta a um subgrupo específico de casos, não atende

às suas particularidades. Estas lacunas ocultas correspondem às acima designadas lacunas

axiológicas e Karl Larenz propõe que sejam resolvidas por via da “redução teleológica da

norma”55.

Para Esser “Só a única (e decisiva) pergunta sobre se já que admitir a existência de

uma “lacuna” na lei, constitui um juízo valorativo e uma decisão da vontade”56. No prisma

lógico, se a existência das lacunas depender de uma decisão da vontade, toda a discussão

racional do problema é obviamente impossível.

Perante estas dificuldades, alguns autores optam por negar a existência de lacunas

e afirmam que, na realidade, as lacunas são uma ficção que pretende ocultar a pretensão

de alterar o direito vigente (subentende-se, por parte dos juízes). É o caso de Hans

Kelsen57.

Apesar de discordarmos da natureza ficcional das lacunas, a objecção é pertinente

no que se refere às lacunas não verdadeiras. Com isto pretendemos dizer que a

qualificação como lacunas de realidades para as quais a lei consagra solução pode, em

algumas circunstâncias, visar o contorno das limitações (a começar pelas constitucionais)

inerentes à função jurisdicional, designadamente as induzidas pelo princípio da separação

de poderes e pelo princípio da legalidade.

Outra distinção da doutrina alemã que se associa à confusão conceptual em

matéria de lacunas é a que resulta da classificação das lacunas em primárias ou

originárias (que surgem desde o momento da criação da lei) e secundárias ou derivadas

(que aparecem supervenientemente como consequência de uma modificação da situação

55 Esta solução pode ser vista como próxima do modelo do activismo judicial que não é o modelo aquele que prevalece entre nós. 56 Apud Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., p .113. 57 Cf. Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, Normative Systems …, ob.cit., pp. 113-114, e Hans Kelsen, A Teoria Pura …, ob.cit., pp. 275-279.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

36

fáctica, originada, por exemplo, pelo progresso técnico ou por uma mudança de valores).

É o caso de Karl Larenz e de Karl Engisch, que distinguem as “lacunas iniciais” (“lacunas

primárias”) das “lacunas subsequentes” (“lacunas secundárias”), identificando o primeiro

duas subclasses de lacunas iniciais, as que são conhecidas do legislador e as que o não

são.

Na grande maioria dos casos, as lacunas secundárias são ou lacunas axiológicas, ou

lacunas de reconhecimento. No exemplo típico de surgimento de uma nova propriedade

como resultado do desenvolvimento tecnológico, o “problema de lacuna (axiológica)” só

se coloca se a nova propriedade for valorada como prescritivamente relevante, ou seja,

se for acompanhada por uma nova valoração.

No quadro dos autores que endossam a tese da incompletude dos sistemas

normativos Joseph Raz (em concordância genérica com a abordagem lógica de Carlos

Alchourrón e Eugenio Bulygin, sem prejuízo de algumas restrições) conclui que as lacunas

não são apenas uma possibilidade dos sistemas, mas, mais do que isso, são

incontornáveis, no sentido de necessárias: “legal gaps are not only possible but, according

to the sources thesis, inescapable.”58 Uma lacuna existe quando uma questão jurídica não

tem uma resposta completa59.

Joseph Raz introduz a distinção entre lacunas jurisdicionais (“jurisdictional gaps”) e

lacunas normativas (“legal gaps”). Verifica-se uma lacuna jurisdicional quando os

tribunais não têm jurisdição sobre todas as questões. Em matéria de lacunas normativas,

o sistema encontra-se completo se houver uma solução plena para todas as questões

sobre as quais os tribunais têm jurisdição. As lacunas devem ser identificadas na

perspectiva dos tribunais pois a aplicação do direito é feita por estes órgãos60.

Afigura-se que o conceito de lacuna de Joseph Raz encerra especificidades e é

distinto da noção de lacunas normativas que acima se delineou e só abrange as lacunas

de valores de verdade, não as lacunas genuínas que acaba por resolver com as regras de

fecho. O autor enquadra o problema das lacunas no da indeterminação, que acima

58 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons …, ob.cit., p. 77. 59 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons …, ob.cit., p. 70. 60 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons …, ob.cit., p. 70-71.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

37

classificámos de “lacunas de reconhecimento”, e no contexto de antinomias normativas

(sobredeterminação deôntica).

Com efeito, Segundo Joseph Raz “They [legal gaps] arise, however, where the law

speaks with an uncertain voice (simple indeterminacy) or where it speaks with many

voices (unresolved conflicts). Contrary to much popular imagining, there are no gaps when

the law is silent. In such cases closure rules, which are analytic truths rather than positive

legal rules, come into operation and prevent the occurrence of gaps”61.

Em Itália, incontornável na análise do problema das lacunas é o texto clássico de

Donato Donati em defesa da posição (então) tradicional da plenitude da ordem jurídica,

como sistema fechado que não conhece lacunas62. Não sendo esta (plenitude necessária

do sistema) a conclusão que se extrai da análise lógica, não deixam de ser pertinente e

interessante a perspectiva aportada por Donato Donati.

Nesta concepção, o poder criativo do juiz compromete ideais políticos

imprescindíveis como o da separação de poderes, da representação e da democrática dos

órgãos legiferantes (a lei é criada por “delegação” voluntária em órgãos electivos que

exprimem a vontade popular) e, ainda, da responsabilidade dos representantes face ao

povo (diversamente, o juiz rege-se por princípios opostos, de independência e

irresponsabilidade).

Perante um caso de lacuna, o juiz não pode ser obrigado a aplicar uma norma

jurídica que não existe. E a norma atributiva de competência jurisdicional também não

pode valer para dar vida a uma norma jurídica materialmente conformadora do caso

concreto. Uma das consequências da completude seria a de admitir-se a imposição ao juiz

de um dever (de decidir todos os casos aplicando uma norma legal) que ele não poderia

cumprir.

61 Cf. Joseph Raz, “Legal Reasons …, ob.cit., p. 77. 62 Cf. Donato Donato, Il Problema delle Lacune dell’Ordinamento Giuridico, Societa Editrice Libraria, 1910, Milano.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

38

A resposta ao paradoxo surge através da formulação de uma norma geral de

exclusão, em linha com o princípio da proibição: do complexo de normas particulares

que, prevendo determinados casos, consolidam para estes a existência de certas

obrigações (ou limitações) deriva uma norma geral, segundo a qual todos os outros casos

não devem sofrer qualquer limitação. Por força desta norma, numa formulação

“positiva”, todos os casos possíveis acabam por encontrar a sua solução na ordem

jurídica.

Dito de outro modo, esta norma geral de exclusão contém implícita a declaração

de vontade de que nenhuma limitação deve impender sobre todos os outros casos (os

não previstos). Se assim não fosse significaria que desconhecíamos o escopo ou âmbito

de aplicação da lei.

Esta norma de exclusão não pode ser concebida como uma norma puramente

negativa que não tem aptidão para constituir a norma de fecho de um dado sistema

jurídico. Uma norma negativa não afirma a existência de uma norma jurídica nova, limita-

se a reafirmar a existência das normas particulares. Da concepção da norma negativa

resultaria, ao contrário do pretendido, a demonstração da existência de lacunas.

Assim, para evitar a conclusão que extraímos do princípio da proibição (na sua

formulação negativa) que é a da incompletude dos sistemas normativos, Donato Donati

constrói uma norma de fecho da ordem jurídica que, sendo uma verdadeira norma

jurídica, produz uma declaração de vontade distinta da declaração de vontade expressa

nas normas particulares.

É a norma geral da qual emana um dever de abstenção de qualquer acção que

possa introduzir uma limitação não prevista na lei e, em simultâneo, o correlativo direito

de estar livre de qualquer limitação não prevista na lei (lei fundada nas várias normas

particulares). A relação jurídica fica bem definida e corresponde à esfera na qual não se

aplicam as (nem podem estender-se os efeitos das) diversas normas particulares.

Os casos não particularmente previstos são, para este efeito, divididos em duas

categorias. No primeiro nível, inserem-se os casos aos quais, por analogia com casos

particulares previstos, devem ser aplicados efeitos jurídicos no mesmo sentido. No

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

39

segundo nível, enquadram-se os demais casos, que ficarão sujeitos a efeitos jurídicos em

sentido contrário, caindo na norma geral de exclusão acima enunciada que está na base

de (e implícita em) todo o ordenamento legislativo. Esta é configurada como uma norma

geral fundamental que confere um “direito de liberdade” que existe necessariamente na

ordem jurídica e cujo conteúdo é a abstenção de qualquer acto que possa impedir a

actividade no espaço de liberdade, e que inclui o direito à remoção ou à reparação.

Nestes moldes, na tese de Donato Donati, o espaço livre do direito (rechtsleerer

raum), como espaço de irrelevância jurídica não existe nem pode existir.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

40

III. NOTA FINAL

1. A abordagem lógica do direito apresenta virtualidades analíticas de valia

indiscutível, contribuindo para a tarefa de reconstrução do raciocínio normativo

realizada pela ciência do direito e adequado tratamento e sistematização

(científicos) dos problemas normativos.

2. O modelo analítico apresentado é contundente na demonstração dos equívocos

da conhecida tese da completude conceptual necessária de todos os sistemas

normativos (postulado da completude ou dogma da plenitude da ordem jurídica),

segundo a qual as lacunas normativas não existem. Esta tese baseia-se na

interdefinibilidade das categorias deônticas de “proibição” e “permissão”, que se

aceita para as normas, mas não para as proposições normativas, e é o corolário da

ausência de distinção entre normas e proposições normativas, que von Wright

veio clarificar.

3. Se da análise lógica do direito empreendida por von Wright este conclui que os

sistemas jurídicos são necessariamente incompletos, Carlos Alchourrón e Eugenio

Bulygin ficam-se pela incompletude contingente e demonstram a existência de

lacunas como um dado lógico, mas não necessário. A incompletude é uma

vicissitude da generalidade dos sistemas que, todavia, devem tender para a

completude como ideal racional.

4. As lacunas normativas, inerentes à incompletude normativa, constituem um

problema lógico. Num plano diferente, empírico e de aplicação ou realização do

direito, situam-se as lacunas de conhecimento, as lacunas de reconhecimento, as

lacunas axiológicas e as deficiências da lei (lacunas de lege ferenda).

5. A perspectiva da análise lógica é, todavia, eminentemente formal e mecanicista.

Apesar de indispensável para a compreensão racionalizada dos problemas e sua

correcta teorização não acomoda o facto de, nalgumas dimensões, a

argumentação prática ou jurídica e o processo de ponderação decisória (em

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

41

especial o jurisdicional) não obedecer, ou não obedecer apenas, a modalidades de

lógica formal63 e a cânones logicistas.

6. Um outro ponto de cepticismo prende-se com algumas deficiências de que a lógica

deôntica (ainda) padece, continuando, a título de exemplo, a ignorar a existência

de enunciados jurídicos não prescritivos e a suscitar equívocos frequentes entre a

linguagem-objecto prescritiva e a metalinguagem assertiva acerca das prescrições.

7. Acresce que a análise lógica assenta num conjunto de pressupostos, alcançados de

forma empírica, francamente manipuláveis. Referimo-nos à escolha das premissas

(enunciados do sistema ou axiomas) das quais são, de forma encadeada e através

de processos dedutivos de inferência, derivadas as consequências jurídicas.

8. A análise lógica estancada dos problemas empíricos de subsunção dos casos

individuais nos casos genéricos (de identificação prévia da base do sistema, da

amplitude de casos possíveis ou universo de casos, e da amplitude de soluções

possíveis ou universo de soluções) pode revelar-se improdutiva nos objectivos a

que se propõe. É, cremos, por esta razão que Riccardo Guastini conclui pelo

artifício da distinção logicista entre problemas de reconhecimento, atinentes à

interpretação e qualificação das situações de facto, e problemas lógicos

propriamente ditos.

9. Esteado numa teoria realista da interpretação e na característica da

derrotabilidade ou revogabilidade (defeasibility) das normas, Riccardo Guastini

demonstra que o processo interpretativo é que conduz o processo lógico que,

assim, perde autonomia. “… las actividades de sistematización del derecho siguen,

no preceden, las decisiones interpretativas: no se hacen inferências desde los

textos (todavia no interpretados), sino sólo desde los significados, que,

precisamente, presuponen la interpretación.”64

63 De que dá nota José Lamego, Elementos de Metodologia …, ob.cit., p. 187. 64 Cf. Riccardo Guastini, Guastini, Riccardo, “Variaciones sobre Temas de Carlos Alchourrón y Eugenio Bulygin. Derrotabilidade, Lagunas Axiológicas e Interpretación”, in Análisis Filosófico XXVI N.º 2, Noviembre 2006, Buenos Aires, p. 284.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

42

10. Neste sentido, é o intérprete que, perante as escolhas que faz e o caminho

interpretativo que escolhe percorrer65, “decide” se a lacuna existe ou não existe.

Assim, se a lacuna se apresenta é porque já foi realizada uma interpretação

(prévia) que concluiu nesse sentido. Do mesmo modo a interpretação pode evitar

uma lacuna.

11. Nesta perspectiva, que tendemos a seguir, as lacunas não são principalmente um

problema lógico, mas antes um problema interpretativo.

* * *

65 Neste âmbito, Riccardo Guastini identifica diversas técnicas interpretativas idóneas para criar ou evitar lacunas, como o argumento de dissociação, em que o intérprete distingue onde a norma não o fez explicitamente, e o argumento a contrario. Cf. “Antinomias e Lagunas”, in Anuario del Departamento de Derecho de la Universidad Iberoamericana, Número 29, 1999, Ciudad de México, pp. 437-450.

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

43

Referências bliográficas

Alchourrón, Carlos E. e Bulygin, Eugenio, Normative Systems, Springer Verlag,

1971, Wien New York, ISBN-13 978-3-7091-7120-2

Atria, Fernando; Bulygin Eugenio; Navarro, Pablo E.; Manero, Juan Ruiz;

Rodríguez, Jorge. L; Moreso, José Juan, Lagunas en el Derecho, Marcial Pons, 2005,

Barcelona, ISBN 84-9768-204-1

Donati, Donato, Il Problema delle Lacune dell’Ordinamento Giuridico, Societa

Editrice Libraria, 1910, Milano

Duarte, David, “Os Argumentos da Interdefinibilidade dos Modos Deônticos em

Alf Ross: a Crítica, a Inexistência de Permissões Fracas e a Completude do Ordenamento

em Matéria de Normas Primárias”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de

Lisboa, Vol. XLIII, N.º 1, Coimbra Editora, 2002, pp. 257-281.

Engisch, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico, Tradução de J. Baptista

Machado, 9ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, Lisboa, ISBN 972-31-0192-0

Ferrara, Francesco, Interpretação e Aplicação das Leis, Trad. Manuel de Andrade,

2.ª edição, Arménio Amado Editor, Sucessor, 1963, Coimbra, pp. 107-197.

Gardner, John, “Hart on Legality, Justice and Morality”, in Law as a Leap of Faith,

Essays on Law in General, Oxford University Press, 2012, Oxford, pp. 229-235, ISBN 978-0-

19-969555-3

Guastini, Riccardo, “Variaciones sobre Temas de Carlos Alchourrón y Eugenio

Bulygin. Derrotabilidade, Lagunas Axiológicas e Interpretación”, in Análisis Filosófico XXVI

N.º 2, Noviembre 2006, Buenos Aires, pp. 277-293, ISSN 0326-1301

Guastini, Riccardo, “Antinomias e Lagunas”, in Anuario del Departamento de

Derecho de la Universidad Iberoamericana, Número 29, 1999, Ciudad de México, pp. 437-

450, ISSN 1405-0935

Hart, H. L. A., O Conceito de Direito (trad. “The Concept of Law” [1961], incluindo o

pós-escrito da segunda edição [1994], a cargo de A. Ribeiro Mendes), 6.ª edição,

Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, Lisboa, ISBN 978-972-31-0692-3

Hart, H. L. A., “Positivism and the Separation of Law and Morals”, in Harvard Law

Review, 71(4), 1958, pp. 593-629

Kelsen, Hans, Teoria Pura do Direito (trad. “Reine Rechtslehre”, 2.ª ed. [1960], a

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin

44

cargo de João Baptista Machado), 7.ª edição, Almedina, 2008, Coimbra, ISBN 978-972-40-

3075-3

Kelsen, Hans, e Klug, Ulrich, Normas Juridicas y Analisis Logico, Centro de Estudios

Constitucionales, 1988 Madrid, ISBN 84-259-0803-5

Lamego, José, Elementos de Metodologia Jurídica, 2016, no prelo. Exemplar em

suporte informático amavelmente cedido pelo autor

Larenz, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª edição, Trad. José Lamego,

Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, Lisboa, ISBN 972-31-0770-8

Machado, João Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 18.ª

reimpressão, Almedina, 2010, Coimbra, ISBN 972-40-0471-6

Raz, Joseph, The Concept of a Legal System, Clarendon Press, 2nd edition, Oxford

University Press, 1980 (reimpressão 1997), Oxford, ISBN 0-19-825363-X

Raz, Joseph, “Legal Reasons, Sources and Gaps, in The Authority of Law, Essays on

Law and Morality, Oxford University Press, 1979, pp. 53-77, ISBN 0-19-825493-8

Rodríguez, Jorge L., Sistemas normativos, lagunas jurídicas e clausura lógica, in

Anuario de Filosofia del Derecho (AFD), núm. XXXI, Janeiro de 2015, pp. 11-34, ISSN 0518-

0872 (disponível online em

https://www.boe.es/publicaciones/anuarios_derecho/abrir_pdf.php?id=ANU-F-2015-

10001100034_ANUARIO_DE_FILOSOF%26%23833%3B_DEL_DERECHO_1._(Universidad_

Nacional_de_Mar_del_Plata):_Sistemas_normativos,_lagunas_jur%EDdicas_y_clausura_l

%F3gica._Normative_Systems,_Legal_Gaps,_and_Logical_Closure, acedido em 7 de Abril

de 2016)

Von Wright, Georg Henrik, Norm and Action. A Logical Enquiry, Routledge &

Kegan Paul, 1963, London, ISBN 0 7100 3616 7

Apenas consultada:

Dworkin, Ronald, Law’s Empire, Harvard University Press, 1986, London, ISBN 0-

674-51835-7

Dworkin, Ronald, Taking Rights Seriously, Harvard University Press, 1977,

Cambridge Massachusetts, ISBN 0-674-86711-4

Von Wright, Georg Henrik, Logical Studies, Routledge & Kegan Paul, 1957

(reimpressão 2000, 2001), London, ISBN 0-415-22547-7

Lacunas e Sistemas Normativos A Perspectiva de Carlos Alchourrón e Eugenio Bullygin

45

Índice

Lista de Siglas ......................................................................................................................... iii

Resumo ................................................................................................................................... v

Abstract ................................................................................................................................. 1

I. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 2

II. UMA ANÁLISE LÓGICA DOS SISTEMAS NORMATIVOS ................................................. 9

1. Lógica deôntica. Normas e proposições normativas. Validade e verdade .................. 9

2. Concepção de sistema, sistema normativo e completude ........................................ 11

3. Problemas de sistematização. Mudanças no sistema e inalterabilidade das regras de

inferência ................................................................................................................... 15

4. Síntese do modelo...................................................................................................... 18

4.1. Caracteres ou operadores deônticos ......................................................................... 18

4.2. Âmbito fáctico ............................................................................................................ 19

4.3. Âmbito normativo ...................................................................................................... 22

5. Regras de fecho dos sistemas. O princípio da proibição. Interdefinibilidade entre

permitido e proibido, permissão forte e permissão fraca ......................................... 22

6. As lacunas ................................................................................................................... 27

6.1. Reconstrução do sistema normativo - corolários ...................................................... 27

6.2. Distinção entre lacunas normativas (problema lógico), lacunas de conhecimento e

lacunas de reconhecimento (problemas de aplicação) ............................................. 28

6.3. O problema das lacunas axiológicas. A Tese e a Hipótese de Relevância ................. 29

6.4. O espaço livre do direito ........................................................................................... 31

6.5. Cotejo de alguma doutrina ........................................................................................ 32

III. NOTA FINAL ................................................................................................................ 40

Referências bibliográficas ................................................... Error! Bookmark not defined.43

Índice ................................................................................................................................... 45