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O último tabu O filme Lawrence Anyways confirma o estilo do jovem cineasta Xavier Dolan, e desnaturaliza as associações entre gênero, sexualidade e afeto. Imagine-se com trinta e poucos anos, com um emprego que lhe agrada e um relacionamento estável. Você tem amigos comuns, uma família comum. Uma rotina perfeitamente adaptada à normalidade da sua vida. Num dia não menos habitual do que qualquer outro, a não ser pelo fato de ser o seu aniversário, algo parece ficar fora de lugar. Dali em diante, uma sensação incômoda toma conta do seu corpo. É um mal estar que se alastra. Você vive assim até sentir que não aguenta mais. Até que um dia, com o coração prestes a sair pela boca, você explode, aos berros, para pessoa que ama: “Eu vou morrer se eu não te disser!” É para não morrer que Lawrence Alia (interpretado por Melvin Paupaud) conta à sua namorada, Fred (vivida por Suzanne Clément), que ele quer se tornar uma mulher. Atenção, leitor: eu disse que ele quer se tornar, porque não se trata somente de ser uma mulher; algo que ele não é (ainda). Em Lawrence Anyways – o terceiro longa metragem do jovem diretor canadense Xavier Dolan, recentemente lançado na Europa – o mote principal é o desejo de transformação que atravessa uma relação de amor. E justamente por conta do amor que sente é que Fred, embora chocada com a notícia revelada pelo namorado, decide apoiá-lo nessa decisão. VÍDEO: Trailler O filme se passa entre os anos 1980 e 90, e carrega uma estética e o espírito de um tempo em que quase todos os tabus haviam sido derrubados. Faltava porém – e ainda falta, segundo Dolan – um último: a ideia preconcebida de que o modo como uma pessoa se veste ou como ela se comporta (a sua identidade de gênero) define qual é a sua orientação sexual. Ao vestir-se com brinco, batom e salto

Laurence Anyways

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O último tabu

O filme Lawrence Anyways confirma o estilo do jovem cineasta Xavier Dolan, e desnaturaliza as associações entre gênero, sexualidade e afeto.

Imagine-se com trinta e poucos anos, com um emprego que lhe agrada e um relacionamento estável. Você tem amigos comuns, uma família comum. Uma rotina perfeitamente adaptada à normalidade da sua vida. Num dia não menos habitual do que qualquer outro, a não ser pelo fato de ser o seu aniversário, algo parece ficar fora de lugar. Dali em diante, uma sensação incômoda toma conta do seu corpo. É um mal estar que se alastra. Você vive assim até sentir que não aguenta mais. Até que um dia, com o coração prestes a sair pela boca, você explode, aos berros, para pessoa que ama: “Eu vou morrer se eu não te disser!”

É para não morrer que Lawrence Alia (interpretado por Melvin Paupaud) conta à sua namorada, Fred (vivida por Suzanne Clément), que ele quer se tornar uma mulher. Atenção, leitor: eu disse que ele quer se tornar, porque não se trata somente de ser uma mulher; algo que ele não é (ainda). Em Lawrence Anyways – o terceiro longa metragem do jovem diretor canadense Xavier Dolan, recentemente lançado na Europa – o mote principal é o desejo de transformação que atravessa uma relação de amor. E justamente por conta do amor que sente é que Fred, embora chocada com a notícia revelada pelo namorado, decide apoiá-lo nessa decisão.

VÍDEO: Trailler

O filme se passa entre os anos 1980 e 90, e carrega uma estética e o espírito de um tempo em que quase todos os tabus haviam sido derrubados. Faltava porém – e ainda falta, segundo Dolan – um último: a ideia preconcebida de que o modo como uma pessoa se veste ou como ela se comporta (a sua identidade de gênero) define qual é a sua orientação sexual. Ao vestir-se com brinco, batom e salto alto, Lawrence não deixa de se sentir atraído por Fred. O travestir-se que ele vivencia não é causado e nem provoca uma mudança em sua heterossexualidade. Vestido de calça ou de saia, de barba por fazer ou com cabelo escovado, o personagem continua sendo ele mesmo, embora outro.

A estranheza que essa transformação pode causar aos olhos de muitas pessoas é tratada com sensibilidade por Xavier Dolan, que mostra a complexidade de sentimentos envolvidos nesse processo. O amor profundo sentido por Fred se mistura ao seu temor em perder o ‘homem’ por quem ela se apaixonou anos atrás e com quem planejava viver sua vida. E embora a história desses dois personagens possa parecer radical, ela é repleta de elementos comuns à vida de qualquer outra pessoa. Às vezes, para continuarmos sendo o que somos, quem somos, precisamos mudar – seja o emprego, uma relação amorosa ou, até mesmo, o próprio corpo. As consequências dessas mudanças podem ser várias, e muitas vezes elas vêm acompanhadas de inseguranças provocadas pelo preconceito ou pelo desconhecido (que, aliás, costumam andar de mãos dadas). A questão é que se não enfrentarmos esses medos, aos poucos vamos nos tornando desconhecidos para nós mesmos. Alienados do próprio desejo, separados do fluxo da vida. Afinal, não há nada mais ‘natural’ do que o fim de algumas coisas para o nascimento de outras. Como é metaforicamente

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indicado no filme, uma lagarta precisa deixar de existir para que uma borboleta possa ganhar vida.

Embora o filme só estreie no Brasil em novembro, já é possível se envolver com a história através da trilha sonora que acompanha os personagens. As músicas, cuidadosamente escolhidas pelo autor, relacionam-se de modo profundo com cada momento da narrativa. A abertura é marcada pela intensidade do som de If I Had a Heart, de Fever Ray – composta de uma repetição de tons graves e pela mistura de vozes masculina e feminina, quase ao ponto de se confundirem. O clima dos anos 1980-90 é dado por clássicos da época como Bette Davis Eyes (de Kim Carnes), pelo som new wave de Duran Duran (The Chauffeur), e a batida de Depeche Mode com com Enjoy the Silence. Além disso, entre referências musicais variadas, alguns momentos são magistralmente acompanhados por extratos de Beethoven e Vivaldi. É uma composição tão heterogênea quanto interessante em seu resultado final.

Pela riqueza da trilha sonora, pela beleza de suas cores e pela densidade de sua narrativa, esse é mais um filme de Dolan para ser visto no cinema, com olhos e ouvidos bem atentos e a mente aberta.