6
Lei para travar drogas em ginásios ficou esquecida Portugal levou sete anos a ratificar convenção da UE contra venda de fármacos falsificados. Abusos levam jovens para hemodiálise Vazio legal impede PJ de investi- gar casos como o do ator Angelo Rodrigues venda de anaboli- zantes fora do desporto federado não é crime. Governo criou um grupo de trabalho para transpor convenção para o Código Penal. Consumidores tomam até 15 substâncias por dia para ter 'o corpo perfeito'. P22

Lei para travar - ULisboa · por causa do uso de esteroides e ana-bolizantes. Mas os médicos não têm dúvidas de que os casos de problemas renais potenciados por estas 'drogas

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Lei para travar - ULisboa · por causa do uso de esteroides e ana-bolizantes. Mas os médicos não têm dúvidas de que os casos de problemas renais potenciados por estas 'drogas

Lei para travardrogas emginásios ficouesquecida

Portugal levou sete anos aratificar convenção da UEcontra venda de fármacosfalsificados. Abusos levamjovens para hemodiálise

Vazio legal impede PJ de investi-

gar casos como o do ator AngeloRodrigues — venda de anaboli-zantes fora do desporto federadonão é crime. Governo criou umgrupo de trabalho para transporconvenção para o Código Penal.Consumidores tomam até 15substâncias por dia para ter 'o

corpo perfeito'. P22

Page 2: Lei para travar - ULisboa · por causa do uso de esteroides e ana-bolizantes. Mas os médicos não têm dúvidas de que os casos de problemas renais potenciados por estas 'drogas

"DROGAS DEGINÁSIO" LEVAM

JOVENS AHEMODIÁLISE

Consumo excessivo de proteínas e esteroidespara fazer crescer massa muscular está a aumentar

doenças renais entre os mais novosTexto RAQUEL ALBUQUERQUE e VERA LÚCIA ARREIGOSO

Um

quilo e meio de carnevermelha por dia, um li-tro de claras de ovo e umgarrafão de água foramdurante muito tempouma parte da ementa deLuís (nome fictício). Aisso juntava suplementosde proteínas, vitaminas e

Omega 3 ingeridos em batidos, alémde injeções de insulina, testosterona,hormona de crescimento ou outrosanabolizantes. Tudo conjugado emdetalhe, controlado com análises acada dois meses e acompanhado portreinos no ginásio, 12 vezes por sema-

na, com uma missão: reduzir gordurae aumentar a massa muscular. Entreos 16 e os 28 anos ganhou 40 quilosde músculo, mas em dezembro do ano

passado os rins deixaram de funcio-nar. Agora o personal trainer faz he-

modiálise, dia sim, dia não, enquantoespera para receber um transplante.

Luís lamenta ter sido obrigado alargar as competições de culturismoe admite alguma responsabilidadeno que lhe aconteceu, mas atribui o

problema a uma "doença renal heredi-tária" e "predisposição genética". "Ob-viamente, os produtos que tomei não

ajudaram", afirma. "Sempre conhecios riscos e tinha tudo controlado. Gra-ves são os casos dos jovens que tomamestas substâncias em quantidades queeles próprios definem só para poremumas fotografias nas redes sociais."

Não há números que permitam sa-ber quantas pessoas têm insuficiênciarenal devido ao consumo excessivo de

proteínas ou sobrecarga do organismopor causa do uso de esteroides e ana-bolizantes. Mas os médicos não têmdúvidas de que os casos de problemas

renais potenciados por estas 'drogasde ginásio' têm aumentado, tornandoa presença de jovens em centros dehemodiálise cada vez mais comum."Tenho vários jovens com alteraçõesrenais por excesso de ingestão pro-teica que deteto, por exemplo, nasanálises. E isso é uma preocupação",afirma Aníbal Ferreira, presidente daSociedade Portuguesa de Nefrologia."Embora não haja um registo, temosseguramente, nas Urgências e nasconsultas, cada vez mais situaçõesde desidratação, exercícios violentos,excessos de proteína, rabdomiólise(destruição do músculo) ou outros."

Henrique Sousa, diretor do serviçode Nefrologia do Hospital das ForçasArmadas, a quem chegam militares e

membros de diferentes forças de segu-rança, confirma a mesma experiência."O número de casos de jovens que nos

Page 3: Lei para travar - ULisboa · por causa do uso de esteroides e ana-bolizantes. Mas os médicos não têm dúvidas de que os casos de problemas renais potenciados por estas 'drogas

aparecem, normalmente ainda apanha-dos a tempo, tem estado a aumentar",assegura, admitindo que os militaressão um grupo muito exposto ao exercí-cio físico de alta intensidade, que hojeé um "mundo complexo e sombrio",marcado pelo consumo destas váriassubstâncias. "Já não é incomum rece-bermos em consulta jovens com altera-ções na urina, referenciados por outrosmédicos, para excluir a possibilidadede doença renal. Muitos desses casossão pessoas com grandes massas mus-culares e grandes cargas de ginásio. Esabemos que algumas doenças renaissão mais suscetíveis neste grupo."

"O FIM DA LINHA"

Há mais de dez anos que Inês Moreira,nutricionista em clínicas de hemodiá-lise, acompanha casos de jovens comdoenças renais . "Tenho assistido a umdiagnóstico cada vez mais precoce dainsuficiência renal, associada a umconsumo excessivo de proteínas. E aingestão destes suplementos, muitasvezes adquiridos em superfícies co-merciais e ocultados aos pais, está acomeçar cada vez mais cedo."

O que está em causa no consumodestes suplementos, explica o presi-dente da Sociedade Portuguesa deNefrologia, é que o rim é a única formade metabolizar proteína e isso leva aum aumento dos níveis de ureia e decreatinina. "No organismo, a creatina,que é vendida para aumentar a massamuscular, transforma-se em creatini-na e sobrecarrega o rim. O pior é que

Page 4: Lei para travar - ULisboa · por causa do uso de esteroides e ana-bolizantes. Mas os médicos não têm dúvidas de que os casos de problemas renais potenciados por estas 'drogas

muitos consumidores fazem batidos

para tomarem após o esforço físico,por isso muito desidratados, podendoprovocar um excesso na função renal."

A gravidade da ingestão destes su-

plementos proteicos aumenta pela fal-ta de controlo, alerta Aníbal Ferreira."Muitas vezes o que está rotulado — e

estudos internacionais referem que é

assim em 40% dos casos — não cor-responde ao que está contido. Outrosproblemas são o facto de a via de in-formação nunca ser um médico e porvezes haver consumo simultâneo deoutros componentes, como diuréticos

para secar o corpo." É que mesmo só

através da alimentação, alerta o médi-co, a população já consome proteínasem excesso, o que leva a que 8% tenhainsuficiência renal.

Já o consumo de esteroides, nor-malmente injetáveis e muito mais in-vasivos, provoca uma sobrecarga noorganismo, aumenta a tensão arte-rial e com isso surgem outras conse-quências, não só renais. Os problemasendocrinológicos e cardiovascularestendem até a surgir antes. Muitosoutros efeitos adversos, como atrofiatesticular, acne, queda de cabelo, al-

teração do humor, disfunção sexuale crescimento mamário nos homens,ou aumento do clitóris e voz rouca nasmulheres, podem acontecer devidoao uso destas substâncias em grandesdoses, (ver caixa)

O nefrologista do Hospital das For-

ças Armadas explica que a falência de

órgãos como os rins, como aconteceucom o ator Angelo Rodrigues, hospita-lizado e sujeito a cirurgias por alegadouso de testosterona, é já um pontoextremo. "O ator está em hemodiálisepela falência multiorgânica, por umacomplicação médica, não pela testos-terona que fez", diz. "Aqui já estamosno fim da linha e o que nos chega são

os casos que correram mesmo mal."

LUTA PELO CORPO PERFEITO

Durante vários anos, Luís consumiutodas as substâncias disponíveis, "qua-se sempre" adquiridas na farmácia."Mas há vários sites onde é possívelencontrar estes produtos. O que nafarmácia custa €70, no mercado ne-

gro está a €20. Claro que é mais peri-goso e se alguma coisa correr mal nãotemos a quem reclamar."

Comprar esteroides e anabolizantes

Page 5: Lei para travar - ULisboa · por causa do uso de esteroides e ana-bolizantes. Mas os médicos não têm dúvidas de que os casos de problemas renais potenciados por estas 'drogas

tornou-se mais fácil nos últimos anos(ver texto ao lado) e as vendas dispa-raram. "Esta indústria alargou-se,sofisticou-se e deu-se uma democra-tização do acesso a estes produtos.É uma indústria suportada por umacultura mediatizada, que convence as

pessoas de que é possível chegarema um corpo perfeito", explica VítorSérgio Ferreira, sociólogo e investi-gador do Instituto de Ciências Sociaisda Universidade de Lisboa. "Vivemosnum paradigma de aperfeiçoamentodo corpo, com técnicas muito maisinvasivas. O corpo foi transformadonum objeto, que já não é um dado ad-quirido e passa a poder ser modifica-do. É aí que se torna perigoso porquese esquece do corpo orgânico."

Querer um corpo perfeito acaba porser um processo de metas sucessivas."À medida que se vêem ganhos e se

cumpre a primeira meta, logo se esti-

pula outra e depois acrescenta-se umaproteína para conseguir ir ainda maislonge. Quando se começa a ver queo corpo não dá mais, junta-se outrasubstância. E a pessoa mantém sem-

pre a sensação de que está a controlartudo", refere o sociólogo.

Reconhecendo o lado "viciante"dessa luta, Luís admite ter chegado aestar "obcecado", mas não teve alter-nativa senão mudar de vida. Agora,

aos 28 anos, treina três vezes por se-

mana, trabalha como PT e continuaa consumir suplementos proteicos. Eesteroides? "É claro que já não. E não

e so porque ja nao consigo recuperar.É porque sei o stresse que causamno organismo e já não posso passarpor isso."

[email protected]

NÚMEROS

14mil unidadesde suplementosalimentarese anabolizantesforam apreendidaspela Autoridadede SegurançaAlimentare Económica(ASAE) entre2017 e o

primeirosemestre de 2019.As apreensõesresultaramda fiscalizaçãoa 534 operadoreseconómicos

12substâncias sãotomadas por dia,em média,por algunsconsumidores

que seguem planosde treino rigorososque chegama incluir15 medicamentose suplementosdiferentes em ciclosde oito semanas.A maioria dassubstâncias são

injetáveis, na barriga,nos glúteos, nas

pernas e nos ombros

30quilos de músculoem 18 meses e 19

quilos em meio anoé o que os homensa tomar testosteronaconseguem ganhar,segundo um estudoda Universidadeda Califórnia, em Los

Angeles, realizadoem sete centrosmédicos dosEstados Unidos.A densidade mineraldos ossos aumentaprincipalmentenas ancase na coluna

Justiça prepara leicontra doping caseiro

Portugal demorou sete anos aratificar convenção europeiacontra venda de fármacosfalsificados. Vazio legal impedepunição. Governo está a estudaralterações ao Código Penal

A Polícia Judiciária não está a investi-

gar quem é que vendeu testosterona aAngelo Rodrigues, nem se a substância

que o ator administrou foi adulterada.A razão é simples: a PJ investiga crimese a lei atual só pune quem venda pro-dutos como esteroides ou hormonas

de crescimento a atletas federados queparticipem em provas oficiais e que uti-lizem estes fármacos como doping para.melhorar a performance desportiva.

Por exemplo: em 2016, no âmbito da

Operação Underground Pharma, a PJdesmantelou seis laboratórios ilegais de

transformação e venda de produtos ana-bolizantes e constituiu arguidos maisde vinte suspeitos. Mas só sete foramacusados pelo Ministério Público. E nofim, só cinco foram condenados peloTribunal de Leiria a penas de prisãosuspensas. Porquê? O MP só pôde acu-

sar os arguidos que praticavam ciclismofederado e participavam em provas deveteranos e só acusou o homem quevendia o material dopante porque con-

seguiu demonstrar que este sabia queos clientes eram ciclistas de competição.Todos os outros envolvidos ficaram li-

vres de qualquer acusação porque nãohavia indícios que os ligassem ao des-

porto federado. A operação da PJ foidesencadeada depois de as autoridades

espanholas se terem queixado de quehavia substâncias dopantes provenien-tes de Portugal a serem transacionadas

Page 6: Lei para travar - ULisboa · por causa do uso de esteroides e ana-bolizantes. Mas os médicos não têm dúvidas de que os casos de problemas renais potenciados por estas 'drogas

no país vizinho, onde a venda destes pro-dutos é punível como um crime contra asaúde pública.

"É uma lacuna enorme", crítica umafonte judicial que não pode ser identifi-cada. "A venda de doping nos ginásiosou a atletas não federados, que pode ser

gravemente prejudicial para a saúde, é

tratada como uma mera contraordena-

ção, uma bagatela penal."Em novembro de 2018, Portugal ra-

tificou a convenção Medicrime, seteanos depois da sua aprovação que existedeste 2011 e envolve vários países eu-

ropeus e tem como objetivo "prevenire combater ameaças à saúde pública"através da "criminalização de certosatos". Segundo a convenção, cada paístem de "adotar medidas legislativas"para criminalizar "o fabrico, armazena-mento, importação, fornecimento ou acolocação no mercado de fármacos sem

autorização". As substâncias usadas

por quem procura o corpo perfeito são,muitas vezes, medicamentos normaissujeitos a receita médica, comprados nomercado negro (ver caixa). Contactado

pelo Expresso, o Ministério da Justiçadiz que "a adaptação da legislação à

convenção é uma matéria complexa e

está a ser analisada por um grupo detrabalho que envolve a Polícia Judiciá-

ria e as autoridades de saúde", e quefoi criado no passado mês de julho. OMinistério da Justiça adianta que "asautoridades competentes estão a ana-lisar estas novas realidades que podemconstituir perigo para a saúde dos ci-dadãos e saúde pública, com o objetivode aperfeiçoar a legislação e melhorara prevenção, a deteção, o controlo e arepressão destas práticas". O Expressosabe que quer do lado da judiciária querdo lado do Infarmed não há quaisquerreticências em alterar o Código Penal

para criminalizar o fabrico e venda de

drogas de ginásio.Luís Horta, médico especialista em

doping, diz que há uma lacuna na leiem relação ao "doping no ginásio" e aos

"jovens muitas vezes em idade escolar"

que tomam substâncias para aumentaros músculos e a força "No espírito dessa

convenção estava a criminalização dafalsificação e venda de medicamentos

comuns, desde os anticoncecionais aos

hipotensores, mas pode e deve abran-

ger os problemas de saúde pública sus-

citados pelo consumo de substâncias

dopantes."

NO PÓDIO, DE FRALDA

António nunca teve qualquer dificulda-de em comprar os muitos esteroides,suplementos e diuréticos que consome,quase todos injetáveis. Bichinho de giná-sio e de concursos àefitness e muscula-

ção, conhece cada medicamento e subs-

tância pelo nome, laboratório, princípioativo, quantidade, interações e efeitos— os pretendidos e os secundários. O

objetivo é crescer e secar; ter músculose defini-los, sem pingo de gordura.

Os esteroides anabolizantes que tomaem ciclos intervalados são uma via rá-pida que encurta o caminho. "Não souuma exceção. Quase todos os que procu-ram o corpo ideal tomam qualquer coisae são os próprios PT [preparadores físi-

cos] — não todos, claro — a aconselhare a vender os medicamentos. Entregamum plano de exercício e um plano deconsumo. Muitos são os que aparecemao lado dos famosos. É aí que ganhamo dinheiro, não é a dar aulas", garante.

Em cada ciclo de oito semanas, Antó-nio chega a tomar três ou quatro inje-ções intercutâneas semanais de testos-

terona, como as consumidas pelo atorAngelo Rodrigues. São medicamentos,autorizados pelo Infarmed, mas quecompra no mercado negro a um impor-tador-exportador de longa data. Na bulalê-se que devem ser administradas porum médico mas ele já aprendeu a inje-tar-se no ombro e nos glúteos. "Dantesera uma enfermeira mas nem semprepodia e isto obedece a regras muito rigo-rosas. Não se pode saltar dias", explica.E mostra exemplos dos planos traçadosem tabelas de Excel pelos treinadores:cada ciclo inclui cerca de 15 medicamen-tos e suplementos diferentes e por diasão tomados entre 10 a 14 substâncias,injetáveis e orais, detalhadas por diada semana, altura do dia, quantidadeao miligrama e unidade e conjugaçãocom treino e refeições. Dois meses deconsumo atingem os €800.

Ele nunca faz mais de oito semanasseguidas, para que não tenha de acres-centar à rotina um segundo plano de"restauro do sistema" danificado peloconsumo, que inclui até comprimidospara o cancro da mama usados paratravar a produção de estrogénio causa-da pelos esteroides. Ainda assim, temsempre que tomar fármacos para tratara impotência sexual provocada pelas

injeçõesdetestosterona. "Há quem faça15 a 20 semanas seguidas, quem não

consiga parar. Eu nunca adoeci masclaro que há casos, como um rapaz quena preparação para uma prova [de bodybuilding] começou a deitar sangue pelorabo. Acabou por subir ao pódio, masde fralda".RAQUEL MOLEIRO e RUI GUSTAVO

'PLANO DE TREINO'

TESTOSTERONAInjetável, é usada para estimular odesenvolvimento muscular rápido.Afeta a fertilidade, a libido e a

potência sexual e causa crescimentomamário nos homens.

INSULINAinjetável, é utilizada por diabéticos.

Queimagorduraeaumentaa massamuscular. A falta de controlo doíndice glicémico pode ser fatal.

HORMONA DE CRESCIMENTOinjetável, criado para crianças comdéfice de crescimento. Acelera a

assimilação dos alimentos pelascélulas. Há quem consuma todos os

dias, como um elixir dajuventude.Provoca o aumento das extremidades.

DECA (NANDROLONA)Esteroide injetável altamenteanabolizante. Au menta a massamuscular, a resistência e o fluxosanguíneo. Causa retenção de

líquidos, hipertensão, atrofiotesticular, problemas de fígado,prostatite, acne e calvície.

WINSTROLEsteroide criado para o tratamento de

osteoporose. Oral ou injetável,estimula a perda de gordura e o

ganho acelerado de massa muscular.Pode causar falência hepática.

TREMBOLONAEsteroide muito forte, criado paraengordar gado. Acelera o ganho demúsculo, perda de gordura e aumentaos glóbulos vermelhos. Cinco vezesmais potente que atestosterona,pode acelerar doenças, como cancro.