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MARIA JOSÉ DURÃES – PARA QUEM SENTE, SENTIR Se dizer que ela morreu, não morreu. Apenas mudou seu modo de existir; se dizer que ela se foi, não foi, ficou por aqui, um pedacinho ali, outro lá, um lá na frente, outro atrás, assim....num paradoxo, talvez... Todos sabiam. Ela detestava Alphaville; lugar de ricos, gente metida, orgulhosa, afastados de Deus. Ir lá, só mesmo por obrigação. Por causa da Nilda. Ah! Nilda! Mas sem perceber ao longo dos anos, ela foi se instalando aqui, na casa da Nilda. E aqui ficou, exercitando aquilo que foi talvez o traço mais marcante da sua personalidade: o amor, a admiração e o respeito pela natureza : “coisas de Deus” . Agora, nos momentos de saudade, ela aí aparece, potencializada pela natureza que, em pleno inverno, parece fazer um tributo àquela que tanto lhe reverenciava. Quem desceu com ela alguma vez, para o litoral ou para o sitio do Natalino, ouviu isso: “eta, os manacás, que lindeza! Só Deus prá fazer uma lindeza dessa! “ .... Aqui está o manacá, coberto por lençol de flores: brancas, azuis, lilás, rosas, como ela admirava; um lençol de flores... Quando eu trouxe uma mudinha comprada no Pão de Açúcar, ela disse: “cuida bem dela que vai. Isso é da mata, mas é muito bonita!” E se demorava contando das que via, na serra, de longe, quando ia prá praia. .. ”ô coisa linda “. ...Como não vê-la aqui! E aqui! A flor de maio! Quem não se lembra, lá, no canto da horta, num xaxim perto do armário. ...às vezes, mais perto da porta, encima do tanque, quando estava com flores, como agora...”sempre em maio”, ela ensinava.

Lembranças

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by Leonor Murro

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Page 1: Lembranças

MARIA JOSÉ DURÃES – PARA QUEM SENTE, SENTIR

Se dizer que ela morreu, não morreu. Apenas mudou seu modo de existir; se dizer

que ela se foi, não foi, ficou por aqui, um pedacinho ali, outro lá, um lá na frente,

outro atrás, assim....num paradoxo, talvez...

Todos sabiam. Ela detestava Alphaville; lugar de ricos, gente metida, orgulhosa,

afastados de Deus. Ir lá, só mesmo por obrigação. Por causa da Nilda. Ah! Nilda! Mas

sem perceber ao longo dos anos, ela foi se instalando aqui, na casa da Nilda. E aqui

ficou, exercitando aquilo que foi talvez o traço mais marcante da sua

personalidade: o amor, a admiração e o respeito pela natureza : “coisas de Deus” .

Agora, nos momentos de saudade, ela aí aparece, potencializada pela natureza que,

em pleno inverno, parece fazer um tributo àquela que tanto lhe reverenciava.

Quem desceu com ela alguma

vez, para o litoral ou para o sitio

do Natalino, ouviu isso: “eta, os

manacás, que lindeza! Só Deus

prá fazer uma lindeza dessa! “

.... Aqui está o manacá, coberto

por lençol de flores: brancas,

azuis, lilás, rosas, como ela

admirava; um lençol de flores...

Quando eu trouxe uma mudinha

comprada no Pão de Açúcar, ela

disse: “cuida bem dela que vai.

Isso é da mata, mas é muito

bonita!” E se demorava contando das que via, na serra, de longe, quando ia prá praia.

.. ”ô coisa linda “. ...Como não vê-la aqui!

E aqui! A flor de maio! Quem não se

lembra, lá, no canto da horta, num xaxim

perto do armário. ...às vezes, mais perto

da porta, encima do tanque, quando

estava com flores, como

agora...”sempre em maio”, ela ensinava.

Page 2: Lembranças

Agora, e estas!

Os chinelinhos.....”como a natureza

pode fazer uma coisa assim tão

igual! Parece um chinelo mesmo!”

Uma vez eu disse prá ela: mãe, eu

acho que foi o homem que copiou

da flor. Ela respondeu pensativa:Ӄ,

Deus sabe fazer as coisas”.....

E aqui? A kincan, a laranjinha de comer com casca?

De vez em quando, alguém levava prá ela, quase

sempre o Nivaldo.....Um dia a levei para ver um pé que

eu plantei num vaso numa casa onde eu cuidava do

paisagismo. Ela admirou tanto que duvidou de mim, na

frente da moradora: “ eu não acredito que é você que

tá fazendo isso dá tanta fruta num vaso! Isso é um

encanto!” . Parou ao redor do vaso carregado de

laranjinhas amarelas. “E essa é da boa, é da

redondinha. A comprida não presta, é azeda.” O

encanto foi tanto, que quando a moradora teve que

mudar, determinou que o pé de laranjinha ficasse

“prá mãe da Leonor, um presente”.

Dona Maria gostou, mas...”planta lá

na sua casa. Aqui, nesse fundo, não

tem lugar prá aquilo”. Assim foi

feito e agora, aqui está o pé, cheio

de laranjinhas...dela.

Tem mais... A jabuticabeira. Também está florando muito. “O Nerso que é doido por

jaboticaba...Nerso que vai longe atrás de um pé de jaboticaba”. E aí vinha a bronca: “mas

ocê precisa cuidá mais daquele pé... Não deixa dá aquela doença amarela. Aquilo é

ferrugem. Bate veneno. Se ocê já sabe trata então cuida. Um pé de jaboticaba é coisa de

muito valor”. Aí vinha as reminicenças da infância: do pé “ que tinha no quintal da casa do

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papai quando nós era criança, em Minas, quando era tempo, dava jabuticaba até nas parte

da raíz que aparecia fora da terra”.....E

quase sempre, quando eu chegava lá com

as jabuticabas, depois da alegria, vinha

outra bronca: “ mas ocê tá panhando

verde! A casca ainda tá grossa! Tá doce

mas a casca tem que ficar fininha, aí sim.

Essa sua não é da grande que é mais dura .

Essa é mais miúda,, casca fina, essa que é

boa!” Era assim.

E aí está....como ela queria....

Mas a sua maior presença, neste paradoxo,

está lá na frente, em plena rua, para que

todos apreciem e desfrutem dela: o

flamboyant!

Aquela arvore enorme, que “estende os

galhos querendo alcançar todos que precisam de sombra.

Quando começamos construir a casa em Alphaville, lá pelos idos de 1985, ela plantou uma

semente, trazida não sei de onde. Quando mudamos prá cá, ela me deu, o que já era uma

boa muda, propondo que eu plantasse aqui. “Planta lá e cuida que essa arvore é muito bonita.

Eu não vou ver ela dar flor, mas vocês vão. Flores e sombra prá todo mundo”...

Só que o tempo passou e ela, firme, não só viu as flores, como abraçou o tronco emocionada, elogiando os galhos compridos, a sombra farta e...mais uma vez, admirou a obra de Deus!

Agora, aí estão, ambas imensas... Por essas e outras, como dizer que ela se foi?

Quem quiser conferir, tem direito a um cafezinho, não tão bom, claro, como aquele que se tomava com ela...