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LÊNIN, Vladimir. Cadernos Sobre a Dialética de Hegel

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Leitura de Lênin da Ciência da Lógica de Hegel

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  • UFRJ

    Reitor Aloisio Teixeira

    Vice-Reitora Sylvia Vargas

    Coordenadora do Frum de Cincia e Cultura Beatriz Resende

    Editora UFRJ

    Diretor Carlos Nelson Coutinho Coordenadora Executiva Fernanda Ribeiro Conselho Editorial

    Carlos Nelson Coutinho (presidente) Charles Pessanha

    Diana Maul de Carvalho Jos Lus Fiori Jos Paulo

    Netto Leandro Konder Virgnia Fontes

  • V. I. Lenin

    C A D E R N O S S O B R E A D I A L T I C A D E H E G E L

    I N T R O D U O H e n r i L e f e b v r e e N o r b e r t

    G u t e r m a n

    T R A D U O J o s P a u l o N e t t o

    Editora UFRJ Rio de Janeiro 2011

  • Copyright @ 2011 by Editora UFRJ Os direitos autorais sobre a traduo desta obra foram cedidos gratuitamente por Jos Paulo Netto Editora UFRJ.

    Ttulo original: Cahiers sur la dialectique de Hegel, 1936.

    Ficha Catalogrfica elaborada pela Diviso de Processamento Tcnico - SIBI/UFRJ

    L566c Lnin, Wladimir Ilitch, 1870-1924. Cadernos sobre a dialtica de Hegel / V. I. Lnin; traduo de Jos Paulo Netto. - Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011. (Pensamento Crtico, 16)

    208 p.; 14x21 cm 1. Lgica. 2. Dialtica. 3. Hegel, Georg Wilheim Friedrich, 1770-1831. 1. Netto, Jos Paulo, trad. II. Ttulo. III. Srie.

    CDD 146. 32

    ISBN 978-85-7108-356-

    1 Reviso Joo Sette Camara

    Capa, Projeto Grfico e Editorao Eletrnica Ana Carreiro

    Universidade Federal do Rio de Janeiro Frum de Cincia e Cultura

    Editora UFRJ Av. Pasteur, 250 / salas 100

    .: 22290-902 - Praia Vermelha Rio de Janeiro, RJ

    TeL/Fax: (21) 2542-7646 e 2295-0346 (21)2295-1595 r. 226 Distribuio: (21) 2541-7946 http: //www. editora. ufij. br

    Apoio

    Fundafto UnivcrsKrla Jos Bonifcio

  • SUMRIO

    Introduo Henri Lefebvre e Norbert Guterman 7

    Cadernos sobre a dialtica de Hegel 93

    Extratos do prefcio edio russa 95

    Nota dos organizadores da edio francesa 97

    Cincia da lgica. Obras completas de Hegel. Tomo III 99

    Prefcio primeira edio 99

    Prefcio segunda edio 100

    Introduo: conceito geral da lgica 104

    Livro primeiro: a doutrina do ser. O ser 107

    Seo primeira: a qualidade 109

    Seo segunda: a quantidade 116

    Seo terceira: a medida 119

    Cincia da lgica. Tomo IV. Primeira parte 123

    A lgica objetiva 123

    Livro segundo: a doutrina da essncia 123

    Seo primeira: a essncia 123

    Seo segunda: o fenmeno 137

    Seo terceira: a realidade 142

    Cincia da lgica. Tomo V. Segunda parte 149

    A lgica subjetiva ou a doutrina do conceito 149

    Do conceito em geral 149

    Seo primeira: a subjetividade 155

    Seo segunda: a objetividade 160

    Seo terceira: a Ideia 164

    Seo III. Captulo I: A vida 171

    Captulo II: A Ideia do conhecimento 172

  • Captulo III: A Ideia absoluta 183

    Observaes gerais 194

    Apndice: Plano da dialtica (Lgica) de Hegel 199

    ndice de nomes 203

  • INTRODUO

    Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    1. Entre setembro e dezembro de 1914, quando de sua estncia em

    Berna, Lnin leu A cincia da lgica, de Hegel. Para sua utilizao pessoal, em simples cadernos escolares, ele tomou uma grande quantidade de notas (em russo, ingls, francs) e de citaes, acompanhadas de comentrios s vezes irnicos, s vezes admirados, frequentemente reduzidos a uma palavra, uma interjeio ou um simples ponto de exclamao.

    Lnin no foi um filsofo no sentido habitual da palavra. No entanto, a leitura destes Cadernos sobre a dialtica de Hegel revela que no estamos em face de um amador cultivado. O leitor se encontra na presena de um pensamento que, apreendido em toda a sua significao, na totalidade dos seus objetivos e dos seus interesses, suporta a comparao com as grandes obras filosficas. Nestes simples cadernos se prolonga, vigorosamente, o pensamento dos fundadores do socialismo cientfico, Marx e Engels, que - no sendo empiristas - vinculavam a sua estratgia e os seus objetivos polticos a uma concepo de mundo. Atravs de Hegel, todas as aspiraes filosficas unidade e verdade, ao universal e ao concreto, so retomadas e expressas por Lnin com este dom de apreender na abstrao o que ela possui de concreto e de atual, dom que foi uma das dimenses do seu gnio.

    Lnin, contudo, no mantm diante dos temas filosficos a atitude especulativa de quem pretende contemplar o universo. E, menos ainda, uma postura dolorosa, de quem sofre com o tormento das contradies do pensamento e do mundo - no a angstia que mobiliza a sua reflexo. Lnin enfrenta esses temas como homem de ao revolucionria, que j experimenta praticamente os seus objetivos.

  • 8 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    A data destes trabalhos pode parecer surpreendente. Por que, em 1914, no incio da devastao mundial, estando exilado e quase sozinho na defesa de suas posies polticas - depois do colapso da Internacional social-democrata -, Lnin se pe a ler o mais nebuloso dos filsofos?

    Lnin no era o homem de uma ao sem verdade. No mesmo momento em que ele l Hegel, um outro homem de

    ao, Mussolini, adapta-se s circunstncias; aproveitador imediatista, j fareja os ganhos de frutuosas modificaes de suas posies polticas: trnsito do internacionalismo ao intervencionismo e, em seguida, ao nacionalismo fascista. Lnin, tragicamente isolado, medita e verifica suas teses; nesta solido do exlio, ele afirma pela reflexo filosfica o futuro e o valor universal da sua posio. Somente queles que, de um lado, consideram a cultura como simples distrao e a filosofia como algo intil e, de outro lado, admiram os lderes polticos como aventureiros e manipuladores desprovidos de verdadeiras exigncias intelectuais, somente queles podem parecer estranhas as preocupaes de Lnin durante este perodo. Lnin no era um desses homens para os quais a ao se contrape ao pensamento, compensando a impotncia da reflexo ou vinculando-se a ela s indiretamente, mediante laos artificiosos. Para ele, a prtica poltica uma prtica consciente. E, aqui, conscincia no significa nunca cinismo, mas universalidade e verificao; e prtica, aqui, no significa jamais servir ao existente, pragmatismo a ele adaptado - sem question-lo e sem examinar seus fins - e empenhando-se apenas em tornar-se eficaz. Lnin l Hegel no momento em que a unidade do mundo industrial moderno se dilacera, com os estilhaos da unidade do que se acreditara realizado colidindo violentamente - no momento em que explodem todas as contradies. A teoria hegeliana da contradio lhe demonstra que o momento no qual a soluo, a unidade superior, parece mais se afastar , s vezes, o momento no qual ela est prxima.

    Neste momento, 1914, o pensamento burgus abandona seus valores - a universalidade e a verdade - e se petrifica no isolamento nacionalista. Tais fenmenos j anunciam o fascismo no plano ideolgico; nos fascismos, o pensamento renuncia a seus valores, a si mesmo e sua resistncia diante do fato consumado. A ideologia

  • INTRODUO 9

    vem em seguida, exigida pelos aventureiros polticos a serviais de baixo nvel. 1 Os temas so manipulados e entretecidos para se tornarem justificaes. Tornam-se temas literrios com os quais tudo se desembaraa - dos apelos emotividade aos preconceitos, aos fantasmas oriundos da opresso e que a conservam. E toda concepo universal do homem e do mundo desaparece. No momento em que tantos intelectuais entram a servio da polcia poltica dos crebros, Lnin, solitrio no mundo, sustenta uma viso universal, uma concepo lgica da existncia - e sua viso prepara a sua ao.

    2 .

    A verdade s pode ser uma superao. Toda elaborao do pensamento procede de elaboraes precedentes - eis a razo da ne cessidade de uma leitura crtica dos textos clssicos. Para esta crtica, h dois mtodos, tradicionais e opostos:

    1) o mtodo puramente interno. O filsofo se torna passivo; ele se fluidifica voluntariamente para se introduzir no conjunto ideolgi co que lhe apresentado. Trata-se do que se caracteriza como apreen der desde o interior. Este mtodo conduz ao desarmamento do crtico e emasculao do pensamento. Ele corresponde ao liberalismo invertebrado que confronta e discute interminavelmente. A pesquisa da verdade nas grandes expresses do pensamento comporta, aqui, o esquecimento da existncia viva da verdade e dos problemas atuais;

    2) o mtodo externo. o mtodo do moralista que julga, do dogmtico. O filsofo, presa de um anacronismo perptuo, pesquisa na histria um simples reflexo de si mesmo. Ele omite o tempo e a histria e descobre apenas uma confirmao das suas ideias pressupostas.

    1 O fascismo italiano necessita imediatamente, para escapar ao risco da morte ou, pior ainda, do suicdio, de se apetrechar com um corpo doutrinrio [...]. A expresso muito forte. Mas eu desejo que a filosofia do fascismo seja criada daqui a dois meses, daqui ao congresso nacional. (Mussolini, Carta a Bianchi, 27 de agosto de 1921, impressa em Messagi e proclami [Mensagens e proclamaes]. Milo, 1929, p. 29.)

  • 10 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    O mtodo de Lenin interno-externo. Ele no opera com nenhum dos dois sofismas que viciam o ato de pensar: ocultar-se a si mesmo, proclamar-se a si mesmo. J Hegel, em sua Histria da filosofia, compreendera cada sistema como um momento histrico e tentara apreender as caractersticas profundas do movimento. Tal como Hegel, Lnin procura determinar o movimento imanente do objeto que se lhe apresenta e considera este objeto como um todo que preciso penetrar sem destruir. Este todo, porm, no fechado. Cada doutrina abre perspectivas. Trata-se, pois, de prolongar seu movimento e de super-la. O crtico deve estar simultaneamente no seu interior e no seu exterior. Lnin procura descobrir os pontos precisos em que Hegel est limitado e aqueles em que ele est aberto ao futuro. Realiza-se, pois, o oposto de uma crtica desrespeitosa: os limites e os aspectos dbeis tornam-se justamente os pontos a serem superados. Lnin, como se ver, irrita-se, irrita-se vitalmente quando percebe o pensamento de Hegel apequenando-se e traindo-se: seus apontamentos revelam-no simultaneamente rigoroso e apaixonado, militante e objetivo, lder poltico e historiador das ideias. Ele simboliza, assim, o proletariado moderno, que, precisamente na consecuo da sua misso revolucionria, reencontra e prolonga todas as conquistas humanas. Deste modo, a leitura crtica torna-se um ato criador. Lnin julga Hegel com uma severidade que s se pode ter em relao a si mesmo - em relao a seu passado, no momento mesmo em que se o supera. (E foi tambm desta maneira que ele leu e anotou Aristteles.) Lnin, assim, est vontade diante dos textos mais abstrusos - extrai deles, imediatamente, a substncia assimilvel. O pensamento hegeliano um pensamento contorcionado, na medida em que envolve um sutil compromisso entre o esttico e o dinmico, entre a metafsica e a teoria do movimento, entre a eternidade e o desenvolvimento. E, igualmente, porque contm sempre o tormento de uma conscincia que ainda no apreendeu o seu fundamento objetivo e as suas condies histricas e sociais. Graas sua posio revolucionria e s suas convices prticas, Lnin simplesmente penetra no interior deste quadro confuso e o esclarece.

    Lnin se alegra com jovialidade apaixonada toda vez que Hegel atinge, atravs de Kant, a raiz de todo idealismo - a coisa em

  • Introduo 11

    si, o incognoscvel, a substncia mstica! Escreve simplesmente: A bas le ciei [Abaixo o cu!]. E mesmo as frases aparentemente mais abstratas tomam um sentido atual, urgente, carregado de virulncia. Por exemplo: Lnin extrai e sublinha algumas palavras de Hegel - Fique claro, porm, que nem toda superao de limites uma verdadeira libertao em relao a eles. Sem comentrios... Esta pequena frase no contm, para ele, a crtica de todo romantismo literrio? O leitor deve reencontrar o seu pensamento. Devemos ler Lnin como ele leu Hegel, seguindo as lies de Hegel. preciso, de modo ativo, extrair os prolongamentos dessas frmulas breves.

    Hegel era um grande burgus liberal e otimista, que acreditava no automatismo do mundo, num progresso - decerto nem banal nem linear - sem verdadeiros acidentes. A partida estava ganha, previamente, por Deus. O progresso conduzia poca burguesa liberal, vale dizer, a ele mesmo e ao rei da Prssia! Da, nele, o compromisso entre o dinmico e o esttico. Ademais, Hegel era, por temperamento e por ofcio, um especulativo sem travas.

    Ele leva ao extremo a presuno do filsofo, que cr que o mundo gira ao redor de sua cabea. Lnin o despe do seu pedantismo professoral e burgus, dessa certeza acerca da prpria importncia, que constituiu o lado idealista e limitador do seu gnio. A pressuposio do pensamento filosfico no era outra que o prprio filsofo: o homem que se pe parte do mundo, juiz e testemunha, para pens-lo inteiro. A gnese desta atitude est ausente na Feno- menologia hegeliana. Este um dos pontos em que a teoria marxista da diviso do trabalho (separao entre o trabalho manual e o intelectual, entre a prtica e a teoria) completar o hegelianismo. Lnin afasta do pensamento fecundo toda a ganga proveniente dessa pressuposio. Imediatamente, a filosofia e a histria do pensamento se desembaraam de mesquinharias eruditas, de sutilezas especializadas. O horizonte se abre. Surge uma nova grandeza: um otimismo, uma superao revolucionria.

    Lnin desenvolve, assim, uma das grandes ideias de Marx e Engels. A filosofia clssica no concluiu a sua tarefa; esta s pode ser continuada pelos representantes do proletariado revolucionrio e se prolongar na sociedade sem classes.

  • 12 + Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    Estes Cadernos revelam, ao mesmo tempo, o movimento do pensamento marxista-leninista e a verdadeira essncia do pensamento hegeliano.

    3.

    Para a maioria dos intrpretes, somente o mtodo dialtico vlido - o contedo do hegelianismo deve ser rejeitado, posto que prenhe de idealismo. De acordo com muitos, o mtodo de Hegel deve servir como o ponto de partida para a construo de um mtodo dialtico materialista. Segundo outros, o mtodo perde seu contedo dialtico se se torna materialista e se transforma numa teoria de foras reais, de seu equilbrio e da ruptura deste equilbrio mecnico.

    Nos Cadernos de Lnin, o problema da inverso2 colocado de forma muito mais profunda e concreta. Trata-se de uma operao complexa, que se desenvolve para alm de umas poucas frmulas.

    Io. A forma e o contedo do hegelianismo no so separveis por uma triagem sumria. Tanto quanto o mtodo, uma parte deste contedo se transfere para o materialismo dialtico. impossvel que a doutrina e o mtodo no interajam e que a doutrina seja inteiramente falsa, ao passo que o mtodo vlido. O idealismo hegeliano possui um aspecto objetivo. A sua teoria do Estado e da religio inaceitvel. E, no entanto, como Lnin expressamente o sublinha, o captulo mais idealista da lgica hegeliana, o da Ideia absoluta, , ao mesmo tempo, o mais materialista.

    Hegel destri a realidade da natureza, da histria e nega expli-citamente qualquer evoluo. Mas, ao mesmo tempo, fornece os ele-mentos de uma crtica ao evolucionismo banal e de uma teoria desenvolvida da natureza, da histria e da evoluo ou seja, ele oferece mais do que uma metodologia formal.

    Nestas condies, a inverso no pode ser uma operao simples, realizada mediante um nico e mesmo procedimento para todas as partes do hegelianismo. Em alguns pontos, a inverso

    Trata-se da inverso materialista do mtodo de Hegel. [N. do .]

  • INTRODUO 13

    se opera por si mesma: basta traduzir Hegel em termos modernos (teoria da contradio). Mas, frequentemente, o texto hegeliano deve ser rejeitado (teoria da religio) ou subvertido para obter proposies atualmente inteligveis (teoria da alienao). Entre estes casos extremos, estende-se toda uma gama de casos nuanados, de dificuldades de interpretao. preciso, por vezes, destrinar pacientemente as frmulas hegelianas para apreender a sua essncia - e, tambm por vezes, uma desmistificao desta mesma essncia (como, por exemplo, na teoria da sociedade civil e do Estado).

    2o. O mtodo, para que perca a forma limitada do hegelianismo e se torne uma razo moderna, deve ser objeto de uma nova elaborao. Ele no como uma caixa de que se pode lanar fora o seu mau contedo para nela introduzir um contedo melhor. Ele no est para a filosofia de Hegel como pea de uma mquina. A unidade do materialismo e da dialtica transforma estes dois termos. A teoria materialista da contradio, por exemplo, s ser suficiente na medida em que for rigorosa e em que traduzir precisamente os termos mais obscuros do vocabulrio hegeliano (o em-si, a indiferena, a relao com si mesmo, a negatividade etc.).

    3o. O problema da inverso se coloca especialmente para o hegelianismo, forma conclusa e superior da especulao. Contudo, coloca-se para toda metafsica. Na verdade, dizem os metafsicos, a alma (o esprito, o pensamento, a conscincia) existe previamente ao corpo, embora o corpo parea nascer antes da alma e a criana parea preceder o homem lcido e o brbaro parea estar na origem do homem civilizado. O fim est frente do incio, nas profundezas da Verdade. O superior a fonte misteriosa do inferior e o pensamento a Razo das coisas. Assim se definia, para o metafsico, desde Plato, a Verdade contra a aparncia. Hegel simplesmente levou ao extremo o paradoxo metafsico, afirmando que a Cincia a causa dos objetos de que ela cincia e que o encadeamento lgico produz o encadeamento das coisas.

    O primado ontolgico conferido ao ideal foi, sem dvidas, a expresso do jbilo dos pioneiros da filosofia diante desta nova realidade: o pensamento. Para melhor acentuar o seu valor, eles esqueciam suas bases elementares. A afirmao deste primado era

  • 14 HENRI LEFEBVRE E NORBERT GUTERMAN

    inevitvel pelas condies sociais que vinculavam o indivduo pensante a uma classe dominante - aristocracia e, mais tarde, burguesia -, separando-o da materialidade, da natureza e do trabalho (diviso do trabalho, separao entre trabalho intelectual e manual). Este paradoxo deveria tornar-se intolervel. A metafsica inverte a ordem prtica, real, das coisas e imerge a verdade no escndalo e no mistrio. Reverter esta operao significa simplesmente reencontrar a sucesso efetiva, a produo das coisas e das ideias sem nada perder das descobertas que foram feitas graas ao orgulhoso estratagema dos metafsicos. Atravs de Hegel, devemos incorporar e restabelecer uma grande tradio do pensamento; mas a pretenso metafsica, a soberba dos metafsicos, deve ser reduzida.

    4o. O filsofo revolucionrio deve conhecer Hegel porque ele alcanou a forma mais elevada da elaborao racional de conceitos - porque, lucidamente, o hegelianismo esforou-se por incluir e superar todas as filosofias anteriores.

    No entanto, seria um erro grosseiro supor que a obra do pensamento se conclui com uma parfrase de Hegel. Ao contrrio, um renascimento do pensamento crtico, unificador, comea com esta retomada, em um novo plano, da filosofia clssica. Sua integrao prtica revolucionria significa um aprofundamento.

    A inverso, operao delicada e complexa, deve ser considerada, pois, como momento de um processo ainda mais amplo do pensamento. Este momento essencial na medida em que ele garante a integrao e a conservao de todo o acmulo filosfico anterior.

    Sobre todos estes pontos, o texto de Lnin contm numerosas e insubstituveis indicaes.

    Podemos esboar o quadro seguinte dos problemas que se colocam ao filsofo revolucionrio, enfatizando expressamente que se trata de um quadro aproximativo, provisrio, e que as questes se entrelaam de tal modo que sua separao sempre artificial.

    A) Aspectos j elaborados da dialtica materialista Io. Teoria do movimento interno das contradies. Retificao do

    mtodo hegeliano. 2o. Teoria da verdade e do relativismo dialtico. 3o. Teoria da unidade sujeito-objeto, teoria-prtica.

  • Introduo 15

    B) Problemas sobre os quais os fundadores do marxismo deram indicaes precisas, mas que devem ser retomados em funo da atualidade filosfica

    Io Teoria da conscincia e da representao ideolgica. 2o Teoria da superao (aufheben) e do progresso dialtico. 3o Teoria do erro e da aparncia. 4o Anlise da categoria de prtica (prxis). 5o Teoria dos nveis e dos domnios especficos. Metodologia. 6o Relao entre o individual e o social. C) Problemas em aberto. Perspectivas do desenvolvimento do

    pensamento dialtico Io Crtica social das categorias do pensamento. 2o Teoria da alienao humana e da integrao dos elementos do

    homem. Ainda uma vez mais: trata-se de aspectos, de momentos de um

    todo acentuados ou a serem acentuados pela prtica, pela histria, pela atualidade e pela pesquisa. Sobre os problemas do homem (grupo C), Marx deixou numerosas indicaes - esto no centro do seu pensamento. E, todavia, Marx e Engels no tinham o gosto das antecipaes profticas; o problema do homem s se coloca concretamente no curso das transformaes da vida real dos homens. As questes do grupo A tm respostas formuladas nos textos de Hegel, Marx, Engels, Lnin etc. - o que se faz necessrio compreender e deenvolver tais escritos. Mas, deles, no se tem nenhuma exposio sistemtica completa. Enfim, os problemas do grupo so postos pela vida e demandam uma anlise dos dados dinmicos da atualidade; mas preciso ter claro que nem por isto a resposta a eles incerta: ela vir sua hora e ter seu lugar numa linha geral. Os problemas no esto em aberto num sentido metafsico: sua soluo j vislumbrada, e at mesmo verificada, em muitos de seus aspectos ou de suas aplicaes.

    Em cada seo, a propsito de cada um dos problemas que se podem distinguir, pe-se a questo da inverso de Hegel e de toda ideologia mistificada. Sobre cada um desses pontos, procuraremos oferecer aqui alguns esclarecimentos, em funo do texto descontnuo dos Cadernos de Lnin e, tambm, dos problemas filosficos atuais (isto , posteriores a Hegel).

  • 16 HENRI LEFEBVRE E NORBERT GUTERMAN

    Teoria da contradio

    Ela s ser suficiente quando se compreender e retomar, em funo da prxis humana, a Fenomenologia de Hegel.3 Nesta obra, o filsofo tentou mostrar como se constitui a conscincia dialtica (a conscincia da contradio e de sua unidade com a unidade, a conscincia da unidade do ser e do conhecer).

    Toda atividade e toda conscincia sempre foram contradit rias, porque envolviam uma coliso com a natureza e conflitos entre grupos e classes sociais. Mas a conscincia clara da contradio su punha condies complexas: nvel ideolgico elevado, vocabulrio adequado, eliminao das formas nebulosas e emotivas do pensamento, tenso extrema das foras humanas, da ao sobre a natureza e do movimento da histria.4 Esta conscincia, portanto, s poderia se constituir lentamente - como Hegel o demonstrou, ela deveria experimentar mltiplas atitudes e posies limitadas e unilaterais. Ela emerge sob formas mgicas, msticas, morais: o Bem e o Mal, o Heri e o Destino, Deus e o Diabo, lutas recprocas entre foras obscuras e contra o homem etc.

    A pouco e pouco, contudo, em circunstncias ainda mal es clarecidas, esta conscincia se decanta e se elucida. Aparecem, ento, determinaes precisas: o Um e o Todo, o Mesmo e o utro, o Idn tico e o Diverso (Parmnides, Herclito, Plato). O desenvolvimento social fez explodir a forma religiosa da ideologia e criou a exigncia de uma conscincia intelectual rigorosa, fundada na razo de cada homem. Comea, ento, um grande jogo de confrontos, que durar sculos, entre esses diferentes conceitos. A conscincia d contradio se justape da unidade e, em geral, submete-se a esta. (De Parmnides a Leibniz, que realizou na sua Monadologia um esforo herico, ainda que fracassado, para reconduzir o mltiplo ao uno e a contradio identidade.) Para Plato, a dialtica - isto , a conscin

    3 H traduo ao portugus: G. W. F. Hegel, Fenomenologia do Esprito. Petrpolis/Bragana Paulista: Vozes/S. Francisco, 2008. [N. do .] 4 Cf. Engels, Dial, und Natur, p. 187. [Cf. Engels, Dialtica da natureza. Rio de Janeiro: Leitura, s.d., p. 162. (N. do T.)]

  • Introduo 17

    cia da contradio nas ideias e nas coisas - era um mtodo para encontrar no diferenas, mas identidades, resolvendo as contradies nas ideias puras at o acordo final. Para os sofistas e os cticos, ao contrrio, a dialtica era um modo de confronto, descobrindo que cada posio do pensamento s se definia pela posio antpoda, destruindo-se a si mesma. Em Hegel, enfim, a luta e os compromissos entre estas determinaes so superados. Elas deixam de ser exteriores umas s outras. O sentido histrico e a teoria da evoluo, frutos do sculo XVIII e da poca revolucionria, unem-se lgica antiga. A lgica e a histria, vinculando-se, do um decisivo passo adiante. A lgica torna-se concreta e a histria torna-se inteligvel, conectado o seu movimento ao das contradies do pensamento. Hegel toma conscincia, simultaneamente, da contradio e da unidade - do movimento e do inteligvel. Em vez de opor-se contradio (o que deixava fora da unidade todos os fatos reveladores de antagonismos e oposies), a unidade racional torna-se unidade contraditria. A dialtica se funda como cincia.

    A Fenomenologia de Hegel leva a dialtica at a Lgica. Ele toma o resultado como princpio, e a unidade dos contrrios torna-se a causa de todo o movimento que conduziu a conscincia a si mesma, a razo ideal das coisas nas quais se pode encontrar a unidade, a contradio, o movimento. Mesmo tendo estabelecido que o absoluto no mais do que a totalidade do relativo, o filsofo acredita pene trar na intimidade do absoluto. Ele abandona a histria concreta (fe nomenologia) para se instalar na histria abstrata da ideia. O comeo no mais a sensao ou a ao; para este desenvolvimento absoluto da ideia necessrio um comeo puro - o ser, idntico ao nada.

    As proposies dialticas poderiam passar por simples fen menos de conscincia. Quando pensamos em uma coisa que se transforma, percebemos que no suficiente afirmar que o estado A desapareceu pura e simplesmente e que apareceu um estado B. Algo de A perdura em B; a anulao de A no absoluta; ainda pensamos em A quando pensamos em B. A conscincia comum (o entendimento, Verstand) contenta-se em afirmar: B outro que A. A conscincia dialtica percebe que esta

    palavra - outro - dissimula

  • 18 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    relaes. A negao uma relao. Nosso passado perdura em ns e, contudo, ele no existe mais. Os conhecimentos elementares que obtivemos esto presentes em nossos conhecimentos superiores, mas de um modo singular: no por eles mesmos ou em si mesmos - eles so negados e, no entanto, elevados a um nvel mais alto. O hegelianismo afirma que a dialtica objetiva explica a dialtica na nossa conscincia. No a histria emprica (ideolgica) da nossa conscincia que explica a percepo do movimento, da relao de anulao. No a reminiscncia, no o reconhecimento que explica a concepo desta relao. A dialtica, ao contrrio, explica a prpria memria. De acordo com o princpio aristotlico, a ordem do ser inversa ordem do conhecer - o que o ltimo no conhecer (a ideia, a conscincia dialtica) o primeiro no ser.

    E aqui que comeam as dificuldades para o filsofo que quer inverter Hegel e colocar sobre seus ps o mtodo hegeliano. preciso inverter Hegel porque ele mesmo inverte as coisas e as pe de cabea para baixo: a ideia antes do real e a conscincia antes da ideia. Mas Hegel realiza esta operao para passar legitimamente da conscincia ontologia: para explicar toda a histria da conscincia mediante uma forma aperfeioada desta conscincia - de modo tal que pode parecer impossvel remeter a conscincia dialtica a uma dialtica objetiva sem tomar a sua posio.

    Esta dificuldade pode se precisar em trs questes que corres-pondem aos problemas do grupo A, colocados pela primeira elaborao da teoria dialtica:

    Io. Como a contradio e a unidade dos contrrios, relaes ideais percebidas apenas pela conscincia mais elevada, podem ter um sentido fora desta conscincia? Como a contradio pode ser outra coisa que no uma essncia lgica interior ao esprito?

    2o. Hegel afirma qu>; a Verdade existe anteriormente s coisas das quais ela a verdade e que se engendra no interior do esprito, como causa final absoluta a partir de um comeo expurgado de toda pressuposio - o ser. O qut resta do hegelianismo se se recusa construir metafisicamente o real?

    3o. A unidade e a adequao do sujeito e do objeto no conheci-mento so garantidas em Hegel, postos como Razo (causa final) dos

  • Introduo 19

    objetos e dos sujeitos reais. O que resta desta garantia da verdade se se abandona o idealismo hegeliano?

    Quando se analisam os comentadores idealistas de Hegel, torna-se flagrante que eles se empenham em depreciar a objetividade da contradio dialtica. McTaggart escreve (Studies on the Hegelian Dial, p. 855): As contradies no esto no ser, enquanto oposto ao pensamento. Elas esto em todo pensamento finito, desde que este procure operar. A contradio sobre a qual se funda a dialtica esta: se utilizamos uma categoria finita em relao a um objeto, somos forados, se examinamos a implicao do seu emprego, a empregar tambm o seu contrrio ao mesmo objeto. Ou seja: a contradio dialtica s tem um valor epistemolgico para o nosso pensamento limitado. O objeto no contraditrio. A contradio apenas ideal: a Ideia suprime, nela mesma, no absoluto, a contradio. Croce, outro comentador idealista, tenta opor a distino contradio. Os distintos podem estar em relao, mas tm uma existncia autnoma, irredutvel a estas relaes. A contradio assim debilitada em oposio e diferena e, em seguida, em simples distino. Hegel no fez esta importante discriminao [...]. A teoria dos

    opostos e a teoria dos distintos foram confundidas por ele [...] (cf. Ce quilyade vivant et de mort chez Hegel, p. 95 da traduo inglesa6).

    Ora, Hegel no se cansa de repetir (e Lnin o sublinha) que tudo o que existe contraditrio, que a dialtica objetiva, que a lgica tradicional que s confere existncia ao no contraditrio insuficiente.

    O 240 da Enciclopdia oferece uma indicao da mais alta importncia (confirmada por toda a filosofia da Natureza e do

    5 lohn Ellis McTaggart (1856-1925), Studies in the Hegelian Dialectic [Estudos sobre a dialtica hegeliana], Cambridge: Cambridge University Press, 1896. autor referido por Lnin nos seus Cadernos filosficos. [N. do .] 6 Esta obra de Croce (O que h de vivo e de morto na filosofia de Hegel) de 1907 e, em francs, saiu, em 1910, pela editora Giard et Brire, de Paris. A referncia de Lefebvre e Guterman traduo inglesa de Douglas Ainslie - What is Living and What is Dead of the Philosophy of Hegel de 1912. [N. do .]

  • 20 + Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    Esprito) sobre o modo pelo qual Hegel concebia a realidade da contradio. A contradio no idntica em todas as esferas e em todos os graus. A negatividade especfica. H um debilitamento crescente da contradio na progresso dialtica do Ser para a Ideia, na qual a contradio no mais do que uma diferena interna. A atividade do pensamento (a ideia) consiste, pois, em conter em si e a manter os termos contraditrios que existem objetivamente no ser. Para Hegel, portanto, a contradio mais real no ser objetivo (na natureza) do que no pensamento. Somente o pensamento marxista desenvolve, compreendendo-a, esta sugesto hegeliana. A unidade dos contrrios no apenas interpenetrao conceituai dos termos ou dilaceramento ideal: conflito, choque, relao viva na qual os contrrios se produzem e se mantm um e outro em sua prpria luta, at a vitria de um deles ou at a mtua destruio - assim, a luta das espcies animais, das classes sociais etc. A contradio deixa de ser uma relao definida logicamente, unvoca e ainda metafsica, para se tornar uma relao real, de que a dialtica a expresso e o reflexo. um fato natural e histrico, que passa por fases e graus: latncia, paroxismo, exploso, superao ou destruio. Decerto, conforme a concepo hegeliana, o pensamento menos contraditrio do que o ser (a natureza), porque a contradio se resolve em pensamentos diferentes. O pensamento de uma destruio no uma destruio deste pensamento. Um pensamento concentra termos que, na realidade, so incompatveis, ainda que ligados no drama da sua luta e do seu devir, que so totalidade dispersa.7

    A origem de todas as dificuldades parece estar numa confuso entre a contradio e a conscincia da contradio. Hegel distingue-as implicitamente, mas no aprofunda a distino. Confimdi-las leva a uma posio insustentvel. Afirma-se, ento, que a contradio existe apenas na conscincia, o que retira qualquer valor objetivo dialtica. Ou, ainda, afirma-se que o pensamento, sendo contraditrio, destri- se incessantemente a si mesmo e deve agarrar-se a um Ser mstico,

    7 O paradoxo do pensamento dialtico, pois, consiste em aguar a percepo das relaes contraditrias ao mesmo tempo em que as domina e as une numa atividade imanente.

  • Introduo 21

    no qual haveria de se dissolver. A distino proposta talvez resolva a dificuldade. A contradio existe nas coisas e s existe na conscincia e no pensamento porque existe nelas. Mas a conscincia da contradio define uma atividade que se desenvolve com uma coerncia imanente: o pensamento dialtico. O pensamento totalidade dinmica, no dispersa, totalidade interna.

    Se o pensamento dialtico no , pois, contraditrio no mesmo sentido em que o so a natureza e as coisas, o conhecer e o ser diferem, ainda que estando ligados. Particularmente o conhecer, no curso do seu desenvolvimento, no um reflexo exato e contnuo do ser, mesmo que a ligao sempre possa ser reencontrada e que o resultado seja um reflexo do ser. A adequao se d somente no final do processo. A dialtica objetiva opera especificamente no pensamento e nas coisas, embora seja a mesma dialtica. Conforme a notao de Aristteles, h uma distino entre a ordem do conhecer e a ordem do ser - e, at, uma pode ser o inverso da outra. (Assim, o conhecimento humano teve inicialmente uma forma mstica e mgica; e a lucidez dialtica tardia.) preciso, portanto, tomar como ponto de partida o que foi adquirido em ltimo lugar. Mas esta inverso da ordem histrica das ideias no autoriza a inverso metafsica. O paralogismo metafsico consiste em no distinguir o que conhecer e o que a fenomenologia do conhecer, o que etapa e o que resultado, o processo de aquisio e o contedo. A metafsica inverte grosseiramente todo o processo: ela se apropria do resultado que era preciso somente extrair e o pe como princpio ontolgico. precisamente o que faz o idealismo hegeliano.

    A contradio do ser, segundo Hegel, seria apenas uma mani-festao da diferenciao interna, da alienao da Ideia, tornada estranha e exterior a ela mesma. Ento, com efeito, a contradio se resolve na diferena, e esta, na distino e na pluralidade. E ento a lgica dialtica se liquida - e, com ela, a contribuio de Hegel ao pensamento. A idealidade da contradio postula a realidade do Esprito e o ato mstico de um Absoluto que se fecunda a si mesmo e d luz o universo. Uma lei do movimento do conhecimento hipostasiada num ser de razo e, por isto mesmo, desmentida, suprimida, remetida ao mistrio. Esta hiptese, para falar propriamente, no pode ser refutada. um ato do homem Hegel. No

    Viviane Bonfim Fernandes

  • 22 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    se pode refutar Dom Quixote. Disto, a vida se encarrega - e a morte. A refutao do idealismo hegeliano se reduz a isto: a idealidade da contradio significa que se reconduziu a contradio conscincia da contradio: a essncia profunda da transformao , portanto, ideal, vale dizer, no h transformao real. A coerncia no mais do que imobilidade. O conhecimento deixa de ser determinado como um desenvolvimento racional. A identidade metafsica triunfa. O movimento dialtico se transforma numa escala esttica de noes, o que contraria o prprio esprito do hegelianismo. Assim, a contradio est no sistema, sob uma forma imprevista, como um desmentido interno - que o obriga a mover-se, a implodir... Mas se algum quer ser incoerente, quem poder impedi-lo?

    Na unidade do sujeito e do objeto, do conhecimento e do ser (unidade que ope estes termos, unindo-os), o primado conferido subjetividade destri a prpria unidade. Porque no se pode compreender de onde surge o ser se a Ideia posta primeiro. Assim, coloca-se na origem a noite mstica na qual, como o prprio Hegel diz ironicamente, todos os gatos so pardos. Somente o primado do objeto sobre o sujeito e

    do ser sobre o conhecer - da contradio objetiva sobre a conscincia dialtica - permite compreender este fato fundamental: o conhecimento conhecimento do ser! A dialtica s se mantm como dialtica se no deixa fora dela o materialismo, se se une a ele. Para o idealismo, a ideia se exterioriza e se degrada em natureza. Para o materialismo, a natureza se supera e a ideia supe e envolve as relaes da natureza e da sociedade humana, sua luta e sua unidade. E esta tese a nica conforme frmula hegeliana: die sich selbst zerreissende Natur aller Verhltnisse.8 A determinao recproca da contradio e da identidade s pode ser concreta num mundo onde o todo tanto multiplicidade real quanto unidade real - interdependncia, choque, conflito e movimento e superao criadora.

    Toda tentativa de fazer da contradio uma essncia lgica que o esprito pe e suprime uma maneira de fix-la numa idealidade

    8 As circunstncias ou condioes da natureza que se dilacera a si mesma [N. do .].

  • Introduo 23

    fechada e eterna. Procura-se, ento, resistir morte pela afirmao da eternidade imvel, pela negao ideal da morte. Procura-se retirar a contradio do indivduo pensante e precisamente assim se sacrifica a vida concreta morte. Nega-se o drama verdadeiro da existncia, que resulta do fato de os contrrios terem necessidade um do outro sem poder evitar a sua luta: o homem e a natureza, a vida e a morte, o indivduo e a espcie frente a frente uns dos outros... A morte, o nico inimigo do homem, serve implicitamente para definir o Esprito absoluto - o que talvez seja o crime absoluto contra o esprito vivo...

    A noo de totalidade merece ser examinada desde j. Algumas doutrinas, que afirmam a irredutibilidade de mltiplos domnios, podem ser consideradas como pluralismos. A autonomia recproca da arte, da religio, da cincia, sua independncia frente prtica e vida social, so postuladas pelos pluralismos antitotalitrios. Sob uma forma irrefletida, esta concepo extremamente generalizada. Ela foi filosoficamente formulada por W. James, Croce etc. Historicamente, ela corresponde a um liberalismo que respeita todas as atividades.

    Esta filosofia pluralista experimenta e constata passivamente, em

    vez de conhecer. E nada limita o nmero das essncias que ela pode admitir. Magia, espiritismo, ocultismo podem muito bem passar por domnios. O pluralismo s compreende a confuso ou o isolamento das noes. A posio dialtica - conexo e oposio, diferena na unidade - lhe escapa.

    O pluralismo est superado. A vida social (Hegel o pressentira) comporta uma correlao orgnica de diversas formas de atividade. A vida moderna exige que esta correlao se torne consciente e planificada. No se pode contentar com um abandono s diversas experincias, a um polimorfismo. Os problemas prticos (por exemplo, a pedagogia), os problemas internos dos diferentes domnios (a relao da arte com a vida social, a conscincia do artista) exigem uma concepo unitria.

    Mas aqui duas direes se opem. Uma apresenta a totalidade como um crculo, como uma esfera - como fechada. O organismo social e humano tomado como um todo definido de uma vez por todas e sujeitado e mantido em quadros apriorsticos que assinala- rariam a cada domnio seu lugar, sua forma e seu contedo. Um

  • 24 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    domnio ter a prioridade, o papel da Ideia absoluta. O Estado ser a alma da totalidade fechada. Chega-se, assim, ideia fascista do Estado totalitrio.

    Bergson teve razo em distinguir as realidades fechadas e as realidades abertas. Mas ele passa ao largo do verdadeiro problema - uma totalidade necessariamente fechada? O aberto necessariamente o amorfo, o inefvel e o no prtico? Decerto que nossos hbitos mentais, sobrevivncias da lgica metafsica, nos levam a figurar um todo como fechado. O pensamento dialtico, porm, permite-nos conceber uma totalidade aberta - e esta uma das suas novidades essenciais. Um ser vivo uma totalidade movente. Ele infinito e finito. Ele traz em si suas relaes, seus conflitos, suas funes. Ele os mantm, os reproduz e os domina at a sua morte. O pensamento, tomado em seu conjunto e em seu movimento, um outro exemplo de totalidade aberta. Para a dialtica materialista, a totalidade social deve ser a organizao da vida humana e dos seus meios, racionalmente ordenados a servio do Homem. Os indivduos no devem ser sujeitados nem permanecer isolados. Sua relao com a totalidade deve ser tal que nela encontrem as condies de seu desenvolvimento e que cada um possa se propor constituir-se como Homem Total.9 No h prioridade conferida ao Estado - este apenas um meio provisrio. A prioridade conferida ao possvel racionalmente determinado, fundado sobre a planificao e o desenvolvimento das foras criadoras. A totalidade, pois, no diz respeito ao Estado, mas ao Homem: ela tem um objetivo, um ideal - o Homem Total, que se apropria de todos os meios da sua vida. Unicamente o materialismo dialtico salva o dinamismo, o progresso e o ideal. O Estado fascista parodia a totalidade real. Ele infla sua forma caricatural e imvel com um falso dinamismo, com o misticismo absurdo da raa, do chefe ou do passado. Ele exige o sacrifcio dos indivduos ao Estado fetichizado. Longe de suprimir as contradies, ele as dissimula at o instante em que o movimento emergir com maiores abalos.

    9 Cumpre, portanto, opor total, no sentido dialtico, a totalitrio.

  • Introduo 25

    Sobre este ponto essencial, Hegel permanece equvoco. A ideia de totalidade est no centro da sua doutrina. A verdade est na totalidade. Cada realidade (e cada esfera da realidade) uma totalidade de determinaes, de momentos, de contradies atuais ou superadas.

    Cada realidade aberta em todas as suas relaes e em ao recproca com o mundo inteiro. Cada nvel do ser se move e se abre para o nvel mais elevado - por exemplo, a natureza em direo Vida, que concentra a totalidade das determinaes dispersas na natureza. E, no entanto, a Ideia concebida como cincia j acabada, como sistema. Ela conclui a reinvoluo de todas as determinaes - o movimento total entra na posse de si mesmo. A Ideia eterna, sem possvel: ela resolve eternamente as contradies que ela mesma pe. Ela fechada, o que se traduz praticamente na apologia do Estado reacionrio.

    Inverter Hegel, aqui, liquidar o equvoco do seu pensamento e elucidar esta idia inteiramente nova da totalidade aberta, resolvendo suas contradies num movimento ascendente e no numa transcendncia metafsica ou mtica.

    A contradio , pois, real, est nas coisas mesmas. Ela no uma transposio conceituai do movimento, nem to somente uma expresso limitada e provisria das coisas, resultado de uma anlise incompleta e fragmentria. A essncia das relaes reais , sendo relao, ser luta e choque. Termos e relaes so tomados no como eternos, mas como mveis. Estas frmulas no constituem uma apologia da contradio, do dilaceramento ou do absurdo.

    O marxismo v na luta de classes a ltima forma das lutas que ensanguentam a natureza biolgica, a variedade ltima - e que deve ser superada - da contradio objetiva. No a contradio que fecunda - fecundo o movimento. E o movimento implica simultaneamente a unidade (a identidade) e a contradio: a identidade que se restabelece em um nvel superior, a contradio sempre renascente na identidade. A contradio como tal intolervel. As contradies esto em luta e em movimento at que elas prprias se superem a si mesmas.

    A vida de um ser ou de um esprito no consiste em ser dila-cerado pela contradio, mas sim em super-la, em manter em si,

  • 26 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    depois de hav-la vencido, os elementos reais da contradio. Assim opera a humanidade inteira, considerada como uma totalidade berta, como esprito. A contradio, como tal, destrutiva; ela criadora enquanto obriga a encontrar uma soluo e uma superao. O terceiro termo, a soluo, a identidade enriquecida e emancipada, reconquistada num nvel superior. A vida esta superao. Cons-tantemente, a contradio reaparece na vida. Constantemente, ela deve ser vencida.

    A lgica dialtica confere um novo sentido ao princpio da identidade: ela supera o formalismo tautolgico (a velha lgica da incluso espacial e esttica dos conceitos) e se torna viva. No apenas se observa a conveno do discurso e os termos permanecem os mesmos durante o juzo ou a inferncia: cada termo existncia determinada, essncia, realidade, estrutura inteligvel; cada termo ele mesmo mas, sendo ele mesmo, outra coisa - n e centro de relaes. A A, mas, sendo A, tambm B. A frmula A B exprime uma das relaes, um dos atributos e uma das propriedades de A. O termo A , pois, uma totalidade (determinada atualmente e, no entanto, infinita, movente e aberta) de propriedades , etc., das quais cada uma uma ao recproca de A com os objetos que, em nmero infinito, esto imersos na interdependncia universal.10 Hegel estabelece que a substncia o conjunto das relaes, e a essncia, a totalidade das manifestaes e fenmenos.

    A contradio, portanto, no se obtm mediante operaes exteriores essncia. Ela se descobre pela anlise do que - no corao de um ser - seu movimento no inteiro mundo que o implica no seu devir. ele e ele outro e mais do que ele. Ele s pode ser no interior do movimento. Assim, a destruio, o dilaceramento, a contradio esto nele. Contudo, ele uma totalidade e uma unidade, a unidade dos contrrios, lao interno de seus elementos e momentos. No devir, a forma atual desta unidade ser superada, e seu contedo, resgatado - a unidade triunfar (aufheben) em um nvel superior.

    l0O prprio Hegel (Encyclopcap. III, nota) exprime a verdadeira natureza das determinaes da essncia: Na essncia, tudo relativo (Engels, Dial, und Natur, p. 157 [cf. na edio brasileira citada da Dialtica da natureza, p. 132. N. do T.]).

  • IntroduAo 27

    A contradio dialtica no pode, pois, ser interpretada como um absurdo realizado. A identidade tem um papel maior do que na lgica formal: ela concreta. A contradio insuportvel, mas ela . Hegel no ofereceu uma teoria da confuso dos termos. Lnin cita e sublinha todas as passagens que opem a dialtica sofistica. No se pode dizer, ao mesmo tempo, que um objeto redondo e que quadrado. Mas preciso dizer que o mais s se define pelo menos, a dvida pelo crdito, que a estrada para o leste tambm a estrada para o oeste, que o homem um ser da natureza em luta com ela, que a superproduo provm do subconsumo, que o proletariado e a burguesia se engendram mutuamente no curso de uma longa luta etc.

    Sempre se pode encontrar numa realidade aquilo que a faz estar inscrita no devir e destinada superao. A anlise dialtica sempre possvel. Uma laranja e um chapu no esto em contradio e no constituem uma unidade. Somente contraditrio aquilo que idntico e somente idntico o que contraditrio.

    O jogo dos pluralistas, neste ponto, consiste em tomar objetos de domnios afastados - a laranja e o chapu, a arte e a cincia. Eles demonstram, ento, que no se pode aplicar a estes objetos as categorias do imediato e do contnuo. E tm razo! O seu procedimento consiste em ocultar os encadeamentos que ligariam, por exemplo, a arte e a cincia pela mediao da vida social, da cultura, da produo etc. A distino aplica-se somente aos objetos e domnios mediatamente conectados e que so considerados apenas sob este aspecto, sem o tratamento da interdependncia. A anlise isola momentaneamente as realidades - e neste momento que sobrevm o risco de pensar metafisicamente. O pluralismo cai na armadilha. Ele regressa ao nvel da metafsica do entendimento, que decifraria o mundo slaba por slaba, partes extra partes,11 metafsica que, ela mesma, estava no nvel de uma cincia ainda tateante e sobretudo mecanicista. A cincia [contempornea] confirma o que disse Hegel: a ao recproca a verdadeira causa finalis das coisas. No podemos ir mais alm do conhecimento desta ao recproca simplesmente

    11A expresso latina denota uma parte como coisa externa outra parte. [N. do .]

  • 28 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    porque no h nada alm dela. [...] Para compreender os fenmenos isolados, ns os extramos da interconexo [Zusammenhang] universal, ns os tomamos isoladamente; ento aparecem as condies mutantes, umas como causas, outras como efeitos (Engels, Dial. der Natur, p. 16612). O pluralismo vtima dessa aparncia. Malgrado a sua pretenso ao empirismo integral, e seu respeito mstico pelos domnios e os seres, ele reintroduz em cada domnio o encadeamento mecnico da causalidade e a tautologia lgico-metafisica. A posio de um pluralista se reduz a estas afirmaes: A arte no a filosofia... A arte a arte... O bem no o til... etc. O movimento total torna- se incompreensvel. A dialtica hegeliana, diz Croce (op. cit., p. 120), est privada de meios para reconhecer a autonomia das formas variadas do esprito e para lhes atribuir o seu justo valor. Mas o pluralismo leva ao absoluto esta autonomia (que a dialtica no nega num sentido relativo) ao eliminar toda conexo explicativa. Talvez Croce tivesse razo contra um formalismo dialtico idealista, para o qual no existiriam transformaes reais. Mas ele erra em relao dialtica materialista, segundo a qual, precisamente, a dialtica possui um contedo material que se transforma passando de um nvel a outro (e, notadamente, da natureza ao humano) sem, por isto, deixar de ser dialtica, e que leva em conta a diferena e mesmo a descontinuidade, sem esquecer a unidade e a continuidade.

    Para resumir esta discusso, a teoria dialtica combate: Io. O formalismo lgico-metafsico, seja sob sua forma tautolgica

    (lgicas e sistemas da Identidade), seja sob sua forma kantiana. As anotaes de Lnin mostram como Hegel, superando o formalismo de Kant, tendia a superar o seu prprio formalismo para chegar plena objetividade da dialtica.

    2o. O empirismo, para o qual a contradio apenas um fato, no uma lei do ser, e que a reduz diferena constatvel pela observao, simetria, justaposio dos contrrios. O pluralismo, forma refinada do empirismo, confunde o mediato com o imediato,

    12 Cf., na edio brasileira citada da Dialtica da natureza, as p. 140-141. [N. do .]

  • Introduo 29

    desdenha as conexes explicativas; negando a contradio, nega qualquer espcie de teoria unitria e conduz a um misticismo de baixa qualidade.

    3o. A sofistica, que realiza a contradio no pensamento (o pensamento hegeliano se serve da dvida para dissolver as determi-naes absolutas do entendimento metafsico, mas supera este momento do qual restam prisioneiros o sofista, o ctico, o ironista).

    4o. O materialismo vulgar, segundo o qual a oposio um simples antagonismo de foras externas, de essncias no mutveis, do qual cada uma como uma causa absoluta. O mecanicismo deixa de observar que os contrrios relacionam-se por uma conexo interna que constitui a sua unidade. Ele oferece do encadeamento e da interdependncia universal uma noo unilateral, simplificada. S concebe a causalidade mecnica (A produz que produz C), sem poder elevar-se noo de ao recproca (B reage sobre A e A sobre B, donde o resultado C).

    A estes inimigos preciso agregar o ecletismo sem rigor, o

    evolucionismo banal, que despreza os incidentes do devir e s proporciona um esquema estreito e estril (Lnin) e seu corolrio, o

    geneticismo, que desloca todas as dificuldades para a noite das origens (Hegel).

    Estas doutrinas se situam num mesmo nvel, no entendimento unilateral (vale dizer, burgus), numa mesma limitao e numa mesma negligncia de vrios elementos da realidade. As anotaes de Lnin permitem super-las e elucidar o que permanece obscuro no pensamento de Hegel.

    Estas consideraes no esgotam o problema da inverso da

    teoria hegeliana da contradio. Em Hegel, a negatividade o princpio e o motor do movimento

    dialtico. Esta negatividade no o Nada absoluto. Ela o nada relativo, como fim, limite, transio, mediao, comeo de outra coisa. O pensamento de Hegel a noo do ser em geral, do qual logo se percebe a insuficincia. A negao , ento, para a afirmao inicial e imediatamente colocada, o incio de determinaes novas. A negatividade criadora, raiz do movimento, pulsao da vida...

  • 30 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    Mas, no hegelianismo, a negatividade comparece com dois sentidos. Ela est na origem do movimento ascendente que parte do ser para alcanar a Ideia, por meio da srie das categorias. E, de outro lado, ela est na origem do movimento descendente que aliena a Ideia e a dispersa. A negatividade aparece de modo muito equvoco. Mesmo quando tomada apenas no primeiro sentido, ela tem em Hegel um valor mstico. As determinaes posteriores e superiores (do ser e do pensamento) tm uma fora estranha que lhes permite suscitar suas prprias condies. A negatividade parece, no pensamento hegeliano, ser um aperfeioamento da noo clssica de virtualidade. Trata-se de uma virtualidade ativa. O resultado est virtualmente presente nas suas condies precedentes e, na realidade, existe mais profundamente do que elas, preparando-se nelas mesmas para as negar a fim de ser. O Absoluto, abismo atuante, est assim presente desde as suas mais simples determinaes. E, definitivamente, existe antes delas.

    Em A sagrada famlia, Marx j ironizava as consequncias pa-radoxais desta teoria. O fim causa, e o resultado, princpio; o filho suscita seu pai e o pai do pai.13

    Esta ideia uma estranha projeo, no absoluto, da conscincia do indivduo isolado que ignora as suas prprias condies, acredita que sua prpria conscincia racional o centro, a causa e o fim do mundo inteiro e busca tirar o melhor partido possvel desta propriedade milagrosa, estendendo-a a tudo que o cerca e tornando o universo um espelho do seu tormento. A dialtica materialista s pode rejeitar a teoria da negatividade descendente, do abismo ou da Ideia, abissal ela mesma, que se precipita para se reencontrar. Ela s pode operar com a negatividade ascendente - mas esta noo deve ser cuidadosamente revisada e separada da noo metafsica de virtualidade.

    Io. A dialtica materialista no pode servir a uma construo especulativa da reflexo, da subjetividade e do para-si (fr-sich-

    l3Cf. K. Marx; F. Engels, A sagrada famlia ou A crtica da crtica crtica. Contra Bruno Bauer e consortes, So Paulo: Boitempo, 2003, p. 190. [N. do .]

  • Introduo 31

    sein). A conscincia se conquista prtica e historicamente. Este para-si to somente a conscincia filosfica, o filsofo sendo a forma abstrata do homem alienado (K. Marx, Crtica de Hegel, num dos Manuscritos de 1844u). Trata-se, pois, de uma conscincia desprovida de seus atributos vivos. A formao da conscincia se estuda numa cincia das ideologias. O vnculo entre conhecimento e ser no uma fora misteriosa, a negatividade - histrico e prtico.

    2o. Como Engels observou, a negao dialtica toma uma forma em cada domnio, o que liquida a noo de uma negatividade unvoca e geral. A negatividade hegeliana representa a intruso do mtodo especulativo nos domnios especficos: biologia, psicologia etc. A lgica deve se limitar a determinar a originalidade especfica do movimento em cada uma dessas esferas e a elucidar as metodologias prprias, em funo de uma metodologia geral dialtica.

    3o. A natureza nos dada como totalidade de aes recprocas. A negatividade da semente no , pois, uma fora misteriosa da

    planta, que levaria seu germe a se desenvolver, Ela a relao, a interao da semente com o meio em que germina. A fora depende da ao - e no a ao da fora. Sem realidade no h possibilidade. O virtual uma determinao do real, o que perfeitamente compatvel com a anlise hegeliana da realidade (Wirklichkeit).15 A negatividade significa que cada coisa se v arrastada pelo movimento total e que este movimento no uma liquidao abstrata da coisa: ela se afirma nele e por ele, ela concorre para ele; ele s pode arrast-la conservando o essencial dela. A negatividade a expresso abstrata deste movimento - ele, sem cessar, oferece novas determinaes que, na unidade e na interdependncia (Zusammenhang) universal, continuam relacionadas quelas que as produziram. Um tal devir superao. A interdependncia universal no um entrelaamento sem forma e um caos sem estrutura. unidade na diferena e diferena na unidade. As leis do movimento so idnticas ao prprio

    14Cf. K. Marx, Manuscritos econmico-filosficos de 1844. Lisboa: Avante!, 1994, p. 110. [N. do .] 15 Como indicaro mais adiante, Guterman e Lefebvre traduzem o alemo Wirklichkeit ora por realidade, ora por atualidade. [N. do .]

  • 32 HENRI LEFEBVRE E NORBERT GUTERMAN

    movimento. A estrutura e a ordem proveem da interao (Wechsel- wirkung) das foras tumultuosas da natureza - do conjunto das criaes e das destruies, das eliminaes e das superaes.

    Se o dado (no no sentido kantiano da palavra, mas no sentido prtico) a realidade do mundo, pode-se comear pela noo de ser?

    Este ltimo comeo tem, para Hegel, um valor absoluto: permite reencontrar a gnese do Esprito e reconstruir, a partir de uma noo alm da qual no se pode remontar, todas as determinaes do ser. A histria real dos seres no mais do que a nebulosa manifestao desta histria ideal. A lgica ontolgica. O pensamento do ser j o ser - porque Hegel (que negligencia a prxis ou, pelo menos, no a acentua) pensa que, de outro modo, a relao do ser com o pensamento e a existncia do pensamento no mundo so ininteligveis. Este o argumento ontolgico. Hegel parte do comeo puro, o ser; depois, ele chega realidade e, enfim, ideia.

    Para ns, o ser puro no mais do que uma entidade: o ponto extremo da abstrao. Assim se coloca o problema do comeo. No pode haver um comeo absoluto e puramente lgico. O ser abstrato, ens generalissimum,16 tomado como termo primeiro, caracteriza o desejo de uma construo metafsica relativa ao conjunto do mundo, imobilizando-o, negando a experincia, o movimento, a especificidade dos domnios e a originalidade dos seres. Supe-se possuir magicamente estes seres reais no pensamento do ser. Velha iluso dos metafsicos! Para o materialista, com o mundo sendo dado na atividade prtica, suas leis

    e suas categorias so imanentes e sua descoberta o resultado de uma anlise e no de uma construo sinttica. O comeo s pode ter um valor metodolgico. O pensamento humano parte da ao sobre o real e alcana, aps longos esforos, conceitos gerais, dos quais o mais simples, o mais desprovido de contedo, o mais elucidado - portanto, o mais abstrato -, aquele de ser. Da, o pensamento retorna realidade. somente nesta segunda operao que a lgica hegeliana adquire sentido. A primeira

    16A expresso latina denota um puro ser, aqum, alm e acima de suas determinaes. [N. do .]

  • INTRODUO 33

    urna lenta decifrao do mundo, no curso da histria, por meio do entendimento,'7 longa anlise que segmenta, desliga, isola e, ademais, constitui progressivamente a esfera prpria do pensamento. Depois disto, preciso reencontrar a unidade - rompida pelo entendimento - do movimento e do mundo. Hegel verificou bem este papel da razo dialtica; viu mal, porm, as suas condies.

    Io. A histria da decantao progressiva que conduz o pensamento (sob sua forma metafsica) noo do ens generalissimum deve ser refeita. E tudo o que foi rejeitado no curso do processo de abstrao deve ser retomado e elevado ao nvel de clareza que s atingido pelo pensamento mais vazio. Este um dos aspectos da inverso da filosofia idealista, um dos objetivos da fenomenologia concreta.

    2o. A unidade hegeliana entre o ser e o nada deve ser rein- terpretada precisamente no sentido de que o ser abstrato nada e que seu pensamento s se valida desde que superado, posto em movimento e em contato com os seres concretos, para apreend- los atravs de um movimento incessante da anlise sntese, da generalidade abstrata (o ser, a forma lgica e racional do juzo) ao universal concreto (a ideia).

    No curso deste movimento, reencontram-se categorias que, de fato, provem da prxis e da anlise. Para o materialismo, o que Hegel designa por determinabilidade, sem justific-lo suficientemente, de origem prtica.

    3o. No pode haver um comeo unvoco. Cada domnio (cada cincia) deve ter um comeo especfico, procurado por meio de ten-tativas e erros (alquimia, astrologia, fisiocracia). A metodologia geral pode tentar determinar o comeo timo para cada domnio, envolvendo o mnimo possvel de pressuposies, preparando o caminho do simples ao complexo, do conhecido ao desconhecido, de modo tal que seja o ltimo elo de um outro domnio e o primeiro daquele que se estuda. Mas, na prtica e na histria, os comeos reais foram e

    17Cf., a este respeito, o primeiro captulo do Anti-Dhring. [H traduo ao portugus: F. Engels, Anti-Dhring. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. N. do .]

  • 34 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    so ainda saturados de pressuposies complexas, relativas s pocas e aos pesquisadores e ao estado geral do pensamento. A investigao do comeo ideal se manifesta pela transformao das teorias, pela anlise dos seus postulados (anlise regressiva, crtica dos conceitos e das ideologias).

    4o. Na lgica geral, a noo de ser serve para elucidar as leis dialticas, ou leis universais do movimento. A partir desta noo, so sistematizadas as categorias obtidas pela prtica e pelo entendimento analtico: qualidade, quantidade etc. O movimento do pensamento, assim, reproduz os caracteres gerais dos movimentos, reproduzindo ou refletindo o que Lnin chama o vnculo universal de todas as coisas. Estas leis so aquelas que Hegel descobriu: unidade dos contrrios, negao da negao, saltos, transformao da quantidade em qualidade. Lnin, porm, insiste na origem prtica das leis e categorias. Longe de serem conceitos ontolgicos, substncia do mundo, so abreviaes da massa infinita das particularidades da existncia. Enquanto para Hegel a dialtica um mtodo de construo a priori, para o materialista ela um mtodo para apreender o movimento total, do qual rompemos a unidade para depois reencontr-la. Tomadas isoladamente, leis e categorias so falsas. Elas se tornam verdadeiras no movimento do pensamento que as atravessa. A metodologia transforma a anlise geral assim operada numa arte de pensar dialeticamente. Jamais, porm, o esprito deve satisfazer-se com esta arte e com estes conceitos, convertendo-os num objeto imvel de contemplao, como se dessem uma imagem suficiente do mundo. Para Hegel, o lao do lgico com a natureza se situa no absoluto (na Ideia); para o materialista, ele se encontra em todo objeto, em toda relao, em toda ao. O ser puro apenas o ponto de partida e de retorno - insustentvel por si mesmo - da atividade de penetrao. Toda categoria apenas uma etapa, um ponto nodal.

    O erro da maioria dos tericos da dialtica consiste em imobiliz-la, em no mostrar que o conceito (a categoria) s verdadeiro no e pelo movimento total, na Ideia no sentido aceitvel: no sentido materialista da palavra. Eles reduzem a realidade especfica de todos os objetos e de todos os movimentos como se as coisas e a histria

  • Introduo 35

    fossem to s um decalque e uma aplicao da dialtica abstrata. E assim regressam pior metafsica, anterior at a Hegel. Esses tericos esquecem a riqueza inesgotvel da realidade e que toda coisa uma totalidade de momentos e de movimentos que se imbricam profundamente e que estes contm outros momentos, outros aspectos, outros elementos prprios sua histria e suas relaes. E que apenas por esta conscincia da infinita riqueza de determinaes da natureza o materialismo vivo - o materialismo, que afirma que a realidade desborda o pensamento, que o ser precede o conhecer e que o pensamento humano, apoiado na prxis, deve tornar-se mais e mais flexvel, penetrante, poliscpico (Lnin), tendendo como que para um limite, para o conhecimento absoluto ou Ideia.

    Obtm-se um quadro muito pobre se se limita a listar, uma ao lado da outra, as leis dialticas. Decerto que este quadro, na sua brevidade abstrata, mais rico do que a velha frmula ev raxv18 ou do que o mito hegeliano da autofecundao da Ideia. Igualmente pobres so expresses secas do tipo unidade dos contrrios, tudo muda, tudo se desenvolve, tudo se transforma de um em outro. Os materialistas lhes retiraram o seu antigo frmito pantesta. Seu sentido mais importante parece ser o de sinais para o esprito que procura orientar-se no real. Embora Lnin veja nelas, certamente, algo mais do que uma gnosiologia, os marxistas consideram, em geral, a teoria dialtica como um conjunto de regras de pesquisa, de anlise e de sntese. Aqui, unidade dos contrrios significa: Quando voc encontrar um conceito que se apresenta com um carter de unidade absoluta (por exemplo, o conceito de sociedade), desconfie desta metafsica - procure as oposies que ele contm.

    Estes marxistas no esto errados. A gnosiologia indispensvel. Mas este ponto de vista ainda limitado. O problema consiste em saber se esse conjunto de leis pode ser integrado a uma concepo ontolgica, ou cosmolgica, no fechada e todavia total, a uma atitude espiritual nova, consciente do primado do ser e da sua riqueza...

    ,80 um e o todo. [N. do .]

  • 36 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    Afirmamos, aqui, que a resposta deve ser afirmativa: sim. Restringir a dialtica a uma gnosiologia retirar-lhe o seu contedo vivo. A teoria foi decantada, levada extrema abstrao do ser e da generalidade. Devemos restituir-lhe seu ambiente vivo. Sem dvida, no se trata de ressuscitar a metafsica ou a vibrao pantesta - o sentimento to excitante de um parentesco antropomrfico com a alma do mundo est hoje ultrapassado. O mundo no mais amistoso. A teleologia metafsica falsa. No entanto, o mundo no indiferente ou hostil. Esta tese pertence ao materialismo vulgar ou ao formalismo idealista. Ela desencorajadora e cancela toda comunicao com o mundo, toda noo de beleza viva. Ela falsa. A natureza no est penetrada por nenhuma alma; a Vida um nvel qualitativo superior da natureza. Mas a natureza no est morta. Tomada em sua totalidade, a Natureza no Vida nem Esprito - possibilidade da vida e do esprito. Ela energia, desdobramento de foras. Ela j dramtica. Depois, a vida se ergue, ergue-se o homem. O homem no precioso por qualquer semelhana com um tipo divino pr-existente; precioso pela prodigiosa oportunidade da sua formao na natureza, pelo concurso talvez excepcional, talvez nico em todo um sistema astral, das circunstncias necessrias sua apario.

    A efervescncia tumultuosa da matria, a mar-montante da vida, a epopia cheia de catstrofes da evoluo, todo o drama csmico se reflete nas leis dialticas. O contedo sentimental e esttico da contemplao do mundo, e tambm as emoes, que foram alienadas sob formas religiosas (notadamente em Hegel), devem ser integradas no esprito renovado. O mundo recebe a ao do homem. O trabalho e seus instrumentos no so uma violncia imposta natureza. O homem permanece uma parte da natureza e, tambm, seu instrumento. E a natureza recriada pelo homem, e toma uma forma humana sem deixar de ser natureza. A poesia, como o sentido csmico, deve ser restituda dialtica. A indiferena da natureza uma viso to antropomrfica quanto a sua espiritualidade - que faz do esprito uma coisa fechada, conduzindo a um insuportvel sentimento de solido csmica.

    A gnosiologia um pouco esquemtica deve ser integrada numa experincia humana mais ampla. preciso arranc-la da conscincia

  • INTRODUO 37

    especulativa e racional que se estabeleceu no indivduo isolado da poca burguesa. Isto supe uma crtica nova - uma crtica social - de todas as categorias. Trabalhamos ainda com as sobrevivncias do racionalismo burgus. Ser preciso romper as barreiras entre essas abstraes e o contedo imaginado, dramtico e vivo da conscincia e da experincia. A arte, talvez, ter este sentido. Apreender-se- diretamente, nas coisas mesmas, conceitos que, no estdio atual da sociedade e da conscincia, so tomados parte das coisas, exteriormente a elas, esqulidos, atravancados por sobrevivncias, na tenso de um esforo de superao.

    A justo ttulo, e por necessidades prticas, Lnin ps a nfase na gnosiologia. Mas ele no se esquece nunca de insistir no carter vivo, no dogmtico e no pedante, da dialtica.

    O progresso do seu pensamento, entre o Materialismo e em- piriocritismo e os Cadernos sobre a dialtica,19 consistiu precisamente na integrao das preocupaes gnosiolgicas a uma concepo mais ampla do ser e da totalidade - a uma Weltanschauung [concepo de mundo] que supera e realiza em um sentido as concepes de mundo metafsicas.

    Ele insiste em algumas leis que Hegel deixou na sombra: a lei do desenvolvimento em espiral (no ser e no pensamento); relaes e interaes da forma e do contedo; unidade da teoria e da prtica; unidade do relativo e do absoluto, do finito e do infinito.

    Sendo a dialtica objetiva e sendo ao a unidade dos contrrios, o esquema hegeliano das leis dialticas e do movimento profun-damente modificado. Para Hegel, o terceiro termo (a sntese) apoia-se rigidamente sobre os dois primeiros. Constituem os trs lados de um tringulo. O conjunto hierrquico e espacial. Os momentos inferiores coexistem com os momentos superiores, na eternidade da Ideia e do sistema. O tempo, a histria, a liberdade tornam-se irreais. Os elementos da totalidade se deixam dispor num quadro imvel,

    H traduo integral destas duas obras de Lnin ao portugus: Materialismo e empiriocriticismo. Lisboa-Moscou: Avante!-Progresso, 1982; os Cadernos... encontram-se nas Obras escolhidas em seis tomos. Lisboa-Moscou: Avante!- Progresso, tomo 6, 1989. [N. do .]

  • 38 HENRI LEFEBVRE E NORBERT GUTERMAN

    em que figuram especialmente a sociedade e o Estado burgus. Para, o materialismo dialtico, o terceiro termo soluo, soluo prtica, ao que cria e destri. O carter dinmico da superao apreendido mais profundamente e a negatividade desmistificada e aprofunda*1 da. O terceiro termo retoma o contedo da contradio e o eleva, mas transformando-o profundamente. Somente assim h histria dramtica: ao, unidade e desenvolvimento. A representao esttica substituda por uma noo viva da sucesso. As formas inferiores da existncia so eliminadas ou integradas, sendo transformadas em profundidade. Somente assim o homem vivo pode colocar-se um objetivo que seja superao: o Homem Total.

    Em Hegel, o termo ltimo, a Ideia e o Absoluto parecem pro-duzir-se porque so o princpio. A vitria est garantida desde o comeo. A histria um grande gracejo de mau gosto, uma prova filosfica, pretexto para o surgimento da conscincia especulativa. Para a dialtica materialista, o homem se produz numa luta real. Ele modifica a natureza de que emergiu. Ele a supera em si e se supera nela. O Homem Total no existe partida, metafisicamente. Ele se conquista. A prxis adequa a natureza s necessidades do homem e, por uma ao recproca incessante, cria novas necessidades que enriquecem a natureza humana. O homem se desenvolve encontrando a soluo dos problemas colocados pela sua prpria atividade viva e prtica, criando continuamente novas obras, avanando sobre os incidentes de um devir complexo, no linear, permeado por revolues, regresses parciais ou aparentes, estagnaes, saltos frente, desvios.

  • Introduo 39

    Marx-Lenin Devir acidentado. Esquema aberto. Ao, luta, relaes de foras. Recriao profunda, em cada nvel, dos antecedentes.

    Anlise sinttica. Implicao em profundidade das determinaes da natureza. Superao real. Destruio e criao reais. Movimento. Natureza, matria. Histria. Esprito criado e criador. Solues. Totalismo (totalidade aberta). Desenvolvimento imprevisto e determinado. Movimento em espiral ascendente

    Teoria da verdade

    A teoria hegeliana da verdade um dos pontos nodais do sistema.

    Hegel vai alm da posio dogmtica que opera com o sim ou no e para a qual uma tese ou completamente verdadeira ou completamente falsa. Ele supera tambm o liberalismo ecltico, cujo resultado no mais do que um compromisso entre as teses.

    O hegelianismo quer retomar todo o esforo humano em direo verdade. Ele mostra que as tentativas e os erros do pensamento no provm de uma contradio no pensamento, mas tm sua origem no desenvolvimento do pensamento e da civilizao inteiros (Fenomenologia). As teses, em um mesmo nvel de pensamento, se supem e se completam na sua oposio e conduzem a uma posio mais elevada. A verdade lgica de uma proposio se encontra nas premissas que serviram sua deduo. A verdade dialtica se encontra depois, na ideia que supera, que extrai o contedo das ideias

    Hegel Esquema triangular fechado. Sntese que conserva integral-mente os contrrios. Construo especulativa. Comeo ideal. Negatividade formal. Hierarquia imvel. Totalidade fechada. Crculo fechado (sistema).

  • 40 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    precedentes, rompe seus limites e sua unilateralidade e alcana, er sua oposio, a unidade. O verdadeiro no substncia. Ele no uma forma subjetiva exterior ao objeto. O objeto no conhecido sem o sujeito. Mas o sujeito, sem o objeto, permanece vazio. A verdade unidade de ambos. Ela envolve, pois, a relao: relao do sujeito e do objeto, relao da verdade mais alta com as verdades incompletas, limitadas (contraditrias), que permitiram chegar a ela.

    Hegel considera que uma certa relao do sujeito e do objeto est includa na noo de conhecimento: o objeto como momento do sujeito. Este no o sujeito atuante, desejante, sensvel. o sujeito cognoscente (individual e no prtico).

    Hegel aperfeioa, assim, uma velha hiptese que vem de Plato. Para que o conhecimento do ser seja possvel, preciso que o ser seja conhecimento. O conhecer est na raiz do ser. Ele seu prprio postulado, sua prpria pressuposio. Onde, ento, est a unidade de ambos, ser e conhecer? E no se pe, na base da filosofia, uma simples tautologia lgico-metafsica, o conhecer conhecer...? No se realiza, assim, mediante uma operao ilegtima, o fim proposto - o conhecimento -, antes de ele ter sido alcanado? No se destri, pois, a originalidade do conhecimento, que , precisamente, avanar da ignorncia verdade atravs de verdades parciais e de erros?

    Ora, que importa isto ao metafsico Hegel!? O processo do conhecimento progressivo idntico ao processo pelo qual a Ideia - isto , o conhecimento acabado - cria aquilo que se quer conhecer. A Cincia cria seu objeto, a Ideia cria a natureza. O primado do sujeito. Ele se pe como Outro, aliena-se, refrata-se num jogo de espelhos. Jogo exaustivo e estril: o fim o comeo. Hegel o diz expressamente na Fenomenologia: O resultado a mesma coisa que o comeo, porque o comeo o fim.

    Esta finalidade absoluta destri o movimento e o objeto. O verdadeiro

    essencialmente sistema; ou seja, a substncia essencialmente sujeito. O

    movimento somente uma curva fechada, um crculo, uma totalidade cerrada: o sistema eterno, que enfim se revelou, quando lhe aprouve, na cabea de um homo philosophicus particularmente feliz, o doutor Hegel. Na sequncia, s cabe contempl-lo para todo o sempre.

  • Introduo 41

    O verdadeiro essencialmente sistema - vale dizer, conjunto de determinaes vinculadas; a verdade est na totalidade - vale dizer, a ideia verdadeira superao de verdades limitadas e relativas, que se tornariam erros se se mantivessem fixadas. Estas frmulas contm a contribuio de Hegel ao pensamento humano. O sofisma consiste na vinculao da ideia de sistema noo de subjetividade fechada. A verdade deixa de ser uma totalidade progressiva, avanando em espiral ascendente e aproximando-se de um limite ideal - a cincia acabada, o conhecimento adequado totalidade do objeto. Hegel hipostasia este limite, faz dele um estado do sujeito e considera que este o alcanou. Detm, pois, a histria da verdade. Tendo determinado um fragmento da curva do conhecimento, cr haver traado toda a curva. Conserva uma ideia no dialtica do verdadeiro: identidade mstica do sujeito e do objeto, tomados como substncias absolutas que coincidem num estado privilegiado da contemplao. A categoria de realidade levada arbitrariamente ao absoluto, quer se trate do Esprito ou da Ideia. O objeto no s negado no seu movimento (na natureza, na evoluo, na histria), mas tambm na sua prpria existncia. Ele no passa de um pretexto da subjetividade para se refletir.

    Verifica-se claramente o que impede o racionalista Hegel (e todos os filsofos idealistas) de conferir anterioridade ao objeto. Estes pensadores exigem uma ligao racional dos conceitos. A sua reflexo recusa-se a admitir determinaes extrnsecas, que seriam injustificveis inserindo-se cada uma em seu lugar num conjunto de relaes inteligveis. O saber deve ser posto como virtualmente acabado - caso contrrio, o desconhecido poderia trazer determinaes novas, perturbadoras. O inteligvel s est garantido se estiver na origem do ser. O materialismo, ou teoria da anterioridade do objeto, parece incapaz de ligar as propriedades que atribui s coisas; seja atomstico ou geomtrico, ele - segundo esses filsofos - no pode mais do que constatar tais propriedades (dureza, elasticidade etc.) e deix-las externas umas em relao s outras.

    A noo de negatividade teria podido conduzir Hegel a uma teoria completa e articulada, conferindo ao objeto a sua realidade

  • 42 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    e sem pressupor a consumao do saber. A negatividade, tanto no pensamento quanto nas coisas, a virtualidade, a pr-formao do futuro. O desconhecido poderia ser posto no conhecimento como correspondente ao possvel no movimento. O movimento no pensa-mento e o movimento nas coisas, sendo determinados pela mesma negatividade, teriam permitido a Hegel abrir o conhecimento (e a Natureza) sem comprometer sua ligao.

    Mas Hegel hipostasia a negatividade como fora mstica do abismo no momento mesmo em que afirma que o conhecimento cientfico (mediante conceitos) o mais elevado. Ele fecha, assim, esta totalidade movente que teria podido conceber e mistifica seu sistema.

    Decerto que o materialismo vulgar incapaz de ligar inteligi-velmente as determinaes que se limita a constatar. Mas a dialtica materialista coloca a atividade prtica na base do conhecimento como relao do sujeito e do objeto (cf. as Teses sobre Feuerbach e a clebre passagem da Sagrada famlia em que Marx indica como a ao e o trabalho moldaram a mo e as sensaes dos homens20). A prxis - isto , a atividade social considerada como um todo, unidade da natureza e do sujeito humano coletivo - funda o conhecimento. Este conhecimento , assim, uma totalidade. A ligao das determinaes - a Razo - fundada e justificada. O conhecimento pe em jogo todas as funes orgnicas, sensoriais, cerebrais do homem, ligadas e sistematizadas pelas exigncias da prxis. O objeto existe, real e movente. O conhecimento um movimento especfico. Conjunto de relaes, totalidade aberta, est em relao com o objeto total, o mundo. O conhecimento torna-se falso na medida em que se enrijece e se isola. S se mantm verdadeiro na medida em que tenso crescente e consciente em face de todas as determinaes que lhe escapam ainda, mas cuja conexo com elas assegurada pela mediao da prxis.

    A natureza uma totalidade movente. E todo ser, todo objeto tambm um todo em devir, que se insere no Zusammenhang e dele

    Tradues ao portugus das Teses... encontram-se em K. Marx-F. Engels, A ideologia alem. So Paulo: Boitempo, 2007, p. 433-539; quanto a A sagrada famlia..., cf., supra, a nota 13. [N. do .]

  • IntroduAo 43

    participa (o que viram os estoicos e, depois, Leibniz). O conhecimento , ele mesmo, um objeto no universo, um todo movente que recepciona, por meio da prxis, a totalidade do mundo. Deste carter de totalidade deriva, como na natureza, porm especificamente, sua finalidade interna e relativa. Como todo objeto particular, ele limitado e, no entanto, exprime e simboliza o inteiro mundo. E como a prxis humana domina a natureza, o conhecimento franqueia incessantemente os seus limites. As espiras da curva se alargam. O momento superior emerge do inferior, procede dele e o utiliza. Como alcana mais relaes e clareza, mais realidade, como interpelado pelas contradies do momento inferior, contm sua Razo e sua Verdade. Ele seu fim, sem finalidade metafsica. O conhecimento tem seu limite (no sentido matemtico), seu fim ideal, no prprio objeto. Por meio de suas limitaes provisrias, ele tende a este limite ltimo. Ele assnttico em relao ao conhecimento absoluto, Ideia. Absoluto e relativo so nveis do mesmo universo (Lnin). E toda verdade , ao mesmo tempo, relativa e absoluta. Relativa a um momento, a uma etapa do pensamento, da prxis, da histria humana. Absoluta pelo progresso coletivo deste pensamento, pela superao perptua numa direo, a do domnio e da posse do objeto. A verdade atual deve ser negada - caso contrrio, deixaria de ser verdadeira. Ela s verdade pela superao e esta superao que a conserva (negao da negao). Somente o pensamento movente e o movimento do pensamento - estruturado e refletido - so verda-deiros. E este o sentido aprofundado da negatividade da superao.

    No verdade que, para saber qualquer coisa, preciso desde j saber tudo. Os lgicos, os idealistas e os materialistas no dialticos, que tomam o sujeito e o objeto como todos fechados, raciocinam em relao dialtica como a aritmtica elementar em relao ao clculo integral. Os idealistas, em funo de suas exigncias racionais, aproximavam-se mais da verdade - o que fazia a fora dos grandes metafsicos clssicos em face do materialismo vulgar.

    O conhecimento movimento. Cada um de seus momentos um todo. Cada verdade uma verdade parcial, simultaneamente relativa e absoluta. O conjunto das verdades parciais e contraditrias, em um momento dado, ainda uma verdade parcial. Aproximao,

  • 44 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    limitao, contradio no significam falsidade. A dialtica materialista eleva a um nvel superior a teoria do progresso no conhecimento. Este uma relao especfica do homem com a natureza, uma relao ativa, que contm, praticamente, uma parcela humana: pontos de partida empricos para cada homem, cada poca, cada ordem de pesquisa - tcnicas e simbolismos. Mas a aproximao no exclui o contedo objetivo. A totalidade do movimento verdadeira. De cada ponto particular, pode-se e necessrio tender totalidade do pensamento e totalidade das coisas. O movimento dialtico do pensamento e o da natureza esto profundamente ligados. assim que o conhecimento reflexo (reflexo) de coisas. Mas este reflexo no passivo. A atividade,

    a cada instante, envolve a possibilidade da fantasia e do erro,21 que verdade parcial que se erige em absoluto. Ele comea pelo ato concreto, pela imediaticidade, pelo contato prtico do sujeito e do objeto, num certo ponto particular da histria e da natureza, com um certo material tcnico e ideolgico. A verdade sempre concreta (Hegel).

    O conhecimento se apresenta, assim, como um conjunto arti-culado de movimentos que vo, no indivduo, da sensao ao conceito, em cada cincia, dos fatos s leis e s teorias e, na sociedade humana, das representaes primitivas, saturadas de antropomorfismo inconsciente, s categorias elaboradas. Estes movimentos tendem a se implicar, a reencontrar a totalidade que forma, em todo momento, o conhecimento humano. De um ponto qualquer - sensao, indivduo, instante, smbolo -, sempre se pode encontrar o conjunto e o geral.

    No pertinente, aqui, descrever este imenso trabalho do pensamento. A histria das cincias e a metodologia geral oferecem numerosas ilustraes da marcha extremamente flexvel do conhe-cimento.

    Insistamos, apenas, no carter ativo desse processo. Ele trans-forma o obstculo em estmulo, a resistncia em ponto de apoio, o

    21Sobre esta possibilidade, Lnin insiste nas suas Notas sobre Aristteles. [Cf. o Conspecto do livro de Aristteles, Metafsica, s p. 307-313 do tomo 6 das Obras escolhidas... de Lnin, citado na nota 19. (N. do T.)]

  • Introduo 45

    desconhecido aparentemente irracional em princpio de uma ra-cionalidade mais profunda. (Assim, o nmero negativo, o imaginrio etc. so inicialmente impossibilidades, contradies, antes de se tornarem pontos de partida de um clculo, de um novo ramo da cincia.) O conhecimento especulativo se contentava em ser esclarecedor, passivamente contemplativo. A metafsica era a afirmao entusistica, mas ineficaz, de uma vontade de prospeco e, por vezes, de progresso. O pensamento dialtico sonda sistematicamente o desconhecido, localiza os escolhos e os arrecifes, instala faris, estabelece pontes e rotas, alcana continentes novos. Mtodo prudente, primeira vista mais prosaico do que a grande metafsica, porm muito mais eficaz e profundo... Seu lirismo, um lirismo de olhos bem abertos, ainda no se exprimiu inteiramente.

    em funo deste carter ativo, prtico do conhecimento - dirigido s coisas e interessado no mais amplo e alto sentido da palavra - que aquilo que aparece depois mais real, mais verdadeiro, do que aquilo que vem antes. Sob a condio de ser uma superao. O momento precedente , pois, o meio, a base do momento subsequente, em que ele se supera. No se trata da pr-formao metafsica: trata-se da atividade dialtica.

    O empirismo e o racionalismo clssico so assim superados e reunidos numa doutrina mais ampla, numa teoria do desenvolvimento do pensamento e da civilizao.

    O empirismo tem razo ao situar a sensao na base do conhe-cimento. Mas a sensao uma relao real do objeto com o homem atuante. O empirismo separava a sensao do objeto, por um lado, e, por outro, do organismo, da prtica, da vida social. Sendo relao, ela se completa naturalmente ao ligar-se a outras relaes ou noo que as resume - e torna-se, assim, percepo, conceito, ideia. A dialtica materialista deve retomar, at o detalhe, a teoria hegeliana do conceito.

    Para o racionalismo, a razo caa do cu, j constituda; era fetichizada; adorava-se-a como ser eficiente. A dialtica materialista estabelece conexes racionais entre as realidades que parecem isoladas para uma racionalidade insuficientemente flexvel e infundada prtica e historicamente - notadamente entre as realidades ideais e

  • 46 Henri Lefebvre e Norbert Guterman

    a vida ativa dos homens. Desvela a constituio da razo, at mesmo na sua aberrao fetichista. Demonstra que a causa das mudanas ideolgicas no reside na revelao das abstraes metafsicas, mas na prtica e na vida: nos processos sociais (materialismo histrico). Supera a racionalidade abstrata. Hegel, levando o racionalismo ao absurdo, comprometeu-o.

    A dialtica materialista est a ser elaborada progressivamente, mediante um lento e delicado trabalho, mediante uma anlise complexa cujo avano acompanhar a transformao revolucionria do mundo moderno. Para implement-la, sero necessrias no somente condies mais adequadas para o trabalho intelectual, mas tambm uma modificao do clima cultural, uma lucidez dialtica aprofundada,

    melhor inserida na prtica, na cultura. J Hegel se lamentava da estrutura das frases que, para exprimir a

    reciprocidade, a contradio e o movimento dialtico, devem ser foradas. Sua obscuridade deve-se, em parte, ao vocabulrio e gramtica modelados por uma tradio de lgica esttica. No por isto que foi obrigado, contra seu prprio esprito, a aceitar algumas noes

    sem critic-las, estaticamente (o sujeito, a ideia, o prprio esprito)? Os marxistas, e Lnin especialmente, restituram o movimento a essas categorias - introduziram relaes e um vocabulrio novo. Mas ns ainda operamos com um material verbal e conceituai ultrapassado. O racionalismo francs tem sua grandeza. Seu sentido de lucidez e de distino um insubstituvel elemento da cultura moderna. Contrapartida: sua secura e sua rigidez. A lngua de Voltaire no exatamente dialtica. sempre um esforo tom-la para exprimir o pensamento dialtico. E nela se exprime melhor o que deixou de ser, como unidade e superao, determinaes antinmicas do pensamento: empirismo e racionalismo, conceito e sensao, homem e natureza, individual e social, infinito e finito, total e atual, aberto e fechado etc.

    impossvel prever como a dialetizao do pensamento penetrar a linguagem, a gramtica, a literatura etc. possvel, apenas, indicar que uma crtica