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Relato de Caso
LESÃO INADVERTIDA DA ARTÉRIA FEMORAL SUPERFICIAL DURANTE SAFENECTOMIA
Roberto Kasuo Miyake· Jesualdo Cherri·· Takachi Moriya·" Carlos Eli Piccinato·" Rosângela Retamero Uenohara· .. •
Relatamos um caso de lesão traumática da artéria femoral direita durante safenectomia. A isquemia grave no pós-operatório imediato obrigou a restauração vascular com segmento de veia safena. A correção da insuficiência circulatória aguda permitiu a recuperação do membro.
Unitermos: Trauma Cirúrgico, Isquemia, Trombose Arterial, Enxerto Arterial, Varizes
Trabalho realizado na Disciplina de Cirurgia Vascular do Departamento de Cirurgia Vascular do Departamento de Cirurgia, Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP
• Acadêmico e Monitor ··Professor Assistente Doutor e Chefe de Disciplina
···Professores Assistentes Doutores ····Residente de Cirurgia Vascular Periférica
CIR. VASCo ANG. 6(2): 17, 19, 1990
INTRODUÇÃO
A lesão inadvertida da artéria femoral superficial durante a safenectomia felizmente não é tão freqüente em nosso meio, porém tem-se conhecimento de alguns casos com evoluções desastrosas 3, 4, 9, 12. Esta lesão pode ser simples ligadura com secção da mesma, ligadura com secção segmentar, ou ligadura do coto proximal acompanhada da passagem do fleboextrator que se exterioriza na prega do joelho e seguida de "artério" extra,ção. Esses casos raramente vêm ao conhecimento do público porque são camuflados e referidos como erro médico. O mesmo fato ocorre na literatura mundial, mas em países desenvolvidos acidentes deste tipo vão a processos com indenizações vultosas. O objetivo da apresentação deste caso é relatar a conduta utilizada no tratamento de lesão de artéria femoral superficial durante a safenectomia.
RELATO DO CASO
O caso descrito ocorreu com a paciente V.L.B.M., feminina, 33 anos, casada, branca, prendas domésticas, registro n!> 0220634-C, atendida na Unidade de Emergência do HC-FMRP-USP, no dia 13/01189. Havia sido submetida a uma operação de varizes do membro inferior direito há 4 dias e referia dor contínua e localizada abaixo do joelho. Queixava de parestesia dos dedos e da face dorsal do pé direito. Estes sintomas melhoravam com o membro pendente. Ao exame físico o membro inferior direito estava edemaciado, hipotérmico, com tintura de mertiolate colorido, cicatriz cirúrgica junto à prega inguinal e escalonadas transversas ao grande eixo da perna, todos com
fiGURA 1: Arteriografia pré-operatória: Evidencia-se a amputaçio da artéria femoral superflcl81 direita a nível de sna emergência (A) e a contrastaçio pobre das artérias dos dois terços distais do membro Inferior. por colaterais (B).
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Roberto Kasuo Miyake e cols. Extração de artéria femoral superficial durante safenectomia
pontos de algodão 00 preto e na maioria cobertos com curativo oclusivo tipo "band-aid". Os pulsos periféricos deste membro estavam ausentes e a arteriografia confirmou obstrução da artéria femoral superficial direita (fig. 1). A paciente foi levada imediatamente à sala de operação.
À exploração cirúrgica da região inguinal encontrouse duas ligaduras da artéria femora\. A primeira junto à sua origem e a segunda a cerca de 10 cm da mesma, ambas com fio de algodão 00. Feita a arteriotomia constatou-se lesão endotelial e trombose sugestiva de clampeamento e maceramento por um instrumento tipo pinça hemostática. Distalmente a artéria apresentava trombose secundária que foi exaustivamente retirada com catéter de Fogarty 4F e 5F. A restauração foi realizada com segmento de veia safena interna esquerda retirada a nível do maléolo. A anastomose término-terminal foi realizada com fio de mononylon 6-0 com pontos separados. Posteriormente injetou-se na luz da artéria femoral suficial direita 250.000 unidades de estreptoquinase. Após a remoção dos clamps verificou-se perfusão adequada dos tecidos e o retomo da pulsatilidade das artérias distais.
A paciente evoluiu relativamente bem no pósoperatório imediato_ Referia melhora da dor no membro mas notava-se leve empastamento da panturrilha direita. Os pulsos tibiais estavam presentes e havia boa perfusão periférica. Apesar do empastamento muscular a paciente não apresentava síndrome compartimenta\. Recebeu alta no 39 dia de pós-operatório com boas condições circulatórias locais. Após uma semana da cirurgia de revascularização apresentava dor localizada na perna com formigamento e marcha escarvante. A cicatrização estava boa. A panturrilha empastada. Os pulsos tibiais estavam presentes e ela conseguia dorso-fletir o pé direito. Após 30 dias, já deambulava melhor, porém apresentava pé eqüino. Fezse, nesta epoca, nova arteriografia para controle. Constatou-se a perviedade do enxerto venoso (fig. 2). A paciente foi orientada para fazer fisioterapia ativa e passiva. Após 9 meses, apresentava-se praticamente sem sequelas e deambulando normalmente.
FIGURA 2: Arteriografia pós-operatória: Mostra a interposição do enxerto venoso fêmoro-femoral com boa contrastação do sistema arterial distai do membro.
DISCUSSÃO
Em todos os casos de revascularização por oclusão aguda o sucesso da cirurgia depende fundamentalmente
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do tempo de isquemia 6,7 . No presente caso foram decorridas cerca de 96 horas e a evolução foi favorável basicamente pela orientação correta, e graças à presença de boa circulação colateral. O edema de panturrilha no pósoperatório imediato, a dor em queimação e o pé caído foram causados pela isquemia prolongada e a neurite isqu êmica I.
A injeção de estreptoquinase feita após a embolectomia teve como intuito dissolver prováveis trombos residuais localizados em colaterais2, 5, 6, 8, 10.
A restauração bem sucedida e a revascularização do membro, embora tardiamente, resguardaram a sua vitalidade e evitaram um desastre maior, a amputação.
Felizmente esta complicação na cirurgia de varizes deve ser rara, mas serve de alerta a todos os cirurgiões, principalmente aqueles que estão iniciando na prática cirúrgica, dada a gravidade da lesão iatrogênica.
SUMMARY
INAOVERTENT INJURY OF THE SUPERFICIAL FEMORAL AF;lTERY OUR/NG SAPHENECTOMY
A case of traumatic injury of the right superficial artery during saphenectomy is reported. The severe ischemia in the immediate post-surgical period required a vascular restoration with a saphenous vein graft. The correction of the acute circulatory insufficiency allowed salvation of the limb.
Uniterms: Trauma, Ischemia Arterial thrombosis Arterial graft Varicose veins
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUN R, PRESTI C: Ferimentos Vasculares. In: Clínica Cirúrgica Alípio Correa Neto, São Paulo, Ed. Sarvier, pg 134, 1988.
2 DOTTER CT, ROSH J AND SEAMAN AJ: Selective clot Iysis with low dose streptoquinase. Radiology 111:]1-37,1974.
3 EGER M, GOLEMAN L, TOROK G AND HIRSCH M: Inadvertent arterial stripping in the 10- . wer limbs problems of management. Surgery 1 :23, 1973.
4 FOKIN AA et aI: Injuries of the femoral vessels during the venectomy. Khirurgiia 122; 127, 1979.
5 GARDINER JR GA HARRINGTON DP, KOLTUN W, WHITTEMORE A, MANNICK JA LEVIN DG: Salvage of occluded arterial bypass grafts by means of thombolysis . J Vasc Surg 9:426-431,1989.
6 HAIMOVICI H: Femoropopliteal arteriosclerotic occlusive disease. In: Haimovici, H Vascular Surgery, USA, Mc Graw-Hill , pg 448, 1976.
7 LASTÓRIA S, MAFFEI FHA: Oclusões arteriais agudas. In: Doenças vasculares periféricas, Rio de Janeiro, Ed. Médica e Cie_ntífica Ltda, pg 305, 1987.
8 LUKE-JC MILLER GG: Disasters following the ligation and retrograde injection of varicose veins. Ann Surg 127:126, 1948.
9 MORI KW, BOOKSTEIN JJ , HEENEEY DJ:
CIR. VASC. ANG. 6(2): 17, 19, 1990
Roberto Kasuo Miyake e cols. Extração de artéria femoral superficial durante safenectomia
Streptoquinase infusion: ClinicaI and laboratory correlates. -Radiology 148:677, 1983.
10 MORTON JH, SOUTHGATE WA DE WEESE JA: Arterial injuries of the extremities. Surg Gynecol Obstet )23:611-, 1966.
11 SEEGER JM, FL YNN TC QUINTESSENZA JA: Intra-arterial streptoquinase in the treatment of acute thrombosis. Surg Gynecol Obstet 164: 303, 1987.
12 STEPANOV GA: Injuries of the femoral artery and vein during the Troianov (Trendelemburg operation). Khirurgiia 12:99,1985.
COMENTÁRIO EDITORIAL
Com relação à Introdução concordo em parte com os autores quando referem que esses casos raramente vêm ao conhecimento do público porque são camuflados e referidos como erro médico. Em nosso meio têm sido relatados esses casos inclusive na imprensa leiga.
Na literatura médica têm sido relatadas lesões venosas profundas, desde rupturas com hemorragia de graus variados a estenose da veia femoral.
Evidentemente que as lesões mais graves relatadas, têm sido as relacionadas com a artéria femoral e sua bifurcação, desde estenoses, dissecções inadvertidas com ligadura até a extração da artéria femoral superficial com o fleboextrator.
Para ajudar a revisão bibliográfica cito o excelente trabalho de Natali e Beuhamou ("Iatrogenic vascular injuries", publicado no J. Cardio· vasc.Surg. 20; 169, 1979), onde relata 12 casos de lesões vasculares ialrogênicas em cirurgia de varizes, tendo um dos casos ido a óbito por sangramento incontrolável; cinco casos terminaram em amputação.
Certamente que os casos publicados de lesões vasculares iatrogênicas são superados por aqueles que não se publicam. O caso descrito pelos au· tores configura a situação de iatrogenia.
A conduta adotada foi a mais adequada, isto é, com quadro clínico de obstrução arterial aguda, confirmada pela arteriografia, foi imediatamente levada à cirurgia para se proceder à revascularização do membro, o que foi obtido com enxerto da veia safena.
Tenho dois reparos a fazer: 19) a utilização de 250.000 unidades de estreptoquinase na luz arerial,
que foi feita de maneira profilática. Na nossa experiência em isquemias graves, utilizamos a arteriografia intraoperatória, que, demons· trando trombos residuais que não são removidos pelo cateter de Fogarty, aí sim utilizamos a estreptoquinase em doses fracionadas (minidoses) espaçadas de 75.000 unidades, podendo atingir as 250.000 unidades totais.
29) Ficou uma dúvida com relação à evolução, pois a paciente teve uma sequela neurológica, que foi o pé caído. Poderia ser devido a neurite isquêmica, como foi interpretado pelos autores ou haveria necessida· de de uma fasciotomia?
De qualquer maneira, a condução do caso~ posteriormente foi adequada.
Este caso vem demonstrar que se a cirurgia de varizes é um procedimento técnico simples para uma equipe com experiência, não pode ser executada como se fosse uma cirurgia geral, pois poderão ocorrer complicações graves, com seqüelas irreparáveis. Detectada a obstrução arterial aguda, a restauração arterial tem que ser a mais rápida possível para se conseguir sucesso.
Prof. Dr. Emil Burihan Prof. Titular Chefe da Disciplina de Cirurgia Vascular do Depto. de Cirurgia da EPM.
COMENTÁRIO EDITORIAL
O assunto referido pelos autores é da maior importância. As lesões arteriais iatrogênicas, ocorrendo de forma acidental ou inadvertida por ocasião das cirurgias de varizes, devem ser mais freqüentes do que se
CIR . VJ\SC J\NG. 6121: 17. 19. 1990
imagina. Os cirurgiões vasculares mais antigos conhecem casos mas difi· cilmente se encontram relatos destes casos na literatura. Possivelmente isto se deve ao fato de o cirurgião vascular que recebe o paciente para o atendimento da complicação não desejar divulgar o caso, pois poderia permitir a identificação com relativa facilidade, impedindo assim a divulgação do "erro médico" de um colega já muito transtornado com o triste evento. Para que se tenha uma idéia da escassez de referências bibliográ· ficas, em pesquisa encomendada junto à BIREME, no período de 1983 a 1990, foram listadas mais de 300 referências de complicações em cirurgia de varizes, com somente 4 referências especificas de lesão arterial.
Quais seriam as causas mais freqüentes para este tipo de lesão? Possivelmente temos a soma de várias causas. A primeira delas mais provavelmente é o fato de o cirurgião não estar afeito a cirurgia de varizes, não conhecer a anatomia do cajado da safena, e estar realizando esta cirurgia de forma ocasional, senão pela primeira vez, sem ter sido informado e nem ter buscado informação sobre eventuais dificuldades técnicas. As outras causas, seriam más condições de iluminação, más condições de auxílio cirúrgico, hipotensão arterial associada à raquianestesia em pa· ciente magra. Conhecemos um caso atendido por colega cirurgião vascular na fase da complicação em que todas as condições acima referidas es· tavam presentes. Nesta paciente houve a "arterioextração". Mesmo tendo sido feito um procedimento de revascularização tardio ocorreu a amputação da coxa. Em outro caso por nós conhecido, também ocorreu a "arterioextração" por cirurgião com formação em cirurgia geral. Houve insuficiência renal postransfusional, amputação de coxa, evoluindo a paciente para óbito. Tivemos a oportunidade de acompanhar um caso em que nosso residente seccionou a veia femoral comum ao invés da veia safena. No momento em que se apercebeu do fato, ressuturou a veia femoral, suspendeu a safenectomia e controlou por flebografia tardia a permeabilidade da veia femora\.
As complicações desta ordem muitas vezes se apresentam com comunicações pessoais sobre este assunto. ROB e DeWEESE, citados por EGER e col (relatados pelos autores) referem que trataram 3 lesões iatrogênicas secundárias à cirurgia de varizes. Em duas delas ocorreu a "arterioextração" e todas evoluíram para a amputação apesar da tentativa de revascularizaçãd. No mesmo trabalho são citados mais 3 autores, que trataram dois casos idênticos, ocorrendo amputação de coxa nos seis pacientes.
A outra observação que pode ser feita é a citação de ROB, de que nem sempre o cirurgião que causa esta lesão é inexperiente e jovem. Em um dos seus casos, o cirurgião que determinou a iatrogenia realizava mais de 100 safenectomias por ano. Isto não impediu que o mesmo tivesse um momentQ de insegurança e infelicidade determinando a grave iatrogenia.
Os cirurgiões que tem a responsabilidade de orientar residentes em treinamento devem estar avisados e vi.llilantes. E necessário "assustar" os residentes sobre esta possibilidade. E preciso ensinar-lhes a anatomia normal, os cuidados de identificação do cajado e das veias tributárias e alertá-los de que na dúvida, não se deve seccionar nenhum vaso.
Estas lesões iatrogênicas se acompanham de alto índice de morbilida· de, altíssimo índice de amputações e não desprezível índice de óbitos.
A gravidade deste evento está relacionada ao tipo da lesão: ligadura pura e simples da artéria femoral ou arterioextração por ter o cirurgião confundido a veia safena com a artéria femoral superficial. O diagnóstico desta situação deve ser facilmente identificado no pós·operatório imedia· to, pelo aparecimento de síndrome isquemica gravíssima, diversa da ligadura, em que a síndrome isquêmica pode ser mais discreta, como ocorreu no relato deste caso.
Outro elemento importante para o resultado final deste paciente é o tempo decorrido entre a lesão vascular e o tratamento de revascularização administrado. Outra condição é o tipo de revascularização consegui· do. Qual foi a extensão da "arterioextração" e em que nível se conseguiu o implante distai do enxêrto? Se havia trombose secundária importante em ramos distais. Os autores deste relato apresentam uma contribuição ao manejo destas graves complicações. Usaram medicação fibrinolítica que deve ter aji:l'dado a remover oclusões arteriais distais não acessíveis ao cateter de Fogarty . EGER e col , citam em seu trabalho EDWARDS e col (Surg. Gynec. & Obst. 97:87,1963) em que o autor comenta a imo portância da artéria peroneira para o suprimento sanguíneo dos músculos da perna e suas interrelações com a artéria tibial posterior e pediosa.
Este trabalho traz um alerta a todos. É necessário que se avive a lembrança desta complicação. É importan·
te que o cirurgião que se inicia e o cirurgião geral que pratica a safenectomia ocasionalmente seja lembrado desta possibilidade. Deixaria finalmente a sugestão para que alguém motivado escrevesse um trabalho de divulgação e revisão a ser publicado em revista de âmbito nacional para leitura por cirurgiões gerais principalmente.
Telmo P. Bonamigo Prof. Adj. Cirurgia Vascular - Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre.
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