Lidice Ribeiro a Implantacao e o Crescimento Do Isla

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    Estudos de Religio, v. 26, n. 43 107-135 2012 ISSN Impresso: 0103-801X Eletrnico: 2176-1078

    A implantao e o crescimento do Isl no Brasil

    Lidice Meyer Pinto Ribeiro*

    ResumoEste artigo pretende, atravs de uma retrospectiva histrica da implantao do islamis-mo no Brasil, juntamente com algumas de suas prticas e crenas, compreender o seucrescimento numrico no pas. Para tanto, dividiu-se os perodos de implantao noBrasil em trs fases: islamismo de escravido, islamismo de imigrao e islamismo deconverso. Nas trs fases so discutidas as caractersticas da recepo da mensagem pelosno islmicos, observando se ocorreu uma adeso a nova religio ou uma converso,tendo em vista que o ato de adeso compreende qualquer forma de participao em ummovimento religioso, sem alterao sistemtica do estilo de vida (Mossire,2007, p.9),ao contrrio da converso, que envolve uma mudana no sistema de valores e viso do

    mundo, mudana que implica uma conscincia de que uma grande mudana envolveque o antigo estava errado e o novo o certo(Nock 1933, p.6-7).Palavras-chave: Islamismo, reverso, isl, converso, adeso

    Islam: no conversion or association. Reversal!

    AbstractThis article attempts to understand the numerical growth of Islam in Brazil througha historical review of its introduction and some of its practices and beliefs. For thispurpose, we divide theintroduction of Islam in Brazil in three phases: slavery, immigration, and conversion. Wediscuss how non-Muslims receive the Islamic message in each phase, making a distinc-tion between association (participation in a religious movement without lifestyle alterationMossire, 2007, p. 9) and conversion (a change of worldview and value systems withan awareness that the old ways were wrong, and the new, right - Nock, 1933, 0. 6-7).Keywords:Islam, reversal, Islam, association, conversion

    * Doutora em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo, Docente do Programade Cincias da Religio da Universidade Presbiteriana Mackenzie

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    Islam: ninguna conversin o de adhesin. Inversin!

    ResumenEste artculo pretende, atravs de una revisin histrica de la puesta em prctica delIslam en Brasil, junto con algunas de sus prcticas y creencias, para entender su cres-cimiento numrico en el pas. Para ello, hemos dividido el perodo de implantacin enBrasil en tres fases: la esclavitud islmica, islmica inmigracin y la conversin al Islam.Em las tres fases se analizan las caractersticas de la recepcin de mensajes por los non--islmica, que estaba observando uma nueva religin o la adhesin a uma conversin,teniendo en cuenta que el acta de adhesin incluye cualquier forma de participacinen um movimento religioso, no hay un cambio sistemtico de estilo de la vida (Mos-sire, 2007, p.9), a diferencia de la conversin, lo que implica un cambio en el sistemade valores y vision del mundo, cambio que implica la conciencia de que un cambioimportante se reere a lo viejo y lo nuevo es maio derecho (Nock, 1933, p.6-7)Palabras clave:Islam, inversin, Islam, conversin, pertenencia

    1.O Islamismo em nmeros no mundo e no BrasilO Isl est presente em todo o mundo, em parte devido a migrao,

    e em parte devido ao trabalho missionrio, realizado sem muito alarde,atravs de aes sociais, divulgao de literatura e pela Internet atravs dediversas web-pages.

    Apesar da divulgao conitante a seu respeito na mdia secular, ondeguram converses como a do msico Cat Stevens, hoje Yusuf Islam, e doboxeador Cassius Clay, renomeado como Muhamad Ali, juntamente com alu-ses ao terrorismo e ao fundamentalismo, o Isl cresce e espanta, pois mesmocontando com 1,57 bilhes de adeptos espalhados pelo mundo, ou cerca de25% da populao mundial1, pouco se sabe realmente sobre ele. Apesar daorigem do islamismo remontar rbia, a religio cresceu muito mais forado mundo rabe, atravs de movimentos de conquista e de migrao.

    Hoje o Isl j considerado a segunda maior comunidade religiosa em

    paises de formao protestante como Estados Unidos, (cerca de 6 milhesde muulmanos), Frana, (5 milhes), Alemanha (2,5 milhes) e Holanda(500.000). (Pinto, 2005, p.229)

    No Brasil, o censo de 2000 realizado pelo IBGE, constatou a presenade 27.239 brasileiros que se declararam seguidores do Isl. Destes, a maiorconcentrao encontrava-se nas regies Sudeste (13.953), com destaque paraSo Paulo, com 12.062 muulmanos e na regio Sul (9.590), com destaquepara o Paran com 6.025 muulmanos. Infelizmente o censo anterior nocomputou o nmero de seguidores de islamismo dentre as religies listadas,

    cando estes provavelmente junto aos que responderam outras religies1 Pesquisa realizada em 2009 por Pew Research Center`s Frum on Religion & Public Life.

    (www.pewforum.org)

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    (94.553). O ltimo censo, realizado em 2010 aponta para o crescimento doisl, apresentando este 35.167 seguidores, um crescimento de 29,1%, sendo

    destes 59,8% do sexo masculino. Na rea rural do pas, o crescimento foide 49,2%.Qual o segredo deste crescimento vertiginoso? O islamismo estar

    crescendo por adeso, principalmente atravs do casamento entre muulma-nos e no-muulmanas? Ou ser que este crescimento se deve a conversode pessoas vindas de outras crenas ou declaradamente sem religio? Paraos lderes do islamismo, o fenmeno do crescimento da religio se deve areverso, que, dentro do contexto muulmano signica um retorno a Allah,j que, para eles, todo homem nasce muulmano e se afasta quando segue

    outras religies2. O retorno ao Isl , portanto, considerado uma reverso.Para compreendermos melhor este fenmeno, propomos uma retrospectivahistrica da implantao do islamismo no Brasil, juntamente com algumasde suas prticas e crenas.

    2. O Islamismo no Brasil

    De forma semelhante distino utilizada pelo socilogo Mendona(2002, p.25), ao classicar os tipos de insero do protestantismo no Brasil,

    podemos armar que o islamismo passou por trs fases de implantao nasterras brasileiras:

    Islamismo de escravido oriundo do traco negreiro de escravosislamizados no sex XVIII, que se instalou primeiramente na Bahia, progres-sivamente se espalhando por outras regies do pas;

    Islamismo de imigrao oriundo da imigrao de povos rabesno perodo ps-primeira guerra, iniciando uma comunidade islmica reco-nhecida no pas;

    Islamismo de converso fenmeno do nal do sculo XX, que seinicia com a crescente converso de brasileiros ao islamismo.Essa presena dos primeiros muulmanos no Brasil foi documentada

    por diversos historiadores e folcloristas como Nina Rodrigues (1977), Etin-ne Brasil (1909), Arthur Ramos (1951), Gilberto Freyre (1980), Joo do Rio(2006), Abelardo Duarte (1958) e Waldemar Valente (1976). A estes registros

    2 E disse o mensageiro de Deus: Todo recm-nascido nasce no instinto natural, poste-riormente seus pais o fazem judeu, cristo, zoroastriano...como o animal que d a luz aum lho completo, por acaso vocs vem nela algum defeito? (Hadith - Muttafaqn alaih) Segundo Al Mussleh (2010, p.7), os pais o fazem judeu, cristo ou zoroastriano apster nascido naturalmente monotesta,assim como o rgo da ovelha cortado (o rabo oua orelha por exemplo) aps ter nascido completa e saudvel.

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    somam-se os achados histricos de fragmentos de escritos rabes em porta--amuletos e o relato de Francis de Castelnau, do sculo XIX. A participao

    poltica e ideolgica dos nossos por assim dizer, primeiros muulmanos nasdiversas revoltas do Recncavo Baiano tambm foram minuciosamente re-latadas nos ltimos tempos por Joo Jos dos Reis.

    Recentemente, a descoberta de um registro em rabe, do sculo XIXtrouxe uma nova viso sobre os fatos, visto se tratar de um relato feito porum lder muulmano em visita ao Brasil entre os anos de 1866 e 1869. Orelato em questo refere-se ao precioso dirio de viagem do Im Abdurrah-man al`Baghdadi, ao qual deu o nome de Deleite do Estrangeiro em tudoo que espantoso e maravilhoso, guardado pela Biblioteca de Istambul e

    traduzido para o portugus por Paulo Daniel Farah3. Este texto constituiuma importante fonte de informao histrica, antropolgica e religiosa sobreo Isl no Brasil do sculo XIX.

    3 O Islamismo de Escravido4

    O Isl foi trazido ao Brasil no nal do sculo XVIII pelos escravosoriundos das regies islamizadas da frica. A inuncia do Isl na fricacomeou no sculo VII com a invaso pelos povos rabes do norte do con-tinente. A resistncia foi pouca e a regio passou a ser governada por Califas,

    que introduziram a religio islmica nas terras conquistadas, juntamente comprticas culturais rabes. O islamismo at hoje a religio dominante nestarea, existindo porm um amlgama com prticas animistas e fetichistasancestrais em diversas tribos5.

    O islamismo de escravido tem portanto, seu incio, com a chegadaao Brasil, principalmente na Bahia, de milhares de prisioneiros advindos deguerras poltico-religiosas na regio do Sudo Central, que hoje equivaleria aonorte da Nigria. Do longo conito resultou a tomada de prisioneiros, que

    eram vendidos aos tracantes de escravos, embarcados nos navios negreirospara o Brasil, sendo a grande maioria do sexo masculino, pois raramentemulheres eram feitas prisioneiras de guerra.

    3 Este texto foi publicado pela BIBLIASPA internamente e espera por nanciamento paraser publicado em larga escala, para venda.

    4 Esta primeira fase de implantao do islamismo foi mais detalhada no artigo: O NegroIslmico no Brasil Escravocrata, publicado na Revista USP set/out/nov 2011.

    5 Arthur Ramos ao fazer o estudo antropolgico dos povos africanos que contriburampara a formao do povo brasileiro, registra com preciso estas crenas diferenciadas portribos. (Ramos, 1951, p.316-328.)

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    Estes prisioneiros tinham em comum alm da pele negra, a crena isl-mica, apesar de algumas diferenas nas prticas e dogmas. Em solo brasileiro

    porm, o destino trgico compartilhado no tardou por unir os antes inimigosem uma forte identidade comum.Os primeiros mulumanos a chegarem ao Brasil, trazidos fora, eram

    Hausss na sua maioria, seguidos de cativos dos reinos Gurma, Borgu, Borno,Nupe e outros reinos vizinhos dos Hausss, localizados no Sudo Central(Reis, 2003, p.159-163). Sendo rea ricamente inuenciada pela cultura rabe,estes naturalmente trouxeram consigo a religio muulmana e aqui caramconhecidos pelo nome de mals, que vem do termo iorub imali, signicandorenegado, que adotou o islamismo. (Ramos, 1951, p.317). Apesar desses

    negros mals possurem um grande desenvolvimento cultural sabiam ler eescrever em rabe , foram obrigados a despir suas tnicas brancas e a via -jar trajados sumariamente em pores escuros dos navios negreiros (Freyre,1980, p.315).

    Mesmo com a hostilidade devida relao entre senhor e escravo,em virtude da sua habilidade em ler e escrever (Freyre, 1980, p. 299), mui-tos mals foram destinados a atividades ligadas ao comrcio, tornando-senegros de ganho (escravos que faziam servios urbanos e recebiam umsalrio). Devido a esta peculiaridade, muitos dos mals chegaram, mesmo

    com diculdade, a comprar a sua alforria6e at alguns, desses alforriados,conseguiram desenvolver patrimnio nanceiro maior que certos brancos.Mas esta caracterstica no os livrava do domnio do colonizador, pois, pararealizar negcios, estes negros livres precisavam estabelecer alianas sociaisque exigiam no s subservincia social como tambm religiosa, sob a penade revogao das cartas de alforria.

    Este diferencial trazido pelos negros mals foi-lhes deveras proveitoso,pois lhes permitiu acesso a ambientes onde os demais escravos, iletrados,

    no podiam penetrar. Foram aos poucos conquistando no s espaos naeconomia, tornando-se pequenos comerciantes, quando livres, mas tambmespaos para desenvolver sua crena, embora, perante os brancos aparen-tassem ter aceitado a religiosidade catlica, assumindo para isso at mesmoum novo nome de batismo. Semelhantes escravos no podiam conformar-6 As estatsticas divergem, como se pode ver nos nmeros destes trs relatos: Na cidade

    de Salvador no ano de 1775 encontrou 3630 negros livres, 4207 mulatos livres e 14696escravos negros e mulatos. Em 1808, em um censo realizado em Salvador e 13 freguesiasrurais da Bahia constatou a presena de 104.285 negros e mulatos livres ou alforriadose 93.115 escravos negros e mulatos. (Reis, 2003, p.22) J segundo a estatstica da Popu-lao escrava e libertos arrolados do Ministrio dos Negcios, da Agricultura, Comrcioe Obras Pblicas, realizada em 1888, existiriam na Bahia, 1.001 negros livres e 76.838negros escravos (apud. Ramos, 1951, p.249)

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    -se ao papel de mans-gostosos dos portugueses; nem seria a gua benta dobatismo cristo que, de repente, neles apagaria o fogo maometano.(Freyre,

    1980, p. 310)Em seu dirio de viagem, em 1866, corroborando as armaes acima,o Im Al`Baghdadi registrou: Depois disso, todos os que conseguiam a li-berdade por direito, lembravam-se da religio dos seus antepassados, qualeles se voltavam aps a libertao. Este registro precioso revela a fora dacrena islmica que sobreviveu no corao destes alforriados, apesar do julgocatolicizante a que foram submetidos.

    Para manter a crena viva em solo brasileiro, estes muulmanos livrescriaram escolas e casas de orao (Freyre, 1980, p. 306). O Im Al`Baghdadi

    observou no sculo XIX a existncia de salas de reunies a que os muul-manos davam o nome de majlis. Devido perseguio religiosa, ainda quevelada, estas casas de orao localizavam-se afastadas da populao, prxi-mas s plancies. Algumas runas destas casas ainda hoje mostram em suasparedes internas inscries do alcoro em rabe, coisa que comum hoje deser vista em mesquitas. Na incumbncia de preservadores da religio islmicaestavam sacerdotes versados em rabe e conhecedores do alcoro, que rece-biam o nome de Alufs. Com o estudo do alcoro, ainda que escondido dasautoridades pblicas, o islamismo foi criando um grupo coeso, unicado pela

    crena em comum, mas tambm pelas mazelas sofridas longe de sua ptrianatal. Este grupo de negros muulmanos comunicava-se entre si em rabe,dominando a lngua escrita e falada. Podemos perceber desse modo que o Islfoi um fator de coeso grupal e de formao de identidade entre os negros.

    O fervor religioso desse grupo islmico era tanto que, apesar do Cdigopenal de 1830, Art. 277 declarar como crime: abusar ou zombar de qual-quer culto estabelecido no Imprio, o que ocorreu foi o inverso. Escravoslivres, conhecedores do alcoro eram vistos pregando a religio do Profeta

    na cidade de Salvador, em locais como o Beco da Mata-Porcos, na Ladeira daPraa, no Cruzeiro de So Francisco, perto de igrejas e mosteiros catlicos.Nestas pregaes, faziam propaganda contra a missa catlica, dizendo que avenerao de santos era o mesmo que adorar um pedao de pau; e opondoseus rosrios aos rosrios catlicos. (Freyre, 1980 p.310-311).

    Nina Rodrigues confere proeminncia intelectual e social para os negrostrazidos da regio do Sudo, atribuindo-lhes a organizao de revoltas desenzala e movimentos contestatrios de escravos. Os Hauss muulmanosteriam sido aristocratas das senzalas, pois alm de possurem literatura

    religiosa j denida havendo obras indgenas escritas em caracteres arbi-cos, vinham de reinos com organizao poltica j adiantada, sendo, portanto,estrategistas natos. (Rodrigues, Nina apud Freyre, 1980, p.310). Os Hausss

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    comandaram diversas insurreies na Bahia, nos anos de 1807, 1809, 1814,1815 e 1816, seguidas de um intervalo, aps o qual iniciaram-se diversas

    rebelies que caram conhecidas como nags: 1826, 1827, 1828, 1830, 1835.Os registros ociais destas rebelies deixam perceber a presena demuulmanos com forte inuncia na liderana dos levantes. Alguns fatosem comum chamam a ateno: a escolha de datas religiosas para os levan-tes, a presena de negros livres e escravos vestidos com roupas tipicamentemuulmanas e utilizando amuletos contendo textos do alcoro em rabe,alm de terem sido encontrados bilhetes em rabe com informaes sobreos levantes, servindo esta lngua de cdigo para passagem de informaesentre quilombos, senzalas e negros livres. A escolha de dias de festa para

    os levantes tem a sua explicao no fato desses dias serem dias faustos,quando os senhores tinham a sua ateno voltada para os festejos catlicos,podendo ento os levantes acontecer com mais eccia. Destaca-se porma revolta de 1835, realizada ao nal do Ramad, mostrando com isto umaforte conotao islmica ao levante em questo. As revoltas com participaode mals foram bem estudadas por Joo Jos Reis (2003). O que podemosperceber de tamanhas empreitadas que os levantes no eram sem direoou propsito. Tinham a inteno de tomar o poder poltico e religioso. Casoo levante de 1835 tivesse alcanado sucesso, a Bahia se transformaria em um

    pas islmico, com uma pequena tolerncia para os cultos afro-brasileiros.Aps a revolta de 1835, um certo nmero de escravos presos foi devol-

    vido a seus senhores e posteriormente vendidos para o Rio de Janeiro e RioGrande do Sul. Comeou uma grande perseguio aos mals, com prisoe consco sucessivo de textos em rabe, o que fez com que um nmerosignicativo de mals livres se dirigisse para o Rio e ali xasse residncia.Cessa-se o perodo de revoltas conduzidas pelos adeptos do islamismo naBahia e em Alagoas, mas apesar disto, o Isl continuou presente no Brasil,

    registrado por Mello Moraes Filho (1901) atravs da descrio da Festa dosMortos celebrada 2 vezes ao ano at 1888, em Alagoas; a cerimnia, queinclua o sacrifcio de animais e, foi considerada por Arthur Ramos comoum rito funerrio de origem mal. (Ramos, 1951, p.332).

    Alguns anos aps, em 1909, o Abade tienne, escreveria a respeito dapresena e crescimento do Isl em terras brasileiras:

    O islamismo ramicou-se no Brasil em seita poderosa, orescendo no escurodas senzalas. Que da frica vieram mestres e pregadores a m de ensinarem

    a ler no rabe os livros do Alcoro. Que aqui funcionaram escolas e casas deorao maometanas. (Etienne, 1909 apud Freyre, 1980, p.310)

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    Quem eram estes mestres e pregadores continuaria um mistrio nohouvesse sido descoberto o relato do Im Al`Baghdadi, provavelmente um

    dos mestres africanos referido pelo Abade, que encontrou aqui em 1866,ummasou comunidades muulmanas estruturadas no Rio de Janeiro, Salvadore Recife, permanecendo entre eles para ensin-los. Apesar da indicao deque alguns mals presos na revolta de 1835 tenham sido vendidos para oRio Grande do Sul, no h evidencias bibliogrcas de que este grupo tenhaconstitudo uma comunidade islmica organizada.

    Abdurrahman alBaghdadi, nascido em Bagd, era sdito do ImprioOtomano, que controlava o Oriente Mdio. Embarcou como im, responsvelpelo cuidado espiritual da tripulao, em uma viagem de Istambul a Barsa,

    mas uma tempestade fez com que a embarcao viesse costa brasileira,aportando no cais do Rio de Janeiro em setembro de 1866, apenas 30 anosaps o ltimo levante mal na Bahia. Ao desembarcar, AlBaghdadi foi abor-dado por diversos negros que o saudaram: As-salmu `alaykum, fazendodistino entre ele e os demais membros da tripulao devido as suas vestesformais e turbante. interessante notar que estes negros, ao entrar no navio,zeram questo de armar eu, muulmano e no, eu, mal, reforandoa idia de que esta nomeao era rejeitada pelos negros islamizados.

    Ainda conrmando o fato de existir realmente um grupo islmico orga-

    nizado no Rio de Janeiro, Al`Baghdadi relata o fato de praticarem os rituaisde orao alm de terem o cuidado de manter partes do alcoro no idiomarabe guardados dentro de pequenos cofres. Estes fragmentos do alcoroso portanto, do mesmo tipo dos que foram conscados pelas autoridadesda Bahia aps o levante de 1835, o que nos leva a armar que estes negrosdo Rio de Janeiro seriam os que fugiram depois daquela derrota e/ou seusdescendentes. Conrmando os registros dos pesquisadores anteriormentecitados, Al`Baghdadi percebeu que estes cofres com fragmentos do alcoro

    eram considerados mais como amuletos protetores do que como formas demanuteno do ensino religioso. Devido a perseguio aos mals que havia seinstaurado, Al`Baghdadi teria passado a se reunir ocultamente com um grupode cerca de 500 homens para o estudo do alcoro. Relata tambm a infor-mao de que no Brasil havia aproximadamente 5 mil muulmanos, nmeroque subiria para 19 mil ao nal de sua estadia. verdade que tais nmerosparecem exagerados, mas o que importa aqui o relato presencial que atestaa existncia de grupos muulmanos organizados no nal do sc. XIX.

    Mas, quando trata das converses, o termo usado algumas pessoas

    e no milhares: ... em seguida me dirigi at algumas pessoas que queriamintegrar a religio muulmana. Ocupei-me delas generosamente e dediquei-mea instru-las e ensin-las. Quanto ao que motivava as converses de outros

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    grupos de negros, Al`Baghdadi deixa entender que seria a forte identica-o entre os membros da comunidade: Quando observam a comunidade

    muulmana entre eles e o intenso amor que seus integrantes nutrem unspelos outros, sentem cime intenso desses cidados. E eles aderem a religiomuulmana com almas vidas.

    Aps uma longa estadia no Rio de Janeiro, Al`Baghdadi, a pedido dosgrupos mals que l se reuniam, se dirige a Salvador. Ressalta a existncia demais muulmanos em Salvador que no Rio de Janeiro, embora no consteo nmero destes, o que condiz com o trco negreiro de tribos islamizadaspara a Bahia. H tambm a observao de que muitos lhos de muulmanosestavam se convertendo ao cristianismo atrados pelas festas, msicas e, so-

    bretudo pelo fato desta ser a religio mais aceita socialmente. Al`Baghdadi fazento a recomendao de que os pais aprisionem seus lhos at atingirema maturidade plena e que os instrussem, mostrando nfase na necessidadeda preservao familiar da crena islmica.

    Da Bahia, Al`Baghdadi se deslocou para Pernambuco7, onde encontroudois lderes, fato a que atribui manuteno do Isl nesta cidade. Haviamainda outros diferenciais: uma maior tranqilidade em assumir o credo isl-mico e uma forte inclinao a magia, numerologia e geomancia.

    Ao m de 3 anos no Brasil, Al`Baghdadi volta Arbia e em sua des-

    pedida no h referncia ao nmero de muulmanos, mas apenas a de quemuita gente esteve presente.

    At bem pouco tempo, as referncias continuidade da crena islmicaem terras brasileiras eram bem escassas, se limitando a poucas citaes naliteratura apontando para algumas sobrevivncias do culto islmico, bem comode certos costumes e prticas apontando para a dissoluo deste primeiroislamismo brasileiro atravs de um processo de assimilao para garantir aprpria sobrevivncia. Algumas pistas nos foram legadas por Joo do Rio,

    Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Pierre Verger, Abelardo Duarte e WaldemarValente. Estes autores encontraram um Isl aculturado, transformado pelocatolicismo de um lado e pelo candombl de outro. H inclusive a possibili-dade traada por Gilberto Freyre de que alguns negros muulmanos tenhamse convertido ao Protestantismo, como forma de reao contra o Catolicismoocial brasileiro (Freyre, 1980, p.312).

    Abelardo Duarte8(1958, p.41), defende terem os muulmanos de Alagoasmantido as tradies islmicas misturadas ao Catolicismo. o caso do assumy

    7 No texto aparece Marnpukua, traduzido por Paulo Farah como Pernambuco8 Apesar da data do livro de Abelardo Duarte ser posterior as publicaes de Joo do Rio,

    Gilberto Freyre e Arthur Ramos, aqui citado primeiro devido a data que apresenta nareferida foto em sua publicao.

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    ou jejum anual (um dos 5 pilares do Isl) que coincide com a Festa do EspritoSanto. Os muulmanos procuravam assim, dentro do Catolicismo, encontrar

    brechas para praticar sua religiosidade com todo o rigor que a mesma exige.Joo do Rio, encontrou em 1904, no Rio de Janeiro, um Isl misturadocom o Candombl, onde Alufsvestidos com abads, com a cabea cobertapor um gorro vermelho, o l, e sentados sobre tapetes de pele de tigre oude carneiro liam o alcoro, faziam suas preces (kissium), rezavam o rosrio(tessub)9, no comiam carne de porco e guardavam o Ramad. (Joo do Rio,2006, p.25-26) Joo do Rio registrou que apesar dos praticantes do candom-bl carioca e os muulmanos que encontrou possussem hbitos exterioressemelhantes e praticassem feitiariasda mesma forma, no havia uma total

    absoro de uma religiosidade pela outra pois observa que a reao entrenegros islamizados e os provenientes das tribos iorub permanecia: OsAlufs no gostam da gente de santo a quem chamam de auauad-chum; agente de santo despreza os bichos que no comem porco, chamando-os demals. (Joo do Rio, 2006, p.27)

    Gilberto Freyre, em 1933, encontraria elementos de sobrevivncia deprticas muulmanas na Bahia, Rio de Janeiro, Recife e Minas Gerais e de-fenderia a hiptese de que o islamismo por um lado, haveria impregnado ocatolicismo rural:

    Forosamente o Catolicismo no Brasil haveria de impregnar-se dessa inunciamaometana como se impregnou da animista e fetichista, dos indgenas e dosnegros menos cultos. Encontramos traos de inuncia maometana nos papiscom orao para livrar o corpo da morte e a cs dos ladres e dos malfeitores;papeis que ainda se costumam atar ao pescoo das pessoas ou grudar nas portase janelas das casas, no interior do Brasil.(Freyre, 1980, p. 311-312).

    E, por outro lado, havia dados das suas contribuies para as religiesafro-brasileiras do Rio de Janeiro e Recife, apresentando seu relato muitassemelhanas ao de Joo do Rio:

    temos vrias vezes notado o fato dos devotos tirarem as botinas ou os chinelosantes de participarem das cerimnias; em num terreiro que visitamos no Riode Janeiro notamos a importncia atribuda ao fato do individuo estar ou nopisando sobre velha esteira estendida no meio da sala. No centro da esteira,de pernas muulmanamente cruzadas, o negro velho, pai de terreiro. ... Nasfestas das seitas africanas que conhecemos no Recife... Manuel Querino fala

    tambm de uma tinta azul, importada da frica, de que se serviam os mals

    9 A mesma roupagem descrita por Arthur Ramos em 1934 na Bahia.

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    para seus feitios ou mandingas; escreviam com esta tinta sinais cabalsticossobre uma tbua preta. Depois lavavam a tbua, e davam a beber a gua a

    quem quisesse fechar o corpo; ou atiravam-na no caminho da pessoa que sepretendia enfeitiar. (Freyre, 1980, p.312)

    Arthur Ramos em 1934 teria identicado duas seitas poderosas quedisputavam a primazia religiosa em Alagoas: a de xang e a de mal. Ramosargumenta que havia uma diferena fundamentalno culto praticado pelosnegros muulmanos do Penedo (Alagoas) em relao aos da Bahia e Riode Janeiro, sendo os primeiros menos ortodoxos que os demais. Tambmteria registrado um cntico de Ogun de malem Macei no ano de 1934, e

    presenciado terreiros onde o lder teria o nome de Aluf, com rituais mes-clados de nag e elementos mals. Tambm registrou expresses de origemrabe em jornais de 1906 a 1912 e o recebimento de um livro manuscritocom oraes e partes do alcoro, em rabe10. (Ramos, 1951,p.328-329). ParaArthur Ramos, o islamismo dos negros mals do Brasil sempre esteveeivado das prticas religiosas africanas, fenmeno que havia se iniciadona prpria frica. Adoravam Al, Olorun-ulu(sincretismo de OlorumdosYorube Al) e Mariana (me de Deus). Ramos acredita portanto, que assobrevivncias mals acham-se diludas nas praticas e cultos gege-nagsou

    bantus, das macumbas e candombls do Rio, Bahia e outros pontos do Bra-sil, tendo a cultura male se amalgamado s outras culturas africanas, criandosincretismos, podendo hoje s serem detetadas por meio de alguns termos,roupas e prticas. (Ramos, 1951, p. 332-333)

    Segundo Roger Bastide (1971), em 1937, o candombl baiano tinha aindaconotao mal, demonstrada por algumas palavras, expresses e oraescom semelhana na aplicao dos rituais mal.

    Pierre Verger, bem depois, estudando as religies africanas no Brasil(1968, p.520) sugere a possibilidade de existirem muulmanos pertencentesa uma das irmandades negras dedicadas a Nossa Senhora do Rosrio emSalvador, Bahia.

    Waldemar Valente (1976) realizou diversos estudos, buscando as so-brevivncias do Isl negro atravs das marcas muulmanas nos Xangs dePernambuco e demais cultos afro-brasileiros.

    Beatriz Dantas (1988, p.117-118) em seu estudo sobre a religiosidadeafricana, faz uma breve meno a presena de muulmanos em Laranjeiras,Sergipe, com formas de organizao separada dos l denominados nag

    e tor.10 Arthur Ramos teria recebido este livro de dison Carneiro (1912-1972), estudioso de

    assuntos afro-brasileiros da Bahia.

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    Corroborando esta hiptese de que o Isl dos mals tenha se aculturado,misturando-se ao Candombl, Mariza Soares encontrou alguns artefatos da

    coleo Perseverana, organizada por Theo Brando e Abelardo Duarte comobjetos dos antigos terreiros Xang de Macei, hoje extintos, que apresen-tam o smbolo da meia lua, e a aparncia de bolsas de mandinga. O assessorda Mesquita Brasil, em so Paulo, Hosney Mahmoud Mohamed Al-Sharif,refere-se a palavra Oxal como sendo uma corruptela da expresso rabeIsha-Allh (queira Deus). Como no portugus no h as pausas que ocorremno rabe, pronunciando-se de forma suave, se tornou oxal. Com o passardo tempo o termo se tornou ujma seita chamada Oxal.

    O relato de Al Baghdadi tem portanto uma grande importncia como

    uma prova da permanncia da crena islmica at quase o m sculo XIXno Brasil dentre os descendentes de escravos mals. Aps a abolio daescravatura em 1888 e a proclamao da Repblica em 1889, houve umareduo nas limitaes s religies no catlicas, mas, apesar disso, esteIsl, aparentemente to organizado e forte, no deixou registros. Foi apenasaps o m da primeira guerra mundial, que, com a chegada dos imigrantesrabes-srio-libaneses ao Brasil e com a garantia para suas prticas religiosasatravs da Constituio de 1949, que se estabelecer a comunidade islmicaque conhecemos hoje. Fica, portanto um vcuo no tempo, sem informaes

    sobre o destino que estes grupos mal possam ter tido.

    4. O Islamismo de ImigraoApesar, portanto, de ter havido muulmanos vivendo no nordeste bra-

    sileiro desde o sculo XVIII, no houve o estabelecimento de uma comuni-dade islmica at o nal do sculo XIX, a partir de 1860, com a chegada deimigrantes libaneses, srios e palestinos do Imprio Otomano. Estes primeirosimigrantes eram tratados como turcos11, fossem srios, lianeses ou palestinos.

    Liane Aseff (2010, p.153), estudando os imigrantes que se xaram na fronteiraentre Brasil e Uruguai relata: Se vinham do Oriente Mdio, at mesmo osgregos, recebiam a mesma alcunha: so todos turcos, tch

    Os primeiros imigrantes libaneses so oriundos do Vale do Beqa, cidadede Sultan, Gazze, Kamed Al-Lawz, Jib Janin, Bire, Al-Manara, Bar Elias, Marje do sul do Lbano, instalando-se em So Paulo e Foz do Iguau (Osman,1998). J os srios so na sua maioria procedentes da cidade de Damasco.(Baalbaki, s.d., p.31). O que trouxe estes imigrantes ao Brasil para os demaispaises da Amrica do Sul foram inicialmente os conitos locais e perseguies

    11 Estes imigrantes chegam ao Brasil para se xar como lavradores, trazendo consigo umpassaporte da Turquia, que dominava o mundo rabe at a Primeira Guerra Mundial. Vemda o fato destes primeiros imigrantes carem conhecidos como turcos.

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    religiosas. Estes primeiros imigrantes eram na sua maioria cristos (maronitas,ortodoxos e melquitas), mas dentre estes rabes tambm se encontravam

    judeus e muulmanos. Esta primeira leva de imigrantes srio-libaneses foiestimulada pela visita do Imperador D. Pedro II, que esteve em 1876 noLbano, Palestina e Sria, incentivando muitos dos camponeses da regio avirem ao Brasil para construir uma nova vida, longe do Imprio Otomano.

    A inteno destes imigrantes era a de se xar no novo pas, seja comocomerciantes, seja como agricultores: Viemos para o Brasil procura desustento e sonhando em conquistar fortunas. Junto a outros imigrantes,viajamos com a inteno de voltar, mas acabamos cando, e camos parasempre, (Baalbaki, s.d., p.9). Comearam trabalhando na maioria como mas-

    cates, percorrendo longas distancias pelo Brasil adentro levando produtosque enchiam os olhos das brasileiras. Estabeleceram-se principalmente emSo Paulo e Minas Gerais.

    Uma segunda leva de imigrantes chegou ao Brasil na segunda guer-ra, entre os anos 1918 e 1945, trazidos pela ocupao de sua regio pelosfranceses e ingleses, pelo desemprego e crise nas pequenas industrias, almdo crescimento demogrco: No Lbano, no havia trabalho,... o pas erapequeno para tantos trabalhadores. (Aseff, 2010, p.141).

    Com a chegada das tropas francesas e inglesas regio, os muulmanos

    se sentiram perseguidos e passaram a deixar o Lbano rumo ao Brasil. As-sim, conforme Moreira (2006), outro fator que fez com que o Brasil fosseescolhido como destino foi a expectativa de professar a religio islmica semo temor de represlias.

    Embora os muulmanos presentes neste grupo ainda fossem em minoria, com estes imigrantes, que comea a se estabelecer uma comunidade islmicaslida em terras brasileiras. Em 1928 inaugura-se na Av do Estado, em SoPaulo, Capital, a primeira sociedade benecente muulmana no Brasil, com

    62 pessoas arroladas, originrias da Siria, Lbano, Palestina, Nova Granada eEgito. Poucos anos depois, em 15 de junho de 1933 publicada a primeiraedio do jornal Srio, AZ-ZIKRA, a primeira publicao muulmana noBrasil.12Tendo a construo iniciada em 1929, da primeira mesquita doBrasil e da Amrica Latina; inaugurada em 1960, no bairro do Cambuci,em So Paulo13.

    12 Este jornal parou de circular em 1935 devido a problemas nanceiros. Foi substitudo pelojornal semanal AL-URUBAT, renomeado posteriormente de ARRISSALA, curiosamentefeito com tradues e tipograa de dois rabes-cristos. Este jornal tornou-se o porta

    voz dos muulmanos e do movimento cultural rabe e islmico em portugus e rabe.13 A Mesquita Brasil conta como data de sua fundao o ano de 1929, embora a construo

    s tenha sido nalizada em 1960.

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    Por m, na segunda metade do sculo XX, com a ocupao da Palestinae os conitos crescentes no Oriente Mdio, uma nova leva de imigrantes

    rabes, na sua maioria muulmanos, chega ao Brasil, fugindo da guerra comIsrael, fortalecendo a comunidade islmica. Junto com estes imigrantes, umpequeno nmero de egpcios prossionais liberais, engenheiros e professoresviria se estabelecer aqui14.

    O uxo de imigrantes rabes muulmanos deparou-se com uma nova situaono Brasil, distinta daquela dos primeiros movimentos dos rabes cristos, que essa poca haviam formado comunidades inseridas na sociedade brasileira.

    Ao contrrio dos primeiros imigrantes, por uma srie de razes que incluem

    as novas tecnologias com destaque para a Internet e a possibilidade de co-municao imediata e irrestrita que oferece mantm laos fortes com a terranatal.(Farah, 2010, p.50) .

    neste perodo que ser construda uma das mesquitas mais suntu-osas do Brasil, em Foz do Iguau, PR e, em 1969, que a Escola (Colgio)Islmica(o) inaugurada na Vila Carro, So Paulo, SP, como importantecentro divulgador da cultura muulmana.

    O crescimento da comunidade islmica progride a ponto de em 1970

    realizar-se o primeiro Congresso Internacional Islmico dos Muulmanos doBrasil, com participao do Ir e da Turquia.

    Atravs de contribuies nanceiras da Arbia Saudita, Lbia, Kwait eIr, no Brasil j existem 90 instituies islmicas, 60 mesquitas e 120 salasde orao, distribudas nos estados de So Paulo, Rio de Janeiro, EspritoSanto, Minas Gerais, Gois, Mato Grosso, Pernambuco, Paraba, Bahia, Pa-ran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul com aproximadamente 50 Sheiksou Ims oriundos principalmente da frica (Egito, Marrocos e Moambique).

    (Ultimato, 2012,16)Hoje, segundo Moreira (2006), existem cerca de 8 milhes de rabes edescendentes no Brasil, sendo que mais de 6 milhes so de origem libanesa.

    Embora a preocupao com a manuteno da religio tenha estadopresente na vinda dos imigrantes muulmanos ao Brasil, com os freqentescasamentos com brasileiros de origem crist, foi progressivamente se efeti-vando uma perda de costumes religiosos, juntamente com o pouco uso dalngua natal. A libanesa Mahida Fahad em depoimento ao jornal O Globo(Moreira, 2006) revela seu descontentamento com esta situao, mas por

    outro lado, j aponta para a mudana que vem se processando dentro das14 Dentre estes egpcios, Baalbaki cita o professor de estudos orientais da Universidade de

    So Paulo, Helmi Mohamed Ibrahim Nasr, chegado ao Brasil em 1962. (Baalbaki, sd, p.3)

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    mesquitas brasileiras: Nossos lhos e netos se casaram com cristos. Oscostumes mudaram, no fazem nem jejum no Ramad. Mas muitos brasileiros

    gostam de ir a Mesquita porque a acham bonita e gostam das nossas oraes.Devido ao fato da maioria dos muulmanos que chegaram pela imigra-o serem comerciantes e agricultores, muitos sequer sabiam ler e escreverem rabe, o que facilitou a imerso dos mesmos dentro da esfera religiosacatlica que aqui encontraram. A falta de mesquitas e de lideres fez comque muitos deixassem suas praticas dirias e permitissem o casamento deseus lhos e at mesmo de si prprios com mulheres de outras crenas. Oassessor da Mesquita Brasil, Hosney Al-Sharif, acredita que no era planodeles a questo religiosa. Da a relativa demora para se criar casas de orao.

    A perda da tradio e da religiosidade nas geraes posteriores a dosimigrantes uma das preocupaes dos Sheiks em todas as mesquitas visita-das. Segundo o Sheik Mohamed Al Bukai, da Mesquita do Pari, SP, no ha preocupao em islamizar. A religio no pode ser obrigatria, mas temosque proteger nossos lhos.

    Esta preocupao bem explicada pelo desabafo editor da RevistaArrissala (A Misso):

    nao rabe e muulmana, muulmanos do mundo, ns somos aqui no Brasil,

    uma minoria que est perdendo a sua cultura para os outros e para a sociedade brasileira:perdemos nossa tradio, nossos dogmas espirituais e nossos costumes....Nem os prpriosbrasileiros acreditam que somos brasileiros como eles, nem nossos patrcios e familiares acre-ditam que ainda somos rabes e muulmanos. um processo de imigrao sobre imigrao15.(Baalbaki, s.d., p.58 e 60)

    5. O Islamismo de ConversoHoje, o que presenciamos nas mesquitas brasileiras um grande contin-

    gente de brasileiros frente aos descendentes de imigrantes rabes. Estima-se

    que no Brasil existam cerca de um milho e meio de muulmanos16

    . No hcomo se ter um nmero exato devido ao fato do islamismo, diferentementedas religies crists, no possuir um ritual pblico de adeso religio. Paratornar-se muulmano basta crer nos seis pilares da f e pronunciar o Teste-munho17, o que pode ser feito sem a presena de outros, individualmente,em um local qualquer.

    15 Palestra proferida em encontro islmico em So Bernardo, So Paulo, de 17 a 19 de abrilde 2000, intitulada Questionamento sobre direitos das Minorias Islmicas

    16 Dados da Unio Nacional das Entidades Islmicas (www.uniaoislamica.com.br)17 O testemunho consiste em pronunciar em rabe a frase: La ilaha illa Allah, Muhummadur

    rasoolu Allah que signica No existe verdadeiro Deus exceto Allah e Mohammad omensageiro de Allah. (Ibrahim, 2008, p. 54)

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    Dentro do islamismo o termo usado para identicar um novo seguidor o de revertido18. Entendem que todo ser humano nascido muulmano e,

    portanto, uma converso na verdade um retorno ao estado original. Assim,como o termo Isl signica obedincia absoluta ao criador, submisso vontade de Deus(Hama, 2004, p.36), reverter ao Isl signica submeter--se novamente ao criador do Universo, Allah. Esta crena de que todo serhumano nasce submisso a Deus, e portanto, muulmano, caractersticaapenas do islamismo. E o profeta ainda relata: diz Allah, o Altssimo: Eucriei todos os meus servos monotestas, depois vieram os demnios e os des-viaram de sua religio e proibiram para eles o que Eu vos tinha permitido.(Hadith Sahib Musslim)

    Em se tratando de islamismo de converso, alguns dados so relevantes:85% dos freqentadores das mesquitas no Rio de Janeiro so brasileiros rever-tidos, sendo que o nmero de revertidos saltou de 15% em 1997 para 85% em2009. Em Salvador, a freqncia de brasileiros revertidos de 70%. (Cardoso,2011, p.63-64) Na regio do ABCD19, no estado de So Paulo encontra-se aMesquita de So Bernardo do Campo, com cerca de 400 famlias de libanesese revertidos (Ferreira, 2009, p.6). A cidade de So Bernardo do Campo, SP, considerada por alguns como a capital dos muulmanos no Brasil, pois almda grande mesquita, o local das sedes de diversas organizaes como: a

    Junta de Assistncia Islmica Internacional, o Centro de Divulgao do Islpara a Amrica Latina (CDIAL), a assemblia Mundial da Juventude Islmica(WAMY) e a Editora Makkah.

    A comunidade muulmana do Rio de Janeiro se rene na SociedadeMuulmana Benecente do Rio de Janeiro (SBMRJ), em uma sala de oraono bairro da Lapa. Conta com cerca de cinco mil aliados formalmente.Dentre estes cerca de 40% so rabes e descendentes de rabes. A maioriados participantes so revertidos brasileiros e estudantes africanos em estadia

    no Brasil (Montenegro, 2002).Em contrapartida, a Mesquita Iman Ali Ibn Abu Talib, em Curitiba, PR,rene cerca de 15.000 pessoas, quase que exclusivamente imigrantes srios,palestinos, libaneses, egpcios e seus descendentes (Pinto, 2005, p.234).

    As mesquitas em So Paulo apresentam caractersticas prprias, dadasprincipalmente pela forma com que o Sheik as administra. A Mesquita Brasil,mais antiga no pas possui uma comunidade de cerca de 1.700 membros, com

    18 Interessante observar que o termo revertido de emprego recente, j que no ocorreno Coro. O termo usado no Coro crente: Os verdadeiros crentes so, apenas,aqueles cujos coraes se atemorizam, qujando mencionado Allah. (Coro, 8.2)

    19 Regio formada pelas cidades de Santo Andr, So Bernardo do Campo, So Caetano eDiadema, no Estado de So Paulo

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    orientao Sunita enquanto que a mesquita do Brs, possui uma lideranaXiita, com cerca de 20.000 membros. Ambas mesquitas so voltadas princi-

    palmente para os rabes e seus descendentes. Por outro lado, a mesquita doPari, possui na sua liderana um Sheik sunita, chegado h 4 anos da Sria, evolta-se quase que inteiramente para os revertidos brasileiros, tendo tambmcadastradas 200 famlias de origem libanesa.

    H claramente uma dupla face no crescimento numrico dos muulma-nos no Brasil. Tem havido recentemente um movimento de volta de algunsnascidos muulmanos, lhos e netos de rabes e conjuntamente, um fen-meno de reverso de brasileiros sem ascendncia rabe. Percebe-se tambmuma diferena clara no tratamento dado nas mesquitas a estes dois grupos.

    Existem mesquitas que se preparam com anco para receber e manter estesrevertidos brasileiros, com cursos em portugus e atividades diversas e atrati-vas. Outras mesquitas, mais tradicionais, atm-se lngua rabe e a atividadesculturais apenas, numa clara etnicao do Isl. Nestas mesquitas, freqentea queixa de brasileiros que se sentem excludos por no dominarem a lnguarabe e no serem muulmanos de nascimento. Os revertidos vo entobuscar espaos onde se identiquem, e, onde muitas vezes a presena rabe menor que a de brasileiros.

    Do numero total de revertidos que freqentam as mesquitas do pas,

    cerca de 70% so do sexo feminino. E, como as mulheres so dispensadasdas obrigaes religiosas na mesquita, isto diculta ainda mais a elaborao deuma estatstica do is. Quanto a idade, a maioria dos brasileiros revertidosesto entre os 20 e 40 anos.

    Arantes destaca que desde o seu surgimento, na Arbia, as revelaesdo profeta Muhammad tem atrado um numero crescente de adeptos, emsua maioria composto por jovens, mulheres, pobres e outros marginalizados,enquanto que os homens poderosos da comunidade permaneciam hostis a

    sua pregao. (Arantes, 2003, p.13).Curiosamente, no Brasil o islamismo parece seguir os mesmo passosde seu inicio, pois alm do fato dos imigrantes rabes que aqui chegaramserem comerciantes e agricultores, o que chama a ateno na freqnciadas mesquitas o alto nmero de jovens, principalmente do sexo feminino,muitos dos quais brasileiros revertidos. O que na maioria das vezes atrai osjovens brasileiros para o islamismo a curiosidade para o extico. Isto sedeve principalmente pela exposio na mdia de converses como a de Cas-sius Clay e Cat Stevens, mas tambm por novelas20, lmes e noticirios onde

    constantemente faz-se referncia a esta religio. Mesmo que muitas vezes20 A novela global O Clone exibida em 2001/02 teve como consultor o Sheik Jihad Hassan

    Hammadeh (vice-preseidente da assemblia Mundial de Juventujde Islmica da Amrica Latina)

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    esta forma de divulgao tenha elementos errneos e equivocados (Macha-do, 2010), a mesma acaba por gerar um efeito positivo para o islamismo,

    medida que desperta a curiosidade do individuo para a esta prtica. A grandemaioria de visitantes das mesquitas e outras instituies islmicas brasileiras movida pela curiosidade seja pela cultura rabe, seja pela religio islmica.Ao chegar a estes locais, depara-se com uma estrutura de divulgao muitobem elaborada com distribuio gratuita de literatura em portugus, alcoroinclusive, e, de cursos, como de lngua rabe, doutrinrios e acerca de temasde interesse geral como educao, ecologia e poltica.

    Existem cursos especicamente voltados para brasileiros e programa-es especiais para jovens com concursos, dinmicas e acampamentos. Para

    as crianas so fornecidas aulas de religio e de rabe. A Mesquita de Pari,SP chegou a estabelecer um acordo com um Colgio Catlico, o Bom JesusSanto Antnio do Pari, onde as crianas, lhos de muulmanos assistem a1 hora de aula de religio e 4 horas de aulas de rabe, aps o horrio dasaulas seculares.

    Ainda na Mesquita do Pari, SP, ocorrem aulas aos sbados para crianase separadamente, para brasileiros revertidos e interessados em conhecer o Isl.Nestas aulas renem-se cerca de 100 pessoas de ambos os sexos, para assistira aulas ministradas pelo Sheik Mohamed Al Bukai, um simptico srio de

    cerca de 30 anos, solteiro, h 4 anos no Brasil. Nas 3as e 5as feiras, as aulasacontecem apenas para mulheres, j que estas so em maior numero dentroos revertidos na mesquita, chegando a acontecer at 4 reverses por ms.

    Um dos temas constantes nas prdicas das 6as feiras e nas aulas de 3,5e sbado o estimulo a pratica do dawah21, ou seja todos os muulmanos sochamados a convidar no muulmanos a conhecerem a verdadeira religiodo Isl. Esta prtica parte do conceito islmico da ummah22, que instrui aosmuulmanos a viverem plenamente a mensagem do Isl, para que, atravs de

    seu testemunho de vida, outros venham a se reverter. O dawahdiz respeitotanto ao exemplo que os muulmanos devem ser para a sociedade atraindo,assim mais pessoas para o Isl, quanto ao ato de falar da religio para os nomuulmanos (Santos, 2011, p.8).

    21 dawahsignica convidar, chamar. Segundo a crena islmica, dawah o convite feito porAlah a humanidade e aos profetas para crerem na religio verdadeira (Carnard, 2000,p.168) Em seguida, quando Ele vos convocar, como uma convocao, da terra, ei-vosque saireis.Sura 30.25

    22 Conceito que traz a idia de uma comunidade islmica mundial, uma representao deum isl universal.

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    A prtica do dawahse revela em diversas atividades como o estabele-cimento de mesquitas, organizaes sociais, escolas e estimulo a educao,

    jornais e revistas, e nos dias de hoje, sites, blogs e comunidades virtuais.A Internet facilitou em muito a vida dos imigrantes da terceira fase,pois os mesmos puderam manter os laos com seus parentes e conhecidosde seus paises de origem. Mas, o surgimento das redes sociais, como orkute facebook, ultrapassou este uso para se tornar um forte instrumento dedawah. So centenas de comunidades ligadas ao Isl, divulgando doutrinas esaciando curiosos. Existe sites especcos, que ensinam e estimulam a comoproferir o testemunho e se tornar um muulmano. Como um fenmeno re-cente estas mesmas comunidades e sites especcos de relacionamento, tem

    proporcionado o encontro entre jovens brasileiras revertidas e pretendentesmuulmanos, na sua maioria estrangeiros.

    Embora um muulmano tenha a liberdade para se casar com uma nomuulmana, as mulheres muulmanas s podem contrair casamento commuulmanos. A explicao para este fato, segundo o assessor da MesquitaBrasil, Hosney Al-Sharif, est no preceito islmico de respeito s demaiscrenas e seus profetas. Como todo muulmano deve respeitar os profetas(Cristo, inclusive), deve respeitar a crena de sua esposa no muulmana,mas criar seus lhos dentro do islamismo. J, uma muulmana que se casasse

    com um no muulmano, poderia estar sujeita a agresses por intolernciareligiosa e a falta de aceitao na criao dos lhos dentro da religio materna.Desta forma, existem casos de mulheres que se revertem aps namoraremcom muulmanos, embora estes sejam bem poucos. Muitas destas mulheresconheceram seu esposo atravs de redes sociais na Internet, apaixonaram-see ento se reverteram ao Isl. Mas, a maioria de mulheres que se chega aoIsl solteira ou j casada. Neste ultimo caso, no se exige que o marido seconverta ao Isl, podendo este permanecer em sua religio.

    No caso das solteiras, muitas buscam um parceiro da mesma crenaatravs de sites de encontros23, submetendo-se muitas vezes a se tornar asegunda, terceira ou at mesmo a quarta esposa de um homem, como per-mite o alcoro, desde que ele as possa sustentar e que haja a concordnciada primeira esposa.

    Desta forma, a Internet tem sido o maior veculo de dawahou de is-lamizao no Isl brasileiro. Mas, no se pode deixar de citar o InstitutoLatino-Americano de Estudos Islmicos, fundado em 2008, em Maring, PR,com o intuito de preparar divulgadores dentro do Brasil, os quais falam a

    lngua local, conhecem a cultura do povo e seu modo de pensar e viver.23 Um bom exemplo o site www.muslima.com, onde so proporcionados encontros virtuais

    entre jovens muulmanos de diversas regies do mundo.

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    O Instituto ou Academia Islmica oferece cursos de divulgador do islame de lngua rabe presenciais e/ou a distncia com a durao de um ano

    e meio. Os cursos so voltados para brasileiros e estrangeiros de origemrabe, residentes no Brasil. Dentro de cinco anos deve ser criado o primeirocurso universitrio de teologia islmica no Brasil para formar Sheiks brasi-leiros. Hoje, doze brasileiros estudam em Universidades da Arbia Saudita eda Sria para se tornarem os primeiros Sheiks brasileiros (Revista Ultimato,2012, p. 16).

    Apesar da diminuio da religio entre os descendentes dos imigrantesrabes, o Isl cresce com a reverso de brasileiros ao islamismo. So diversosos casos como o do tradutor brasileiro Wali que, aps viver um perodo de

    crise religiosa, tendo passado por diversas religies, decidiu abraar o Isl,demonstrando sua converso atravs da mudana de nome. Segundo Wali(2003, p.66), revertido ao Isl em 2002, o novo nome tem como funodespertar uma qualidade especca no convertido agraci-lo com as bnosque a nova denominao traz. Assim, comum ver revertidos brasileirosassumirem nomes como Mohamed, Ibrahim, Abdul e no caso de mulheres,Khadeejah ou Aisha (nomes de esposas de Mohamed).

    Por outro lado, existem aqueles que preferem manter o nome originalde batismo para demonstrar que a religio no exige este tipo de mudana,

    mas sim a de atitudes. Charles Domingues, que trabalha no Centro para aDivulgao do Isl para a Amrica Latina, relata que ao se reverter h cercade 13 anos, deixou a vida de baladas e bebidas alcolicas para assumir umanova postura de vida: Quando perceberam a mudana da minha postura, dasminhas atitudes, viram que a religio estava me fazendo bem. Na primeira vezque minha me me viu jejuando durante o Ramad, ela se emocionou e cho-rou. (Furtado, Os brasileiros convertidos ao Isl, So Paulo, 2007. Acesso em: 24 novembro 2011.).Dentre as justicativas para abraar o Isl como religio, encontramos abusca por valores morais e regras, alm de explicaes convincentes para osgrandes questionamentos da humanidade e de uma religio vivida plenamenteem todos os aspectos humanos. freqente entre as mulheres a armaode encontrarem no Isl o respeito e valorizao que no encontravam nasociedade brasileira. O uso do hijab (vu) aceito plenamente pelas brasileirasrevertidas, considerado uma proteo contra os olhares mal intencionados.

    A grande maioria dos revertidos passou por um transito religioso at

    chegar ao Isl. Rosangela Frana, uma revertida brasileira, de origem catli-ca armou: No Isl encontrei a resposta para os meus questionamentos.(Hama, 2004, p. 35). Dentre as religies anteriores encontramos uma maioria

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    de catlicos, devido s caractersticas do pas, mas tambm ocorrem reversesde evanglicos, espritas e umbandistas. Mas, o relato recorrente sempre o

    de decepes com as religies anteriores.Neste depoimento de Fatimah Bint Maryam, uma brasileira revertida,vemos a completa mudana de atitude e de convices: Tornei-me mu-ulmana por convico de que o Islam o sistema de vida mais simples ecompleto, que me fez perceber que cada gesto meu importante e deve seruma adorao a Allah, pois esta a razo de minha existncia.

    Segundo depoimento de Cristiane, uma jovem, solteira, brasileira recon-vertida h 3 anos, o trnsito do catolicismo para o islamismo no lhe trouxediculdades, pois sua f no mudou, e sim sua crena. O que podemos

    perceber que existe uma mudana de enfoque. A f que antes era direcionadaa Deus passa a ser direcionada a Allah. A devoo antes voltada para Deus,Maria e/ou Jesus, agora volta-se para Allah e para o estudo do alcoro. Omesmo pode ser observado no relato da reverso do vice-campeo mundial desalto triplo e medalha de ouro no Pan, Jadel Gregrio, que mudou seu nomepara Jadel Abdul Ghani Gregrio, onde o mesmo arma: Sempre tive muitaf em um Deus supremo, mas no uma religio denida. Agora, se Deus qui-ser, morrerei muulmano. (Furtado, Os brasileiros convertidos ao Isl, SoPaulo, 2007.. Acesso em: 24 novembro 2011.)Outro fenmeno de grande importncia na reverso de brasileiros

    o crescimento do Isl nas periferias e comunidades negras. Para PauloFarah, este fenmeno causado pela mensagem de igualdade racial e dejustia social do Isl, que tem um apelo muito grande nas comunidadesmais pobres, sobretudo entre os mais jovens, que sofrem abuso policial epreconceito.(Oualalou, Islamismo cresce na periferia como instrumentopara largar coisas ruins, So Paulo, 2010. Acessoem: 24 novembro 2011.)Os jovens da periferia revertidos ao Isl trazem a atitude do hip-hop

    e uma formao poltica forjada no movimento negro. Ao assumirem-semuulmanos acreditam estar resgatando um passado histrico ncado nasrevoltas mals. O conhecimento histrico pode ser ou no adquirido aps areverso religio, mas certamente ele , tambm, parte do discurso que vaimobilizar outros jovens a fazerem as mesmas aproximaes. (Tomassi 2012,p.49) Sobre a relao entre o isl da periferia com o hip-hop, recomenda-se

    a leitura da dissertao de mestrado de Bianca Tomassi (2011). Segundo orapper Honor Al Amin Oaqd, fundador do grupo de hip-hop Posse Hausa:Quando descobri a histria dos mals, o que me chamou a ateno foi a

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    forma de resistncia e sua ligao com Deus. Foi esta forma de adorao aDeus, que nica, que permitiu enfrentar a represso. (Oualalou, Islamismo

    cresce na periferia como instrumento para largar coisas ruins, So Paulo,2010. Acesso em: 24 novembro 2011.) Estesjovens, na sua grande maioria negros, com forte sentimento de marginalidade,foram inuenciados pela luta dos direitos civis dos afro-americanos, nos anos60, em grupos como Panteras Negras e pela repercusso do lme MalcolmX. Estima-se em centenas o numero de jovens revertidos nas cidades pe-rifricas de So Paulo, que o bero do movimento hip-hop, que armavaa identidade da juventude negra e pobre nos anos 80, em encontros na Rua

    24 de maio e no metr So Bento.No Isl dos manos, o rap o instrumento e a linguagem de divulgao

    da religio. Honer Al Amin Oaqd, rapper e fundador do grupo de hip-hopPosse Hauss24: Muita gente ainda vai vir para o Isl pelo rap. Ns ganhamosconscincia pelo hip-hop, ento no podemos negar nossa histria. As pessoasna periferia vem aquela negrada fazendo rima e poesia, percebem sua atitudediferenciada, sua postura de vida, e querem se aproximar. Isso o comeoda reverso. um passo depois do outro. (Brum, Isl cresce na periferia dascidades do Brasil, So Paulo, 2009.. Acesso em:3 maio 2011.)O grupo Posse Hauss, formado por grateiros e rappers no era inicialmenteum grupo muulmano, mas, atravs de Honor, 25 % dos integrantes j sereverteram enquanto os demais apesar de no se assumirem como muulma-nos, cultivam uma vida com hbitos tipicamente islmicos: ausncia de bebida,auxilio a comunidade, valorizao da famlia e a busca do estudo.

    Dentro desta nova conformao do Isl com caractersticas de cor ne-gra, periferia e pobreza socioeconmica, surgem movimentos contestatrios

    com intuitos politico-religiosos. A compreenso de que o 11 de setembrodivulgou o Isl entre os povos oprimidos bem demonstrada por DuguetoSharif Al Shabazz: Pelo Malcolm X descobri que, no Isl, temos o direitode nos defender. Deus repudia a violncia e no permite o ataque, mas do direito de defesa. Foi esse ponto fundamental que me pegou e tambmquando eu vi pela TV o 11 de setembro. (Brum, Isl cresce na periferia dascidades do Brasil, So Paulo, 2009.. Acesso em:3 maio 2011.).Dentro desta viso, os negros sofrem o racismo de uma nao que os subjuga

    e aterroriza atravs das drogas, falta de polticas publicas, e aes policiais.Surgem grupos sob a bandeira do Isl, como o Movimento Negro Unicado24 Hauss remonta aos escravos muulmanos trazidos do norte da Nigria

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    e o Ncleo de Desenvolvimento Islmico Brasileiro (NDIB) querem construiruma comunidade islmica na periferia, em Francisco Morato e sonham com

    um estado islmico no Brasil: Conforme Paulo Sergio dos Santos, assessorparlamentar da Cmara de Vereadores de Francisco Morato: Acredito quedaqui a dez, 15 anos, isso ser possvel. H uma gerao tentando fazerisso de forma organizada. O povo brasileiro religioso. Quando percebeuerros na igreja catlica, tornou-se evanglico. O Isl hoje ainda pequeno,mas isso pode mudar. (Brum, Isl cresce na periferia das cidades do Bra-sil, So Paulo, 2009.. Acesso em:3 maio 2011.)

    Os ativistas do NDIB possuem contatos com muulmanos dos guetos

    da Frana, Canad e Estados Unidos e realizam eventos com rappers comoMano Brown e lideres Fred Hapton Jr, lho do lder dos Panteras Negras.Defendem o fato que todos os presidirios so presos polticos, porque adesigualdade racial no lhes deu escolha. Como a grande maioria da popu-lao carcerria negra, acreditam que as prises fazem parte de uma cons-pirao para o extermnio dos negros, assim como as drogas licitas e ilcitas.Para seu projeto poltico-religioso, entrar nas cadeias, portanto, uma aoestratgica.: O Isl construo de conhecimento. Queremos trabalhar le-vando essa conscincia, construindo a historia de cada uma e mostrando que,

    independentemente do crime que cometeram, eles so presos polticosdizDugueto Sharif Al Shabazz. (Brum, Isl cresce na periferia das cidades doBrasil, So Paulo, 2009.. Acesso em:3 maio 2011.)

    Aps todo esse percurso pelas vrias formas e pocas de implantaodo Isl no Brasil, podemos perceber que, embora este esteja crescendo emnmero de adeptos, se mostra como uma grande colcha de retalhos, unidosentre si com a linha da ortopraxia mulumana. Portanto, conforme Marques

    (2010, p.142) arma aps comparar os revertidos brasileiros e portuguesesao Isl: Embora ainda existam imagens homogeinizantes dos muulmanos,o Isl no pode ser visto como monoltico.

    6. Consideraes FinaisTendo em vista que o ato de adeso compreende qualquer forma de

    participao em um movimento religioso, sem alterao sistemtica do estilode vida (Mossire,2007, p.9), ao contrrio da converso, que envolve umamudana no sistema de valores e viso do mundo, mudana que implica

    uma conscincia de que uma grande mudana envolve que o antigo estavaerrado e o novo o certo(Nock 1933, p.6-7).

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    Dentro da pesquisa realizada, encontrou-se trs perodos de implantaodo Isl em terras brasileiras, cada um com caractersticas prprias. O islamis-

    mo de escravido mostrou-se como um forte mecanismo de resistncia sociale proselitismo, o que atraiu negros de outras origens a reverso. Segundo odepoimento de Al Baghdadi e os registros de Gilberto Freyre, o islamismoque se implantou primeiramente no pas se caracterizou-se por ser um fe-nmeno com crescimento notvel por converso. Isso porque o Isl mesmoaps a libertao dos escravos manteve-se como um fator de confraternidade,unindo os negros mals e demais escravos revertidos atravs de crenas eprticas em comum, funcionando como um fator identitrio. Infelizmente,devido as constantes perseguies religiosas sofridas, o remanescente deste

    Isl de pele negra, como pudemos ver, acabou por mesclar-se a outras re-ligiosidades, mantendo vivos apenas alguns smbolos e prticas, mescladosdentre o candombl.

    No islamismo de imigrao, por sua vez, vemos a implantao denitivado Isl em terras brasileiras, trazido juntamente com a esperana da liberdadede culto, o que permitiu a construo de diversas mesquitas. Mas, ao mesmotempo em que o Isl se estabelece denitivamente como religio em solobrasileiro, perde muitos de seus adeptos, principalmente para o catolicismo,devido a no manuteno das tradies e da lngua rabe. A participao no

    Isl neste perodo acaba sendo muitas vezes mais uma adeso que uma con-verso. Isso porque, ser muulmano neste perodo era quase que o mesmoque ser um imigrante rabe. Trazia-se a religiosidade junto com a naciona-lidade, apesar de muitos imigrantes rabes j serem cristos desde seu pasde origem. Apesar da conquistada liberdade de permanecer na crena deseus pais, os lhos dos imigrantes, muitas vezes por no residirem prximoa mesquitas ou casas de orao, por no terem acesso instruo do alco-ro, e pela perda da lngua natal, foram aos poucos deixando as tradies

    e as prticas muulmanas. Comea a existir o muulmano no praticanteou muulmano tnico. Estes, a cada gerao se afastam mais das prticasreligiosas de origem e se aproximam da religio catlica e de suas prticase crenas. um perodo, portanto conitante, pois, ao mesmo tempo emque os pases rabes comeam a investir no Brasil, construindo mesquitase enviando lderes para o ensino do alcoro, os descendentes dos primeirosimigrantes vo aos poucos se afastando da religio, tornando-a uma religiode geraes mais maduras, falantes de rabe.

    Finalmente, chegamos ao islamismo dos dias atuais, quando vemos um

    crescimento das converses principalmente entre brasileiros jovens e o re-torno de alguns descendentes de imigrantes. Neste fenmeno atual, podemosobservar assim como Hervieu-Lger (2008) trs guras nas converses: a

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    primeira a do indivduo que muda de religio (2008, p. 109), numa posiode crtica a uma experincia anterior que no ofereceu a intensidade espi-

    ritual almejada. A segunda modalidade diz respeito ao indivduo que nuncapertenceu a uma consso, mas que, a partir de uma trajetria pessoal, acabase integrando numa comunidade. A terceira modalidade do indivduo quede dentro de uma tradio qual ele j pertencia, se engaja efetivamente nacomunidade de f. Em todas estas modalidades caracterstica do convertidofazer de sua converso uma entrada numa nova vida, refazendo assim suasconvices ticas, seus hbitos sociais e espirituais. Assim, Hervieu-Lger(2008, p. 131) arma: Converter-se , em principio, abraar uma identidadereligiosa em sua integralidade. Hervieu-Leger e a maioria dos autores consi-

    dera que a converso altera todas as relaes sociais e inuencia a relao deidentidade e com a estrutura social, sendo portanto, um ato eminentementesocial (Glazier, 2003).

    Podemos portanto admitir que o ato de reverter-se ao Isl nos dias atu-ais , dentro destes pontos de vista, um ato de converso e no de adeso auma nova f, visto que demanda uma nova cosmoviso e uma nova prticade vida. O que se percebe no terceiro perodo a imerso profunda em umconjunto de prticas e hbitos, mas tambm de orientao esttica e tica,uma converso, portanto.

    A liao a esta associao (Islam) signica o conhecimento dos seus estatutos,a crena em seus princpios, a obedincia s suas determinaes e uma vidacoerente com a mesma [....] Quem entrar no Islam tem de aceitar, primeiro, osseus fundamentos racionais e crer neles totalmente, at que constituam, paraele, uma ideologia. (Attantwi, s.d., p.20)

    Marques (2000, p. 87-88) aponta quatro caractersticas na biograa dos

    revertidos: a falta de uma identidade religiosa, o estmulo ao estudo relacio-nado religio, experincias dramticas e desorganizao familiar, e, duvidassobre a existncia de Deus. A mesma autora re refere a um grupo que apre-senta atrelado a busca religiosa uma postura tnico/poltica, com participaesanteriores em movimentos sociais e polticos (Marques, 2000, p.95).

    Os relatos de decepo, principalmente em relao ao cristianismo (tantocatolicismo como protestantismo), so recorrentes. H tambm casos de umextenso trnsito religioso, passando por religies como espiritismo, umbandae cristianismo antes de chegar ao islamismo. Alguns dos revertidos, que se

    diziam anteriormente sem religio, armaram ter reconhecido no Isl umareligio com valores que envolviam todos os aspectos da vida. H tambmos descendentes dos imigrantes, de segunda a quarta gerao, que foram

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    atrados pelo retorno s origens, descobrindo no Isl um fator de identidadecultural. Por m, h o grupo converso na periferia de So Paulo, que atravs

    das vivncias em comum com os negros islmicos da primeira fase, passarama se identicar e a se reconhecer dentro do Isl.Segundo Marques (2000, p.106), em sua dissertao acerca da converso

    ao Isl, esta segue as seguintes etapas: 1-momentos de profunda tenso einsatisfao; 2 disposio espiritual; 3 busca religiosa; 4 oferta religiosa;5 estabelecimento de relaes afetivas; 6- reduo dos contatos externosao grupo; 7 interaes com outros membros do grupo. A pesquisadoraconclui que quando os novos muulmanos adotam uma nova conduta devida e uma nova identidade religiosa, acabam por dar uma reinterpretao

    a prpria vida. Esta reinterpretao pode ser observada atravs de mudanasde comportamento, de vestimentas e de convvio social.

    O encontro com o Isl se d na maioria das vezes atravs da curio-sidade, do interesse pela lngua rabe, amizades, e questes scio-polticas.Os elementos da ps-modernidade que colaboram para este novo cenrioreligioso so a difuso de um crer individualista, a disjuno das crenas e daspertenas confessionais, pela falta de capacidade de regulao dos aparatosinstitucionais e de uma efervescncia de grupos e redes comunitrias onde osindivduos dividem suas experincias pessoais. Como arma Prandi (2000), A

    religio que se professa hoje j no aquela na qual se nasce, mas a que seescolhe. As identidades religiosas no so mais herdadas, e sim construdaspor uma trajetria de identicao que se d ao longo do tempo. Trajetriaessa nem sempre fcil devido s imagens negativas associadas ao Isl. Muitosdos entrevistados relatam a diculdade de receber a aprovao familiar e dosamigos na nova escolha religiosa. Para as mulheres a diculdade aumentada,sobretudo quando se opta pelo uso do hijab. Mas, apesar das diculdades erejeies encontradas para vivenciar na sua plenitude a nova religio adotada,

    o muulmano do islamismo de converso, brasileiro ou no, compreende quetudo isto faz parte da sua busca pela religio verdadeira.O mestre su25, Sheikh Al-arabi ad-Darqwi comparou a busca pela

    religio como a de um homem que cava um poo, sendo a religio o buracoescavado e Deus, a gua. Quem no persistir na escavao do poo e emvez disso cavar diversos buracos pequenos na areia, morrer de sede. Esta a viso do Isl como nica verdade, a qual deve ser buscada intensamente.Apesar das diferenas observadas dentro do Isl que se implantou no Brasil,mesmo considerando o conito e tenso existente entre os revertidos de

    ascendncia rabe e revertidos brasileiros, cabe observar que a matiz muul-mana se remete ao mesmo livro sagrado e a mesma ortopraxia, que os une25 O susmo a corrente esotrica do Isl.

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