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ARRIMO DE FAMÍLIA: COMO SER FUNCIONÁRIO PÚBLICO NA PRIMEIRA REPÚBLICA | 145 em 1869 por George Miller Beard, que descreveu o distúrbio como um estado de exaustão física e psicológica combinado a uma grande sensibilidade, o qual resulta em irritabili- dade seguida de depressão. A neurastenia era tão popular na época que nos jornais, em anúncios publicitários, alardeava-se a cura da doença a partir da ingestão de um vinho iodotânico fosfatado, que prometia milagres, o tratamento por hipnotismo e eletricidade, ou “pílulas rosadas do Dr. Williams”. 44 A causa do distúrbio de João Henriques poderia ser qualquer uma das até aqui cita- das. Ele havia manifestado problemas psicológicos em outros momentos de sua vida, e vivenciara uma série de situações traumáticas: a morte prematura da esposa, a perda do emprego com a chegada da República, a acusação de malversação da verba pública e o es- cândalo nos jornais. Este último caso deve ter sido a gota d’água, e o diagnóstico, bastante comum no início do século xx, veio rápido. Como administrador, o pai de Lima já revelara oscilação de humor, mas sempre recu- perava certo equilíbrio, conseguido a partir de uma vida regrada e sem excessos — só de vez em quando quebrada por um gole de parati. Mas nesse momento a situação parecia sem volta: João Henriques se deixava ficar apático na poltrona de sua nova casa — lo- calizada numa região que sofria com infraestrutura precária, falta de acesso a água e a saneamento básico. Isso quando não mudava de humor e passava a gritar e alucinar, imaginando a chegada da polícia, que viria prendê-lo. Provavelmente por essa razão a residência dos Barreto, em vez de estar cercada por alienados, agora seria ela própria conhecida como “a casa do louco”. Na confraria dos amanuenses: “Todos nós nascemos para o ofício público” Depois de enfrentar o cotidiano na Politécnica e de criar para si um personagem literá- rio — a figura de Alfa Z na coluna do jornal estudantil A Lanterna —, Lima teria que se conformar com a tarefa diária de escrever, copiar e, raras vezes, dar uma última redação Nova casa da família Barreto, agora na rua Boa Vista (depois Elisa de Albuquerque), 76, no bairro de Todos os Santos. Mas os santos não ajudavam… Reprodução proibida

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em 1869 por George Miller Beard, que descreveu o distúrbio como um estado de exaustão física e psicológica combinado a uma grande sensibilidade, o qual resulta em irritabili-dade seguida de depressão. A neurastenia era tão popular na época que nos jornais, em anúncios publicitários, alardeava-se a cura da doença a partir da ingestão de um vinho iodotânico fosfatado, que prometia milagres, o tratamento por hipnotismo e eletricidade, ou “pílulas rosadas do Dr. Williams”.44

A causa do distúrbio de João Henriques poderia ser qualquer uma das até aqui cita-das. Ele havia manifestado problemas psicológicos em outros momentos de sua vida, e vivenciara uma série de situações traumáticas: a morte prematura da esposa, a perda do emprego com a chegada da República, a acusação de malversação da verba pública e o es-cândalo nos jornais. Este último caso deve ter sido a gota d’água, e o diagnóstico, bastante comum no início do século xx, veio rápido.

Como administrador, o pai de Lima já revelara oscilação de humor, mas sempre recu-perava certo equilíbrio, conseguido a partir de uma vida regrada e sem excessos — só de vez em quando quebrada por um gole de parati. Mas nesse momento a situação parecia sem volta: João Henriques se deixava fi car apático na poltrona de sua nova casa — lo-calizada numa região que sofria com infraestrutura precária, falta de acesso a água e a saneamento básico. Isso quando não mudava de humor e passava a gritar e alucinar, imaginando a chegada da polícia, que viria prendê-lo. Provavelmente por essa razão a residência dos Barreto, em vez de estar cercada por alienados, agora seria ela própria conhecida como “a casa do louco”.

Na confraria dos amanuenses: “Todos nós nascemos para o ofício público”

Depois de enfrentar o cotidiano na Politécnica e de criar para si um personagem literá-rio — a fi gura de Alfa Z na coluna do jornal estudantil A Lanterna —, Lima teria que se conformar com a tarefa diária de escrever, copiar e, raras vezes, dar uma última redação

Nova casa da família Barreto, agora na rua Boa Vista (depois Elisa de Albuquerque), 76, no bairro de Todos os Santos. Mas os santos não ajudavam…

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a avisos e portarias ministeriais. Nada que se assemelhasse ao futuro que desenhara para si. Além do mais, tendo residido no centro do Rio, perto de onde “tudo acontecia”, estava de volta aos subúrbios, que deviam lhe lembrar a triste circunstância da morte de sua mãe.

Lima Barreto, porém, sempre que podia, dava um jeito de se reinventar a partir de seus personagens. Dessa maneira, se Policarpo Quaresma é espelhado em seu pai, Isaías Caminha simboliza o preconceito que Lima sentiu na pele quando estudante e nos pri-meiros tempos de jornalista; já Gonzaga de Sá representa a vida dele como funcionário público. No retrato detalhado que faz da sua atividade de amanuense, no conto “Três gênios de secretaria”,45 publicado em 1919, o escritor a defi ne sem dó nem piedade, mas com muita graça. O trabalho estaria resumido na função desempenhada pela ironica-mente denominada Secretaria dos Cultos, que equivaleria à “sua” Secretaria da Guerra. O texto começa com uma nota dedicada a Augusto Machado, personagem fi ccional ao qual Lima atribui a autoria do livro Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Nela, o escritor destila ironia em relação à profi ssão que desempenharia por catorze longos anos: “Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria, senti bem que todos nós nascemos para empregado público. Foi a refl exão que fi z ao me julgar tão em mim, quando, após a posse e o compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade na mesa que me de-terminaram […]. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos; e nela me abanquei como se de há muito já o fi zesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei nascido para ofício de auxiliar o Estado, com a minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua missão de regular a marcha e a atividade da nação”.46

É fácil perceber como Lima não faz nenhum esforço de se disfarçar no meio de seu texto; critica inclusive a sua afamada má letra. Continua então desfazendo de sua função ao descrevê-la: “Puseram-me também a copiar ofícios e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel fi zeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das coisas governamentais. […] Aquela placidez do ofício, sem atritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida me-díocre…”.

Brincando com o uso de um tom um tanto didático, explica que naquele emprego nada há de “imprevisto”, assim como não se requer “esforço” algum; só se espera pelo dia seguinte com “calma e suavemente, sem colisões”. Amanuenses convertem-se assim em metáforas certeiras do novo regime; com o seu cotidiano de fazer sempre o mesmo e nada criar, a não ser nos “dias feriados, santifi cados e os de ponto facultativo, invenção das me-lhores da nossa República”.47 De fato, parece que o escritor despendia pouco tempo mental como amanuense. Tanto que passou a escrever contos, crônicas e até trechos de futuros romances nos versos ou nos almaços marcados com o timbre da Secretaria da Guerra.

A seção era chefi ada pelo mesmo barão de Itaipu que lhe aplicara os exames. Na des-crição de Lima, ele surge como o mais “perfeito dos burocratas”, além de continuar a ostentar o título de nobreza, quando esse uso fazia muito havia sido abolido. No romance

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sobre Gonzaga de Sá, o escritor o esconde — mal — na fi gura do barão de Inhangá; um especialista na arte de apontar lápis: “Era um gasto de lápis que nunca mais acabava: mas o Brasil é rico e aprecia o serviço de seus fi lhos”. Inhangá completara 25 anos de serviço e virara até barão.48 Já Itaipu, que beirava os oitenta anos quando Lima o conheceu, estava no batente desde os tempos do Império, “seu máximo trabalho era abrir e fechar a gaveta da sua secretária”. Pode ser que essa seja a verdade apenas de Lima. De toda maneira, mais uma vez a vida lhe dava pretextos para criar um personagem memorável — um modelo de secretário desses que ganham pedestal e insígnia.49

Retrato acabado e bem-feito foi aquele que Lima Barreto criou para a confraria Es-plendor dos Amanuenses. No mesmo romance, o autor explica que era desse modo que ele e os amigos denominavam as reuniões que faziam entre os profi ssionais da área, quando tinham suas “horas de satisfação”, numa “orgia regada a café” para compensar o “enfado da repartição” e as “agruras de lares difíceis”.50 O horário de Lima ia das dez da manhã às três horas da tarde, quando permanecia executando, segundo ele próprio, basicamente nada. “Quando era amanuense de uma Secretaria de Estado e não tinha que fazer, lia os volumes de alvarás, cartas régias etc., do tempo dos reis portugueses; e nelas encontrei muitos atos doces e paternais que denunciavam ainda a origem patriarcal do chefe de Estado.”51

“Um e outro”, publicado na Águia do Porto, v. 4, de 1913.

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Vencia o enfado com duas atividades: usava as muitas horas vagas para imaginar uma série de projetos (todos, ao menos nesse período, devidamente engavetados) e trocar con-versa com o amigo Domingos Ribeiro Filho, companheiro de aventuras no jornalismo e no grupo Esplendor dos Amanuenses, citado igualmente no Gonzaga de Sá. Por sinal, após o fi m do expediente, Lima podia ser visto nas seletas reuniões de amanuenses, sem-pre realizadas no Café Papagaio e sob a liderança “do Domingos”. No artigo “Os galeões do México”, que saiu na Gazeta da Tarde de 20 de maio de 1911, ele escreve que por lá se encontravam no mínimo quatro desses profi ssionais, os quais viviam horas de felicidade por oposição “à inércia” que experimentavam em suas respectivas secretarias. E termi-na: “e bebíamos café, e só café, pois as fi nanças não permitiam o luxo da cerveja ou do whisky”. O certo é que então já bebiam mais do que café, pelo menos Lima. A partir das quatro da tarde e até de madrugada, quando fi nalmente voltava para casa, ele perambula-va de bar em bar, encontrando amigos mais conhecidos, mas também outros, anônimos e ainda mais humildes, que circulavam por perto da estação. Na rua da Conceição, por exemplo, costumava ser visto tomando uma talagada de parati, por uns quinhentos réis (o que não signifi cava muito, já que em alguns bondes os bilhetes custavam de cem réis a um tostão), num bar que poderia ser considerado típico para a sua época. “Duas portinhas, um balcão, uma mesinha com duas cadeiras cada uma a um metro e pouco do balcão. Umas prateleiras com garrafas e, por detrás delas, uma espécie de depósito de caixas de garrafas. E, no fundo, uma área de claraboia e uma instalação sanitária — tan-que, pia, torneira.” Esse era o padrão médio de boa parte desses estabelecimentos que se espalhavam pela cidade; em geral sem nome, instalados de forma provisória numa antiga casa residencial ou num armazém de dois andares.52

E, se Lima e seu personagem não levavam a sério a função de amanuense, já os “colegas” de serviço, ao menos os descritos no romance, eram todos muito orgulho-sos, julgando-se capazes de engendrar um “sistema de nomeação” em que “entrava-se amanuense e, de promoção em promoção, ia-se a presidente”. A vantagem seria que, “quando houvesse necessidade de se lavrar um decreto em palácio, o presidente estava perfeitamente apto a fazê-lo”.53 Novamente, não fi cção e fi cção travam seu jogo, a des-peito de não podermos ver na segunda uma decorrência imediata da primeira. Quem sabe os personagens e as confrarias que Lima criava não eram muito mais divertidos do que a própria realidade, cada vez mais enfadonha durante as cinco horas passadas à escrivaninha, copiando papéis. Para dar conta desse marasmo, Lima recorria a muita imaginação — criava vários projetos para sonhar: de livros, crônicas, peças de teatro — e a bastante bebida para aguentar o tédio. O escritor, que antes tomava seus tragos ape-nas socialmente, passou a inventar programas para poder se dedicar aos botecos, mais desimpedidamente. Nunca chegava em casa antes das duas ou três da madrugada e, por vezes, só quando o dia raiava. E, apesar de ele negar, foi nessa época que o vício entrou na sua vida, transformando-se em seu mais fi el companheiro até a hora da morte. De secundária a atividade viraria personagem principal.

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Vários projetos e tantos “bovarismos”

No ano de 1903, João Henriques achava-se defi nitivamente tomado pela loucura, e Lima se iniciava como amanuense, mas sem abrir mão da carreira nas letras. Manteria os dois “empregos” pela vida afora. Com o novo salário de funcionário complementava seu sus-tento e o da família, e ainda se curava da “inércia”. Esse era, aliás, o termo que ele usava para defi nir sua profi ssão e que escolhera para compor o primeiro pseudônimo na coluna de A Lanterna: Momento de Inércia. No Diário, comentava que, somados seus vencimen-tos aos do pai aposentado, as entradas eram de apenas 360$000.54 Anotava também que 120$000 iam para o aluguel de uma casa modesta em Todos os Santos e 100$000 para o armazém.55 Sobrava muito pouco para gastarem com supérfl uos, e por isso o escritor isolava-se do seu mundo social.

Nessa época, Lima havia publicado algumas crônicas, como vimos, no jornal A Lan-terna — a primeira ainda em 1902. Por lá, fazia o papel de enfant terrible, criticando professores e colegas. No semanário humorístico O Tagarela, sob o pseudônimo de Rui de Pina, escreveu duas crônicas, em julho de 1903. Em A Quinzena Alegre, revista que editou a convite de Bastos Tigre, notam-se os traços da sua pena afi ada, assim como em O Diabo. E um antigo colega da Politécnica, Carlos Viana, ofereceu-lhe um emprego na Revista da Epoca, que, dedicada às notícias do cotidiano da cidade (obras do porto, fi gu-ras públicas etc.), apresentava ainda poemas, charadas e anúncios. A publicação, apesar de se declarar quinzenal, não tinha a regularidade anunciada. De toda forma, a partir do fi m de 1903, trazia Lima Barreto no expediente, na função de secretário. O primeiro nú-mero da Revista da Epoca veio a público em 1902, e o periódico durou, com difi culdades, até 1918. O escritor permaneceria, porém, pouco tempo como secretário; já no número de 24 de março de 1904 saía a nota: “Lima Barreto, o nosso querido companheiro, em razão de acúmulo de trabalho deixa o secretariado da Revista que com tanta dedicação exerceu, continuando, entretanto a redigir as suas apreciadas crônicas que têm sempre constituído um great attracion para nossos leitores. Assume o cargo de secretário o nosso distinto companheiro de redação José Veríssimo Filho”, fi lho do famoso crítico literário que o amanuense tanto apreciava.

Se Lima desistiu do cargo, saiu, contudo, “por cima”, e fi gurava como grande atração daquele periódico feito por colegas, entre eles Bastos Tigre, Miguel Calmon du Pin e Al-meida, Edgar A. Romero, Carlos Ferreira de Araújo, E. Seidl, Heitor Melo, Ribas Fradique, Antônio Bandeira, Toledo de Loiola e o caricaturista Hermes Fontes. O grupo de reda-tores não era muito conhecido até então, e nenhum deles fazia parte do cânone vigente. Tampouco a revista conseguiria muita projeção. Aliás, ela representava uma das iniciati-vas que pretendiam dar visibilidade aos representantes das novas gerações de escritores, os quais, considerando-se preteridos pela ABL, atacavam quase como esporte a instituição; pelo menos até que entrassem em seus quadros.56

Para justifi car sua demissão, Lima apresentou duas razões. Se o motivo público foi o acúmulo de tarefas, o privado tinha a ver com o perfi l intelectual do escritor. Na carta

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que endereçou a Viana, diretor da publicação, ele afi rmava que se demitia por causa da obrigação de escrever um ou outro artigo mais laudatório aos políticos. Alegava que pre-feria deixar de contar com a remuneração da Revista da Epoca e fi car feliz por “seguir sua consciência”.57 Como colaborador, podia escolher os temas de suas matérias, em vez de obedecer aos ditames da revista. Mas o que ele queria mesmo era ganhar espaço no jornalismo mais estabelecido. Em 1904, lá estava Lima fazendo reportagens para o con-solidado Correio da Manhã.

Não se sabe quem indicou seu nome. De toda maneira, vale a pena notar que no número 5 de O Diabo, datado de 9 de setembro de 1903, Lima e outros colaboradores publicam um agradecimento ao proprietário do Correio da Manhã, o mesmo com quem ele se desentenderia no futuro e a quem desdenharia nas páginas de Isaías Caminha: Ed-mundo Bittencourt. Mas nesse momento ele era todo elogios: “Rendemos aos Deuses os nossos melhores votos, por haverem trazido em salvamento e com boa saúde o magnífi co e ardoroso jornalista dr. Edmundo Bittencourt. Filhos da sua escola jornalística de intre-pidez e independência, nós, humildes redatores d’O Diabo, faltaríamos ao mais sagrado dos deveres […] se aqui não entregássemos um hurrah por tão auspicioso fato”.

Dois colegas seus — Bastos Tigre e Pausílipo da Fonseca — já trabalhavam no Cor-reio, cujo estilo mais independente provavelmente agradava a Lima. À diferença de boa parte dos jornais da época, que tinham vocação para bajuladores, desde o primeiro nú-mero aquele periódico apostou no jornalismo de denúncia.58 Lima foi contratado para es-crever uma série de reportagens sobre “o subterrâneo” do morro do Castelo, justamente quando era aberta a avenida Central e o morro virava um tipo de vilão da cidade.

Desde os tempos de d. João, o Castelo era considerado prejudicial aos cariocas, uma vez que, segundo as teorias miasmáticas do período, difi cultava a circulação de ventos e o livre escoamento das águas. Mas agora se comentava que fora descoberta no local uma espécie de túnel, o que acabou por alimentar o folclore que envolvia o malfalado morro. Origi-nados na época das invasões francesas, no século XVI, os rumores ganharam força com a expulsão da Ordem dos Jesuítas em 1759, por determinação do marquês de Pombal. Desde lá, parece ter vingado o dito: “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. E a lenda ur-bana, com o tempo, foi fi cando cada vez mais robusta. Dizia-se que maravilhosos tesouros estariam enterrados em galerias secretas, deixadas às pressas pelos jesuítas. O tema era po-pular e havia sido explorado, só para fi carmos no século XIX, por escritores como Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis. Já Lima, no conjunto de 26 textos publicados entre abril e junho de 1905, descrevia as fantásticas galerias subterrâneas, “construídas há mais de dois séculos pelos padres jesuítas, com o fi m de ocultar as fabulosas riquezas daquela comunidade ameaçadas de confi sco pelo braço férreo do marquês de Pombal”. E sublinha-va: “Verdade ou lenda, caso é que este fato nos foi trazido pela tradição oral e com tanto mais viso de exatidão quanto nada de inverossímil nele se continha”.59

Para engrossar o caldo que já era espesso, o escritor explicava que a ordem fundada por Inácio de Loiola em 1539 logo se tornou célebre por sua imensa riqueza, a ponto de ir se convertendo, pouco a pouco, numa potência fi nanceira e política na Europa e na Amé-

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rica. Confi scados os bens da Companhia de Jesus, em 1759, os discípulos de Loiola teriam procurado, então, salvaguardá-los. E foi assim que tomou forma a ladainha que cantava a existência de riquezas inestimáveis enterradas no morro do Castelo, “sob as fundações do vasto e velho convento dos jesuítas”. Lá estariam “objetos de alto lavor artístico, em ouro e em prata, além de moedas sem conta e uma grande biblioteca”. Ironizava ele que, não por coincidência, todo o movimento teria se dado nos “tempos do Encilhamento”, numa referência à política econômica desastrosa do ministro Rui Barbosa, que provocou nosso primeiro pique infl acionário. Os artigos vão mostrando que sucessivas escavações foram realizadas, todas sem êxito, “até que um velho, residente em Santa Teresa, prestou-se a servir de guia […], sem que de todo este insano trabalho rendesse afi nal alguma coisa a mais que o pranto que derramaram os capitalistas pelo dinheiro despendido”.

Segundo os textos fantasiosos, tais fatos restaram esquecidos, até que o “desgracioso morro condenado a ruir em breve aos golpes da picareta demolidora dos construtores da Avenida” voltou a chamar a atenção do público. Lima descreve, então, os trabalhos, as pes-quisas e como um sentinela foi recrutado para fi car na porta do “subterrâneo que guarda uma grande fortuna ou uma enorme e secular pilhéria”. Tudo estaria sendo supervisionado pelo dr. Paulo de Frontin60 e pelo dr. Lauro Müller,61 os famosos engenheiro e prefeito que andavam reformando o Rio e acabando com muitas de suas antigas ruas, casarões, casebres e bares. De acordo com o escritor, os administradores da cidade, assim como as “altas ca-madas”, acreditavam piamente na “existência dos tesouros dos jesuítas no subterrâneo do morro do Castelo”. E ele alfi neta: “que uma fada benfazeja conduza o dr. Dutra no afanoso mister de descobridor de tesouros, tornando-o em mascote da avenida do dr. Frontin”.62

Enfi m, zombando de toda a polêmica que envolveu o morro do Castelo, o qual co-meçou a ser demolido nesse momento mas cuja destruição só se completou no ano de 1922, o autor fazia fantasia com a realidade e vice-versa: transformava a realidade em fantasia. O morro foi ao chão, mas jamais se comprovou seu malefício à cidade e muito menos a existência de tesouros perdidos no seu interior. Para chatear, Lima endereça seu texto aos “megalômanos, candidatos a um aposento na praia da Saudade”.63 Em seu diário pessoal, o escritor colou dois artigos de autoria de Vieira Fazenda que terminavam perguntando: “E o restante ainda estará guardado nas entranhas do morro do Castelo? Pode ser que sim, pode ser que não”.64 A narrativa, que caprichava na fantasia, anunciava o grande estilo do escritor, que ainda não tinha emplacado romance algum mas tinhapretensão e vontade para tanto.

Um Diário íntimo e outras incursões na literatura

Foi no ano de 1903 que Lima deu início ao seu Diário, composto de tiras e notas separadas, as quais Francisco de Assis Barbosa e Evangelina Barreto (a irmã de Lima) reuniram num livro que postumamente intitularam de Diário íntimo. O texto começa com a seguinte anotação: “1903. Um Diário Extravagante. Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e

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