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8/16/2019 Linguística 1 - Fernanda Mussalim http://slidepdf.com/reader/full/linguistica-1-fernanda-mussalim 1/152 Autora Fernanda Mussalim 2009 Lingüística

Linguística 1 - Fernanda Mussalim

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AutoraFernanda Mussalim

2009

Lingüística

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www.iesde.com.br

M989 Mussalim, Fernanda. / Lingüística I. / Fernanda Mussalim — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009.

152 p.

ISBN: 978-85-7638-803-6

1. Lingüística. 2. Gramática Comparada e Histórica. 3. Estru-turalismo. 4. Gerativismo. 5. Funcionalismo. 6. Interacionismo.7. Teoria do Discurso. I. Título.

CDD 410

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Sumário

Linguagem humana e “linguagem” animal | 9Linguagem humana X comunicação animal | 9

Os estudos da linguagem e a constituição do campo da Lingüística | 17A reexão em torno da linguagem | 17Estudos da linguagem X Lingüística: em pauta os critérios de cienticidade | 19Ferdinand Saussure e a constituição do domínio e do objeto da Lingüística | 21

Os estudos lingüísticos do século XIX: a gramática comparada e histórica | 27Primeiras considerações | 27Um pouco do debate: formulações e reformulaçõesem torno da problemática da mudança lingüística | 29

Ferdinand Saussure e a fundação da Lingüística sincrônica | 39O campo da Lingüística: domínio e objeto bem denidos | 39O recorte sincrônico como condição para a delimitaçãodo sistema lingüístico e para a formulação da teoria do valor | 43

A operacionalidade da teoria saussuriana do valor | 49A abordagem de Mattoso Câmara sobre a exão do gênero em nomes no português | 50

Níveis de análise lingüística | 61As operações de segmentação e substituição | 61Níveis de análise lingüística | 63

Biologia e linguagem: Gerativismo | 69O pressuposto do inatismo | 69

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O Funcionalismo em Lingüística: sistema lingüístico e uso das expressões lingüísticas | 81Funcionalismo e Estruturalismo | 81O Funcionalismo em Lingüística | 82

Uma análise | 86

Linguagem e pensamento no Interacionismo Piagetiano | 93O desenvolvimento mental do ser humano | 94

Vygotsky e o componente social do Interacionismo:implicações para o Interacionismo na Lingüística | 103

Interacionismos | 103Vygotsky e as raízes genéticas do pensamento e da linguagem | 104O Interacionismo Social | 106

O Interacionismo no Círculo de Bakhtin | 115Os dois grandes projetos do Círculo | 115A natureza social e semiótica da interação | 118A concepção de linguagem do Círculo | 119

Análise do Discurso | 125O terreno fecundo do Marxismo e da Lingüística | 125A problemática da Lingüística e da análise de texto | 127A Psicanálise: uma teoria do sujeito pertinente ao projeto da AD | 128A especialidade da AD | 129

Gabarito | 137

Referências | 145

Anotações | 149

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Apresentação

O propósito deste livro é dar subsídios para o estudo e aprofun-damento de questões cruciais sobre a linguagem e a Lingüística. O focode nossa proposta recai sobre a problemática da fundação da Lingüísticacomo ciência, bem como sobre os grandes movimentos epistemológicosque constituíram a complexa e intrigante rede teórica desse campo doconhecimento. O livro compõe-se de 12 capítulos, que apresentaremos,sucintamente, a seguir.

No primeiro capítulo, intitulado “Linguagem humana e ´linguagem´animal”, abordamos um clássico estudo realizado por Émile Benveniste, emque o lingüista compara a “linguagem” das abelhas à linguagem humana.Nosso intuito é apresentar como a Lingüística dene critérios para caracteri-zar a linguagem humana e estabelecer suas propriedades denidoras.

No capítulo dois, “Os estudos da linguagem e a constituição docampo da Lingüística”, a partir de algumas reexões levadas a cabo pelolingüista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Jr., apresentamos alguns cri-

térios que distinguem os estudos sobre a linguagemda Lingüísticapropria-mente dita. Essa distinção sustenta-se sobre o movimento de alguns teó-ricos – lingüistas do século XIX e, de modo especial, Ferdinand Saussureno século XX – que trabalharam para constituir, com base em critérios decienticidade da época, a Lingüística como um campo cientíco de estu-dos da linguagem.

O capítulo três, intitulado “Os estudos lingüísticos do século XIX:a gramática comparada e histórica”, tem por objetivo apresentar os estu-dos comparatistas e históricos do século XIX a partir do debate suscitadopelas formulações e reformulações que ocorreram em torno da problemá-

tica da mudança lingüística e da história das línguas.No quarto capítulo, “Ferdinand Saussure e a fundação da Lingüística

sincrônica”, pontuamos as diretrizes colocadas e os deslocamentos realiza-dos pelo Curso de Lingüística Geral (1916), obra póstuma de Saussure, quecolocaram a Lingüística em um outro eixo de reexões. Para tanto, apresen-taremos as clássicas concepções saussureanas – as dicotomiassincronia/dia-croniae língua/fala, bem como a noção designo lingüístico –, relacionando-

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as de modo a tecer o coeso e coerente quadro teórico concebido porSaussure.

Em “A operacionalidade da teoria saussuriana do valor”, quintocapítulo deste livro, pretendemos mostrar a operacionalidade dessa teo-ria a partir da descrição do sistema lingüístico do português. Para tanto,consideramos um dos estudos clássicos de Joaquim Mattoso Câmara Jr.,a saber, o estudo do mecanismo da exão nominal em português – maisespecicamente, seu estudo sobre a exão do gênero em nomes.

No sexto capítulo, intitulado “Níveis de análise lingüística”, apre-sentamos, seguindo Émile Benveniste, quatro diferentesníveis de análiselingüística: o nível fonêmico, o morfêmico, o do lexema e o da frase. Apre-sentamos, também, duas operações a partir das quais se pode, de acor-do com Benveniste, estabelecer o procedimento de abordagem dessesníveis de análise: a operação desegmentação e a operação desubstitui-ção. O objetivo central é possibilitar a percepção de que o funcionamen-to da língua, em toda sua complexidade, opera em vários níveis que,mesmo distintos, afetam-se mutuamente.

No capítulo sete, “Biologia e linguagem: o Gerativismo”, apresen-tamos os pressupostos fundamentais da Gramática gerativa ou Gerati-vismo, uma das correntes mais produtivas do século XX na Lingüística eliderada pelo americano Noam Chomsky. Abordam-se, para tanto, aspec-tos que possam esclarecer sobre: a) a realidade biológica da linguagem; b)os critérios de distinção entre o que pode ser considerado criação culturale o que é predisposição biológica; c) as hipóteses fundamentais deChomsky a respeito da faculdade de linguagem.

No oitavo capítulo, “O Funcionalismo em Lingüística: sistema lin-güístico e uso das expressões lingüísticas”, buscamos dar visibilidade aopostulado central do paradigma funcionalista, a saber, de que o siste-ma lingüístico é estruturado (e reestruturado) pelo uso que os falantesfazem das expressões lingüísticas em condições reais de produção dalinguagem. Nosso intuito é mostrar que, da perspectiva do Funciona-lismo, são as condições e as exigências comunicacionais que moldam

o sistema lingüístico, que existe para cumprir funções essencialmentecomunicativas. As línguas, portanto, são concebidas como instrumentosde interação social e devem, por isso, ser descritas e explicadas a partirdo esquema efetivo da interação verbal.

No capítulo nove, intitulado “Linguagem e pensamento no Inte-racionismo Piagetiano”, iniciamos a abordagem da perspectiva teóricado Interacionismo. Neste capítulo, em especíco, apresentamos uma dasteorias sobre o desenvolvimento da inteligência humana mais conhecidas

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no cenário educacional brasileiro: o Cognitivismo construtivista do biólogosuíço Jean Piaget. Nosso interesse é pelo conceito de interação pressupos-to nas elaborações do biólogo – motivo pelo qual, não raras vezes, a teo-

ria é referida como o Interacionismo Piagetiano –, bem como pelo modocomo o autor concebe o processo de aquisição de linguagem.

O capítulo dez, “Vygotsky e o componente social do Interacionis-mo: implicações para o Interacionismo na Lingüística”, possibilita uma me-lhor compreensão da perspectiva interacionista de abordagem do fenô-meno da linguagem. Nele, apresentamos alguns estudos em aquisição dalinguagem inuenciados pelo pressuposto vygostskiano de que o com-ponente social é pré-requisito para que esse processo de aquisição ocor-ra. Esses estudos dão visibilidade ao fato de que há diferentes noções deinteração e, conseqüentemente, vários interacionismos.

No capítulo onze, “O Interacionismo no Círculo de Bakhtin”, apresen-tamos a noção de interação presente nos trabalhos do Círculo de Bakhtin,a partir das reexões levadas a cabo emMarxismo e Filosoa da Linguagem,visto que as formulações feitas nesse livro a respeito da problemática dainteração são bastante representativas do pensamento do Círculo. Alémdisso, apresentamos, a partir das considerações de Bakhtin e Voloshinov, aconcepção de linguagem que embasa os trabalhos desses estudiosos que,apesar de manterem relações distintas com a Lingüística, sustentam – etodos os estudiosos do Círculo – seus projetos a partir do postulado daprimazia da interação sobre a abordagem formal da linguagem.

No capítulo doze, intitulado “Análise do Discurso”, tratamos da gênesedessa disciplina na França da década de 1960, abordando suas relações com aLingüística, o Marxismo e a Psicanálise. O intuito é apresentar de que maneiraa Lingüística constitui um dos pilares epistemológicos da Análise do Discursoe em que sentido a Análise do Discurso afeta a Lingüística.

Todo esse percurso, além de dar visibilidade às grandes teorias eteóricos da história da Lingüística, também possibilita que se percebam aseriedade, a relevância e a contribuição dos trabalhos de vários lingüistasbrasileiros, dos quais citamos aqueles a quem mais diretamente zemos

referência aos trabalhos: Ana Paula Scher, Carlos Alberto Faraco, CláudiaT. Guimarães de Lemos, Erotilde Goreti Pezatti, Ester Mirian Scarpa, JosBorges Neto, Luiz Carlos Travaglia, Maria Helena Moura Neves, Marina A. Augusto, Miriam Lemle, Roberto Gomes Camacho, Rodolfo Ilari, Rosande Andrade Berlinck e Sírio Possenti. Além, obviamente, do clássico e maisproeminente lingüista brasileiro – Joaquim Mattoso Câmara Jr.

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Não tivemos a pretensão de esgotar a problemática dos temastratados, nem tampouco de abordar tudo o que há de mais relevanteem Lingüística. Ao contrário, esperamos que este livro cumpra o papel

de estimular, instigar e abrir portas para o estudo da linguagem e daLingüística, uma área que tem ocupado cada vez mais um lugar centralna formação de alunos dos cursos de Letras.

Gostaríamos de agradecer, em especial, a duas pessoas: Tere-sa Cristina Ribeiro, pela tão gentil interlocução e cuidadosa revisão; eHeloisa Mara Mendes, professora de Lingüística, pelo constante e frutí-fero diálogo.

Aos alunos, desejamos um feliz e produtivo percurso de formação.

Fernanda Mussalim

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Linguagem humana e“linguagem” animal

Fernanda Mussalim *

A questão da natureza e da origem da linguagem humana sempre foi objeto de inúmeras espe-culações. Disciplinas como a Antropologia, a Psicologia, as Neurociências, a Filosoa e a Lingüística sinteressaram de maneira especial por essa questão e desenvolveram pesquisas bastante interessantes– e também controversas – sobre o tema. Entretanto, não raras vezes, o desenvolvimento dessas pes-

quisas se deu sobre uma base comparativista entre a linguagem humana e a linguagem animal, com ointuito de responder, basicamente, a duas questões:

O que caracteriza a linguagem humana, isto é, quais são suas propriedades denidoras?::

Os animais, assim como os homens, possuem linguagem?::

Neste capítulo, relataremos um clássico estudo, realizado pelo lingüista Émile Benveniste, quebusca responder a essas questões1.

Linguagem humana X comunicação animalBenveniste, em seu texto intitulado “Comunicação Animal e Linguagem Humana” (2005), sub-

meteu o sistema de comunicação das abelhas a um estudo detalhado. O lingüista parte dos estudosrealizados pelo zoólogo alemão Karl von Frisch, que demonstram, de modo experimental, que abelhasexploratórias, por meio da dança, transmitem a outras da mesma colméia informações a respeito da po-

* Doutora e Mestre em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduada em Letras pela Unicamp. Docente daUniversidade Federal de Uberlândia, atua na graduação e na pós-graduação do Instituto de Letras e Lingüística dessa universidade.1 Sugerimos, para o conhecimento de outras pesquisas comparativistas entre a linguagem humana e a “linguagem” animal, três referências:o livroO Instinto da Linguagem: como a mente cria a linguagem, de Steven Pinker; o capítulo 1, intitulado “A linguagem humana”, do livro A

Filosoa da Linguagem, de Sylvain Auroux; o capítulo 4, intitulado “As raízes genéticas do pensamento e da Linguagem”, do livroPensamentoe linguagemde Liev Semiónovitch Vygotsky.

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sição de um campo de flores. Analisando os resultados a que chega Frisch, Benveniste conclui queo sistema de comunicação das abelhas não é uma linguagem, mas um código de sinais. Vejamos deforma mais detalhada as considerações do lingüista.

O autor, de início, já arma que a noção de linguagem aplicada ao mundo animal “só tem créditopor abuso de termos” (BENVENISTE, 2005, p. 60), já que os animais não dispõem, nem de forma rudimen-tar, de um modo de expressão que tenha os caracteres e as funções da linguagem humana. Entretanto,apesar de a linguagem animal não possuir as particularidades da linguagem humana, Benveniste ar-ma que os estudos de Frisch oferecem subsídios para crer que, no caso especíco das abelhas, existecomunicação: a organização de suas colônias, suas atividades coordenadas, a capacidade que têm dereagirem coletivamente diante de situações imprevistas – tudo isso permite supor que elas têm apti-dões para trocar verdadeiras mensagens2.

De todas essas aptidões, a que mais de perto interessou os observadores foi a maneira pela qualas abelhas de uma colméia são avisadas quando uma delas descobre uma fonte de alimento. O proce-dimento do experimento de Frisch que permitiu o registro dessa forma de comunicação se deu, basica-mente, da seguinte maneira, conforme nos relata Benveniste (2005, p. 61):

Uma abelha operária colhedora, encontrando, por exemplo, durante o vôo uma solução açucarada por meio da qualcai numa armadilha, imediatamente se alimenta. Enquanto se alimenta, o experimentador cuida em marcá-la. A abelhavolta depois à sua colméia. Alguns instantes mais tarde, vê-se chegar ao mesmo lugar um grupo de abelhas entre asquais não se encontra a abelha marcada e que vêm todas da mesma colméia. Esta deve ter prevenido as companhei-ras. É realmente necessário que estas tenham sido informadas com precisão, pois chegam sem guia ao local, que seencontra, freqüentemente, a grande distância da colméia e sempre fora de sua vista. Não há erro nem hesitação nalocalização: se a primeira escolheu uma or entre outras que poderiam igualmente atraí-la, as abelhas que vêm após asua volta se atirarão a essa e abandonarão as outras. Aparentemente, a abelha exploradora indicou às companheiras olugar de onde veio.

Mas como isso se dá? Karl von Frisch estabeleceu os princípios de uma solução. Ele observou, emuma colméia transparente, o comportamento da abelha que volta depois de uma descoberta de ali-mento. Ela é imediatamente rodeada por suas companheiras que estendem as antenas em sua direção,a m de recolher o pólen de que vem carregada ou absorver o néctar que vomita. Posteriormente, essamesma abelha executa danças, seguida das companheiras. Esse é o próprio ato da comunicação.

Nesse processo, ela se entrega a uma de duas danças diferentes. Em uma, traça círculos horizon-tais da direita para a esquerda e, depois, da esquerda para a direita. Em outra, realizando uma vibraçãocontínua do abdômen (“dança do ventre”), ela imita a gura de um 8: voa reto, depois descreve umavolta completa para a esquerda; voa reto novamente e recomeça uma volta completa para a direita, e

assim por diante. Após as danças, algumas abelhas – sem a companhia da abelha que executou a dança– deixam a colméia e voam diretamente para a fonte que a abelha operária colhedora havia visitado.Depois de saciarem-se, voltam à colméia e realizam as mesmas danças, que provocam novas partidas,de modo que, após várias idas e vindas, centenas de abelhas já foram ao local indicado pela primeira –aquela que descobriu a fonte de alimento.

2 Alguns estudos recentes têm demonstrado a ocorrência de transmissão cultural entre alguns primatas, o que permite supor que os princípiosdo elemento que caracteriza o ser humano – a cultura – já existiam antes mesmo de fazermos parte do reino animal (ver a esse respeito o TextoComplementar deste capítulo). Assim, algumas espécies animais podem desenvolver, além de sistemas comunicacionais (como é o caso das

abelhas), tradições culturais. Entretanto, como veremos, isso não implica a possibilidade de desenvolverem a linguagem, nos moldes como aconhecemos nos humanos.

Lingüística I

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Com base nessas observações, Frisch pôde, sem muita hesitação, supor que tanto a dança em cír-culos, quanto a que a abelha colhedora executa vibrando o ventre e descrevendo oitos são verdadeirasmensagens que comunicam à colméia a descoberta do alimento. Mas qual a diferença das duas danças?Ambas se reportam à distância que separa a colméia do achado. A dança em círculo anuncia que o localdo alimento está a uma pequena distância – mais ou menos a um raio de cem metros da colméia. Aoutra indica que a fonte de alimento está a uma distância superior a cem metros e até seis quilômetros.Nessa última, a mensagem comporta duas informações: uma sobre a distância, outra sobre a direção. Adistância é dada pelo número de guras (oitos) desenhadas em um tempo determinado – quanto maiora distância, mais lenta é a dança. Por exemplo: quando a abelha realiza de nove a dez oitos completosem quinze segundos, a distância do alimento é de cem metros; quando realiza sete, o alimento está aduzentos metros; quando realiza quatro oitos e meio, a distância é de um quilômetro; quando realizaapenas dois, a distância é de seis quilômetros. Em relação à direção em que se encontra o achado, essainformação é dada com base no eixo do oito em relação ao sol, isto é, se ele se inclina mais à direita ou

à esquerda, indicando o ângulo que o lugar da descoberta forma com o sol3

.Benveniste considera que a descoberta de Frisch possibilita, a partir do modo de comunicação

empregado em uma colônia de insetos, que se especique, com alguma precisão (e pela primeira vez!),o funcionamento de uma “linguagem” animal. Descrever esse funcionamento permite, por sua vez, assi-nalar “aquilo em que ela é ou não é uma linguagem e o modo como essas observações sobre as abelhasajudam a denir, por semelhança ou por contraste, a linguagem humana” (BENVENISTE, 2005, p. 64).

O autor avalia que as abelhas mostram-se capazes de produzir e compreender uma verdadeiramensagem que contém três dados: a existência de uma fonte de alimento, a sua distância e a sua dire-ção. Além disso, são capazes de conservar esses dados na memória e de comunicá-los, simbolizando-ospor comportamentos somáticos. Em outras palavras, as abelhas manifestam aptidão para simbolizar,fato observável na correspondência convencional existente entre seu comportamento (físico) e o dadoque ele traduz. Nesse sentido é que Benveniste (2005, p. 64) arma que

[...] encontramos, nas abelhas, as próprias condições sem as quais nenhuma linguagem é possível – a capacidade deformular e de interpretar um “signo” que remete a uma certa “realidade”, a memória da experiência e a aptidão paradecompô-la.

É possível, pois, perceber pontos de semelhança entre a “linguagem” das abelhas e a linguagemhumana, visto que os processos comunicacionais desses insetos transpõem objetivos em gestos for-malizados, que comportam elementos variáveis, mas de “signicação” constante. A situação e a funçãotambém são de uma linguagem, visto que o mesmo sistema comunicacional “é válido no interior deuma comunidade determinada e que cada membro dessa comunidade tem aptidões para empregá-loou compreendê-lo nos mesmos termos” (BENVENISTE, 2005, p. 64).

Entretanto, apesar desses pontos de semelhança, o autor enumera várias diferenças que podemajudar a esclarecer o que efetivamente caracteriza a linguagem humana. Apresentaremos essas diferen-ças no quadro a seguir:

3 De acordo com Frisch (1950), as abelhas são capazes de se orientarem mesmo com o tempo encoberto, devido a uma sensibilidade particularà luz polarizada.

Linguagem humana e “linguagem” animal

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Todas essas diferenças entre a linguagem humana e a “linguagem” animal levam Benveniste aconcluir que o termo mais apropriado para denir o modo de comunicação entre as abelhas – que se ca-racteriza pela xidez do conteúdo, a invariabilidade da mensagem, a referência a uma única situação, anatureza indecomponível da mensagem, a transmissão unilateral (adialógica) – não como “linguagem”,mas como “código de sinais”.

Outro ponto de extrema importância a ser observado é que não é apenas uma ou algumas dascaracterísticas referentes à linguagem humana o que faz surgir a sua diferença essencial em relação àlinguagem animal, mas o conjunto de todas elas. A esse respeito, Sylvain Auroux (1998, p. 51) faz umaconsideração mais que esclarecedora. Ele arma que só é possível sustentar que a linguagem (tal comoa conhecemos nos homens) é radicalmente inacessível aos animais se assumirmos “uma atitude teóricaholística que consiste em sustentar que a linguagem humana é um todo irredutível à soma das proprie-dades que se supõe caracterizarem-na”.

Texto complementar

Tradições selvagens(WILHELM, 2007, p. 80-85)

Durante toda a manhã um grupo de macacos se locomove ao longo do riacho na ReservaBiológica Lomas Barbudal, Costa Rica. É período de seca: as fontes de água estão se esgotando e amaioria das árvores perdeu as folhas. Às margens do rio, onde a oresta ainda é verde, uma espéciede macaco-prego, o Cebus capucinus, encontra comida. Os animais procuram ansiosamente poralimento e só se acalmam por volta do meio-dia, quando o calor aumenta. No alto de uma árvore,um casal troca carícias: cada macaco estica o braço, toca o rosto do outro e coloca o dedo dentro donariz. Eles parecem totalmente relaxados: respiram fundo e fecham os olhos. Os corpos balançamsuavemente, como se estivessem em transe. Machos e fêmeas permanecem nesse ritual por aproxi-madamente 20 minutos antes de tocar com os dedos os olhos do parceiro.

A equipe coordenada pela bióloga Susan Perry, da Universidade da Califórnia, descreveu es-sas encenações como “farejar a mão” e “furar os olhos”. Perry pesquisa os macacos-prego desde1990 e descobriu um dos exemplos mais expressivos de aprendizado por imitação. Esse comporta-mento dos macacos lembra as convenções ou tradições sociais transmitidas culturalmente e comas quais o homem organiza sua vida. O uso de ferramentas pelos chimpanzés é o exemplo maisdifundido dessa transmissão, mas o espectro parece ser bem mais amplo: novos estudos identi-caram o uso de ferramentas por imitação em outras espécies, o que parece ser, algumas vezes,apenas diversão, sem vantagem evolutiva aparente. É o caso dos golnhos que usam esponjas-do-mar como máscara de proteção do focinho durante a busca de alimentos; tudo indica que setrata de um comportamento aprendido.

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Mas o que seria cultura, anal? Se consideramos a capacidade de produção de obras como aMona Lisa, sinfonias ou viagens ao espaço, o homem seria classicado como o único “ser cultural”.

Cientistas, entretanto, têm questionado essa armação. O biólogo Michael Krutzen, da Universidadede Zurique, acredita que comportamentos culturais são aprendidos e transmitidos dentro de umapopulação.

A imitação é, de fato, o primeiro critério a ser considerado quando se estuda cultura em prima-tas não-humanos, mas é difícil diferenciar, em pesquisas de campo, o que é aprendizado individuale o que é transmissão de hábitos. Além disso, grupos da mesma espécie vivendo em ambientesdiferentes adotam, vez por outra, condutas de motivação ecológica e não-cultural. Em terceiro lu-gar, comportamentos que ocorrem apenas raramente podem estar relacionados a característicasgenéticas e precisam ser desconsiderados.

[...]

Em busca de conançaSusan Perry acredita na existência de funções para as tradições sociais. Ao tocar os olhos do ou-

tro, por exemplo, os macacos-prego estariam, segundo a bióloga, buscando cumplicidade: “O primeiroanimal provoca certo estresse e avalia a reação do parceiro”, explica. Se o parceiro responde com caute-la, isso poderia sugerir que é possível contar com ele. Já se for grosseiro e agressivo, provavelmente nãoserá conável. Para os machos de macacos-prego essa informação é muito importante, pois, na faseadulta, quando saem em busca de novos bandos, precisam muito de aliados. Essas incursões geral-mente terminam em morte, já que os machos do grupo invadido resistem ao ataque. Pesquisadoresda Reserva Lomas Barbudal concluíram que a coalisão é praticada desde cedo pelos macacos-pregoe descrevem situações em que três adolescentes brincam juntos, até que surge um desentendimen-to e dois animais se unem para derrotar o terceiro.

O antropólogo Joseph Manson, integrante do projeto na Costa Rica, ressalta que o estabeleci-mento de coalisões exige inteligência desses animais: eles precisam motivar companheiros a com-partilhar o risco e saber que os aliados não irão fugir no momento da luta. Os macacos-prego têmum conjunto de códigos para testar tais parcerias. Segundo Manson, trata-se de uma solução criadapelos primatas para garantir a conança, vital nas relações sociais. [...]

No Instituto de Atlanta, a equipe do primatologista Franz de Waal viu um aperto de mão de

macacos em 2006. O hábito foi instituído por uma fêmea, Geórgia, e se espalhou rapidamente entreanimais amigos, acostumados à catação de piolhos. Os primatologistas consideram que relaçõessociais, tanto amistosas quanto agressivas, são importantes na assimilação de tradições. Baseadoem estudo de 2004 com babuínos-cinzentos africanos (Papio anubis), De Wall arma que a violênciae a agressividade são comportamentos culturais. [...]

Outras espécies de mamíferos são capazes de transmitir tradições. Na década de 1990, um pes-cador procurou os biólogos da estação de pesquisa Shark Bay, Austrália, para informar uma defor-mação física num golnho. Ele esperava que os cientistas pudessem ajudar o animal, possivelmentevítima de um grande tumor no focinho. Foi constatado, porém, que a suposta doença era na verda-de uma esponja-do-mar utilizada como máscara. Cerca de 40 golnhos, entre os 800 estudados em

Shark Bay, utilizavam esse tipo de “proteção”. “A esponja provavelmente os protege dos espinhos

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do ouriço quando rastreiam o fundo do mar em busca de alimentos”, explica o biólogo MichaelKrutzen, da Universidade de Zurique. Em 2005, ele examinou o genótipo dos animais e descobriu

predominância de fêmeas com parentesco próximo. Para Krutzen, o uso da esponja seria uma tra-dição familiar transmitida pelas fêmeas por várias gerações. Golnhos machos, segundo ele, nãoteriam tempo para aprender tal procedimento, devido a obrigações como fazer a corte e procriar.

Esses estudos deixam clara a fusão de limites entre oHomo sapiens e outras espécies. É claroque um chimpanzé, um macaco-prego ou um golnho nunca vão nos contar histórias, criar obrasde arte, compor sinfonias ou pisar na Lua, mas os princípios do elemento que caracteriza o ser hu-mano – a cultura – já existiam antes de nós fazermos parte do reino animal.

Estudos lingüísticos1. Por que Benveniste nomeia a “linguagem” das abelhas como “código de sinais”?

2. Para comunicar a descoberta de uma fonte de alimento, a abelha colhedora executa duas danças.Quais as informações transmitidas por essas danças?

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3. Quais são as condições, de acordo com Benveniste, sem as quais nenhuma linguagem épossível?

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Os estudos da linguageme a constituição do

campo da Lingüística

A reexão em torno da linguagemA linguagem é algo que faz parte da vida humana, mas nem sempre foi objeto de reexão. Ape-

nas à proporção que as sociedades foram se tornando mais complexas, subdividindo-se em estratos eclasses sociais, e organizando-se a partir de esferas de atividade humanas cada vez mais especícas, éque os homens passaram a focalizar com atenção o fenômeno lingüístico1.

O lingüista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Jr., em seu livroHistória da Lingüística(1975),aponta sete fatores sociais e culturais que despertaram a humanidade para a reexão em torno dalinguagem. Cada um desses fatores, por sua vez, desencadeou diferentes estudos da linguagem.

O primeiro desses fatores é a diferenciação de classes sociais. A linguagem de um grupo social, domesmo modo que suas outras formas de comportamento, constitui a identidade desse grupo. Essa lin-guagem, portanto, confere-lhe certostatus. Percebendo esse fato, as classes sociais de maior prestígioe poder passam a agir de modo a preservar os traços lingüísticos (passando-os de geração a geração)que as diferenciam das outras classes, em uma tentativa de demarcar fronteiras sociais. Nessa políticade demarcação, passam a denir, na linguagem, o que écorreto e o que éerrado, separando os traçoscorretos da linguagem das classes de poder dos traços incorretos da linguagem das classes sociais su-balternas. A esse tipo de estudo Mattoso Câmara chama deEstudo do Certo e Errado, do qual originará

1 A invenção da escrita, por exemplo, característica de sociedades mais complexas, fez com que, na tentativa de reduzir os sons da linguagema uma escrita convencional, se passasse a perceber a existência de formas lingüísticas.

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o que tradicionalmente chamamos degramática normativa, cujo objetivo é o estudo sistemático dostraços de linguagem de um determinado grupo social dominante, que pretende manter inalterada sualinguagem e prescrevê-la como acorreta frente a outros modos de falar dessa mesma sociedade.

O segundo fator que, de acordo com Câmara Jr., despertou a humanidade para a reexão emtorno da linguagem foi o contato de uma dada sociedade com comunidades estrangeiras que falavamoutras línguas. Esse contato – hostil ou não – exigiu dos falantes envolvidos um esforço pela buscade uma compreensão lingüística, que se desenvolveu a partir de comparações sistemáticas entre aslínguas postas em relação nesse intercâmbio lingüístico. Ao estudo decorrente dessas condições deintercâmbio, o autor chamou deEstudo da Língua Estrangeira.

Tanto oEstudo do Certo e Errado quanto o Estudo da Língua Estrangeira foram decorrentes da per-cepção da diferença existente, respectivamente, entre dialetos e línguas em contato. Há ainda, entre-tanto, outro tipo de diferença que estimulou a reexão sobre a linguagem: a diferença entre formaslingüísticas do passado e formas lingüísticas do presente. A percepção dessa diferença decorreu danecessidade de se compreender textos antigos escritos em línguas obsoletas – necessidade que se dáem vários domínios, mas especialmente no domínio da literatura, no interior do qual se torna imperativocompreender traços lingüísticos obsoletos a m de captar o valor artístico de um texto. Esse tipo deestudo tem sido chamado, a partir dos gregos, de Filologia, termo que Mattoso mantém, chamando aesse terceiro tipo de estudo deEstudo Filológico da Linguagem.

O quarto fator que estimulou a reexão sobre a linguagem foi o desenvolvimento da ciência noseu sentido mais amplo. Os estudos losócos, por exemplo, que se processam por meio da expressãolingüística, tornam evidente a necessidade de se tomar a linguagem como um instrumento ecientepara o pensamento losóco e apontam para a necessidade de disciplinar esse pensamento por meio

do disciplinamento da linguagem. Esse entrelaçamento de estudos losócos e estudos da linguagemdeu lugar a um tipo de estudo híbrido – losóco e lingüístico ao mesmo tempo – a que os gregoschamaram de lógica. Mantendo a tradição grega, Mattoso chama a esse tipo de estudo deEstudoLógico da Linguagem.

O quinto fator relacionado ao estímulo dos estudos da linguagem decorre também do desenvol-vimento da ciência, que possibilitou, entre outras coisas, um estudo das características biológicas quepermitem aos homens o uso da linguagem. Considerada dessa perspectiva, a linguagem, embora seja –de acordo com Câmara Jr. – uma criação cultural, depende de uma predisposição biológica. A esse tipode estudo de orientação biológica, o autor chamará deEstudo Biológico da Linguagem.

O conceito de sociedade humana como fenômeno histórico, com base no qual todas as mani-festações culturais das sociedades podem ser tomadas como objetos passíveis de um estudo histórico,é o sexto fator que propiciará o surgimento de um novo tipo de estudo da linguagem, que MattosoCâmara Jr. classica como oEstudo Histórico da Linguagem. Nessa perspectiva, a linguagem é focalizadacomo um acontecimento histórico, visto que a história de seu desenvolvimento é reconstruída a par-tir de inúmeras relações estabelecidas entre fatos lingüísticos que se sucedem ao longo de uma linhado tempo.

Entretanto, como nos aponta Câmara Jr., todo fato social (como a linguagem, por exemplo), alémde ser um acontecimento histórico, também possui uma função social atual. A esse estudo (o sétimotipo apontado pelo autor), que focaliza a função da linguagem na comunicação social, bem como osmeios pelos quais ela preenche aquela função, Mattoso chama deEstudo Descritivo da Linguagem.

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Estudos da linguagem X Lingüística:

em pauta os critérios de cienticidadeToda essa classicação proposta por Câmara Jr., e exposta na seção anterior, tem por objetivodelimitar o campo da Lingüística frente aos estudos da linguagem em geral, isto é, separar os estudoscientícos da linguagem dos estudos não-cientícos. Para Mattoso, somente os estudos decorrentesdos fatores 6 e 7 – oEstudo Histórico da Linguagem e o Estudo Descritivo da Linguagem– constituem oâmago da ciência da linguagem ou Lingüística, visto que “em ambos tomamos a linguagem como umtraço cultural da sociedade, ouexplicando sua origem e desenvolvimento através do tempo ou o seupapel e meio de funcionamento real na sociedade”. (CÂMARA JR., 1975, p. 19-20; grifo nosso)

Por essa justicativa, é possível perceber que o critério de delimitação do que é cientíco passapelo caráter explanatório de um estudo: no caso dos dois tipos de estudos anteriormente considerados,o primeiro explica a origem e o desenvolvimento da linguagem; o segundoexplica seu papel e meio defuncionamento. Não basta, portanto, descrever determinados fenômenos para se constituir um estudocientíco, é preciso, além disso, explicar o funcionamento ou a natureza desses fenômenos.

Os estudos enumerados entre os fatores de 1 a 3 – oEstudo do Certo e Errado, oEstudo da LínguaEstrangeirae o Estudo Filológico da Linguagem – não são considerados estudos cientícos e, portanto,não fazem parte da ciência da linguagem; pertencem, diferentemente, ao domínio da pré-lingüística.Vejamos os argumentos de Câmara Jr. que sustentam essa sua asserção:

Claro que “O Estudo do Certo e Errado”não é ciência . Nada mais é que uma prática do comportamento lingüístico.OEstudo da Língua Estrangeira apresenta alguns aspectos cientícos na medida em que se baseia na observação e nacomparação objetivas. Mas aindanão é ciência no sentido próprio do termo , uma vez que não apresenta o verdadei-ro signicado dos contrastes que descobre e não desenvolve um método cientíco de focalizar a sua matéria. O mesmonão [sIc ] se pode dizer do “Estudo Filológico da Linguagem”.

Podemos chamar aqueles três estudos da linguagem de Pré-lingüística, isto é,algo que ainda não é Lingüística . (CÂ-MARA JR., 1975, p. 20; grifos nossos)

Considerando as colocações feitas por Câmara Jr., é possível perceber que o autor elenca algunscritérios que separam o estudo cientíco do não-cientíco:

Aspectos do estudo cientíco Aspectos do estudo não-cientíco

Baseia-se na observação e na com-::

paração objetivas.

Não apresenta o verdadeiro signicado dos contrastes::

que descobre;

Não desenvolve um método cientíco para focalizar a::

sua matéria.

Observar e comparar de maneira objetiva um fenômeno lingüístico faz parte do processo de des-crição, próprio do fazer cientíco, mas não é suciente para caracterizá-lo enquanto tal. É nesse sentidoque Câmara Jr. arma que “O Estudo da Língua Estrangeira apresenta alguns aspectos cientícos”. Maspara se congurar em um estudo cientíco propriamente dito é necessário, além disso, apresentar overdadeiro signicado dos contrastes que descobre – exigência relacionada ao caráter explanatório daciência – e desenvolver um método cientíco que focalize o objeto estudado.

Os estudos da linguagem e a constituição do campo da Lingüíst

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Com relação aos estudos decorrentes dos fatores 4 e 5 – oEstudo Biológico da Linguagem e oEstu-do Lógico da Linguagem (losóco, em sentido lato) – Câmara Jr. arma também não pertencerem ao do-mínio dos estudos cientícos da linguagem, permanecendo nos limites de uma paralingüística. O autornão expõe de maneira clara os critérios que o levaram a alinhar a paralingüística à pré-lingüística, amboscomo estudos não-cientícos, mas, considerando os critérios já apresentados para a classicação doque vem a ser um estudo cientíco (Lingüística) e um estudo não-cientíco ( pré-lingüística), pode-se,sem muita hesitação, armar que tais critérios são os mesmos, já anteriormente referidos.

Com base nessa classicação é que Mattoso Câmara Jr. arma que uma história da Lingüísticadeveria concentrar sua atenção na Europa do século XIX (onde e quando se desenvolveram os estudoshistóricos) e do século XX (quando se fortaleceram o que o autor chama deestudos descritivos da lingua-gem), bem como em outros países não-europeus que assimilaram os principais traços e tendências dopensamento cientíco dominante2.

Mas o que vem a ser esse pensamento cientíco dominante?

O pensamento cientíco dominante ao qual se refere Câmara Jr. diz respeito ao que hegemo-nicamente é considerado ciência no século XIX e, pelo menos, até meados do século XX. De acordocom esse paradigma, as explicações dadas pela ciência – diferentemente, por exemplo, das explicaçõesdadas pelo senso comum – deveriam ser sistemáticas, controláveis pela observação, de modo a possi-bilitarem conclusões gerais, isto é, que não valem apenas para os casos observados, mas para todos osque a eles se assemelham. Além disso, a concepção do que é ciência nessa época sustenta-se sobre umaforte recusa à subjetividade, visto que se aspira à objetividade cientíca, que garantiria, em princípio,que as conclusões de uma teoria ou pesquisa pudessem ser vericadas por qualquer outro membrocompetente da comunidade cientíca. Para ser objetiva e precisa, a ciência teria, pois, que se dispor

de uma linguagem rigorosa, uma metalinguagem especíca, a partir da qual deniria não somenteconceitos, mas também procedimentos de análise. Tais procedimentos de análise congurariam ummétodo que, se aplicado, garantiria o controle do conhecimento produzido pela ciência. Conforme nosapontam Aranha e Martins (2003, p. 158):

A utilização de métodos rigorosos possibilita que a ciência atinja um tipo de conhecimento sistemático, preciso eobjetivo que permita a descoberta de relações universais entre os fenômenos, a previsão de acontecimentos e tambéma ação sobre a natureza de forma mais segura.

Nessa busca pela cienticidade, cada área da ciência teria que delimitar um campo de pesquisa eprocedimentos de atuação especícos que garantissem a sua especicidade, isto é, que possibilitassema denição de qual ou quais o(s) setor(es) da realidade seria(m) privilegiado(s) enquanto objeto(s) de

estudo(s): grosso modo, a Biologia, por exemplo, privilegiaria o estudo dos seres vivos; a Física (ou pelomenos certas regiões da Física), o movimento dos corpos e assim por diante.

No caso da Lingüística, o que se tentava no nal do século XIX e início do século XX era justamentedenir a sua especicidade – o seu lugar e o seu objeto de estudo3 –, isto é, um certo setor da realidadesobre o qual ela se debruçaria para descrever e explicar seu funcionamento, com base em um métododenido, a partir do qual fosse possível se chegar a conclusões gerais a respeito de seu objeto.

2 Apesar desse recorte no tempo e no espaço, Mattoso esclarece que a Lingüística não teria evoluído sem as experiências da pré-lingüística eda paralingüística, que ocorreram na Antigüidade, na Idade Média e nos tempos modernos antes do século XIX. Mais que isso, o autor aindaesclarece que a pré-lingüística e a paralingüística não cessaram de existir com o advento da Lingüística, mostrando mais uma vez que seu

recorte não é cronológico, mas fundado sobre critérios razoavelmente nítidos de cienticidade.3 Ver a esse respeito o Texto Complementar deste capítulo.

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A classicação feita por Câmara Jr. – diferenciando a Lingüística (estudos cientícos da linguagem)da pré-lingüísticae da paralingüística (estudos não-cientícos da linguagem) – historiciza, em algumamedida, esse movimento de constituição da Lingüística enquanto ciência, movimento que se inicia comos esforços dos neogramáticos, que, desde o nal do século XIX, trabalhavam com o intuito de conquis-tar para a Lingüística um lugar no campo da ciência. As reexões apresentadas na Introdução doCursode Lingüística Geral (1916), obra póstuma do suíço Ferdinand Saussure4, também são exemplares dessemovimento de constituição da Lingüística enquanto ciência.

Apresentaremos, a seguir, as reexões feitas por Saussure.

Ferdinand Saussure e a constituiçãodo domínio e do objeto da Lingüística

Ferdinand Saussure arma, na introdução do seuCurso de Lingüística Geral , que as questõeslingüísticas interessam a todos – historiadores, lólogos etc. – que tenham que manejar textos. Por isso,seria inadmissível que seu estudo se tornasse exclusivo de alguns especialistas. Entretanto, por essemesmo motivo de interessar a todos é que se têm germinado, no domínio dos estudos da linguagem,idéias tão absurdas e tantos preconceitos. O papel do lingüista, para o autor, é dissolver esses equívocos,mas, para tanto, seria necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como normade todas as outras manifestações dalinguagem.

Saussure faz distinção entre linguagem, língua efala. A linguagem – que, para o autor é uma capa-cidade que o homem tem de comunicar-se com seus semelhantes por meio de signos verbais – abrangea língua e a fala. Alíngua, por sua vez, constitui o conjunto de todas as regras que determinam o em-prego dos sons, das formas e das relações sintáticas necessárias para a produção dos signicados. Ela écomparada a um dicionário, acrescido de uma gramática, cujos exemplares tivessem sido distribuídosentre todos os membros de uma sociedade; nesse sentido, pois, alíngua, sendo um bem coletivo, temum caráter social. Afala, diferentemente, não tem um caráter social – sua natureza é individual, vistoque se trata de uma parcela concreta e individual dalíngua, que um falante põe em ação em cada umade suas situações comunicativas concretas5.

Para Saussure, portanto, alíngua não se confunde com alinguagem, é apenas uma parte determi-

nada e essencial dela e pode ser tomada como uma totalidade homogênea e autônoma6. Alinguagem,por sua vez, é multiforme e heteróclita, porque é constituída por objetos de natureza distinta – alíngua e a fala – pertencendo, ao mesmo tempo, ao domínio social e individual. Com base nessa comparação

4 OCurso de Lingüística Geral , publicado originariamente em 1916, foi organizado por dois dos colegas de Ferdinand Saussure (Charles Bally eAlbert Sechehaye), a partir de notas dos alunos de um curso ministrado por ele entre os anos de 1907 e 1911 na Universidade de Genebra, sobo título de “Lingüística geral”, curso que foi interrompido pela doença do mestre genebrino, que veio a falecer em 1913.5 Essas primeiras considerações a respeito da distinção entrelinguagem, línguae fala têm por objetivo possibilitar uma melhor compreensãodo recorte que Saussure faz para constituir alíngua como o objeto próprio da Lingüística.6 Quando nos referimos ao caráterhomogêneo da língua, tal como concebida por Saussure, estamos, na verdade, referindo-nos à homogeneidadedo funcionamento da língua, no sentido de ela ser um sistema que funciona sempre por meio das relações binárias, opositivas e negativas

existentes entre seus elementos. Aautonomia da língua, por sua vez, deve ser compreendida no sentido de ela submeter-seapenas à suaordem própria de funcionamento.

Os estudos da linguagem e a constituição do campo da Lingüíst

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entre o caráter heteróclito e multiforme dalinguagem e o caráter homogêneo e autônomo da língua é que o autor argumenta a favor da constituição dalíngua como o objeto próprio da Lingüística. Con-forme arma, se dermos a ela o primeiro lugar entre os fatos dalinguagem, introduz-se uma ordem emum conjunto (o dalinguagem como um todo) que não se presta à classicação, se considerado fora daordem da língua.

Assim, o primeiro movimento de Saussure em direção à constituição de um objeto próprio daLingüística é diferenciar alíngua da linguagem, separando o homogêneo e, portanto, sistematizável,do heterogêneo e não sistematizável. Um segundo movimento diz respeito à inclusão da Lingüísti-ca em um domínio próprio, a saber, o da Semiologia. Vejamos como se dá essa inclusão e quais assuas implicações.

Saussure arma que alíngua é uma instituição social que se distingue das outras instituições(políticas, jurídicas etc.) por se constituir como um sistema de signos que exprimem idéias e, por isso,ser comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez,aos sinais militares etc., sendo, entretanto, o principal desses sistemas. Com base nessa abordagem,o autor concebe a possibilidade de uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; aessa ciência – que nos ensinaria em que consistem os signos, quais as leis que os regem – ele chamade Semiologia7.

A Lingüística se constitui, de acordo com Saussure, como uma parte da Semiologia, de modo queas leis descobertas por esta seriam aplicáveis também àquela, que se acharia, dessa forma, vinculadaa um domínio bem denido no conjunto dos fatos humanos. Essa denição de um domínio especícopara a Lingüística é, para o autor, de extrema importância, pois, como ele mesmo arma, “se, pela pri-meira vez, pudemos assinalar à Lingüística um lugar entre as ciências, foi porque a relacionamos com a

Semiologia” (SAUSSURE, 2006, p. 24).Se a Lingüística benecia-se com esse movimento, a Semiologia também, visto que, para o

autor do Curso de Lingüística Geral , não há nada mais adequado que alíngua para fazer-nos compre-ender a natureza do problema semiológico, mas, para formulá-lo convenientemente, é necessárioestudar a língua em si8, tomada como um objeto autônomo e homogêneo.

Os dois movimentos epistemológicos realizados por Saussure, e abordados nesta seção, confe-rem à Lingüística um domínio (o da Semiologia) e um objeto (a língua) próprios. A implicação que dissodecorre é que, com essa delimitação, passa a ser possível se produzir, no interior desse campo, um tipode conhecimento sistemático, preciso e objetivo, bem aos moldes do paradigma dominante de cienti-cidade da época. Como bem nos arma o mestre genebrino,

com o outorgar à ciência da língua seu verdadeiro lugar no conjunto do estudo da linguagem, situamos ao mesmotempo toda a Lingüística. Todos os outros elementos da linguagem [...] vêm por si mesmos subordinar-se a esta primei-ra ciência [...]. (SAUSSURE, 2006, p. 26; grifos nossos)

7 A Semiologia, por sua vez, constituiria, para Saussure, uma parte da Psicologia Social e, por conseguinte, da Psicologia Geral.8 Saussure, a partir dessa colocação, faz referência aos estudos que sempre abordam a língua em função de outra coisa, sob outros pontosde vista: a) o ponto de vista do grande público, que vê na língua somente uma nomenclatura; b) o ponto de vista do psicólogo, que estudao mecanismo do signo no indivíduo, não atingindo a sua natureza social; c) o ponto de vista daqueles que percebem que o signo deve serestudado socialmente, mas detêm-se apenas sobre os caracteres da língua que a vinculam às outras instituições, às que dependem mais ou

menos de nossa vontade, o que, de acordo com o autor, coloca toda a pesquisa fora de foco, visto que se negligenciam as características quepertencem somente aos sistemas semiológicos em geral e à língua em particular.

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Texto complementar

Objeto observacional e objeto teórico(BORGES NETO, 2004, p. 34-38)

O mundo das aparências (o mundo das coisas tais como se apresentam) é um mundo de diversi-dade: pouco ou nada há de comum na multiplicidade de coisas individuais que parecem diferir radi-calmente umas das outras. As ciências, assim como outras espécies de saber, fazemreduções parciais da diversidade, isto é, recortam o campo da diversidade observacional de maneiras que lhes parecemapropriadas para o tipo de entidades e de explicações que lhes são preferenciais. [...]

Toda teoria delimita uma certa “região” da realidade como seu objeto de estudos. Uma teoriada luz trata de fenômenos luminosos e não dos sons ou de movimentos dos corpos; uma teoria daquímica trata das combinações e das reações entre as substâncias químicas, mas não trata das sen-sações gustativas que essas substâncias despertam nas pessoas, nem trata de estabelecer a naturezados locais geológicos onde as substâncias podem ser encontradas. As disciplinas cientícas, enm,fazem uma espécie de “loteamento” da realidade, cabendo a cada uma delas um dos “lotes”. [...] Oobjeto observacional de uma teoria é, em princípio, a “região” que a teoria privilegia como foco de suaatenção e é constituído por um conjunto de fenômenos observáveis.

Um erro comum é supor que as divisões da ciência correspondem a divisões naturais da rea-lidade. Isso equivale a supor que, pelo fato de alguém ter direitos adquiridos sobre certo território,as fronteiras desse território correspondem a alguma divisão natural. As delimitações dos objetosobservacionais não são neutras, ou seja, não é a própria realidade que diz como quer ser seleciona-da. O “loteamento” do observacional é resultado de um trabalho humano sobre a realidade e, emconseqüência, já é um primeiro momento de teorização.

[...]

Delimitado o objeto observacional, a teoria vai identicar entidades básicas, a partir das quaisvai atribuir propriedades aos fenômenos pertencentes ao campo e vai estabelecer relações entreeles, transformando oobjeto observacionalem objeto teórico.

Os cientistas em geral agem como aquele bêbado da piada, que procurava a chave do carro

embaixo do poste de iluminação porque ali estava mais claro, embora a tivesse perdido em outrolugar. Oobjeto teórico é construído a partir da escolha das entidades básicas, do objetivo geral doestudo (“fazer ciência”, por exemplo) e do nível de adequação pretendido; e é com essas “luzes” queo cientista vai olhar a diversidade do observacional, só vendo ali o que as “luzes” lhe permitem ver.Se a “chave” estiver ali, muito bem; se não estiver, paciência.

Teorias diferentes podem construir objetos teóricos distintos sobre um objeto observacionalque é supostamente o mesmo, bastando para isso reconhecer entidades básicas, predicados e rela-ções diferentes no objeto observacional. Vejamos isso num exemplo.

(1) O indivíduo A dirige-se ao indivíduo B e pronuncia as seguintes palavras:“João não viu o menino que trouxe o pacote”.

Os estudos da linguagem e a constituição do campo da Lingüíst

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Consideremos que o que está no exemplo (1) é uma descrição de um fenômeno pertencenteao objeto observacional da lingüística. Agora vejamos o que algumas teorias “selecionam” deste

fenômeno e que propriedades atribuem a ele.A gramática gerativa ignora o contexto concreto em que o enunciado (o conjunto de palavras)

ocorreu e concentra-se apenas nele. Entende o enunciado como umaestrutura supercial à qual seassociam, por meio de um conjunto de regras, estruturas mais abstratas [...]. Na verdade, a gramá-tica gerativa só vai se ocupar do conjunto de regras e princípios (com destaque para os universais)que permitem que os falantesgerem sentenças de sua língua, entre as quais a sentença enunciadano episódio descrito em (1).

O lósofo John Austin, por outro lado, encararia (1) sob um ponto de vista completamentediferente. Para ele, A realiza umato de fala assertivo com o qual pretende queB tome conhecimentodo conteúdo proposicional do enunciado. [...]

Oswald Ducrot, com suasemântica argumentativa, veria no enunciado de A uma negação polê-mica, em que A contesta a armação de que João teria visto o menino que trouxe o pacote. [...]

O que vemos nesses exemplos é que, embora o objeto observacional seja, em princípio, o mes-mo para todas as teorias, os objetos teóricos são extremamente distintos.

[...]

A denição do objeto teórico “cria” uma realidade particular da teoria. Em outras palavras, ateoria cria um mundo todo seu, que não se confunde com o mundo tal como o observamos. Essemundo teórico é povoado não só pelos fatos observáveis (fenômenos) como também pelasentida-des teóricas.

Estudos lingüísticos1. Por que, de acordo com Câmara Jr., o Estudo Histórico da Linguagem e o Estudo Descritivo da

Linguagem são estudos cientícos?

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2. Quais são as exigências postas pelo paradigma cientíco dominante do nal do século XIX e iníciodo século XX, momento da constituição da ciência da linguagem ou Lingüística?

Os estudos da linguagem e a constituição do campo da Lingüíst

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3. Quais são os dois movimentos epistemológicos que Saussure realiza para constituir o campo daLingüística?

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Os estudos lingüísticosdo século XIX: a gramática

comparada e histórica

Primeiras consideraçõesO século XIX em Lingüística caracterizou-se pelos estudos comparatistas e históricos da língua.

Esses estudos desenvolveram um método de manipulação dedados lingüísticos enquanto dados lin-güísticos e trataram, pela primeira vez, a linguagem em si mesma e por si mesma, sem abordá-la emfunção de outros projetos, ou seja, sem subordiná-la ao estudo da retórica, da lógica, da poética ouda losoa.

O início desses estudos do século XIX se deu a partir da descoberta da língua brahmi (sânscrito)por eruditos e tradutores ingleses, no nal do século XVIII. William Jones (1746-1794), promotor inglêda Sociedade Asiática e juiz que exercia seu ofício na burocracia colonial em Calcutá, ao entrar emcontato com o sânscrito (1786), percebeu que essa língua, o latim e o grego apresentavam muitas a-nidades tanto nas raízes dos verbos quanto nas formas gramaticais. A partir dessas observações, Joneslevantou a hipótese de que tantas e tão grandes semelhanças não poderiam ser atribuídas ao acaso: aocontrário, deveriam servir de evidência de que essas três línguas tinham uma origem comum.

Esse evento acaba por desencadear na Europa um movimento de estudos comparativos e histó-ricos. Nesses estudos, essa mesma constatação a que chegou Jones foi recuperada por vários pesqui-sadores, dando origem a um grande desenvolvimento no conhecimento sobre a linguagem e sobre aformação das línguas. Esse trabalho investigativo também permitiu que fosse agrupada uma grandequantidade de dados lingüísticos, além de possibilitar que se incorporassem aos estudos da linguagem,de modo denitivo, alguns princípios:

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o de que é possível, por meio da comparação dos elementos gramaticais das línguas:: 1, estabe-lecer as correspondências formais entre elas;

o de que as línguas mudam no tempo;::

o de que é possível relacionar grupos de línguas, por elas terem uma demonstrável origem::comum (a metáfora defamílias de línguas é formulada nesse contexto);

o de que é possível reconstruir, por comparações e inferências, vários aspectos desses estágios::anteriores não documentados.

O sucesso inicial desse empreendimento comparativo e histórico foi muito grande, mas o seuefeito foi ainda maior. As correspondências encontradas entre as línguas estudadas eram apresentadasem enunciados descritivos que tinham, conforme descreve Faraco (2004, p. 30), mais ou menos a se-guinte forma:

“Dados os elementos a, b, c numa língua X e o contexto estrutural E, resultaram, na língua Y ou nasub-família W, as mudanças p, q, r.”

Esse tipo de enunciado, denidor de bloco de correspondências entre as línguas e bem caracte-rístico dos estudos histórico-comparativos, “vai favorecer a construção da idéia da imanência, isto é, daidéia de que fatos lingüísticos são condicionados só e apenas por fatos lingüísticos” (FARACO, 2004, p.31), o que será decisivo para a fundação da Lingüística como um campo cientíco de estudos da lingua-gem, cujo marco simbólico é o trabalho de William Jones, em 17862.

A construção da idéia de imanência pode ser observada na intuição, que perpassou todo o sécu-

lo XIX, de que as línguas humanas são totalidades organizadas. Essa intuição teve uma formulação notrabalho de A. Schleicher (1821-1867), botânico de formação e adepto do pensamento evolucionista desua época, que concebia a língua como umorganismo vivo “com existência própria independente deseus falantes, sendo sua história vista como uma ‘história natural’, isto é, como um uxo que se realizapor força de princípios invariáveis e idênticos às leis da natureza” (FARACO, 2004, p. 33). Essa concepçãode língua de Schleicher é extremamente coerente com sua posição teórica frente à Lingüística: para ele,a Lingüística pertence às ciências naturais e sua cienticidade decorre disso.

Uma outra formulação da intuição de que as línguas são totalidades organizadas aparece no tra-balho de W. D. Whitney (1827-1894). O lingüista concebe que cada língua é uma instituição social, quefunciona, portanto, de acordo com leis próprias. Ferdinand Saussure admirava muito essa formulação

de Whitney a ponto de assumi-la no seuCurso de Lingüística Geral , desenvolvendo-a e levando-a às últi-mas conseqüências – no interior de sua proposta teórica, obviamente. Na verdade, como analisa Faraco(2004), é Saussure que dará o arremate ao senso de sistema autônomo que atravessou o século XIX,elaborando a idéia de que a língua é um sistema de signos independente.

Feitas essas considerações, apresentaremos, a seguir, um pouco do debate teórico do século XIX,a partir das formulações e reformulações em torno da problemática da mudança lingüística. Para tanto,seguiremos Faraco (2004; 2005).

1 Por isso a denominaçãogramática comparada.

2

O marco simbólico da fundação daLingüística enquanto ciência é 1786 (século XVIII), com o trabalho de William Jones. O marco simbólico dafundação daLingüística moderna é 1916 (século XX), com a publicação do Curso de Lingüística Geral,de Ferdinand Saussure.

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Um pouco do debate: formulações e reformulaçõe

em torno da problemática da mudança lingüísticaDe acordo com Faraco (2004), na seqüência da apresentação dos resultados do trabalho deWilliam Jones, houve uma verdadeira febre de estudos sânscritos:

escreveram-se gramáticas e dicionários;::

fundou-se, em 1795 em Paris, a Escola de Estudos Orientais, centro importante de investigação::histórico-comparativa;

Friedrich Schlegel (1772-1829) e Franz Bopp (1791-1867), intelectuais que estudaram na Escola::de Estudos Orientais, desenvolveram a chamada gramática comparativa;

F. Schlegel publicou, em 1808, seu texto:: Sobre a língua e a sabedoria dos hindus, que é conside-rado o ponto de partida dos estudos comparativos germânicos;

F. Bopp publicou, em 1816, seu livro:: Sobre o Sistema de Conjugação da Língua Sânscrita emComparação com o da Língua Grega, Latina, Persae Germânica, em que, pela comparaçãodetalhada da morfologia verbal de cada uma dessas línguas, demonstrou as correspon-dências sistemáticas que havia entre elas, fundamento para se revelar empiricamente seuefetivo parentesco.

Todos esses estudos criaram ométodo comparativo, procedimento central nos estudos delingüística histórica. A partir do método comparativo, descreve-se uma língua (sua forma fonética, suaorganização sintática etc.) não por meio de uma análise interna dela mesma, mas pela comparação comoutras diferentes línguas.

O estudo propriamente histórico, entretanto, estabeleceu-se apenas mais tarde, com JacobGrimm (1785-1863), um dos irmãos que caram famosos como coletadores de histórias infantis tradicio-nais. Em seu livroDeutsche Grammatik , Grimm interpretou a existência de correspondências fonéticassistemáticas entre as línguas comoresultado de mutações regulares no tempo. O estudioso chegou a essaconclusão após analisar o grupo germânico das línguas indo-européias, que tinha seus dados distribu-ídos em uma seqüência de 14 séculos, o que possibilitou o estabelecimento da sucessão histórica dasformas que estava comparando. A partir de seus estudos, cou claro, arma Faraco (2004, p. 33), “que asistematicidade das correspondências entre as línguas tinha a ver com o uxo histórico e, mais especi-camente, com a regularidade dos processos de mudança lingüística”.

Há, portanto, uma diferença importante entre o trabalho de Bopp, anteriormente citado, em queo lingüista buscava estabelecer o parentesco entre as línguas a partir do estudo de textos de diferenteslínguas, sem, entretanto, pretender seguir nenhuma cronologia entre eles, e o trabalho de Grimm, que,diferentemente, pretendia estabelecer a sucessão das formas que descrevia. Essa foi a primeira altera-ção substancial que ocorreu no direcionamento dos estudos lingüísticos do século XIX.

No último quarto desse século, ocorreu também uma nova alteração nesse direcionamento. Umanova geração de lingüistas relacionados com a Universidade de Leipzig propôs um novo programa depesquisa questionando os pressupostos tradicionais da prática histórico-comparativa e estabelecendouma orientação metodológica diferente, bem como um conjunto de postulados teóricos para a inter-

pretação da mudança lingüística. O ano de 1878 é considerado o marco inicial desse novo movimentoteórico, que cou conhecido como omovimento neogramático. Nesse ano, ocorreu a publicação do

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primeiro número da revista fundada por Hermann Osthoff (1847-1909) e Karl Brugmann (1849-1919),intitulada Investigações morfológicas. O prefácio, assinado pelos dois autores, é tido como o manifestoneogramático. Conforme nos relata Faraco (2004), nesse prefácio Osthoff e Brugman criticaram a con-cepção de língua que a via como possuindo uma existência independente e postularam que, ao invésdisso, a língua deveria ser vista como ligada ao indivíduo falante, porque as mudanças lingüísticas seoriginam nele. Esse postulado introduziu uma orientação psicológica subjetivista na interpretação dosfenômenos de mudança.

Osthoff e Brugman também armavam que o objetivo principal do pesquisador não era chegar àlíngua original indo-européia (uma criação hipotética), mas apreender a natureza da mudança, a partirdo estudo de línguas vivas atuais. Isso porque o que lhes interessava era investigar os mecanismos damudança e, a partir deles, desvendar os princípios gerais do movimento histórico das línguas e nãoapenas reconstruir estágios remotos das mesmas. Nesse sentido, avalia Faraco (2004, p. 35), o que setem aqui é uma perspectiva diferente para os estudos históricos: “trata-se antes de criar uma teoria damudança do que apenas arrolar correspondências sistemáticas entre línguas e, a partir delas, recons-truir o passado”.

Para estabelecer seus postulados, portanto, os dois autores criticaram tanto o objetivo central,quanto o pressuposto de independência das línguas, formulados pela geração de lingüistas anterior.Osthoff e Brugman criticavam ainda, em seus antecessores, o fato de eles facilmente interpretaremas irregularidades percebidas no processo da mudança lingüística como exceções fortuitas e casuais.De acordo com os neogramáticos, interpretar as irregularidades dessa maneira signicaria admitir queas línguas não são suscetíveis de estudo cientíco. Contrapondo-se a essa situação, eles estabelece-ram que “as mudanças sonoras se davam num processo de regularidade absoluta, isto é, as mudançasafetavam a mesma unidade fônica em todas as suas ocorrências, no mesmo ambiente, em todas aspalavras, não admitindo exceções” (FARACO, 2004, p. 35). Se houvesse exceções, isso ocorreria por umdos dois motivos:

o princípio efetivo ainda não tinha sido descoberto;::

a regularidade da mudança tinha sido afetada pelo processo de:: analogia.

A hipótese de que, se houvesse exceções era porque o princípio da mudança ainda não tinha sidodescoberto, foi inspirada, conforme Faraco (2005), pelo trabalho de Karl Verner (1846-1896). Explicaremosem que sentido.

Jacob Grimm havia formulado um princípio sobre a mudança lingüística que cou conhecidocomo a lei de Grimm. O lingüista postulou, para o germânico, uma mutação que adveio do períodopré-histórico dessa língua. Essa mutação foi resumida por Lyons (apud PAVEAU; SARFATI, 2006, p. 13) daseguinte maneira:

“As consoantes aspiradas indo-européias (bh, dh, gh) tornaram-se não-aspiradas (b, d, g); as con-soantes sonoras (b, d, g) tornaram-se surdas (p, t, k); e as consoantes surdas (p, t, k) tornaram-seaspiradas (f, th3, h).”

Essa série de correspondências atesta um mecanismo de mutação de consoantes, o que permitiuque Grimm formulasse o pressuposto de que “a mudança fonética é uma tendência geral” (PAVEAU;SARFATI, 2006, p. 13), apesar de não ocorrer sempre que há condições para isso. Verner, por sua vez, es-

3 O símbolo /th/ é equivalente ao /θ/, que usaremos a seguir. Esse fonema representa o som doth no inglês (por exemplo, emthink ).

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tudando também a mutação das consoantes no ramo germânico das línguas indo-européias, demons-trou que as exceções – isto é, os casos em que, para Grimm, supostamente não ocorre a mudança –eram apenas aparentes. Em um artigo de 1875, Verner mostrou que as consoantes do indo-europeu /p//t/ /k/ haviam se transformado em /f/ /θ/ /h/, no ramo germânico, somente quando, no indo-europeu,as consoantes não ocorriam depois de sílabas fracas. Se, entretanto, ocorressem antes de sílabas fracas,/p/ /t/ /k/ se transformariam em /b/ /d/ /g/. Desse modo, o lingüista pôde demonstrar que

as mudanças não haviam afetado uniformemente aquelas três unidades tomadas em si (como estava na formulaçãode Grimm): na verdade, elas haviam passado por processos diferentes de mudança (mas ainda regulares) conforme suaocorrência num ou noutro tipo de contexto lingüístico. (FARACO, 2005, p. 142)

Essa formulação, que introduzia o ambiente lingüístico das unidades como condicionante do tipode mudança que elas sofreriam, recebeu o nome delei de Verner . Tal lei, além de reforçar a conança doslingüistas no princípio da regularidade da mudança, também inspirou a hipótese dos neogramáticos, járeferida anteriormente, de que a regularidade da mudança sonora era absoluta, pois estava subordinadaa leis – chamadas leis fonéticas – que não admitiam exceções: as leis se aplicariam a todos os casos subme-tidos às mesmas condições. Isso fez com que os lingüistas buscassem formulá-las com precisão ou, então,em último caso, fornecessem boas explicações para os casos das palavras que deveriam ter sido alteradasconforme determinadas leis fonéticas, mas não foram. A “boa explicação” que formularam para tais casosfoi que a regularidade da mudança é, conforme já apontado, afetada pelo princípio deanalogia .

Amudança por analogia era entendida como a alteração na forma fonética de certos elementosde uma língua por interferência de seus paradigmas gramaticais regulares. Ou seja: quando uma mu-dança sonora ocorresse em um elemento e afetasse certos padrões gramaticais, era possível “reticar”isso, mudando a forma resultante da mudança, de maneira a colocá-la nos moldes dos padrões gra-maticais regulares da língua. Como exemplo, consideraremos a palavra latinahonor e algumas de suasformas de declinação:

honos – honosis, honosem

honos – honoris, honorem

De acordo com os estudos comparativistas, os original, reconstruído do indo-europeu, manteve-setanto em posição nal quanto em posição inicial de palavra. Em posição intervocálica, no entanto, mudoupara r . Desse modo, de uma fase anterior, em que ocorria somentes (honos – honosis, honoses), passou-se auma fase em que os só era encontrado em posição nal de palavra. Nos demais contextos,s transformava-

se emr (honos – honoris, honorem

). Essa é alei fonética

que explica essa mudança.Como explicar, então, que em latim não temoshonos, mas honor ? Como explicar essa irregula-

ridade? Explica-se pelo princípio da analogia. A lei da mudança fonética, sempre aplicada a todos oscasos, gerahonos, mas, devido à pressão exercida pelo padrão morfológico da língua, em relação às pa-lavras terminadas emr (como cultor, cultoris; amor, amoris; labor, laboris),honos transforma-se emhonor .Ou seja, alei fonética é aplicada gerandohonos (portanto não há exceções nem irregularidades no planofônico) e, por analogia, é que se chega à formahonor . É por essa razão que, para os neogramáticos, asexceções às leis fonéticas eram apenas aparentes.

Esse rigor metodológico dos neogramáticos no enfrentamento dos problemas da mudança lin-güística foi muito importante no desenvolvimento da lingüística histórica, pois introduziu “o desao deque os resíduos deviam receber uma análise completa, não aceitando que fossem vistos como meros

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desvios ou ocorrências casuais, fortuitas” (FARACO, 2004, p. 37). Entretanto, os estudos empíricos vie-ram mostrar que a realidade da história das línguas é muito mais complexa e, por isso, soluções parafenômenos irregulares, por meio de conceitos como o da analogia, ou por meio de qualquer outro decaráter puramente interno, não auxiliam muito no real desvendamento dessa complexidade. É preciso,como apontaram as diversas críticas feitas aos neogramáticos, que se assuma um arcabouço teóricoque também leve em conta, para a compreensão dos fenômenos da mudança lingüística, as relaçõesentre língua e sociedade, tal como têm considerado os estudos de sociolingüística. O imanentismo,para esclarecer fenômenos relacionados à história das línguas acaba por obscurecer a compreensão detais fenômenos.

Um outro ponto também bastante questionado na proposta dos neogramáticos diz respeito aopsicologismo e ao subjetivismo que estavam na base da concepção desses teóricos. A redução da lín-gua à psique individual (as mudanças lingüísticas se originam nos falantes), explica Faraco (2004, p. 38),“simplica as questões, ao desconsiderar as complexas questões que estão envolvidas na constituição efuncionamento da psique, em especial a tensão entre o social e o individual”.

Texto complementar

Características da mudança(FARACO, 2005, p. 44-51)

[...] Vamos agora discutir algumas características dessa mudança, esclarecendo certos concei-tos que são hoje mais ou menos consensuais entre os lingüistas e que, muitas vezes, colidem comtradicionais julgamentos do chamado senso comum, isto é, com as representações que se têm darealidade lingüística em contextos não-cientícos. [...]

A mudança é contínuaA primeira característica é que a mudança se dá em todas as línguas. É próprio de todas elas

– como, aliás, de qualquer outra realidade humana e até mesmo da natureza em geral, como nosmostram geólogos e biólogos – passar por transformações no correr do tempo, mutabilidade quese dá de forma contínua, ininterrupta.

Assim, cada estado de língua, denível no presente e em qualquer ponto do passado, é sem-pre resultado de um longo e contínuo processo histórico; do mesmo modo que, em cada momentodo tempo, as mudanças estão ocorrendo, ainda que imperceptíveis aos falantes. Dessa maneira, seo português do século XIII era diferente do português de hoje, o português do futuro será diferentedo de hoje: entre eles há um ininterrupto processo de mudança.

É óbvio que, se uma língua deixar de ser falada, ela não conhecerá mais, por isso mesmo,

mudanças. O desaparecimento de uma língua é resultado do desaparecimento da própria so-

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ciedade que a fala, ou porque integralmente aniquilada, como no caso de muitas sociedadesindígenas no Brasil desde 1500; ou porque progressiva e completamente assimilada por outra,

como no caso da assimilação da sociedade etrusca pela romana no século III a.C.Nesses casos, o desaparecimento total da língua interrompe o uxo histórico. Diferente é,

porém, a situação de línguas como o latim. Nenhuma sociedade fala hoje o latim propriamentedito. Contudo, de certa maneira, ele continua sendo falado, embora de forma bastante alterada,pelas sociedades que falam as chamadas línguas românicas como o português, o espanhol, ofrancês, o italiano, o romeno, o sardo, o catalão.

Nesse caso, embora se possa dizer que o latim está há muito extinto, o uxo histórico nuncase interrompeu: houve um longo, complexo e, principalmente, ininterrupto processo histórico detransformações do latim que resultou nas diferentes línguas românicas.

Da mesma forma, o latim era um estágio de uma história ininterrupta que recua às remotase perdidas origens pré-históricas dos povos indo-europeus. O que era nesse longínquo ponto dotempo apenas um conjunto de variedades dialetais é hoje um emaranhado universo de línguasraramente compreensíveis entre si, resultado de milênios e milênios de ininterruptas mudançase de contínua diferenciação.

A mudança é lenta e gradualO que deve car claro, nessa altura, é que se, de um lado, a mudança lingüística é contínua

como estamos discutindo; ela é, por outro lado, lenta e gradual, isto é, a mudança nunca se dá abrup-

tamente, do dia para a noite. Ao mesmo tempo, a mudança de uma língua para a outra, ou de umestágio de língua para outro, nunca ocorre de forma global e integral: as mudanças vão ocorrendogradativamente, isto é, vão atingindo partes da língua e não o seu conjunto; e mais: a gradualidadedo processo histórico se evidencia ainda pelo fato de que a substituição de uma forma (x) por outra(y) passa sempre por fases intermediárias. Há o momento (quase sempre longo) em que o x e y co-existem como variantes; depois há o momento (também normalmente longo) da luta entre o x e yseguida do desaparecimento de x e da implementação hegemônica de y.

Daí se dizer, em lingüística histórica, que a mudança não é discreta, ou seja, x não é trocadodiretamente e de imediato por y; ao contrário, há sempre, no processo histórico, períodos de coexis-tência e concorrência das formas em variação até a vitória de uma sobre a outra.

Por isso, nunca é possível dizer que num determinado momento o latim, por exemplo, deixourepentinamente de ser falado e foi integralmente substituído pelo português: as mudanças foramlenta, gradual e continuamente ocorrendo e resultaram, ao cabo de vários séculos, numa forma defalar que, identicada com o Estado que se formou no ocidente da Península Ibérica, terminou porreceber o nome de português.

Ou, dito de outra maneira e usando as palavras de Câmara Jr.,é inconcebível, por exemplo, que de súbito, no território lusitânico da Península Ibérica, uma forma latina comolupum pudesse ter passado imediatamente para lobo, sem a longa cadeia evolutiva que na realidade se vericou.(1972a, pp. 35-36)

[...]

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Costuma-se justicar a lentidão e a gradualidade da mudança lingüística com fundamento nanecessidade dos falantes de terem a intercomunicação permanentemente garantida. Nessa linha

de raciocínio, mudanças abruptas e repentinas são impossíveis, pois se, ocorressem, destruiriam aspróprias bases de interação socioverbal.

Não há, nesse sentido, na história das línguas, momentos de transformações radicais, numponto bem localizado do tempo, de uma estrutura lingüística. O que há é um processo contínuo eininterrupto, mas lento e gradual, de mudança.

O que pode haver são períodos em que as mudanças parecem se intensicar. Exemplo dissosão as muitas mudanças por que passou o inglês durante o século e meio posterior à conquista daInglaterra pelos normandos de 1066, época em que a língua da administração e da classe dominantefoi o francês. Mesmo aí, porém, o processo de mudanças, embora relativamente mais rápido, foiapenas gradual (atingiu partes da língua) e sucientemente lento, a ponto de nunca inviabilizar ainteração socioverbal.

[...]

A mudança é (relativamente) regularOutro aspecto que caracteriza a mudança lingüística é a sua regularidade. Isso quer dizer que,

dadas as mesmas condições (isto é, no mesmo contexto lingüístico, no mesmo período de tempo ena mesma língua ou variedade de uma língua), um elemento – quando em processo de mudança –é, progressiva e normalmente, alcançado em todas as suas ocorrências.

Em outras palavras, observa-se que as mudanças lingüísticas não são fortuitas, nem se dão aesmo, sem rumo. Desencadeada a mudança, há regularidade e generalidade no processo, atingindode forma bastante sistemática o mesmo elemento, dadas as mesmas condições, em todas as suasocorrências.

Assim, por exemplo, os encontros consonantais /kl-/ e /pl-/ do latim se transmudaram regu-larmente, quando no início da palavra, na consoante /-/ em espanhol (grafada ll) e na consoante/ -/ em português (grafada ch), como se pode observar pela seguinte listagem de correspondências:

Latim Espanhol PortuguêsClamare llamar chamar

clave llave chave

plenu lleno cheio

plicare llegar chegar

A regularidade observada na mudança lingüística nos permite estabelecer correspondênciassistemáticas entre duas ou mais línguas ou entre dois ou mais estágios da mesma língua, tornandoassim possível a reconstituição da história.

Foram justamente essas correspondências sistemáticas que forneceram a base inicial paraa constituição da reexão histórica em lingüística. Foi a partir da percepção da sistematicidade

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de correspondências entre línguas diferentes que se chegou, no início do século XIX, ao chamadométodo comparativo [...], com o qual foi possível revelar cienticamente o efetivo parentesco en-

tre línguas, reuni-las em grupos (metaforicamente chamados de famílias) e reconstituir aspectosde seus estágios anteriores comuns.

Foi nesse mesmo processo – à medida que também se percebeu ser a sistematicidade dessascorrespondências resultado de sucessivas mudanças no eixo do tempo – que se construíram os es-tudos propriamente históricos. [...]

Deve car claro, nesse ponto, que, embora a regularidade seja uma característica da mudançalingüística, ela nunca deve ser entendida como absoluta.

Estudos lingüísticos1. Enumere os princípios incorporados aos estudos da linguagem a partir do trabalho investigativo

comparativo e histórico.

Os estudos lingüísticos do século XIX: a gramática comparada e his

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2. Qual a concepção de língua subjacente nos estudos realizados pelos neogramáticos?

3. A idéia deimanência atravessou todo o século XIX. Cite dois trabalhos que deram uma formulaçãopara a intuição de que as línguas humanas são totalidades organizadas.

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4. O procedimento central nos estudos de Lingüística Histórica foi o método comparativo. O que sepodia fazer a partir desse método?

Os estudos lingüísticos do século XIX: a gramática comparada e his

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Ferdinand Saussure e afundação da

Lingüística sincrônicaOs manuais de Lingüística tradicionalmente atribuem ao lingüista suíço Ferdinand Saussure

a fundação da Lingüística moderna, a partir da publicação, em 1916, do seuCurso de Lingüística

Geral– obra póstuma organizada por dois colegas do lingüista (Charles Bally e Albert Sechehaye),a partir de notas dos alunos de um curso ministrado por ele, entre os anos de 1907 e 1911 na Uni-versidade de Genebra, sob o título de “Lingüística geral”. Entretanto, se, por um lado, a publicaçãode uma obra, pelas diretrizes que coloca e pelos efeitos que desencadeia, pode ser tomada comomarco de fundação de uma nova época na Lingüística, por outro é muito pouco para esclarecer osdeslocamentos efetivamente realizados para a constituição desse novo momento. Nesse sentido,o objetivo aqui será pontuar, minimamente, que deslocamentos foram esses, ou, mais especifica-mente, apresentar as coordenadas do pensamento de Saussure, que colocaram a Lingüística emum outro eixo de reflexões.

Apresentaremos, pois, as clássicas concepções saussurianas – as dicotomiassincronia/diacronia

e língua/fala, bem como a noção designo lingüístico –, relacionando-as de modo a tecer o coeso ecoerente quadro teórico concebido pelo mestre genebrino.

O campo da Lingüística: domínio e objeto bem deA problemática da cienticidade perpassa, direta e indiretamente, toda a reexão doCurso de Lin-

güística Geral : constituir um domínio especíco para a Lingüística, diferente do domínio de outras áreasque estudam a linguagem humana, e denir um objeto próprio de estudo eram questões de granderelevância para Saussure. Esses dois gestos – de constituição de um domínio e de um objeto próprios

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à Lingüística –, entretanto, exigiam a proposição de uma rede conceitual complexa e implicada, demodo que a própria teoria pudesse produzir seu objeto e reproduzi-lo sistematicamente. Nas palavrasdo próprio Saussure (2006, p. 15): “Bem longe dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos queo ponto de vista cria o objeto”. Por esse motivo, buscaremos apresentar os conceitos de modo que sejapossível perceber que a denição de cada um deles recorre à existência, na própria teoria, de outrosconceitos que dele decorrem e ao mesmo tempo o sustentam.

Começaremos pelo conceito delíngua – que, de acordo com o lingüista suíço, deve ser tomadacomo o objeto próprio da Lingüística e, por isso, ocupar o primeiro lugar entre os fatos de linguagem.Mas, para compreender adequadamente o conceito delíngua, é preciso considerá-lo em relação a doisoutros conceitos, a saber, os delinguagem e fala.

Linguagem, língua e falaPara Saussure, alinguagem é a soma da língua mais afala:

Linguagem = língua + fala

De início, já é possível perceber, pela equação, que alíngua não se confunde com alinguagem,é apenas uma parte determinada e essencial dela. Não se confunde também com afala, apesar de te-rem em comum o fato de serem componentes da linguagem humana. Trataremos de cada um desseselementos.

A língua, conforme denida noCurso, é, ao mesmo tempo, “um produto social da faculdade delinguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exer-cício dessa faculdade no indivíduo” (SAUSSURE, 2006, p. 17). Em outras palavras, alíngua existe na cole-tividade sob a forma de uma soma de sinais depositados em cada cérebro; pode ser comparada a umdicionário (acrescido de uma gramática), cujos exemplares foram distribuídos entre os indivíduos deuma sociedade. Assim, alíngua está em cada um desses indivíduos como um conhecimento arquivadona mente, sendo, nesse sentido, de natureza psíquica, mas não de natureza individual. Alíngua é denatureza social, por se tratar de um conhecimento convencional, partilhado pela comunidade lingüísti-ca que fala uma determinada língua. Uma primeira caracterização que temos da língua, portanto, é queela é de natureza psíquica e social:

Trata-se deum tesouro depositado pela prática da falaem todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, umsistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente,nos cérebros de um conjunto de indi-víduos, pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo. (SAUSSURE, 2006, p.21; grifos nossos)

Afala, diferentemente, é de natureza individual: trata-se de uma parcela dalíngua, selecionadapor um falante para seus propósitos individuais de comunicação em uma situação concreta especíca.Afala constitui, pois, uma função do falante: é ele que, em um ato individual de vontade, exprime seupensamento pessoal por meio das combinações pelas quais realiza o código dalíngua – isto é, pormeio das combinações pelas quais operacionaliza um sistema gramatical. Afala é, portanto, de natu-reza individual e, sendo assim, extremamente variável e heterogênea, não se prestando a uma análiseobjetiva e cientíca. Diferentemente, a língua, por ser uma convenção, um bem partilhado socialmente,

é homogênea1, possibilitando que se faça de si uma abordagem cientíca. Por isso é considerada a1 Estamos nos referindo, com Saussure, à homogeneidade do funcionamento do sistema da língua.

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parte essencial dalinguagem – que, por ser a soma dalíngua e da fala, é multiforme e heteróclita, vistoque pertence ao mesmo tempo ao domínio individual e social. Por esse motivo, não se deixa classicar,“pois não se sabe como inferir sua unidade” (SAUSSURE, 2006, p. 17). Nessa perspectiva, somente alín-

gua, homogênea em sua natureza, pode ser objeto de estudo cientíco.

O signo lingüístico e suas implicações com as noções de línguUma outra denição delíngua apresentada no Curso é a de que a “língua é um sistema de signos

que exprimem idéias” (SAUSSURE, 2006, p. 24). Como é possível perceber, essa denição implica outrdois conceitos – o desistema e o de signo –, que, por sua vez, têm que ser considerados a partir danatureza social e psíquica dalíngua. Consideraremos cada um desses conceitos separadamente, mas demaneira imbricada, iniciando nossa abordagem pelo conceito designo lingüístico.

Antes, porém, é necessário explicitar a centralidade da denição de que “a língua é um sistema designos que exprimem idéias”, na proposta de Saussure. Podemos destacar, nessa denição, dois pontosfundamentais:

tal denição inscreve a Lingüística em um domínio cientíco especíco, o da Semiologia, ci-::ência geral que estuda a vida dos signos (incluindo a escrita dos surdos, os ritos simbólicos, asformas de polidez, os sinais militares etc.) no seio da vida social;

ela estabelece uma associação entre as noções de “signo” e de “língua enquanto sistema”, asso-::ciação esta que denirá o cerne de toda reexão saussuriana.

O signo lingüísticoSaussure dene osigno lingüístico como uma entidade psíquica de duas faces, que pode ser

representada pelos esquemas (Figura 1) a seguir:

Figura 1

Conceito

ImagemAcústica

Signicado

Signicante

Os termos implicados nosigno lingüístico – oconceito e a imagem acústica – são ambos psíquicose estão unidos em nosso cérebro por um vínculo de associação. Aimagem acústica (designada porsigni-cante) não é o som material (físico), mas é o correlato psíquico desse som2, isto é, aquilo que nos evocaum conceito (designado porsignicado). Assim, osignicante e o signicado são entidades mentais inde-pendentes de qualquer objeto externo. Osigno cadeira, por exemplo, não se refere à “cadeira” objeto nomundo, mas resulta da união entre osignicado (o conceito) de cadeira e osignicante, isto é, a imagemacústica que evoca esseconceito. Osigno, assim composto, não une, pois, uma palavra a uma coisa, mas

2 De acordo com Saussure (2006), o caráter psíquico das imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria linguagem:sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema.

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um signicante a um signicado. Trata-se de uma estrutura diádica que rejeita o objeto de referênciacomo um elemento da semiologia, isto é, do estudo dos signos. Para Saussure, o sistema semiológicodá estrutura ao mundo, que, de outra forma, seria amorfo; sua teoria sígnica opera inteiramente nosistema semiótico.

Osigno lingüístico exibe duas características primordiais, a saber:

o caráter arbitrário do:: signo lingüístico;

a linearidade do:: signicante.

Em relação ao caráter linear dosignicante, Saussure arma que, por ser de natureza auditiva, elese desenvolve unicamente no tempo e tem as características que toma do tempo: representa uma ex-tensão, e essa extensão é mensurável em apenas uma dimensão – é uma linha que constitui a extensãoda cadeia falada. O princípio da linearidade dosignicante é fundamental, e suas conseqüências sãoincalculáveis; é ele que permite distinguirmos conceitos como, por exemplo, o de sílaba e o de distribui-ção (em uma língua, as unidades lingüísticas não se dispõem ao acaso, mas em posições determinadas– o artigo em português, por exemplo, coloca-se sempre junto ao substantivo, antecedendo-o e for-mando com ele sintagmas nominais). Todo o mecanismo da língua, portanto, depende desse princípiode linearidade dosignicante, que estrutura todo o plano de expressão.

No que diz respeito à arbitrariedade dosigno, pode-se dizer que ela se expressa pela seguinte for-mulação: o laço que une osignicante ao signicado é arbitrário, no sentido de imotivado, isto é, no sen-tido de não haver nenhum tipo de relação intrínseca de causalidade necessária entre osignicante e osignicado. O exemplo dado pelo próprio Saussure (2006, p. 81-82) para esclarecer essa formulação é oseguinte: “a idéia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à seqüência de sons m-a-r que lheserve de signicante; poderia ser representada igualmente bem por outra seqüência, não importa qual”3.

Arbitrário, portanto, não deve ser compreendido como dependendo da livre escolha do falante,visto que todo meio de expressão aceito em uma sociedade repousa na convenção social, solidária como passado, com o tempo, graças ao qual a escolha se acha axada4.

Saussure, entretanto, distingue duas concepções de arbitrário: um arbitrário absoluto, que se refereà instituição do signo tomado isoladamente, tal como acabamos de apresentar; e umarbitrário relativo,que se refere à instituição do signo enquanto elemento componente de um sistema lingüístico (“a línguaé um sistema de signos”) e sujeito, portanto, às coerções desse sistema. Nessa perspectiva, para melhorcompreendermos a arbitrariedade relativa dos signos lingüísticos, teremos que nos debruçar primeira-mente sobre a noção de sistema, isto é, sobre a noção de língua como sistema. A abordagem dessa noção,

por sua vez, exige que nos debrucemos, antes, sobre a outra grande dicotomia saussuriana, a saber, adicotomiasincronia/diacronia, pois a opção do autor pelo recorte estritamente sincrônico é que possi-bilitará a formulação da noção de sistema.

3 Diferentemente do signo, o símbolo tem como característica não ser jamais completamente arbitrário; ele não está vazio, existe umrudimento de vínculo natural entre osignicante e o signicado. Por exemplo: a balança, símbolo da justiça, não poderia ser substituída porum objeto qualquer, como um carro.4 O próprio tempo, que assegura a continuidade da língua – sistema de signos lingüísticos – tem também outro efeito: o de alterar maisou menos rapidamente os signos lingüísticos. O tempo, portanto, tanto garante a continuidade das convenções sígnicas, quanto trabalhapara o deslocamento dessas convenções. Nesse sentido, pode-se falar, ao mesmo tempo, em imutabilidade e mutabilidade do signo, mas oque é preciso compreender desse movimento é que ninguém (nenhum indivíduo tomado de vontade própria e nem mesmo a massa socialconsiderada como um todo) pode alterar nada na língua. A língua, arma Saussure (2006), situada simultaneamente na massa social e no

tempo, transforma-se sem que os indivíduos possam transformá-la. Essa autonomia da língua decorre da própria noção de sistema, comoveremos mais adiante.

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O recorte sincrônico como condição para a delimi

do sistema lingüístico e para a formulação da teorSaussure dene dois eixos (ver gura 2) sobre os quais a Lingüística pode estudar os fatos da língua:o eixo dassimultaneidades ou eixosincrônico (A-B) e o eixo dassucessividades ou eixodiacrônico (C-D):

Figura 2

A B

C

DO lingüista que se interessasse em estudar os fatos da língua no eixo das sucessividades (C-D)

tomaria como objeto de seu estudo as relações que um fenômeno lingüístico qualquer, localizado aolongo da linha evolutiva do tempo, mantém com outros que o precedem e/ou sucedem na linha da

continuidade histórica. Nesse eixo das sucessões, não se pode considerar mais que uma coisa por vez;considera-se a mudança sofrida por um elemento ao longo da linha do tempo – queseptem em latimoriginou sete em português, por exemplo; ou ainda, no interior da mesma língua (o português, paracar no exemplo), quevossa mercê se transformou emvocê. Trata-se de uma descrição diacrônica (ouhistórica), que se propõe a descrever a mudança lingüística e explicar a sua natureza. Saussure falará emLingüística evolutivaou Lingüística diacrônica5 para se referir a essa lingüística que se propõe a realizarseus estudos sobre o eixo das sucessividades.

Diferentemente, o lingüista que se interessar em estudar os fatos da língua no eixo das simul-taneidades (A-B) deverá descrever e explicar as relações entre fatos coexistentes em um mesmo siste-ma lingüístico (em uma mesma língua) tal como elas se apresentam em um determinado intervalo de

tempo. Trata-se de uma descrição sincrônica, e à lingüística destinada a esse tipo de estudo, SaussuredesignaráLingüística estática ou Lingüística sincrônica.

A perspectiva saussuriana opta, de maneira radical, pelaLingüística sincrônica. A própria noçãode sistema só é possível a partir do estabelecimento da dicotomiasincronia/diacronia e da opção pelasincronia. Explicaremos melhor.

Considere a gura 2, que apresenta o cruzamento dos eixos diacrônico (C-D) e sincrônico (A-B)O eixo sincrônico corta o eixo diacrônico, determinando um ponto. Esse ponto constitui o intervalo detempo em que uma determinada língua será estudada, isto é, constitui o intervalo de tempo (a sincronia)em que as relações entre os fatos que coexistem no interior de um sistema lingüístico serão consideradaspara estudo. Se ampliarmos esse ponto, poderemos perceber, de maneira mais evidente, que ele tem5 Os estudos da língua realizados no século XIX foram predominantemente diacrônicos.

Ferdinand Saussure e a fundação da Lingüística sincrônic

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fronteiras bem estabelecidas, no interior das quais as relações entre fatos lingüísticos coexistentes sedão. Esse espaço assim delimitado constitui a possibilidade do sistema lingüístico, fato radicalmentesincrônico, isto é, possível apenas a partir desse recorte.

Nessa perspectiva, Saussure, ao postular a dicotomiasincronia/diacronia, estabelece umadisjunção entre a evolução de uma língua, passível de ser analisada no eixo diacrônico, e o seu esta-do, vericável a partir do recorte sincrônico. É a sincronia que dene o estado de um sistema, isto é,tudo o que lhe pertence e seu modo especíco de estruturação em determinado espaço de tempo.Em outras palavras, a dicotomiasincronia/diacronia permite separar, de maneira radical, o que é ex-terno do que é interno ao sistema. A denição delíngua enquanto “sistema de signos”, assumida porSaussure, exige, pois, que se elimine dela “tudo o que lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema”(SAUSSURE, 2006, p. 29), visto que ela é um sistema que conhece somente sua ordem própria. Paraesclarecer esse postulado, Saussure compara a língua a um jogo de xadrez, pois, conforme explica,nesse jogo é relativamente fácil distinguir o externo do interno. Nas palavras do autor:

[...] o fato de [o jogo de xadrez] ter passado da Pérsia para a Europa é de ordem externa; interno, ao contrário, é tudoquanto concerne ao sistema e às regras. Se eu substituir as peças de madeira por peças de marm, a troca será indife-rente para o sistema; mas se eu reduzir ou aumentar o número de peças, esta mudança atingirá profundamente a “gra-mática” do jogo. [...] é interno tudo quanto provoca mudança do sistema em qualquer grau. (SAUSSURE, 2006, p. 32)

Cada língua particular (o português, o inglês, o francês, o espanhol, o alemão etc.) constitui umsistema lingüístico especíco, que tem seu próprio conjunto de regras. Entretanto, todos os sistemaslingüísticos particulares se submetem a uma ordem de funcionamento universal6 (no sentido de valerpara todos os sistemas lingüísticos), que se estrutura a partir da teoria do valor . Essa teoria pode, emlinhas gerais, ser compreendida da seguinte maneira: os elementos que pertencem ao sistema não sãodenidos independentemente uns dos outros, visto que não se denem por propriedades intrínsecas

à sua natureza, mas recebem seu valor a partir das relações que estabelecem entre si, no interior de umsistema lingüístico: a “língua é um sistema no qual todas as partes podem e devem ser consideradas emsua solidariedade sincrônica” (SAUSSURE, 2006, p. 102).

Feitas essas considerações, voltemos à questão da arbitrariedade relativa do signo lingüístico. Seconsiderarmos o signo no interior do sistema, a sua arbitrariedade é apenas relativa, pois ele, enquantocomponente de um sistema lingüístico, está sempre submetido às suas regras e sujeito, portanto, às co-erções da língua. Um exemplo esclarecedor talvez seja o empréstimo de palavras estrangeiras. No portu-guês, a incorporação do verbo inglêsto delet gerou o verbodeletar , visto que um termo estrangeiro, ao serincorporado ao sistema de uma língua, “não é considerado mais como tal desde que seja estudado no seiodo sistema; ele existe somente por sua relação e oposição com as palavras que lhe estão associadas, damesma forma que qualquer outro signo autóctone” (SAUSSURE, 2006, p. 31). No caso do exemplo conside-rado, diríamos que, em função da existência, no português, de uma forma produtiva como o suxo verbal{-ar} para marcar o innitivo de verbos7, foi possível produzirdeletar . Ou seja, já existe uma motivaçãorelativa no sistema para se construir, com essa terminação {-ar}, o innitivo de verbos. Em um sistema, atendência é construir sempre, de modo regular, regulares relações de signicados. Por isso a arbitrarieda-de do signo, tomado no interior do sistema, não é absoluta.

Com as considerações feitas, esperamos ter sido possível mostrar que o quadro teórico saussuria-no é bem mais que um conjunto de conceitos; trata-se, antes, como já dissemos anteriormente, de umacomplexa e imbricada rede conceitual, em que cada um dos conceitos envolvidos recorre à existênciade outros que dele decorrem e, ao mesmo tempo, sustentam-no.6 É nesse sentido que se deve compreender que a língua, denida por Saussure como o objeto próprio da Lingüística, é homogênea.7 Em português, pode-se marcar o innitivo também com os suxos {-er} e {-ir}.

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Texto complementar

Estudos pré-saussurianos(FARACO, 2004, p. 27-28)

Os manuais de história da Lingüística costumam apresentar Ferdinand Saussure (1857-1913)como o pai da Lingüística moderna, entendendo por Lingüística moderna os estudos sincrônicospraticados intensamente durante o século XX em contraste com os estudos históricos, que predo-minaram no século anterior.

Embora possamos concordar com essa perspectiva, é preciso não esquecer que o real impac-

to do Curso, publicado postumamente em 1916, só começou a aparecer no m da década de 1920,mais propriamente a partir do Primeiro Congresso Internacional de Lingüística (Haia, 1928), do Pri-meiro Congresso dos Filólogos Eslavos (Praga, 1929) e da Primeira Reunião Fonológica Internacio-nal (Praga, 1930). Foi principalmente nesses três fóruns de grande porte que primeiro apareceramteses de inspiração saussuriana, em especial pelas mãos de Roman Jakobson (1896-1982) e NikolaiTroubetzkoy (1890-1938).

A nova geração de sincronistas só aos poucos foi ocupando o espaço acadêmico na área dosestudos lingüísticos. Nesse sentido, podemos dizer que, na prática, até a Segunda Guerra Mundialpelo menos, a Lingüística continuou a ser, no espaço universitário, uma disciplina fundamental-mente histórica. O século XIX, portanto, não terminou, em Lingüística, tão cedo como muitas vezesos recortes dos manuais chegam a sugerir.

Por outro lado, é inegável que Saussure realizou um grande corte nos estudos lingüísticos. Suasconcepções deram as condições efetivas para se construir uma ciência sincrônica da linguagem. Apartir de seu projeto, não houve mais razões para não se construir uma ciência autônoma a tratarexclusivamente da linguagem,considerada em si mesma e por si mesma, e sob o pressuposto da sepa-ração estrita entre a perspectiva histórica e a não-histórica.

Seu ovo de Colombo foi não só mostrar que a língua poderia (e deveria) ser tratada exclusiva-mente como uma forma (livre das suas substâncias), mas principalmente como essa forma se cons-tituía, isto é, pelo jogo sistêmico de relações de oposição – funcionando esse jogo de tal modo que

nada é num sistema lingüístico senão por uma teia de relações de oposição. E, por outro lado, nadainteressa numa tal perspectiva sistêmica salvo o puramente imanente.

Se o gesto epistemológico saussuriano instaura a possibilidade da imanência (a línguacomo um sistema de signos independente) e, com ela, a de uma ciência autônoma da lingua-gem enquanto uma realidade exclusivamente sincrônica, seria injusto não reconhecer o longoprocesso preparador desse gesto.

Embora à primeira vista haja no gesto de Saussure uma ruptura com o modo de fazer lingüísticado século XIX, podemos também pensá-lo como um gesto de continuidade. O que ele fez (e não épouca coisa, evidentemente) foi dar consistência formal à velha intuição de que as línguas humanassão totalidades organizadas.

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Essa intuição percorreu todo o século que antecedeu o corte saussuriano. Teve, inclusive,uma formulação naturalista forte em A. Schleicher (1821-1867) que, na esteira de sua formação

de botânico e de adepto do pensamento evolucionista de sua época, concebia a língua como umorganismo vivo. E recebeu de W. Whitney (1827-1894) uma formulação que Saussure muito admi-rava (conforme se lê noCurso e nos manuscritos): a idéia da língua como uma instituição social.

Assim, se a Lingüística, da segunda metade do século XX em diante, tem sido, por herançasaussuriana, fundamentalmente estrutural, as sementes dessa concepção toda estão dadas nosenso de sistema autônomo que atravessou o século XIX. A esse senso Saussure vai dar o arrema-te, elaborando a idéia de que a língua é um sistema de signos independente.

Estudos lingüísticos1. Como Saussure denesigno lingüístico? Explique essa noção.

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2. No que diz respeito à arbitrariedade do signo lingüístico, Saussure distingue duas concepções dearbitrário. Quais são elas? Explique-as.

3. Explique a seguinte armação: “a formulação da noção de sistema só é possível a partir doestabelecimento da dicotomiasincronia/diacronia e da opção pelasincronia”.

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A operacionalidade dateoria saussuriana do valorO recorte sincrônico, proposto por Ferdinand Saussure noCurso de Lingüística Geral , impôs uma

nova ordem de tratamento dosfatos lingüísticos. Essa nova ordem é a do sistema, uma realidade autô-noma cujo funcionamento se estrutura com base nateoria do valor .

Em linhas gerais, a teoria do valor pode assim ser expressa: os elementos que pertencem ao sistemaadquirem seu valor sempre a partir da relação que estabelecem com outros elementos do mesmo sistemalingüístico. Por exemplo: para exprimir o plural, é necessária a oposição de dois termos; em português, nãoé o morfema1 [s] emmenino[s] que exprime o plural, mas a oposição entre esse morfema e o morfema ø2 em menino ø. Em uma abordagem sincrônica sistêmica, apela-se sempre para dois termos simultâneos,visto que é a partir da relação binária, diferencial e opositiva, entre os elementos que constituem o par, quecada um deles recebe seu valor no interior do sistema.

É nessa perspectiva que Saussure (2006) arma que na língua não há mais do que diferenças, poisnão se pode atribuir aos elementos do sistema nada de substancial, ou seja, não se pode deni-los poreles mesmos. Na óptica saussuriana, são as diferenças que denem os elementos, e essas diferençasnão são intrínsecas nem extrínsecas a tais elementos, mas só podem ser denidas a partir da relação deoposição entre eles.

Iremos mostrar a operacionalidade dessateoria do valor – base da estruturação do sistema en-quanto objeto autônomo e próprio do campo da Lingüística e um dos fundamentos do que se consti-tuiu, a partir do nal da década de 1920, como o movimento estruturalista – para a descrição do siste-ma lingüístico do português. Consideramos um dos estudos clássicos do lingüista brasileiro JoaquimMattoso Câmara Jr., a saber, o estudo do mecanismo da exão nominal em português, mais especica-mente, seu estudo sobre a exão do gênero em nomes. Para tanto, vamos nos basear em três obras doautor: Estrutura da Língua Portuguesa (1980);História e Estrutura da Língua Portuguesa (1985);Dispersosde J. Mattoso Câmara Jr . (1972).

1 Em uma acepção bastante genérica, omorfema pode ser tomado como “a menor unidade gramatical que se pode identicar”. Exemplo: a

palavrameninos é composta por três elementos menores – o radicalmenin-, a vogal temática -o, o morfema exional de número [s].2 O morfema vazio, representado por ø, indica, nesse caso, a ausência da marca do plural.

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A abordagem de Mattoso Câmara

sobre a exão do gênero em nomes no portuguêsMattoso Câmara Jr. arma que os nomes em português se dividem em substantivos e adjetivos.Buscando estabelecer semelhanças e diferenças entre eles, o autor arma que:

do ponto de vista funcional:: – há uma grande utuação categorial entre eles. Muitos dosnomes podem ser, conforme o contexto, substantivos (termos determinados) ou adjetivos(termos determinantes):

(1) um marinheiro brasileiro

subst. adj.

(2) um brasileiro marinheiro

subst. adj.

De acordo com o autor, mesmo entre aqueles nomes que são essencialmente adjetivos (triste,grande) e aqueles que são essencialmente substantivos (homem, tigre), a distinção funcionalnão é absoluta:

(3) um homem tigre

subst. adj.

do ponto de vista formal:: – a diferença entre essas duas classes gramaticais também é muitopequena, visto que tanto os substantivos como os adjetivos são marcados por vogais temáticas3 (-a, -e, -o) ou por formas atemáticas terminadas em vogais tônicas e consoantes. Por outro lado,os adjetivos estão quase sempre distribuídos nas formas em -e, -o e em consoantes, enquanto ossubstantivos encontram-se distribuídos em todas as formas.

do ponto de vista exional:: – ambos são suscetíveis de exão de gênero e de número, apre-sentando, evidentemente, pequenas diferenças:

os adjetivos com tema em:: -o são necessariamente providos de desinência de feminino(o belo menino; abela menina), enquanto aqueles com tema em -e ou consonânticosnão tem uma exão de feminino (ogrande jardim/a grande mesa; a medidaregular /oaluno regular );

nos substantivos, com qualquer estrutura, a exão de feminino ocorre ou não.::

3 Em um estudo morfofonêmico, fala-se em “tema” para designar parte do vocábulo exional em que o radical se amplia com um segmentofônico, chamado índice temático, que serve para caracterizar morcamente um conjunto de vocábulos da mesma espécie (exemplo: embelo,bel - é o radical, e-o é o índice temático que enquadra esse vocábulo na classe dos nomes). Em português, de maneira geral, o índice temático

é uma vogal, chamadavogal temática. Nos nomes, os temas são marcados com as vogais temáticas -a, -e, -o átonos nais. Quando não foremmarcados com esses índices, diz-se que sãoatemáticos.

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Considerando o tópico a ser tratado nesta seção – o estudo da exão do gênero em nomes doportuguês –, a questão a saber é como se opera essa exão para compreendê-la à luz da teoria do valor.Conforme Câmara Jr., a regra geral é a seguinte: a exão de gênero em nomes, no português, ocorre pormeio do acréscimo do morfema exional-a átono nal à forma masculina. Mais especicamente:

quando a forma masculina é atemática (isto, é, não termina em:: -a, -e, -o átonos nais), ocorresimplesmente o acréscimo mencionado (peru/perua; autor/autora);

quando a forma masculina termina em vogal temática, essa vogal é suprimida por meio::de uma mudança morfofonêmica, decorrente do acréscimo da vogal-a (parente -e + a =parenta; pombo - o + a = pomba)4.

Entretanto, nem todos os nomes marcam exionalmente o gênero, como em casa, livro, cônjuge,criança, em que a vogal nal não indica gênero, mas simplesmente registra a classe gramatical. Nessescasos,-a, -e, -o são vogais temáticas, isto é, morfemas classicatórios, que enquadram tais vocábulos na

classe dos nomes.Embora não marcadas exionalmente, tais palavras admitem a anteposição de um artigo – a casa,

o livro, o cônjuge, a criança –, do que se depreende, seguindo Câmara Jr., que a exão de gênero é, emprincípio, um traço redundante nos substantivos, pois, em português, cabe ao artigo marcar, explícitaou implicitamente, o gênero dos nomes substantivos. A exão do substantivo não é, em princípio, amarca básica de seu gênero porque, apareça ou não a exão, todo nome, em cada contexto, será impe-rativamente masculino ou feminino (o livro, a criança, o/a artista, o/a intérprete).

Essa situação gramatical, arma Câmara Jr. (1972), já era a da língua latina5. A marca do gênerode um substantivo latino não estava nele em princípio, mas no adjetivo, que podia funcionar comoseu modicador: poeta era masculino porque eraimperativo dizermagnus poeta e não magna poeta. As línguas românicas deram maior visibilidade a esse mecanismo de seleção do modicador como ín-dice de gênero de um substantivo com a criação do modicador nominal artigo. Essa partícula tem aexão de gênero, opondo uma forma feminina e outra masculina, e, por sua presença concreta ou empotencial, dene claramente o gênero do substantivo a que modica. Nesse sentido é que Mattosochega ao princípio fundamental da morfologia do gênero em português: “o gênero de um substanti-vo está na exão do artigo que o determina ou pode determinar”. (CÂMARA JR. 1972, p. 122).

Concluindo, pois, a partir do que já foi dito até aqui a respeito da flexão do gênero em nomesno português, pode-se dizer que a regra básica de formação do feminino, tal como já apresentadaanteriormente, é o acréscimo do morfema-a em oposição ao morfema ø do masculino. É impor-tante esclarecer que o morfema-a somente recebe seu valor de marca de feminino porque é con-siderado a partir da relação binária, diferencial e opositiva com o morfema ø. A partir da relaçãoentre esses dois morfemas – que constituem um par opositivo no interior do sistema lingüísticodo português – é que cada um deles recebe seu valor (de marcador mórfico de gênero feminino/masculino) no interior desse sistema.

4 Em português, explica Câmara Jr. (1972), é regra morfofonêmica imperativa a supressão de uma vogal átona nal em contato com outra, naexão ou na derivação de vocábulos.5 Essas considerações históricas feitas por Mattoso Câmara Jr., nesse caso, não desvirtuam a análise sincrônica que se propõe a fazer do

mecanismo da exão do gênero em nomes no português, visto que o intuito do autor é mostrar o que condicionou certo estado da línguaportuguesa, foco de sua abordagem.

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Ao lado dessa regra geral de marcação de gênero no português, existem três casos de alomora6 que, como será possível perceber, também se estruturam a partir de relações binárias de oposição:

alomora por subtração da forma masculina:: – como em órfão/órfã, réu/ré, mau/má; nestecaso, o morfema exional de gênero é um morfema subtrativo;

alomora por alternância vocálica redundante e não-redundante:: :

redundante: vogal tônica fechada /o/ passa a aberta /:: /. Ex: formoso/formosa; novo/nova. Trata-se de um morfema aditivo alternativo e, por isso, redundante, porque a exãode gênero já está expressa pelos morfemas-a/ø.

não-redundante: vogal tônica fechada /o/ passa a aberta /:: /. Ex: avô/avó.

ausência de exão:: – o/a mártir; o/a intérprete; nesses casos, a marcação do gênero é garan-tida, no sistema, pelo modicador nominal artigo, que tem a exão de gênero, opondo uma

forma feminina e outra masculina.Em todos esses casos – tanto na regra geral, quanto nos casos de alomora – é possível ver fun-

cionando, de maneira exemplar, a teoria do valor .

Ao lado dessesmorfemas exionais, o gênero pode também ser indicado por:

morfemas derivacionais:: femininos:

-isa: diácono/diacon:: isa;

-essa: abade/abade:: ssa;

-esa: duque/duque:: sa.

alteração do suxo derivacional de aumentativo próprio da forma masculina, decorrente do::acréscimo do morfema-a:

valentão/valentona.::

acréscimo de um morfema derivacional de diminutivo à forma feminina:::

galo/galinha.::

acréscimo do morfema:: -a ao suxo derivacional-eu, que acarreta uma mudança morfofonê-mica caracterizada pela supressão da vogal assilábica (vogal não-tônica do ditongo) e poste-rior ditongação:

europeu + a = europe(u)a = europea = européia.::Osmorfemas derivacionaiscriam novas palavras na língua: a partir do morfema lexical livr-o, tem-

se livr-eiro, livr-aria, livr-inho etc. Tais morfemas, entretanto, ao contrário dos exionais, não obedecema uma sistematização obrigatória: por esse motivo é que uma derivação pode aparecer para um dadovocábulo (decantar deriva-secantarolar ), e faltar para um vocábulo congênere (não há derivações aná-logas parafalar e gritar ).

Osmorfemas exionais, por sua vez, estão concatenados em paradigmas coesos e com pequenamargem de variação – compare-se a série sistemática:cantávamos, falávamos, gritávamos, que ocorre

6 Quando se dá o nome de morfema à menor unidade gramatical signicativa, chamam-sealomorfes as variantes desse morfema. Porderivação, fala-se emalomora.

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toda vez que a atividade expressa no verbo é atribuída ao locutor e a mais alguém em condições espe-ciais de tempo passado.

Os morfemas derivacionais formam palavras que enriquecem o léxico, servem como base paraderivações posteriores e possibilitam ao falante a escolha de uma forma vocabular; osmorfemas e- xionais, diferentemente, são elementos de caracterização exclusiva e sistemática do sistema lingüísticoe, por isso, submetem-se a análises do tipo estruturais7, isto é, que assumem ateoria do valorcomoum princípio geral do funcionamento da estrutura de quaisquer sistemas lingüísticos. Por esse motivo,debruçamo-nos apenas sobre o padrão exional do gênero em nomes no português, não nos detendona problemática derivacional, visto que nosso intuito é mostrar a operacionalidade dateoria do valor.

Texto complementar

7 Bybee (1987, p. 87) estabelece os seguintes critérios para distinguir a expressão exional da derivacional: i)obrigatoriedade (e conseqüente previsibilidade): as expressões exionais são previsíveis e exigidas sintaticamente. Ex: a moç_ baix_ cheg_;ii)generalidade (produtividade X semiprodutividade): a expressão exional é geral quanto à aplicabilidade – ex: a exão de plural aplica-seautomaticamente a nomes, adjetivos, artigos, possessivos, demonstrativos em concordância com nomes substantivos no plural; já a expressãoderivacional apresenta restrições quanto à sua aplicabilidade (cantarolar/*falarolar); iii)estabilidade semântica: a expressão exional possui estabilidade semântica – o plural é sempre plural, isto é, mais de um, já na derivaçãopodem ocorrer extensões de sentido (corre/corredor); iv)grau de relevância semântica: a exão não muda o signicado da palavra; diferentemente, a derivação afeta semanticamente o signicado

da base;v)mudança de classe gramatical: os constituintes exionais não mudam a classe das palavras (livro/livros; cantar/cantávamos). Os constituintesderivacionais podem mudar ou não a classe de palavras (correr/corredor; livro/livraria).

O valor lingüístico(SAUSSURE, 2006, p. 139-140)

[...]

Tudo o que precede equivale a dizer que nalíngua só existem diferenças. E mais ainda: uma di-ferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece; mas na língua há apenasdiferençassem termos positivos. Quer se considere o signicado, quer o signicante, a língua não com-porta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema lingüístico, mas somente diferenças conceituaise diferenças fônicas resultantes desse sistema. O que haja de idéia ou de matéria fônica num signoimporta menos que o que existe ao redor dele nos outros signos. A prova disso é que o valor de umtermo pode modicar-se sem que se lhe toque quer no sentido quer nos sons, unicamente pelo fatode um termo vizinho ter sofrido modicação.

Mas dizer que na língua tudo é negativo só é verdade em relação ao signicante e ao signicadotomados separadamente: desde que consideremos o signo em sua totalidade, achamo-nos perante

uma coisa positiva em sua ordem. Um sistema lingüístico é uma série de diferenças de sons combi-nadas com uma série de diferenças de idéias; mas essa confrontação de um certo número de signos

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acústicos com outras tantas divisões feitas na massa do pensamento engendra um sistema de valores;e é tal sistema que constitui o vínculo efetivo entre os elementos fônicos e psíquicos no interior de

cada signo. Conquanto o signicado e o signicante sejam considerados, cada qual à parte, puramen-te diferenciais e negativos, sua combinação é um fato positivo; é mesmo a única espécie de fatos quea língua comporta, pois o próprio da instituição lingüística é justamente manter o paralelismo entreessas duas ordens de diferenças.

O Estruturalismo em LingüísticaO que se convencionou chamar de “estruturalismo” em lingüística é, na realidade, um con-

junto de teorias de linguagem humana que compartilham, em maior ou menor grau, alguns pres-supostos. É muito difícil – se não impossível – denir as propriedades necessárias e sucientes quedenem o estruturalismo em lingüística. [...]

[...]

Podem-se reconhecer no seio do “movimento” que se convenciona chamar de estruturalismo

ao menos dois “submovimentos”, que se caracterizam por terem origens distintas, conceberem di-ferentemente as tarefas da lingüística e por tratarem diferentemente as estruturas da linguagemhumana: oestruturalismo europeu e oestruturalismo americano.

[...]

O estruturalismo europeuAs propriedades “centrais” do estruturalismo europeu, parece-me, poderiam ser captadas em

dois princípios básicos: o princípio daestrutura e o princípio daautonomia.

O princípio da estrutura arma que as línguas são estruturadas, isto é, que os elementos quecompõem uma língua só podem ser propriamente caracterizados a partir da organização global emque se integram.

As várias teorias estruturalistas européias distinguem-se em vários aspectos; numa coisa, po-rém, todas estão de acordo: só é possível fazer ciência da linguagem postulandoestruturas sistemá-ticas subjacentes aos enunciados lingüísticos e atendo-se ao estudo delas. É este princípio que estápor detrás das seguintes palavras de Saussure:

Do ponto de vista prático, seria interessante começar pelas unidades, determiná-las e dar-se conta de sua diver-sidade classicando-as. (...) A seguir, ter-se-iam de classicar as subunidades, depois as unidades maiores etc. Aodeterminar dessa maneira os elementos que maneja, nossa ciência cumpriria integralmente sua tarefa, pois teria

reduzido todos os fenômenos de sua competência ao seu princípio primeiro (Saussure, 1916: 128-129).

Texto complementar 2

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É preciso car claro, no entanto, que para Saussure – e para os estruturalistas europeus, emgeral – as unidades (os elementos que compõem o sistema) não são independentes do sistema e só

podem ser identicados como “unidades” no próprio interior do sistema.O sistema lingüístico, para Saussure, não é construído pela reunião de elementos preexistentes, não se trata deordenar um inventário dado em desordem, de ajustar as peças de um quebra-cabeça. A descoberta dos elementose do sistema constituem uma única tarefa (Ducrot, 1970: 66).

[...]

O princípio da autonomia, por sua vez, estabelece que a organização interna de uma línguaqualquer (sua estrutura ou seu sistema) é um dado original e não pode ser obtida a partir de outraordem de fatos externos, que lhe são estranhos. Esse princípio aparece formulado por Saussure nasúltimas palavras deCours:

A lingüística tem por único e verdadeiro objeto a língua [langue] considerada em si mesma e por si mesma (Saus-sure, 1916: 271).

Saussure entende alangue como um sistema de signos que se dene exclusivamente por suasrelações internas (é um sistema “autocontido”, portanto) e que não é determinado nem pelas pro-priedades do real (pelas “substâncias”, fônica ou do mundo) nem pelas propriedades inerentes aossujeitos falantes. É um sistemaautônomo.

[...] Conjugando o princípio da autonomia com o princípio da estrutura, Saussure se opõe aosestudos histórico-comparativos do século XIX, mostrando que não há possibilidade de se fazer umestudo histórico sério se o lingüista se ocupar de meras “porções” da língua. A língua é um sistemae, na verdade, é o próprio sistema que muda e que é história. Assim, o estudo autônomo do sistema

(lingüística sincrônica) é condição lógica para o estudo de sua história (lingüística diacrônica).[...]

Essa ruptura com a lingüística do passado conseguida pelo pensamento saussuriano dependecrucialmente do princípio da autonomia, ou seja, este princípio é a “chave” para entendermos opapel revolucionário do pensamento de Saussure.

Em maior ou menor grau, todas as escolas estruturalistas européias “descendem” do pensa-mento de Saussure. Não obstante, há tantas divergências metodológicas, e mesmo ontológicas,entre elas que não parece ser possível seu tratamento de forma unitária. No estruturalismo europeu,podemos reconhecer, entre outras menores ou menos inuentes, duas principais escolas: OCírculoLingüístico de Praga

, de Troubetzkoy e Jakobson, e aglossemática

, de Hjelmslev. Não vamos nosocupar deles aqui; para maiores esclarecimentos, sugerimos a leitura dos capítulos corresponden-tes em Lepschy (1966), Malmberg (1964) e Kovacci (1977).

O estruturalismo americanoEmbora não se possa negar que os lingüistas americanos do início do século XX lessem Saus-

sure, nem que conhecessem o pensamento europeu da época (inclusive porque muitos deles eramimigrantes europeus), as origens do estruturalismo americano são, praticamente, independentesdo estruturalismo europeu. Como acertadamente aponta Malmberg (1964: 197), a lingüística ame-

ricana “se constituiu numa situação e com problemas diferentes dos da Europa”. As línguas indígenas

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americanas, ao contrário das línguas européias, cujo estudo sistemático remonta à Antiguidade,levantavam problemas, teóricos e práticos, peculiares. As relações da lingüística com a antropologia

fortaleceram-se e as inuências mútuas se impuseram.Talvez a obra exemplar da denição dos caminhos próprios da lingüística americana seja o

Handbook of American Indian Languages de Franz Boas, obra em três volumes, que teve o primeirovolume publicado em 1911, cinco anos antes da publicação doCours de Saussure. A maioria dosestruturalistas americanos foi especialista em línguas indígenas ou, pelo menos, trabalhou sobredados dessas línguas.

[...]

Discípulo de Boas, é Leonardo Bloomeld o lingüista mais proeminente na lingüística ameri-cana nos primeiros cinqüenta anos do século XX. Certamente houve outros lingüistas dignos dedestaque, contemporâneos ou antecessores de Bloomeld (como Edward Sapir, por exemplo), masé a obra de Bloomeld que vai dar o tom ao pensamento lingüístico que se desenvolve nos EstadosUnidos na primeira metade do século.

A tese principal do estruturalismo bloomeldiano era que a língua possuía uma “estrutura”,entendida como a conjugação de níveis estruturais, dos quais os mais importantes eram o nívelfonológico, em que as unidades eram os fonemas, e o nívelmorfológico, em que as unidades eramos morfemas. Tanto fonemas quanto morfemas sempre entendidos como unidades deforma8. Paraestabelecer as estruturas fonológicas e morfológicas de uma língua, o lingüista devia, em primeirolugar, estabelecer quais seriam os fonemas e os morfemas da língua, pela segmentação e classica-ção do material concreto de fala obtido pelo registro de umcorpus. Identicados os fonemas e os

morfemas, o lingüista devia ver quais eram as combinações de fonemas e de morfemas possíveise como os morfemas eram obtidos a partir dos fonemas. O estudo de unidades maiores do que omorfema (palavra e sentenças, por exemplo), embora não fosse feito por causa das diculdades dese obterem denições claras, era considerado uma tarefa “desejável” e, se feito, deveria seguir umprocedimento semelhante ao da análise dos níveis inferiores.

[...]

No quadro do estruturalismo bloomeldiano (por vezes chamado dedescritivismo), a atençãodo lingüista se dirige sempre aos fenômenos singulares, individuais. Partia-se do fenômeno indi-vidual e, por generalização e abstração, chegava-se às estruturas ou a elementos mais complexos.Pela abstração de propriedades semelhantes dos indivíduos e pela generalização, por exemplo,construíam-seclasses.

[...]

Esse privilegiamento dos fatos individuais – que podemos chamar de princípio do indivíduo(ou princípio do atomismo lógico) – vai determinar a importância docorpus no trabalho do estru-turalismo bloomeldiano. Ocorpus é uma amostra da fala (no sentido saussuriano do termo), ouseja, é um conjunto de comportamentos lingüísticos concretos, reais, que constituirão o conjuntode fatos sobre os quais os trabalhos de abstração e generalização irão se dar. [...]. O destaque dadoao corpus leva Bloomeld e seus seguidores a rejeitarem a distinçãolíngua/fala, fundamental noestruturalismo saussuriano (e no estruturalismo europeu em geral).

8 O termo “forma” deve ser entendido, ambiguamente, em oposição tanto a signicado quanto a função.

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Outro princípio – o princípio da substância – pode ser reconhecido no descritivismo bloomel-diano. Este princípio determina que os fenômenos devem ser considerados enquanto substância9,

enquanto materialidade, e não enquanto função. Os fenômenos devem ser identicados pelas pro-priedades que apresentam à nossa experiência imediata. [...]

Na realidade, é o compromisso com esses dois princípios – o do indivíduo e o da substância –que caracteriza o paradigma positivista de racionalidade, assumido pela lingüística bloomeldiana.

Um último princípio merece ser abordado aqui. É o princípio da distribuição. Este princípioé frequentemente tomado como o princípio que opõe o estruturalismo bloomeldiano e outrasformas de estruturalismo e que o caracteriza propriamente (o estruturalismo bloomeldiano é tam-bém conhecido como lingüística distribucional ).

O princípio da distribuição pretende que o estudo das relações distribucionais dos elementos(unidades) que compõem a língua seja suciente para o estabelecimento das regularidades queexpõem a estrutura. Nas palavras de Zellig Harris:

A lingüística descritiva, no sentido em que o termo passou a ser usado, é uma área de investigação particularque se ocupa não com a totalidade das atividades de fala, mas com as regularidades de certos aspectos da fala(“features of speech”). Estas regularidades estão nas relações distribucionais entre os aspectos da fala em questão,i.e., a ocorrência desses aspectos relativamente a outros no interior dos enunciados. (...) A investigação principalda lingüística descritiva, e a única relação que será aceita como relevante no presente estudo, é a distribuição ouarranjo na cadeia de fala de partes ou aspectos relativamente a outros.

O presente estudo é então explicitamente limitado a questão de distribuição, i.e., de liberdade de ocorrência deporções de um enunciado relativamente a cada um dos outros (Harris, 1951:5).

Não é difícil perceber que a exclusividade atribuída à distribuição como elemento caracteri-zador da estrutura lingüística vai tomar a noção de sistema uma meracombinatória, sem poderexplicativo. A lingüística desenvolvida no estruturalismo americano de corte bloomeldiano serádescritiva e não passará de uma grande grade classicatória dos fatos lingüísticos, resultando emnão mais do que uma taxionomia dos fatos lingüísticos.

In: BORGES NETO, José. Reexões Preliminares sobre o Estruturalismo em Lingüística.In: Ensaios de Filosoa da Lingüística. São Paulo: Parábola, 2004, p. 98-108.

9 Contrariamente ao uso corrente em losoa, em que o termo “substância” designa aessência ou o fundamento das coisas, na lingüística

estruturalista (em especial na tradição mais diretamente saussuriana) o termo “substância” é utilizado para designar arealização física deformas lingüísticas (asubstância seria a matéria fônica já organizada por umaforma).

Estudos lingüísticos1. Explique em que consiste a teoria saussuriana do valor.

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2. Qual a regra geral da exão do gênero em nomes no português? Explique por que essa regra éum caso exemplar de funcionamento da teoria saussuriana do valor.

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3. Ao lado da regra geral de marcação de gênero em nomes no português, existem três casos dealomora. Quais são eles?

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Níveis de análiselingüística

Emile Benveniste (2005) arma que um lingüista, ao se propor a analisar a língua, inevitavelmentese depara com sua complexidade. Por esse motivo, para que a análise se suceda, parece ser essencialque se estabeleça uma diferença de nível de análise entre os fenômenos passíveis de serem estudados.Aqui trataremos, especicamente, da noção de níveis de análise lingüística, abordando quatro níveis:

o fonêmico (ou fonológico:: 1);

o morfêmico (ou morfológico);::o do lexema (da palavra enquanto signo lingüístico);::

o da frase.::

Para a apresentação desses quatro níveis, seguiremos Benveniste que, no capítulo 10 deProble-mas de Lingüística Geral I (2005), estabelece que o procedimento de análise dos níveis de análise consis-te em duas operações que se comandam mutuamente e das quais todas as outras dependem: a opera-ção de segmentação; e a operação desubstituição. Antes, portanto, de tratarmos dos níveis de análisepropriamente ditos, abordaremos de maneira mais detalhada essas duas operações.

As operações de segmentação e substituiçãoAsegmentação consiste em decompor um signo ou um texto em porções cada vez mais reduzidas,

até os elementos não decomponíveis. Tomemos como exemplo o signo /pato/. É possível segmentá-loem /p/ - /a/ - /t/ - /o/.

1 Fonêmica é um termo criado na Escola Lingüística norte-americana para o estudo do fonema, sem se preocupar com a realidade física dosom da fala. A este mesmo estudo, a Escola Lingüística de Praga chamoufonologia. O termo mais usado nos dias atuais éfonologia. Entretanto,

pelo fato de Benveniste – autor que tomamos como base para a construção destas reexões – referir-se ao “nível fonêmico”, optaremos porusar esse termo em vez defonológico. Essas mesmas considerações se estendem para o parmorfêmico/morfológico.

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Segmentado o signo, é possível proceder a algumassubstituições que transformariam essaseqüência em outro signo do português. Por exemplo: pode-se substituir /p/ por /b/ e teríamos /bato/;pode-se ainda substituir /p/ por /t/ e teríamos /tato/ etc., de modo que, se aplicarmos a cada um dos ele-mentos de /pato/ as substituições possíveis (nem todas são possíveis – não se pode substituir /p/ por /z/,porque /zato/ não é uma seqüência que constitui um signo do português), obteremos um repertório detodas as substituições admissíveis, cada uma delas, por sua vez, constituindo um segmento identicávelem outros signos. Progressivamente, de um signo a outro, obtém-se o conjunto de elementos passíveisde constituírem signos no interior de um sistema lingüístico, bem como a totalidade das substituiçõespossíveis. Trata-se dométodo de distribuição, que, de acordo com Benveniste (2005), consiste em denir,por intermédio de uma relação dupla, cada elemento pelo conjunto do meio em que se apresenta. Essarelação dupla de que fala o autor pode ser assim denida:

Relação sintagmática:: – relação do elemento com os outros elementos simultaneamente pre-sentes na mesma porção do enunciado. Exemplo: relação que /p/ mantém com /-ato/; nestecaso, signica que /p/ é um elemento que pode compor seqüência com /-ato/, formando umsigno em português.

As relações sintagmáticas são contrastivas. Em /pato/, por exemplo, os elementos /p/, /a/, /t/, /o/estão em relação de contraste, o que garante o estabelecimento de distinções entre eles (sem isso,não seria possível compor signo). Em um nível superior de análise – na relação entre palavras na frase,por exemplo – as relações sintagmáticas também são contrastivas. Em “Este homem é generoso”,ho-mem mantém relações de contraste com os outros elementos do enunciado (este, é, generoso). Essasrelações garantem a distinção e a conseqüente discriminação dos elementos que formam a frase(sem isso, não seria possível compor frases).

Relação paradigmática:: – relação do elemento com os outros elementos mutuamente subs-tituíveis na mesma porção do enunciado. Exemplo: relação de substituibilidade que /p/ man-tém com /b/, considerando o contexto lingüístico /-ato/.

As relações paradigmáticas se estabelecem por meio de relações de oposição. Assim, por exem-plo, na frase anteriormente considerada –Este homem é generoso –, a palavrahomem está em relaçãode oposição unicamente com as palavras que podem substituí-la no contexto da frase. Está, pois, emrelação de oposição comvelho (Este velho é generoso), mas não comcriança (*Este criança é generoso2),pois a palavrahomem não é substituível porcriança no contexto lingüístico da frase em questão, devidoàs restrições de concordância nominal impostas pelas palavras este, generoso.

Em relação às operações de segmentação e substituição, Benveniste (2005) ainda observa que elasnão têm o mesmo alcance. Segmentados os elementos de uma unidade, é possível submetê-los a ope-rações de substituição. Entretanto, a substituição também pode operar sobre elementos não segmen-táveis, como é o caso dos traços distintivos que compõem os fonemas: no fonema /b/, por exemplo,reconhecem-se os traços de oclusão, bilabialidade e sonoridade. Esses traços não são segmentáveis,embora sejam identicáveis e substituíveis: pode-se, por exemplo, substituir o traço de [+ sonoridade]em /b/ pelo traço de [- sonoridade] e obter-se o fonema /p/.

2 O * indica agramaticalidade.

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Feitas essas considerações, passaremos agora a tratar dosníveis de análise lingüística, desde onível fonemático (o do fonema3) – o nível mais inferior de análise a que se pode chegar pelo procedi-mento de segmentação –, até o nível ulterior, o da frase.

Níveis de análise lingüísticaTomando por baseo signo lingüístico, é possível segmentá-lo em dois níveis inferiores de análise:

o nível do fonema (fonemático) e o nível do morfema4 (morfemático). Nesse sentido, tanto o fonema,quanto o morfema se denem como unidades particulares do nível superior que os contêm – a palavra,enquanto signo lingüístico. Vejamos o alcance dessa armação.

Quando decompomos um signo, não obtemos imediatamente unidades de nível inferior, massegmentos formais da unidade em questão. Assim, ao decompormos o signosala em [s] - [a] - [l] - [a],temos quatro segmentos, mas nada, de início, garante-nos que eles sejam unidades fonemáticas, istoé, fonemas. Para se ter certeza, é preciso recorrer a outros signos para ver se esses elementos ocorreme podem ser segmentados da mesma maneira. Por exemplo, podemos dizer que [s] é um fonema doportuguês porque também integra [s] - [a] - [l] (sal), [s] - [e] - [l] - [a] etc. O mesmo raciocínio estende-aos elementos [a] - [l]. Nesse sentido, apenas podemos denir um fonema tomando-o em relação a umnível superior.

No caso dos morfemas, tomados em relação ao signo, essa exigência também é válida. Emcom- prei (compr - ei), apenas podemos dizer que o segmentoei é um morfema verbal que expressa sentido

de “primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do modo indicativo” porque esse mesmo segmen-to aparece em outros verbos, como emchorei, amei, cantei etc., expressando o mesmo sentido.

Com base nisso é que Benveniste (2005, p. 133) arma que “uma unidade será reconhecida comodistintiva num determinado nível se puder identicar-se como ‘parte integrante’ da unidade de nívelsuperior”. Em outras palavras, fonemas e morfemas só podem ser denidos enquanto tais se forem ele-mentos constitutivos de um nível superior, a saber, signo.

Mas se a palavra enquanto signo pode, por um lado, ser decomposta em unidades de nível inferior,por outro ela também pode, por desempenhar uma posição funcional intermediária, compor, a título deunidade signicante, um nível superior: o da frase. Nesse nível, entretanto, as relações não se dão da mes-ma maneira. Explicaremos melhor.

A palavra é um constituinte da frase, efetua-lhe a signicação, mas não necessariamente aparecena frase com o mesmo sentido que tem como unidade autônoma. Desse modo, conforme aponta Ben-

3 O fonema é a menor unidade (destituída de sentido) da cadeia falada a que se pode chegar por segmentação. Cada língua apresenta em seusistema um número limitado e restrito de fonemas (entre 20 e 50, conforme a língua), que se combinam sucessivamente ao longo da cadeiafalada “para constituir os signicantes das mensagens, e se opõem, segmentalmente, em diferentes pontos da cadeia da fala, para distinguir asmensagens umas das outras. Sendo esta sua função, o fonema é seguidamente denido como unidade distintiva mínima” (DUBOISet al ., 2006,p. 280). Um exemplo em português: o fonema /a/ se opõe a /i/, /e/, / /, /u/, /o/, / /, conforme demonstra a série mínimavala, vela, vê-la, vila,por um lado, e a série pás, pós, pôs, pus, por outro.4 O morfema é, em uma acepção já envelhecida, uma parte da palavra ou de um sintagma que indica a função gramatical no enunciado. Na

terminologia distribucional, por sua vez, o termomorfema designa a primeira unidade portadora de sentido, “o menor elemento signicativoindividualizado num enunciado, que não se pode dividir sem passar ao nível fonológico” (DUBOISet al ., 2006, p. 419).

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veniste (2005, p. 132), a palavra pode “denir-se como a menor unidade signicante livre susceptível deefetuar uma frase” (ao mesmo tempo em que ela mesma é efetuada por fonemas).

A frase, por sua vez, não é uma palavra mais longa ou mais complexa. Ela apenas se realiza empalavras, mas as palavras, apesar de formarem a frase, não são seus segmentos, visto que uma fraseconstitui um todo que não se reduz à soma de suas partes. Desse modo, a frase não representa simples-mente um degrau a mais na extensão do segmento considerado; com ela, na verdade, transpõe-se umlimite, entra-se em um novo domínio. Por vários motivos.

Um deles decorre do fato de a frase possuir constituintes, mas, ela mesma, não ser constituinte deum nível superior. Isso ocorre porque ela é um predicado e todos os outros caracteres são secundáriosquando se considera isso: pouco importa o número de signos que a compõem (há inclusive frases deapenas uma palavra); também não faz diferença a presença ou não de um sujeito junto ao predicado,pois o predicado da proposição5 basta-se a si mesmo.

Uma vez reconhecido isso, é possível perceber as diferenças existentes entre os elementospróprios dos níveis inferiores de análise e o do nível da frase. Nas palavras de Benveniste (2005, p. 139):Os fonemas, os morfemas, as palavras (lexemas) podem contar-se; existem em número nito. As frases, não.

Os fonemas, os morfemas, as palavras (lexemas) têm uma distribuição no seu nível respectivo, um emprego no nívelsuperior. As frases não têm nem distribuição nem emprego.

Um inventário dos empregos de uma palavra poderia não acabar; um inventário dos empregos de uma frase nãopoderia nem começar.

Essas diferenças levam o autor a concluir que, com a frase, deixa-se o domínio da língua enquantosistema de signos e entra-se em um outro universo: o da língua enquanto instrumento de comunicação6.

Texto complementar

5 Nessa acepção, a proposição refere-se ao núcleo da frase de base.6 Essa não é uma posição unânime na Lingüística. Os gerativistas, por exemplo, não diriam que a frase (sentença) é do domínio da línguaenquanto instrumento de comunicação.

O discurso do humor: temas, técnicas e leituras(POSSENTI, 1998, p. 27-32)

É possível tentar classicar piadas com base no nível, ou melhor, no mecanismo lingüístico que éposto em causa de maneira central (embora toda tentativa de classicação acabe falhando, pelo fatofundamental de que as piadas em geral ocasionam mais de um mecanismo simultaneamente). Poder-se-ia falar de piadas fonológicas, morfológicas, sintáticas, lexicais etc. Mas, o que se lerá a seguir é maisum esboço de enumeração dos mecanismos envolvidos nas piadas, ou para cuja elucidação elaspoderiam contribuir, do que propriamente uma tentativa de classicação. Começo pelos clássicosníveis lingüísticos.

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Fonologia– Sabe o que o passarinho disse pra passarinha?

– Não.

– Qué danoninho?

Para além do conteúdo sexista – que agora deixo de lado –, o que essa piada tematiza, do pontode vista do material lingüístico, é a possibilidade de duas leituras da seqüência “danoninho”, quepode ser lida como uma só palavra, signicando um pote pequeno de danone (danoninho), ou, al-ternativamente, como “que(r) da(r) no ninho”, ou seja, como uma cantada que o passarinho passana passarinha. Além dos problemas relativamente simples que envolvem oralidade e escrita, basi-camente a eliminação dos r’s nais das formas verbais, há dois problemas fonológicos interessantesnesse texto. Um problema diz respeito a critérios para dividir seqüências de uma ou de outra forma.Para que se leia “danoninho”, por exemplo, é preciso representar os acentos dessa seqüência mais oumenos da seguinte maneira: “dànonínho” (marco com acento grave uma sílaba que, embora sendorelativamente saliente, não carrega o acento principal, e com acento agudo a sílaba de maior saliên-cia). Mas, para segmentar essa seqüência de forma que ela signique a cantada do passarinho, tem-se que representá-la como se ela contivesse dois acentos principais, ou seja “dánonínho”. Sem entrarem detalhes, é essa diferença de acento que permite dizer que, num caso, temos uma palavra só e, nooutro, pelo menos três (de fato, quatro, pelo menos segundo as convenções ortográcas).Os fonólo-gos sabem como essa questão, aqui apresentada de forma grosseira, é intrincada em português.

Além desse problema de segmentação com base na pauta acentual, há aqui um outro proble-ma interessante, que tem a ver com as vogais nasais, ou com a nasalização das vogais em português– um dos calvários dos estudiosos do campo. Esse caso também depende da divisão em uma ou maispalavras: se a primeira sílaba (da-) não for uma palavra, então sua vogal é seguida de uma consoantenasal na mesma palavra e então ela pode ser nasalizada e alçada, isto é, pronunciada com a bocamais fechada (como a vogal inicial de “antes” – mais ou menos, para o que aqui interessa, [dãnoni-nho]). Mas, se a primeira sílaba for uma palavra – o verbo “da(r)” – então sua vogal não é nasalizadapela vogal nasal seguinte, e a barreira que impede esse efeito é uma divisão de palavras: ou seja, aconsoante nasal nasaliza uma vogal anterior na mesma palavra, mas não a nasaliza se pertencer aoutra palavra, embora não haja nem pausa nem outra marca de superfície para impedir esse efeito.

Em resumo, em relação ao acento, a diferença é entre [dànonínho] e [dánonínho]. Em relaçãoa nasalização, a diferença é entre [dãnoninho] e [danoninho]. Espero que que claro que os proble-mas, embora distintos, estão aqui imbricados.

Eu penso que o que cou dito seria suciente para convencer um leigo de que há mais coisasna língua do que pode imaginar nossa vã losoa. [...]

[...]

MorfologiaÉ praticamente impossível tratar de piadas morfológicas sem incluir um problema fonológico.

Na verdade, a piada anterior poderia ser considerada morfológica, na medida em que seu problemaé a divisão de palavras. Bastaria pôr em primeiro plano a formação de uma das seqüências (danone

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+ inho) ao lado da outra (da (r) + no + ninho), para que isso que evidente. Mas, vou acrescentar umoutro exemplo, que tomo emprestado do jornalista José Simão. Numa coluna publicada após um

nal de ano chuvoso, comentava a mistura de peru, farofa e chuva, e resumia os festejos de Natale Ano Novo da seguinte forma: “Peru, farofa e uma chuvinha por cima”. E em seguida ele mesmoreescrevia seu comentário da seguinte forma: “E o macho vinha por cima”. Ora, como se pode ver,esta é uma outra versão da seqüência “e uma chuvinha por cima”, da qual dou uma análise sumá-ria. Considere-se a seqüência sem divisão de palavras marcada na escrita. Imagine-se a seqüênciasendo falada: [eomachovinha]. Nessa pronúncia, que contém um [o] como segundo elemento, aambigüidade se perde. Mas, suponha-se uma pronúncia menos “sulista”, com [u] naquela posição:[eumachuvinha]. Nessa hipótese, as interpretações dependem da posição do primeiro acento: seele estiver em [uma], a leitura é “e uma chuvinha”; mas, se ele incidir em “má”, a leitura será “e ummacho vinha”.

LéxicoUm conhecido especulador da bolsa, também banqueiro, caminhava com um amigo na principal avenida de Viena.

Quando passaram por um café, disse: – Vamos entrar e tomar alguma coisa? Seu amigo o conteve:

– Mas, Herr Hofrat, o lugar está cheio de gente! (citada por Freud)

Aqui, de forma óbvia, está envolvido um duplo sentido da palavra “tomar” (‘beber’ e ‘apossar-se de’). Talvez este seja, também, um dos melhores exemplos para sustentar a tese de que as piadasveiculam seu discurso indiretamente, até porque, em certos casos, fazê-lo abertamente criaria pro-blemas graves para quem ousasse produzir determinados discursos. Ou seja, de alguma maneira,este texto signica ‘os banqueiros são ladrões’, armação que poderia redundar num processo, sefeita de fato por um sujeito, explicitamente, em circunstâncias denidas.

Dei um exemplo que funciona com base na ambigüidade de uma palavra, mas as piadas le-xicais não necessariamente se baseiam nesse fato. [...] para deixar claro que há outras facetas nohumor lexical, considere-se o exemplo seguinte, do qual antecipo algumas características.

Além dos vários tipos de piadas lexicais propriamente ditas, há piadas que funcionam como sefossem “pegadinhas” baseadas numa forma especial de consideração das palavras: o fato de que sepode falar das próprias palavras. Sirva de exemplo a seguinte piada-pegadinha:

— Como se escrevia farmácia antigamente?

— Com ph.

— E hoje?

— Com f.

— Não, “hoje” se escreve com h.

Como se vê, o texto produz humor com base na característica seguinte: o ouvinte é levado apensar (com base em hipóteses que uma teoria da coerência textual ou da relevância pragmáticapoderia explicar) que a segunda pergunta é “e como se escreve a palavra ‘farmácia’ hoje, isto é, atu-almente”. Mas, depois descobre-se que a pergunta é mesmo como se escreve a palavra “hoje”.

[...]

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Sintaxe– Sua mãe tá aí. Você não vai receber?

– Receber por quê? Por acaso ela me deve alguma coisa?

Esta piada exemplifica vários problemas. Destaco alguns, de natureza mais claramentesintática: a) recuperam-se os complementos de “receber”, nas duas ocorrências. Na primeira, lemoso texto como se ele signicasse sem dúvida “você não vai receber sua mãe?”. Na segunda, imagina-mos ainda que se trata de “receber minha mãe por quê?”. Depois, percebemos que o verbo “rece-ber” pode ter dois sentidos, e com isso se alteram os complementos possíveis do verbo. Na segundaocorrência, o complemento possível é algo do campo dos bens (dinheiro ou objetos que a mãeentregaria/devolveria ao lho). Além disso, a piada envolve outros problemas, como, por exemplo,o fato de que o primeiro falante diz “sua mãe”, mas na fala do segundo locutor, se mantemos o mes-

mo quadro de referência, temos que entender o complemento do “receber” como se fosse “minhamãe”, em virtude de peculiaridades de funcionamento dos dêiticos.

Estudos lingüísticos1. Por que, para Benveniste, a análise da língua deve se dar porníveis de análise?

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2. Em que consistem as operações desegmentação e desubstituição que constituem o procedimentode análise dos níveis de análise?

3. Em que consiste, de acordo com Benveniste, ométodo de distribuição?

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Biologia e linguagem:Gerativismo

O pressuposto do inatismoA teoria lingüística conhecida como Gramática Gerativa ou Gerativismo tem seu início no nal da

década de 1950. Representado na gura do americano Noam Chomsky, o gerativismo assume comoum de seus pressupostos que a linguagem é uma capacidade inata ao ser humano, isto é, uma “proprie-dade” de nossa espécie, uma dotação genética. De acordo com alguns estudiosos (inclusive Chomsky),esse pressuposto sustenta-se sobre três supostas evidências:

a de que todos os grupos humanos, em todos os lugares e independentemente de sua::complexidade cultural, falam uma língua natural – fato que pode ser considerado forte ar-gumento a favor da tese de que a faculdade da linguagem é uma propriedade da espéciehumana e não uma criação cultural;

o fato de todas as línguas terem o mesmo grau de complexidade (basicamente o mesmo::

número e a mesma natureza de regras) pode ser tomado como evidência de que há umabase natural para a linguagem;

a rapidez (entre 18 e 24 meses) com que a criança, exposta a uma fala fragmentada, cheia::de frases incompletas e truncadas, passa a dominar um conjunto complexo de regras ouprincípios básicos que constitui a sua gramática internalizada – esse argumento, conhecidocomo argumento da “pobreza de estímulo”, pode ser tomado como forte evidência de quealgo da linguagem já está lá, inscrito na mente/cérebro do falante e que, por isso, tem quese aprender pouca coisa para falar uma língua.

Entretanto, apesar de evidências, constatações como essas não são sucientes para sustentar opressuposto do inatismo em relação à linguagem humana. É preciso, além disso, critérios claros paradistinguir entre o que é propriedade inata da espécie e o que é aquisição cultural, bem como algu-

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ma evidência de que a linguagem humana tem realidade biológica. Alguns estudos foram feitos nessesentido. Relataremos aqui dois deles. O primeiro diz respeito ao estudo das afasias1, que tiveram umaimportância inquestionável na sustentação do pressuposto de que a linguagem humana tem realidadebiológica. O segundo deles – uma das mais didáticas apresentações de critérios para se denir o que épredisposição biológica e o que é criação cultural – refere-se ao artigo intitulado “A capacidade de aqui-sição da linguagem”, escrito em 1963 pelo neurocientista alemão Eric Lenneberg, e citado por MiriamLemle em seu artigo “Conhecimento e biologia” (2002). Começaremos pelo primeiro.

A linguagem humana tem realidade biológica:considerações sobre o estudo da afasia

No nal do século XIX e início do século XX, alguns estudiosos observaram pacientes com lesãono lobo frontal e correspondentes diculdades de linguagem. Paul Broca, um desses estudiosos, ana-lisando os cérebros de pacientes afásicos já mortos, que haviam perdido por completo a capacidadede falar, concluiu, dentre outras coisas (como, por exemplo, que existe distinção entre compreensãoe produção da fala), que a faculdade de articulação da linguagem é localizada em uma região especí-ca do lobo frontal esquerdo – área que passará a ser conhecida como Área de Broca(ver gura 1), e odistúrbio decorrente de uma lesão nessa área, como Afasia de Broca. Esse tipo de afasia caracteriza-sepor “um dano mais ou menos completo das capacidades de expressão oral frequentemente acompa-nhado de incapacidade de repetir seqüências orais e de denominar os objetos, mas com manutençãoda compreensão” (AUROUX, 1998, p. 233).

Figura 12

CórtexMotor(Produtivo)

Área de Wenicke(Associativo)

Área de Broca(Produtivo)

FeixeArqueado

I E S D E B r a s i l S .

A .

1 A afasia é uma desorganização da linguagem decorrente da lesão de alguma região cerebral especializada nas funções lingüísticas. Ela podese manifestar tanto na expressão, quanto na recepção da linguagem, em seus aspectos falados ou escritos.

2 As áreas marcadas na gura não representam todas as áreas do cérebro envolvidas no processamento da linguagem. Essa marcação, bastanteesquemática, ilustra apenas as localizações das zonas cerebrais referidas neste texto.

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Na mesma época, Karl Wernicke, a partir de observações de pacientes com diculdades decompreensão da linguagem após lesão na região posterior do lobo temporal esquerdo – região quepassará a ser chamada de Área de Wernicke(ver gura 1) –, pôde estabelecer correspondências entrea lesão nessa região e a incapacidade de compreensão da linguagem por parte do paciente. Esse tipode desorganização da linguagem será chamada de Afasia de Wernicke, em que a uência verbal não éatingida, mas “a compreensão apresenta umdécit muito marcado assim como, além disso, a capaci-dade de repetição e nomeação” (AUROUX, 1998, p. 233).

Essa percepção da correspondência entre a lesão de certas regiões do cérebro e certos distúr-bios de tipo afásico levou os estudiosos a postularem alocalização cerebral do domínio da lingua-gem, ou, em outras palavras, levou os estudiosos a reconhecerem que a linguagem humana temrealidade biológica.

Mas os estudos não pararam por aí. Os estudiosos ainda descobriram que:

as duas áreas anteriormente referidas e situadas no lobo temporal esquerdo estão ligadas por::uma conexão brosa, ofeixe arqueado ou feixe curvo (ver gura 1);

a:: Área de Broca está próxima da área motriz do córtex, chamadacórtex motor produtivo(gura1), responsável pelo controle da articulação, da expressão facial e da fonação;

a:: Área de Wernicke inclui a compreensão auditiva.

A partir desses três elementos (as duasáreas e ofeixe arqueado), compôs-se um modelo com baseno qual é possível prever a diferenciação de vários tipos de afasia, que, conforme Auroux (1998, p. 233)podem ser classicadas da seguinte maneira3:

1. A afasia de Broca, caracterizada por um dano mais ou menos completo das capacidades de expressão oral, freqüen-

temente acompanhado de incapacidade de repetir seqüências orais e de denominar os objetos, mas com manuten-ção da compreensão.

2. A afasia de Wernicke, em que a uência verbal não é atingida, mas a compreensão apresenta um décit muito mar-cado, assim como, além disso, a capacidade de repetição e de nomeação.

3. Aafasia amnésica, que não afeta nem a compreensão, nem a expressão, nem a repetição, mas em que a capacidadede denominação é muito claramente atingida.

4. Aafasia de condução, que toca sobretudo à repetição.

5. Aafasia transcortical motriz, que afeta sobretudo (e muito levemente) a elocução.

6. Aafasia transcortical sensorial, que afeta sobretudo a compreensão e a capacidade de nomear.

Por meio dessa tipologia, é possível perceber que a “capacidade lingüística” (que, não raras ve-zes, representamos como fortemente unicada) encontra-se completamente estilhaçada em diversoscomponentes. Isso porque, como explica Auroux (1998, p. 234), a “unidade com a qual a linguagem senos apresenta em seu funcionamento normal pode encontrar-se totalmente desorganizada pelosprocessos afásicos”.

3 A tipologia das afasias é uma questão sempre muito controversa entre os especialistas, mas a classicação de Auroux (1998) parece-nos ser,ao menos do ponto de vista descritivo, representativo de uma visão classicatória mais típica dos estudos da afasia. No entanto, como aponta opróprio autor, as pesquisas atuais, com suas novas técnicas de produção de imagens cerebrais, permitem complicar consideravelmente tanto omodelo de classicação quanto a própria classicação, o que não é difícil de prever se considerarmos a multiplicidade de operações colocadasem jogo no processo de produção e recepção da linguagem. O que é, pois, fundamental compreender, quando se complexica o modelo, é

que não se trata apenas de uma outra forma de classicar as afasias, mas de outra maneira de conceber a capacidade lingüística, cada vez maismodularizada, isto é, mais repartida em diferentes componentes que possuem localizações mais especícas no cérebro.

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Feitas essas considerações a respeito do estudo das afasias – a partir das quais pudemos perceberque a linguagem humana tem realidade biológica –, passaremos ao segundo estudo a ser consideradopara a sustentação do pressuposto do inatismo, a saber, o estudo de Lenneberg, que apresenta critériossegundo os quais se pode denir o que é da ordem da predisposição biológica. Para essa apresentação,iremos nos basear em Lemle (2002).

Critérios de distinção entre o que épredisposição biológica e o que é criação cultural

De acordo com Eric Lenneberg (1963), há atividades humanas obviamente enraizadas em umapredisposição biológica e outras decorrentes de criação cultural. Assumindo esse pressuposto, o neuro-

cientista apresenta quatro critérios para se distinguir o que é predisposição biológica e o que é criaçãocultural e se vale de tais parâmetros para comparar o andar bípede (decorrente de uma predisposiçãobiológica) e a escrita (uma criação cultural), bem como para analisar de que lado se alinha a capacidadelingüística.

O primeiro critério de vericação proposto por Lenneberg éa existência ou não de variaçãodentro da espécie. De acordo com tal critério, traços herdados são invariáveis em todos os integrantesda espécie e traços culturais variam segundo os agrupamentos sociais. O meio de locomoção bípede éutilizado por todos os seres humanos. Nenhum povo engatinha, rasteja ou rola para se locomover. Trata-se, portanto, de predisposição biológica. A escrita, ao contrário, não é usada por todas as populaçõesdo mundo e apresenta grande variação (há escritas iconográcas, ideográcas, silábicas, alfabéticas),

sendo, portanto, uma criação cultural.O segundo critério de vericação éa existência ou não de história do desenvolvimento do aspecto

considerado, a partir de um estágio primitivo. Com relação ao andar bípede, Lenneberg arma que não épossível traçar uma história, nem localizar focos de difusão cultural para o seu uso, mas é possível rastre-ar a origem, o desenvolvimento e a difusão cultural dos diferentes sistemas de escrita.

O terceiro critério éa predisposição hereditária. O andar bípede não é ensinado nem aprendidopela prática – decorre de uma conformação biológica para esse tipo de locomoção. Para a escrita,entretanto, não há evidência dessa predisposição. A existência de povos ágrafos ou do analfabetismonão indica diferenças de estrutura mental, mas apenas falta de treinamento, situação que pode serrapidamente modicada.

O quarto critério de vericação éa presença de correlações orgânicas especícas. Têm-se, para oandar bípede, certa estrutura anatômica e uma siologia do equilíbrio especíca. Diferentemente, naescrita, o contato da criança com material escrito, lápis e papel não produz automaticamente a capaci-dade de ler e escrever, porque a transmissão da leitura e da escrita é um ato cultural.

Seguindo os quatro critérios considerados, pode-se, de acordo com o neurocientista, classicar acapacidade de linguagem da seguinte maneira:

Com relação à variação dentro da espécie:: – não há variação. Todos os seres humanosadquirem linguagem, e todas as línguas do mundo são essencialmente idênticas em sua

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estrutura – todas têm uma fonologia, um léxico e uma sintaxe. Por esse critério, a linguagemse alinha com o andar e não com a escrita.

Quanto à existência ou não de história do desenvolvimento do aspecto considerado,::a partir de um estágio primitivo – é impossível identicar mudanças de complexidadegramatical entre línguas antigas e recentes no período de cinco mil anos para o qual há do-cumentação. Assim, seguindo esse critério a linguagem está ao lado do andar.

Quanto à evidência de predisposição hereditária:: – Lenneberg relata casos clínicos comoo de uma criança surda retirada de uma favela e levada a uma escola de surdos, onde deimediato começou a se comunicar por sinais que inventou; ou o de um menino com lesãocerebral que, mesmo incapaz de articular qualquer som, compreendia integralmente o in-glês. Esses casos indicam que a predisposição biológica para a linguagem é tão forte que suamanifestação não é impedida sequer por danos graves no sistema de recepção ou produçãoda fala. Novamente, a linguagem faz companhia ao andar.

Considerando a presença de correlações orgânicas específicas:: – Lenneberg, em seuartigo, aponta a regularidade observada nas etapas do processo de aquisição de uma lín-gua e a universalidade desses marcos. Hoje, esse processo está caracterizado com maiorprecisão, confirmando uma notável uniformidade nas etapas de desenvolvimento lingüís-tico em crianças de povos com diferentes línguas. Mais uma vez a linguagem se alinha aosfenômenos biológicos.

Tem-se, então, o quadro classicatório abaixo, a partir do qual será possível observar que o andarbípede e a escrita nunca preenchem os critérios testados da mesma maneira, estando, de acordo comeles, em posições diametralmente opostas: o andar bípede é uma propriedade da espécie humana e

a escrita é uma criação cultural. A capacidade de linguagem, por sua vez, alinha-se sempre ao andarbípede, não sendo, pois, em nenhum momento, comparável à escrita, nem, portanto, classicada comouma criação cultural.

Quadroclassicatório

Critérios de classicação para distinguir o que decorrede predisposição biológica (PB) e de criação cultural (CC)

Variação dentroda espécie

Existência de históriado desenvolvimento

do aspectoconsiderado

Evidência depredisposição

hereditária

Presença decorrelações orgânicas

especícas

SIM(CC)

NÃO(PB)

SIM(CC)

NÃO(PB)

SIM(PB)

NÃO(CC)

SIM(PB)

NÃO(CC)

A s p e c t o s

c o n s i d e r a d o s Andar bípede

Escrita

Capacidade delinguagem

Biologia e linguagem: Gerativismo

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A faculdade da linguagem é inataA teoria gerativista arma, conforme já apontado, que a linguagem é uma capacidade inata ao

ser humano. Essa armação caracteriza-se como um pressuposto – o de que o homem possui em seuaparato genético alguma coisa como umafaculdade da linguagem alocada no cérebro humano. Nessaperspectiva, os gerativistas armam que certo módulo do cérebro4 tem uma realidade física especícaque permite à mente humana processar um sistema complexo e sosticado como a linguagem natural.Afaculdade da linguagem pode ser, pois, considerada como um “órgão lingüístico” (no mesmo sentidoem que na ciência se fala em órgão do corpo) e, sendo um órgão, o caráter fundamental dessa faculdadese dene com base em uma expressão dos genes.

Se a linguagem está vinculada a mecanismos inatos da espécie humana e comuns aos mem-bros dessa espécie, há nela algo de universal, de comum a todos esses membros – o que possibilitaráque Chomsky postule a existência de universais lingüísticos. Essa concepção de linguagem admite

que o ser humano vem equipado com uma Gramática Universal (GU), dotada de princípios universaispertencentes à faculdade da linguagem e de parâmetros que são xados pela experiência. Em outraspalavras, postula-se que a criança nasce pré-programada com princípios universais e um conjuntode parâmetros, mas estes últimos somente serão xados de acordo com os dados de língua à quala criança está exposta. Alguns parâmetros têm sido muito estudados pelos gerativistas, como, porexemplo, se uma língua opta (no sentido de licenciar) por sujeito nulo [+ pro-drop] – como o por-tuguês ( saíram cedo) –, ou por sujeito preenchido [- pro-drop] – como o inglês (They left early). Oprocesso de aquisição de linguagem, nesse sentido, pode ser compreendido como um processo demarcação de parâmetros. Vejamos mais detalhadamente como isso se dá.

Para Chomsky, cada língua é o resultado da interação de dois fatores: o “estado inicial” e o cursoda experiência. Esse “estado inicial” de que fala o lingüista deve ser concebido como um “mecanismo deaquisição de linguagem”. Esse mecanismo recebe comoinput , como dados de entrada, a experiência, istoé, aquilo que o ambiente oferece ao falante enquanto dados de uma língua especíca (conjunto de sen-tenças ouvidas no contexto), e fornece como saída, comooutput , a gramática de uma determinada língua,que constitui um objeto internamente representado na mente/cérebro. Tanto a entrada (os dados de umalíngua fornecidos pela experiência) quanto a saída (gramática internalizada do falante) estão à nossa dis-posição para serem examinadas. Podemos estudar o transcorrer da experiência e as propriedades daslínguas que são adquiridas, e o que aprendemos nesse estudo pode nos dizer muita coisa a respeito doestado inicial, isto é, do “mecanismo de aquisição de linguagem”.

De acordo com os gerativistas, há muita razão para crer que o “estado inicial” é comum no âmbitoda espécie, porque é geneticamente determinado. Um pressuposto como esse aproxima a Lingüísticadas ciências biológicas. E é nesse sentido que se diz, no gerativismo, que a linguagem não é algo apren-dido, não é de natureza cultural, porque nascemos com essa faculdade, que é biológica. Sem ela, nãoseríamos capazes de nos tornarmos falantes de nenhuma língua. Entretanto, apesar de imprescindível,essa faculdade de linguagem não é suciente; precisamos doinput , dos dados lingüísticos fornecidospela experiência, para que o processo de aquisição de uma língua ocorra.

4 Os estudos sobre a afasia constituíram-se como uma forte evidência, para o gerativismo, de que a mente é modular, isto é, que ela se divideem módulos, especializados e pré-programados, “que se guiam por princípios inatos que computam a seu modo os dados captados pelos

órgãos sensoriais, e cada módulo dá atenção a um tipo de dados, faz com eles operações especícas” (LEMLE, 2002). Exemplos: o módulo davisão, da audição, da linguagem etc.

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Mas, se afaculdade de linguagem é comum na espécie, o que é universal na linguagem humana?Há vários apontamentos a respeito dos universais nos estudos gerativistas. Entretanto, há uma proprie-dade, tida como universal, que é repetidamente referida por Chomsky em seus escritos: a de que a lin-guagem humana está baseada em uma propriedade elementar, chamada de propriedade da innitudediscreta, exibida em sua forma mais pura pelos números naturais 1, 2, 3... Nas palavras do autor:

A linguagem humana baseia-se em uma propriedade elementar que também parece ser biologicamente isolada:a propriedade da innitude discreta, exibida em sua forma mais pura pelos números naturais 1, 2, 3,... As criançasnão aprendem essa propriedade; a menos que a mente já possuísse esses princípios básicos, nenhuma evidênciapoderia fornecê-los. De maneira semelhante, nenhuma criança precisa aprender que há sentenças de três e quatropalavras e não sentenças de três palavras e meia, e que elas continuam assim por diante; é sempre possível construiruma sentença mais complexa, com uma forma e um signicado denidos. Esse tipo de conhecimento precisa tervindo pra nós da “mão original da natureza”, para usar a frase de David Hume [...], como parte de nossa capacitaçãobiológica. (CHOMSKY, 2002, p. 30)

Essa propriedade da innitude discreta, inscrita na genética humana, permite que, com um nú-mero nito de elementos (como, por exemplo, umas poucas dúzias de sons), possa-se produzir umainnidade de expressões que nos tornam capazes de revelar a outras pessoas o que pensamos. Deacordo com Chomsky, essa propriedade só existe nos seres humanos, e é ela que os torna capazesde combinar alguns poucos elementos seguindo um número nito de princípios básicos, de modoa gerar um número innito de sentenças novas. Nenhuma outra espécie possui tal capacidade, oque acaba por ser também um forte argumento de que apenas o ser humano possui umafaculdadede linguagem.

Texto complementar

Conhecimento e biologia(LEMLE, 2002, p. 34-42)

A Lingüística e outras ciências da cognição têm desvendado mecanismos da mente humanaque vêm demorando a ser incorporados à cultura geral. Isso constitui, por si só, um interessanteproblema de Psicologia Social: por que essas informações têm baixo valor no mercado de idéias?Este artigo busca contribuir para socializar a compreensão da postura indagativa das ciências dacognição, particularmente a Lingüística, e disseminar alguns achados dos estudos realizados nes-ses campos.

Como uma primeira informação sobre o tema a ser tratado, cabe dizer que nem tudo aquiloque sabemos é aprendido – se entendermosaprender na acepção de “tomar conhecimento”, ou“reter na memória, mediante o estudo ou a observação”, como consta doDicionário Aurélio.

Um exemplo disso é a descoberta de que os bebês nascem sabendo contar até três e somarum e subtrair um, desde que a quantidade envolvida na operação não ultrapasse três. Esses estudosbasearam-se na medição do nível de atenção que o bebê manifesta na observação visual. Os pesqui-

sadores usaram dois instrumentos: uma lmadora, para medir o tempo de xação do olhar, e uma

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chupeta ligada por um o a um aparelho que registra velocidade e intensidade dos movimentosda boca – os bebês sugam a chupeta depressa e com força se estão interessados, e devagar e fra-

camente se entediados.No estudo, um bebê de dois meses ca diante de uma mesa onde há um pequeno palco. Dois bo-

necos são postos no palco e, em seguida, ocultos por uma tela. Observado pelo bebê, um pesquisadorpõe a mão atrás da tela e retira um dos bonecos. Sai a tela, e o bebê vê que sobrou apenas um. Comodois menos um é igual a um, o bebê identica a operação como “óbvia e pouco interessante”, e sugaa chupeta de modo lento e fraco. Em outra sessão, o pesquisador tira um boneco de trás da tela, mas,quando esta é afastada, vêem-se dois bonecos no palco, e a chupeta move-se de maneira afobada eforte. É como se o bebê pensasse: “Dois menos um dá dois? Muito estranho...” As pesquisas revelaramque os bebês de um a três meses sabem a tabuada de somar e a de diminuir. Ficam frios se o resultadoesperado é conrmado e agitados quando isso não acontece.

A que conclusão isso conduz? Há conhecimento aritmético inato, sem ensinamento e sem ex-periência, pré-embutido na mente. Tais pesquisas são descritas no livroCe que savent les enfantsdo espanhol Jacques Mehler e do francês Emmanuel Dupoux, ambos psicólogos. O livro tambémrelata estudos semelhantes segundo os quais os bebês nascem sabendo fonética, constatação feitausando-se o mesmo método da chupeta.

[...]

Módulos pré-programadosOutro campo de pesquisa sosticado, que usa bebês e crianças bem pequenas como cobaias, é

a análise do estímulo visual. De que aspecto da percepção visual, por exemplo, um bebê extrai a no-ção de objeto? De uma silhueta, da homogeneidade na cor e textura ou do movimento conjugadodas partes? A busca das respostas é baseada, mais uma vez, na medição do interesse. Uma percep-ção já esperada, portanto óbvia, provoca tédio, enquanto uma visão inesperada atrai a atenção.

Pesquisadores norte-americanos, em 1997, usaram uma tela da qual surgiam duas pontas devaras, uma de cada lado. A questão era saber se um bebê concebia as duas pontas como partesde uma só vara parcialmente escondida ou como pontas de varas diferentes. Se as pontas se mo-viam juntas por trás da tela, o bebê revelava tédio quando, retirado o obstáculo, surgia apenasuma vara, mas cava surpreso se visse duas varas. Já se as pontas não eram movidas antes, o bebê

esperava encontrar duas varas atrás da tela, espantando-se quando via apenas uma. Experiênciasassim permitiram concluir que os bebês identicam um objeto único pelo movimento conjuntode suas partes.

[...]

As experiências com crianças demonstram a existência de umsetting default (um sistema es-pecializado em lidar com certas informações) nas capacidades cognitivas, anterior à experiência.Baseada nisso, a teoria psicológica moderna assume que a mente não é uma tabula rasa, e procuradescobrir que princípios cognitivos estão instaladosa priori em cada espécie animal. Essa vertentetambém é chamada de psicologia vertical , por oposição a uma psicologia horizontal , segundo a quala capacidade intelectual seria indivisa, ou seja, a mente se dedicaria ora a uma, ora a outra tarefa.

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A teoria do psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), por exemplo, não é modular. Ele pro-põe uma autoconstrução do conhecimento pela criança. Segundo ele, haveria uma capacidade

cognitiva genérica, e sua aplicação aos diferentes tipos de percepções seria auto-instaurada poretapas, da percepção sensório-motora para a espacial, para a verbal concreta, para as abstraçõesda linguagem e para operações matemáticas. A criança de Piaget depende em grau muito maiordo recebimento de informações do meio ambiente.

As ciências da cognição, ao contrário, vêm descobrindo uma criança com módulos especia-lizados geneticamente programados. Os módulos guiam-se por princípios inatos que computama seu modo os dados captados pelos órgãos sensoriais, e cada módulo dá atenção a um tipo dedados, faz com eles operações especícas e entrega os resultados a outro módulo. Há interfacesentre módulos, como por exemplo entre o módulo visual e o de percepção do corpo (“Vou escor-rer o macarrão com cuidado para não me queimar”), o visual e o social (“Aquela pessoa deve ser

uma autoridade”) e assim por diante.É evidente que a maior parte dessa computação não emerge à consciência. Certas patologias

podem afetar seletivamente algumas operações da mente e levar a disfunções estranhas: afasias (li-mitações no entendimento e uso da linguagem), agnosias (limitações na compreensão de estímulosrecebidos) e casos de genialidades peculiares conhecidas comoidiots savants. O psiquiatra-escritoringlês Oliver Sachs tem livros fascinantes sobre os esquisitos sintomas decorrentes de disfunçõespontuais nos módulos cognitivos.

Estudos lingüísticos1. O gerativismo assume como um de seus pressupostos que a linguagem é uma capacidade inata

ao ser humano, isto é, uma “propriedade” de nossa espécie. De acordo com alguns estudiosos, hátrês evidências que sustentam esse pressuposto. Quais são elas?

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2. Qual a contribuição dos estudos da afasia na formulação do postulado de que a linguagem temrealidade biológica?

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3. O neurocientista alemão Eric Lenneberg apresenta quatro critérios para se distinguir o queé predisposição biológica do que é criação cultural e se vale de tais parâmetros para denir anatureza da capacidade lingüística (se é de ordem cultural ou biológica). Quais são esses critériose, seguindo eles, qual a natureza da capacidade lingüística?

4. De acordo com Noam Chomsky, a linguagem humana baseia-se em uma propriedade elementarchamada propriedade da innitude discreta. Explique o que vem a ser essa propriedade?

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O Funcionalismo emLingüística: sistemalingüístico e uso das

expressões lingüísticasFuncionalismo e Estruturalismo

De acordo com John Lyons (1987), na Antropologia e na Sociologia os termosfuncionalismo e es-truturalismo são utilizados para se fazer referência a teorias e métodos de análise contrastantes, mas, naLingüística, o Funcionalismo é visto como um movimento particular dentro do Estruturalismo, visto que

seu objeto de estudo é a língua enquanto sistema, à qual, entretanto, acrescenta uma outra dimensão:a de ser um sistema de meios de expressão apropriados a uma nalidade comunicativa. Marie-AnnePaveau e Georges-Élia Sarfati (2006, p. 115), a respeito desse modo de conceber o Funcionalismo, co-mentam que, de fato, “o funcionalismo tem seu lugar no conjunto do movimento estruturalista; é umestruturalismo especíco que se pode chamar de estruturalismo funcional”.

Essa maneira de compreender o Funcionalismo decorre, entre outras coisas, do fato de ele tersurgido vinculado à Escola Lingüística de Praga1, que teve seu início nos anos de 1920, juntamen-

1 Na verdade, o ponto de vista funcional, que assume o pressuposto geral de que a linguagem humana é um instrumento usado para estabelecercomunicação e com base nisso deve ser explicada, pode ser encontrado em lingüistas anteriores a Ferdinand Saussure, como William Whitney(1827-1894) e Hermann Paul (1846-1921). Para Whitney, a faculdade de linguagem só se justica pelo desejo da espécie humana de traduzir,pela fala, a expressão de suas necessidades fundamentais: onde falta o desejo de comunicação, não há produção de linguagem. Hermann Paul,por sua vez, armava que a estrutura lingüística deve ser explicada com base em fatores psicológicos, cognitivos e funcionais.

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te com os estudos estruturalistas, e seguiu, conforme analisa Rodolfo Ilari (2004), uma orientaçãocentrada fortemente no ideário saussuriano: priorizou a análise do sistema; assumiu a noção de lín-gua enquanto forma; deu preferência à sincronia2. Entretanto, apesar dessa proximidade com o ideáriosaussuriano, a idéia geral que funda o pensamento pragueano é que a estrutura das línguas é deter-minada por suas funções características. Nessa perspectiva, o Círculo de Praga foi matriz de uma novamaneira de pensar a linguagem, visto que rompe com o paradigma formal3, que postula a autonomiado sistema.

Por esse motivo, é preciso ter cautela com as etiquetas em –ismo (Estruturalismo, Funcionalismo,Gerativismo etc.), pois elas achatam e apagam as diversidades tanto dentro de uma mesma episteme,quanto entre as várias epistemes existentes em um campo. A aproximação entre Funcionalismo e Estru-turalismo deve ser considerada, pois, com muita cautela, mesmo porque, como veremos, o paradigmafuncional postula que o sistema lingüístico é estruturado a partir do uso da língua, rompendo, nessesentido, com o postulado central da teoria saussuriana, a saber, que a língua tem sua ordem própria defuncionamento e só a essa ordem obedece.

A abordagem que faremos do paradigma funcionalista opta por apresentá-lo independentemen-te das continuidades e descontinuidades que ele possa ter em relação ao Estruturalismo, bem comoem relação ao Gerativismo, ao qual é, do mesmo modo, comumente comparado, como sendo umareação a esse programa de pesquisa4. Em nossa abordagem, iremos nos concentrar basicamente em darvisibilidade ao postulado fundamental da teoria funcionalista, já referido anteriormente, de que o usoestrutura (e reestrutura, e reestrutura...ad innitum) o sistema lingüístico. Tal postulado implica o fortepressuposto de uma gramática em ininterrupto processo de variação e mudança.

O Funcionalismo em LingüísticaO Funcionalismo está longe de ser um movimento monolítico. As abordagens funcionalistas são,

por vezes, tão distintas que não é possível reuni-las em torno de um único modelo teórico. No entanto,os lingüistas estão razoavelmente de acordo em armar que, para além dessa diversidade de modelos,é possível reconhecer um ponto em comum entre os diversos estudos que se abrigam sob o rótulo defuncionalistas: todos concebem a linguagem como um instrumento de comunicação e de interação

2 O Círculo de Praga opta realmente pela sincronia. Mathesius, considerado pai-fundador do Círculo (apud PAVEAU; SARFATI, 2006, p.117), arma que uma “lingüística mais recente veio reconhecer que, ao lado do enfoque histórico ou diacrônico, existem razões cientícasequivalentes para postular um enfoque não-histórico, sincrônico, nas pesquisas de uma língua dada e de uma época dada, sem considerarseu estado anterior. Porque somente uma análise de todo o complexo dos fenômenos que se produzem simultaneamente num momentodado permite-nos apreender a interdependência sincrônica que os relaciona ao sistema lingüístico”. Entretanto, a opção pela sincronia não étão radical, como o foi para a proposta saussuriana. O Funcionalismo, por trabalhar com uma noção de sistema lingüístico (re)estruturadoadinnitum pelo uso, concebe a gramática da língua como sendo algo em constante processo de variação e mudança, não descartando (muitasvezes!) de suas considerações o aspecto diacrônico da análise. Um exemplo são os trabalhos sobre gramaticalização (ver a respeito no TextoComplementar).3 De acordo com Oliveira (2004), o metatermoformal pode ser compreendido em três acepções: i) como equivalente a cientíco; ii) comosinônimo de autônomo; iii) como remetendo a cálculo. Quando aqui fazemos menção ao paradigma formal, estamos nos referindo a teoriasque assumem o pressuposto da autonomia (e também da homogeneidade) de seu objeto de estudo.4 Apenas faremos menção a esses dois movimentos quando for realmente necessário para esclarecer os pressupostos funcionalistas.

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social5, cuja forma se adapta às funções que exerce. Desse modo, ela somente pode ser descrita eexplicada com base nessas funções, que são, em última análise, comunicativas. O compromisso principaldo enfoque funcionalista é, nesse sentido, descrever a linguagem não como um m em si mesma, mascomo um requisito pragmático da interação verbal. Estabelece-se, assim, um objeto de estudos baseadono uso real e que, por isso, não admite separações entre sistema e uso, tal como preconizam tanto oEstruturalismo de base saussuriana, a partir da distinção entre língua e fala, quanto a Teoria Gerativa,com a distinção entre competência e desempenho.

Mas como conceber o funcionamento de um sistema que é afetado pelas (estruturado a partir das)funções comunicativas? Ou, em outras palavras, como conceber o estudo da língua denida enquantoum sistema que cumpre uma função, tem uma nalidade – a de ser instrumento para a comunicação –e operacionaliza meios próprios para esse m? A teoria saussuriana do valor, por si só, não responde aessa exigência das teorias funcionalistas, que buscam analisar (e explicar) a estruturação das expressõeslingüísticas como co-determinada pelo contexto comunicacional, pelas condições reais de produção dalinguagem, fato que se verica, de acordo com Pezatti (2004):

no apego da teoria por regras pragmáticas, baseadas na capacidade social do usuário de::língua natural (ULN);

nas tendências que se recusam a reconhecer fronteiras teóricas ou metodológicas entre::a sintaxe, de um lado, e a organização semântica e pragmática de outro, considerando-asdimensões interdependentes.

Apresentaremos, a seguir, três dos aspectos das teorias funcionalistas referidos pela autora – asregras pragmáticas, baseadas, como veremos, em um modelo de interação verbal; o conceito deusuáriode língua natural ; a interdependência entre a sintaxe e a organização semântica e pragmática –, a m de

que seja possível compreender melhor o fundamento funcionalista e de que maneira ele suporta a (e ésuportado pela) formulação dos conceitos.

Neves (2006) arma que uma teoria do funcionamento da linguagem, como é o caso do fun-cionalismo, exige a formulação de um “modelo de interação verbal”, que, seguindo Dik (1989; 1997)assenta-se:

do ponto de vista da produção:: – a) na intenção do falante; b) na sua informação pragmática;c) na antecipação que ele faz da interpretação do ouvinte, considerando a informação prag-mática que o falante acredita estar disponível ao ouvinte.

do ponto de vista da interpretação do ouvinte:: – a) na própria expressão lingüística; b) na sua

informação pragmática; c) na hipótese do ouvinte sobre a intenção comunicativa do falante.Tal modelo de interação verbal sustenta-se sobre o pressuposto da comunicação cooperativa

e eciente, baseada na competência comunicativa dos falantes/ouvintes. Pressupõe-se, portanto, ummodelo de Usuário de Língua Natural (ULN) que opera não apenas com umacapacidade lingüística, mastambém com capacidades de natureza cognitiva e social, tais como acapacidade epistêmica, a capaci-dade lógica, acapacidade perceptual , acapacidade social . Vejamos a seguir, no Quadro 1, elaborado combase em Pezatti (2004), no que consiste cada uma dessas capacidades:

5 Para os estudos funcionalistas, a produção de sentidos somente ocorre no processo de interação; nessa perspectiva,apenas é possívelcomunicar sentidos e intenções por meio desse processo. Não há comunicação, portanto, fora do processo de produção de sentidos, que se dá nainteração. Devido a esse forte imbricamento entre interação e comunicação, encontramos, na teoria funcionalista, uma forte utuação no uso dostermos comunicação e interação, que não são conceitos equivalentes, é certo, mas devem ser considerados, no Funcionalismo, em uma relação deextrema dependência. No nosso caso, optamos por conservar, a cada momento, os termos utilizados pelos autores de base deste texto.

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Quadro I

Capacidade lingüísticaO ULN é capaz de produzir e interpretar corretamenteexpressões lingüísticas de grande complexidade evariedade estrutural em um grande número de situaçõescomunicativas.

Capacidade epistêmica

O ULN é capaz de construir, manter e explorar umabase de conhecimento organizado; ele pode derivarconhecimento a partir de expressões lingüísticas,armazenar esse conhecimento de forma apropriada,recuperá-lo e utilizá-lo na interpretação de expressõeslingüísticas posteriores.

Capacidade lógica

Munido de certos conhecimentos, o ULN é capaz dederivar conhecimentos adicionais por meio de regrasde raciocínio, controladas por princípios tanto de lógicadedutiva quanto probabilística.

Capacidade perceptual

O ULN é capaz de perceber seu ambiente, derivarconhecimento a partir de suas percepções e usar esse

conhecimento não só na produção como também nainterpretação de expressões lingüísticas.

Capacidade social

O ULN não somente sabeo que dizer a um determinadointerlocutor mas tambémcomo dizê-lo, em umasituação comunicativa particular, a m de atingir metascomunicativas particulares.

Com relação ao pressuposto da interdependência entre a sintaxe e a organização semântica epragmática, é possível compreendê-lo a partir da consideração das regras de uma gramática tipica-mente funcional. Tais regras são formuladas com base em propriedades funcionais e categoriais dosconstituintes da sentença. As propriedades categoriais referem-se a características intrínsecas dos cons-tituintes (por exemplo, a propriedade de um constituinte pertencer à classe dos nomes e se submeter àsregras de exão de gênero e número que regem essa classe de palavras), enquanto as propriedades fun-cionais implicam a exigência de se considerar a relação de um dado constituinte com outros da cons-trução lingüística em que ele ocorre (no nível das funções sintáticas, a relação entre sujeito e verbo, porexemplo). As relações funcionais, por sua vez, distribuem-se por três diferentes níveis que conguramfunções sintáticas, semânticas e pragmáticas, conforme mostra, a seguir, o Quadro 2:

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Quadro II

Funções sintáticas

Especicam a perspectiva da qual é apresentado o “estado de coisas”6

naexpressão lingüística, como:

Sujeito:: (termo da oração que se articula com o predicado);

Objeto:: (nome que se dá aos complementos verbais).Exemplo: Maria comprou o livro.(em que “Maria” é sujeito; “livro” é objeto)

Funções semânticas

Especicam os papéis que exercem os referentes dentro do “estado decoisas” designado pela predicação em que ocorrem, tais como:

Agente:: : termo referente ao ser responsável pela realização doprocesso verbal;

Meta:: : termo referente ao ser (o beneciado) para o qual se dirigeo processo verbal;

Recipiente:: : termo referente àquele/àquilo sobre o qual o pro-cesso verbal incide.

Exemplo: Maria comprou o livro para Pedro.(em que “Maria” é agente; “livro” é recipiente; “Pedro” é meta)

Funções pragmáticas

Especicam o estatuto informacional dos constituintes dentro do contextocomunicacional mais abrangente em que eles ocorrem, como:

Tópico:: : entidade sobre a qual um determinado discurso fornecealguma informação;

Foco:: : parte mais relevante da informação que é fornecida sobreo tópico.

Exemplo: Quando você viu Pedro? O Pedro eu vi ontem.(em que “Pedro” é tópico) Quando você viu Pedro? Ontem eu vi o Pedro.(em que “Ontem” é foco)

A perspectiva funcionalista considera que a forma da expressão lingüística é igualmenteco-determinada por esses três níveis funcionais e que tanto a forma como o conteúdo semântico dasexpressões lingüísticas podem variar à medida que se atribuem funções diferentes aos constituintes emcada um desses três níveis de conguração de funções, o que nos permite perceber a interdependênciaentre eles.

6 Dik (1989) dene “estado de coisas” como uma situação que pode existir ou ocorrer em um determinado mundo, que não precisa ser “real”,pode ser “imaginário”; o que importa é que as situações descritas se reram a estados de coisas de um mundo especíco.

O Funcionalismo em Lingüística: sistema lingüístico e uso das expressões lin

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Com base na denição dos elementos de análise que constituem cada um dos níveis funcionaisde uma gramática expostos no quadro 2, mas operacionalizando (em função de nossos propósitos)apenas três desses conceitos (o de sujeito, no nível das funções sintáticas; os de tópico e foco, no níveldas funções pragmáticas), teceremos, a partir da perspectiva funcionalista, algumas consideraçõesem torno da ordenação dos constituintes na sentença. O intuito é mostrar de que maneira diferentespadrões de ordenação cumprem funções comunicativas diferentes, ou melhor, de que maneirafunções comunicativas especícas organizam diferentes padrões de ordenação dos constituintesnas sentenças. No paradigma funcional, as expressões lingüísticas são vistas como instrumentos dosquais os participantes de uma interação verbal se valem para se comunicar em situações especícasde interação; a língua é, pois, um instrumento de interação social. Pretendemos, com a análise que sesegue, dar visibilidade a esse pressuposto.

Em nossa abordagem, seguiremos Berlinck, Augusto e Scher (2001). As autoras comparam, notexto em questão, três diferentes perspectivas de abordagem do fenômeno sintático, buscando eluci-dar, mais especicamente, de que maneira a gramática normativa, a gramática gerativa e a gramáticafuncional explicam o processo de estruturação da ordem dos constituintes na sentença. Limitaremosnosso relato à perspectiva da gramática funcional, que aqui nos interessa mais diretamente.

Uma análiseDa perspectiva funcionalista, concebe-se que existem vários padrões de ordenação para os

constituintes da sentença. Esses diversos padrões são gramaticalmente equivalentes (isto é, não háuma ordem primeira ou padrão da qual todas as outras são variações), mas cumprem funções comu-nicativas diferentes. Berlincket al . (2001), seguindo Dik (1989) e Pezatti e Camacho (1997), explicamque, da interação das forças que agem para gerar esses diversos padrões de ordenação, chega-se aum padrão geral de ordenação dos constituintes na sentença, a partir do qual cada língua especicaseus padrões de ordenação da frase:

P1 (V) S (V) O (V)

Nesse esquema,P1 especica uma posição reservada a constituintes de determinadas categorias– como pronomes relativos e conjunções subordinativas – ou a constituintes com função pragmáticade tópico ou foco;V entre parênteses indica a possibilidade variável de posição do verbo;S indica aposição reservada ao sujeito da oração;O especica a posição destinada ao objeto complemento doverbo. Nessa estrutura, não há lugar para complemento circunstancial ou adjunto, pois não são termosexigidos pelo predicado; nesse sentido, Dik (1981, 1989) os chama de satélites.

Feitas essas considerações, relataremos as análises de Berlincket al . (2001) referentes a algumassentenças e pares de sentenças com o intuito de, como já dito anteriormente, dar visibilidade aopressuposto funcionalista de que a estrutura da língua só pode ser plenamente compreendida emassociação com os princípios que regem a interação verbal.

Iniciemos com as sentenças (1), (2) e (3).

(1) Diadorim entregou o facão para Riobaldo.

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(2) Eu vi o Miguilim ontem.

(3) O Manuelzão e o Augusto Matraga vieram na festa.

Nessas sentenças, “Diadorim”, “Eu”, “O Manuelzão e o Augusto Matraga” são, no nível de uma análidas funções sintáticas, sujeitos das orações. Isso signicaria, considerando o padrão geral de ordenaçãoexposto anteriormente, que não há elemento em P1? Não é esse o caso, porque é preciso considerarque o sujeito de cada uma das orações – (1), (2), (3) – acumula, além da função sintática de sujeito, afunção pragmática de tópico, visto que a informação contida no predicado refere-se às entidades queesses sujeitos representam. O padrão de ordenação dessas sentenças corresponde, pois, a:

P1/S V (O) (X)

7

Consideremos agora os pares de sentenças (4) e (5), que se seguem:

(4) Quando você viu o Miguilim? O Miguilim eu vi ontem.

(5) O que Diadorim fez com o facão?

O facão Diadorim entregou para Riobaldo.

Nas frases-respostas de (4) e (5), “eu” e “Diadorim” são apenas sujeitos, não acumulam a funçãopragmática de tópico, que é desempenhada, na frase-resposta (4) pelo constituinte “O Miguilim”, e nafrase-resposta (5) por ”O facão”, que ocupam a posição P1. As frases-perguntas (4) e (5) fornecem ocontexto interacional que nos permite analisar os termos em P1 como tópicos, pois é sobre as entidadesa que esses termos se referem que se pede (e se fornece) alguma informação. No entanto, esses mesmostermos poderiam ser analisados como focos, se inseridos em outro contexto interacional, como serápossível perceber nos pares (6) e (7), que se seguem:

(6) Quem você viu ontem?

O Miguilim eu vi ontem.

(7) O que Diadorim entregou para Riobaldo?

O facão Diadorim entregou para Riobaldo.

Nas frases-respostas (6) e (7), “O Miguilim” e “O facão”, que ocupam a posição P1, desempenhama função pragmática de foco, visto que, analisando o contexto interacional fornecido pelas frases-perguntas (6) e (7), é possível perceber que são eles que carregam a informação mais importante ousaliente da frase.

Nos quatro pares de frases apresentados, o padrão de ordenação dos constituintes nas senten-ças-respostas pode ser assim representado:

P1 S V X

7 Como explicam Berlinck et al. (2001, p. 236), o “fato de ‘O’ aparecer entre parênteses indica a possibilidade de que ele não ocorra na frase”,

como em (3). “Já o símbolo ‘X’ representa um constituinte de outra natureza, que pode ocorrer ou não na frase”. Nas sentenças analisadas, “X”corresponde a “para Riobaldo” (OI); “ontem” e “na festa” (circunstanciais).

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Os pares de frases a seguir apresentam, de acordo com Berlincket al. (2001), uma problemáticadiferente, pois, nas frases-respostas (8) e (9), o sujeito aparece posposto:

(8) Tinha muita gente na festa?

Na festa vieram Manuelzão e o Augusto Matraga.

(9) O que aconteceu?

Vieram o Manuelzão e o Augusto Matraga na festa.

Em (8), o padrão de ordenação da frase-resposta pode ser assim representado:

P1 V S

Esse padrão, com sujeito posposto ao verbo, explica-se pelo fato de o sujeito não ser tópico e nem

constituir isoladamente o foco – por esse motivo não há razão pragmática para que ocupe P1 (PEZATTI;CAMACHO, 1997). Considerando a frase-pergunta (8), que fornece informações sobre o contextocomunicacional, o constituinte “Na festa” é que desempenha função pragmática de tópico, pois é sobrea entidade a que esse termo se refere que a informação é requerida e fornecida. Por esse motivo, eleocupa a posição P1, normalmente reservada a elementos com função pragmática marcada.

O sujeito, por sua vez, carrega a informação nova, não sendo, entretanto, o único elemento a fazê-lo.Por isso não constitui um foco marcado, não tendo, mais uma vez, razões pragmáticas para ocupar P1. Osujeito, aqui, entra na composição da frase-comentário, que veicula, como um todo, a informação novarequerida sobre “a festa”.

Em (9), o padrão de ordenação da frase-resposta é o seguinte:

V S X

Nesse caso, o estatuto do elemento novo também explica a posposição do sujeito ao verbo, mas,diferentemente da frase-resposta (8), “na festa” também faz parte da frase-comentário, do que decorreque o enunciado como um todo veicula informação nova, hipótese conrmada pelo contexto comuni-cacional fornecido pela frase-pergunta (9) – “O que aconteceu?”.

As análises aqui relatadas devem ter esclarecido razoavelmente que, da perspectiva funciona-lista, o universo de análise da linguagem é a língua em uso, visto que são as condições e as exigências

comunicacionais que moldam a sua estrutura, como pudemos perceber pela análise da ordenação dosconstituintes na sentença, exposta nesta seção. Nesse sentido, o sistema lingüístico existe para cumprirfunções essencialmente comunicativas, do que decorre, como já armamos, que as línguas são instru-mentos de interação social e devem, por isso, ser descritas e explicadas a partir do esquema efetivo dainteração verbal.

Entretanto, não devemos nos esquecer de que o sistema de regras lingüísticas também impõerestrições: não ordenamos, por exemplo, os constituintes de uma sentença de qualquer maneira – nãopospomos, em português, o artigo ao substantivo, pois essa estruturação não é licenciada pelo sistemalingüístico de nosso idioma. Na verdade, submetemo-nos sempre, em alguma medida, ao sistemalingüístico, mas também “manejamos um conjunto de opções, com as quais ajustamos nossas produções

para, compondo sentido, obtermos sucesso na interação, conseguirmos, realmente, interagir” (NEVES,2006, p. 130).

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Texto complementar

8 Esta é uma concepção de gramaticalização (o estudo de um conjunto especíco de processos de mudanças lingüísticas da naturezaanteriormente denida). É um sentido restrito de gramaticalização. A outra concepção, que muitos autores preferem, à vezes, chamar de

gramaticização, tem a ver com o ramo da Língüística que se ocuparia com o estudo de como as formas e construções lingüísticas surgem, sãousadas e conguram os sistemas lingüísticos (Cf. CASTILHO, 1997 e GALVÃO, 1999: 12). Este seria um sentido “lato sensu” de gramaticaliza

A gramaticalização(TRAVAGLIA, 2002, p. 2-3)

Os estudos de gramaticalização têm sido entendidos como o estudo de mudanças lingüísticasque acontecem no espaço de um continuum que até o momento tem se revelado como sendoestabelecido entre unidades lingüísticas independentes, quase sempre de natureza lexical, emconstruções menos ligadas e unidades de natureza mais gramatical, dependentes e ligadas (taiscomo clíticos, partículas, auxiliares, construções aglutinativas e exões) (Cf. CASTILHO, 1997:26Neste continuum observa-se o surgimento de elementos gramaticais por um processo em que umelemento de natureza lexical da língua passa a elemento funcional e/ou gramatical da língua ou deum nível menos gramatical para um mais gramatical8, como, por exemplo, a passagem de um verbopleno a auxiliar ou a passagem de um morfema derivacional a morfema exional.

Como diz Hopper (1991: 59), entende-se por gramaticalização “a transformação de itens e sin-tagmas lexicais em formas gramaticais”. Hook (1991: 59) diz que “a gramaticalização está concerni-da com instâncias dramáticas de mudança semântica, em que a partir de um ponto inicial um itemlexical independente mais tarde aparece como uma palavra funcional ou morfema preso, preen-chendo um papel geral, freqüentemente bastante abstrato no sistema gramatical da língua a quepertence”.

Para dimensionamento do que estaremos dizendo, neste estudo entenderemos um item/elemento/unidade da língua comolexical quando seu signicado for caracterizado por um conteúdosemântico ligado à indicação de algo do mundo biopsicosicossocial e entenderemos um item/elemento/unidade da língua comogramatical quando o mesmo tiver um signicado caracterizadopor um conteúdo de natureza funcional, gramatical, relacional, dentro dos limites da organizaçãoe funcionamento da língua sem referência a elementos do mundo biopsicosicossocial ou, setiver apenas uma indicação referencial “indireta” como a dêitica e a anafórica. Para nós incluem-seentre os valores gramaticais, valores e funções de ordenação textual-discursiva, direcionamentosargumentativos, ênfase, contrastes entre gura e fundo, dentre outras funções textuais que comfreqüência não são vistos como fazendo parte da gramática da língua.

[...] Estaremos chamando deelemento gramatical aquele que representa a codificação deum conceito cognitivo de natureza puramente lingüística sem qualquer referência a elementosde um mundo biopsicofisicossocial.

A gramaticalização tem sido entendida como o processo pelo qual uma forma, de uma ca-tegoria lexical ou gramatical dada, migra para uma categoria gramatical ou para outra categoria

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gramatical, ou para o espaço intercategorial. Nesta evolução as “unidades lingüísticas perdem emcomplexidade semântica, liberdade sintática e substância fonética” (HEINE E REH, 1984apud CAS-

TILHO, 1997: 26).Os estudiosos em geral estão de acordo quanto ao fato de que a gramaticalização é um pro-

cesso gradual, gradiente e sem m, pois estão sempre se renovando as possibilidades expressionaisdos elementos gramaticais. Por isto mesmo se coloca que a gramaticalização tem uma dimensãosincrônica que seria responsável pela variação e uma dimensão diacrônica que seria responsávelpela mudança.

Estudos lingüísticos1. Qual é o pressuposto fundamental do Funcionalismo?

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2. Apresente omodelo de interação verbal , tal como concebido por Simon Dik.

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Linguagem e pensamentono Interacionismo

PiagetianoPretendemos apresentar uma das teorias sobre o desenvolvimento da inteligência humana mais

conhecidas no cenário educacional brasileiro: o Cognitivismo Construtivista do biólogo suíço Jean Pia-

get. Nosso interesse não é pela teoria em si, enquanto explicação para o desenvolvimento mental, maspelo conceito de interação pressuposto nas elaborações do biólogo – motivo pelo qual, não raras vezes,a teoria é referida como o Interacionismo Piagetiano –, bem como pela maneira como o autor concebeo processo de aquisição de linguagem: como sendo parte do desenvolvimento da inteligência geral1,não apresentando, portanto, uma teorização especíca sobre o fenômeno lingüístico, o que será, paraos lingüistas, um forte motivo para problematizar as concepções do biólogo sobre o desenvolvimentoda linguagem.

Não obstante as restrições que, no campo da Lingüística atual, faz-se ao Interacionismo Piage-tiano, parece-nos imprescindível o conhecimento de sua proposta a m de que se possa compreenderem que sentido a problematização em torno de seus postulados possibilitou o surgimento de novas

propostas, extremamente produtivas para os estudos de aquisição de linguagem – e para os estudosinteracionistas de um modo geral.

Apresentaremos, pois, a seguir, a concepção de desenvolvimento mental segundo Piaget para,posteriormente, tratarmos especicamente da abordagem que o autor faz da aquisição e do desenvol-vimento da linguagem.

1 O postulado piagetiano de que a aquisição e o desenvolvimento da linguagem são derivados do desenvolvimento mental da criança contestaa autonomia da Gramática Universal como domínio especíco de conhecimento lingüístico, conforme a concebe Chomsky. A diferença entre

a concepção de aquisição de linguagem nos dois teóricos atualiza uma das polêmicas clássicas do campo dos estudos lingüísticos, a saber, apolêmica entre conceber o conhecimento lingüístico como inato ou adquirido.

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O desenvolvimento mental do ser humanoO biólogo suíço Jean Piaget arma, em um de seus estudos, que o desenvolvimento mental do

ser humano começa quando nascemos e termina na idade adulta. Para o estudioso (1994a, p. 13), essedesenvolvimento

é comparável ao crescimento orgânico: como este, orienta-se, essencialmente, para o equilíbrio. Da mesma maneiraque um corpo está em evolução até atingir um nível relativamente estável – caracterizado pela conclusão do cresci-mento e pela maturidade dos órgãos –, também a vida mental pode ser concebida como evoluindo na direção de umaforma de equilíbrio nal, representada pelo espírito adulto. O desenvolvimento, portanto, é uma equilibração progres-siva, uma passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior.

Essas passagens contínuas de um estado de menor equilíbrio para um de maior equilíbrio2 conguram o que Piaget chamou deestágios ou períodos de desenvolvimento, isto é, referem-se a formasdiferentes e sucessivas de organização da atividade mental. O desenvolvimento mental é, pois, uma

construção contínua, “comparável à edicação de um grande prédio que, à medida que se acrescentaalgo, cará mais sólido” (PIAGET, 1994a, p. 14). Os seis estágios que marcam o aparecimento de estruturasmentais sucessivamente construídas são:

o estágio dos reexos, ou mecanismos hereditários, assim como também das primeiras tendên-::cias instintivas (nutrições) e das primeiras emoções;

o estágio dos primeiros hábitos motores e das primeiras percepções organizadas, como tam-::bém dos primeiros sentimentos diferenciados;

o estágio da inteligência senso-motora ou prática (anterior à linguagem), das regulações::afetivas elementares e das primeiras xações exteriores da afetividade;

Esses três primeiros estágios constituem o período de lactância – que vai até por volta de umano e meio a dois anos de idade –, sendo anterior ao desenvolvimento da linguagem e dopensamento.

o estágio da inteligência intuitiva, dos sentimentos interindividuais espontâneos e das rela-::ções sociais de submissão ao adulto;

Esse estágio – que vai dos dois aos sete anos de idade – é reconhecido como a segunda parteda primeira infância, período em que se dá o desenvolvimento das funções simbólicas e, por-tanto, do pensamento e da linguagem.

o estágio das operações intelectuais concretas (começo da lógica) e dos sentimentos morais::

e sociais de cooperação; Esse estágio ocorre entre os sete e os onze anos de idade.

o estágio das operações intelectuais abstratas, da formação da personalidade e da inserção::afetiva e intelectual na sociedade dos adultos.

Esse período se dá na adolescência.

Cada um dos estágios passados corresponde a um nível necessário para o desenvolvimentode estágios ulteriores – como ocorre na edicação de um prédio. Cada um desses estágios equiva-le a uma forma particular de equilíbrio, que será modicada pelo(s) estágio(s) de desenvolvimento

2 Ver a respeito do conceito deequilíbrio e equilibração no Texto Complementar.

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subseqüente(s). Será, pois, a partir da superação de cada estágio que ocorrerá a evolução mental,compreendida por Piaget como uma equilibração sempre mais completa. Nesse processo de evolu-ção mental, é importante perceber que, apesar da diferenciação existente entre cada um dos está-gios, todos eles possuem funções constantes e comuns: em todos os níveis, a ação da criança ou doadolescente sobre o ambiente supõe sempre um interesse que a desencadeia, podendo se tratar deuma necessidade siológica, afetiva ou intelectual (nesse último caso, a necessidade apresenta-sesobre a forma de uma pergunta ou problema).

Temos, pois, aqui, a questão central que nos permite apresentar o conceito deinteração queembasa a proposta piagetiana: a interação se dá entre o organismo e o ambiente. O resultado dessainteração será o desenvolvimento da inteligência geral do indivíduo – que se dá pela superação deestágios. A aquisição da linguagem, sendo parte desse desenvolvimento, exige, para que possa ocorrer,que o indivíduo, além de ter superado o período senso-motor (os três primeiros estágios anteriormenteapresentados), também interaja com o ambiente por meio de uma ação sobre ele.

A seguir, apresentaremos, em linhas gerais, a maneira como Piaget concebe, do ponto de vista daformação da inteligência na criança, a aquisição de linguagem.

A gênese do pensamento e da linguagemPiaget (1994b) arma que uma criança de 2-3 anos é capaz de evocar situações não atuais, não

presentes nos limites de seu campo perceptivo. Diferentemente do que ocorre no período senso-motor,os objetos e acontecimentos deixam de ser alcançados apenas na sua imediatez, pois passam a integrarum quadro conceitual e racional que enriquece o conhecimento da criança. Isso ocorre porque no quartoestágio (2-7 anos) se dá o desenvolvimento das funções simbólicas, que se explicam pela formação dasrepresentações. As funções simbólicas englobam o sistema de signos verbais (a linguagem, portanto) eo símbolo. Vejamos mais de perto no que consistem essas funções.

De acordo com Piaget, a linguagem é constituída por um sistema de signos, cujos signicantessão arbitrários, no sentido de serem convencionalmente estabelecidos pelo grupo social. Portanto, parase evocar um acontecimento já ocorrido usando a linguagem, a criança não poderá fazê-lo usandoqualquer signo, mas apenas aqueles passíveis de representar, por meio da evocação, o acontecimentorelatado. Essa é uma das maneiras de representação.

Entretanto, conforme aponta o biólogo, quando se examinam de perto as mudanças da inteligên-

cia produzidas no momento da aquisição da linguagem, percebe-se que ela não é a única responsávelpelos processos de representação. Os símbolos, cujas formas de ocorrência se encontram no jogo sim-bólico, na imitação retardada e na imaginação mental, também viabilizam a construção dos esquemasde representação. Relataremos alguns exemplos enumerados pelo próprio Piaget.

O jogo simbólico aparece mais ou menos ao mesmo tempo que a linguagem, mas indepen-dente dela, desempenhando um importante papel no pensamento das crianças, “a título de fontes derepresentações individuais (ao mesmo tempo cognitivas e afetivas) e de esquematização representa-tiva, igualmente individual” (PIAGET, 1994b, p. 78). Um dos exemplos relatados pelo biólogo ocorrecom um de seus lhos. O jogo simbólico da criança consistia em ngir que estava dormindo. Certamanhã, já acordada e sentada na cama de sua mãe, a criança percebeu um pedaço de lençol que lhe

lembrou o canto de seu travesseiro (para dormir ela sempre mantinha na sua mão o canto do travessei-

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ro e colocava na boca o polegar da mesma mão). Pegou o pedaço do lençol, fechou rmemente a mão,colocou o polegar na boca, fechou os olhos e, continuando sentada, sorriu. Esse é, conforme explicaPiaget, o exemplo de uma representação independente da linguagem, mas ligada a um símbolo lúdico,por meio do qual, com gestos apropriados que imitam os gestos que comumente acompanham aquelaação, evoca-se tal acontecimento.

Outro tipo de simbolismo individual, que também se inicia na mesma época e desempenha umpapel igualmente importante na gênese da representação, é a imitação retardada, isto é, “a imitaçãoproduzida pela primeira vez na ausência do modelo correspondente” (PIAGET, 1994b, p. 79). O autorrelata, a título de exemplo, que uma de suas lhas, ao receber um amigo em sua casa, cou surpresa aovê-lo car com raiva e gritar e bater os pés. Na hora em que se deu esse fato, ela não reagiu, mas, tãologo o amigo partiu, imitou a cena sem qualquer demonstração de cólera.

A imaginação mental é o terceiro tipo de simbolismo individual abordado por Piaget. Conformeele mesmo esclarece, “pode-se chegar até a classicar entre os símbolos individuais toda imaginaçãomental” (PIAGET, 1994b, p. 79), visto que, para ele, a imagem não é nem elemento do pensamentopropriamente dito, nem continuação direta da percepção. Diferentemente, é símbolo do objeto e, nessesentido, pode ser concebida como imitação interiorizada – a imagem sonora é imitação interior do somcorrespondente; a imagem visual é o produto da imitação do objeto e da pessoa.

Os três tipos de símbolos concebidos por Piaget são, como já deve ter sido possível perceber nasconsiderações que acabamos de fazer, derivados da imitação, que, de acordo com o autor, é “um dospossíveis termos intermediários entre as condutas senso-motoras e as condutas representativas, sendonaturalmente independente da linguagem, se bem que sirva para sua aquisição” (PIAGET, 1994b, p. 79).

Outro aspecto dos símbolos que gostaríamos de apontar é que eles são motivados – não são

imotivados como os signos –, visto que mantêm uma relação do tipo natural com o que representam.Entretanto, apesar dessa diferença entre símbolos e signos, ambos distinguem signicantes de signi-cados (objetos ou acontecimentos), o que é próprio das funções simbólicas3.

Como foi dito no início desta seção, no quarto estágio (2-7 anos) se dá o desenvolvimento dasfunções simbólicas, que se explicam pela formação das representações. As funções simbólicas englo-bam o sistema de signos verbais (a linguagem, portanto) e o símbolo. A questão que agora colocamosé a seguinte: a linguagem, para Piaget, é a função simbólica por excelência, isto é, a linguagem é quepermite o desenvolvimento do pensamento e, portanto, das demais funções simbólicas?

Não. Para o biólogo, existe uma função simbólica mais ampla que a linguagem, que engloba, alémdo sistema de signos verbais, o do símbolo. Por esse motivo, a origem do pensamento deve ser procuradano aparecimento da função simbólica, que possibilita a formação das representações. A linguagem é ape-nas uma forma particular dessa função e, por esse motivo, Piaget (1994b, p. 80) conclui que “o pensamen-to precede a linguagem e que esta se limita a transformá-lo, profundamente, ajudando-o a atingir suasformas de equilíbrio através de uma esquematização mais desenvolvida e de uma abstração mais móvel.”

Em função dessa forma de conceber a relação entre pensamento e linguagem, Piaget será alvo demuitas críticas. Outro ponto de sua teoria que também irá gerar controvérsias é a forma como o autor

3 No terreno senso-motor, tal como esclarece Piaget (1994b, p. 79), “já existem sistemas de signicações (formas, ns ou meios etc.). Mas o únicosignicante que as condutas senso-motoras conhecem é o índice (em oposição a signos e símbolos) ou o sinal (condutas condicionadas). Ora,o índice e o sinal não são signicantes, relativamente, indiferenciados de seus signicados. Estes são apenas partes ou aspectos do signicado

e não representações que permitam a evocação. Conduzem ao signicado como a parte conduz ao todo ou os meios ao m, e não como umsigno ou símbolo que evoca pelo pensamento um objeto ou um acontecimento na sua própria ausência”.

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concebe o processo de aquisição de linguagem, que não pressupõe a mediação do adulto, mas apenasa interação entre o organismo e o ambiente. Para ele, a linguagem, apesar de ser um veículo de concei-tos e noções que pertence a todos, o que ela faz é reforçar o pensamento individual, mesmo que comum vasto sistema de pensamento coletivo. O sistema, portanto, é coletivo, mas a posse e o uso dessesistema são um processo que não decorre da socialização. Ao contrário, a socialização da criança, paraPiaget, só começará a ocorrer com o desenvolvimento das funções simbólicas, não sendo, portanto,condição prévia para o desenvolvimento da linguagem. É contrapondo-se a essa perspectiva que ascríticas ao modelo piagetiano armam, conforme esclarece Scarpa (2001, p. 212-213), que o biólogo

avaliou mal e subestimou o papel social e das outras pessoas no desenvolvimento da criança e que um modelo intera-tivo social se fazia necessário para explicar o desenvolvimento nos primeiros dois anos, modelo esse que desse contade como a criança e seu interlocutor exploram os fenômenos físicos e sociais.

Na esteira dessas críticas, e com o intuito de dar conta do alcance social da aquisição da linguagem,é que as elaborações teóricas ocidentais sobre aquisição incorporaram as propostas de Vygotsky.

Texto complementar

O equilíbrio(PIAGET, 1994c, p. 127;130-132)

Para denir o equilíbrio, deter-me-ei em três características. Em primeiro lugar, o equilíbrio secaracteriza por sua estabilidade. Mas, observamos imediatamente que estabilidade não signicaimobilidade. [...] A noção de mobilidade não é, portanto, contraditória com a de estabilidade: o equi-líbrio pode ser móvel e estável. No campo da inteligência temos grande necessidade dessa noçãode equilíbrio móvel. Um sistema operatório será, por exemplo, um sistema de ações, uma série deoperações essencialmente móveis, mas que podem ser estáveis, no sentido de que a estrutura asdetermina, uma vez constituída, não se modicará mais.

Segunda característica: todo sistema pode sofrer perturbações exteriores que tendem a modi-

cá-lo. Diremos que há equilíbrio quando essas perturbações exteriores são compensadas pelas açõesdo sujeito, orientadas no sentido da compensação. A idéia de compensação me parece fundamentale a mais geral para denir o equilíbrio psicológico.

Enm, o terceiro ponto sobre o qual gostaria de insistir: o equilíbrio assim denido não é qual-quer coisa de passivo, mas, ao contrário, alguma coisa de essencialmente ativo. É preciso, então,uma atividade tanto maior quanto maior for o equilíbrio. É muito difícil conservar um equilíbriodo ponto de vista mental. O equilíbrio moral de uma personalidade supõe uma força de caráterpara resistir às perturbações, para conservar os valores aos quais se tem apego etc. Portanto, equi-líbrio é sinônimo de atividade. No campo da inteligência acontece o mesmo. Uma estrutura estaráem equilíbrio na medida em que o indivíduo é sucientemente ativo para poder opor a todas as

perturbações compensações exteriores. Estas últimas acabarão, aliás, por serem antecipadas pelo

Linguagem e pensamento no Interacionismo Piagetiano

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pensamento. Graças ao jogo das operações, pode-se, ao mesmo tempo, antecipar as possíveisperturbações e compensá-las, através das operações inversas ou das operações recíprocas.

[...]

Estudo de um caso particularIntroduzo aqui o equilíbrio ou equilibração. Para dar conteúdo mais concreto ao que até agora

só foi uma palavra abstrata, focalizarei um modelo mais preciso. Este só pode ser, no caso particular,um modelo probabilístico que mostrará como o sujeito, progressivamente, passa de um estado deequilíbrio instável para um cada vez mais estável, até a compensação completa que caracterizará oequilíbrio. Utilizar-me-ei – porque pode ser sugestivo – da linguagem da teoria dos jogos. Podem-se distinguir no desenvolvimento da inteligência quatro fases que podem ser chamadas, nessa lin-guagem, de fases de “estratégia”. A primeira é a mais provável no início; a segunda se torna maisprovável em função dos resultados da primeira, mas não o é desde o início; a terceira se torna a maisprovável em função da segunda, mas não anteriormente; e assim por diante. Trata-se, portanto,de uma probabilidade seqüencial. Estudando as reações de crianças de idades diferentes, pode-seobservar que, em uma primeira fase, a criança utiliza apenas uma dimensão. Ela dirá a você: “Hámais massa aqui que lá, porque é maior, é mais comprido.” Se você alonga mais, ela dirá: “Existemais ainda, porque está mais longo.” Quando o pedaço de massa é alongado, naturalmente se adel-gaça, mas a criança ainda assim só considera uma dimensão, negligenciando totalmente a outra. Éverdade que certas crianças se referem à espessura, mas são pouco numerosas. Dirão: “Há menos,porque é mais no; há menos ainda, porque está ainda mais no”, mas esquecerão o comprimento.

Nos dois casos, a conservação é ignorada e a criança retém apenas uma dimensão, uma ou outra,mas não as duas ao mesmo tempo. Acho que essa primeira fase é a mais provável no início. Por quê?Quanticando, eu diria, por exemplo (arbitrariamente), que o comprimento dá uma probabilidade0,7, isto é, suponho que haja sete casos sobre dez que invoquem o comprimento, e para a espessuradaria três casos, portanto uma probabilidade de 0,3. [...].

Examinemos agora a segunda fase. A criança vai inverter seu julgamento. Seja a criança queraciocina sobre o comprimento. Ela dirá: “É sempre mais, porque é mais longo.” Torna-se provável– não digo no início, mas em função desta primeira fase – que em dado momento adotará atitudeinversa, e isto por duas razões. Primeiro, devido a um contraste perceptivo. Se você continua a alon-gar a bolinha até fazer uma forma de macarrão, ela acabará por dizer: “Ah! Não, agora há menos,

porque está muito no...” Torna-se, portanto, sensível a este adelgaçamento que havia negligen-ciado até então. Ela o tinha percebido, bem entendido, mas o negligenciava conceitualmente. Osegundo motivo é uma insatisfação subjetiva. De tanto repetir todo o tempo: “Há mais porque émais longo...” a criança começa a duvidar de si própria. É como o sábio que começa a duvidar deuma teoria, quando ela se aplica, muito facilmente, a todos os casos. A criança terá mais dúvida nadécima armação que na primeira ou na segunda. E por essas duas razões, é bem provável que emdado momento renuncie a focalizar o comprimento e vá raciocinar sobre a espessura. Mas, nessenível do processo, raciocinará sobre a espessura como raciocinou sobre o comprimento. Esquece ocomprimento e continua a só considerar uma única dimensão. Essa segunda fase, que claro, é maiscurta que a primeira, durando, às vezes, alguns minutos, mas só em casos bastante raros.

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Terceira fase: a criança vai raciocinar sobre as duas dimensões ao mesmo tempo. Mas, primeiro,vai oscilar entre as duas; pois se até aqui invocou ora o comprimento, ora a espessura, sempre que

lhe era apresentado um novo estímulo e que se transformava a forma da bolinha, vai escolher oraa espessura, ora o comprimento. Ela lhe dirá: “Eu não sei, é mais, porque é mais longo... não; é maisno, então tem um pouco menos...” Isto a levará – e se trata ainda aqui de uma probabilidade nãoa priori , mas seqüencial, em função desta situação especíca – a descobrir a solidariedade entre asduas transformações. Descobre que, à medida que a bolinha se alonga, ela se adelgaça, e que todatransformação de comprimento implica uma transformação de espessura, e reciprocamente. Daípor diante, a criança começa a raciocinar sobre transformações, pois até agora só havia raciocinadosobre congurações – primeiro a da bolinha, depois a da salsicha –, independentemente uma da ou-tra. Mas, desde que raciocina sobre o comprimento e a espessura ao mesmo tempo, portanto sobrea solidariedade das duas variáveis, vai raciocinar em termos de transformação. Descobrirá, em con-seqüência, que as duas variações estão em sentido inverso uma da outra, que à medida que “isto”se alonga, “isto” se adelgaça, e que à medida que “isto” engrossa, “isto” se encurta. Quer dizer queela vai tomar o caminho da compensação. Quando tiver tomado esse caminho, a estrutura vai-secristalizar, pois é a mesma massa que acaba de se transformar sem nada lhe ter sido acrescentadoou retirado e que se transforma em duas dimensões, em sentido inverso uma da outra. Então, tudoque a bolinha vai ganhar em comprimento perderá em espessura e reciprocamente. A criança seacha agora diante de um sistema reversível, ingressando, assim, na quarta fase. Ora trata-se de umaequilibração progressiva – e insisto neste ponto –, de uma equilibração que não é preformada. Osegundo ou terceiro estágio só se torna mais provável em função do estágio imediatamente prece-dente, e não em função daquele inicial. Estamos, portanto, em presença de um processo de proba-bilidade seqüencial que nalmente chega a uma necessidade. Mas isso somente quando a criança

adquire a compreensão da compensação e quando o equilíbrio se traduz diretamente por essesistema de implicação que chamei, há pouco, reversibilidade. Nesse nível de equilíbrio, ela atingeuma estabilidade, pois não há mais nenhuma razão para negar a conservação; mas essa estruturavai-se integrar, cedo ou tarde, nos sistemas ulteriores mais complexos.

Estudos lingüísticos1. O conceito de interação pressuposto nas elaborações teóricas do biólogo suíço Jean Piaget

foi bastante produtivo para o surgimento de novas propostas de estudo sobre a aquisição dalinguagem e para os estudos interacionistas de um modo geral. Entretanto, há, entre os lingüistas,um forte motivo para problematizar as concepções do biólogo sobre o desenvolvimento dalinguagem. Qual é esse motivo?

Linguagem e pensamento no Interacionismo Piagetiano

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2. Como o desenvolvimento mental do ser humano é concebido por Piaget?

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3. A armação “Para Piaget, a linguagem é que permite o desenvolvimento do pensamento e,portanto, das demais funções simbólicas” está correta? Justique sua resposta.

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Vygotsky e o componentesocial do Interacionismo:

implicações para o

Interacionismo naLingüística

InteracionismosFalar em Interacionismo na Lingüística implica a consideração de uma multiplicidade de enfo-

ques que concebem, cada um à sua maneira, o fenômeno da interação. Implica também considerar quea perspectiva interacionista da linguagem atravessa um conjunto razoavelmente extenso de áreas daLingüística – a Pragmática, a Sociolingüística, a Análise da Conversação, a Lingüística Textual, certa Smântica, certa Teoria do Discurso, certa Psicolingüística, algumas teorias da área de aquisição de lingua-gem – e que cada uma delas, obviamente, incorpora a noção deinteração de modo diferente. Como senão fosse ainda suciente, falar em Interacionismo exige que se leve em conta a estreita e constitutivarelação que a Lingüística mantém com outras áreas do conhecimento, como a Psicologia, a Sociologia, aAntropologia, a História, nas quais a noção deinteração também se faz presente. Por esse motivo, abor-dar o fenômeno da linguagem a partir da perspectiva interacionista exige que se façam recortes, que sefaçam opções, e é o que faremos.

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Optaremos, pois, por tratar do Interacionismo em Lingüística a partir das teorias e reexões de-senvolvidas nos estudos de aquisição de linguagem. Justicamos nossa opção em torno de três ar-gumentos. Em primeiro lugar, pela relevância das reexões levadas a cabo pelos lingüistas – inclusivebrasileiros – que se dedicaram ao estudo da aquisição a partir da perspectiva interacionista. O segundomotivo refere-se ao fato de o objeto de estudo em questão nessa área – o processo de aquisição da lin-guagem pela criança – impor aos lingüistas a exigência de se abordar a noção deinteração sempre emrelação à linguagem. Por último, destaco o constante diálogo desses estudos com teorias elaboradasem outras áreas do conhecimento, como a Biologia, a Psicologia e a Psicanálise, o que pode ser bastanteprodutivo quando se aborda a linguagem em relação ao fenômeno da interação.

Iniciaremos nosso percurso apresentando, em linhas gerais, a proposta teórica de Lev Vygotsky,que inspirará os trabalhos em aquisição que entendem o componente social como pré-requisito para oprocesso de aquisição da linguagem. Posteriormente, apresentaremos algumas das vertentes de estu-dos de aquisição da linguagem abrigadas sob o rótulo deinteracionistas, para possibilitar uma melhorcompreensão dessa perspectiva de abordagem do fenômeno da linguagem.

Vygotsky e as raízes genéticasdo pensamento e da linguagem

De acordo com Jean Piaget, a socialização da criança ocorre a partir do desenvolvimento da lin-guagem e da função simbólica de um modo geral. Vygotsky, diferentemente, em seu livroPensamentoe linguagem (2005), arma que a função social da fala já é aparente durante o primeiro ano de vida dacriança, fase que o autor nomeia defase pré-intelectual do desenvolvimento da fala. Vejamos a seguirde que maneira Vygotsky compreende o processo de desenvolvimento da linguagem, a relação entrelinguagem e pensamento, bem como em que sentido o componente social é central em sua proposta.Esse percurso nos possibilitará apresentar, mais adequadamente, a noção deinteração mobilizada pelateoria vygostikiana.

De acordo com o autor, o pensamento e a linguagem têm raízes genéticas diferentes e se desen-volvem ao longo de trajetórias distintas e independentes. Não obstante, há uma estreita correspon-dência entre o pensamento e a fala, característica própria dos homens, visto que isso não ocorre nem

mesmo nos animais mais desenvolvidos, como é o caso dos macacos antropóides.Vygotsky arma que há uma fase pré-verbal na evolução do pensamento durante a infância (entre

os 10, 11, 12 meses de idade), isto é, que há uma fase em que existe uma independência das reaçõesintelectuais rudimentares em relação à fala: antes da fala, há o pensamento associado à ação, que se tor-na conscientemente intencional. O autor também reconhece a existência de umafase pré-intelectual dafala, que se manifesta, por exemplo, por meio de balbucios, choro e pelas primeiras palavras. Essas ma-nifestações não são apenas de ordem emocional: elas têm, desde o início, uma função social aparente1.Trata-se de estágios de desenvolvimento da fala, que não têm, entretanto, nenhuma relação com aevolução do pensamento.

1 Conforme nos relata o autor (2005, p. 53): “Reações bastante denidas à voz humana foram observadas já no início da terceira semana de

vida, e a primeira reação especicamente social à voz, durante o segundo mês [...] as risadas, os sons inarticulados, os movimentos etc. sãomeios de contato social a partir dos primeiros meses de vida da criança”.

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Em um certo ponto do desenvolvimento, mais ou menos aos dois anos de idade, “as curvas daevolução do pensamento e da fala, até então separadas, encontram-se e unem-se para iniciar uma novaforma de comportamento” (VYGOTSKY, 2005, p. 53). Esse momento ocorre quando a criança percebque cada coisa tem o seu nome, iniciando um processo em que começa a manifestar a vontade dedominar a linguagem. Assim, nesse instante crucial, a fala começa a servir ao intelecto, e os pensa-mentos começam a ser verbalizados. Esse fenômeno pode ser percebido, de acordo com o autor, pelapresença de dois sintomas:

a curiosidade ativa e repentina da criança pelas palavras;::

a rápida ampliação de seu vocabulário.::

Vygotsky relata que, antes desse momento, a criança conhece apenas as palavras que aprendecom as outras pessoas. Entretanto, quando as curvas da evolução do pensamento e da fala se encon-tram, a criança passa a sentir necessidade das palavras e, “ao fazer perguntas, tenta ativamente aprender

os signos vinculados aos objetos. Ela parece ter descoberto a função simbólica das palavras” (VYGOTSK2005, p. 53-54). Assim, a fala, que na primeira fase era afetivo-conativa, passa agora para a fase intelectua– que decorre do fato de as linhas do desenvolvimento da fala e do pensamento terem se encontrado,atando-se o nó do problema do pensamento e da linguagem. Aquilo que o autor chama de “a maiordescoberta da criança”, portanto, só é possível quando já se atingiu um nível relativamente elevado dodesenvolvimento do pensamento e da fala. Dito de outro modo: a fala não pode ser “descoberta” semo pensamento.

Mas o desenvolvimento da fala – dafala pré-intelectual(emotivo-conativa) àfala intelectual – sedá em estágios e segue, conforme aponta Vygotsky, o mesmo curso e as mesmas leis que o desenvolvi-mento de todas as operações mentais que envolvem signos, como o ato de contar ou a memorização

mnemônica2. São quatro os estágios de desenvolvimento:O estágio natural ou primitivo:: – corresponde à fala pré-intelectual e ao pensamento pré-verbal.

O estágio da “psicologia ingênua” ou “física ingênua”:: – momento em que o primeiro exer-cício da inteligência prática está brotando na criança: aplicação de sua experiência com aspropriedades físicas do seu próprio corpo e dos objetos à sua volta no uso de instrumentos.No desenvolvimento da fala, esse estágio manifesta-se, conforme Vygotsky, pelo uso corretodas formas e estruturas gramaticais antes que a criança tenha entendido as relações lógicasque representam: a criança pode, por exemplo, operar com orações subordinadas, com pala-vras como porque, se, quandoe mas, mesmo sem ter aprendido realmente as relações causais,condicionais e temporais. Em outras palavras, de acordo com o autor, nessa fase a criança do-mina a sintaxe da língua, sem dominar a sintaxe do pensamento.

O estágio dos signos exteriores e das operações externas usadas como auxiliares na::solução de problemas internos – fase em que a criança conta com os dedos, recorre a auxi-liares mnemônicos etc. Na fala, esse estágio se caracteriza pelafala egocêntrica (isto é, usadacomo auxiliar para solução de problemas internos).

O estágio do “crescimento interior”:: – nesse estágio, as operações externas se interiorizam:por exemplo, a criança começa a contar mentalmente, passando a operar com relações intrín-secas e signos interiores. Na fala, esse é o estágio nal, o da fala interior e silenciosa. Entretanto,

2 Não há, portanto, na proposta vygotskiana, uma teorização especíca para o desenvolvimento da linguagem. Como em Piaget, essedesenvolvimento é abordado como parte do desenvolvimento cognitivo geral.

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como explica Vygotsky (2005, p. 58), alcançado esse estágio de desenvolvimento, ainda con-tinua a existir

uma interação constante entre as operações externas e internas, uma forma se transformando na outra sem esforço ecom freqüência, e vice-versa. Quanto à forma, a fala interior pode se aproximar muito da fala exterior, ou mesmo tornar-se exatamente igual a esta última, quando serve de preparação para a fala exterior – por exemplo, quando se repassamentalmente uma conferência a ser dada. Não existe nenhuma divisão clara entre o comportamento interno e externo,e um inuencia o outro.

Assim, em linhas gerais, pode-se dizer que o processo de desenvolvimento da linguagem e dopensamento, tal como concebido por Vygotsky, ocorre conforme o seguinte processo:

I) Fala exterior II) Fala egocêntrica III) Fala interior

1. Estágio natural ou primitivo.2. Estágio da “psicologia ingênua” ou“física ingênua”.

3. Estágio dos signos exteriores e das

operações externas usadas comoauxiliares na solução de problemasinternos.

4. Estágio do “crescimento interior”.

A linguagem (e o pensamento), portanto, tem origens sociais, externas, nas trocas comunicativasentre o adulto e a criança. No decorrer de seu processo de desenvolvimento, entretanto, a linguagem,construída externamente, sofre um movimento de interiorização e representação mental do que antesera externo. Em outras palavras, ocorre a internalização – compreendida como um processo de recons-trução interna de uma operação externa – da ação e do diálogo. Esse processo é, para Vygotsky, sempremediado pelo outro, visto que o sucesso dessa internalização depende da reação das outras pessoas.

Mais uma vez, portanto, ressalta-se a posição de Vygotsky no que diz respeito à estreita relaçãoentre o desenvolvimento do pensamento e da linguagem – mesmo o autor considerando que eles têm,do ponto de vista ontogenético, raízes distintas –, bem como no que se refere à centralidade do compo-nente social em sua teoria. Conforme ele arma,

o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, isto é, pelos instrumentos lingüísticos do pensa-mento e pela experiência sociocultural da criança. [...] O crescimento intelectual da criança depende de seu domíniodos meios sociais do pensamento, isto é, da linguagem. (VYGOTSKY, 2005, p. 62-63)

O Interacionismo SocialNesta seção, apresentaremos, em linhas gerais, alguns trabalhos em aquisição da linguagem que,

se não diretamente inuenciados pela perspectiva vygotskiana, são, de alguma maneira, caudatáriosda concepção de que o componente social é condição para que a aquisição de linguagem ocorra. Essesestudos abrigam-se sob o rótulo bastante geral de Interacionismo Social. No percurso que iremos reali-zar, seguiremos Scarpa (2001).

O Interacionismo Social, como o próprio nome já diz, leva em conta os fatores sociais, comunica-tivos e culturais no estudo da aquisição da linguagem. Nessa perspectiva teórica, a interação social e a

troca comunicativa entre a criança e seus interlocutores são tomadas como pré-requisito básico para odesenvolvimento lingüístico. Também se assume, nessa abordagem, que os rituais comunicativos pré-

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verbais preparam e precedem a construção da linguagem pela criança. Conforme nos relata Scarpa,alguns estudos realizados demonstram como esquemas de ação e atenção partilhadas entre a criança eo interlocutor (um adulto ou uma criança mais velha) precedem categorias lingüísticas.

Para compreendermos melhor esses pressupostos do chamado Interacionismo Social, faremosmenção, seguindo Scarpa (2001), a estudos que mostram de que maneira o adulto institui o bebê comoum interlocutor, dirigindo-se a ele de maneira diferente de como se dirigiria a um adulto ou a umacriança mais velha. A autora aponta que tais estudos mostram que ocorrem alterações na fala adulta,em vários níveis, quando dirigida à criança: nos níveis fonológico, morfológico, sintático, semântico,pragmático. Vejamos algumas das modicações mais constantes:

a) entonação “exagerada”, reduplicações de sílabas (au-au, papai, dodói), velocidade de fala reduzida, qualidades de vozdiferenciadas, tendendo para ofalsetto;

b) frases mais curtas e menos complexas; expansões sintáticas a partir de uma palavra dita pela criança ou tradução degesto feito por ela;

c) referência espacial e temporal voltada para o momento da enunciação;

d) palavras de conteúdo lexical mais corriqueiro, mais familiares e freqüentes na rotina cotidiana da criança;

e) paráfrases, repetições ou retomadas das emissões da criança.

(SCARPA, 2001, p. 215)

Essas alterações da fala adulta mostram que o bebê (ou a criança bem pequena) é colocadona posição de interlocutor e mergulhado, pelo adulto, em um universo signicativo, construído peloprocesso interacional, a partir do qual não apenas o adulto se pretende fazer compreendido, mastambém se atribuem signicado e intenção às emissões vocais, gestos etc. da criança, vista comoparceira comunicativa, mesmo não tendo ainda adquirido linguagem. O que ocorre nesse momentoé a instituição da prática conversacional (instituição dos parceiros comunicacionais, das regras deinteração social, dos processos de cooperação comunicativa etc.), pré-requisito para a construção dalinguagem pela criança.

Scarpa (2001) nos reporta também os estudos de Bruner (1975) – de acordo com ela, a meio cami-nho entre as propostas cognitivistas construtivistas e interacionistas sociais. Bruner arma que, a partirdos seis meses de idade, a criança e o adulto engajam-se em jogos que constroem instâncias de atençãopartilhada, como empilhar blocos, esconder o rosto atrás de um obstáculo e depois mostrar a face etc.Trata-se de “esquemas interacionais que formam o espaço da partilha com o outro, no qual a criança vaidesenvolver determinadas funções, quer lingüísticas, quer comunicacionais, primeiro em nível gestual,depois em nível verbal” (SCARPA, 2001, p. 217).

Nessa perspectiva é que Bruner arma ser possível traçar uma trajetória entre a ação conjuntado adulto-bebê e o estabelecimento de papéis no discurso. Nos jogos, por exemplo, o adulto instauraa brincadeira, e a criança observa. Quando isso ocorre, o adulto toma o papel de agente, assumindoo turno discursivo (“eu”), enquanto a criança é posta no papel de “paciente” e interlocutor (“tú”). Pos-teriormente, revertem-se os papéis: a criança toma a iniciativa de começar o jogo, tomando o papelde falante, ao passo que o adulto será o interlocutor. Esses esquemas, de início, gestuais, serão depoislingüísticos, quando a criança tiver meios expressivos para exprimir essas funções.

Esses estudos interacionistas em aquisição, referidos até aqui, assumem uma perspectiva bastantefuncional ou comunicativa que se sustenta sobre uma noção de interação dialógica, a partir da qual se

instaura um universo signicativo que possibilita que o processo de aquisição de linguagem ocorra.

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Há ainda, nos estudos em aquisição, uma outra vertente do Interacionismo Social, que se conven-cionou chamar de Sociointeracionismo. As propostas sociointeracionistas assumem que a linguagem éatividade constitutiva do conhecimento do mundo pela criança, bem como o espaço em que a criançase constrói como sujeito – todo esse processo passando pela mediação do outro, do interlocutor. Naspalavras de Scarpa (2001, p. 219):

Os objetos do mundo físico, os papéis no diálogo e as próprias categorias lingüísticas não existem a priori (isto é, nãoestão a priori segmentados, conhecidos ou interpretados), mas se instauram através da interação dialógica entre acriança e seu interlocutor básico. Essa interação vai proporcionar, ao mesmo tempo, a criação da criança e do própriointerlocutor como sujeitos do diálogo, a segmentação da ação e dos objetos do mundo físico sobre os quais a criançavai operar, e a própria construção da linguagem, que por si é um objeto sobre o qual a criança também vai operar.

O Sociointeracionismo, portanto, concebe a interação como um processo em que se constituem,de maneira inseparável, a linguagem e a dialogia, visto que não se centraliza no produto lingüístico, istoé, no que cada um dos interlocutores (no caso, a mãe e a criança) diz separadamente. Diferentemente,

centraliza-se no estudo da linguagem enquanto atividade do sujeito, considerando-a no processo inte-racional comum aos interlocutores – o que revaloriza sobremaneira os processos dialógicos.

Nesse percurso de reexões sobre a aquisição da linguagem numa perspectiva interacionista, DeLemos3 propõe, conforme avalia Scarpa (2001), uma direção alternativa ao Sociointeracionismo, prefe-rindo, inclusive, que sua postura seja referida como interacionista. Partindo de leituras de Saussure e dopsicanalista Lacan, De Lemos se propõe a estudar as relações do sujeito com a língua, em uma tentativade melhor responder à indagação de como a criança chegaria à língua. A hipótese fundamental de DeLemos em relação à aquisição da linguagem é que a criança é colocada numa estrutura em que com-parece o Outro/outro4; nessa estrutura, o que caracteriza a trajetória da criança deinfans (não-falante) afalante são as mudanças de posição em relação aoOutro, isto é, à língua e, desse modo, à fala (ooutro),

que pode ser a fala da própria criança ou a de um interlocutor. Em outras palavras, o que identica asmudanças no processo de aquisição são as diferentes posições da criança nessa estrutura.

É importante destacar que a proposta de De Lemos se distancia radicalmente das teorias (daPsicologia e da Lingüística) que assumem a idéia de desenvolvimento lingüístico, visto que a noção dedesenvolvimento pressupõe um falante onisciente, que tem pleno controle de sua atividade lingüísti-ca. Para a autora, não é possível falar em “conhecimento pleno da língua” e nem de um estágio nal dedesenvolvimento. Nesse sentido, ela passa de uma visão diacrônica para uma visão estrutural, visto que,em vez de conceber que a criança “desenvolve” a linguagem, entende-se que a criança é colocada emuma estrutura em que comparece o Outro/outro. A noção deinteração, portanto, desloca-se para esseespaço estrutural, no qual interagem sujeito e língua/fala.

Como vimos, há várias noções deinteração e, em decorrência, váriosinteracionismos. Entretanto,apesar das diferenças, todos eles realizam um movimento comum: concebem a interação como umacategoria fundamental para a explicação do fenômeno da linguagem. E é apenas nesse sentido que sepodem reunir diferentes estudos sob o mesmo rótulo – o de interacionistas.

3 Ver De Lemos (1992, 1995, 1998, 1999).4 Outro – instância da língua, a língua em funcionamento; outro – instância da fala (da criança ou do interlocutor).

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Texto complementar

Uma crítica (radical) à noção de desenvolvimento naaquisição da linguagem

(DE LEMOS, 2006, p. 28-31)

Desde o primeiro momento de meu trabalho em aquisição da linguagem, fui desaada pelafala da criança (De Lemos, 1981, 1982). Mais precisamente, pela natureza fragmentária dos enuncia-dos iniciais, pelos erros previsíveis e imprevisíveis que aparecem mais tarde, pelo momento em que

a fala da criança se torna mais estável e homogênea – momento que coincide tanto com as reformu-lações/correções, quanto por seus efeitos lingüísticos criativos. Desao decorrente também do fatode que, desde os primeiros enunciados da criança, parece haver uma relação estrutural entre eles eos do adulto, apesar da assumida assimetria entre os ditos estágios do desenvolvimento.

Enfrentar esses desaos signicava, para mim, enfrentar tanto a resistência que a fala da crian-ça impunha à análise lingüística, quanto a pressão de atribuir estatuto teórico à interação adulto–criança no processo de aquisição da linguagem. A proposta que tenho avançado nos últimos anos(ibid , 1992, 1997) é, portanto, uma tentativa de respostas não só aos desaos empíricos, como àssuas demandas metodológicas e teóricas.

Essa proposta vai no sentido de denir a aquisição da linguagem como um processo desubjetivação congurado por mudanças de posição da criança numa estrutura em quela langue [a língua] e a parole [fala] do outro, em seu sentido pleno, estão indissociavelmente relacionados aum corpo pulsional , i.e., à criança como corpo cuja atividade demanda interpretação.

A teoria de Saussure oferece parte do suporte teórico necessário à proposta acima e, no con-texto deste trabalho, uma possibilidade de torná-la compreensível. Espero que a discussão dosdiálogos adulto–criança, que farei a seguir, ilumine aqueles aspectos da fala da criança, e da inter-pretação a eles dada, que tiveram papel crucial em minha elaboração.

O episódio (i) é representativo de uma posição estrutural em que o pólo dominante é a relaçãoda criança com a fala do outro:

(i) (A criança traz uma revista para a mãe)M.: ó nenê/o auau

Mãe: Auau? Vamo achá o auau? Ó, a moça tátomando banho .

M.:ava?eva?

Mãe: É. Tálavando o cabelo. Acho que essa revista não temauau nenhum.

M.: auau

Mãe: Só tem moça, carro,telefone .

M.:Alô?

Mãe: Alô, quem fala? É a Mariana?(Mariana 1;2.15)

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O primeiro enunciado da criança é um fragmento do discurso da mãe em situações de “lerhistórias” (cf. Ninio e Bruner, 1978). Na revista não há nem bebês, nem cachorros, o que signica

que as palavras da criança não têm como referentes bebês ou cachorros, mas são de fato, uma re-instanciação de eventos prévios de leitura de histórias. Por outro lado, o enunciado “ava” da criançaindica que sua “interpretação” incide só sobre parte do enunciado precedente da mãe (um frag-mento?) – “tá tomando banho” – ou melhor, sobre o que esse enunciado da mãe traz do texto emque “lavar” e “tomar banho” estão relacionados. Leitura semelhante pode ser feita para a relaçãoentre “telefone” e “alô”.

Se a análise acima aponta para a dominância de processos de identicação da criança com amãe, nessa posição ela torna, por outro lado, visível o funcionamento dalíngua. As relações entreconstituintes do enunciado precedente da mãe e constituintes de textos dirigidos à criança em situ-ações anteriores, que se depreendem no segundo enunciado da criança, dão-se intratextos. Melhor

dizendo, não se apóiam em situações externas, não se dão entre cenas, como é o caso do primeiroenunciado. Essas relações, que são internas a texto, podem ser responsáveis pela obliteração dassituações externas desencadeadoras desses textos.

Os aspectos subjetivos dessa posição estrutural podem se reconhecidos tanto na identicaçãoda criança com a fala da mãe, incorporada por ela, quanto na não-coincidência entre os signicadosde seus enunciados. Em outras palavras, “semelhança” e “diferença” são faces alternativas de umasubjetividade emergente.

O episódio (ii) é representativo da posição em quela langue é o pólo dominante. Na literaturasobre processos reorganizacionais (cf. Bowerman, 1982; Peters, 1983 e outros), ele corresponderia àfase de erros que se segue a uma fase de uso correto, mas que não advém do conhecimento, e queé seguida de uma fase de uso correto que se assenta sobre um conhecimento já adquirido.

(ii) No meio de uma sessão, Adam podia, de repente, arregalar os olhos e brindar-me com diálogos inesperados.Numa ocasião, Adam apenas armou ter um relógio, sendo que, na verdade, ele não tinha nenhum e além do maisnão sabia ler as horas.

Me:I thought you said you had a watch.

Adam:I do have one. (with offended dignity). What do you think I am,a no boy with no watch?

Me: What kind of a boy?

Adam:(Enunciating it very clearly) A no boy with no watch .

(Bellugi in Kessel, 1982, p. 55)5

Ao invés de erros, “no boy ” e “no watch” mostram como estruturas manifestas podem fazeraparecer estruturas latentes a que estão relacionadas. É possível dizer que, nesse caso particular, es-truturas latentes são “nobody ”, “nothing” e, pelo menos, alguns elementos da classe de construçõesnegativas em inglês.

5 Eu: Acho que você me disse que tinha um relógio.Adam: Eu tenho mesmo um (com expressão de dignidade ofendida). O que você pensa que eu sou,um não menino com não-relógio (semrelógio?)

Eu: Que tipo de menino?Adam: (pronunciando com clareza)Um não menino com não-relógio (sem relógio).

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De várias maneiras, os erros mostram o funcionamento dela langue como pólo dominantenessa posição. Diferentemente do que ocorre na posição anterior, relações entre frases e textos,

embora ligados a diálogos prévios, não se apresentam como “enunciado do outro”, mas sob a formade estruturas lingüísticas. Além do mais, erros, enquanto índices de não-coincidência entre a fala dacriança e do adulto, apontam para o estatuto diferente que a fala do outro tem nessa posição. Domesmo modo, a impermeabilidade da criança a pedidos de esclarecimento ou correção, imperme-abilidade essa mencionada correntemente na literatura e observável em diálogos como o acima, émais um argumento em favor dessa interpretação.

No que diz respeito ao processo de subjetivação, chamo a atenção para o fato de que, maisque uma declaração de “ter um relógio” (que, na realidade, ele não tem), o enunciado de Adam podeser interpretado como uma armação de que ele é um menino, ou seja, de que ele não é nem umacriança, nem uma menina.

O episódio (iii) remete a uma outra face do processo de subjetivação, aquela relacionada àposição em que o pólo dominante é o sujeito falante. Na literatura sobre as chamadas habilidadesmetalingüísticas, essa posição corresponde à fase em que a criança é capaz tanto de reconhecerquanto de corrigir erros e, também, de reformular seus enunciados mais longos.

(iii) Uma amiga da mãe (T.) da criança (V.) traçou no chão um jogo de amarelinha com um quadro a menos, para(V.) e sua mãe brincarem.

V.:Quase que você não fez a amarelinha.

T.: O que, Verrô?

V.:Faz tempo que você não fez a amarelinha sua.

T.: O que Verrô? Eu não entendi.V.: Está faltando quadro na amarelinha sua.

(Verônica 4; 0.8)

Do ponto de vista do funcionamento dela langue, as substituições sucessivas de expressõesiluminam o processo que subjaz ao reconhecimento de erros. É importante notar que as expres-sões substituídas partilham, pelo menos em parte, um mesmo conteúdo semântico. Portanto, deum lado, um reconhecimento de erro envolve tanto o reconhecimento da natureza da diferençade sentido entre as expressões quanto o reconhecimento das restrições sintáticas e textuais queoperam no nível sintagmático. De outro lado, a interpretação que a criança faz do enunciado doadulto como pedido de esclarecimento/correção aponta para um aspecto importante do processode identicação, qual seja, para o reconhecimento, pela criança, de que seu enunciado afeta o inter-locutor e, conseqüentemente, trata-se do reconhecimento da alteridade do interlocutor.

Embora esse reconhecimento seja um aspecto crucial do processo de subjetivação e carac-terístico da segunda posição, ele não pode ser tomado como representativo de um sujeito em con-trole de si mesmo. Ao contrário, o reconhecimento do erro também aponta para a não coincidênciaentre o que a criança disse e o que a criança escuta como erro em seu próprio enunciado. Dessemodo, armar que o pólo dominante na terceira posição, representada aqui pelo enunciado (iii), sig-nica conceber o sujeito-falante como dividido entre duas instâncias subjetivas não-coincidentes: adaquele que fala e a daquele que escuta seu próprio enunciado como fala de um outro. Em outras

palavras, a “subjetividade” implicada em meu trabalho é aquela introduzida pela Psicanálise.

Vygotsky e o componente social do Interacionismo: implicações para o Interacionismo na

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Como comentário nal, eu diria que mesmo sendo verdade que as três posições apresen-tadas acima pareçam ser cronologicamente ordenadas, a mudança de uma para outra não im-

plica desenvolvimento. De fato, qualicar a “mudança” como sendo “estrutural” é incompatívelcom visões da criança como uma entidade independente que passa sucessivamente por estadosordenados de conhecimento. Além do mais, nenhuma das relações estruturais discutidas nestetrabalho deixa de comparecer na fala adulta, que está longe de se manter homogênea através dediferentes tipos de discurso e de situações. Assim, dizer que relações estruturais estão submetidasa um processo de obliteração não quer dizer que elas tenham sido apagadas. Obliteração deve serentendida como “eclipse”: a lua permanece visível mesmo sob a sombra da Terra.

Estudos lingüísticos1. Qual é a razão para que diferentes estudos de aquisição da linguagem sejam reunidos sob o

rótulo de interacionistas?

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2. Para Vygotsky, o desenvolvimento da fala, assim como o desenvolvimento de todas as operaçõesmentais que envolvem signos, se dá em quatro estágios. Apresente, brevemente, cada um dessesestágios.

Vygotsky e o componente social do Interacionismo: implicações para o Interacionismo na

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3. Nos estudos em aquisição, há uma vertente do Interacionismo Social convencionalmentechamada de Sociointeracionismo. De que modo a linguagem e a interação são concebidas pelossociointeracionistas?

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O Interacionismono Círculo de Bakhtin

Os dois grandes projetos do CírculoEntre os anos de 1919 e 1929, um grupo de intelectuais de diversas formações e atuações pros-

sionais (biólogos, músicos, lósofos, estudiosos da literatura e da linguagem) reuniu-se regularmente– em um primeiro momento em Nevel e Vitebsk e, posteriormente, em São Petesburgo (na época, reba-tizada de Leningrado) – em torno de dois grandes projetos intelectuais:

o de construir uma:: “prima losoa”;

o de contribuir para a construção de uma teoria da criação ideológica.::

Esse grupo de intelectuais cou conhecido como O Círculo de Bakhtin. Dentre os intelectuaisdo Círculo, os que mais diretamente interessam aos nossos propósitos são: Mikhail Bakhtin e ValentinN. Voloshinov.

Em relação ao grande primeiro projeto do Círculo, Faraco (2003) arma que, desde os primeirostextos de Bakhtin, é possível perceber o envolvimento do autor com a construção de uma reexão -losóca ampla. EmPara uma Filosoa do Ato (escrito no início da década de 1920), o autor arma queexiste um dualismo entre omundo da teoria (em que os atos concretos de nossa atividade são objeti-cados na elaboração teórica) e omundo da vida(o todo real da existência de seres históricos únicosque realizam atos únicos e irrepetíveis – o mundo da unicidade do ser). Segundo ele, esses dois mundosnão se comunicam, visto que, nomundo da teoria, não há lugar para a eventicidade e a unicidade domundo da vida – o pensamento teórico se constitui exatamente pelo gesto de afastar-se do singular efazer abstração da vida. A superação desse dualismo só é possível subjugando a razão teórica à razãoprática, isto é, teorizando-se a partir do vivido, do interior do mundo da vida. Com o intuito de realizaressa superação, Bakhtin tomará o evento único e irrepetível como uma referência central em suas ela-borações losócas.

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A idéia de construir uma“prima losoa” (uma losoa primeira) está intimamente relacionada aessa postura radical de tomar como referência o ser como evento único; trata-se, pois, conforme ana-lisa Faraco (2003), de uma losoa cujo procedimento não será construir conceitos, proposições e leisuniversais sobre o mundo, mas de se constituir como uma forma de pensamento participativo (não-indiferente) do ser humano concreto que, ao perceber-se único de dentro da sua existência (e não comoum juízo teórico), não pode car indiferente a essa sua unicidade. Em decorrência disso, é compelido aposicionar-se, por meio de um ato individual e responsável, em relação a tudo o que não éeu, em relaçãoao outro. O ser, ao reconhecer sua unicidade e realizá-la no ato individual e responsável, não o faz, por-tanto, só para si, visto que a relaçãoeu/outro constitui o princípio constitutivo do mundo real. Conformeaponta Bakhtin, a vida conhece dois centros de valores, essencialmente diferentes, mas relacionados umcom o outro:eu mesmoe o outro. Cada um desses dois centros é um universo de valores. A relaçãoeu/ outro, nesse sentido, congura-se como uma contraposição axiológica, valorativa, na medida em que

O mesmo mundo, quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe valorações diferentes, é determinado por

diferentes quadros axiológicos. E essas diferenças são arquitetonicamente ativas, no sentido de que elas são constitutivasdos nossos atos (inclusive de nossos enunciados): é na contraposição de valores que os atos concretos se realizam; é no pla-no dessa contraposição axiológica (é no plano da alteridade, portanto) que cada um orienta seus atos. (FARACO, 2003, p. 22)

Com base nessas considerações a respeito do projeto de construção de uma“prima losoa”, épossível perceber que três grandes coordenadas pavimentam a reexão de Bakhtin:a unicidade do sere do evento; a relação eu/outro; e a dimensão axiológica. Essas coordenadas são, na verdade, eixos cons-tantes e nucleares do pensamento do grupo. O outro grande projeto do Círculo – o de contribuir para aconstrução de uma teoria da criação ideológica – também se sustenta sobre esses mesmos pilares.

Nos textos do Círculo de Bakhtin, o termoideologia é usado, como nos esclarece Faraco (2003),para designar:

tanto o universo dos produtos do “espírito humano” (a cultura imaterial);::

quanto as manifestações da superestrutura do edifício social, isto é, o universo que engloba a::arte, a ciência, a losoa, o direito, a religião, a ética, a política;

bem como, quando utilizado no plural (:: ideologias), a pluralidade das esferas da produção ima-terial (a esfera da arte, da ciência etc.).

Os termosideologia, ideologias – e tambémideológico –, portanto, não têm, nos textos do Círculo,nenhum sentido pejorativo e não devem ser lidos com o sentido de “mascaramento da realidade”,comum em algumas vertentes marxistas. Muitas vezes, o adjetivoideológico aparece como equivalentea axiológico, visto que, para os estudiosos do grupo, a signicação dos enunciados tem sempre umadimensão avaliativa, já que expressa um posicionamento social valorativo. Nesse sentido, esclareceFaraco (2003), não há enunciado neutro, ele é sempre ideológico, na medida em que qualquer enunciadose dá na esfera de uma das ideologias (isto é, no interior de uma das esferas de atividade humana, comoa esfera da arte, da ciência, da religião etc.) e expressa sempre uma posição axiológica.

Na concepção do Círculo de Bakhtin, tudo o que é ideológico possui signicado e, se possui sig-nicado, é um signo. Nessa perspectiva, há uma forte identicação do ideológico com o semiótico,identicação que se torna bastante evidente em algumas armações que Voloshinov1 faz emMarxismoe Filosoa da Linguagem (2006, p. 31; 32-33):1 Há controvérsias em relação à autoria de alguns textos doCírculo de Bakhtin, especialmente em torno de três livros:Freudismo, Marxismo e Filosoa da Linguagem e OMétodo Formal nos Estudos Literários. Marxismo e Filosoa da Linguagem foi inicialmente publicado, em 1929, sob o

nome de Valentin N. Voloshinov. Entretanto, a partir de 1970, o lingüista Viatcheslav V. Ivanov armou que tal livro tinha sido escrito por MikhailBakhtin, o que gerou um extenso debate e dividiu as opiniões em relação a esse fato. Aqui, optamos por respeitar as autorias das ediçõesoriginais, atribuindo, pois, a Voloshinov, o crédito porMarxismo e Filosoa da Linguagem.

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Sem signos não existe ideologia.

[...]

O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo seencontra, encontra-se também o ideológico.Tudo que é ideológico possui um valor semiótico.

O universo da criação ideológica é, portanto, na sua essência, de natureza semiótica. Essepressuposto, como esclarece Faraco (2003, p. 47), “vai dar ao Círculo o fundamento para construir suateoria materialista para o estudo dos processos e produtos da cultura dita imaterial; o fundamento dasua losoa da cultura”. Isso signica que, para o Círculo, todos os produtos da criação ideológica sãodotados de materialidade e existem, como tal, corporicados em algum material semiótico (em algumalinguagem). Em outras palavras, um produto da criação ideológica é sempre um signo.

Os signos são, pois, sempre ideológicos e, sendo assim, são também intrinsecamente sociais.Eles são criados e interpretados no interior dos complexos e variados processos que caracterizam o

intercâmbio social, isto é, entre relações sociais, entre seres socialmente organizados. Por isso, paraestudá-los, é necessário situá-los nos processos sociais globais, no interior dos quais ganham signicação.No interior dessa dinâmica social em que se situam, os signos têm um caráter mediador, visto que, deacordo com o pensamento do Círculo, os seres humanos não têm relações diretas com a realidade;todas as suas relações são semioticamente mediadas, já que o mundo só adquire sentido quandosemioticizado. Disso decorre que a dimensão do ser humano com o mundo é sempre atravessada porvalores, considerando que a signicação dos signos, como já apontado anteriormente, envolve sempreuma dimensão valorativa, axiológica.

Conforme nos relata Faraco (2003, p. 49), é Bakhtin quem, emO Discurso no Romance (1981), apre-senta esse pressuposto do Círculo, ao armar que qualquer palavra (enunciado concreto) encontra o

objeto a que se refere “envolto por uma atmosfera social de discursos” e, nesse sentido, “nossas palavrasnão tocam as coisas, mas penetram na camada de discursos sociais que recobrem as coisas”. Essa relaçãopalavras/coisas se complexica ainda mais pela interação dialógica das várias vozes sociais que cons-tituem a dinâmica da história. Em decorrência da diversidade dos grupos sociais e do caráter sempremúltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos, os signos não apenas ree-tem o mundo, mas também o refratam, isto é, com os signos pode-se apontar para uma realidade quelhes é exterior, mas faz-se isso sempre refratando, ou seja, sempre construindo interpretações dessarealidade. Nesse sentido é que Pavel N. Medvedev, um dos estudiosos do Círculo, arma que, “no ho-rizonte ideológico de uma época ou grupo social, não há uma, mas várias verdades mutuamente con-traditórias” (apud FARACO 2003, p. 50). Essas várias verdades referem-se aos diferentes modos pelosquais os diversos e diferentes grupos sociais atribuem valorações ao mundo – aos entes, eventos, ações,relações. Desse modo,

as signicações não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um sistema semântico abstrato, único eatemporal, nem pela referência a um mundo dado uniforme e transparentemente, mas são construídas na dinâmica dahistória e estão marcadas pela diversidade das experiências dos grupos humanos, com suas inúmeras contradições econfrontos de valorações e interesses sociais. (FARACO, 2003, p. 50)

Sendo assim, os signos não podem ser unívocos, só podem ser plurívocos. A plurivocidade (as diver-sas vozes, que são sempre sociais) é, portanto, a condição de funcionamento dos signos nas sociedadeshumanas, visto que eles signicam deslizando entre múltiplos quadros axiológicos. A metáfora do diálogo,designando “o complexo das relações dialógicas, a dinâmica dos signos e das signicações entendidacomo se realizando responsivamente de modo similar às réplicas de um diálogo face-a-face” (FARACO2003, p. 70), dará o arremate a essas reexões do Círculo, colocando sob a égide de um mesmo conceito, aproblemática da interação (a relaçãoeu/outro) e da natureza social e axiológica da linguagem.

O Interacionismo no Círculo de Bakhtin

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apesar de se referir à relação entre interlocutores, tem um caráter social que extrapola o::contexto enunciativo mais imediato e ocasional, submetendo-se, também, às coerçõessociais mais substanciais e duráveis.

Voloshinov ainda esclarece que, se tomarmos a enunciação em seu estágio inicial, isto é, ainda emfase de elaboração interna de seu conteúdo, não se alterará a essência das coisas, já que a estrutura da ati-vidade mental é tão social quanto sua objetivação exterior. O pensamento não existe fora da orientaçãosocial, revelando-se, na verdade, um produto da inter-relação social. Por esse motivo, todo itinerárioque leva da atividade mental à objetivação externa (à expressão) situa-se em território social. Em outraspalavras, a enunciação é, na sua totalidade, socialmente dirigida.

Na perspectiva do Círculo, portanto, a enunciação individual (a parole, no sentido saussuriano),mesmo sendo realizada por um indivíduo, não é de maneira alguma um fato individual. Aliás, é em tornoda polêmica com o pressuposto saussuriano de que a fala ( parole) é individual – bem como a partir daproblematização de outros pressupostos postulados por Saussure2 – que Voloshinov realiza uma discus-são crítica detalhada da obra do autor – o mais proeminente expoente da orientação losóco-lingüís-tica chamada, por Voloshinov, de “objetivismo abstrato”. Na verdade,Marxismo e Filosoa da Linguagem é, muitas vezes, lido como uma crítica poderosa à teorização estruturalista de inspiração saussuriana,oferecendo uma via de abordagem losóca da linguagem para os estudos que não têm como pontode partida o “sistema da língua”. Um olhar um pouco mais cuidadoso sobre a reexão de Voloshinov nospermitirá compreender melhor a concepção de linguagem do Círculo. É o que faremos a seguir.

A concepção de linguagem do CírculoA maior objeção de Voloshinov à teoria saussuriana sobre a linguagem é a distinção dicotômica

que Saussure faz entrelangue (língua) e parole (fala). A esse respeito, Voloshinov argumenta que há umequívoco na suposição de Saussure de que, ao se distinguir o sistema lingüístico dos atos reais de falaestá-se, ao mesmo tempo, distinguindo o que é social do que é individual. Esse equívoco decorre dofato de a fala ser, de acordo com Voloshinov, um ato bilateral mutuamente construído por interlocutoressocialmente organizados. Nas palavras do autor:

“Aestrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de naturezasocial . Aelaboração estilística da enun-ciação é de natureza sociológica e a própriacadeia verbal , à qual se reduz em última análise a realidade da língua, ésocial . Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda a dinâmica da sua evolução. (VOLOSHINOV, 2006, p. 126; grifnossos)”

Mais que isso, o autor ainda arma que não se pode isolar umaforma lingüística de seu conteúdoideológico, visto que toda palavra é ideológica e “toda utilização da língua está ligada à evolução ide-ológica” (VOLOSHINOV, 2006 p. 126; grifos nossos). Para Voloshinov, portanto, não é possível pensar qexista algum nível da linguagem que se encontra ou se estrutura fora do social e nem fora do ideológico

2 Não abordaremos todas as críticas feitas por Voloshinov a Saussure – mesmo porque nem sempre essas críticas, na sua totalidade, fazem jus à proposta saussuriana. Como exemplo, fazemos menção ao fato de Voloshinov referir-se à noção de língua proposta por Saussure como“um sistema de formas” ou um “sistema de formas normativamente idênticas”. Entretanto, Saussure não concebe a língua como um sistemade formas, mas enquanto um sistema de valores. Para uma abordagem mais detalhada da leitura que Voloshinov faz da obra de Saussure,remetemos à Lähteenmäki (2006, p.190-207) que, entre outras coisas, faz esclarecimentos pertinentes sobre o contexto político e o clima

intelectual do início dos estudos soviéticos sobre a língua, de modo a permitir-nos compreender por que Saussure foi, muitas vezes, tomadocomo testa de ferro pelo grupo de estudiosos de Leningrado.

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já que as relações sociais se dão sempre sob a forma de posicionamento valorativo dos grupos sociais.Nesse sentido, a dicotomia saussuriana, do ponto de vista do Círculo, não se sustenta, pois a “língua vivee evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formasda língua, nem no psiquismo individual dos falantes” (VOLOSHINOV, 2006, p. 128). A verdadeira substân-cia da língua, arma o autor, é constituída pelo fenômeno social da interação verbal, realizada atravésda(s) enunciação(ões). A interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da língua.

Voloshinov (2006, p. 109) é tão radical em sua postura teórica que ele sequer considera a possibi-lidade de se estudar as formas lingüísticas fora da enunciação e critica fortemente o fato de a lingüísticater perdido qualquer sentido do todo verbal, já que ela “dota a forma lingüística de uma substância pró-pria, torna-a um elemento realmente isolável, capaz de assumir uma existência histórica independen-te”, concentrando-se nas formas lingüísticas separadas (fonética, morfologia etc.) que se desenvolvemindependentemente, sem qualquer referência à enunciação concreta.

Nesse ponto, Bakhtin distancia-se da posição de Voloshinov. É possível observar, em algunsescritos bakhtianianos, que o autor não coloca a Lingüística em questão – aceita a sua especicidade(de estudar o verbal em si) e considera justicáveis as suas abstrações –, apesar de considerá-la in-suciente para o estudo da comunicação verbal em si. Bakhtin, emProblemas da Poética de Dostoié-vski(1981), fala abertamente da necessidade de duas disciplinas distintas para o estudo da linguagemverbal: a Lingüística, que se concentraria no estudo gramatical propriamente dito; e a metalingüísti-ca, que se ocuparia do estudo das práticas socioverbais, concentrando-se em sua dinâmica e signi-cação. Em seu manuscritoOs Gêneros do Discurso(2003), ele considera esses dois níveis de aborda-gem da linguagem, enfatizando a necessidade de se distinguir o plano de análise da sentença (emque se estabelecem relações entre os elementos lingüísticos) do plano de análise do enunciado(em que se estabelecem relações entre interlocutores socialmente organizados).

Entretanto, apesar dessa diferença entre os dois autores no que diz respeito à relação que mantêmcom a Lingüística, ambos – e todos os estudiosos do Círculo – sustentam seus projetos a partir do pos-tulado da primazia da interação sobre a abordagem formal da linguagem.

Texto complementar

Os gêneros do discurso(BAKHTIN, 2003, p. 296-298)

[...] A oração enquanto unidade da língua possui uma entonação gramatical especíca e nãouma entonação gramatical expressiva. Situam-se entre as entonações gramaticais especícas: a en-tonação de acabamento, a explicativa, a disjuntiva, a enumerativa etc. [...] A oração só adquire ento-nação expressiva no conjunto do enunciado. Ao apresentar um exemplo de uma oração com o tode analisá-la, costumamos abastecê-la de certa entonação típica transformando-a em enunciadoacabado (se tiramos a oração de um texto determinado nós a entonamos, evidentemente, segundoa expressão de dado texto).

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Portanto, o elemento expressivo é uma peculiaridade constitutiva do enunciado. O sistemada língua é dotado das formas necessárias (isto é, dos meios lingüísticos) para emitir a expressão,

mas a própria língua e as suas unidades signicativas – as palavras e orações – carecem de expres-são pela própria natureza, são neutras. Por isso servem igualmente bem a quaisquer juízos de valor,os mais diversos e contraditórios, a quaisquer posições valorativas.

Portanto, o enunciado, seu estilo e sua composição são determinados pelo elemento semântico-objetal e por seu elemento expressivo, isto é, pela relação valorativa do falante com o elementosemântico-objetal do enunciado. A estilística desconhece qualquer terceiro elemento. Ela só consi-dera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado: o sistema da língua, o objeto dodiscurso e do próprio falante e sua relação valorativa com esse objeto. [...] O falante com sua visãodo mundo, os seus juízos de valor e emoções, por um lado, e o objeto do seu discurso e o sistemada língua (dos recursos lingüísticos), por outro – eis tudo o que determina o enunciado, o seu estilo

e sua composição. É esta a concepção dominante.Em realidade, a questão é bem mais complexa. Todo enunciado concreto é um elo na cadeia

da comunicação discursiva de um determinado campo. Os próprios limites do enunciado sãodeterminados pela alternância do sujeito do discurso. Os enunciados não são indiferentes entre si nemse bastam cada um a si mesmo; uns conhecem os outros e se reetem mutuamente uns nos outros.Esses reexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias deoutros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera da comunicação discursiva.Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como umaresposta aos enunciados precedentesde um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): elaos rejeita, conrma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo

os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posiçãodenida em uma dada esfera dacomunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc. é impossível alguém denir suaposição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso cada enunciado é pleno de variadasatitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva. Essas reaçõestêm diferentes formas: os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contextodo enunciado; podem ser introduzidas somente palavras isoladas ou orações que, neste caso,gurem como representantes de enunciados plenos, e além disso enunciados plenos e palavrasisoladas podem conservar a sua expressão alheia mas não podem ser reacentuados (em termo deironia, de indignação, reverência, etc.); os enunciados dos outros podem ser recontados com umvariado grau de reassimilação; podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutorbem conhecido, podemos pressupô-los em silêncio, a atitude responsiva pode reetir-se somentena expressão do próprio discurso – na seleção de recursos lingüísticos e entonações, determinadanão pelo objeto do próprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto. Este casoé típico e importante: muito amiúde a expressão do nosso enunciado é determinada não só – evez por outra não tanto – pelo conteúdo semântico-objetal desse enunciado mas também pelosenunciados do outro sobre o mesmo tema, aos quais respondemos, com os quais polemizamos;através deles se determina também o destaque dado a determinados elementos, as repetições ea escolha de expressões mais duras (ou, ao contrário, mais brandas); determina-se também o tom.A expressão do enunciado nunca pode ser entendida e explicada até o m levando-se em contaapenas o seu conteúdo centrado no objeto e no sentido. A expressão do enunciado, em maior oumenor grau, responde, isto é, exprime a relação do falante com os enunciados do outro, e não sóa relação com os objetos do seu enunciado. [...] Por mais monológico que seja o enunciado (por

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exemplo, uma obra cientíca ou losóca), por mais concentrado que esteja no seu objeto, nãopode deixar de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito sobre dado objeto,

sobre dada questão, ainda que essa responsividade não tenha adquirido uma nítida expressãoexterna: ela irá manifestar-se na tonalidade do sentido, na tonalidade da expressão, na tonalidadedo estilo, nos matizes mais sutis da composição. O enunciado é pleno detonalidades dialógicas, esem levá-las em conta é impossível entender até o m o estilo de um enunciado. Porque a nossaprópria idéia – seja losóca, cientíca, artística – nasce e se forma no processo de interação e lutacom os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reexo também nasformas de expressão verbalizada do nosso pensamento.

Estudos lingüísticos1. Qual é a noção de interação assumida pelo Círculo de Bakhtin?

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2. Um dos grandes projetos intelectuais do Círculo de Bakhtin é o de construir uma “ prima losoa” .Explique, em linhas gerais, no que consiste esse projeto.

3. A maior objeção de Voloshinov à teoria saussuriana sobre a linguagem é a distinção dicotômicaque Saussure faz entrelangue (língua) e parole (fala). Qual o argumento utilizado por ele paraasseverar que a dicotomia saussuriana não passa de um equívoco?

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Análise do Discurso

O terreno fecundo do Marxismo e da LingüísticaNeste capítulo, trataremos da gênese de uma disciplina – a Análise do Discurso (AD) –, que teve

sua origem na França na década de 1960. Denise Maldidier (1994) descreve o nascimento da disciplinapor meio das guras de Jean Dubois e Michel Pêcheux. Dubois é um lexicólogo envolvido com os em-preendimentos da Lingüística; Pêcheux, um lósofo envolvido com debates teóricos em torno do Mar-xismo, da Psicanálise, da Epistemologia. Apesar dessas diferenças, ambos partilhavam, na contramãodas idéias dominantes da época, de convicções marxistas e políticas sobre a luta de classes, a história eo movimento social. É, pois, sob o horizonte teórico do Marxismo que os projetos desses dois estudiososencontraram um espaço em comum.

Nessa mesma conjuntura teórica, a Lingüística – promovida a partir do Estruturalismo aostatusde ciência piloto – acaba por se impor às ciências sociais como uma área que confere cienticidade aosestudos, visto que, para serem realizados, eles deveriam passar por suas leis, ao invés de se prenderemdiretamente a instâncias socioeconômicas. É neste contexto que nasce a AD. O próprio Dubois, porexemplo, aplicou de maneira pioneira os métodos da análise estrutural a um dos episódios – a Comunade Paris1 – mais fortes da história de luta de classes na França.

O projeto do lósofo Louis Althusser, de releitura do livroO Capital , de Karl Marx (em uma tenta-tiva de romper com a predominante leitura dogmática que se fazia da obra), também se inscreve nessehorizonte, presidido pelo Marxismo e pela Lingüística2. Como explica Dominique Maingueneau (1990),a Lingüística caucionava tacitamente a linha de horizonte do Estruturalismo na qual se inscreve o pro-cedimento althusseriano. Vejamos mais detalhadamente como isso se opera.

Em Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado (1974), Althusser distingue uma “teoria das ideolo-gias particulares”, que exprimem posições de classe, de uma “teoria da ideologia em geral”, que permiti-

1 Governo revolucionário instalado em Paris, após a insurreição de 18 de março de 1871, cujo objetivo era assegurar, em um quadro municipale sem recorrer ao Estado, a gestão dos negócios públicos.

2

Althusser não se inscreve no campo da Análise do Discurso, mas será uma referência basilar no projeto de Michel Pêcheux, que emerge daconuência do projeto político marxista com o Estruturalismo.

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ria evidenciar o mecanismo responsável pela reprodução das relações de produção, comuns a todas asideologias particulares. É nesse último aspecto que reside o interesse do autor. Ao propor-se a investigaro que determina as condições de reprodução social, Althusser parte do pressuposto de que as ideolo-gias têm existência material, ou seja, devem ser estudadas não como idéias, mas como um conjunto depráticas materiais que reproduzem as relações de produção – trata-se do Materialismo Histórico. Umexemplo: no modelo econômico do capitalismo3, as relações de produção implicam divisão de trabalhoentre aqueles que são donos do capital e aqueles que “vendem” a mão-de-obra. Esse modo de produçãoé a base da formação social capitalista. Na metáfora marxista do edifício social, a base econômica é cha-mada de infra-estrutura, e as instâncias político-jurídicas e ideológicas são denominadassuperestrutura.Ainfra-estrutura determina a superestrutura, ou seja, a base econômica determina o funcionamento dasinstâncias político-jurídicas e ideológicas de uma sociedade. A ideologia – parte da superestrutura doedifício –, portanto, só pode ser concebida como uma reprodução do modo de produção, uma vez queé por ele determinada. Ao mesmo tempo, por uma “ação de retorno” dasuperestrutura sobre a infra-es-

trutura, a ideologia acaba por perpetuar a base econômica que a sustenta. Nesse sentido é que se podereconhecer a base estruturalista da teoria de Althusser, na medida em que ainfra-estrutura determinaa superestrutura e é ao mesmo tempo perpetuada por ela, como um sistema cuja circularidade faz comque seu funcionamento recaia sobre si mesmo.

Como modo de apreensão do funcionamento da ideologia, o conceito deaparelhos ideológicosde Althusser é bastante esclarecedor. Retomando a teoria marxista de Estado, o autor arma que oque tradicionalmente se chama de Estado é oaparelho repressivo de Estado (ARE), que funciona “pelaviolência” e cuja ação é complementada por instituições – a escola, a religião, por exemplo –, quefuncionam “pela ideologia” e são denominadasaparelhos ideológicos de Estado (AIE). Pela maneira comose estruturam e agem esses aparelhos ideológicos – por meio de suas práticas e de seus discursos – é

que se pode depreender como funciona a ideologia.A Lingüística, então, aparece como um horizonte para o projeto althusseriano da seguinte ma-

neira: como a ideologia deve ser estudada em sua materialidade, a linguagem se apresenta como olugar privilegiado em que a ideologia se materializa. A linguagem se coloca, para Althusser, comouma via por meio da qual se pode depreender o funcionamento da ideologia.

Podemos agora melhor compreender a armação de Maingueneau, de que a Lingüística caucio-nava tacitamente a linha do horizonte do Estruturalismo na qual se inscreve o procedimento althusse-riano, e também entender em que sentido o Marxismo e a Lingüística presidem o nascimento da AD.O projeto althusseriano, inserido em uma tradição marxista que buscava apreender o funcionamentoda ideologia a partir de sua materialidade, isto é, por meio das práticas e dos discursos dos AIE, via combons olhos uma Lingüística fundamentada sobre bases estruturalistas. Mas uma Lingüística saussuria-na, uma Lingüística da língua, não seria suciente; só uma teoria do discurso, concebido como o lugarteórico para o qual convergem componentes lingüísticos e sócio-histórico-ideológicos, poderia acolheresse projeto. Foi nessa perspectiva que Michel Pêcheux desenvolveu, como veremos, um questiona-mento crítico sobre a Lingüística.

3 Estamos nos referindo aqui à concepção clássica decapitalismo, tal como ele foi considerado nas teorias marxistas.

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A problemática da Lingüística e da análise de texEm seu texto “Análise Automática do Discurso (AAD-69)”, Pêcheux arma que, antes da chamad

Lingüística moderna (cuja origem pode ser marcada com oCurso de Lingüística Geral , de FerdinandSaussure), estudar uma língua era, na maioria das vezes, estudar textos e colocar a seu respeito questõesde natureza distinta provenientes, ao mesmo tempo, da atividade do gramático e da prática escolar.Perguntava-se: de que fala esse texto?; quais são as idéias principais contidas nele?; ele está de acordocom as normas da língua na qual foi escrito?; quais as normas próprias a este texto? Todas essas ques-tões eram colocadas simultaneamente porque remetiam umas às outras – as questões concernentesaos usos semânticos e sintáticos colocados em evidência pelo texto ajudavam a responder às questõesreferentes ao sentido do texto. Isto porque a ciência clássica da linguagem (antes de Saussure) preten-dia ser ao mesmo tempo ciência da expressão e ciência dos meios dessa expressão: o estudo gramaticale semântico era um meio de se chegar à compreensão do texto.

O deslocamento conceptual realizado por Saussure consistiu em separar a “prática” da “teoriada linguagem”. A língua, ao ser pensada como um sistema, deixa de ser compreendida como tendoa função de exprimir sentido, visto que ela se torna “um objeto do qual uma ciência pode descrever ofuncionamento” (PÊCHEUX, 1990, p. 62). A implicação desse deslocamento, de acordo com Pêcheux,que o texto não pode, de modo algum, ser um objeto pertinente para a ciência lingüística, pois ele nãofunciona, o que funciona é a língua (um conjunto de sistemas que autorizam combinações e substitui-ções, cujos mecanismos colocados em causa são de dimensão inferior ao texto). Nesse sentido, o deslo-camento a partir do qual a Lingüística constituiu sua cienticidade deixou a descoberto o terreno queela estava abandonando (o do estudo da compreensão do texto), e as questões que ela teve de deixarde responder (o que quer dizer esse texto?; em que sentido esse texto difere daquele? etc.) continuaram

a se colocar, motivadas por interesses ao mesmo tempo práticos e teóricos.Como nos relata Pêcheux, várias respostas foram fornecidas a essas questões, a partir demétodos

não-lingüísticose para-lingüísticos.

O autor classica comométodos não-lingüísticos aqueles que buscam responder à questão dacompreensão textual sob uma forma pré-saussuriana. São métodos que, mesmo baseando-se em concei-tos de origem lingüística, mobilizam conceitos defasados em relação à chamada Lingüística moderna.

Os métodos para-lingüísticos, por sua vez, referem-se abertamente à Lingüística moderna para,paradoxalmente, responder à questão (sobre o sentido contido em um texto) que essa mesma Lin-güística teve que colocar de lado para se constituir enquanto ciência. As disciplinas que se valeram

dos métodos para-lingüísticos, como a crítica literária, por exemplo, reconheceram o fato teórico fun-damental que marcou o nascimento da ciência da lingüística – a passagem da função ao funciona-mento – e decifraram esse fato como uma abertura, uma possibilidade de efetuar uma segunda vezesse mesmo deslocamento, mas desta vez no nível do texto: uma vez que existem sistemas sintáticos,faz-se a hipótese de que existem, por exemplo, sistemas literários. Ou seja, faz-se a hipótese de queos textos, como a língua, funcionam. Supõe-se, portanto, uma homogeneidade entre os fatos da lín-gua e os fenômenos da dimensão do texto, o que autorizaria o emprego dos mesmos instrumentosconceptuais para a análise de ambos, hipótese veementemente problematizada por Pêcheux (1990,p. 73):

[...] não é certo que o objeto teórico que permite pensar alinguagem seja uno e homogêneo, mas talvez a concep-tualização dos fenômenos que pertencem ao “alto da escala” necessite de um deslocamento da perspectiva teórica,uma “mudança de terreno” que faça intervir conceitos exteriores à região da lingüística moderna.

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No caso de Pêcheux – e da Análise do Discurso, portanto – os conceitos exteriores à Lingüísticaadvieram do Materialismo Histórico althusseriano, já abordado anteriormente, e também da Psicanáliselacaniana, visto que o discurso, tal como concebido pela AD, é o lugar onde intervêm questões relativasà ideologia e, como veremos, ao sujeito.

A Psicanálise: uma teoria do sujeitopertinente ao projeto da AD

A partir da descoberta do inconsciente por Freud, o conceito de sujeito sofre uma alteraçãosubstancial, pois seu estatuto de entidade homogênea (regida pela consciência) passa a ser questio-nado diante da concepção freudiana de sujeito clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente.Lacan faz uma releitura de Freud recorrendo ao Estruturalismo lingüístico, numa tentativa de abordarcom mais precisão o inconsciente, muitas vezes tomado como uma entidade misteriosa, abissal.

Lacan assume que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, como uma cadeia de sig-nicantes latente que se repete e interfere no discurso efetivo, como se houvesse sempre, sob as pa-lavras, outras palavras, como se o discurso fosse sempre atravessado pelo discurso do Outro, isto é, doinconsciente. A tarefa do analista seria a de fazer vir à tona, por meio de um trabalho na palavra e pelapalavra, essa cadeia de signicantes, “essas outras palavras”, esse “discurso do Outro”. O inconsciente éo lugar desconhecido, estranho, de onde emana o discurso do pai, da família, da lei, enm, do Outro,e em relação ao qual o sujeito se dene e ganha identidade. Nesse sentido, o sujeito é da ordem dalinguagem. Apoiado em alguns critérios do Estruturalismo lingüístico, Lacan aborda esse inconsciente,demonstrando que existe uma estrutura discursiva que é regida por leis.

Decorrem dessa proposta lacaniana implicações para a Psicanálise. A que mais diretamenteinteressa à AD diz respeito ao conceito desujeito, denido em função do modo como ele se estruturaa partir da relação que mantém com o inconsciente, com a linguagem, portanto, já que, para Lacan, alinguagem é condição do inconsciente. Vejamos, pois, em linhas gerais, qual a relevância do projetolacaniano para a AD.

O sujeito lacaniano, clivado, dividido, mas estruturado a partir da linguagem, fornecia para a ADuma teoria de sujeito condizente com um de seus interesses centrais, a saber, o de conceber os textos

como produtos de um trabalho ideológico não consciente. Calcada no Materialismo Histórico, a Análisedo Discurso concebe o discurso como uma manifestação, uma materialização da ideologia, decorrentedo modo de organização dos modos de produção social. Sendo assim, o sujeito do discurso não poderiaser considerado como aquele que decide sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do própriodiscurso, mas como aquele que ocupa uma posição em uma formação social e a partir dela enuncia. Emoutras palavras, o sujeito não é livre para dizer o que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso(e aqui reconhecemos a propriedade do conceito lacaniano de sujeito para a AD), a ocupar seu lugar emdeterminada formação social e enunciar o que lhe é possível a partir do lugar que ocupa. Como explicaAlthusser (1974), a ideologia é um sistema de representações que, na maior parte do tempo, nada tema ver com a “consciência”. Tais representações, arma o autor, podem ser imagens ou conceitos, mas é

sobretudo como estruturas que elas se impõem aos homens, sem passar por suas consciências.

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Foi nessa perspectiva, pois, que o Materialismo Histórico althusseriano e a Psicanálise lacaniana,ambos caucionados no horizonte do Estruturalismo lingüístico, constituíram um terreno fecundo paraMichel Pêcheux pensar a constituição da Análise do Discurso, não como um progresso natural permi-tido pela Lingüística – como se o estudo do discurso se desse com base em uma passagem natural, dalexicograa (estudo das palavras) para o discurso, o nível mais alto da “escala” dos objetos de estudoda Lingüística –, mas a partir de uma ruptura epistemológica, que coloca o estudo do discurso em umoutro terreno em que, como já dito, intervêm questões relativas à ideologia e ao sujeito. Nesse sentido,o objeto “discurso” de que se ocupa Pêcheux não é uma simples superação da Lingüística saussuriana,mas implica, nas palavras do próprio autor, uma ““mudança de terreno” que faça intervir conceitos exte-riores à região da Lingüística moderna” (PÊCHEUX, 1990, p. 73).

Mas, se há uma ruptura da AD com o campo da Lingüística, como a língua é pensada pela Análisedo Discurso? É o que veremos a seguir.

A especialidade da ADPossenti (2004) arma que os textos de AD apresentam uma concepção de língua indireta, na

medida em que se busca conceituá-la mais se negando do que se propondo características. Nessa pers-pectiva, uma das denições clássicas de língua para a AD é: “A língua não é transparente”. O fundamen-tal dessa tese é que

a AD não aceita que, dada uma palavra, seu sentido seja “óbvio”, como se estabelecido por convenção ou como se apalavra pudesse se referir diretamente à “coisa” [...].

[...]

A AD propõe que a língua tenha um funcionamento parcialmente autônomo, ou seja, que uma língua funcione segundoregras “próprias” de fonologia, morfologia e sintaxe [...], mas que são postas a funcionar de uma forma ou de outra se-gundo o processo discursivo de que se trata numa certa conjuntura. (POSSENTI, 2004, p. 360)

Em outras palavras, a AD reconhece a especicidade da língua (que tem regras próprias de fun-cionamento), mas limita seu domínio: o sentido, conforme arma Pêcheux (1988), não é da ordem dalíngua, não se submetendo, pois, aos seus critérios. A Lingüística saussuriana, analisa o autor, permitiua constituição da fonologia, da morfologia e da sintaxe, mas não foi suciente para permitir a constitui-ção da semântica, lugar de contradições da Lingüística. Para ele, o sentido, objeto da semântica, escapa

às abordagens de uma Lingüística da língua, já que a signicação não é sistematicamente apreendida,devido ao fato de sofrer alterações de acordo com as posições ocupadas pelos sujeitos que enunciam.Nesse sentido é que Pêcheux, considerando que as condições de produção de um discurso são constitu-tivas de suas signicações, propõe uma semântica do discurso no lugar de uma semântica lingüística.

A especialidade da AD, portanto, é o campo do sentido, de modo que as questões em torno dofuncionamento da língua somente serão relevantes (e são!) na medida em que afetarem esse campo.Assim sendo, a AD não é anti-lingüística. Ao contrário, conforme esclarece Possenti (2004, p. 361), “nãhá AD sem lingüística”.

A seguir, faremos uma breve análise do texto de uma tira de Angeli a m de esclarecer melhor nãoapenas a especialidade (ou especicidade) da AD, mas também para que seja possível compreender, demaneira mais efetiva, sua estreita relação com a Lingüística.

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Uma análiseComo aponta Maingueneau (1997), o campo da Lingüística, de maneira muito esquemática, opõe

um núcleo rígido a uma periferia de contornos instáveis, que está em contato com a Sociologia, a Psico-logia, a História, a Filosoa etc. O núcleo rígido se ocupa do estudo da língua como se ela fosse apenasum conjunto de regras e propriedades formais, ou seja, não considera a língua enquanto produzida emdeterminadas conjunturas históricas e sociais. A outra região, de contornos instáveis, ao contrário, “se re-fere à linguagem apenas à medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em estratégias de interlo-cução, em posições sociais ou em conjunturas históricas” (MAINGUENEAU, 1997, p. 11). A Análise do Dis-curso pertence a essa última região, ou seja, considera esse último modo de compreender a linguagem,o que não signica que, para ela, a linguagem não apresente também um caráter “formal”, como apon-tava o próprio Pêcheux (1988), ao armar que existe uma base lingüística regida por leis internas (con- junto de regras fonológicas, morfológicas, sintáticas) sobre a qual se constituem os efeitos de sentido,

como poderemos observar a partir da análise4

da tira de Angeli, que descreveremos a seguir:Wood e Stock conversam na janela:

W: Vinte anos atrás eu vivia na base de sexo, drogas e rock’n’roll!

S: Eu também!!

W: Passava noite e dia viajando de ácido, escutando Jefferson Airplane...

S: Eu também!!

W: ...E fazendo sexo com a Bete Speed, minha noiva!

S: Eu também!!

Há duas maneiras de interpretar o último enunciado de Stock “Eu também!!”: que há 20 anos atrásele vivia fazendo sexo com a própria noiva, ou então, que há vinte anos atrás ele vivia fazendo sexocom a noiva de Wood, seu amigo. Em termos essencialmente lingüísticos, diríamos que o que permiteessa ambigüidade é a presença do pronome possessivo de primeira pessoa “minha”. Pelo fato de serum dêitico – termo que permite identicar pessoas, coisas, momentos e lugares a partir da situação defala –, possibilita que o seu referente seja tanto Stock quanto Wood, ou seja, permite ao leitor que eleinterprete o pronome “minha” como referindo-se à noiva de Stock, o responsável pelo enunciado, ou ànoiva de Wood. Isto porque poderíamos perguntar: sobre que parte do enunciado o advérbio “também”da expressão “Eu também” incide? Sobre “Bete Speed” (eu também fazendo sexo com a Bete Speed) ousobre “minha noiva” (eu também fazendo sexo com minha noiva)? Em outras palavras, qual o escopode “também”?

Essa primeira análise, referente ao funcionamento da língua, explica o porquê da ambigüidadena tira, mas não explica porque achamos graça quando Stock enuncia pela última vez “Eu também!!”.Por que lemos essa tira como um discurso de humor? Devido às suas condições de produção. Produzidopara circular em uma sociedade em que fazer sexo com a noiva de outro seria um comportamentobastante fora dos padrões morais apresentados como adequados a seus membros, a possibilidade deStock ter feito sexo com a noiva de seu amigo gera riso, pois coloca Wood em uma situação bastanteconstrangedora. No entanto, esse mesmo discurso produzido no interior da comunidade dos esquimós,por exemplo, não geraria riso, pois, segundo os costumes dessa comunidade, quando um esquimó

4 Esta análise foi apresentada em um texto meu intitulado “Análise do Discurso”, publicado em: MUSSALIM, F., BENTES, A. C. (Orgs.). Introduçãoà Lingüística : domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001, v.2.

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recebe um visitante em sua casa, ele oferece sua mulher como sinal de hospitalidade. Nesse contexto,portanto, o discurso apresentado nessa tira não seria de humor, seria apenas uma conversa corriqueiraentre dois amigos que relembram fatos do passado.

A ambigüidade se mantém tanto em um como em outro contexto, mas os efeitos que ela gera sãodiferentes, e são justamente esses efeitos de sentido que interessam à Análise do Discurso. No caso datira em questão, uma pergunta possível para os analistas do discurso seria: por que essa ambigüidadegera riso? Para a Análise do Discurso, perguntar somente o que gera ambigüidade seria muito pouco,essa pergunta já seria feita, por exemplo, pela semântica e pela pragmática (as noções de escopo e dedêixis utilizadas para a análise da tira pertencem, respectivamente, a essas duas áreas da Lingüística).O que garante a especicidade da Análise do Discurso é a formulação de uma pergunta subseqüente aessa: qual o efeito dessa ambigüidade? A resposta a essa pergunta reside justamente na relação que osanalistas do discurso procuram estabelecer entre um discurso e suas condições de produção, ou seja,entre um discurso e as condições sociais e históricas que permitiram que ele fosse produzido e gerassedeterminados efeitos de sentido e não outros.

Texto complementar

“On a gagné” [“Ganhamos”](PÊCHEUX, 1990, p. 19-28)

Paris, 10 de maio de 1981, 20 horas (hora e local): a imagem, simplicada e recomposta eletroni-camente, do futuro presidente da República Francesa aparece nos televisores... Estupor (de maravi-lhamento ou de terror): é a de François Mitterand!

Simultaneamente, os apresentadores de TV fazem estimativas calculadas por várias equipes deinformática eleitoral: todas dão F. Mitterand como “vencedor”. No “especial-eleições” dessa noite,as tabelas de porcentagem põem-se a deslar. As primeiras reações dos responsáveis políticos dosdois campos já são anunciadas, assim como os comentários ainda quentes dos especialistas de po-

liticologia; uns e outros vão começar a “fazer trabalhar” o acontecimento (o fato novo, as cifras, asprimeiras declarações) em seu contexto de atualidade e no espaço de memória que ele convoca eque já começa a reorganizar: o socialismo francês de Guesde e Jaurès, o Congresso de Tours, o FrontPopular, a Liberação...

Esse acontecimento que aparece como o “global” da grande máquina televisiva, esse resultadode uma supercopa de futebol político ou de um jogo de repercussão mundial (F. Mitterand ganha ocampeonato de Presidenciáveis da França) é o acontecimento jornalístico e damass-media que re-mete a um conteúdo sociopolítico ao mesmo tempo perfeitamente transparente (o veredito das ci-fras, a evidência das tabelas) e profundamente opaco. O confronto discursivo sobre a denominaçãodesse acontecimento improvável tinha começado bem antes do dia 10 de maio, por um imenso

trabalho de formulações (retomadas, deslocadas, invertidas, de um lado a outro do campo político)

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tendendo a pregurar discursivamente o acontecimento, a dar-lhe forma e gura, na esperança deapressar sua vinda... ou de impedi-la; todo esse processo vai continuar, marcado pela novidade do

dia 10 de maio. Mas esta novidade não tira a opacidade do acontecimento, inscrita no jogo oblíquode suas denominações: os enunciados“F. Mitterand é eleito presidente da República Francesa”

“A esquerda francesa leva a vitória eleitoral dos presidenciáveis”

“A colonização socialista-comunista se apodera da França”

não estão evidentemente em relação interparafrástica; esses enunciados remetem (Bedeutung) aomesmo fato, mas eles não constroem as mesmas signicações (Sinn). O confronto discursivo pros-segue através do acontecimento...

E depois, no meio dessa circulação-confronto de formulações, que não vão parar de atravessar

a tela da TV durante toda a noite, surge um ash que é ao mesmo tempo uma constatação e umapelo: todos os parisienses para quem esse acontecimento é uma vitória se reúnem em massa naPraça da Bastilha, para gritar sua alegria (os outros não serão vistos nessa noite). E acontecerá omesmo na maior parte das outras cidades. Ora, entre esses gritos de vitória, há um que vai “pegar”com uma intensidade particular: é o enunciado “On a gagné” [“Ganhamos”] repetido sem m comoum eco inesgotável, apegado ao acontecimento.

A materialidade discursiva desse enunciado coletivo é absolutamente particular: ele não temnem o conteúdo, nem a forma, nem a estrutura enunciativa de uma palavra de ordem de umamanifestação ou de um comício político. “On a gagné” [“Ganhamos”], cantado com um ritmo e umamelodia determinados (on-a-gagné/dó-dó-sol-dó) constitui a retomada direta, no espaço do acon-

tecimento político, do grito coletivo dos torcedores de uma partida esportiva cuja equipe acabade ganhar. Esse grito marca o momento em que a participação passiva do espectador-torcedor seconverte em atividade coletiva gestual e vocal, materializando a festa da vitória da equipe, tantomais intensamente quanto ela era mais improvável.

O fato de que o esporte tenha aparecido assim pela primeira vez em maio de 1981, com estalimpidez, como a metáfora popular adequada ao campo político francês, convida a aprofundar acrítica das relações entre o funcionamento da mídia e aquele da “classe política”, sobretudo depoisdos anos 70.

Em todo caso, o que podemos dizer é que este jogo metafórico em torno do enunciado “Ona gagné” [“Ganhamos”] veio sobredeterminar o acontecimento, sublinhando sua equivocidade: nodomínio esportivo, a evidência dos resultados é sustentada pela sua apresentação em um quadrológico (a equipe X, classicada na enésima divisão, derrotou a equipe Y; a equipe X está, pois, quali-cada para se confrontar com a equipe Z, etc.). O “resultado” de um jogo é, evidentemente, objetode comentários e de reexões estratégicas posteriores (da parte dos capitães de equipe, de comen-tadores esportivos, de porta-vozes de interesses comerciais etc.), pois sempre há outros jogos nohorizonte..., mas enquanto tal, seu resultado deriva de um universo logicamente estabilizado (cons-truído por um conjunto relativamente simples de argumentos, de predicados e de relações) quese pode descrever exaustivamente através de uma série de respostas unívocas a questões factuais(sendo principalmente, evidentemente: “de fato, quem ganhou, X ou Y?”). [...]

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Mas simultaneamente, o enunciado “On a gagné” [“Ganhamos”] é profundamente opaco: suamaterialidade léxico-sintática (um pronome “indenido” em posição de sujeito, a marca temporal-

aspectual de realizado, o lexema verbal “gagner” [“ganhar”], a ausência de complementos) imergeesse enunciado em uma rede de relações associativas implícitas – paráfrases, implicações, comen-tários, alusões, etc. – isto é, em uma série heterogênea de enunciados, funcionando sob diferentesregistros discursivos, e com uma estabilidade lógica variável.

Assim, a interpretação político-esportiva que acaba de ser evocada não funciona como pro-posição estabilizada (designando um acontecimento localizado como um ponto em um espaçode disjunções lógicas) senão com a condição de não se interrogar a referência do sujeito do verbo“gagner” [“ganhar”], nem a de seus complementos elididos. [...]

Sobre o sujeito do enunciado: quem ganhou?A sintaxe da língua francesa permite através doon indenido, deixar em suspenso enunciativo a de-signação da identidade de quem ganhou: trata-se do “nós” dos militares dos partidos da esquerda? Ou do“povo da França”? ou daqueles que sempre apoiaram a perspectiva do Programa Comum? ou daquelesque, não mais se reconhecendo na categorização parlamentar direita/esquerda, se sentem, no entanto, li-berados subitamente pela partida de Giscard d’Estaing e de tudo o que ele representa? Ou daqueles que,“nunca tendo feito política”, estão surpresos e entusiasmados com a idéia de que enm “vai mudar”?

O apagamento do agente induz um complexo efeito de retorno, misturando diversas posiçõesmilitares com a posição de participação passiva do espectador eleitoral, torcedor hesitante e céticoaté o último minuto... em que o inimaginável acontece: o gol decisivo é marcado e o torcedor voaem apoio à vitória. O enunciado “On a gagné” [“Ganhamos”] funde “aqueles que ainda acreditavamnisso” com “aqueles que já não acreditavam”.

Sobre o complemento do enunciado: ganhou o quê, como, por quê?[...]

[...] “On a gagné” [“Ganhamos”]... A alegria da vitória se enuncia sem complemento, mas os com-plementos não estão longe: ganhamos o jogo, a partida, a primeirarodada (antes das legislativas);mas também (...) ganhamos porsorte, como se ganha o grande prêmio quando nem se acredita; e,claro, ganhamosterreno sobre o adversário, já com a promessa de ocupar posições nesse terreno e,antes de tudo, ocupar com toda legitimidade o lugar do qual se governa a França, o lugar do podergovernamental e do poder do Estado; “A esquerda toma o poder na França” é uma paráfrase plausíveldo enunciado-fórmula “On a gagné” [“Ganhamos”], no prolongamento do acontecimento.

[...]

A partir do exemplo de um acontecimento, o do dia 10 de maio de 1981, a questão teóricaque coloco é, pois, a do estatuto das discursividades que trabalham um acontecimento, entrecru-zamento, proposições de aparência logicamente estável, suscetíveis de resposta unívoca (é sim ounão, é X ou Y, etc.) e formulações irremediavelmente equívocas.

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Estudos lingüísticos1. Na perspectiva de Denise Maldidier, a gênese da Análise do Discurso pode ser descrita por

meio de dois nomes: Jean Dubois e Michel Pêcheux. Dubois, um lexicólogo envolvido com osempreendimentos da Lingüística, e Pêcheux, um lósofo envolvido com debates teóricos emtorno do Marxismo, da Psicanálise e da Epistemologia. Entretanto, apesar dessas diferenças,ambos partilhavam de convicções em comum. Que convicções eram essas?

2. Ao pensar a língua como um sistema, Saussure promoveu um deslocamento conceitual: a línguadeixou de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido e tornou-se um objetocujo funcionamento é passível de ser descrito por uma ciência. Para Pêcheux, qual é a implicaçãodesse deslocamento?

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3. Uma das denições clássicas de língua em Análise do Discurso é “A língua não é transparente”.Explicite as principais idéias envolvidas nessa concepção.

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Gabarito

Linguagem humana e “linguagem” animal1. A “linguagem” das abelhas não é propriamente uma linguagem pelo fato de caracterizar-se

pela xidez do conteúdo, a invariabilidade da mensagem, a referência a uma única situação,a natureza indecomponível da mensagem e a transmissão unilateral (a-dialógica). Todasessas características, radicalmente distintas das propriedades da linguagem humana, levamBenveniste a concluir que a expressão mais apropriada para denir o modo de comunicaçãoentre as abelhas écódigo de sinais.

2. As duas danças se reportam à distância que separa a colméia do achado. A dança em círculoanuncia que o local do alimento está a uma pequena distância – mais ou menos a um raio decem metros da colméia. A outra indica que a fonte de alimento está a uma distância entre cemmetros e seis quilômetros. Nessa última, a mensagem comporta duas informações: uma sobre adistância, outra sobre a direção.

3. Para Benveniste, a capacidade de formular e de interpretar um “signo” que remete a uma certa“realidade”, a memória da experiência e a aptidão para decompô-la são condições sem as quais

nenhuma linguagem é possível.

Os estudos da linguagem e a constituição do campo da Lingüí1. Porque ambos os estudos possuem um caráter explanatório: o Estudo Histórico da Linguagem

explica a origem e o desenvolvimento da linguagem, enquanto o Descritivo aborda seu papel emeio de funcionamento.

2. Para que um estudo fosse consideradocientíco, as exigências postas pelo paradigma cientícodominante do nal do século XIX e início do século XX eram as seguintes:

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a) as explicações dadas pela ciência deveriam ser sistemáticas e controláveis pela observação, demodo a possibilitar conclusões gerais, que valessem para todos os casos que se assemelhassemaos casos propriamente observados;

b) deveria-se aspirar à objetividade cientíca, que garantiria, em princípio, que as conclusões deuma teoria ou pesquisa pudessem ser vericadas por qualquer outro membro competente dacomunidade cientíca;

c) a ciência deveria dispor de uma linguagem rigorosa, uma metalinguagem especíca;

d) as teorias deveriam dispor de um método que, se aplicado, garantiria o controle do conheci-mento produzido pela ciência.

3. O primeiro movimento de Saussure em direção à constituição do campo da Lingüística é o deconstrução de um objeto próprio do campo, a saber, a língua. O segundo movimento diz respeitoà inclusão da Lingüística em um domínio próprio, o da Semiologia.

Os estudos lingüísticos do século XIX: a gramática comparada e h1. A partir dos estudos comparativos e históricos, os seguintes princípios foram incorporados aos

estudos da linguagem: o de que é possível, por meio da comparação dos elementos gramaticaisdas línguas, estabelecer as correspondências formais entre elas; o de que as línguas mudam notempo; o de que é possível relacionar grupos de línguas, por elas terem uma demonstrável origem

comum; e o de que é possível reconstruir, por comparações e inferências, vários aspectos dessesestágios anteriores não-documentados.

2. Os neogramáticos postulavam que a língua deveria ser vista como ligada ao indivíduo falanteporque as mudanças lingüísticas se originam nele. Esse postulado, diferentemente da orientaçãohistórico-comparativa anterior, introduziu uma orientação psicológica subjetivista na interpretaçãodos fenômenos de mudança.

3. A intuição de que as línguas são totalidades organizadas teve uma formulação no trabalho dobotânico A. Schleicher, para quem a língua era como um organismo vivo com existência própria,

independente de seus falantes, e outra no trabalho de W. D. Whitney, que concebia a língua comouma instituição social, cujo funcionamento é regido por leis próprias.

4. O método comparativo permitia a descrição de uma língua (sua forma fonética, sua organização sin-tática etc.) não por meio de uma análise interna dela mesma mas pela comparação com diferenteslínguas.

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Ferdinand Saussure e a fundação da Lingüística sincrônica

1. Saussure dene osigno lingüístico como uma entidade psíquica de duas faces – oconceito e aimagem acústica – ambos unidos, em nosso cérebro, por um vínculo de associação. Aimagemacústica (designada porsignicante) não é o som material (físico), mas é o correlato psíquico dessesom, isto é, aquilo que nos evoca um conceito (designado porsignicado). Assim, osignicante eo signicado são entidades mentais independentes de qualquer objeto externo. O signocadeira,por exemplo, não se refere à cadeira objeto no mundo, mas resulta da união entre osignicado(oconceito) de cadeira e osignicante, isto é, aimagem acústica que evoca esseconceito.

2. Saussure distingue duas concepções de arbitrário: umarbitrário absoluto, que se refere àinstituição do signo tomado isoladamente; e umarbitrário relativo, que se refere à instituição do

signo enquanto elemento componente de um sistema lingüístico e sujeito, portanto, às coerçõesdesse sistema.

3. A formulação da noção de sistema só é possível a partir do estabelecimento da dicotomiasincronia/diacronia e da opção pela sincronia no seguinte sentido: o eixo sincrônico corta o eixo diacrônico,determinando um ponto. Esse ponto constitui o intervalo de tempo em que uma determinadalíngua será estudada, isto é, constitui o intervalo de tempo (a sincronia) em que as relações entreos fatos que coexistem no interior de um sistema lingüístico serão consideradas para estudo. Seampliarmos esse ponto, poderemos perceber, de maneira mais evidente, que ele tem fronteirasbem estabelecidas, no interior das quais as relações entre fatos lingüísticos coexistentes se dão.Esse espaço assim delimitado constitui a possibilidade do sistema lingüístico, fato radicalmentesincrônico, isto é, possível apenas a partir desse recorte.

A operacionalidade da teoria saussuriana do valor1. De acordo com ateoria do valor , os elementos que pertencem ao sistema adquirem seu valor

sempre a partir da relação que estabelecem com outros elementos do mesmo sistema lingüístico.Em uma abordagem sincrônica sistêmica, apela-se sempre para dois termos simultâneos, visto queé a partir da relação binária, diferencial e opositiva, entre os elementos que constituem o par, quecada um deles recebe seu valor no interior do sistema. É nessa perspectiva que Saussure armaque na língua não há mais do que diferenças, pois não se pode atribuir aos elementos do sistemanada de substancial, ou seja, não se pode deni-los por eles mesmos. Na óptica saussuriana, sãoas diferenças que denem os elementos, e essas diferenças não são intrínsecas e nem extrínsecasa tais elementos, mas só podem ser denidas a partir da relação de oposição entre eles.

Gabarito

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2. A regra básica de marcação do gênero em nomes no português é o acréscimo do morfema-a em oposição ao morfemaø do masculino. Essa regra é um caso exemplar de funcionamento dateoria do valor pelo fato de o morfema-a somente receber seu valor de marca de feminino aoser considerado a partir da relação binária, diferencial e opositiva com o morfema ø. A partir darelação entre esses dois morfemas – que constituem um par opositivo no interior do sistemalingüístico do português –, é que cada um deles recebe seu valor (de marcador mórco de gênerofeminino/masculino) no interior desse sistema.

3. Os três casos de alomora de marcação do gênero em nomes no português são:

a) alomora por subtração da forma masculina (órfão/órfã, réu/ré, mau/má);

b) alomora por alternância vocálica redundante (formoso/formosa; novo/nova) e não-redundante (avô/avó);

c) ausência de exão (o/a mártir; o/a intérprete).

Níveis de análise lingüística1. De acordo com Benveniste, um lingüista que se propõe a analisar a língua inevitavelmente se

depara com sua complexidade. Por esse motivo, para que a análise ocorra, parece essencial que seestabeleça uma diferença denível de análise entre os fenômenos passíveis de serem estudados.

2. Asegmentação consiste na decomposição de um signo ou um texto, por exemplo, em porçõescada vez mais reduzidas até os elementos não decomponíveis. O signo /pato/, por exemplo, podeser segmentado em /p/ - /a/ - /t/ - /o/. Posteriormente, pode-se proceder a algumassubstituições,transformando a seqüência segmentada em outro signo do português. Por exemplo: pode-sesubstituir /p/ por /b/ e teríamos /bato/.

3. Ométodo de distribuição, de acordo com Benveniste, consiste em denir, por intermédio de umarelação dupla, cada elemento pelo conjunto do meio em que se apresenta. Essa relação dupla deque fala o autor se dá por meio de relações sintagmáticas e paradigmáticas.

Biologia e linguagem: Gerativismo1. As três evidências que, de acordo com certos estudiosos, sustentam o pressuposto do inatismo são:

a) o fato de que todos os grupos humanos, em todos os lugares e independentemente de suacomplexidade cultural, falam uma língua natural;

b) o fato de todas as línguas terem o mesmo grau de complexidade (basicamente o mesmonúmero e a mesma natureza de regras);

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c) a rapidez com que a criança, exposta a uma fala fragmentada, cheia de frases incompletase truncadas, passa a dominar um conjunto complexo de regras ou princípios básicos queconstitui a sua gramática internalizada.

2. A percepção da correspondência entre a lesão de certas regiões do cérebro e certos distúrbios detipo afásico levou os estudiosos a postularem alocalização cerebral do domínio da linguagem,isto é, levou os estudiosos a reconhecerem que a linguagem humana tem realidade biológica.

3. Os quatro critérios apresentados pelo neurocientista para se distinguir o que é predisposiçãobiológica do que é criação cultural são: a existência ou não de variação dentro da espécie; aexistência ou não de história do desenvolvimento do aspecto considerado, a partir de um estágioprimitivo; a predisposição hereditária; a presença de correlações orgânicas especícas. Seguindotais critérios, a natureza da capacidade lingüística é da ordem da predisposição biológica.

4. A propriedade da innitude discreta é exibida em sua forma mais pura pelos números naturais 1,2, 3... De acordo com Chomsky, essa propriedade vem inscrita em nosso código genético e é poresse motivo que nenhuma criança precisa aprender que há sentenças de três e quatro palavras enão sentenças de três palavras e meia, e que elas continuam assim por diante. Nesse sentido, essapropriedade também permite que sempre seja possível construir uma sentença mais complexa,com uma forma e um signicado denidos.

O Funcionalismo em Lingüística:sistema lingüístico e uso das expressões lingüísticas1. O Funcionalismo assume que a linguagem é um instrumento de comunicação e de interação

social, cuja forma se adapta às funções que exerce. Desse modo, ela somente pode ser descrita eexplicada com base nessas funções, que são, em última análise, comunicativas.

2. O modelo de interação verbal proposto por Dik assenta-se, do ponto de vista da produção, naintenção do falante; na sua informação pragmática; na antecipação que ele faz da interpretação do

ouvinte. Do ponto de vista da interpretação do ouvinte, considera-se que a interpretação dependeda própria expressão lingüística; da sua informação pragmática; da hipótese que ele faz sobre aintenção comunicativa do falante. Tudo isso sendo sustentado pelo pressuposto da comunicaçãoeciente, bem-sucedida, devido à competência comunicativa dos falantes/ouvintes.

3. O Usuário de Língua Natural (ULN) é concebido como alguém que opera não apenas com umacapacidade lingüística, mas também com as capacidades epistêmica, lógica, perceptual e social.

Gabarito

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Linguagem e pensamento no Interacionismo Piagetiano

1. Para os lingüistas, um forte motivo para problematizar as concepções do biólogo sobre odesenvolvimento da linguagem é o fato de Piaget conceber o processo de aquisição de linguagemcomo sendo parte do desenvolvimento da inteligência geral, não apresentando, portanto, umateorização especíca sobre o fenômeno lingüístico.

2. Para Piaget, o desenvolvimento mental do ser humano começa quando nascemos e terminana idade adulta. Ele se dá por meio de passagens contínuas de um estado de menor equilíbriopara um de maior equilíbrio, que conguram o que Piaget chamou deestágios ou períodos dedesenvolvimento.

3. A armação não está correta. Para o biólogo suíço, existe uma função simbólica mais ampla quea linguagem, que engloba, além do sistema de signos verbais, o do símbolo. Por esse motivo, aorigem do pensamento deve ser procurada no aparecimento da função simbólica, que possibilitaa formação das representações. A linguagem é apenas uma forma particular dessa função.

Vygotsky e o componente social do Interacionismo:implicações para o Interacionismo na Lingüística1. O que há em comum entre os diferentes estudos acerca da aquisição da linguagem reunidos

sob o rótulo de interacionistas é o fato de todos eles conceberem a interação como categoriafundamental para explicação do fenômeno da linguagem.

2. Os quatro estágios de desenvolvimento da fala obedecem ao mesmo curso de desenvolvimentodas demais operações mentais que envolvem símbolos. São eles:

a) o estágio natural ou primitivo (corresponde à fala pré-intelectual e ao pensamento pré-verbal –nesse estágio ocorrem manifestações aparentemente emotivas, como, por exemplo, choro,balbucio e primeiras palavras);

b) o estágio da “psicologia ingênua” ou da “física ingênua” (corresponde ao domínio da sintaxe dalíngua sem o domínio do pensamento – a criança é capaz de operar com sentenças subordinadasmesmo desconhecendo as relações causais, condicionais e temporais estabelecidas pelasconjunções);

c) o estágio dos signos exteriores e das operações externas usadas como auxiliares na solução deproblemas internos (fase em que a criança conta com os dedos, recorre a auxiliares mnemônicosetc. – na fala, esse estágio se caracteriza pelafala egocêntrica) e

d) o estágio do “crescimento interior” (corresponde ao estágio nal da fala, também conhecidocomo fala interior ou silenciosa).

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3. Para os sociointeracionistas, a linguagem é uma atividade constitutiva do conhecimento do mundopela criança e também o espaço em que a criança se constrói como sujeito, por meio de umprocesso que passa pela mediação do outro, do interlocutor, ou seja, pela interação. A interação, porsua vez, é concebida como um processo em que a linguagem e a dialogia são inseparáveis. Nessaperspectiva, o Sociointeracionismo não se centraliza no estudo do que cada um dos interlocutoresdiz separadamente, isto é, no produto lingüístico, mas no estudo da linguagem enquanto atividadedo sujeito e considerada no processo interacional comum aos interlocutores, postura que valorizaem muito os processos dialógicos.

O Interacionismo no Círculo de Bakhtin

1. A noção de interação assumida pelo Círculo de Bakhtin está radicalmente atrelada à questãoda linguagem e tem um caráter social que extrapola o contexto enunciativo mais imediato eocasional, submetendo-se, também, às coerções sociais mais substanciais e duráveis.

2. O projeto de construir uma“prima losoa” consiste em uma tentativa de romper com o dualismoexistente entre o mundo da teoria e o mundo da vida, o que só é possível subjugando a razãoteórica à razão prática, isto é, teorizando-se a partir do vivido, do interior do mundo da vida. Trata-se,portanto, de uma losoa cujo procedimento não será construir conceitos, proposições e leisuniversais sobre o mundo, mas de se constituir como uma forma de pensamento participativodo ser humano concreto que, ao perceber-se único de dentro da sua existência (e não como um juízo teórico), não pode car indiferente a essa sua unicidade. Em decorrência disso, é compelidoa posicionar-se, por meio de um ato individual e responsável, em relação a tudo o que não éeu,em relação aooutro.

3. Voloshinov argumenta que há um equívoco na suposição de Saussure de que, ao se distinguir osistema lingüístico dos atos reais de fala está-se, ao mesmo tempo, distinguindo o que é social doque é individual. Esse equívoco decorre do fato de a fala ser, de acordo com Voloshinov, um atobilateral mutuamente construído por interlocutores socialmente organizados. Para o autor, nãoé possível pensar que exista algum nível da linguagem que se encontra ou se estrutura fora dosocial ou fora do ideológico.

Análise do Discurso1. Ambos partilhavam, na contramão das idéias dominantes da época, de convicções marxistas e

políticas sobre a luta de classes, a história e o movimento social.

2. De acordo com Pêcheux, a implicação do deslocamento empreendido por Saussure é a exclusãodo texto como objeto pertinente para a ciência lingüística, pois o texto não funciona, o quefunciona é a língua – um conjunto de sistemas que autorizam combinações e substituições, cujosmecanismos colocados em causa são de dimensão inferior ao texto.

Gabarito

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3. Duas importantes idéias estão envolvidas na armação de que “a língua não é transparente”.São elas:

a) dada uma palavra ou um enunciado, seus sentidos não são óbvios;

b) os sentidos não são óbvios porque, para a AD, a língua tem um funcionamento parcialmenteautônomo, isto é, tem regras próprias de fonologia, morfologia e sintaxe, mas que sãopostas a funcionar de acordo com o processo discursivo em questão; nessa perspectiva, osentido, conforme arma Pêcheux, não é da ordem da língua, já que a signicação não ésistematicamente apreendida.

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Anotações

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Parte I

Ouviram do Ipiranga as margens plácidasDe um povo heróico o brado retumbante,E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,Brilhou no céu da pátria nesse instante.

Se o penhor dessa igualdadeConseguimos conquistar com braço forte,Em teu seio, ó liberdade,Desaa o nosso peito a própria morte!

Ó Pátria amada,Idolatrada,Salve! Salve!

Brasil, um sonho intenso, um raio vívidoDe amor e de esperança à terra desce,Se em teu formoso céu, risonho e límpido,A imagem do Cruzeiro resplandece.

Gigante pela própria natureza,És belo, és forte, impávido colosso,E o teu futuro espelha essa grandeza.

Terra adorada,Entre outras mil,És tu, Brasil,Ó Pátria amada!

Dos lhos deste solo és mãe gentil,Pátria amada,Brasil!

Parte II

Deitado eternamente em berço esplêndido,Ao som do mar e à luz do céu profundo,Fulguras, ó Brasil, orão da América,Iluminado ao sol do Novo Mundo!

Do que a terra, mais garrida,Teus risonhos, lindos campos têm mais ores;“Nossos bosques têm mais vida”,“Nossa vida” no teu seio “mais amores.”

Ó Pátria amada,Idolatrada,Salve! Salve!

Brasil, de amor eterno seja símboloO lábaro que ostentas estrelado,E diga o verde-louro dessa âmula– “Paz no futuro e glória no passado.”

Mas, se ergues da justiça a clava forte,Verás que um lho teu não foge à luta,Nem teme, quem te adora, a própria morte.

Terra adorada,Entre outras mil,És tu, Brasil,Ó Pátria amada!

Dos lhos deste solo és mãe gentil,Pátria amada,Brasil!

Atualizado ortogracamente em conformidade com a Lei 5.765, de 1971, e com o artigo 3.º da Convenção Ortográcacelebrada entre Brasil e Portugal em 29/12/1943.

Hino NacionalPoema de Joaquim Osório Duque Estrada

Música de Francisco Manoel da Silva

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