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O presente trabalho estuda a interação entre texto-leitor após mediação estruturada conforme os pressupostos da articulação proposta por Santos (2009) entre a Teoria do Efeito Estético e a Teoria Histórico-Cultural. Desse ponto de vista, o papel do professor funcionaria como o de moderador e guia no aprofundamento da percepção da leitura literária, reconhecendo o ato de ler como uma atividade emancipadora. O estudo proposto, portanto, nos traz importantes implicações para a formação de docentes de literatura, sobretudo, no que diz respeito à elaboração de estratégias para o seu ensino. No intuito de alcançar o objetivo da pesquisa, o recorte do corpus consistiu em solicitar aos participantes da Sessão do Programa de Antropologia Literária e Habilidades Sociais (PALHSE) para estudantes de Letras Português, redigirem sua experiência com a leitura do conto “Boatos, apenas boatos”, da autora Jennifer A. Trajano, considerando o envolvimento desses estudantes na supracitada Sessão. Nela, havia se implementado a mediação em pauta, com auxílio das Habilidades Sociais Educativas e a visão da Antropologia Literária. Com base na análise dos relatos produzidos pelos participantes, as atividades sugeridas durante a Sessão mostraram-se capazes de ativar os aspectos cognitivo e emocional desses leitores, estimulando-os a se engajarem na atividade de leitura, que confirmou ser capaz de promover emancipação. Observamos, assim, a importância da mediação social e instrumental na constituição do sentido literário, pois por meio dela desenvolvemos as habilidades necessárias para decifrarmos o texto ficcional e o mundo ao nosso redor, formulando outros mundos possíveis.
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS
REBECCA LUIZA DE FIGUEIREDO LÔBO
LITERATURA NUMA PERSPECTIVA EMANCIPADORA: MEDIADORES
SOCIAIS E INSTRUMENTAIS COMO INTERFACE
JOÃO PESSOA – PB
FEVEREIRO – 2015
REBECCA LUIZA DE FIGUEIREDO LÔBO
LITERATURA NUMA PERSPECTIVA EMANCIPADORA: MEDIADORES
SOCIAIS E INSTRUMENTAIS COMO INTERFACE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, da Universidade Federal da Paraíba
como requisito parcial para a obtenção do
grau de Licenciatura em Letras Português.
Orientadora:
Profª. Drª. Carmen Sevilla Gonçalves dos
Santos
JOÃO PESSOA – PB
FEVEREIRO – 2015
Fonte de Catalogação
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
LÔBO, Rebecca Luiza de Figueiredo.
Literatura numa perspectiva emancipadora: mediadores sociais e instrumentais como
interface / Rebecca Luiza de Figueiredo Lôbo. – João Pessoa: UFPB, 2014.
f. 63
Orientadora: Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos
Monografia (graduação em Letras) – UFPB/CCHLA
1. Ensino de Literatura 2. Teoria do Efeito Estético. 3.Teoria Histórico-Cultural. 4.
Mediação social.
I. Título.
UFPB/CCHLA/BS CDU:
LITERATURA NUMA PERSPECTIVA EMANCIPADORA: MEDIADORES
SOCIAIS E INSTRUMENTAIS COMO INTERFACE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro
de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito obrigatório para
obtenção do título de Licenciada em Letras Português.
Aprovado em:
________________________
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof.ª Dra. Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos (CE/UFPB)
(Orientadora)
____________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Cézar Bezerra de Andrade (CE/ UFPB)
____________________________________________________________
Prof.ª Dra. Daniela Maria Segabinazi (CCHLA/UFPB)
Lê-se para entender o mundo, para viver melhor. [...] Do
mundo da leitura para a leitura de mundo, o trajeto se
cumpre sempre, refazendo-se inclusive, por um vice-versa
que transforma a leitura em prática circular e infinita.
Marisa Lajolo
À Minha mãe, Rossana Lôbo, pelo cuidado que dá
sentido à palavra amor.
A Meu avô Bó (Bonifácio Lôbo) por me ensinar a
“gostar mais do vazio do que do cheio, mostrando-
me que os vazios são maiores e até infinitos”.
À Professora Carmen Sevilla, cujo olhar sensível e
afetuoso (re)significou a minha aprendizagem e o
meu desejo em ser professora.
AGRADECIMENTOS
À providência divina;
À Minha família, por ser presente, em todos os sentidos dessa palavra, em minha vida, em
especial ao meu irmão, Rafael Lôbo, e ao meu pai, Ricardo Lôbo;
Aos professores cujas mediações promoveram minha aprendizagem e desenvolvimento,
possibilitando (re)construir a mim mesma como docente ao longo da graduação, especialmente
à Carmen Sevilla, Fernando Andrade, Daniela Segabinazi e Socorro Pacífico.
À Ana Paula Cavalcante, Cynthia Israelly, Daniele Domingues, Fabiano Lima e Larissa
Mendes, pela amizade fraterna;
Aos meus colegas do Programa de Antropologia Literária e Habilidades Sociais Educativas
(PALHSE), Aurélio Muniz, Gabriela Conserva, Jennifer Trajano, Larissa Brito, Rafaela Costa,
Regissely Perazzo, Tamires Santiago e Thárcila Ellen Aires, por ampliarem os sentidos desse
trabalho;
Aos meus colegas do Programa de Desenvolvimento de Habilidades Sociais Educativas
(PDHSE), Bruno Guimarães, Dennis Souza, Helena Vasconcelos, Janaina Santos e Jonathan
Moreira, cuja convivência comprometida com a assertividade permitiu que eu carregasse um
pouco de cada um(a) em meu repertório de habilidades sociais;
À Márcia Máximo, minha psicoterapeuta, “pelo olhar que melhora o meu”;
Aos Licenciandos em Letras Português que aceitaram participar desta pesquisa tornando-a
possível.
RESUMO
O presente trabalho estuda a interação entre texto-leitor após mediação estruturada conforme
os pressupostos da articulação proposta por Santos (2009) entre a Teoria do Efeito Estético e a
Teoria Histórico-Cultural. Desse ponto de vista, o papel do professor funcionaria como o de
moderador e guia no aprofundamento da percepção da leitura literária, reconhecendo o ato de
ler como uma atividade emancipadora. O estudo proposto, portanto, nos traz importantes
implicações para a formação de docentes de literatura, sobretudo, no que diz respeito à
elaboração de estratégias para o seu ensino. No intuito de alcançar o objetivo da pesquisa, o
recorte do corpus consistiu em solicitar aos participantes da Sessão do Programa de
Antropologia Literária e Habilidades Sociais (PALHSE) para estudantes de Letras Português,
redigirem sua experiência com a leitura do conto “Boatos, apenas boatos”, da autora Jennifer
A. Trajano, considerando o envolvimento desses estudantes na supracitada Sessão. Nela, havia
se implementado a mediação em pauta, com auxílio das Habilidades Sociais Educativas e a
visão da Antropologia Literária. Com base na análise dos relatos produzidos pelos
participantes, as atividades sugeridas durante a Sessão mostraram-se capazes de ativar os
aspectos cognitivo e emocional desses leitores, estimulando-os a se engajarem na atividade de
leitura, que confirmou ser capaz de promover emancipação. Observamos, assim, a importância
da mediação social e instrumental na constituição do sentido literário, pois por meio dela
desenvolvemos as habilidades necessárias para decifrarmos o texto ficcional e o mundo ao
nosso redor, formulando outros mundos possíveis.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de literatura. Teoria do Efeito Estético. Teoria Histórico-Cultural. Mediação social. Antropologia Literária.
ABSTRACT
This paper studies the interaction between text-reader after structured mediation as the
assumptions of the joint proposed by Santos (2009) between the Aesthetic Effect Theory and
the Historical and Cultural Theory. From this perspective, the teacher’s role acts as moderator
and guide in the deepening of the perception of literary reading, recognizing the act of reading
as an emancipatory activity. The proposed study, therefore, brings important implications for
the formation of literature teachers, especially regarding the elaboration of strategies for their
teaching. In order to achieve the research objective, data collection consisted of requesting the
participants of the meeting of the Literary Anthropology Program and Social Skills (PALHSE)
for students of Portuguese Literature, to write their experience with the reading of the story
“Boatos, apenas boatos”, written by Jennifer A. Trajano, considering the involvement of these
students in the session previously mentioned. During the meeting, it was implemented the
mediation in question, with the aid of the Social Skills Education and the vision of the Literary
Anthropology. Based on the analysis of the reports produced by the participants, the activities
suggested during the Session proved to be capable of activating the cognitive and emotional
aspects of these readers, encouraging them to engage in the reading activity, which proved to
be able to promote emancipation. Thus, it was observed the importance of the social and
instrumental mediation in the constitution of the literary sense, because it is through it that we
develop the abilities needed to decipher the fictional text and the world surrounding,
formulating other possible worlds.
KEYWORDS: Literature teaching. Aesthetic Effect Theory. Historical and Cultural Theory.
Social Mediation. Literary Anthropology.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Descrição do processo de emancipação do leitor com base da
articulação proposta.
24
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 – Processo comunicativo de leitura com base nas disposições cognitivas do
leitor
23
QUADRO 2 – Síntese da atividade de leitura dos participantes 43
QUADRO 3 – (Re) formulação do objeto estético dos participantes 44
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 11
CAPÍTULO I
LER LITERATURA COMO UM EVENTO .................................................... 15
1 Teoria Histórico-Cultural e leitura de literatura: uma ponte possível ........ 18
2 A leitura de literatura como o leitor lê ............................................................ 20
CAPÍTULO II
QUANDO O MÉTODO PARA RECORTE DO CORPUS JÁ É UMA
PROPOSTA DE ENSINO DE LITERATURA ................................................. 25
1 Ensino de literatura numa perspectiva emancipadora .................................. 26
CAPÍTULO III
PINÇANDO E PENSANDO REPERTÓRIO, OBJETOS ESTÉTICOS,
LEITOR IMPLÍCITO NA ZDP DO LEITOR REAL (OU PORQUE A
EMANCIPAÇÃO É POSSÍVEL) ....................................................................... 34
CAPÍTULO IV
DISCUTINDO EMANCIPAÇÕES PÓS-LEITURA DE LITERATURA ...... 43
CONSIDERAÇÕES FINAIS (OU SE EMANCIPAÇÃO TIVESSE FIM...).. 46
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 47
APÊNDICES
A – Modelo de Convite para participar da pesquisa ........................................ 50
B – Modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ......................... 51
ANEXOS
A - Cópia do conto "Boatos, apenas boatos"..................................................... 54
B – Experiência de leitura de P1 ........................................................................ 55
C – Experiência de leitura de P2 ........................................................................ 59
D – Experiência de leitura de P3 ........................................................................ 60
E – Experiência de leitura de P4 ......................................................................... 61
INTRODUÇÃO
A literatura corresponde a uma necessidade que deve ser satisfeita sob pena
de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão
do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto nos humaniza.
Antonio Candido
É comum se interrogar a respeito da função da literatura ou do seu estudo.
Em vista disso, uma das indagações básicas de quem trabalha com a leitura literária
seria: “como ensinar ou justificar o seu ensino, cujo interesse deveria ser intrínseco,
todavia, não o é?” (SANTOS, 2014, p.8). No sentido de responder a essa pergunta,
observamos importantes contribuições trazidas pelo teórico alemão Wolfgang Iser ao
investigar o que acontece quando lemos, transpondo o foco do texto para o leitor.
Em sua Teoria do Efeito Estético, o autor postula a obra só se criar quando
por ocasião da interação texto-leitor e a partir desse posicionamento reformula a
questão norteadora para a compreensão do texto literário: no lugar de “qual é o
significado da obra” ou “o que ela quis dizer” interessa saber “o que sucede ao leitor
quando com sua leitura atualiza os textos ficcionais” (SANTOS, 2009, p.94).
A resolução da pergunta formulada pela teoria iseriana reside no conceito de
Experiência Estética, descrita como o processo capaz de viabilizar a constituição do
sentido do texto pelo leitor, produzindo em consequência, uma significação. A obra
se funda, portanto, quando o sujeito é levado a conferir uma resposta ao sentido
literário alcançado, numa atividade em que ele se interroga acerca do efeito
experimentado, propiciando, por conseguinte, um avanço cognitivo em sua vida.
Diante disso, a literatura constitui, por si só, um objeto de saber, pois permite o
alargamento e autodesdobramento do ser humano, como postulado pela
Antropologia Literária (ISER, 1999b).
Iser propõe, dessa maneira, uma mudança de paradigma significativa. A
partir dela, podemos justificar a literatura ainda representar um conteúdo importante
na educação (SANTOS, 2009, p.243), pois, sabendo a obra consistir em um tipo de
evento sucedido somente quando o texto é “processado no ato de ler” (ISER, 1996,
v.1,p. 50), de modo a permitir ao sujeito se emancipar, percebe-se a relevância do
desenvolvimento da nossa capacidade de leitura, condicionada, em grande parte,
12
pelo aprendido na escola.
Indo ao encontro dessa perspectiva, Santos (2009), em seu livro que articula a
Teoria do Efeito Estético e a Histórico-Cultural, apresenta perguntas bastante
profícuas em relação a esse tópico: “como a leitura de literatura usando o saber
prévio de seus leitores pode extrapolá-los em prol de si mesmos?” “Bastaria ativar o
saber prévio e favorecer a interação texto-leitor?”. Nesse sentido, percebe-se a
relevância da reflexão sobre como incrementar a mediação entre o leitor implícito
(estruturas textuais) e a ação do leitor (real) na busca da formulação do objeto
estético, se quisermos pensar na formação de leitores de literatura (SANTOS, 2009,
p.242).
Essa perspectiva nos coloca de encontro aos procedimentos didáticos
normalmente empregados em sala de aula, cujas atividades, como exposto por
Cosson (2009), oscilam entre a exigência de domínio de informações teóricas sobre
o texto literário e a leitura por mera fruição, sem alguma forma de resposta ao que
foi lido. Seguindo essa esteira, aferimos, para além de um conhecimento literário, ser
possível trazer para o aluno uma experiência de leitura a ser compartilhada, passível
de ser ampliada com informações específicas do campo literário e até fora dele.
O estudo ora proposto, portanto, nos traz importantes implicações para a
formação de docentes de literatura, sobretudo, na elaboração de estratégias para o
ensino de conteúdos literários, repercutindo, por consequência, na constituição
cognitiva e afetiva de seus leitores.
Partindo desse entendimento, o presente trabalho objetiva estudar a interação
entre texto-leitor após mediação estruturada conforme os pressupostos da articulação
entre a Teoria do Efeito Estético e a Teoria Histórico-Cultural. Desse ponto de vista,
o papel do professor funcionaria como o de moderador e guia no aprofundamento da
percepção da leitura literária, reconhecendo o ato de ler como uma atividade
emancipadora, possibilitando “ao leitor novas dimensões existenciais”
(ZILBERMAN, 1989, p. 112).
Por conseguinte, nos embasaremos no estudo de Santos (2009), que adiciona
novos pontos de vista à Teoria do Efeito Estético, considerados necessários para
compreender a suposta participação do leitor real na construção do sentido literário,
uma vez que a teoria iseriana, em sua descrição do processo de leitura, se detém,
essencialmente, nas condições oferecidas pelo texto.
13
Compreendendo uma interação como o envolvimento de dois ou mais
agentes, em que a ação de um provoca a reação no outro de maneira recíproca,
sabemos o texto literário não ser capaz de (re)agir em relação ao leitor, no sentido
objetivo do termo. No caso da metáfora iseriana, portanto, a interação depende do
leitor para se estabelecer e diz respeito ao processo pelo qual, por meio da sua
atividade de leitura, ele não apenas atualiza os elementos em potência no texto,
partindo de suas disposições, mas também é afetado por esse processamento,
modificando, consequentemente, a maneira como enxerga o texto e a si mesmo.
Destarte, como adverte Santos (2009, p.32), "de fato, a anuência ou não do
leitor real em [...] preencher os vazios do texto em busca da construção do sentido,
conforme exige sua estrutura apelativa — traz repercussões para a formulação do
objeto estético". Assim sendo, entendemos que sem determinadas disposições do
leitor (real) a obra também não se constitui.
Desse modo, o aporte oferecido pela autora recai, sobretudo, à consideração
dos aspectos cognitivos e emocionais do leitor, tendo em conta ser ele quem
efetivará ou não o contato com o texto. Em vista disso, ela articula conceitos da
psicologia, especialmente da forma como postulada por Vygotsky em sua Teoria
Histórico-Cultural, tais como: construção de sentido e significado, internalização,
instrumentos psicológicos, mediação social e Nível de Desenvolvimento Real
(NDR), Nível de Desenvolvimento Potencial (NDP) e Zona de Desenvolvimento
Proximal (ZDP), à metáfora da interação texto-leitor, oferecendo contribuições à
abordagem dos modos de apreensão da formulação do objeto estético em um leitor
real (de carne e osso, como enfatizado por ela).
Para a consecução do objetivo em pauta, o recorte do corpus consistiu em
solicitar aos participantes da Sessão do Programa de Antropologia Literária e
Habilidades Sociais (PALHSE)1 para estudantes de Letras, em que se implementou
esta mediação com auxílio das Habilidades Sociais Educativas2 e a visão da
Antropologia Literária, campo que busca explicar a necessidade humana de
1 Programa, vinculado ao PROLICEN (2014) e PROBEX (2014), que objetiva focar o
desenvolvimento das habilidades sociais educativas na formação docente inicial dos licenciandos de
Letras e Pedagogia, a saber, mais especificamente na área de literatura, com acento na Antropologia
Literária.
2 “Conjunto de habilidades interpessoais requeridas nas interações educativas com os alunos” (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2008, p. 520).
14
ficcionalizar3, redigissem sua experiência com a leitura do conto “Boatos, apenas
boatos”, da autora Jennifer A. Trajano, considerando o envolvimento destes
participantes na supracitada Sessão.
3 Em outras palavras: os seres humanos entram em jogos de fingir aceitando pactos ficcionais
próprios aos que fazemos com os textos literários porque necessitamos do autodesdobramento que
este fingir permite. Através dele, os leitores podem assumir outros “eus” diferenciados daqueles que
realmente são (SANTOS, 2014, p.5).
CAPÍTULO I
LER LITERATURA COMO UM EVENTO
De maneira análoga a uma câmera se movendo por um cenário, capaz de
captar somente um ângulo por turno enquanto a cena acontece, vivenciamos o texto
de forma diferente a cada momento da realização da leitura, sendo impossível fazer a
apreensão do objeto estético de uma única vez. Assim sendo, podemos dizer que o
leitor move-se dentro do objeto cuja percepção constrói, assumindo diferentes pontos
de vistas através das perspectivas oferecidas pela estrutura textual, a saber:
perspectiva do narrador, do enredo, do personagem e do leitor fictício. Nesse sentido,
SANTOS (2009, p.106) faz uma descrição desse movimento:
A cada formação de ponto de vista — engendrada a partir das
perspectivas textuais pré-dadas — o leitor tece uma relação
dialética com o próximo ponto de vista, de modo que a
perspectiva por ele adotada como centro de sua atenção, o
tema, torna-se, num momento posterior, o horizonte (pano de
fundo) para análise do próximo tema. Quando um tema é
revisitado ele acumula novas informações em seu panorama,
à luz do qual é agora visto novos entendimentos.
Desse processo inferimos a necessidade da realização de sínteses para a
concretização do objeto estético, feitas através da negociação das lacunas e negações
que pontuam as perspectivas assumidas durante as atividades constitutivas de leitura.
Entendemos, pois, como afirmado por Iser (1999b, p.29), a ausência de certas
relações constituírem-se no estímulo à atividade ideacional do leitor, tendo em vista
a suspensão das conexões impedir a “boa continuidade” indispensável à
compreensão.
Nessa esteira, em sua busca pelo sentido, o leitor é estimulado a fornecer
conexões entre os segmentos textuais, fazendo um preenchimento das lacunas. Esta
atividade implica, muitas vezes, em negações, quando as concepções elaboradas até
então não estabelecem mais qualquer conexão com as novas informações aparecidas
e processadas no decorrer da leitura, apelando para uma reformulação por parte do
leitor, impelido a encontrar motivação para anular o que lhe parece familiar.
Logo, “a estrutura básica do texto consiste em segmentos determinados
interligados por conexões indeterminadas” (ISER, 1999b, p.28) revelando-se um
16
jogo entre o “dito” e o “não dito” em que “o leitor deve reagir não apenas as
instruções dadas pelo texto, mas também aos resultados de sua própria atividade
ideacional, sempre que se fizer necessária uma revisão” (ISER, 1999b, p.29).
Diante do exposto, compreendemos corresponder ao texto formulado,
verbalizado, uma dimensão não formulada – experimentada pelo leitor durante a
leitura, denominada por Iser (1999b, p.31) de negatividade. Nesse prisma,
concebemos a leitura de um texto literário trazer para o mundo algo que não estava
lá antes, precisando de uma revelação para ser compreendido.
Por esse motivo, sabendo ser exigido pela estrutura textual um movimento de
determinação, capaz de ser implementado apenas pelo leitor, concebemos o matiz
subjetivo do sentido literário. Nessa experiência, vivenciada através das atividades
constitutivas pelos quais os textos são experimentados na leitura, se funda a
significação atribuída às obras. A obra se concretiza, dessa maneira, por meio de um
processo de transição entre o sentido (significado/ experiência estética), impossível
de ser apreendido, e a significação (resposta à experiência). Borba (2003, p.29-30)
sintetiza como isso se sucede:
Como o efeito do significado se dá entre o sensório e o
conceitual, a experiência nesse nível tende a se transmutar
discursivamente, um fenômeno que pode ocorrer no
momento em que o leitor se indaga acerca do acontecimento
vivenciado. Isso significa que o leitor é levado a atribuir uma
significação para o significado, numa atividade em que ele se
pergunta por que passou pelo efeito experimentado. A
resposta intrínseca à significação só se formula, por sua vez,
na consideração dos valores, do código, das normas, enfim,
do lugar ocupado pelo leitor.
Dessa descrição de como a experiência estética se realiza, depreendemos,
então, o leitor ser levado a figurar uma causa subjacente às realidades referenciais
pelo texto questionadas, ação que implica como descrito por Iser (1999b, p. 33),
transcender a sua existência para ser capaz de observá-la “de um ponto exterior a
tudo aquilo em que de outro modo estaria tão inextricavelmente engendrado”. O
resultado desse processo é, portanto, a emancipação do leitor — definida como a
possibilidade de uma obra “ao desafiar um código vigente, oferecer ao leitor novas
dimensões existenciais” (ZILBERMAN, 1989, p. 112).
Em suma, para a Teoria do Efeito-Estético, a obra é construída quando o
leitor, em interação com o texto literário, preenche os vazios oferecidos pela
17
estrutura textual e, por meio desse movimento, constrói o significado (efeito),
vivenciando a experiência estética e dando-lhe uma significação, a partir da qual ele
se emancipa.
Assim, para descrever o efeito estético é necessário analisar o sucedido
enquanto lemos um texto, visto que tal efeito só se evidencia por meio da interação
texto-leitor. Desse modo, conforme sinalizado por Santos (2009, p.92), “descrever o
processo de leitura é, portanto, observar também os processos provocados pelos
textos literários”.
Nesse sentido, a metáfora da interação concebida por Iser abrange dois polos:
o polo artístico, correspondente ao texto criado pelo autor, e o polo estético referente
à concretização produzida pelo leitor. A metáfora estabelecida com uma situação de
interação se dá pela reciprocidade presente no processo de formulação do objeto
estético; se, por um lado, a obra está condicionada às disposições do leitor, estas só
se atualizam através das condições do texto.
Como atentado por Santos (2009, p.39), “a interação em si não existe, no
sentido objetivo do termo: não se vê, não se toca”, ela é sempre uma inferência tirada
da observação dos componentes/agentes nela envolvidos. À vista disso, a dedução
sobre a interação texto-leitor só é possível a partir da análise das condições do texto
e das disposições do leitor. Para tanto, Iser se utiliza de dois conceitos: leitor
implícito, abrangente das estruturas textuais, e papel do leitor, concernente à
participação do leitor.
O leitor implícito, definido por Iser (1974), diz respeito à forma como os
vazios são apresentados no texto, propondo papéis (atividade de constituição) para o
leitor real. O papel do leitor trata-se, dessa maneira, de uma intenção apenas
realizada através da ativação dos atos de imaginação do leitor. No entanto, na
argumentação desenvolvida pelo teórico alemão, ele estaria condicionado apenas às
indicações fornecidas pela estrutura textual, que antecipariam a sua presença.
Sendo assim, como demonstra Santos (2009, p.72), “o conceito cunhado por
Iser exige uma participação ativa do leitor real e a despeito da descrição minuciosa e
rica que o autor faz desta participação, toda a responsabilidade das ocorrências é
colocada unicamente no texto”. A autora observa, desse modo, o raciocínio de Iser
abarcar somente as estruturas textuais, e como estas participam da interação com o
“leitor em implicitude” — o leitor real que assume as indicações da estrutura textual.
18
Indo ao encontro desta perspectiva, Santos (2009) procura, por meio de uma
articulação com a Teoria Histórico-Cultural, construir uma ponte entre a metáfora
interação texto-leitor, relacionada ao interior do texto, e o leitor real, cujo resultado
implica na possibilidade de inserção do leitor real na estrutura de sistema da Teoria
do Efeito Estético.
Antes de explicitá-la, para compreender a influência recíproca entre as duas
teorias, é necessário, primeiramente, fazer uma descrição sucinta da Teoria
Histórico-Cultural, principalmente daqueles conceitos utilizados na articulação
apresentada pela autora.
1 Teoria Histórico-Cultural e leitura de literatura: uma ponte possível
Vygotsky estava interessado em saber “Como o ser humano passa a ser
humano” (SANTOS, 2011, p.70). Para isso, ele buscou compreender as funções
psicológicas superiores, ou seja, aqueles “mecanismos psicológicos mais
sofisticados, [...], típicos do ser humano e que envolvem o controle consciente do
comportamento, a ação intencional e a liberdade do indivíduo em relação às
características do momento e do espaço presente” (OLIVEIRA, 1995, p.26).
Ao investigá-las, concluiu não bastar estar vivo para, naturalmente, tais
processos se desenvolverem, é preciso achar-se inserido em um contexto
sociocultural. Para Vygotsky, assim, aprender e se desenvolver nunca é um ato
solipsista, a relação do homem com o mundo é sempre mediada (SANTOS, 2011,
p.71).
Os elementos mediadores, como pensados pelo teórico, podem ser de dois
tipos: os instrumentos psicológicos, objetos dos quais a função é de mediar nossas
ações sobre o mundo, possibilitando-nos ultrapassar o tempo e o momento presentes
através da nossa inteligência, memória e atenção; e os signos, cuja atividade é
interna, dirigida para o controle do próprio indivíduo e dos quais a linguagem seria o
mediador por excelência.
Há, todavia, como observado por (SANTOS, 2011, p.74), uma relação
recíproca entre o controle da natureza e o controle do comportamento. O uso de
instrumentos amplia a gama de atividades operáveis através de novas funções
psicológicas modificando nossa relação com o mundo e, por sua vez, nossa maneira
19
de pensá-lo e dizê-lo. Disso, inferimos o termo função psicológica superior poder se
referir à combinação entre o instrumento e o signo na atividade psicológica
(VIGOTSKI, 1998, p.73).
Entendemos, desse modo, os processos psicológicos superiores serem
formados por meio da reconstrução das operações externas, executadas através dos
instrumentos, no nível intrapsicológico do indivíduo, em um processo denominado
internalização. Tal processo, como explicado por Santos (2011, p.76) “não é uma
cópia das experiências externas no ‘mundo’ interno do indivíduo e sim um
reconstrução dessas experiências”.
Assim, como sintetizado pela autora (2011, p.78), a realização desses
processos só é possível através da mediação simbólica, fenômenos em que a
linguagem está fundamentalmente envolvida:
Para Vygotsky, a linguagem estaria no centro dos processos
superiores do homem, uma vez que tais processos são
mediados por sistemas simbólicos e a linguagem é, por
excelência, o sistema simbólico básico. É ela, a propiciadora
da conceituação e das formas de classificação e organização
do real, permitindo a mediação entre sujeito cognoscente e
objeto de conhecimento, relação que modifica o meio e o
próprio sujeito.
Pelo exposto, conclui-se que todo desenvolvimento parte do social para o
individual, sendo os processos de intercâmbio sociais fundamentais na construção
das nossas características tipicamente humanas. Compreendemos, dessa maneira, o
processo de internalização como a própria formação da consciência, constituída
também no processo de construção da subjetividade do indivíduo a partir de
experiências intersubjetivas.
Tratando-se de uma aquisição feita gradativa e continuamente, são
estabelecidos dois níveis para descrevê-la. O primeiro seria o NDR (Nível de
Desenvolvimento Real) relacionado às habilidades já possuídas pelo indivíduo,
enquanto o segundo, o NDP (Nível de Desenvolvimento Potencial) referente à
capacidade em realizar tarefas com a mediação de outros. A distância entre o Nível
de Desenvolvimento Real e o Nível de Desenvolvimento Potencial é denominada
Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) e diz respeito às funções ainda não
amadurecidas concernentes às tarefas que, por meio de mediação adequada, poderão
ser executadas sem ajuda do outro, posteriormente (VIGOSTSKI, 1989).
20
A partir do que foi apresentado, Santos (2009) faz um link entre a Teoria
Histórico-Cultural e a Teoria do Efeito Estético de Iser, destacando a figura do leitor
de texto literário. Por meio da interação entre as duas teorias, ela explicita a relação
entre o conhecimento prévio do leitor, a identificação/preenchimento/articulação de
vazios textuais e a sua, consequente, emancipação, explicando “como a literatura
ajuda-o a alavancar sua ZDP, ao passo que, dialeticamente, sua ZDP o impulsiona a
empreender e experimentar os níveis de sentido solicitados pelo texto” (SANTOS,
2011, p.84). Por conseguinte, permite um novo olhar sobre a literatura e como
ensiná-la de modo mais eficiente, metodologias sem efeitos adversos, e eficazmente,
estratégias promovedoras de resultados significativos em sala de aula.
2 A leitura de literatura como o leitor lê
Para a Teoria Histórico-Cultural, a aprendizagem antecede o
desenvolvimento e pode ser considerada como uma construção ocorrida por meio da
interação sujeito e objeto, mediada por instrumentos. Tais instrumentos são
considerados mediadores sociais, pois oriundos de experiências interpessoais mais
tarde reelaboradas internamente, e têm por objetivo funcionar como ferramentas na
ação do sujeito sobre o objeto. Esta ação, por sua vez, ao modificar o objeto,
modifica a si própria e ao sujeito que a implementou (SANTOS, 2011, p.84).
Já a experiência estética é entendida como uma construção decorrente do
processo de interação texto-leitor, o qual viabiliza a experimentação do sentido do
texto, produzindo uma significação propiciadora de um avanço cognitivo na vida do
sujeito, consciente da atividade envolvida em tal processo. Através desta atividade, o
leitor constitui o objeto estético, ao mesmo tempo em que também é modificado por
ele, transformando sua maneira de enxergar a estrutura textual e a si mesmo.
A partir do que foi elucidado, é possível vislumbrar interação e construção
como noções chaves para compreender a articulação entre a Teoria Histórico-
Cultural e a Teoria do Efeito Estético. Pensando nas duas teorias, então, Santos
(2011, p.91) demonstra a possibilidade de afirmar ser “através da atividade (social)
que o aprendiz/leitor constrói o significado/sentido de um texto (e/ou aprendizagem)
e é a partir dessa construção e da consciência envolvida em tal processo que o
aprendiz/leitor constrói e (re)constrói a si próprio”.
21
A autora estabelece, desse jeito, uma equivalência entre a experiência de
concretização do sentido do objeto estético e uma aprendizagem significativa como
compreendida por Vygotsky, inferindo, a partir daí, o fato de concretizar o sentido de
um texto equivaler a aprender sobre o referido texto, e, por conseguinte, sobre nós
mesmos (SANTOS, 2009, p.150).
Nesse sentido, traz para sua argumentação duas premissas básicas da teoria
vygotskiana com intuito de refletir as disposições do leitor no processo de interação
com o texto. A primeira é que “nossos sistemas de pensamentos seriam fruto da
internalização de processos mediadores desenvolvidos por e em nossa cultura”
(ALVAREZ; DEL RIO, 1996, p.84). Por conseguinte, entendendo o leitor implícito
como um elo de comunicação entre o leitor e o texto, afirmar considerá-lo capaz de
“envolver todas as mentalidades e subjetividades de todos os supostos leitores reais
teria como consequência universalizar as idiossincrasias culturais e individuais [...]
dos leitores de carne e osso” (SANTOS, 2011, p.85).
Já a segunda considera, cognitivamente, não ser “qualquer indivíduo que
pode, a partir da ajuda do outro, realizar qualquer tarefa” (OLIVEIRA, 1995, p.59).
Nas palavras da autora: “não é qualquer leitor real que a partir da ajuda de outro,
neste caso uma estrutura textual – pode realizar a tarefa de construir sentido na
interação com um texto literário” (SANTOS, 2011, p.85).
Com base nessa discussão, Santos (2009) propõe questionamentos ao papel
do leitor como pensado pela teoria iseriana para, desse modo, descrever as
disposições cognitivo-emocionais apresentadas pelo leitor para ser capaz de se
colocar em implicitude com o texto, preenchendo seus pontos de indeterminação e
alcançando a emancipação.
Sabendo a argumentação desenvolvida pelo teórico alemão presumir o leitor
aceitar todo o plano proposto pela estrutura do texto para, assim, preencher os vazios
necessários, a partir dos quais ele evolui de modo à construção do sentido literário
alcançado permitir a sua emancipação, a autora estabelece as seguintes indagações:
“Se ele tem condições para fazer isso, como ocorrerá sua emancipação? A
experiência vivenciada na interação texto-leitor proporcionar-lhe-á qualidades as
quais já são tidas como requisitos para a construção do sentido e do significado?”
(SANTOS, 2011, p.87).
Conclui-se, então, à luz da Teoria Histórico-Cultural, o leitor ideal, como
depreendido da concepção iseriana de leitor implícito, ser aquele cujas habilidades
22
necessárias à interação com o texto já estariam presentes e, portanto, que não
vivenciaria o efeito estético. A vista disso, partindo da articulação proposta,
inferimos o texto precisar concentrar-se na ZDP do leitor para ocorrer atividade de
constituição do sentido, ou seja, “partindo das habilidades já possuídas, porém
através da mediação efetuada via estratégias textuais, [...] vai adquirindo outras
necessárias para a construção do sentido” (SANTOS, 2011, p.86).
Desse ponto de vista, a estrutura textual é entendida como um mediador
social, pois permite ao leitor atualizar o objeto estético, reconstruindo-o no plano
individual. Processo que, de maneira análoga à descrição de como ocorre
aprendizagem e desenvolvimento por Vygotsky, parte do plano social acessado via
interação com o texto (sistema simbólico) para o individual (significado atualizado
na consciência do leitor).
Dessa maneira, compreendemos a leitura, como dito por Cosson (2009, p.27),
ser um ato solitário, mas a sua interpretação ser solidária, tendo em vista, conforme
exposto por Santos (2011, p.90) “como a finalização individual partiu do plano
social, há em seu cerne um matiz igualmente social, permitindo a troca intersubjetiva
dos diversos significados atribuídos ao texto”.
Desse modo, como representado na FIGURA 1, o texto deve estar em
consonância com o NDR (Nível de Desenvolvimento Real) do leitor, apresentando
um repertório previamente familiar e estabelecendo um elo comum entre ele e o
texto. Fundada a comunicação inicial entre texto e leitor, as estratégias textuais
funcionam como agentes ativos da ZPD (Zona de Desenvolvimento Proximal),
possibilitando a apreensão e compreensão do sentido literário através de um sistema
simbólico socialmente construído. Ao fim do processo, o NDP (Nível de
Desenvolvimento Potencial) do leitor é alcançado via mediação, transformando-se
em seu NDR. Consequentemente, sua ZDP é alargada, preparando-o para outros
textos literários que poderão exigir ainda mais habilidade cognitiva e imaginação
(SANTOS, 2011, p.93).
23
FIGURA 1 – Descrição do processo de emancipação do leitor com base da articulação
proposta.
Para haver comunicação entre texto e leitor é necessário, pois, o
reconhecimento do repertório textual como algo familiar. Dessa forma, como
observado por Santos (2011, p.96) um mesmo texto pode ter vários níveis iniciais de
comunicação a depender da familiaridade apresentada por cada leitor concreto com
aquele repertório, sendo esta, como apresentado no QUADRO 1, condição sine qua
non para a atividade de leitura acontecer.
QUADRO 1 – Processo comunicativo de leitura com base nas disposições cognitivas do
leitor
Disposições do leitor Processo comunicativo segundo Santos (2009, p.156)
NDR aquém das
condições oferecidas pelo
texto
O leitor não conseguiria se pôr em implicitude, visto que a
solicitação estaria além de suas condições presentes.
NDR acima das
condições oferecidas pelo
texto
Desmotivar-se-ia frente a nenhum tipo de desafio e, portanto,
não empreenderia uma tarefa sem acréscimo a sua experiência.
ZDP em consonância às
condições oferecidas pelo
texto
Coloca-se em implicitude e, partindo das habilidades que já
possui, através da mediação efetuada vias estratégias textuais,
vai adquirindo outras necessárias para a construção do sentido.
Legenda: NDR: Nível de Desenvolvimento Real do leitor que se comunica com o repertório textual. ZDP atual do leitor: Habilidades possuídas por ele, a partir das quais adquirirá outras necessárias para a construção do sentido, através da mediação efetuada via
estratégias textuais e intervenção do professor. ZDP Ampliada: Novas habilidades, adquiridas através da mediação efetuada via estratégias textuais, permitindo a leitura de textos literários cognitivamente mais exigentes. NDP alcançado: Leitura de textos literários mais exigentes em relação às habilidades cognitivas e imaginação.
Novo NDP: Leitura de textos literários ainda mais exigentes do ponto de vista das habilidades cognitivas e da imaginação. *Mediação oferecida pelas estruturas textuais e pelo professor. ** Nova Mediação oferecida pelas estruturas textuais e pelo professor.
**
ZDP
Ampliada
NDR
Novo NDP
ZDP Atual do
leitor
NDP
Alcançado
(NDR Atual)
*
**
24
Logo, o efeito estético acontece, por um lado, pelo leitor, cuja imaginação é
ativada para a formulação da experiência estética, utilizando-se da estrutura textual
como ferramenta para a ação, por outro, pelo texto, ao oferecer condições em sua
estrutura (leitor implícito) capazes de estimular a percepção dos vazios textuais,
atuantes como gerenciadores das representações do leitor, no ato da leitura.
A argumentação desenvolvida pela teoria iseriana e o estudo de Santos
(2009), apresentada até o momento, nos oferece meios para responder duas das
questões essenciais na compreensão dos processos vivenciados pelo leitor quando
este com a sua leitura atualiza os textos ficcionais: “Como os textos são
aprendidos?” e “Como são as estruturas que dirigem a elaboração do texto naquele
que o recebe”, a partir das quais percebemos contribuições bastante pertinentes à
reflexão sobre como ensinar literatura.
Ademais, as perspectivas apresentadas oferecem importantes subsídios para
justificar o seu ensino ao fornecerem suporte para responder a uma terceira pergunta,
delineada pela Antropologia Literária, concernente à função do texto literário em seu
contexto. A partir de tais considerações entendemos “ficcionalizar” como uma
“disposição básica que ativamos através da encenação para nosso
autodesdobramento humano” (SANTOS, 2011, p.104), permitindo-nos “sermos e
termos a nós mesmos” ao nos favorecer ultrapassar as possibilidades circunstanciais,
através da transformação de Níveis de Desenvolvimento Potenciais em Níveis de
Desenvolvimento Reais.
CAPÍTULO II
QUANDO O MÉTODO PARA RECORTE DO CORPUS JÁ É UMA
PROPOSTA DE ENSINO DE LITERATURA
Na realização da presente pesquisa selecionamos quatro dentre os 41
participantes da Sessão do Programa de Antropologia Literária e Habilidades Sociais
(PALHSE) oferecida a graduandos de Letras. A proposta do PALHSE é de, com
base na Teoria do Efeito Estético e na Antropologia Literária, desenvolver conteúdos
procedimentais para o ensino de literatura partindo do uso das Habilidades Sociais
Educativas como ferramenta na mediação das interações sociais. O critério de
seleção dos integrantes, nomeados na análise de P1, P2, P3 e P4, deu-se pela
observação do seu envolvimento nas atividades propostas durante a Sessão
observada. Eles foram convidados a participarem do estudo via Convite escrito
(APÊNDICE A).
Para a definição do corpus, solicitamos aos licenciandos escolhidos redigirem
suas experiências com a leitura do conto “Boatos, apenas boatos”, da autoria de
Jennifer A. Trajano (ANEXO A), explorado na Sessão na qual haviam se engajado.
Demandamos, desse modo, apresentarem não só as suas leituras como também se
empenharem para mostrar o caminho por onde a construíram, proporcionando-nos,
assim, avaliar a nuances mais sutis da atividade envolvida em suas atribuições de
sentido ao texto literário indicado, após a participação no minicurso. Tal
procedimento foi eleito considerando-se, de acordo com Iser (1999a, v.2, p.53 apud
SANTOS, 2009, p.107), “perceber-se a si mesmo no momento da própria
participação (na construção do objeto estético) constituir uma qualidade central na
experiência estética”.
Integrando parcela importante da pesquisa em foco, apresentamos também
como se estruturaram as atividades durante a Sessão partindo da articulação teórica
proposta. Dessa maneira, explicitamos passo a passo o funcionamento da Sequência
Didática adotada, aliada à teoria que a fundamenta, de modo a ser possível,
acompanhando o desenvolvimento do método, visualizar outras possibilidades de
sistematização de sua prática em sala de aula.
26
1 Ensino de literatura numa perspectiva emancipadora
A execução da Sessão observada foi dividida entre sínteses teóricas,
vivências4 e suas respectivas socializações, objetivando desenvolver o conhecimento
da Teoria do Efeito Estético e da Antropologia Literária e sua implementação no
ensino da literatura, através da facilitação da experiência com o modelo de mediação
sugerido.
Considerando o destaque dado à interação no contexto do ensino de literatura
dentro da perspectiva adotada, além da atual atribuição à escola da responsabilidade
pela formação em competências mais subjetivas, nós nos amparamos na proposta das
Habilidades Sociais (HS), que englobam componentes comportamentais, afetivos e
cognitivos (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2006).
Descritas por Caballo (2006) como comportamentos emitidos em contexto
interpessoal que nos possibilitam expressar sentimentos, atitudes, desejos e opiniões
de maneira adequada à situação, preservando os direitos dos demais envolvidos de
modo a manter e favorecer as relações, as Habilidades Sociais (HS) constituem-se,
portanto, em ferramentas pertinentes para mediação das interações estabelecidas em
sala de aula.
No caso dos professores, em especial, a subclasse de Habilidades Sociais
Educativas (HSE) mostram-se imprescindíveis por serem “aquelas intencionalmente
voltadas para a promoção do desenvolvimento e da aprendizagem do outro, em
situação formal ou informal” (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2004, p.95). Isto
implica a contemplação e ajuste dos efeitos da própria conduta docente em função de
sua eficácia sobre a aprendizagem discente (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2008).
Desse modo, compreendendo a experiência estética localizada entre o
sensório e o conceitual como o faz Iser, e, portanto, intimamente ligada aos aspectos
afetivos e cognitivos (SANTOS, 2009, p.172), observamos a pertinência de nos
embasarmos na concepção das HS. Estruturamos, assim, as atividades em vivências,
definidas como “experiências interpessoais significativas que articulam,
4 “(...) atividade de grupo, estruturada de modo análogo ou simbólico a situações cotidianas,
que cria oportunidade para desempenhos específicos, permitindo que o facilitador avalie os
comportamentos observados e utilize as contingências pertinentes para fortalecer e/ou ampliar o repertório de habilidades sociais dos participantes” (DEL PRETTE; DEL
PRETTE, 2005, p.101).
27
simultaneamente ou alternadamente, demandas cognitivas, emocionais e
comportamentais” (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2001), no caso da aula de
literatura, criando oportunidade de mobilizar sentimentos, pensamentos e ações
relacionados aos significados atribuídos ao texto.
Logo, em um primeiro momento, realizamos a vivência “Que livro eu seria”
destinada à apresentação dos participantes e dos facilitadores, bem como a criação de
uma atmosfera propícia ao compartilhamento das experiências pessoais relacionadas
à literatura. A vivência fundamentou-se na exibição de uma cena do filme
Fahrenheit 451, cujo protagonista precisa memorizar uma obra para perpetuá-la
porque vive em uma sociedade em que os livros são queimados para não serem lidos.
Após a contextualização, solicitamos aos participantes expressarem qual título
escolheriam se estivessem na mesma situação do protagonista e pudessem salvar
apenas um livro. Esta vivência permitia, além da descoberta do nome da pessoa, ter
indícios sobre seu repertório literário.
Como a Sessão aconteceria em uma única tarde, previamente, foi feita a
seleção de um texto literário, a partir do qual se propôs uma vivência cognoscitiva
emocional, no intuito de preparar os aspectos cognitivos e emocionais dos
participantes para o conteúdo a seguir. Feito isso, o texto em foco foi apresentado,
juntamente a sua autora, e distribuído para leitura, permitindo aos participantes
fazerem uma leitura silenciosa individual. Por fim, efetivou-se uma vivência de
significação, em que emoções e sentimentos foram postos em discussão e solicitada
uma resposta ao texto lido.
Tratando-se de um minicurso destinado a futuros docentes de literatura,
finalizou-se com uma síntese teórica, objetivando apresentar os conceitos-chaves da
Teoria do Efeito Estético e da Antropologia Literária e a identificação com o grupo
de participantes dos conceitos nas estratégias realizadas até então.
Para realizar a seleção do texto literário em questão, consideramos, como
destacado por Santos (2011, p.85), cognitivamente, não ser qualquer leitor real, a
partir da ajuda interventiva de outro, neste caso, uma estrutura textual – capaz de
realizar a tarefa de construir sentido na interação com um texto literário.
Desse modo, levando em conta, sobretudo em sala de aula, buscar-se a
emancipação do leitor, entendemos, de alguma forma, o tipo de mediação
apresentada pela estrutura textual precisar estar acima do seu NDR (Nível de
28
Desenvolvimento Real), mas abaixo do seu NDP (Nível de Desenvolvimento
Potencial). Caso o texto estivesse acima do NDP do aprendiz, a solicitação estaria
além de suas condições presentes, impossibilitando a leitura, e, por outro lado, se
aquém do seu NDR, não ofereceria a ele nenhum tipo de desafio.
Isto posto, inferimos, como elucidado por Santos (2009, p.11), que para o
leitor se colocar em implicitude o texto precisa estar concentrado em sua ZDP (Zona
de Desenvolvimento Proximal). Dessa maneira, principiando das habilidades
possuídas por ele, porém através da mediação efetuada via estratégias textuais,
adquirirá outras necessárias para a construção do sentido, possibilitando “em leituras
posteriores, iniciar o processamento do texto e a interação texto-leitor como um todo
de um novo e mais elevado patamar” (SANTOS, 2011, p.97).
Por conseguinte, o primeiro critério adotado foi o de o texto ficcional
escolhido estar em consonância com o NDR dos participantes, pois para haver
comunicação seria, a princípio, necessário a identificação de algo familiar a eles no
repertório textual, mas sem, no entanto possuir tanta familiaridade a ponto de
impossibilitar a formulação de algo novo. Condição por meio da qual é possível,
partindo da construção do sentido do texto e da consciência envolvida em tal
processo, construir e (re)construir a si próprio.
Como critério secundário, optou-se por privilegiar escritores de margem,
contribuindo para circulação de textos literários pouco conhecidos entre os
estudantes de Letras, em razão de, como argumenta Even-Zohar em
Polysistemstudies (1990), a literatura ser constituída por um conjunto de sistemas
que compreendem várias manifestações literárias, mantendo ligações com outras
artes e saberes e, portanto, não poder ser reduzida ao sistema canônico, como
frequentemente acontece.
Seguindo esses critérios, o texto selecionado foi “Boatos, apenas boatos”,
escrito por Jennifer A. Trajano. Sua autora é graduanda do curso de licenciatura em
Letras Português da UFPB sendo este o seu primeiro conto, inclusive, ainda não
publicado, mas registrado em cartório. Narrado em primeira pessoa por uma
personagem sem nome, apelidada por seus conterrâneos de “Cigana”, o conto foi
escolhido por revelar, em uma narrativa rica em metáforas e vazios textuais, a
desilusão amorosa da protagonista (ANEXO A).
29
Sabendo também o aluno/leitor além de poder5 precisa querer (aspecto
afetivo) para a leitura se efetivar (SANTOS, 2009, p. 135), é pertinente a realização
de uma atividade de aproximação entre ele e o texto ficcional, objeto da leitura.
Nesse sentido, a vivência cognoscitivo emocional se dispõe a, utilizando-se de
elementos lúdicos, desempenhar o papel de despertar a sua motivação para o ato de
ler, preparando-o para entrar em contato com o texto sugerido.
Para isso, ela é estruturada de maneira a acessar o NDR do aprendiz com o
intuito de, a partir daí, abordar um aspecto do texto que sirva, a princípio, de elo
comum entre os dois, garantindo a comunicação. Tal atividade leva em conta quanto
mais o leitor reconhecer o repertório textual mais poderá se sentir motivado a
estabelecer novas combinações (SANTOS, 2011, p.96), colocando-se em
implicitude.
Na vivência cognoscitivo emocional proposta, denominada "Mensageiro Por
Acaso", a aproximação em relação ao conto foi realizada por meio do título “Boatos,
apenas boatos”, estipulando como temática as ambiguidades vivenciadas durante a
comunicação.
Com este fim, distribuímos cartões entre os participantes e solicitamos a eles
pensarem numa mensagem positiva para alguém presente na sala (podendo ser sobre
a aparência, algo dito anteriormente, uma afirmação ou pergunta). Explicamos,
então, que algumas seriam interpretadas por um intermediário. No cartão, havia o
nome do emissor, do destinatário e o recado.
Em seguida, recolhemos os cartões e solicitamos a um voluntário iniciar a
vivência. O participante deveria pegar uma mensagem dentro da caixa e escolher
uma ação para acompanhá-la (disponível em um repertório de ações6), encenando-a.
Na sequência, o destinatário era encarregado de dar continuidade à atividade. Ao
final, pedimos aos receptores para compartilharem como haviam recebido o recado e
aos intérpretes, como havia sido a experiência de tê-lo emitido. Por fim, indagamos
aos emissores se a interpretação da mensagem havia ocorrido segundo as suas
5 Ter presentemente as condições cognitivas necessárias ou ter a possibilidade de construí-las no processo. 6 Lista de ações: segurar a mão; piscar o olho; sorrir; chorar; dançar; abraçar; gritar; sussurrar;
bocejar; gaguejar; ajoelhar; cantar; caminhar; pular; cambalear.
30
expectativas, gerando uma discussão sobre as arbitrariedades presentes no processo
de comunicação.
Após esse momento, foi feita de maneira breve uma introdução do texto
literário sugerido, objetivando contextualizar os alunos a respeito dele. Desse modo,
realizamos uma seleção criteriosa de informações sobre o texto e a biografia do
autor, selecionando aquelas mais relevantes levando em conta o lugar ocupado por
quem realizaria a leitura, de modo a ativar suas curiosidades.
Como a escritora do conto possuía uma relação de proximidade com os
participantes, sendo, em grande maioria, seus colegas de sala, optamos por atribuí-lo
a uma autora fictícia, de maneira a deixá-los mais livres para fazer um julgamento do
texto. Somente ao término da Sessão, revelou-se a autoria verdadeira do texto,
apresentando-se a biografia de Jennifer A. Trajano7.
Após a da Vivência cognoscitivo emocional e apresentação do texto e da
“suposta” autora, o conto foi representado em forma de monólogo, intercalado pela
interpretação das músicas Resposta ao Tempo, de Aldir Blanc e Cristovão Bastos
(2010) e Quando eu olho para o mar, de Alceu Valença (2014). A interconexão
entre as artes: música, teatro e literatura, permite ao leitor experimentar diferentes
linguagens, enriquecendo a sua capacidade de interpretação. Desse modo, tanto a
música quanto o teatro, por consistirem em interpretações atribuídas ao texto, ao
mesmo tempo em que preenchem alguns vazios textuais, estimulam o leitor a abrir
outros tantos, oferecendo novas perspectivas.
Nesse sentido, segundo Iser (1996, v.1, p.10) e como enfatizado por Cosson
(2009) em sua proposta de Letramento Literário, a leitura do texto ficcional é uma
experiência única e, como tal, não pode ser vivida vicariamente. Diante disso, ao
contrário da condução tomada por muitas práticas em sala de aula, o conhecimento
da história por outro meio, a exemplo do monólogo, jamais substitui o contato do
leitor com o texto literário.
7 Jennifer Adrielle Trajano Lima tem 18 anos. Nasceu em 28 de junho de 1996, na cidade de João Pessoa, onde reside atualmente. Filha de pais joviais e apoiadores, é amante e apreciadora das artes
em geral e especialmente fascinada pela literatura, um dos motivos que a faz cursar Letras Português
pela Universidade Federal da Paraíba, no intuito principal de modificar o universo do outro, através
do ensino. É adepta da leitura, cinema, pesquisa, chocolate, lugares históricos e ócio criativo. Vive no
mundo possível e fantástico onde as letras possuem vidas e exalam sentimentos, por isso pensa (assim
como Borges) que talvez o paraíso seja uma livraria e escreve contos e poemas para que todos
alcancem o céu. Acredita que a literatura seja uma utopia capaz de salvar o ser humano na vida e
eternizá-lo depois da morte por meio de suas criações.
31
Dessa forma, a entrega do conto pela facilitadora para ser feita uma leitura
silenciosa individual pelos participantes, após o monólogo, constituiu no evento
mais importante da Sessão, posto possibilitar ao leitor vivenciar sua liberdade com o
texto, sem o qual a experiência estética, acontecimento em direção a que todas as
outras vivências convergiram, não aconteceria.
Em resposta a esse sentido (significado/experiência estética) construído
durante a leitura, por meio do processo de interação com o texto, produzimos uma
significação (resposta à experiência) propiciadora de um avanço qualitativo em
termos de habilidades afetivas, cognitivas e experienciais em nossas vidas, gerando,
dessa maneira, uma emancipação.
Esse argumento baseia-se na proposição de que o preenchimento das
indeterminações textuais, as quais nos permitem atribuir sentidos ao texto, é feito por
intermédio da nossa subjetividade, cujo conteúdo ao mesmo tempo em que participa
da constituição do objeto estético, também é modificado por ele, transformando
nossa maneira de enxergar a estrutura textual e a nós mesmos.
Depreendemos, assim, a formulação dos sentidos de uma obra literária, de
maneira a proporcionar uma emancipação, só se efetivar quando fornecemos uma
significação a ela. Dentro dessa perspectiva é proposta a vivência de significação
como momento em que o professor, no papel de mediador, oferece aos alunos
oportunidade para compartilhar as impressões sobre o texto, aproximando-os de suas
experiências e proporcionando uma reflexão acerca do efeito experimentado durante
a leitura.
Sabendo cada leitor atualizar a obra literária de acordo com as estratégias e
pelo tipo de interação que por meio delas desenvolveu no ato de ler, um mesmo texto
ficcional cria Níveis de Desenvolvimento Potenciais (NDP) diferenciados de acordo
com seus diversos leitores e, por conseguinte, permite uma multiplicidade de
interpretações. Assim sendo, ao propor a socialização da leitura, a atividade sugerida
favorece a identificação das potencialidades de sentidos proporcionadas pelo texto,
ampliando aqueles construídos individualmente.
A execução dessa vivência tem como finalidade, consequentemente, o
desenvolvimento do repertório e preparação para outros textos literários capazes de
exigir ainda mais habilidade cognitiva e imaginação, permitindo à construção
32
gradual de uma autonomia cada vez maior por parte do aluno em relação à leitura
literária.
O primeiro momento da vivência, chamada "Ecoando amor", destinou-se a
uma apreensão geral do conto, com o objetivo de levar os participantes a traduzirem
as impressões provocadas pela leitura e o impacto ocasionado por ela sobre suas
sensibilidades de leitores.
Na medida em que eles discorriam sobre as suas experiências individuais, a
facilitadora estimulava a discussão introduzindo, a partir dos conteúdos referidos por
eles, aspectos relacionados ao enredo, personagens e título, estabelecendo link com a
temática da vivência cognoscitivo emocional.
Compreendendo que a literatura dialoga com outros textos, tecendo, dessa
maneira, a nossa cultura (COSSON, 2009, p.83), propôs-se ouvir uma interpretação
da canção Na primeira manhã, de Alceu Valença (2000), no intuito de estender e
consolidar o repertório cultural dos participantes. A letra se aproxima do conto ao
tematizar a perda de alguém/algo amado, permitindo uma discussão sobre a sensação
de desamparo provocada por essa ausência.
Em seguida, distribuíram-se comparações relacionadas ao tema "solidão",
com base na estrutura das figuras de linguagem da música, e solicitou-se aos
participantes a leitura em voz alta, expondo como as compreenderam e em que elas
lhes tocaram. Ao final, pediu-se a eles para construírem uma nova comparação,
indagando-os, posteriormente, quem gostaria de compartilhar a própria produção
com o grupo.
Por fim, suscitando uma mudança de atenção, depois de realizada uma
atividade reflexiva envolvendo emoções tristes, solicitamos que as pessoas se
organizassem em duplas e dissessem, umas para às outras, algo que gostariam de
ouvir, através de uma mensagem amorosa.
Para finalizar, realizamos uma síntese teórica, facilitada pela pesquisadora,
objetivando apresentar os principais conceitos da Teoria do Efeito Estético e da
Antropologia Literária, a saber: polo artístico, polo estético, vazio, repertório,
interação texto-leitor, significação, emancipação, estratégias textuais, perspectivas
textuais e atos de fingir; articulando-a com as atividades realizadas durante a Sessão
e o ensino de literatura. Como encerramento da Sessão, foi apresentado aos
33
participantes a verdadeira autora do texto literário e os membros do projeto
envolvidos na preparação do minicurso.
CAPÍTULO III
PINÇANDO E PENSANDO REPERTÓRIO, OBJETOS ESTÉTICOS,
LEITOR IMPLÍCITO NA ZDP DO LEITOR REAL (OU PORQUE A
EMANCIPAÇÃO É POSSÍVEL)
Os quatro participantes selecionados, mediante a observação do
envolvimento na nas atividades propostas durante a Sessão do PALHSE, estão no 3º
período da licenciatura em Letras Português e possuem entre 18 e 21 anos, sendo
dois do sexo masculino e dois do feminino. Eles aceitaram o convite para participar
da pesquisa redigindo sobre as suas experiências de leitura do conto “Boatos, apenas
boatos”, posteriormente a mediação oferecida no minicurso. As redações foram
enviadas por e-mail em um prazo de uma semana, e assinado um Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (APÊNDICE B), autorizando a utilização das
produções no corpus da análise e assegurando o sigilo das informações relacionadas
às suas privacidades.
Compreendendo a ZDP como sendo construída nas interações sociais
(ALVAREZ; DEL RIO, 1996), de maneira que a ZDP de um leitor flutua mais ou
menos dentro dos limites construídos nas atividades socialmente organizadas do
grupo a que pertence, decidimos analisar as experiências de leitura conjuntamente,
demonstrando a intersubjetividade presente nos significados atribuídos ao texto. As
redações encontram-se em anexo ao trabalho, possibilitando a consulta na íntegra,
devido ao cuidado estético com o qual foram escritas, denotando o envolvimento dos
participantes (ANEXOS B, C, D e E).
Sabendo estarem no 3º período de um curso cujas disciplinas, em parte,
exigem a leitura de literatura, é de se esperar possuírem um NDR um tanto quanto
largo se comparado a um leigo, por exemplo, como observado pela breve e adequada
síntese do texto literário realizada por P1 (ANEXO B), descrito por ele como “um
conto rico em poesia, metáfora, descrição e analogias, que narra as experiências
subjetivas da personagem apelidada de Cigana, como o seu caso de amor com
Curumim e as consequências deste acontecimento”, em que demonstra compreensão
da narrativa, utilizando-se de conceitos da teoria literária.
35
Percebemos, no decorrer da resenha do conto de P1, as estratégias textuais
utilizadas por ele para compreender o texto ficcional. Por meio delas, ele faz a
combinação dos elementos selecionados, efetivando a síntese dos pontos de vista,
como percebido no trecho a seguir, em que se detém ora na perspectiva da
personagem, ora na do enredo, para fazer a descrição da protagonista:
Cigana é alguém que se sente solitária, ignorada, sem
importância existencial. Ela foi abandonada e entregue aos
seus padrinhos quando tinha 17 anos de idade. Como alguém
que gosta de observar e usar a imaginação, viu Curumim e
imediatamente se sentiu atraída por ele, sem conhecê-lo, no
entanto, seu amor não era cego, pelo contrário, via demais.
Ao citar o livro “À espera da Liberdade”, do qual copiou
trechos nos quais eram refletidos seus sentimentos desde que
seu amado, por necessidade, teve de partir. Parece-me que
Cigana era presa numa vida sem sentido, e reconhecia em
Curumim a sua libertação. Depois de conhecê-lo, ter de ficar
sem ele era pior do que quando não o conhecia.
Desta maneira, verificamos como o repertório textual, a exemplo das
referências possíveis de serem estabelecidas por meio dos elementos selecionados –
como a biografia da personagem, o título da obra lida por ela e a descrição de sua
perda amorosa –, o auxilia a formar uma nova e coerente combinação não formulada
no próprio texto. Compreende-se, portanto, a necessidade das capacidades de
apreensão e de processamento de P1 estarem devidamente ativadas pelas estrutura do
texto, cujos pontos de indeterminação, localizados nas insterseções entre as
perspectivas textuais, demandam a sua atividade ideacional.
Para isso, no entanto, é necessário ter havido uma comunicação entre o
repertório textual e o NDR de P1, pois é partir do seu prórprio repertório que ele, o
leitor, é capaz de preencher os vazios oferecidos pelo texto, conforme percebido no
fragmento abaixo de sua experiência de leitura:
A palavra Cigana, por exemplo, para mim está vinculada a
vários conceitos, sendo eu descendente de ciganos e tendo na
família uma cartomante com quem convivi desde o meu
nascimento até os 18 anos, e ao pensar sobre o apelido da
personagem, muitas experiências foram por mim recordadas,
e também delas me utilizei para inferir durante a leitura até o
término dela.
Entendemos, desse modo, o texto ter motivado P1, possuindo determinadas
habilidades facilitadoras de seu envolvimento com o processo de leitura. Este dado
36
enfatiza a importância da mediação efetuada através da escolha do conto,
considerando o NDR dos participantes.
Notamos, simultaneamente, um mesmo texto poder estabelecer diferentes
níveis iniciais de comunicação, a depender do NDR (repertório trazido) pelo leitor
em implicitude e das mediações literárias, cognitivas e sociais presentes em seu
contexto. Tal asserção se verifica quando contrastamos a leitura de P1 à realizada
por P3 (ANEXO D), que preenche o mesmo vazio, concernente ao nome da
personagem, de maneira distinta, mas também plausível, relacionando os elementos
identificados por ela no texto ao processo criativo de Chico Buarque, as composições
do movimento musical do Clube da Esquina e a letra da canção Trem das Cores, de
Caetano Veloso:
O nome da personagem remete a tantas coisas, inclusive,
acho que uma temática bem clara é a do movimento. Chico
Buarque uma vez disse que só consegue escrever quando se
movimenta, caminha pelos lugares, vê gente, porque esses
são os seus objetos fictícios. Para ser ainda mais musical
dentro do contexto, digo que é como escutar o Clube da
Esquina que carrega uma narrativa inteira com temática
baseada no movimento, no transitar, com a sensação de viajar
dentro do Trem das cores de Caetano Veloso, num tempo
nostálgico e urgente sendo delineado, é o zoom da íris
acordando já acordado, é dançar dançando, é interpretar as
palavras como, por exemplo, chão teimoso, e visualizar o
coração como esse território dos pés, é como tomá-la lendo
em forma de oração de lamento, sem crença, mas com
vontade sincera.
Embora tendo experiências estéticas diversas, tanto P1 quanto P3, atentaram
em suas atividades de leitura para os vazios oferecidos pelo título do conto, temática
explorada na vivência cognoscitiva emocional. Enquanto P3 relata “A curiosidade
pode(r) ser aguçada no primeiro momento quando nos deparamos com o título do
texto. Boatos?” perguntando-se “Mas boatos correm com destinatário certo e com
remetente anônimo. O que será que a autora quer dizer com isso?” P1 se questiona:
“o título supõe a inverdade acerca de todos os fatos, afinal, quais seriam os boatos,
como encontrá-los? (a Cigana poderia estar relatando boatos, inverdades)”.
Evidenciamos, dessa maneira, a mediação social realizada pela Sessão,
compreendendo a vivência ter alcançado o seu propósito de mobilizar o interesse dos
participantes em relação à narrativa, tendo em vista ter favorecido o reconhecimento
37
e preenchimento de vazios, estimuladores da comunicação com o texto e da
recriação constante do objeto estético que, por sua vez, “no e com o leitor real é a
mola propulsora da motivação deste leitor” (SANTOS, p.94, 2011).
Logo, constatamos várias alternativas de seleção e combinação do repertório
textual, de acordo com o NDR dos leitores, gerando diversas possibilidades de
formulação do objeto estético, ao mesmo tempo em que fica evidente cada
finalização individual partir do plano social, havendo em seu cerne um matiz
igualmente social, permitindo uma troca intersubjetiva dos significados atribuídos ao
texto.
Indo ao encontro desta perspectiva, percebemos nas experiências de leitura o
monólogo também ter produzido a ativação do imaginário dos participantes,
funcionando como um mediador social, conforme constamos nos relatos de P2
(ANEXO C), ao aludir “Enquanto ouvia a narrativa, imagens se formavam na minha
cabeça, tal como acontece toda vez que leio um livro. Pude visualizar o interior de
Queixinhos, o Curumim, o primeiro encontro entre o casal protagonista” e de P3
quando declara: “Fui levada a um estado de meditação [...] quando assisti a leitura do
texto encenada na sessão PALHSE”.
P2 retrata terem se abertos vazios através da encenação: “Confesso que de
início, a minha curiosidade foi em mais de uma direção: como será que a atriz
memorizou isso tudo? Quem será esta garota? Que roupa linda ela está usando, será
que o conto fala sobre uma cigana?”. Embora nem todos no sentido literário, dizem
respeito ao cognitivo e denotam ter mobilizado a sua curiosidade. Verificamos,
assim, os aspectos afetivo e cognitivo caminharem lado a lado, consoante à descrição
de P2 de como foi para ela vivenciar a encenação da história:
Ter a história sendo narrada inconscientemente remeteu-me a
momentos da minha infância, quando minha mãe me contava
histórias que inventava na hora. Foi bom ter essa experiência
de novo, agora com 18 anos e em um contexto
completamente diferente.
Compreendemos, dessa maneira, a importância de considerar a relação, por
definição intrínseca, entre os aspectos emocionais e cognitivos do leitor (real)
(Vigotski, 1999), sendo as condições emocionais, conforme observado, intimamente
associadas à cognição, como por exemplo, motivação para o ato de ler e apego às
representações formuladas (SANTOS, 2009, p. 25).
38
Desse modo, constata-se o monólogo também ter auxiliado aos participantes
a entrarem em contato com o texto sugerido e, inclusive, estimulado uma leitura com
mais acuidade, de acordo com o descrito por P2:
Depois da interpretação do monólogo e de um breve
intervalo, tive a oportunidade de ler o texto novamente, de
forma individual. Pude prestar mais atenção nos detalhes,
realizando uma leitura mais imagética, visualizando as cenas
com maior precisão. Reli algumas passagens mais de uma
vez, para aperfeiçoar minha interpretação. Também prestei
mais atenção no início do texto, que não havia ouvido bem
por estar me questionando todas as outras coisas
supracitadas. Certos detalhes, como cores, cenários e até
mesmo aparências físicas puderam ser melhor imaginados
por mim, o que penso ter tornado a leitura mais interessante e
rica.
Atesta-se, dessa maneira, a leitura do texto ficcional ser uma experiência
singular e, como tal, não poder ser vivida vicariamente, em especial quando P2
esclarece como foi à experiência de ler o conto após a sua encenação: “Eu ainda
lembrava-me dos trechos que haviam me chamado atenção, e o processo de leitura se
dividiu entre a surpresa de notar novas coisas, e a pressa de chegar nas partes que eu
gostaria de ler”, denotando o monólogo ter cumprido o papel de motivador do seu
engajamento na atividade de leitura.
Nesse sentido, percebe-se a leitura trazer momentos únicos que somente ela
pode oferecer, conforme corroborado pela descrição de P3 da experiência de assistir
ao monólgo: “Eu queria pausar, reler alguns trechos, digerir o que estava sendo
mostrado”. Diante disso, reassegura-se, ao contrário da condução tomada por muitas
práticas em sala de aula, o conhecimento da história por outro meio jamais substituir
o contato do leitor com o texto literário.
A mediação social efetuada durante a Sessão também é destacada por P1
quando decreve a aprendizagem “na teoria e prática, que o sentido do texto é
construído na interação do leitor com ele, considerando as informações do texto e
unindo a elas suas experiências e conhecimentos”. Assim, inferimos as atividades
realizadas ao longo da Sessão terem suscitado uma consciência maior da sua própria
participação na construção do objeto estético. Tal percepção constitui-se qualidade
central na experiência estética, segundo Iser (1999a, v.2, p.53 apud SANTOS, 2009,
39
p.107), pois a partir dela é possível construir e (re)construir a si próprio no decorrer
da atividade de leitura.
Observamos, assim, a consciência envolvida em tal processo e a identificação
de aspectos familiares a ele no texto tê-lo motivado a efetivar novas combinações,
resultando em um sistema de equivalência, atualizado por ele através das sucessivas
sínteses efetuadas ao longo da leitura, como a exemplificada no fragmento abaixo,
no qual faz um resumo do desfecho da narrativa:
Confusa de tanta dor, Cigana, perturbada, pensou ter visto
Curumim ao longe, e enxergando naquela dúvida o encontro
definitivo com a sua redenção, ocultou o medo e entregou à
nova vida refugiada na imagem de Curumim no rio. Para
Cigana, viver de amor é morrer dele, ou vice-versa, seja no
encontro com ele ou na sua falta.
Tais sínteses constituem-se a via para a compreensão do texto na consciência
do leitor, cujo movimento por dentro da estrutura textual implica em profundas
transformações concernentes tanto à apreensão e compreensão do que busca
conhecer tanto em relação à própria formulação do objeto estético (SANTOS, 2011,
p.98), já que a cada momento ele (l)vê apenas uma parte do objeto, sendo estas
leituras por vezes complementares, suplementares ou contraditórias.
Podemos verificar este processo no trecho abaixo, contendo a descrição de P1
do momento da leitura no qual houve uma articulação entre o seu NDR, construído
por leituras anteriores, em especial a de Dom Casmurro, de Machado de Assis, e o
repertório, formado pelos elementos textuais, permitindo a ele olhar para o texto de
outro ponto de vista e tornando possíveis novas combinações.
Enquanto interagia com o conto, em determinado momento
fui remetido a um romance de Machado de Assis, Dom
Casmurro, tendo em vista que toda a história também é
narrada por um só personagem e que, portanto, coloca-nos
perante a decisão em escolher ou não acreditar no que é
contado, como também imaginar o que teria acontecido nos
intervalos ocultados entre os acontecimentos redigidos. Para
mim, a dúvida está tanto neste romance quanto no conto.
De maneira análoga, ao descrever a sua atividade de leitura, P3 demonstra
como o uso de palavras e expressões fora dos seus contextos usuais na narrativa
criaram lugares vazios, interrompendo a organização esperada e permitindo
selecioná-las e combiná-las de maneira a ganharem novos sentidos, diferentes dos
40
enxergados por ela comumente. Desse modo, foram favorecidas as mudanças de
perspectivas empreendidas pelo seu ponto de vista, como frisa no fragmento abaixo:
Parecia que eu estava imergindo em palavras soltas, como se
fosse uma poesia daquelas que só Djavan para saber bem
compor, e por outro lado é porque há no texto uma espécie
extinta, digo que para mim essas são as palavras-chão,
palavras que existem, mas que são esquecidas no dicionário
do olhar cansado do cotidiano.
Compreendemos, assim, tanto P1 quanto P3 transcenderem seus níveis
iniciais (NDR), através da mediação das estruturas textuais, ultrapassando vários
níveis intermediários dentro de suas ZDP. Por meio desse processo, são capazes de
em leituras posteriores, inclusive do mesmo texto, enxergar novos vazios, iniciando
o seu processamento de um novo e mais elevado patamar, conforme exemplificado
por P1, no trecho abaixo, em que elenca os questionamentos a respeito da narrativa
surgidos após uma releitura:
Ao analisar o texto após lê-lo, deparamo-nos com várias
questões as quais devemos considerar, como: o título supõe a
inverdade acerca de todos os fatos, afinal, quais seriam os
boatos, como encontrá-los? (a Cigana poderia estar relatando
boatos, inverdades); ao usar o substantivo obnubilação, a
personagem se refere a ela como alguém confusa, perturbada,
inconsciente, fascinada, seduzida e de vista turva, ou, na
realidade, alguém que faz com que os outros fiquem dessa
forma?
Partindo desses vazios, favorecedores de outras interseções entre o NDR de
P1 e o repertório textual, ele realiza uma nova combinação e síntese dos elementos
textuais, (re)formulando o objeto estético e alcançando novos pontos de vista dentro
do texto, como constatado na continuação do fragmento anteriror:
O nome da personagem nos faz pensar na historicidade
feminina e do povo cigano, dois objetos de preconceito e
segregação; “Cigana” possui efeito sonoro parecido com o de
"se engana", portanto, a personagem poderia, ter construído
toda uma estória; “Cigana” nos recorda do significado
pejorativo vinculado a esta palavra, de quem se caracteriza
pela astúcia manuseada para iludir ou burlar alguém; há um
paradoxo em se descrever como pouco percebida e após
afirmar ser julgada pelas pessoas.
41
Desse modo, P1 revisa os vazios, os contrasta com seu Repertório, realizando a
síntese da primeira formulação do objeto estético e reformulando-a, atribuindo,
assim, outros sentidos ao desfecho da narrativa, como verificado nas reconsiderações
feitas por ele após apresentar as reflexões citadas anteriormente:
[...] Para uma ilusão ter aparência verossímil, é necessário
justificar a impossibilidade de se tocar no que, na realidade,
não existe, portanto, teria a Cigana justificado sua loucura
com a viagem e indiferença de Curumim, como também o
envolvimento dele com outra mulher e consequentemente a
sua morte, tudo isto improvável, apenas boatos?; o fim do
conto é incerto, afinal, a personagem, também sem lucidez
ou sanidade, ou apenas confusa, suicidou-se buscando
“refúgio”, “partindo para a próxima vida”, ou teria ela, ao
mergulhar no rio, obtido a resposta para “a dúvida de tê-lo
avistado”, a de que tudo é na verdade uma grande mentira
criada por ela, ou ainda após esta última constatação da
mentira, aí sim ter se suicidado, não aguentando voltar para a
realidade.
Dessa forma, através das sínteses dos pontos de vista combinados ao longo da
atividade de leitura, P1 atinge sucessivos NDPs, sendo possível a ele deparar-se com
novos horizontes marcados pelas perspectivas assumidas anteriormente, enquanto
formula o objeto estético. Assim, na medida em que P1 alcança o NDP incial
transformando-o em NDR, outro NDP sempre se lança á vista.
O processo de (re)formulação do objeto estético é percebido, igualmente,
tanto nos relatos P2 quanto de P4 (ANEXO E), ao descreverem como foi a
experiência de fazer uma (re)leitura do texto depois de terem assistido ao monólogo.
P2 afirma, assim, “embora na primeira leitura, através do monólogo, eu tenha tido
certeza de que a Cigana havia se matado no fim da história, ao reler sozinha, elaborei
muitas outras hipóteses igualmente plausíveis, e até agora, não sei o que pensar”.
De maneira semelhante, P4 expõe “Após ler e reler aquilo tudo, concluí que
não cabia a mim dizer se a Cigana estava ou não morta.” Preenchendo o vazio, em
seguida, a partir da sua experiência pessoal: “Tendo a acreditar que não. Por ter
estado no lugar dela, lembro-me de ter mergulhado em diversos açudes com cor de
olho” e formulando uma síntese do objeto estético: “Creio que ela se matou, mas
metaforicamente. Gosto de pensar que as águas castanhas esverdeadas lavaram uma
parte de sua alma, e que ela voltou à terra sentindo-se, mesmo que por pouco tempo,
levemente melhor”.
42
Sabendo a comunicação entre texto e leitor advir tanto do reconhecimento do
repertório quanto da forma como ele é selecionado, a multiplicidade de
interpretações está associada às diferentes ZDPs, criadas pelas estratégias e pelo tipo
de interação que o leitor por meio delas desenvolve com o texto.
Essa afirmação pode ser constatada por meio da comparação entre a
formulação do objeto estético de P1 e P3, distintas, embora ambas sejam possíveis,
possuindo sentido dentro do texto. P3 resume a narrativa de maneira semelhante a P1
(“um conto [...] que narra as experiências subjetivas da personagem apelidada de
Cigana, como o seu caso de amor com Curumim e as consequências deste
acontecimento”) como sendo a respeito de “dois tipos de vestimentas: a de sua alma
(da personagem) e a da alma de duas pessoas que querem caber numa roupa só”, mas
descreve de maneira diferente a síntese do objeto estético, observados outros
aspectos:
Da terra para outro plano, do senso comum para o
reencontro, é também um texto sobre morrer, nascer e
renascer, sobre escolhas, sobre se lavar por um encontro,
mesmo que esse encontro seja em outras vidas ao atravessar
as portas daquelas mesmas águas que inundou seu coração-
chão.
Percebe-se, então, a literariedade do texto, demonstrada nos múltiplos
sentidos possíveis de serem alcançados pela sua leitura, sendo tanto as primeiras
sínteses das elaborações dos objetos estéticos de P1, P2 e P4 quanto as segundas
plausíveis, além das formulação realizada por P3.
A literariedade é denunciada, sobetudo, pela necessidade de várias leituras
para (re)elaboração do objeto estético, como percebido mais evidentemente em P1 e
enfatizado por P3 na descrição de seu processo de leitura “Para além de como o texto
é desenvolvido, o que é desenvolvido nele atravessa essa ideia de mapeamento e
conexões, segura o leitor na conformidade de um ritmo calmo onde a leitura dá as
mãos para uma releitura”. Disto, inferimos tanto a mediação social quanto literária
oferecida terem favorecido aos participantes questionarem seus conhecimentos
prévios, ultrapassando-os através de suas atividades de atribuição de sentido ao texto
e, por conseguinte, emancipando-se.
CAPÍTULO IV
DISCUTINDO EMANCIPAÇÕES PÓS-LEITURA DE LITERATURA
Observamos pelas experiências de leitura, as vivências realizadas ao longo da
Sessão terem cumprido o papel de ativar os aspectos cognitivo e emocional dos
participantes, estimulando-os a efetivar as indicações da estrutura textual. Ainda,
favoreceram a ampliação da consciência em relação à própria participação na
construção do objeto estético.
Os questionamentos realizados pelos leitores diante dos vazios identificados
na narrativa, sintetizados no QUADRO 2, vão ao encontro da assertiva de LIMA
(2002, p. 51-52) que “diante do texto ficcional, o leitor é forçosamente convidado a
se comportar como um estrangeiro, que a todo instante se pergunta se a formação de
sentido que está fazendo é adequada à leitura que está cumprindo. [...]”. Ademais,
percebemos a multiplicidade de caminhos possíveis de serem percorridos dentro de
um mesmo texto literário.
Evidencia-se, sobretudo, comparando-se as duas colunas do QUADRO 2, a
relação entre os segmentos textuais dados, os elos e as motivações indeterminadas,
preenchidas pelo NDR dos leitores, ser fundamental para os tipos de interação e
interpretação, efetuada de maneira distinta por cada participante.
QUADRO 2 – Síntese da atividade de leitura dos participantes
*Não foi possível identificar através da análise do relato da experiência de leitura.
Cruzamento entre NDR e repertório textual Identificação de vazios
P1
Nome da personagem e experiências
recordadas por ser descendente de ciganos e
haver convivido com uma cartomante. Dúvida presente em Dom Casmurro por
também ser narrado da perspectiva de um
único personagem (ANEXO B).
Quais seriam os boatos, como identificá-los?
Ao usar o substantivo obnubilação, a
personagem se refere a ela como alguém confusa, perturbada, inconsciente, fascinada,
seduzida e de vista turva, ou, na realidade,
alguém que faz com que os outros fiquem (ANEXO B).
P2 -* A cigana haveria morrido? (ANEXO C)
P3
Nome da personagem e temática do
movimento presentes nas composições Clube
da Esquina e na letra da canção Trem das Cores, de Caetano Veloso (ANEXO D).
Palavras e expressões usadas na narrativa
fora dos seus contextos usuais (chão teimoso,
olhos de açude) (ANEXO D).
P4 Experiência pessoal envolvendo um
relacionamento passado (ANEXO E).
A cigana haveria morrido? (ANEXO E).
44
Verificamos, assim, o reconhecimento dos participantes sobre o que havia de
familiar no texto (repertório), possivelmente, motivando-os a estabelecer novas
combinações e a recriar constantemente a formulação do objeto estético diante dos
vazios textuais. Tal processo propiciou a ocorrência de mudanças de perspectiva,
implementadas pelos seus pontos de vista de leitores, consoante ao observado no
QUADRO 3.
Para Iser (1999a, v.2, p.10-11), é justamente a produtividade exigida do leitor
que o motiva a se engajar na leitura:
É que a leitura só se torna um prazer quando nossa
produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos nos
oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades.
Sem dúvida há limites de tolerância para essa produtividade;
eles são ultrapassados quando o autor nos diz tudo
claramente ou quando o que está sendo dito ameaça
dissolver-se e tornar-se difuso; neste caso, o tédio e a fadiga
representam situações-limite, indicando em princípio o fim
de nossa participação.
Nesse sentido, a mediação social efetuada pelo professor deve cumprir o
papel de criar as condições adequadas para que seja realizável o envolvimento do
aluno com o texto ficcional. Tal objetivo foi alcançado por meio da mediação
oferecida durante a Sessão, a julgar pela atividade constante de recriação do objeto
estético demonstrada pelos participantes, denotando motivação para se engajar na
atividade de leitura, conforme descrito no QUADRO 3.
QUADRO 3 – (Re)formulação do objeto estético dos participantes
Síntese do objeto estético
Síntese da (re)formulação do objeto
estético
P1
Confusa de tanta dor, Cigana, perturbada,
pensou ter visto Curumim ao longe, e
enxergando naquela dúvida o encontro
definitivo com a sua redenção, ocultou o
medo e entregou-se à nova vida refugiada na
imagem de Curumim no rio. Para Cigana,
viver de amor é morrer dele, ou vice-versa,
seja no encontro com ele ou na sua falta
(ANEXO B).
O fim do conto é incerto, afinal, a
personagem, também sem lucidez ou
sanidade, ou apenas confusa, suicidou-
se buscando “refúgio”, “partindo para
a próxima vida”, ou teria ela, ao
mergulhar no rio, obtido a resposta
para “a dúvida de tê-lo avistado”, a de
que tudo é na verdade uma grande
mentira criada por ela, ou ainda após
esta última constatação da mentira, aí
sim ter se suicidado, não aguentando
voltar para a realidade (ANEXO B).
45
Ao compararmos as sínteses dos pontos de vista combinados ao longo da
atividade de leitura e descritas pelos participantes em seus relatos, verificamos
serem, por vezes, complementares, suplementares, ou até mesmo contraditórias,
deixando espaço para novas formulações. Dessa forma, conclui-se através do
processo de leitura, os participantes atingirem sucessivos NDPs, sendo possível a
eles se depararem com novos horizontes marcados pelas perspectivas assumidas
anteriormente, alcançando uma emancipação.
P2
Na primeira leitura, através do monólogo, eu
tinha tido certeza de que a Cigana havia se
matado (ANEXO C).
No fim da história, ao reler sozinha,
elaborei muitas outras hipóteses
igualmente plausíveis, e até agora, não
sei o que pensar (ANEXO C).
P3
(o conto) trata de dois tipos de vestimentas:
a de sua alma (da personagem) e a da alma
de duas pessoas que querem caber numa
roupa só (ANEXO D).
Da terra para outro plano, do senso
comum para o reencontro, é também
um texto sobre morrer, nascer e
renascer, sobre escolhas, sobre se lavar
por um encontro, mesmo que esse
encontro seja em outras vidas ao
atravessar as portas daquelas mesmas
águas que inundou seu coração-chão
(ANEXO D).
P4
Ao fim de tudo, eu tive a certeza de que a
personagem havia se matado (ANEXO E).
Creio que ela se matou, mas
metaforicamente. Gosto de pensar que
as águas castanhas esverdeadas
lavaram uma parte de sua alma, e que
ela voltou a terra sentindo-se, mesmo
que por pouco tempo, levemente
melhor (ANEXO E).
46
CONSIDERAÇÕES FINAIS (OU SE EMANCIPAÇÃO TIVESSE FIM...)
O intuito do nosso estudo foi o de refletir sobre as estratégias para a docência
de conteúdos literários a partir da investigação de experiências de leitura (reais),
após mediação estruturada conforme os pressupostos da articulação entre a Teoria do
Efeito Estético e a Teoria Histórico-Cultural, propiciadores de uma minuciosa
descrição do processo de leitura, com foco na participação do leitor.
A mediação oferecida mostrou-se capaz de ativar os aspectos cognitivo e
afetivo dos leitores, estimulando-os a se engajarem na atividade de leitura, que
confirmou ser capaz de promover emancipação. Entendemos, dessa maneira, o
caráter interdisciplinar da leitura literária, capaz de modificar a nós mesmos e, por
conseguinte, o mundo ao nosso redor, o qual transforma, por sua vez, nossas futuras
leituras, em um processo vivo e em constante movimento. Observamos, assim, a
importância da mediação social e instrumental na constituição do sentido literário,
pois por meio dela desenvolvemos as habilidades necessárias para deciframos o texto
ficcional e o mundo ao nosso redor, formulando outros mundos possíveis.
Diante disso, ressalta-se a importância de compreendermos o leitor em seu
processo de leitura, para, desse modo, sermos capazes de desempenhar o papel de
moderadores e guias no aprofundamento da percepção da leitura de literatura. Em
especial, no que diz respeito à escolha do texto literário, cuja estrutura deve possuir
vazios a partir dos quais o leitor a quem pretendemos possa se emancipar.
Seguindo essa esteira, o caminho para o desenvolvimento de métodos mais
eficientes e eficazes para o ensino de literatura se desvela como sendo a investigação
das condições cognitivas e afetivas dos próprios leitores que desejamos formar, pois
são eles quem efetuarão o contato com o texto, sem o qual a emancipação não é
possível.
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SANTOS, C. S. G; GONZAGA, Luiz. Educação: links filosóficos e psicológicos.
João Pessoa - PB: Editora da UFPB, 2011, p. 67-110.
______. Teoria do Efeito Estético e Teoria Histórico-Cultural: o leitor como
interface. Recife: Bargaço, 2009.
______. Empoderando a formação de Licenciandos em Letras: Antropologia
Literária e Habilidades Sociais Educativas. PROLICEN/UFPB, 2014.
VALENÇA, Alceu. Quando eu olho para o mar. De Janeiro a Janeiro, Tratore,
2002.
______. Na primeira manhã. Sol e Chuva, Som Livre, 2000.
VYGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo:
Ática, 1989. (Série Fundamentos 41).
APÊNDICE A – Modelo do Convite para participar da pesquisa
CONVITE
Como professora orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso de Rebecca
Luiza de Figueiredo Lôbo, cujo objetivo é estudar a interação entre texto-leitor após
mediação conforme estruturada na Sessão do Programa de Antropologia Literária e
Habilidades Sociais para licenciandos em Letras, em 12 de novembro de 2014, venho
convidar você para participar da pesquisa da referida aluna.
Sua participação consistirá em reler o conto Boatos, apenas boatos, da autoria
de Jennifer A. Trajano e redigir sua experiência com a leitura, considerando seu
envolvimento na supracitada sessão. Sua redação relatando tal experiência pode ser
enviada por e-mail até segunda-feira dia 24 de novembro do corrente ano.
A escolha por seu nome deu-se pelo critério de dedicação aquele evento.
Caso aceite o nosso convite, esteja certo(a) de nossa gratidão e do sigilo quanto
aos seus dados.
Atenciosamente,
Carmen Sevilla Gonçalves dos Santos
Orientadora (Siape 1125674)
João Pessoa, 19 de novembro de 2014.
APÊNDICE B – Modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Eu, (nome), abaixo assinada, tendo sido informada sobre a pesquisa de TCC
“Literatura Numa Perspectiva Emancipadora: Mediadores Sociais E Instrumentais
Como Interface”, e ciente do direito de preservação da minha identidade, autorizo à
Rebecca Luiza de Figueiredo Lôbo utilizar a experiência de leitura redigida por mim
após participação na Sessão PALHSE para constituir o corpus da análise. São-me
garantidas as seguintes condições:
1- Receber resposta a qualquer dúvida acerca do procedimento da pesquisa.
2- Ter liberdade de retirar o consentimento a qualquer momento sem que haja
prejuízo a minha pessoa.
3- Contar com o caráter confidencial das informações relacionadas a minha
privacidade.
João Pessoa, 13 de dezembro de 2014.
___________________________________
Assinatura
ANEXO A - Cópia do conto "Boatos, apenas boatos"
Boatos, apenas boatos.
por Jennifer Adrielle Trajano
De modo igual às nuvens que passam pelos pequenos círculos refletidos pela luz solar
no chão e na parede de barro, daquelas formadas pelas brechinhas de um telhado cheio de
goteiras, sombras temporárias que se movimentam pela íris de todos os seres pertencentes à
minha terra de batismo: assim sou eu. Uma cigana, criatura provisória e pouco percebida.
Uma obnubilação a passar na existência e na vulgaridade dos fonemas de todos do interior de
Queixinhos. Nasci em Terrinha Pequena, beirando dezessete anos fui dada aos meus
padrinhos e trazida para o bairro de Vila Pirata. Igrejas, quadrilhas, tradições, humildade e
desgostos marcam o ofício dos habitantes desta terra. Eu, vestindo-me de águia, observo ao
longe os veres e dizeres que nunca viram ou ouviram, mas disseram.
Curumim veio a mim como a chuva encontra o solo seco. Uma surpresa que
aguaceirou, incidindo minha presença. Nós nos conhecemos na exata hora em que Madrinha
mandou descer do ônibus, assim que chegamos. Quando obedeci, havia um jovem descalço,
de liso cabelo, bronzeado, carregando na face grandes olhos de cor que até hoje descrevo
como cor de açude, porém sei que é castanho, um castanho puxado pra verde. O moço, com
os olhos raros e entreabertos – fechados por consequência do sol –, olhava-me como se
estivesse surpreso. O mesmo tinha sido acometido pela doença chamada espavento de boa
hora, a qual é percebida por conta do brilho que transparece no olhar e no agir de quem ela
afeta. Esse vírus também foi ativado em minha pessoa. Como não encantar-se por Curumim?
Não tínhamos ideia se aqueles achismos eram percepções reais ou faziam parte dos delírios de
nossas ficções diárias. Afirmo isso porque ele tratou de confirmar que não sabia do meu
interesse, porém idealizava minha afeição para alimentar o bicho que o atacou: o amor. E de
duplos pensamentos platônicos, uma febre nos atingiu, a reciprocidade.
Depois de passarmos fragmentados segundos diários olhando um ao outro, apenas
desejando ocupar o mesmo lugar no espaço, o homem resolveu se declarar um mês antes de
partir para Lama no Deserto, – cidade pequena, com poucas expectativas de esperança –
disse-me que voltaria para vivermos. Sim, vivermos, isso era o bastante. Muito tempo passou
depois da partida de meu apaixonado e seis meses foram o suficiente para personificar minha
angústia em forma de carta. Escrevi que nem um vulcão de raízes profundas compara-se à
raça daquele que me tirou as guerras da vida. Que nem as estrelas que sardam a noite,
igualam-se às marcas que ele deixou. Que nenhum deserto, contemplado por um escondido
Oasis, dá-me esperança como o seu regresso. E que nem os raios que cicatrizam os céus
recordam-me dolorosas histórias. Que nem a natureza – de efêmera beleza – surpreende,
como ele, meus negros olhos. Grafei também que até o universo, senhor supremo, não
representa em nosso mundo o que sinto porque é como o tempo: algo sem fim e sem começo!
E que eu espalho-me, sem direção, como quem venta a esperar que ele, oh Deus, venha
libertar-me por dentro. Aqui em meu peito jaz escravidão profunda, que sangra comigo todas
as vezes que os dias mudam as molduras, ao passar das estações. Tive de escrever, pois o
tempo é inimigo das coisas que devem ser conservadas, por isso ele deve voltar antes que a
maçaneta enferruje; e também pressupor que meus dias ocupam séculos, já que ele não me
responde. Ao final da carta assinei “De tua fiel, meu nome”, de maneira a recordar minha
promessa de integridade.
Escrevi. Entendi bem a carta, mas provavelmente Curumim não a entendeu. Era desses
que detestava poesia. Achei partes dessas palavras num livro chamado À espera da
Liberdade, na biblioteca popular da cidade. Gostei da beleza que esbanjava e copiei no
intuito de passar a ser meu. Seu Hefesto disse-me que eu estava fazendo plágio, porém não
sabia o que era fazer isso. Olhei-o de cara feia e resolvi continuar com minha escrita. Esses
intelectuais acham que podem nos acusar com palavras difíceis, sopram ricas linguagens
pensando que somos obrigados a compreendê-las. Perdoei porque o velho ensinou-me muitas
coisas – como ler e escrever –, apesar de perder a paciência comigo, algumas tantas vezes. Fui
para casa descansar, afinal passei metade do dia na assistência dos livros. Ao chegar, tentei
fugir da insônia e quando me dei conta já era manhã de inverno – soube porque ouvi
brevemente na rádio, assim que despertei –, porém era o inverso do inverno para aquele chão
teimoso. Não chovia havia anos e mesmo assim eu não poderia deixar de desejar que
chovesse. Das horas, segundos e melancolias áridas que vivi diariamente neste quarto, bem no
fundo almejava uma gota d’água.
Como uma criança que toca a campainha das casas urbanas, ao checarmos quem o fez,
este some desconfiadamente, percebi comentários na sala. Eram visitas que tocavam em meu
nome, todavia quando me aproximei, cessaram as vozes e sucedeu um clima de infertilidade.
A comadre de madrinha viera, pois soube de dizeres meus com o moreno Curumim e resolveu
mexericar com a mesma. Madrinha não entendia porque eu, uma moça tão bela, me
interessaria por um vagabundo que foi trabalhar na capital. Os boatos que saíam das inocentes
e puras bocas de Queixinhos era que eu havia me achado com o moreno e este teria ido
embora sem me assumir. A ganância das pessoas em ver vidas destruídas era terrível. Como
eu poderia ter me desonrado com ele e ainda ficar com homem casado? Sim, era esse o outro
boato! Eu saí com Zé Poti, mesmo sem saber. E eis que surge meu apelido moralmente
neutro, Cigana.
Imagino que fui da era escravocrata, a certeza que tenho é que sou pó da terra, este
solo ingrato. Com tantas vidas e encarnações possíveis, em qual corpo fui destinada a
renascer? Pobre, mira da miséria. Minha vida é mais mofada que o pão. Por que fui encontrar
a ti, oh homem de Deus? Se as almas gêmeas existem, rezo para que não sejam como as
omitidas letras que compõem as palavras e alimentam os ouvidos das senhoras que sentam em
suas portas, ao entardecer.
Passei a não sair de casa. Os dias solares enraizavam externamente, enquanto eu
passava por uma espécie de intrainverno. Padrinho me proibiu de sair e disse-me que
perpetuava uma notícia na cidade sobre a morte de Curumim, em Lama no Deserto. Diziam
que foi morto a tiros, após envolver-se com a mulher de um jovem importante. Entrei numa
estação melancólica. Por que foste viver com essa gente, oh homem de Deus? Minhas
lágrimas corriam como ondas silenciosas, porém por dentro os sons se propagavam em minha
mente.
Três dias se passaram e eu continuava naquele estado de completa embriaguez. Corri
para o rio próximo à quadrilha e, por um momento, vi Curumim. A dúvida de tê-lo avistado
era uma ressaca que se escondia em escombros, fazendo do medo o meu alicerce. Porém, sou
corajosa e busquei refúgio na íris de meu amado, partindo em busca da próxima vida.
Curumim apareceu distante, olhando para mim e imediatamente mergulhei nas águas
esverdeadas que compõem a cor de seus olhos.
...
ANEXO B – Experiência de leitura de P1
“Boatos, apenas boatos” é um conto rico em poesia, metáfora, descrição e analogias,
que narra as experiências subjetivas da personagem apelidada de Cigana, como o seu caso de
amor com Curumim e as consequências deste acontecimento. A narração acontece pela
própria Cigana, que se descreve como sendo “pouco percebida”, ao mesmo tempo em que
também é julgada pelas pessoas do local em que vive.
Cigana é alguém que se sente solitária, ignorada, sem importância existencial. Ela foi
abandonada e entregue aos seus padrinhos quando tinha 17 anos de idade. Como alguém que
gosta de observar e usar a imaginação, viu Curumim e imediatamente se sentiu atraída por ele,
sem conhecê-lo, no entanto, seu amor não era cego, pelo contrário, via demais. Ao citar o
livro “À espera da Liberdade”, do qual copiou trechos nos quais eram refletidos seus
sentimentos desde que seu amado, por necessidade, teve de partir. Parece-me que Cigana era
presa numa vida sem sentido, e reconhecia em Curumim a sua libertação. Depois de conhecê-
lo, ter de ficar sem ele era pior do que quando não o conhecia.
A Cigana ganhou este apelido após as fofocas do lugar em que mora, pelas pessoas
que aumentavam sua dor e acusavam-na contra a moral. Indignada, não aceitando mais a vida
que, sem ela pedir, lhe foi dada. Era mais agradável pensar em se entregar ao desconhecido do
que permanecer na realidade tão cruel, na qual era inferior e submissa.
Confusa de tanta dor, Cigana, perturbada, pensou ter visto Curumim ao longe, e
enxergando naquela dúvida o encontro definitivo com a sua redenção, ocultou o medo e
entregou à nova vida refugiada na imagem de Curumim no rio. Para Cigana, viver de amor é
morrer dele, ou vice-versa, seja no encontro com ele ou na sua falta.
Ao me deparar com os vazios deste conto, assinei o pacto de ficcionalização, como
explicado na sessão PALHSE, na qual fomos apresentados à teoria de Wolfgang Iser sobre a
leitura, que prioriza a ideia de que o leitor interage com texto e realiza inferências enquanto e
após lê. Sendo assim, ao reler o conto de Jennifer A. Trajano, pude reconhecer na prática o
pensamento iseriano, que valoriza o leitor e seu papel durante o processo da leitura, este que
usa sua memória e imaginação para preencher com suas hipóteses - posteriormente
descartadas, confirmadas ou simplesmente improvadas - os vazios do texto, deixados pelas
dúvidas as quais o conto nos conduz a ter, e que acarreta na desconfiança e questionamentos
do leitor, que não deixa, no entanto, de ousar, como um investigador diante de um mistério,
preencher os vazios, pois acredita e analisa a partir das pistas no texto a história e
personagens. Nesse processo o texto é convertido em objeto estético, gerando prazer com a
interação do leitor com ele. A palavra Cigana, por exemplo, para mim está vinculada a vários
conceitos, sendo eu descendente de ciganos e tendo na família uma cartomante com quem
convivi desde o meu nascimento até os 18 anos, e ao pensar sobre o apelido da personagem,
muitas experiências foram por mim recordadas, e também delas me utilizei para inferir
durante a leitura até o término dela. Na sessão PALHSE também aprendemos, na teoria e
prática, que o sentido do texto é construído na interação do leitor com ele, considerando as
informações do texto e unindo a elas suas experiências e conhecimentos.
Enquanto interagia com o conto, em determinado momento fui remetido a um romance
de Machado de Assis, Dom Casmurro, tendo em vista que toda a história também é narrada
por um só personagem e que, portanto, coloca-nos perante a decisão em escolher ou não
acreditar no que é contado, como também imaginar o que teria acontecido nos intervalos
ocultados entre os acontecimentos redigidos. Para mim, a dúvida está tanto neste romance
quanto no conto.
Ao analisar o texto após lê-lo, deparamo-nos com várias questões as quais devemos
considerar, como: o título supõe a inverdade acerca de todos os fatos, afinal, quais seriam os
boatos, como encontrá-los? (a Cigana poderia estar relatando boatos, inverdades); ao usar o
substantivo obnubilação, a personagem se refere a ela como alguém confusa, perturbada,
inconsciente, fascinada, seduzida e de vista turva, ou, na realidade, alguém que faz com que
os outros fiquem dessa forma?; o nome da personagem nos faz pensar na historicidade
feminina e do povo cigano, dois objetos de preconceito e segregação; “Cigana” possui efeito
sonoro parecido com o de "se engana", portanto, a personagem poderia, ter construído toda
uma estória; “Cigana” nos recorda do significado pejorativo vinculado a esta palavra, de quem
se caracteriza pela astúcia manuseada para iludir ou burlar alguém; há um paradoxo em se
descrever como pouco percebida e após afirmar ser julgada pelas pessoas. Na primeira
afirmativa é expresso um desejo por ser vista, enquanto que na segunda se percebe o querer de
não ser mais. A carência demonstrada na primeira afirmação nos revela a possibilidade da
segunda ter sido uma ilusão criada pela personagem; quem era Curumim, ele existiu? Se
“sim”, seu caso com Cigana realmente ocorreu, ou como com Zé Poti, ela nunca se envolveu,
e se iludiu, fazendo com que as pessoas também acreditassem? Ela viu Curumim, apaixonou-
se e construiu para si uma estória na qual ela mesmo acreditou, por fazer desta,
conscientemente ou não, escudo contra a sua vida descontente?; para uma ilusão ter aparência
verossímil, é necessário justificar a impossibilidade de se tocar no que, na realidade, não
existe, portanto, teria a Cigana justificado sua loucura com a viagem e indiferença de
Curumim, como também o envolvimento dele com outra mulher e consequentemente a sua
morte, tudo isto improvável, apenas boatos?; o fim do conto é incerto, afinal, a personagem,
também sem lucidez ou sanidade, ou apenas confusa, suicidou-se buscando “refúgio”,
“partindo para a próxima vida”, ou teria ela, ao mergulhar no rio, obtido a resposta para “a
dúvida de tê-lo avistado”, a de que tudo é na verdade uma grande mentira criada por ela, ou
ainda após esta última constatação da mentira, aí sim ter se suicidado, não aguentando voltar
para a realidade.
ANEXO C – Experiência de leitura de P2
O conto "Boatos, apenas boatos" foi inicialmente interpretado em um monólogo
durante a sessão do PALHSE. Uma vez que consegui de fato me concentrar na história,
comecei a ficar bastante interessada no que ela tinha para dizer. Confesso que de início, a
minha curiosidade foi em mais de uma direção: como será que a atriz memorizou isso tudo?
Quem será esta garota? Que roupa linda ela está usando, será que o conto fala sobre uma
cigana?
Enquanto ouvia a narrativa, imagens se formavam na minha cabeça, tal como acontece
toda vez que leio um livro. Pude visualizar o interior de Queixinhos, o Curumim, o primeiro
encontro entre o casal protagonista. Ter a história sendo narrada inconscientemente remeteu-
me a momentos da minha infância, quando minha mãe me contava histórias que inventava na
hora. Foi bom ter essa experiência de novo, agora com 18 anos e em um contexto
completamente diferente.
Depois da interpretação do monólogo e de um breve intervalo, tive a oportunidade de
ler o texto novamente, de forma individual. Pude prestar mais atenção nos detalhes, realizando
uma leitura mais imagética, visualizando as cenas com maior precisão. Reli algumas
passagens mais de uma vez, para aperfeiçoar minha interpretação. Também prestei mais
atenção no início do texto, que não havia ouvido bem por estar me questionando todas as
outras coisas supracitadas. Certos detalhes, como cores, cenários e até mesmo aparências
físicas puderam ser melhor imaginados por mim, o que penso ter tornado a leitura mais
interessante e rica.
Por fim, gostaria de ressaltar que embora na primeira leitura, através do monólogo, eu
tenha tido certeza de que a Cigana havia se matado no fim da história, ao reler sozinha,
elaborei muitas outras hipóteses igualmente plausíveis, e até agora, não sei o que pensar.
ANEXO D – Experiência de leitura de P3
O texto Boatos, apenas boatos de Jennifer A. Trajano, em resumo, trata de dois tipos
de vestimentas: a de sua alma e a da alma de duas pessoas que querem caber numa roupa só.
No entanto, a história não é contada de uma forma tão genérica assim, pelo contrário, a
delicadeza, a simplicidade decorada de renda, e a preocupação da autora em convidar o leitor
para ser amigo íntimo da cigana (personagem principal) são feitas o tempo todo com muita
cautela, para que todos os passos trilhados, sejam eles físicos e/ou espirituais, ganhem
compreensão com uma leitura corrente do texto.
A curiosidade pode ser aguçada no primeiro momento quando nos deparamos com o
título do texto. Boatos? Mas boatos correm com destinatário certo e com remetente anônimo.
O que será que a autora quer dizer com isso?
Fui levada a um estado de meditação. Meditação que é uma atividade linda, mas que mal sei
fazê-la, mesmo assim digo que foi meditação porque quando assisti a leitura do texto
encenada na sessão PALHSE, parecia que eu estava imergindo em palavras soltas, como se
fosse uma poesia daquelas que só Djavan para saber bem compor, e por outro lado é porque
há no texto uma espécie extinta, digo que para mim essas são as palavras-chão, palavras que
existem, mas que são esquecidas no dicionário do olhar cansado do cotidiano. “Olhos de
açude” foi a expressão que logo me tomou, fiquei estática, não porque seja algo loucamente
divino, mas é que a intenção da autora ao descrever em seguida que sabia que os olhos de
Curumim (personagem que floriu o coração da cigana) na realidade tinha outra cor, e mesmo
assim, essa era a imagem que refletia na tradução dos olhos dela.
Para além de como o texto é desenvolvido, o que é desenvolvido nele atravessa essa
ideia de mapeamento e conexões, segura o leitor na conformidade de um ritmo calmo onde a
leitura dá as mãos para uma releitura mesmo quando a atenção tem acabado de passear
prontamente pela frase anterior, é como algo que a gente vê e não acredita, revê e vai
aceitando que é aquilo mesmo, que existe e que é realmente uma experiência incrível.
O nome da personagem remete a tantas coisas, inclusive, acho que uma temática bem
clara é a do movimento. Chico Buarque uma vez disse que só consegue escrever quando se
movimenta, caminha pelos lugares, vê gente, porque esses são os seus objetos fictícios. Para
ser ainda mais musical dentro do contexto, digo que é como escutar o Clube da Esquina que
carrega uma narrativa inteira com temática baseada no movimento, no transitar, com a
sensação de viajar dentro do Trem das cores de Caetano Veloso, num tempo nostálgico e
urgente sendo delineado, é o zoom da íris acordando já acordado, é dançar dançando, é
interpretar as palavras como, por exemplo, chão teimoso, e visualizar o coração como esse
território dos pés, é como tomá-la lendo em forma de oração de lamento, sem crença, mas
com vontade sincera.
É compreender que o documento maior fica na Terra, mas para gente só serve para
aquecer a memória, porque o que fora deveras vivido é apenas de sentir, sem a preocupação
do nome.
Da terra para outro plano, do senso comum para o reencontro, é também um texto
sobre morrer, nascer e renascer, sobre escolhas, sobre se lavar por um encontro, mesmo que
esse encontro seja em outras vidas ao atravessar as portas daquelas mesmas águas que
inundou seu coração-chão.
ANEXO E – Experiência de leitura de P4
Ver a cigana em minha frente durante a encenação do conto foi algo intenso. Fiquei
imediatamente envolvido, encantado com as palavras que eram ditas. Lembrei-me de um
relacionamento passado, e ouvi algumas expressões semelhantes a outras que eu mesmo tinha
escrito. Meus olhos se encheram de lágrimas. Enquanto a atriz entrava em desespero, eu me
desesperava por saber exatamente o que ela estava sentindo.
Ana, o céu e o mar.
Ana era o mar.
Ana me veio em ondas, completamente salgada. Molhou-me
Os pés, respingou-me
Os óculos.
Ana soprou em meus ouvidos, submergiu-me.
E tirou-me
O fôlego.
Ana sabia que eu era uma tempestade. Ana agitou-se.
Ana não sabia que eu era a lua, e que a elevaria de acordo com nossa distância.
Ana não sabia que para o mar se afogar, teria que aprender a voar. Ana mergulhou nas
nuvens.
Ana me veio em chuva.
(Escrito em 17 de fevereiro de 2013)
Por alguma razão, esse texto me veio à mente. Apesar de curto, a escrita foi essencial
no meu processo terapêutico, e esse foi um dos textos mais importantes de minha trajetória
pessoal. A cigana falava sobre a terra seca, e eu repetia para mim mesmo que “Ana me veio
em chuva”.
Lembro claramente que houve um momento em que não conseguia mais encarar a
encenação por saber que desabaria em lágrimas a qualquer momento. Eu queria pausar, reler
alguns trechos, digerir o que estava sendo mostrado, mas continuava sendo espancado com a
história de uma Cigana que sofria do mesmo que um dia sofri.
Ao fim de tudo, eu tive a certeza de que a personagem havia se matado.
Após o intervalo, ao receber o texto escrito, li de forma rápida. Eu ainda lembrava-me
dos trechos que haviam me chamado atenção, e o processo de leitura se dividiu entre a
surpresa de notar novas coisas, e a pressa de chegar nas partes que eu gostaria de ler.
Atingindo o seguinte ponto, parei para respirar: “E de duplos pensamentos platônicos, uma
febre nos atingiu, a reciprocidade”.
Eu sentia inveja daquele texto. Creio que isso aconteceu uma ou duas vezes na minha
vida. Eu gostaria de ter escrito aquilo, e a minha admiração não cabia mais em mim.
Após isso, o eu lírico me deu, em poucas palavras, algo que define bem o que o ato de
escrever representa para mim: “Entendi bem a carta, mas provavelmente Curumim não a
entendeu. Era desses que detestava poesia”. Por mais que muitos já tivessem sido alvos,
inspirações, ou até personagens de minhas próprias criações, eu sempre escrevi para mim
mesmo. Ao expor algo, os leitores interpretarão de suas formas, mas o sentido original da
frase nasce e morre dentro da cabeça de quem o escreveu, e para ele, é isso que importa. Acho
que tratasse do famoso egocentrismo mascarado de quem faz arte.
Quando cheguei ao final, meu peito estava, literalmente, apertado, e minha respiração
querendo se acelerar. Após ler e reler aquilo tudo, concluí que não cabia a mim dizer se a
Cigana estava ou não morta. Tendo a acreditar que não. Por ter estado no lugar dela, lembro-
me de ter mergulhado em diversos açudes com cor de olho.
Creio que ela se matou, mas metaforicamente. Gosto de pensar que as águas castanhas
esverdeadas lavaram uma parte de sua alma, e que ela voltou a terra sentindo-se, mesmo que
por pouco tempo, levemente melhor.