Livro a Idade Media Portuguesa e o Brasil

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    A Idade Mdia

    Portuguesae o Brasil:

    A Idade Mdia

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    A Idade Mdia

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    A Idade Mdia

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    JOS RIVAIR MACEDO(ORG.)JOS RIVAIRMACEDO(ORG.)

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    2011

    A Idade MdiaPortuguesa

    e o Brasil:reminiscncias, transformaes, ressignificaes

    Organizao de

    Jos Rivair Macedo

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Biblioteca Pblica do Estado do RS, Brasil)

    I18A Idade mdia portuguesa e o Brasil: reminiscncias, transormaes, ressignif-

    caes / organizado por Jos Rivair Macedo. -- Porto Alegre : Vidrguas, 2011.216 p. .

    1. Histria Idade Mdia - Portugal. 2. Histria Brasil.I. Macedo, Jos Rivair. II.tulo.

    CDU 940.1(469) : 981

    Rua Francisco Ferrer, 441, conj. 50790420,140 - Porto Alegre - RS

    Fone (51) 3392.3727

    www.vidraguas.com.br

    Copyright@2011 by

    Edio: Vidrguas

    Coordenao editorial: Carmen Slvia PresottoCapa e projeto grfco: Ricardo Hegenbart

    Finalizao: ArteCerta - Propaganda Impressa

    Fotografas de capa: Moiss Evandro Bauer

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    NDICE

    Apresentao ..................................................................................... 7

    Sobre a Idade Mdia residual no Brasil, Jos Rivair Macedo...... 9

    RELIGIOSIDADE EM PORTUGAL

    1- Os regimentos de procisses do Corpus Christi noPortugal medieval, Manuela Mendona. .............................. 232- Religio de proximidade em Portugal em fnais da

    Idade Mdia: estabelecimentos religiosos seculareslocais e controlo social, Manuela Santos Silva. ..................... 37

    3- Aspectos da espiritualidade dominicana em Portugalna poca medieval. Notas sobre Frei Soeiro Gomes,Julieta Arajo. ............................................................................ 49

    MODELOS RELIGIOSOS E SABERES

    4- O paradigma religioso e social da morte dos santos.Da Alta Idade Mdia a undecentos,Maria Helena da Cruz Coelho. ............................................... 61

    5- Cluny e a ormao de Portugal, Armando Martins. ........... 796- Agoiros, eitios e outras maravilhas: crena e crtica no

    Portugal quatrocentista, Margarida Garcez Ventura. .......... 937- Paixes da alma, melancolia e medicina

    (sculos XIII XV), Dulce Oliveira Amarante dos Santos. ..... 107

    IDADE MDIA E AMRICA PORTUGUESA

    8- O legado portugus no Brasil,

    Helga Iracema Landgra Piccolo. ........................................... 1239- A monarquia em Portugal e no Brasil uma longa

    Idade Mdia, Maria Eurydice de Barros Ribeiro. ................. 13110- Servio e benecio: relaes e redes sociais na

    tradio ibrica, Maria Filomena Coelho. ............................. 145

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    11- Dos concelhos medievais s vilas coloniais: o podercamarrio no sul da Amrica portuguesa, Fbio Khn. ...... 157

    RELIGIOSIDADE COLONIAL

    12- Cristandade medieval e cristandade colonial:permanncias e rupturas, Francisco Jos Silva Gomes. ....... 169

    13- A misso jesuta para o Brasil na estratgia imperialde D. Joo III, Joo Marinho dos Santos................................ 177

    14- Em deesa da virtude e em busca do martrio:Jesutas em misso no Guair (sculo XVII),Eliane Cristina Deckmann Fleck. ........................................... 185

    15- Pelo manto da misericrdia: a obras das santas casasno Brasil colonial, Vra Lucia Maciel Barroso. ..................... 201

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    APRESENAO

    Desde o ano de 2006, por iniciativa das proas. ManuelaMendona, atual Presidente da Academia Portuguesa de Histria,e Maria Eurydice de Barros Ribeiro, da Universidade de Braslia,ormou-se o Grupo Luso-Brasileiro de Histria Medieval. A inteno permitir que pesquisadores dos dois pases encontrem-seperiodicamente para discutir temas comuns, realizar intercmbiose contribuir para o aproundamento das pesquisas sobre a Idade

    Mdia peninsular, com nase na Histria de Portugal. Atualmentetomam parte do grupo profssionais vinculados s Universidades deLisboa e de Coimbra, em Portugal, e as Universidades Federais deBraslia, Gois, Fluminense, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, noBrasil.

    Nesses cinco anos de existncia, oram realizados trs encontrosacadmicos no Brasil, ocorridos na UNB (2006), USP (2008) eUFRGS (2010), e dois em Portugal, ocorridos nas dependncias da

    Universidade de Lisboa e de Coimbra, e na Academia Portuguesa deHistria (2007; 2009). Os temas discutidos dizem respeito aos traosinstitucionais e culturais de Portugal na Idade Mdia1, s relaesentre monarquia e sociedade em Portugal2 e s razes medievais doBrasil3.

    Os estudos reunidos no presente livro oram apresentados ediscutidos no V Encontro Luso-Brasileiro de Histria medieval,realizado em Porto Alegre, entre 16 e 18 de novembro de 2010. ratam

    do problema das relaes histricas entre a Idade Mdia portuguesae o Brasil no perodo colonial. Aos pesquisadores lusos, coube atarea de apresentar trabalhos sobre a cristandade peninsular e osmodelos religiosos que Portugal legou ao Brasil; j os pesquisadoresnacionais incumbiram-se de reetir a respeito das continuidades e/ou rupturas dos modelos europeus introduzidos no Brasil durante oprocesso de colonizao e os traos culturais, polticos e sociais dadecorrentes. Para tal, alm da participao de medievalistas, oramconvidados alguns pesquisadores especialistas em temas da Histria

    1 - Maria Eurydice de Barros RIBEIRO (org). Instituies, cultura e poder na Idade Mdia ibrica. Braslia: UNB,2007.2 - Carlos NOGUEIRA (org). O Portugal medieval: monarquia e sociedade. So Paulo: Alameda Editorial , 2010.3 - Razes Medievais do Brasil Moderno. Lisboa: Academia Portuguesa de Histria; Centro de Histria da Uni-

    versidade de Lisboa; Centro de Histria e da Cultura da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2008;Poder espiritual/poder temporal. As relaes Igreja-Estado no tempo da monarquia (1179-1909). Lisboa: Acade-mia Portuguesa de Histria, 2009.

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    do Brasil colonial que atuam em universidades no Rio Grande doSul.

    De ato, a experincia histrica da colonizao portuguesa no

    Novo Mundo ps em contato dierentes tipos de sociedade (de origemeuropia, indgena, aricana), instituies poltico-administrativase sociais, modos de ser e de pensar os enmenos scio-culturais(linguagem, arte, religio, etc). Ao estudar as maneiras pelas quaistais modelos se relacionaram espera-se contribuir para o avanodo conhecimento de nossas razes, e a tomada de conscincia dosaspectos originais de nossa identidade histrico-social.

    Aproveitamos o ensejo para agradecer a CAPES, atravs doPrograma PRODOC, pela ajuda fnanceira que tornou possvel arealizao deste livro.

    Registrem-se tambm nossos agradecimentos a BrbaraMacagnan Lopes, Fernando Ponzi Ferrari, Karen Cibele Alves daLuz Macedo, Marcos Schulz e Rodrigo Moraes Alberto, pela ajudana estruturao e realizao da organizao do V Encontro Luso-Brasileiro de Histria Medieval.

    O organizador

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    SOBRE A IDADE MEDIA RESIDUALNO BRASIL.

    Jos Rivair Macedo*

    Em entrevista publicada h alguns anos na revista Signum,da Associao Brasileira de Estudos Medievais, o medievalistaportugus Jos Mattoso sugeriu que os brasileiros pesquisassem aIdade Mdia atravs de temas da Antropologia Histrica, da longadurao1. De alguma maneira, o que representa esse livro: o

    resultado do dilogo entre portugueses e brasileiros acerca de temascomuns concernentes ao medievo portugus vistos na perspectivadas continuidades, rupturas e ressignifcao histrica.

    H contudo um risco na proposio de Jos Mattoso, ade involuntariamente azer crer que o espao reservado aospesquisadores medievalistas brasileiros seria apenas o de pensar oque a Idade Mdia legou (ou no) ao Brasil, enquanto os temas depesquisa medieval tout court permaneceriam como lugar privilegiado

    de reexo dos pesquisadores europeus. Isto no seria bom porquecondenaria a medievalstica a permanecer enclausurada nos modelosde interpretao da realidade criados pelos prprios europeus, semmaior possibilidade de crtica e reavaliao historiogrfca a partirde outros pontos de vista2. Dissemos involuntariamente porque,na afrmao de Mattoso, a difculdade dos estudos medievais noBrasil no estaria relacionada com a competncia ou originalidadedos pesquisadores, mas com o inevitvel problema do acesso s

    ontes histricas, tanto que, em sua opinio, alguns dos maioresmedievalistas atuais so norte-americanos.De ato, na esteira dos debates acirrados que os medievalistas

    tem eito sobre seu prprio ocio, historiadores no-europeus temsido convidados a tomar parte na ampla reavaliao historiogrfcae conceitual3. Este dilogo mostra-se rico para todos os envolvidosporque permite aos europeus avaliar o impacto de certos paradigmas

    * Departamento de Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Programa de Ps-Graduao emHistria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.1 - Jos MAOSO. Entrevista a Hilrio Franco Jr. Signum: Revista da ABREM, vol. 3, 2001, p. 224.2 - Uma viso de sntese alternativa a do rancs Jrme BASCHE.A civilizao eudal: do ano mil coloni-zao da Amrica. So Paulo: Ed. Globo, 2006. A obra problematiza a periodizao tradicional, amplia e diversi-fca a noo de longa Idade Mdia proposta por Jacques Le Go , mas o enoque privilegia a rea de colonizaohispnica.3 - Ver os resultados de diversos colquios internacionais organizados entre 2001 e 2007 pela pesquisadorabrasileira Eliana Magnani, que atua no Centre dtudes Mdivales de Auxerre, publicados no livro Le Moyen

    Age vu dailleurs: voix croises dAmrique latine et dEurope. Paris: Presses Universitaires de Dijon, 2010.

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    conceituais e as leituras possveis de sua prpria experinciahistrica, enquanto os no-europeus, alm de enriquecimentoque tais intercmbios representam para a sua ormao como

    pesquisadores, vendo de mais longe e de outra perspectiva podemoerecer alternativas dierentes para as indagaes e linhas de rumodas investigaes atuais. No por acaso, os historiadores medievalistasamericanos esto afnados com a crtica ao que tem sido denominadouma viso colonizada da Idade Mdia4, e parte substancial de suaspreocupaes tem sido dirigida a repensar as noes de classe social,nao, povo e raa produzidas na Europa entre os sculos XVIII-XX, que tanto impacto tiveram na gestao e desenvolvimento dosconceitos tradicionais sobre a Idade Mdia5.

    Considerados esses pontos, convm esclarecer o que est emjogo ao tratarmos neste livro sobre problemas decorrentes dahistoricidade das relaes entre Portugal medieval e Brasil colonial.

    Em primeiro lugar, preciso tomar sempre cuidado para no incorrermais uma vez no que Marc Bloch qualifcou como o pecado mortaldos historiadores: o anacronismo. No se trata de buscar estabeleceracriticamente relaes de continuidade entre a realidade histricaportuguesa medieval e a realidade histrica colonial brasileira, em busca

    de sobrevivncias ou permanncias porque isto signifcaria colocarde lado um dos elementos undamentais da equao do conhecimentohistrico, a noo de durao e temporalidade. De modo similar,tambm no parece ser o caso buscar estabelecer uma viso retrospectivaem busca de vinculaes de carter tnico, sob o risco de se cair menosnuma gnese nacional e mais numa etnognese6.

    4 - Na rase contundente de John DAGENAIS e Margareth R. GRER. Decolonizing the Middle Ages.Journalo Medieval and Early Modern Studies, vol. 30-3, 2000, pp. 431-448, the Middle Ages is Europes dark continent o

    history, evens as Arica is its dark ages o geography . Para estes autores, a Idade Mdia um espao colonizadoem ace da histria moderna, e pode dar espao a um discurso de crtica, tal qual ocorre com as teorias ps--coloniais. Descolonizar a Idade Mdia signifca tambm olhar para este perodo com outros olhos, e lhe azeroutras perguntas.5 - Nesse sentido, ver Paul MEYVAER. Rainaldus est malus scriptor rancigenus. Voicing national antipha-ty in the Middle Ages. Speculum, vol. 66-4, 1996, pp. 743-763; Robert BARLE. Medieval and modernconcepts o race and ethnicity. Journal o Medieval and Early Modern Studies (Duke University), vol. 31-1,2001, pp. 39-56; Denise Kimber BUELL. Race and universalism in early christianity. Journal o Early ChristianStudies (Johns Hopkins University) vol. 10-4, 2002, pp. 429-468; Maaike van der LUG; Charles de MIRAMON(orgs). Hredit entre Moyen Age et poque moderne: perspectives historiques. Florena: Sismel - Edizioni delGalluzzo, 2008; IDEM. Pensar a hereditariedade na Idade Mdia: introduo e primeiros apontamentos. In:Nilton Mullet PEREIRA; Cybele Crossetti de ALMEIDA; Igor Salomo EIXEIRA (orgs). Reexes sobre o me-dievo. So Leopoldo: Oikos, 2009, pp. 118-148; Nri de Barros ALMEIDA (org). A Idade Mdia entre os sculosXIX e XX - estudos de historiografa. Campinas, SP: Instituto de Filosofa e Cincias Humanas -UNICAMP;LEME - Laboratrio de Estudos medievais, 2008.6 - O medievalista brasileiro Marcelo Cndido da Silva assume posio eminentemente crtica em relao aoponto de vista que deende a existncia de supostas origens medievais do Novo mundo, partindo do pressupos-to de que o prprio discurso em que tal ponto de vista se baseia no est isento de intererncias do momentoem que oram gestadas as ideologias nacionais europias nos sculos XIX e XX. Ver o seu estudo A Alta IdadeMdia entre os sculos XIX e XX: da nao etnognese. In: Nilton Mullet PEREIRA; Cybele de ALMEIDA; IgorSalomo EIXEIRA (orgs). Refexes sobre o medievo, pp. 11-22.

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    rata-se de reetir um pouco mais acerca de conceitos quepossam contribuir para o esclarecimento das dimenses de anliseimplicadas na historicidade das relaes entre o passado medieval

    portugus e o passado colonial brasileiro. Mas antes ser precisocolocar em discusso a prpria noo convencional de Idade Mdia.Como os historiadores bem sabem, o termo eivado de rtulos epreconceitos, e continua a ser utilizado menos por convico do queele de ato representa e mais por comodidade e costume7. Onde est,onde comea e onde termina a Idade Mdia? Se no sculo XIX oseruditos no encontrariam maior difculdade para responder taisquestes, no sculo XXI as respostas mostram-se bem mais sutis ecomplexas.

    REMINISCNCIAS

    O que se tem percebido que o conceito de Idade Mdia no seesgota na temporalidade tradicional que lhe atribumos: os mil anosque separam a Antiguidade romana da Modernidade. Para alm dessaIdade Mdia propriamente histrica, transcorrida essencialmentena Europa Ocidental8, objeto de estudo dos medievalistas, existem

    Idades Mdias vistas em retrospectiva pela posteridade.A prpria denominao Idade Mdia provm da crtica que

    os humanistas aziam ao que consideravam gtico, e a memriados grandes temas do medievo (Igreja, monarquias nacionais,eudalismo, realeza) ganhou seus contornos mais defnidos nossculos XVII e XVIII, quando os escritores iluministas e depoisos partidrios da Revoluo Francesa, bem conhecidos por suaposio crtica em relao ao predomnio social da nobreza e da

    Igreja, reoraram o rtulo da selvageria, barbrie e ignorncia queacompanham a expresso Idade das trevas9.

    No sculo XIX o Romantismo introduziu na histria, e nahistria medieval em particular, o interesse pelas razes nacionais e

    7 - Aspecto demonstrado h dcadas por Georey BARRACLOUGH. Europa: uma reviso histrica. Rio deJaneiro, Zahar, esp. p. 41; para a evoluo da idia de Idade Mdia, ver Christian AMALVI. Idade Mdia. In:Jacques LE GOFF; Jean-Claude SCHMI (dirs). Dicionrio temtico do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC,2002, vol. 1, pp. 537-550.8 - Embora se ale em Idade Mdia no Oriente (Alain Ducellier; Michel Kaplan), em Idade Mdia no Japo(Kiyoaki Kito; Tomas Keirstead; Wakita Haruko) ou em Idade Mdia na rica (Djibril amsir Niani; PauloFernando de Morais Farias), no h dvida que o conceito especfco se refra diretamente cristandade latina e experincia histrica da Europa ocidental, aspecto sintetizado por Miguel Angel LADERO-QUESADA. Ca-tolicidade e latinidade (Idade Mdia sculo XVII). In: Georges DUBY (org).A civilizao latina: dos temposantigos ao mundo moderno. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1989, pp. 119-140; e Jacques LE GOFF.A velhaEuropa e a nossa. Lisboa: Ed. Gradiva, s.d..9 - ema desenvolvido na obra de A. GUERREAU, Lavenir dun pass incertain. Quelle histoire du Moyen Age au

    XXI sicle?, Paris, Seuil, 2001. Para a elaborao da imagem da Idade Mdia como Idade das revas, ver JacquesHEERS. La invencin de la Edad Media. Barcelona: Editorial Crtica, 1992.

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    uma certa viso olclrica da Idade Mdia ao resgatar as tradiespopulares. Paralelamente aos historiadores, romancistas (comoWalter Scott na Inglaterra e Victor Hugo na Frana), dramaturgos,

    pintores e outros artistas buscaram inspirao nas supostasorigens medievais. No mundo erudito, nasciam os conceitos derestaurao e de patrimnio histrico. Entre seus deensoresmais aguerridos estava o arquiteto rancs Eugne Viollet-le-Duc (1814-1879), um dos primeiros a se especializar em obras derestaurao, sobretudo de igrejas e castelos, e a quem se deve parteda substancial dos monumentos preservados de Paris. Na Inglaterra,surgia na mesma poca o movimento artstico revivalista conhecidocomo Irmandade Pr-Raaelita, que enaltecia os padres estticosanteriores ao Classicismo e ao Renascimento. O escritor e crtico dearte John Ruskin (1819-1900), um dos inspiradores do movimento,argumentava: Destrumos a bela arquitetura de nossas cidades parasubstitu-la por uma outra, desprovida de beleza e de signifcao,e raciocinamos sobre o eeito estranho que produzem em ns osragmentos conservados, por elicidade, em nossas igrejas10.

    Assim, no mesmo instante em que oresciam os estudosacadmicos realizados pela medievalstica nascente11, isto , pelo

    conjunto de pesquisadores especializados em diversos aspectosobjetivos da realidade histrica (histria poltica, social, econmicae cultural; lngua e literatura; flosofa; direito; arte; arqueologia;numismtica; epigrafa e paleografa; codicologia, etc), e no mesmoinstante em que a histria comeava ser esboada como disciplinaescolar, para o senso comum a memria do medievo desdobrava-se em pelo menos duas ormas de apropriao: as residualidadesmedievais ou reminiscncias medievais e aquilo que, na ausncia

    de melhor conceituao, denominamos de medievalidade12.Hoje est mais do que evidente que as transormaes histricas

    no so unilineares nem monocausais, e nem sempre se processamseguindo um mesmo ritmo13. Num mesmo contexto podem existirmudanas em certo mbito e persistncias noutro. Mas o passadono se mantm o mesmo, nem nas inrcias da histria. Em outras

    10 - John RUSKIN. Pedras de Veneza, p. 67. Citado por Cristina MENEGUELLO. O medievalismo na Inglaterrado sculo XIX.Anima: histria, teoria e cultura (Rio de Janeiro), ano 1 n 2, 2001, p. 7411 - O primeiro volume da Monumenta Germania Historica apareceu na Prussia em 1826 e a Bibliothque delcole des Chartes oi criada na Frana em 1839; em 1857 tinha incio a publicao da coleo de documentosmedievais ingleses conhecida como Rolls Series e em 1850 Alexandre Herculano era encarregado pela AcademiaReal de Cincias de Lisboa de recolher os documentos que seriam publicados na coleo Portugaliae MonumentaHistorica.12 - Para o caso rancs, o melhor estudo de conjunto dos esteretipos relativos ao medievo produzidos na suaposteridade deve-se a Christian AMALVI. Le gout du Moyen Age. Paris: La Boutique de lHistoire, 2002.13 - Aspecto demonstrado por Fernand BRAUDEL. Histoire et sciences sociales: la longue dure.Annales ESC,XIII-4, 1958, pp. 725-753.

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    palavras, at os elementos que eventualmente encontrassem suasrazes na Idade Mdia no seriam plenamente medievais namodernidade simplesmente porque oram alterados com o passar

    do tempo, e se continuaram a existir de orma residual, mudaramde sentido.Por residualidades medievais ou reminiscncias medievais

    devem-se entender justamente as ormas de apropriao dosvestgios do que um dia pertenceu ao medievo, alterados e/outransormados no decurso do tempo. Nesta categoria encontram-se,por exemplo, as estas, os costumes populares, as tradies orais decunho olclrico que remontam aos sculos anteriores ao XV e quepreservam algo ainda do momento em que oram criados, mesmotendo sorido acrscimos, adaptaes, alteraes. Festas como ade Corpus Christi, as Folias de Reis e a Festa do Divino EspritoSanto14, o Natal, e mesmo o Carnaval, oram um dia medievais,e persistem... mas no da mesma orma, nem desempenhando osmesmos papis na Europa ou em outras partes do mundo para ondeoram levadas15.

    ambm constituem resduos ou reminiscncias os monumentosarquitetnicos originados na Idade Mdia, embora ningum duvide

    que castelos, pontes, mosteiros ou igrejas atualmente exibidos comomedievais tenham sido modifcados progressivamente, restandos vezes muito pouco da construo original16. omemos o casodas catedrais rancesas ou alems (as catedrais de Reims ou deBamberg, para citar apenas algumas), e dos castelos espanhis ouingleses (de Segvia ou de Dover, por exemplo). Ningum duvidaque sejam eetivamente medievais, mas dicil determinar emque proporo. Isto quer dizer que, depois da Idade Mdia, eles

    receberam novos arranjos, s vezes novas unes. O turista ansiosopor conhecer uma cidade genuinamente medieval, como bidos,na regio centro-oeste de Portugal, fcar talvez decepcionado ao

    verifcar que o magnfco castelo, localizado na parte alta da cidadeostenta uma janela de vidro - bem pouco medieval, mas muitoapropriada para a uno de pousada que lhe compete na atualidade.

    14 - A respeito da recepo e ressignifcao das estas do Divino Esprito Santo, ver Noeli Dutra ROSSAO(org). O simbolismo das estas do Divino Esprito Santo. Santa Maria: UFSM/apergs, 2003.15 - Para o estudo de caso da esta dos Mouros e Cristos, transerida para a Amrica atravs das cavalhadas,

    ver Jos Rivair MACEDO. Mouros e cristos: a ritualizao da conquista no Velho e no Novo Mundo. In: LeMoyen Age vu dailleurs, Bulletin Du Centre dtudes Mdivales dAuxerre, Hors Srie II, 2008: http://cem.revues.org/index8632.html.16 - Em sua avaliao irnica das maneiras de sonhar com a Idade Mdia, Umberto ECO. Dez modos de sonhara Idade Mdia. In: IDEM. Sobre o espelho e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1989, p: 78 afrmaque: constrem-se e reconstroem-se as achadas da catedral de Npoles, da catedral de Amalf, de Santa Cruz ede Santa Maria del Fiore para a alegria do turista no ainda ps-moderno, em busca desesperada de autenticida-de histrica.

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    No obstante, ningum colocar no mesmo patamar taismonumentos genunos ou parcialmente genunos com aquelesconstrudos nos dias atuais inspirados em certos clichs aplicados

    ao medievo17

    , que participam mais de uma esttica kitsch do queda uncionalidade militar e do carter deensivo daquele tipo deconstruo no passado18.

    MEDIEVALIDADE

    Dierentemente dos resduos ou reminiscncias, que dealguma orma preservam algo da realidade histrica da Europamedieval, nas ormas de apropriao denominadas medievalidadea Idade Mdia aparece apenas como uma reerncia, e por vezes umareerncia ugidia, estereotipada. Assim, certos ndices imprecisosde historicidade estaro presentes em maniestaes ldicas (estas,encontros, jogos de vdeo-game ou de computador) obras dedivulgao (msicas, histrias em quadrinhos, peas teatrais, flmes),nas atividades de recriao histrica de torneios, eiras, estas, cutelariaou culinria medieval19, e na inspirao de temas (magos, eiticeiros,drages, monstros, guerreiros, assaltos a ortalezas) produzidos pelosmeios de comunicao de massa e pela indstria cultural20.

    17 - Os edicios com orma de castelo constituem uma das modas no Brasil no sculo XX, e em sua construo osarquitetos e engenheiros reproduzem de modo estereotipado os elementos convencionais desse tipo de construo,como as torres e seteiras, as portas levadias amarradas por correntes, as muralhas com pedra e cimento industria-lizados. Sobre um desses edicios da cidade de Porto Alegre, conhecido como Castelinho, consta que teria sidoconstrudo a mando de um poltico para sua amante no fnal dos anos 1940, tema explorado pelo jornalista JuremirMachado da SILVA.A prisioneira do castelinho do Alto da Bronze. Porto Alegre: Artes & Ocios, 1993.18 - Uma boa anlise das reerncias medievais (gticas e romnicas) na arquitetura americana catlica e protes-tante durante o sculo XIX encontra-se em Paul FREEDMAN; G. M. SPIEGEL. Medievalisms old and new: therediscovery o alterity in north american medieval studies. American Historical Review (New York) vol. 103-3,

    1998, pp. 677-704, esp. pp. 680 e segs.; Para o mesmo enmeno na Amrica Latina, ver Oelia MANZI; Francis-co CORI, Iglesias reormadas neogticas. Buenos Aires: Facultad de Filosofa y Letras da Universidad de BuenosAires, 2002; Oelia MANZI; Francisco CORI. Arquitetura religiosa neogtica en Buenos Aires y alrededores.Humanas: Revista do IFCH-UFRGS, vol. 1 n. 1, 1998, pp. 427-454; Glenda Pereira da CRUZ. Antecedentes daorganizao do espao colonial na Amrica ibrica. ese de doutorado. Porto Alegre: Programa de Ps-Gradu-ao em Histria da PUCRS, 1995. A respeito do aporte da tradio islmica na arquitetura latino-americana,

    ver Estevo PINO.Muxarabis e balces e outros ensaios (Coleo Brasiliana). So Paulo: Companhia EditoraNacional, 1958; Nora Marcela GOMEZ. La tradicion de jardines hispanomusulmanes en Argentina. In: CeliaMarques ELLES; Risonete Batista de SOUZA (orgs).Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais.Salvador: Quarteto Editora, 2005, 358-366.19 - Considere-se, por exemplo, as atividades da Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal, integrada por umgrupo de admiradores da Idade Mdia que ao longo de vinte anos vem organizando inmeras atividades derecriao histrica de eiras e torneios em todo o territrio portugus. A prtica conhecida como medievalreenactement diundida em diversos pases europeus e na Amrica, como hobby e orma de evaso.20 - A capacidade de seduo da Idade Mdia imaginada enorme em todo o mundo, de modo que se pode dis-tinguir na atualidade uma Idade Mdia Histrica que eminentemente dierente da Idade Mdia antstica.Embora as reexes sobre o enmeno das apropriaes ditas medievais na contemporaneidade sejam aindamuito incipientes, algumas pistas podem ser encontradas no j citado livro de Christian AMALVI. Le gout Du

    Moyen Age; ver ainda Marie-christine DUCHEMIN; Didier LE. Moyen Age dadolescents. Mdivales, vol.6 n. 13, 1987, pp. 13-34; Jos Rivair MACEDO; Lnia Mrcia MONGELLI (orgs).A Idade Mdia no cinema. SoPaulo: Ateli editorial, 2009.

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    No ser preciso insistir o quanto a dita medievalidade temsido explorada na industria musical, por exemplo. A partir dofnal dos anos 1960, por ocasio do enmeno da contra-cultura e

    do movimento hippie, algo do misticismo, ou algo da barbriemedieval, tem inspirado a esttica visual de diversas bandas de Rock.Um dos antigos membros da banda inglesa Deep Purple, RitchieBlackmore, possui atualmente um castelo e executa canes e baladasrenascentistas, medievais e barrocas. Desde os anos 1980 certasbandas de heavy metal, entre outras, a inglesa denominada Saxon, anorte-americana denominada Manowar e a espanhola denominadaierra Santa reproduzem nas letras e nos acordes metlicos

    vibrantes de suas guitarras idias e sensaes diusas dos supostosguerreiros medievais21. Desde meados dos anos 1990 houve umarecuperao das tradies musicais celtas e certos grupos musicaisde musica pop misturam a sonoridade medieval com instrumentoseletrnicos, produzindo s vezes grandes hits para serem executadosinclusive em danceterias. o caso do sucesso alcanado em 1990pelo grupo Enigma com a composio Principles o lust, ao mesclaro canto gregoriano com sintetizador e instrumentos de percusso,criando um ritmo danante22.

    Outro flo explorado pela indstria cultural, em que se podeidentifcar claramente aspectos de medievalidade so os jogoseletrnicos e o RPG23. Desde os anos 1980, diversos jogos executadosem video-games e computadores incorporam ormas pretensamentemedievais aos heris que combatem em reinos distantes, s ortalezas,templos e palcios habitados por guerreiros, magos e eiticeiros.Certamente que estes componentes tm sido os responsveis pelaenorme popularidade de temas e assuntos reais ou imaginados

    tratados em sites ou em grupos de bate-papos virtuais na Internet.Aos j habituais temas de uma mitologia contempornea do medievo

    21 - Ver, entre outras, as seguintes produes musicais: Blackmores Night, Shadows o the night, 1997; Saxon,Crusader, 1984; Manowar. Battle hims, 1984; ierra Santa,Medieval, 1997.22 - Ver, entre outras, as seguintes produes musicais: Enigma,MCMXC a.D., 1990; Enya, Te Shepherd moon,1991; Dead Can Dance, Te serpents egg, 1988; Era, Te mass, 2003.23 - Sigla de Real-Playing Game ou Jogo de Interpretao de Personagens. um tipo de jogo muito apreciadonaatualidade, em que indivduos ou grupos assumem papis de personagens e criam situaes a partir de regraspr-determinadas. A prtica teve incio na dcada de 1970 e uma modalidade de grande sucesso, Dungeons &Dragons, baseava-se em elementos ditos medievais. Este jogo depois viraria desenho animado com o ttulo emportugus deA caverna do drago. A prtica de RPG aparece retratada no flme norte-americano intitulado Rolemodels (Faa o que eu digo, no aa o que eu ao), do diretor David Wain (2009).

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    (os emplrios24 e os Ctaros25, a vola Redonda e o Graal26,as Cruzadas27 e tantos outros28), somam-se entes sobrenaturaise ericos de uma Idade Mdia que deve muito ao extraordinrio

    universo fccional criado por J. R. olkien em O senhor dos anis,que tanto impacto exerceu na imaginao do sculo XX29.udo isto leva a pensar que esta Idade Mdia sonhada, para

    usar a expresso de Umberto Eco, tenha alguma relao com ovazio deixado pela sociedade de consumo, em que o indivduo pulverizado e valores tradicionais so reiteradamente banalizados.A evocao dos regios amiliares de uma oresta encantada ouda segurana simbolizada pelo castelo teria algo que ver com abusca de um retorno s origens quase mticas. Por isso, Michel Zink,grande conhecedor da civilizao medieval, no hesita em afrmarque no imaginrio produzido pela cultura de massa atual a IdadeMdia percebida como um regio rgil e inantil30.

    24 - Sobre a continuidade da existncia da Ordem dos emplrios em Portugal na atualidade, com o nome de

    Ordo Supremus Militaris empli Hierosolymitani, ver o estudo de Jos Alberto BALDISSERA. A Ordem Sobera-na e Militar do emplo de Jerusalm em Portugal na Idade Mdia e Hoje. In: Celia Marques ELLES; RisoneteBatista de SOUZA (orgs).Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais, pp. 231-236; a respeito dasapropriaes contemporneas dos ideais dos templrios, ver Jos Roberto GUIMARES. Militia empli: ocavalheiro templrio como projeto ecumnico. Dissertao de Mestrado orientada por Antnio Carlos de MeloMagalhes. So Paulo: UMESP/PPGR, 1998.25 A esse respeito, ver os estudos exaustivos de Jean-Louis BIGE. Mythographie du catharisme (1870-1960),pp. 271-303; Charles-Olivier CARBONELL. Vulgarisation et rcuperation: le catharisme travers les mass-m-dia, pp 361-380. In: V.V.A.A. Historiographie du catharisme (Cahiers de Fanjeaux, 14). oulouse: douard Privat,1979. A apropriao desses temas nem sempre oi politicamente desinteressada, e s vezes assumiu conotaesracistas, como demonstrou Jean-Michel ANGEBER. Hitler et la tradition cathare. Paris: ditions Robert Laont,1971.26 - Sobre as ormas de apropriao e diuso da mitologia arturiana desde o medievo at o presente, ver os es-

    tudos de W. R. BARRON. Te Arthur o the English: the arthurian legend in medieval english lie and literature.Cardi: University o Wales Press, 2001; Glyn BURGES; Karen PRA. Te Arthur o the French: the arthurianlegend in medieval rench and occitan literature. Cardi: University o Wales Press, 2006; W. H. JACKSON; S.A. RANAWAKWAKE. Te arthur o the germans: the arthurian legend in medieval german and dutch literature.Cardi: University o Wales Press, 2000; Elisabeth JENKINS. Os mistrios do Rei Arthur: o heri e o mito reava-liados atravs da histria, da arqueologia, da arte e da literatura. So Paulo: Melhoramentos, 2001.27 - Para o exame dos desdobramentos e ressignifcaes da idia da cruzada, ver os estudos de Alphonse DU-PRON. Le mythe de croisade: essai de sociologie religieuse Paris: Gallimard, 1997 (or. 1957), 4 vols.; IDEM. Dusacr: croisades et pelrinages, images et langages. Paris: Gallimard, 1992.28 - Para Portugal, o tema que melhor se enquadra no repertrio mitolgico moderno diz respeito aos amores deD. Pedro I e Ins de Castro, amplamente retratado na iconografa, literatura, teatro e cinema. Mesmo no sculoXVIII, a tragdia dos amantes era encenada com grande sucesso nos teatros de Paris, conorme se pode ver noestudo de Anna Maria RAUGEI. Moyen ge et sicle des lumires: lcran du passe sur le thatre du XVIIIsicle. Cahiers de lAssociation Internationale des tudes Franaises, vol. 47, 1995, p. 1729 - A Editora Camargo & Moraes, sediada em So Paulo, publica periodicamente a revista intitulada UniversoFantstico de olkien, na qual aparecem reportagens sobre RPG, jogos eletrnicos, magia e mitologia e outrosaspectos da Idade Mdia antasia. Na Itlia, circula nas bancas a revista de divulgao de msica e cultura me-dieval intituladaMedioevalia: la prima rivista com CD di musica e cultura medioevale, editada pela empresa NewSounds Multimedia.30 - Michel ZINK. Projection dans lenance, projection de lenance: le Moyen Age au cinema. Cahiers de lacinematheque, n 42-43, 1985, p. 6.

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    ENFOQUES

    Nas ltimas dcadas, em que se assiste no Brasil a emergncia

    de um grupo de medievalistas profssionais, alguma ateno temsido dada ao que se tem produzido a respeito da Idade Mdia etambm ao que restou da Idade Mdia no Brasil31. Num interessanteensaio, Hilrio Franco Jr. equaciona bem o problema dos intrincadoscruzamentos temporais na relao entre Idade Mdia e Brasilcontemporneo, identifcando certos traos do comportamentocoletivo brasileiro em que se podem identifcar eetivamente razesmedievais, e distinguindo de outros, que devem tudo modernidade.No se trata, segundo ele, de um Brasil medieval ou de uma IdadeMdia no Brasil, mas de um sistema de valores medievais no Brasil.Aqui, tal qual Mrio Martins tinha muito bem percebido, a IdadeMdia menos uma poca histrica e mais uma maneira de ser nomundo32.

    No toa que os vestgios mais evidentes da residualidademedieval no Brasil digam respeito aos elementos da religiosidade esensibilidades populares.

    Um bom exemplo o do castelo construdo em 1984 pelo

    sertanejo chamado Jos Antnio Barreto, conhecido popularmentecomo Z dos Montes, na Serra da apuia, encravado na zona agrestedo Estado do Rio Grande do Norte. Aqui est sem sombra de dvidauma reminiscncia medieval. Mas o que remonta ao medievono a bizarra construo, com suas dezenas de torres brancassobressaindo-se em meio s rochas, com seu ormato sinuoso, emestilo nai que, com muita imaginao, nos remeteria, guardadasas imensas propores, s criaes do espanhol Antonio Gaudi na

    arquitetura urbana de Barcelona. Aquela edifcao eita mo, deestuque, caiada, sem iluminao artifcial, a criao de um homemsimples, sem instruo, divinamente inspirado. o ruto de umamisso que lhe oi dada diretamente pela Virgem Maria quando ele

    31 - Para uma viso de conjunto dos estudos medievais, ver Hilrio FRANCO JR; Mrio Jorge da Motta BAS-OS. LHistoire du Moyen Age au Brsil. Bulletin du Centre dtudes Mdivales dAuxerre, vol. 7, 2003, pp. 125-133; Nri de Barros ALMEIDA. La ormation des mdivistes dans le Brsil contemporain: bilan et perspectives(1985-2007). Bulletin du Centre dtudes Mdivales dAuxerre, vol. 12, 2008, pp. 145-160; Vanessa Colares AS-FORA; Eduardo Henrik AUBER; Gabriel CASANHO. Faire lhistoire du Moyen Age au Brsil: ondements,structures, dveloppements. Bulletin du Centre dtudes Mdivales dAuxerre, vol. 12, 2008, pp. 125-144; CarlosRoberto Figueiredo NOGUEIRA. Os estudos medievais no Brasil de hoje. Medievalismo (Madrid), vol. 12,2002, pp. 291-297; Ana Carolina Lima ALMEIDA; Clnio de Oliveira AMARAL. O Ocidente medieval segundoa historiografa brasileira.Medievalista online (Universidade Nova de Lisboa), ano 4 n. 4, 2008; Jos Rivair MA-CEDO. Os estudos medievais no Brasil. Catlogo de dissertaes e teses: Filosofa, Histria e Letras (1990-2002).So Paulo: EDUFRGS, 2003; IDEM. Os estudos de histria medieval no Brasil: tendncias e perspectivas. No-tandum (USP), vol. 21, 2009, pp. 95-104.32 - Hilrio FRANCO JR. Les racines mdivales du Brsil. In: Eliana MAGNANI. Le Moyen Age vu dailleurs,Bulletin Du Centre dtudes Mdivales dAuxerre, Hors Srie II, 2008: http://cem.revues.org/index8632.html.

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    ainda era menino. Na apario, Nossa Senhora o teria encarregadode construir o castelo com suas prprias mos, para que depois lheservisse como tmulo, como o lugar de seu descanso derradeiro.

    A est o resduo interiorizado de uma orma de pensar e de sentirmedieval no mais puro sentido, pois evoca um tempo em que asimbricaes entre sagrado e proano eram maiores, e muitssimomais proundas, provocando sensaes e atitudes dierentes dasnossas, cativas da razo cartesiana. O grande historiador holandsJohan Huizinga resumiu todo este estado de esprito numa belaimagem: para os medievais, o simbolismo religioso apresentava-secomo uma espcie de curto-circuito do pensamento: em vez deobservar a relao de duas coisas procurando os caminhos invisveisde suas dependncias causais, o pensamento d um salto e descobrea relao, no como um enlace de causa e eeito, mas como umaligao de signifcado e de fnalidade33.

    o mesmo trao de comportamento notado em Z dos Montes,verdadeiramente intoxicado pelo sagrado. Nesse caso, a IdadeMdia encontra-se viva, pulsante, sem qualquer compromisso comsincronia ou cronologia. E o que dizer da experincia descrita pelo

    jornalista Gilles Lapouge, correspondente rancs do jornal O Estado

    de So Paulo que, certa vez, durante uma viagem pelo interior doEstado do Rio Grande do Norte, no Nordeste Brasileiro, ao ter suanacionalidade revelada, oi inquirido por um velho sertanejo sobreque notcias tinha a dar a respeito de Rolando e os Pares de Frana34?

    Entre as possibilidades de abordagem das reminiscnciasmedievais podem-se destacar trs tipos: a) o estudo das vicissitudeshistricas de determinadas instituies sociais35, econmicas e

    33 - Johan HUIZINGA. O declnio da Idade Mdia. Lous: Ed. Ulissia, s.d., p. 211.34 - Gilles LAPOUGE. quinoxales. Paris, 1977, p. 168. Citado em epgrae no livro de Joo David Pinto COR-REIA. Os romances carolngios da tradio oral portuguesa. Lisboa: Instituto Nacional de Investigao Cientfca,1993, tomo 1, p. 9.35 - Srgio Buarque de HOLANDA.A viso do Paraso: os motivos ednicos no descobrimento e colonizao doBrasil. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio, 1959; Guillermo GIUCI. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo.So Paulo: Companhia das Letras, 1992; Jos Carlos GIMENEZ. A presena do imaginrio medieval no Brasilcolonial: descries dos viajantes.Acta Scientiarum (Maring), vol. 23-1, 2001, pp. 207-213; Maria Isaura PEREIRADE QUEIROZ. La guerre sainte au Brsil: le mouvement messianique du Contestado. So Paulo : FFLCH-USP, 1957;Mrcia Janete ESPIG.A presena da gesta carolngia no movimento do contestado. Canoas, RS: Ed. da ULBRA, 2003;Manuela MENDONA. A tardia ocupao da regio de Guanabara. Insensatez poltica ou mentalidade antiga?,pp. 279-303; Margarida GARCEZ VENURA. Para a compreenso da revolta de Canudos: as matrizes do mes-sianismo poltico portugus, pp. 261-277. In: Razes Medievais do Brasil Moderno. Lisboa: Academia Portuguesade Histria; Centro de Histria da Universidade de Lisboa; Centro de Histria e da Cultura da Faculdade de Letrasda Universidade de Coimbra, 2008; Jos Rivair MACEDO. Reminiscncias medievais: religiosidade e poder noExtremo Sul do Brasil. In: Poder espiritual/poder temporal. As relaes Igreja-Estado no tempo da monarquia(1179-1909). Lisboa: Academia Portuguesa de Histria, 2009, pp. 283-306.

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    polticas36; b) o estudo do modo pelo qual elementos de origemmedieval se azem presentes em maniestaes culturais de carterpopular tanto na tradio oral quanto na literatura, em estas e

    rituais ou na iconografa religiosa37

    ; c) o estudo dos motivos econdies pelas quais autores ou artistas representantes da culturaerudita brasileira incorporam em suas obras elementos que sepoderiam considerar medievais38.

    36 - Ver Maria Filomena COELHO.A Justia dalm mar. Lgicas jurdicas eudais em Pernambuco (sculo XVIII).Recie: Fundao Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2009; uma das instituies portuguesas de origem me-dieval mais estudadas no Brasil a sesmaria, evidentemente devido ao seu vnculo com o regime das CapitaniasHereditrias e com a constituio da propriedade no Brasil colonial. Sobre esse assunto, o estudo clssico conti-nua a ser o de Jos da COSA PORO. O sistema sesmarial no Brasil. Braslia: Ed. da UNB, s.d.; um importanteestudo a respeito do instituto da almotaaria nas cidades coloniais do sul do Brasil oi realizado por MagnusRoberto de Mello PEREIRA. Almuthasib consideraes sobre o direito de almotaaria nas cidades de Portugale suas colnias. Revista Brasileira de Histria (So Paulo), vol. 21 n 42, 2001, pp. 365-395.

    37 - Diversos estudos examinaram o signifcado de certos indcios medievais nas tradies populares brasilei-ras, entre os quais esto Lus da Cmara CASCUDO. Dante Alighieri e a tradio popular no Brasil. Porto Alegre:PUCRS, 1963; IDEM. Mouros, ranceses e judeus: trs presenas no Brasil. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1982;Jerusa Pires FERREIRA. Cavalaria em cordel: o passo das guas mortas. So Paulo: HUCIEC, 1993; Elba BragaRAMALHO. Carlos Magno no repente nordestino. In: Celia Marques ELLES; Risonete Batista de SOUZA(orgs).Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais.Salvador: Quarteto Editora, 2005, pp. 447-451;Geraldo MOSER. Elementos medievais na literatura popular do Brasil. In: Homenagem a Manuel RodriguesLapa. Boletim de Filologia (Lisboa), omo XXVIII, 1983, pp. 126-136; Maria Eurydice de Barros RIBEIRO. Azu-lejos: quadros da memria portuguesa. In: Razes Medievais do Brasil Moderno. Lisboa: Academia Portuguesa deHistria; Centro de Histria da Universidade de Lisboa; Centro de Histria e da Cultura da Faculdade de Letrasda Universidade de Coimbra, 2008, pp. 247-260; IDEM. O bestirio medieval portugus, a gravura e o cordelno Nordeste do Brasil. In: Poder espiritual/poder temporal. As relaes Igreja-Estado no tempo da monarquia(1179-1909). Lisboa: Academia Portuguesa de Histria, 2009, pp. 585-594;

    38 - Entre outros podem-se mencionar: Lnia Mrcia MONGELLI. Entre onas e barbates: as maravilhas ca-boclas de Jos de Alencar. Signum: revista da ABREM, vol. 5, 2003, pp. 195-232; IDEM. Buscando decirarAriano Suassuna. In: Celia Marques ELLES; Risonete Batista de SOUZA (orgs).Anais do V Encontro Interna-cional de Estudos Medievais, pp. 51-58; Maria do Amparo avares MALEVAL. Neotrovadorismo, no Brasil?.Humanas: Revista do IFCH-UFRGS, vol. 21 n. 102, 1998, pp. 405-426; IDEM. O romanceiro ibrico na poesiabrasileira. In: IDEM.Atualizaes da idade Mdia. Rio de janeiro: PPG de Letras da UERJ, 2000, pp. 259-289;Ligia VASSALO. O serto medieval: origens europias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Livraria Fran-cisco Alves, 1993; ereza Aline Pereira de QUEIROZ. Mimetismo e recriao do imaginrio medieval emAutoda compadecida de Ariano Suassuna e En La diestra de Dios Padre de Enrique Buenaventura. Revista Brasileirade Histria, vol. 18 n. 35, 1998; Henrique Manuel VILA. Sobrevivncia transormao da cultura medieval emAriano Suassuna. Humanas: Revista do IFCH-UFRGS, vol. 1 n. 1, 1998, pp. 65-78; Risons de Jesus DUARE;Ana Camila Lima de SOUZA; Clia Marques ELLES. A obra regional sallesiana: um encontro com o imagin-rio medieval. In: Clia Marques ELLES; Risonete Batista de SOUZA (orgs).Anais do V Encontro Internacionalde Estudos medievais, pp. 323-326; Roberto PONES. Residuos paradigmticos medievais e trovadorescos naLrica de Ceclia Meirelles. In: Angelita Marques VISALLI; erezinha de OLIVEIRA (orgs).Atas do VI EncontroInternacional de Estudos Medievais. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2007, pp. 397-402. ambmna literatura norte-americana a Idade Mdia serviu de inspirao a renomados escritores, e em algumas obras osndios so associados ao esprito guerreiro medieval como se pode ver no romance Te last o the Mohicans, deJames Fenimore Cooper (1826), e no poema Te prairies, de William Bryant (1832). Ver Andrew GALLOWAY.William Cullen Bryants American Antiquities: medievalism, miscigenation, and race in Te prairies.AmericanLiteracy History(Oxord), vol. 22-4, 2010, pp. 724-751.

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    Por enquanto, a nica obra que apresenta uma viso de conjuntodas inuncias medievais na ormao brasileira a do mexicanoLuis Weckmann39. O problema que em obras desse tipo o ngulo

    de abordagem tende a avorecer apenas um dos componentesessenciais de nossa sociedade: o europeu. Para uma avaliaomais justa do porque a experincia medieval portuguesa seguiuoutros rumos no Novo Mundo seria preciso considerar o peso dacontribuio indgena40 e aricana41 em nossa sociedade, resultantedas trocas e uses durante o perodo colonial. Neste outro mundoe neste novo tempo que o legado portugus oi recebido, fltrado,parcialmente assimilado e parcialmente rechaado, enfm, revividoe ressignifcado.

    39 - Lus WECKMANN. La herencia medieval del Brasil. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1993. Deve--se observar todavia os limites conceituais da idia de herana deendida pelo autor, que v no processo deconquista e povoamento da Amrica elemento de transmisso das instituies ibricas; sua adaptao no NovoMundo constituiria uma espcie de continuidade medieval at pelo menos meados do sculo XVII. Esta con-cepo petrifcada da Idade Mdia no permite responder duas questes que nos parecem cruciais: 1) porquealgumas instituies e/ou traos sociais persistiram, e outros no; 2) como tais elementos eram operados pelos

    sujeitos histricos dos sculos XVI-XVII, nas circunstncias especfcas da sociedade colonial.40 - O carter hbrido e mestio da ormao cultural mexicana oi realado no livro de Serge GRUZINSKI. AColonizao do imaginrio. Sociedades indgenas e ocidentalizao no Mxico espanhol. Sculos XVI-XVIII.So Paulo: Companhia das Letras, 2003; para o Brasil, Ronaldo VAINFAS.A heresia dos ndios. So Paulo: Com-panhia das Letras, 1995, demonstrou a maneira pela qual a uso entre as crenas populares portuguesas e oscultos indgenas produziram um tipo de religiosidade original, perseguida pelos visitadores do Santo Ocio daInquisio em 1591-1595.41 - Inspirados na obra do pesquisador Jan Vansina, aricanlogos norte-americanos tem reavaliado o papelessencial dos povos bantu da rica central na ormao das sociedades americanas e considerado o signifcadodo cristianismo na constituio das identidades aricanas antes mesmo da transerncia dos milhes cativos du-rante o trfco internacional de escravos. Ver Linda HEYWOOD (org).A dispora negra no Brasil. So Paulo: Ed.Contexto, 2009; embora ultrapassada em muitos pontos de seus pressupostos conceituais e perpassada por umaleitura marcada pela ideologia que sustentou durante dcadas o mito da democracia racial brasileira, o livro deGilberto FREYRE. Casa Grande & Senzala: a ormao da amlia brasileira sob o regime patriarcal. 51 edio.So Paulo: Ed. Global, 2006 (or. 1933), apresenta notvel quadro das contribuies aricanas e indgenas duranteo processo de colonizao que alteraram o modo de ser do portugus e contriburam para a criao do modo deser propriamente brasileiro; uma contribuio original ao debate sobre as relaes entre as tradies europiase as tradies aricanas oi apresentada por Muniz SODR.A verdade seduzida: por um conceito de cultura noBrasil. Rio de Janeiro: DP & A, 2005 (or. 1978); sobre o signifcado cultural das tradies populares de matrizaricana, ver Marina de Mello e SOUZA. Reis negros no Brasil escravista. Histria da esta da coroao do rei doCongo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.

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    RELIGIOSIDADE EM PORUGAL

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    OS REGIMENOS DE PROCISSESDO CORPUS CHRISI

    NO PORUGAL MEDIEVALManuela Mendona*

    O ocidente europeu, na dimenso que adquire com a terminologiarespublica christiana que, at ao sculo XVI, se estendia de Portugal Hungria, apresenta-se como o local por excelncia da prtica docristianismo.

    Sem cuidar de seguir os processos de converso subsequentesao Imprio Romano, registemos que, no modelo atingido pelosdesignados reinos brbaros ou, mais precisamente, germanos,toda esta Europa se considerava como azendo parte da mesmacristandade. Nessa medida diremos que oi por esta marca que,na poca, o ocidente se reconheceu, conorme fcou registado emdiversos documentos. Atestam-no os cronistas portugueses que, nosrespectivos escritos, no utilizam nunca a designao Europa, mas

    sim a de cristandade ou repblica crist. disso ainda exemploo Doutor Joo eixeira que, quando em 1485 apresentou, em nomedo rei de Portugal, a Orao de Obedincia ao novo Papa, InocncioVIII, reeria os notveis servios prestados pelo Rei Joo Repblica crist e S apostlica1. E j no princpio do segundoquartel do sculo XVI, ainda Garcia de Resende identifcava o velhocontinente com a mesma designao, num mbito geogrfco queno ia alm da pennsula itlica e da Hungria. Com eeito, ao alar

    dos problemas polticos dos reis do ocidente escreveu: El ReyCarlos de Frana azendo a maior parte da Christandade liga contraelle2. E na sua Miscelnea identifcava, Quinze reis, quinzereynados/ vimos j na christandade castelhanos e ranceses/Alemes, Venezeanos/ Navarros, Aragoneses/ Napolitanos, ingleses/Romanos, Cezelianos/ Italianos, Millaneses/ Soyos, e Escorceses/

    vimos todos batalhar/ huos com outros se matar/ salvo Ungros ePortugueses3.

    ** Presidente da Academia Portuguesa da Histria; Proessora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.1 - Orao de Obedincia ao Sumo Pontce Inocncio VIII, dita por Vasco Fernandes de Lucena em 1485. Ediocom nota bibliogrfca de Martim de Albuquerque e traduo portuguesa de Miguel Pinto de Meneses. Lisboa,1988, p. 23.2 - GARCIA DE RESENDE. Crnica de D. Joo II e Miscelnea, nova edio conorme a de 1798, com preciode Joaquim Verssimo Serro. 2. Edio. Lisboa, 1992, p. 220.3 - Idem, ibidem, p. 355.

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    Serve esta breve introduo para demonstrar como, desdeo princpio da nacionalidade, os portugueses se identifcaramcom os povos que comungavam idntica confsso religiosa,

    independentemente dos respectivos projectos polticos. Assimsendo, torna-se natural que, tambm no interior do reino, aidentidade religiosa seguisse a par com os objectivos rgios. Bastarecordar que Portugal apenas adquiriu independncia rente aLeo e Castela quando obteve, numa opo de eneudamento aopoder espiritual, o apoio da Santa S. O seu primeiro rei iniciou esseprocesso declarando-se inicialmente cavaleiro de S. Pedro, vindo aconseguir posteriormente o respectivo reconhecimento atravs dabula Maniestis Probatum, outorgada pelo papa Alexandre III, em1179. S ento a independncia portuguesa fcou defnitivamenteconsagrada.

    Nesta perspectiva, no ser para admirar que a posterior gesta dopovo luso osse marcada, em termos mentais, pela dilatao da ,conorme registam os cronistas ao reerirem os fns perseguidos pelosportugueses no incio dos descobrimentos. certo que tal objectivo,que sempre justifcou as bulas de cruzada, no era nico, sendo

    verdade que os actores de ordem econmica com ele avanaram

    de mos dadas na aco portuguesa nas zonas encontradas. Porm, inegvel que nos modelos transeridos para as novas paragens seinclua a opo religiosa, nas suas mais variadas ormas de culto. Equando ainda hoje observamos algumas expresses de religiosidade,nomeadamente de religiosidade popular, no podemos deixar de

    ver nelas reminiscncias desse passado longnquo, qual enmenode longa durao. E se isso real no actual mundo portugus, no oser menos num pas como o Brasil pas moderno, mas caldeado

    nos velhos modelos europeus.*

    Para o encontro que hoje nos rene, pensei trazer um documentoque patenteia o esprito da poca atravs das disposies ofciaisrelativas a uma das maniestaes do sagrado de maior adesopor parte dos vrios grupos sociais: as procisses. E de entre estasaquela que, no sculo XV, se transormou em paradigma de todasas outras. Refro-me Procisso do Corpo de Cristo. Para explicar

    essa preponderncia, recordemos que oi o papa Urbano IV queincrementou a piedade eucarstica, intensifcando o culto doSantssimo Sacramento, cuja esta instituiu em 1264 sob a designaode Corpus Christi encomendando a elaborao do respectivoOcio ao grande santo e telogo desse tempo, S. oms de Aquino,que enriqueceu a piedade crist com uma maravilhosa obra-prima

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    da liturgia4. Contudo, a disposio papal visava apenas a instituioda Festa do Santssimo Sacramento, sendo certo que a respectivaprocisso apenas comeou a azer-se no sculo XIV, inicialmente

    na Alemanha, Frana e Itlia, contagiando posteriormente osrestantes pases da Repblica Crist. Isso mesmo ocorreu emPortugal dando origem, como a solenidade exigia, a um Regimentoprprio.

    A procisso medieval no necessariamente uma expressoreligiosa, pois pode defnir-se como uma maniestao de , decrena, mas tambm de testemunho de adeso, de apoio, de fdelidadea uma pessoa ou causa, seja ela temporal ou espiritual. Com eeito,os povos organizavam-se em grandes maniestaes de adeso, tantoquando se impunha testemunhar uma devoo espiritual comoquando se queria aclamar uma personalidade, nomeadamente orei. Recordem-se as procisses que aconteciam, por exemplo, nasentradas rgias a cidade, na primeira vez que recebia o monarca,apresentava-se ora de muros com representantes de todos osgrupos sociais, maniestando deste modo a sua adeso ao novorei. E conduzia-o em procisso at ao local mais nobre da cidade,cujos representantes ostentavam, nestes cortejos, uma pompa que

    simbolizava todo o seu poder econmico e social. Assim se impunhae garantia respeito e privilgios na utura relao com o monarca.

    Do ponto de vista espiritual, organizavam-se do mesmo modo oscortejos que se destinavam a proclamar a em Jesus Cristo ou nosseus santos. Neles se juntavam autoridades civis e religiosas, como povo em geral, como que transerindo para estas maniestaesde a ordem trinitria que agrupava os homens no temporal.odos os corpos sociais participavam, cada um no lugar que lhe

    competia, de acordo com a hierarquia social. E na ordem polticavigente, os prprios monarcas estabeleciam a regulamentao de taistestemunhos de . Diremos mesmo que, no caso portugus, os reisse assumiam como garantes da prtica religiosa, qual Carlos Magnoperante o papa, quando se afrmava responsvel por azer executartudo o que dizia respeito tanto ao corpo como ao esprito. Nestamentalidade se deve entender que, nas devoes estabelecidas, semisturassem as opes de louvor estritamente espiritual com a aco

    de graas por vitrias polticas alcanadas. A justifcao dada pelosprprios documentos, estando tambm inserida no RegimentodasProcisses da Cidade de vora, que contm o texto que nos ocupa.Diz assim o respectivo prembulo,

    4 - Heitor MORAIS, s.j.. Histria dos Papas, Luzes e Sombras. 2. Edio. Braga: Editorial A. O., 2005, p. 257.

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    Como quer que por todas as coisas que de Nosso Senhor re-cebemos lhe devemos de dar graas como lembrados de seus be-necios, e especialmente os reis e prncipes o devem azer pelas

    vitrias e vencimentos que de sua mo recebem, o que os reisdestes reinos sempre muito pereitamente fzeram e guardaramdesde o primeiro santo e glorioso rei dom Aonso at nossos dias,segundo que por procisses e solenidades ordenadas que se emcada um ano azem em alguns lugares destes reinos a todos no-trio. E querendo ns acerca disto no menos ser grato e reco-nhecer a Nosso Senhor o que em nossos dias e presena nos ezde merc em a batalha que houvemos em os reinos de Castela

    Deste modo se justifcava a interveno do poltico na esera doreligioso, legitimando-se a imposio dos instrumentos reguladorese fscalizadores. O documento que iremos analisar, de acordo como registo do escrivo, oi copiado e adaptado a partir de um textoque ora dado pelo mesmo rei, D. Joo II, vila de Santarm. Noconhecemos a data exacta do original, mas presumimos que sejapouco posterior a 1482, por consagrar j a procisso comemorativada Batalha de oro, cujo regimento oi escrito neste mesmo ano.

    Sabemos que oi elaborado especifcamente para a procisso doCorpo de Deus paradigma de todas as procisses. Porm, em vora,seria cumprido noutros trs actos de culto similares:

    - no dia do milagre da cera5;- em vspera de Santa Maria de Agosto pelo vencimento da

    batalha real6- no dia em que el rei dom Joo nosso Senhor venceu a batalha

    de entre oro e amora que aos dois dias de Maro7.

    Este Regimento deveria aplicar-se em todas estas trs procisses, comuma nica excepo: nesta ltima no iria a arca onde vai o sacramento.

    *5 - Segundo o Padre Antnio Carvalho da Costa, a tradio deste milagre remonta a 24 de Maio de 1372.endo-se perdido o trigo, em virtude do mau tempo, oi eita uma prece colectiva, com Missa cantada e sermo.Ento, diz o autor, o tempo serenou de imediato e Nossa Senhora ez outro milagre, pois dobrou o peso da ceraque ardia diante da sua imagem todo o tempo que durou a Missa. (Corografa Portugueza. Lisboa, 1708, tomoII, p. 427). Note-se que o milagre da cera era uma devoo especfca da cidade de vora. Noutras localidades,o tema seria o da respectiva devoo, tal como acontece, por exemplo, em Santarm, onde se az a procisso doSantssimo Milagre.6 - rata-se da batalha que, entre ns, fcou conhecida por batalha de Aljubarrota, ocorrida em 1385, na qualos portugueses derrubaram o invasor castelhano, que pretendia a coroa de Portugal.7 - A batalha de oro, travada em 1476, oi a mais signifcativa operao militar, ocorrida durante a campanhaportuguesa, levada a cabo por D. Aonso V, com o objectivo de deender a coroa de Castela para sua sobrinha,Joana. Cumprindo uma promessa eita a seu cunhado, Henrique IV, na sequncia da respectiva morte o reiportugus invade terras castelhanas, casa com a sobrinha e enrenta a oposio militar de Isabel, a utura rainhaCatlica, que disputava igualmente o trono. A batalha de oro terminou sem um claro vencedor, sendo certo quea hoste comandada por D. Aonso V oi derrotada, mas o corpo de tropas liderado por seu flho, uturo D. JooII, permaneceu no campo como vencedor. Em consequncia, ambos os reinos reclamam a vitria.

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    Acompanhemos ento o texto do Regimento, para observar queme como devia servir nestas procisses de vora que, segundo otambm estabelecido, tinham um trajecto assinalado: deviam ir pela

    selaria praa. Quer dizer que todos estes cortejos atravessariamobrigatoriamente o eixo principal da cidade, isto , o que ligava aS Catedral Praa Pblica, hoje ainda a principal, conhecida porPraa do Geraldo8.

    No que se reere organizao do evento, as disposies contidasno documento impem uma presena dierente da que conhecemosnos exemplos estudados por Jacques le Go. Estes parecemincorporar apenas os indivduos segundo a sua categoria social,do mais importante para o menos importante. Contudo, no nossotexto destacam-se duas camadas de intervenientes, que surgem emcrescendo, convergindo para o principal local: aquele onde vai oCorpo de Deus. O primeiro grupo constitudo por aqueles queservem na procisso; s o segundo corresponde ento sociedadehierarquizada.

    A ordem da procisso a seguinte: abre com um touro, animalque conduzido e acompanhado pelos homens ligados ao ocio dascarnes, isto : carniceiros e enxerqueiros, que seguem a cavalo.

    Depois surgem aqueles que desempenham actividades ligadas terra hortelos e pomareiros. Estas categorias tm pendo ebandeira, o que signifca que estavam organizados. No h qualqueroutra reerncia a trabalhadores da terra.

    Curiosamente, o lugar seguinte destinado a mancebas de partido,ou seja, prostitutas que iro acompanhadas do gaiteiro e devem ir adanar. rata-se, pois, de um grupo que se destina a servir.

    Em trs flas sucessivas aparecem depois os ocios de mulheres:

    primeiro as que vendem peixe, depois as que vendem po, sendoseguidas por ruteiras, regateiras e outras vendedeiras. Este conjunto,que no apresenta bandeira nem pendo, deve azer-se acompanharpelos respectivos gaiteiros.

    No h mais representao eminina nesta parte do cortejo,seguindo-se de imediato os representantes de outros trs ocios:primeiro os almocreves e depois os estalajadeiros e carreteiros. odostm pendo, bandeira e atabaque. Os estalajadeiros e carreteiros tm

    obrigao de se azer acompanhar de trs reis magos.8 - Os seleiros (ou abricantes de selas e arreios) no deviam ocupar a rua toda A importncia da Rua daSelaria reside no acto de pr em ligao os dois centros da cidade. O primeiro representado pela S, Casteloe Aougue o centro da cidade enquanto esta se circunscrevia ao permetro da muralha romana ou cerca

    velha O desenvolvimento dos arrabaldes deslocaram o centro da cidade para a Praa. A Rua da Selariasurge assim como o eixo de ligao da cidade medieval com a cidade moderna (c.. Aonso de CARVALHO. Daoponmia de vora, pp. 276-277).

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    erminadas estas representaes, abrem-se duas flas, nas quaisse incorporam diversos ocios, com as respectivas bandeiras,pendo e atabaque, para alm de outras particularidades. Assim:

    de um lado vo os sapateiros, que apresentaro um imperador edois reis muito bem vestidos e com eles os surradores, cortidorese odreiros. A par iro os alaiates, que igualmente se aroacompanhar das bandeiras.

    A seguir, continuando em alas, seguem os homens de armas: 50besteiros do conto de cada lado, que transportaro as respectivasbestas devidamente eneitadas, para alm da bandeira e atabaque.No devem levar capas.

    Seguem-se, de um lado, os espingardeiros, na mesma ordem eapresentao, ostentando as espingardas. A par entram os besteirosda cmara do rei e os besteiros de cavalo.

    O grupo seguinte constitudo por homens de armas: barbeiros,erreiros, armeiros, erradores, seleiros, bainheiros, estieiros elatoeiros. Dividem-se pelas duas alas, de cabea descoberta eostentando espadas nuas, na mo. Com eles devero levar a imagemde S. Jorge, com um pagem e um drago.

    O conjunto seguinte ormado, de um lado, por tecelos,

    penteadores de l e cardadores. Conduziro a imagem de S.Bartolomeu e um diabo preso por uma cadeia. A par iro oscorreeiros, adargueiros e sirgueiros. ransportam S. Sebastiolevando quatro besteiros.

    Igualmente com bandeiras, pendes e atabaques surgem, de umlado, ataqueiros e saoeiros, que devem levar So Miguel. Do outroperflam-se os olheiros, telheiros e tijoleiros, que devem transportarSanta Clara com duas companheiras.

    Vm depois, ainda distribudos pelas duas flas, os carpinteiros,pedreiros, taipadores, calcadores, caieiros, cabouqueiros,molhinheiros, serradores e outros que trabalhem na construo decasas. Devero transportar Santa Catarina.

    Cessa aqui a diviso em duas flas para voltar a uma nica.Seguem-se ento sucessivos conjuntos, cujos membros transportamtochas acesas. Primeiro vo os tosadores e cerieiros, logo seguidos deourives e pichaleiros. Estes levaro igualmente a imagem de S. Joo.

    Atrs do santo so conduzidas duas bandeiras: primeiro ada cidade, levada pelo aleres. Depois a bandeira real, que sertransportada por dois cavalos.

    Seguem-se os trapeiros e os marceiros, com dois cavalinhosuscos. Aps eles iro os mercadores de panos de cor e, depois deles,os escrives. Atrs destes incorporam-se os boticrios.

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    De novo em duas flas, apresenta-se o restante ofcialato,transportando igualmente acesas as respectivas tochas: de um ladoos tabelies das notas. Do outro os tabelies do judicial. Depois os

    procuradores do nmero e seus inquiridores, a par com o escrivodos ros e de almotaaria. Seguem-se os escrives do rei: o escrivodos contos e do almoxariado e o escrivo dos pretos e dos vinhos.

    Atrs de todos, junto do Corpo de Deus, estaro os dois juzesdo ano anterior ou, na alta deles, dois vereadores tambm do anoanterior.

    odo este conjunto convergiu para a zona nobre da procisso o local onde vai a arca com o Corpo de Cristo. Atrs da mesma Arcainiciam-se novos conjuntos de pessoas, precedida por representaesde Apstolos, Evangelistas e Anjos.

    No temos descrio da sequncia que levam, pois o documentoapenas diz que se segue a Procisso. al signifcar uma organizaoinversa da anterior, sendo certa a hierarquizao social por Clero,Nobreza e Povo.

    *Como se verifca, o documento em anlise d-nos a preocupao

    pelo estabelecimento de um protocolo, de acordo com o que acontece

    noutras reas da aco rgia, nomeadamente na sua corte. rata-se,pois, de um espectculo-representao disposto pelo temporal emuno do espiritual. Realcemos a maniestao social com o coloridodas bandeiras dos respectivos ocios, qual afrmao de organizaoe poder. Mas importa no esquecer que essa representao hierarquizada, tendo como objectivo o encontro com a mensagemprincipal da procisso que, neste caso, o Corpo de Cristo.

    O modo como os grupos sociais esto dispostos no terreno permite

    igualmente uma leitura da respectiva importncia na sociedade local.orna-se ento muito interessante verifcar, para l dos que abrem aprocisso (touro e carniceiros), seguidos de um grupo teoricamenteexcludo, as prostitutas, que o grupo de menor prestgio social ser odos hortelos e pomareiros, ou seja, o que representa as actividadesligadas terra. No que se reere s mancebas do partido, importaainda salientar, sem cuidar de uma interpretao aproundada destapresena, que nesta alvorada da Idade Moderna a mentalidade era

    mais tolerante. Posteriormente e progressivamente iremos assistir estigmatizao deste e doutros sectores da sociedade. Depois,realcemos que a representao eminina no se apresenta organizadaem conrarias: so as mulheres que vendem. Exige-se-lhe apenasespectculo, isto , que se apresentem bem arranjadas e sejamacompanhadas de gaiteiro. S ento seguiro as bandeiras, pendes

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    e atabaques, testemunhando o poder dos ocios que crescente,comeando nos almocreves e terminando nos ourives, que precedemas bandeiras da cidade e real.

    Os mercadores de panos, qual alta burguesia de vora, precedemos ofciais rgios que, em crescendo, acabam nos juzes, junto dosquais vai o Corpo de Cristo.

    Poderamos ainda azer uma leitura a propsito do santoconduzido por cada grupo profssional, que certamente o respectivoprotector. Seja o caso de S. Jorge, conduzido pelos homens de armas,de S. Bartolomeu, da responsabilidade dos que trabalhavam a l,ou ainda de S. Miguel, com a balana da justia De no menorimportncia seria perguntar qual o signifcado do touro que abrea procisso e outros que, por regimento, carniceiros, enxerqueiros epadeiras deviam dar para esse dia. Mas esse outro tema.

    *Concluindo esta reexo, atentemos ainda nas disposies fnais

    do documento. Nelas ressalta, mais uma vez, a deciso rgia deassumir a responsabilidade pelo cumprimento, por parte de todos,dos rituais religiosos, nomeadamente os que eram impostos porregimento. Por isso o monarca no hesitou em determinar e azer

    registar as penas que deveriam ser aplicadas a eventuais inractores:qualquer que no or a cada uma das ditas procisses que pague depena duzentos reais para a Cmara e obras da cidade. E o vereadorque no fzer vir todos os que a seu mester pertencem, assim asbandeiras, invenes ou tochas como a cada um ordenado se oslogo no der em rol na Cmara para lhe serem executadas as ditaspenas, que ele vereador ou mordomo pague quinhentos reais dacadeia. E tudo isto porque el rei nosso Senhor quer per servio de

    Deus que nenhuma pessoa crist de qualquer estado e condio queseja se no escuse nem seja escuso.

    o exerccio rgio, no temporal, a garantir o cumprimento doespiritual

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    APNDICE DOCUMENTAL

    REGIMENTO DAS PROCISSES

    DA CIDADE DE VORA9

    Este o Regimento dos que am de servir nas quatro procissesdo dia do Corpo de Deus em cada um ano: dia de quinta eira doCorpo de Deus, e logo ao dia do milagre da cera em que vai o ditoCorpo de Deus e vspera de Santa Maria de Agosto pelo vencimentoda batalha real e o dia em que el rei dom Joo nosso Senhor venceu abatalha de entre oro e amora que aos dois dias de Maro.

    Item, primeiramente na dianteira de todos iro os carniceiros comum touro por cordas e todos os carniceiros e enxerqueiros a cavalocom ele com sua bandeira de sua divisa e isto alm de pagarem os

    jogos dos meos touros pra o dia do Corpo de Deus como sempre decostume oi ordenado: os carniceiros dos meos touros dos talhos eos enxerqueiros com os que por costume sempre deram seu jogo detouro. E tero seu atabaque.

    Item, logo iro horteles e pomareiros da cidade e seu termo elevaro a carreta e horta e levaro seus castelos e pendes da sua

    divisa enramados e pintados e sua bandeira e atabaque.Item, no meio da procisso viro todas as mancebas do partido

    com os porteiros todos em uma dana com seu gaiteiro.Item, as duas plas das pescadeiras logo detrs elas bem vestidas e

    arrayadas com seu gaiteiro e elas todas ali em pessoas.Item, a pla das padeiras que uma s, porquanto do todas o

    jogo dum touro e as padeiras ali com a dita pla por pessoas.Item, as trs plas das ruteiras e regateiras e vendedeiras e elas

    todas per pessoa com seu gaiteiro.Item, os almocreves todos com seus castelos pintados de sua divisa

    e bandeira e atabaque e pendes bem pintados, todos em pessoa.Item, os carreteiros e estalajadeiros com seus castelos e pendes

    pintados e sua bandeira e atabaques e trazero os trs reis magos emsua inveno.

    Item, os sapateiros trazero o seu emperador com dois reis muitobem vestidos como lhe ordenado com seus castelos e pendes bem

    pintados e sua bandeira e atabaque todos de uma banda e servirocom eles: sapateiros, surradores, cortidores, odreiros todos empessoa.

    9 - ranscrio de Gabriel PEREIRA. Documentos Histricos da Cidade de vora. Lisboa: I.N-CM, 1998, II par-te, pp 159-161.

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    Item, os alaiates doutra banda e trazero a serpe e seus castelospintados de sua divisa com pendes e bandeira e viro todos perpessoa e seus atabaques.

    BESTEIROS DO CONTO

    Item, besteiros do conto tantos de uma banda como doutra queso cento e levaro sua bandeira e atabaque todos sem capas comsuas bestas enramadas.

    Item, os espingardeiros del rei nosso Senhor com suas espingardasao colo todos de uma banda com sua bandeira de sua divisa eatabaque, todos sem nenhuma cobertura.

    Item, os besteiros da cmara del rei nosso Senhor e assim os decavalo todos com pelote da outra banda e sua bandeira e atabaque.

    Item, os homens de armas atrs estes todos bem armados semnenhuma cobertura e senhas espadas nuas nas mos e levaroSo Jorge muito bem armado com um pagem e uma donzela paramatar o drago, tantos de uma banda como doutra e seu atabaque ebandeira e serviro nestes armados: barbeiros, erreiros e armeiros,erradores, seleiros, bainheiros, estieiros, latoeiros, todos bem

    armados sem nenhuma cobertura como dito .Item, os teceles, penteadores de l, cardadores com seus castelos

    e pendes pintados de sua divisa e sua bandeira e atabaque e levaroSo Bartolomeu e um diabo preso por uma cadeia, todos de umabanda.

    Item, os correeiros, dargueiros, sirgueiros doutra banda com seuscastelos e pendes pintados e sua bandeira e atabaque e levaro SoSebastio com quatro besteiros.

    Item, os ataqueiros e aoeiros com os ditos pendes e castelospintados e sua bandeira e atabaques, todos em pessoa e levaro SoMiguel o anjo com sua balana e os demos.

    Item, os oleiros doutra banda e com eles os telheiros e tijoleiroscom seus pendes e castelos pintados e atabaque e sua bandeira elevaro Santa Clara com suas duas companheiras.

    Item, os carpinteiros e pedreiros e taipadores, calcadores ecaieiros, cavouqueiros, molhinheiros, serradores e assim todos os

    que corregem casas, com seus castelos e pendes pintados mui beme sua bandeira e atabaque tantos de uma banda como da outra etraro Santa Catarina mui bem arrayada.

    Item, os tosadores e cerieiros aro pombinha na praa e levarosua bandeira e atabaque e levaro suas tochas com seus castelos deestanho acesas.

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    Item, os ourives e pichaleiros estes levaro suas tochas acesas esua bandeira de sua divisa e atabaques e castelos de estanho comosempre costumaram e levaro So Joo.

    Item, os trapeiros que so os mercadores de pano de linho eos marceiros todos com suas tochas acesas e castelos de estanho elevaro uma bandeira e atabaque e dois cavalinhos uscos.

    Item, mercadores de pano de cor todos plo modo suso escritocom suas tochas.

    Item os escrives Dante os vigrios com suas tochas acesasItem, o escrivo das armas com sua tochaItem, os boticrios com suas tochasItem os tabelies das notas com suas tochas todos de uma bandaItem, os tabelies do judicial todos doutra banda com suas tochas

    acesasItem, os procuradores do nmero todos com suas tochas e seus

    inquiridoresItem o escrivo dos ros e de almotaaria com suas tochas e

    assim vem os mais.Item, os escrives del rei nosso Senhor todos com suas tochas,

    convem a saber, o escrivo dos contos e do almoxariado e o escrivo

    dos pretos e dos vinhos.Atrs de todos, ante o Corpo de Deus viro os dois juzes do ano

    passado com suas tochas dandas, e se a no houver juzes viro doisvereadores do ano passado.

    No meio desta procisso atrs de So Joo vir a bandeira dacidade e a bandeira del rei nosso Senhor, as quais trazero a dacidade que vir diante o aleres se o a houver, e no o havendo atrazem na os almotacs que em cada uma das ditas quatro procisses

    or no ms que cair.E a bandeira del rei Nosso Senhor vir atrs de todas, e o caramdos apstolos e e traz-las-o em dois cavalos com os paramentos earnezes que Sua Alteza h-de dar.

    E logo iro os apstolosE os evangelistasE os anjosEnto a procisso

    E manda el rei nosso Senhor que este regimento se cumpra emtodalas quatro procisses: na do dia do Corpo de Deus que se sempreaz a quinta eira do dia da rindade, e na procisso do milagre dacera em que tambm anda o Corpo de Deus vai pela selaria praa ena procisso real que se az vspera de Nossa Senhora de Agosto pelo

    vencimento da batalha real que tambm vo pela selaria praa.

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    E assim na procisso que Sua Alteza manda azer aos dois dias deMaro pelo vencimento, quando venceu el rei dom Fernando nabatalha que houve entre oro e amora assim oi ordenado.

    (seguem seis regras ilegveis) e assim todos os outros escrivestabelies e a todos os aqui escritos que todos vo per pessoas s ditasquatro procisses como lhe aqui ordenado e mandado, e qualquerque no or a cada uma das ditas procisses que pague de penaduzentos reais para a Cmara e obras da cidade, e o vereador que nofzer vir todos os que a seu mester pertencem, assim as bandeiras,invenes ou tochas como a cada um ordenado se os logo no derem rol na Cmara para lhe serem executadas as ditas penas, que ele

    vereador ou mordomo pague quinhentos reais da cadeia porquantoel rei nosso Senhor quer per servio de Deus que nenhuma pessoacrist de qualquer estado e condio que seja se no escuse nem sejaescuso.

    Eu Pero Estao escrivo da cmara desta mui nobre e sempre lealcidade de vora, escrivo em todalas escrituras que a ela pertencempor el rei nosso Senhor fz este regimento e o tresladei pelo que veio

    de Santarm que el rei nosso Senhor l mandou azer pondo aqui oque cidade pertence por mandado do juiz e vereadores.(Arquivo municipal eborense. Livro pequeno de pergaminho, .

    81, s/data)

    PROCISSO COMEMORATIVADA BATALHA DE TORO10

    Juizes, vereadores, procuradores e homens bons, Ns el reivos enviamos muito saudar. Como quer que por todas as coisasque de Nosso Senhor recebemos lhe devemos de dar graas comolembrados de seus benecios, e especialmente os reis e prncipes odevem azer pelas vitrias e vencimentos que de sua mo recebem,o que os reis destes reinos sempre muito pereitamente fzeram eguardaram desde o primeiro santo e glorioso rei dom Aonso atnossos dias, segundo que por procisses e solenidades ordenadas

    que se em cada um ano azem em alguns lugares destes reinos atodos notrio. E querendo ns acerca disto no menos ser gratoe reconhecer a Nosso Senhor o que em nossos dias e presena nosez de merc em a batalha que houvemos em os reinos de Castela

    10 - ranscrio de Gabriel PEREIRA. Documentos Histricos da Cidade de vora. Lisboa: I.N-CM, 1998, IIparte, pp. 156-161.

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    entre ouro e Samora, porem ordenamos e mandamos que daquiem diante em louvor de Nosso Senhor e da bem aventurada virgemMaria sua madre e de Sam Jorge e de Sam Cristvo que o dito dia

    trazamos por nossos padroeiros e nome, em cada um ano aos doisdias de Maro em que oi a dita batalha e vitria, a clerezia e todosos dessa cidade aais solene procisso saindo da s e indo per oslugares principais com toda a solenidade, cerimnia, ocios e jogosassim e to cumpridamente como costumais de azer em dia de corpode Deus, tirando solamente de no ir a arca onde vai o sacramento.E se em essa cidade houver igreja do precioso mrtir e cavaleirosam Jorge e sam Cristvo a procisso v a ela onde se diga missa epregao em lembrana da dita vitria, segundo o teor e orma dessecaderno que vos com esta enviamos. E onde no houver casa do ditosam Jorge e sam Cristvo, v a dita procisso e pregue-se onde secostuma ir e pregar per o dito dia de Corpo de Deus. E esta nossacarta vos mandamos que registeis no livro da cmara dessa cidadepra sempre se haver de azer o que dito , em relembrana da causaper que a dita solenidade se az.

    Escrita em Viana da par de Alvito a XII dias de Maro. lvaroBarroso a ez de 1482. Rey.

    Por ElRey aos Juizes, vereadores, procurador e homens bons dasua cidade de vora

    (Arquivo Municipal Eborense, Liv. 2 Orig., 94. Liv. 1. Deperg., . 19v)

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    GLOSSRIO

    aaoeiros (saoeiro) o que az ou vende saes (meia perna de pelepara aquecer)

    adargueiros abricante de adargas (escudo de couro, oval)almotaaria regulao e fxao dos preosalmoxariado rea de jurisdio do almoxarie (cobrador de rendase impostos reais)atabaque instrumento musical. Espcie de tamborataqueiros o que az atacas (cordo de couro para vesturio)bainheiros abricante de bainhas de espadasbesteiros soldado que usa besta (arma que disparava pelouros ou setas)caieiros homens que tm por ocio azer cal ou caiar

    calcadores o que coloca e calca (paredes ou cho)cardadores o que carda a lcarniceiros vendedores de carne rescacavouqueiros (cabouqueiros) os que abrem as undaes de umaconstruocerieiros os que trabalham a ceracorreeiros trabalhador do couro que az ou vende sobretudocorreias ou arreioscortidores (curtidor) preparadores de courosenxerqueiros vendedor de carne secaestieiros preparadores ou vendedores de peas de madeira ou de erroLatoeiros (unileiro) - trabalhador de lata ou latomancebas do partido - prostitutasmarceiros Vendedor de gneros alimentcios e quinquilhariasMolhinheiros os que molinham (misturam)odreiros abricante ou vendedor de odres (saco de couro para lquidos)pelote veste sem mangas, com grandes abas para usar debaixo da capa

    pescadeiras peixeiraspichaleiros trabalhador ou vendedor de estanhoregateiras vendedora de aves, ruta ou peixe, no mercado ou ambulanteseleiros abricante ou vendedor de selas para animaisserpe espcie de espada ou aca grande, em orma arredondada na pontaserradores serra madeira ou palha para animaissirgueiros (serigueiro) o que trabalha a seda ou az peas de seda.Em Lisboa chamavam-se assim os vendedores de chapus.Surradores trabalhar e prepara as peles

    abardo capote com capelo e mangastaipadores o que az paredes de tabique (barro ou areia e cal)telheiros abricante ou vendedor de telhatijoleiros abricante ou vendedor de tijolostosadores os que tosquiam as ovelhas (tirar a l)trapeiros - mercadores de pano de linho

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    2 RELIGIO DE PROXIMIDADEEM PORTUGAL EM FINAIS DA

    IDADE MDIA: ESTABELECIMENTOSRELIGIOSOS SECULARES LOCAIS ECONTROLO SOCIAL.

    Manuela Santos Silva*

    Embora o perodo seja ainda mal conhecido pela natureza e pelararidade das ontes sobreviventes at aos nossos dias, possuem-se ind-

    cios sufcientes para se poder caracterizar o modo como se processoua expanso territorial por parte do reino de Leo, em direco a sul, nasegunda metade do sculo IX. Os grupos - mais ou menos numerosos de povoadores annimos, integrar-se-iam em empresas organizadaspor magnates de grande importncia social no seu reino de origem ouem campanhas mais modestas de mosteiros em busca de novas locali-zaes ou de desdobramento das originais. Alguns, mais aoitos, talvezorganizassem por si prprios a sua presria, esperando poder resistirperante os seus companheiros mais ortes que vinham encarregadospelo rei de dirigir a diviso patrimonial e a distribuio de tareas1.

    IGREJAS E MOSTEIROS NO PROCESSO DEPOVOAMENTO DO TERRITRIO PORTUGUS

    Apesar de se dar prioridade ocupao ou reconstruo de cas-telos, a orma predominante dos novos povoados era muito bsica,

    visando sobretudo a obteno de terrenos agrcolas e/ou para pas-

    torcia, havendo porm a tendncia para a instalao das casas demorada em pequenos aglomerados de tipo aldeia2.

    Parece ter-se tornado desde logo indispensvel, quase como seosse necessrio para legalizar o povoado, construir uma pequenaigreja, perto ou no seio da aldeia, para a qual se nomeava simples-mente um dos povoadores que na terminologia portuguesa se tor-naram conhecidos por herdadores que se encarregaria de ministraros ocios religiosos mais bsicos3. Outra seria a preparao daqueles

    * Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Academia Portuguesa de Histria.1 - Salvador de MOX. Repoblacin y Sociedad en la Espaa Cristiana Medieval. Rialp: Madrid, 1979, pp. 126-196.2 - IDEM. Ibidem, pp. 53-54; J. A. GARCIA DE CORZAR y otros. Organizacin social del espacio en la Es-

    paa medieval. La Corona de Castilla en los Siglos VIII a XV. Barcelona: Ariel, 1985, pp. 60-71.3 - Salvador de MOX. Repoblacin y Sociedad en la Espaa Cristiana Medieval, p.54; Jos MAOSO. Identi-

    cao de um Pas. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096 - 1325). 2 Edio. Editorial Estampa: Lisboa, 1986,Vol. I Oposio, pp.190-192; 234-235.

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    que, por vezes, em pequenssimos mosteiros cumpririam as mesmastareas ao servio da comunidade em ormao. Uns e outros, po-rm, em esprito de grande liberdade, como um pouco por todo o

    lado sucedia antes do perodo reormador de Gregrio VII4

    .Como acilmente se imaginar, uns e outros eram edicios degrande simplicidade, quer na estrutura que apresentavam querquanto aos materiais empregues no sendo cil, de acto, que per-durassem no tempo. Podemos pelos exemplos esparsos remanescen-tes de pocas prximas Dume e So Frutuoso de Montlios emBraga, por exemplo, ou a igreja de mosteiro de So Gio imaginara singeleza das construes5. Mas, de qualquer modo, a Igreja ganha-

    va assim na paisagem humanizada do uturo territrio de Portugalum papel de grande importncia, como se conclui da documentaoiconogrfca ao longo de toda a Idade Mdia (c. Figuras 1 e 2)6.

    Em lugares especiais surgiam pequenos santurios, onde se reu-niam os fis em dias de esta, tornando-se por vezes oratrios depergrinao7. Mesmo eremitrios undados em locais de algum iso-

    lamento lograram, em alguns casos, transormar-se mais tarde emigrejas paroquiais, destinadas ao servio das populaes locais.

    medida que o ncleo populacional crescia, independentizavam-se as comunidades da alcova constituda pelos mais poderosos e a da almedina ou arrabalde, ostentando cada uma a sua igreja8.

    4 - Escolhemos entre outros os artigos de Jos MAOSO, A Cultura Monstica em Portugal (875-1200) eO Monaquismo Ibrico e Cluny. In: IDEM. Religio e Cultura na Idade Mdia Portuguesa. Lisboa: ImprensaNacional - Casa da Moeda, 1982, pp. 358-363; 57-58, respectivamente.

    5 - Vejam-se fguras anexas 1, 2, 3.6 - M. Justino MACIEL. A Arte da Antiguidade ardia (sculos III a VIII, ano de 711). In: Paulo PEREIRA(ed). Histria da Arte Portuguesa. Lisboa: Crculo de Leitores, 1995-1997, vol. 1 Da Pr-Histria ao Islo,pp.127;132, respectivamente.7 - Como lembrava C. A. Ferreira de ALMEIDA. Religiosidade popular e ermidas. Studium Generale. EstudosContemporneos (Porto: Centro de Estudos Humansticos), 6, 1984, pp.78-82.8 - Como ns pudemos mostrar atravs dos nossos estudos sobre a vila de bidos, sobretudo em Manuela SantosSILVA. bidos Medieval. Estruturas Urbanas e Administrao Concelhia. Cascais: Patrimonia, 1997, pp. 35-37.

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    Muitos mosteiros cumpriam unes sociais do mesmo tipo dasdas igrejas paroquiais. No sculo XI, por exemplo, eram muito nu-merosos os mosteiros amiliares patrocinados pela nobreza de in-

    anes. A maioria no tinha mais de 3 a 10 monges e um nmeroincerto de devotae. O sustento era-lhes assegurado por dotaes embens materiais eitas pelos undadores. Em fnais do sculo XI qua-se todos tinham trocado as suas regras originais pela de So Bento,adotando os costumes cluniacenses9. (c.Figura 3) 10.

    Mas, no sculo seguinte, tornou-se mais complicada a manuten-

    o de instituies com estas caractersticas, tendo muitas ameaa-do alir. As amlias nobres, que os haviam undado e que os man-tinham, serviam-se agora dos seus recursos quando elas prpriasdesejavam aumentar os meios econmicos com que contemplar osseus membros. Em poca de mudana nos hbitos sucessrios, mui-tos oram encaminhados para Ordens Religiosas Militares ou paraMosteiros dedicados regra de So Bernardo de Claraval implanta-da em Cister11.

    E nas maiores cidades - como Coimbra e Lisboa instala-se umanova ordem de cnegos, os Regrantes de Santo Agostinho, que pro-pe uma nova flosofa de pastoral urbana vivida, porm, sob umaregra em vida comunitria que, em parte, vai inuenciar a estrutu-rao da vivncia dos cnegos catedralcios e dos benefciados demuitas igrejas paroquiais, sobretudo em meio citadino. Inseriam--se assim, de orma pereita, na estrutura administrativa eclesisticaofcial, compreendendo-se a estranheza, mas tambm o entusias-

    9 - Jos MAOSO. Ricos-Homens, inanes e Cavaleiros. A nobreza med