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LIVRO_Desenho e Paisagem Urbana_Landim

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  • O estudo da paisagem urbana no Brasil teve, a partir do final do sculo XX, sobretudo na sua lti-ma dcada, uma evoluo significativa, especialmente no tocante compreenso da estrutura morfol-gico-paisagstica dos grandes centros, como Rio de Janeiro, So Paulo, Curitiba e Braslia.

    A compreenso da paisagem da cidade de por-te mdio, contudo, carece de parmetros de avalia-o, na medida em que os estudos existentes ainda so poucos em relao demanda e, em geral, no saem das estantes das bibliotecas universitrias e centros de pesquisa, a maioria sob a forma de te-ses e relatrios de difcil acesso e consulta.

    O trabalho de Paula da Cruz Landim, produ-to de uma pesquisa de doutorado, nos traz uma compreenso particular da formatao morfol-gica padro da cidade mdia do interior paulista, com base em estudo comparativo de quatro ci-dades - Bauru, Piracicaba, Rio Claro e So Carlos -, utilizadas como referncias no estabelecimento de padres genricos de anlise para tal tipo de aglo-merado urbano.

    So identificadas as principais configuraes pai-sagsticas existentes, os tecidos e marcos urbanos, como bairros-jardim, praa da matriz, centro, bairros verticais e outros mais, que se constituem em figu-ras de referncia, identificao e compreenso no s das cidades em estudo, mas tambm de um sem-nmero de aglomerados urbanos pelo pas afora.

    A leitura do texto permite ao leitor, por com-parao imediata, a identificao das caractersti-cas paisagsticas das cidades brasileiras de porte mdio, tanto no interior quanto no litoral, nas quais processos sociais similares levam, com variaes e em virtude das caractersticas de suporte fsico e desenvolvimento urbano local, constituio de configuraes paisagsticas urbanas padro, em re-lao s quais este trabalho facilitar a compreen-so e o estudo.

  • DESENHO DE PAISAGEM URBANA

  • FUNDAO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador

    Jos Carlos Souza Trindade

    Diretor-Presidente Jos Castilho Marques Neto

    Editor Executivo Jzio Hernani Bomfim Gutierre

    Assessor Editorial Joo Lus C. T. Ceccantini

    Conselho Editorial Acadmico Alberto Ikeda

    Alfredo Pereira Junior Antonio Carlos Carrera de Souza

    Elizabeth Berwerth Stucchi Kester Carrara

    Lourdes A. M. dos Santos Pinto Maria Helosa Martins Dias Paulo Jos Brando Santilli

    Ruben Aldrovandi Tania Regina de Luca

    Editora Assistente Denise Katchuian Dognini

  • PAULA DA CRUZ LANDIM

    DESENHO DE PAISAGEM URBANA

    AS CIDADES DO INTERIOR PAULISTA

  • 2 0 0 3 Editora UNESP

    Direitos de publicao reservados :

    Fundao Editora da UNESP (FEU) Praa da S, 108

    01001-900-So Pau lo -SP Tel.: (0xx11)3242-7171 Fax: (0xx11)3242-7172

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    CIP - Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    L246d

    Landim, Paula da Cruz Desenho de paisagem urbana: as cidades do interior paulista /

    Paula da Cruz Landim. - So Paulo: Editora UNESP, 2004

    Inclui bibliografia ISBN 85-7139-550-0

    1. Cidades e vilas - So Paulo (Estado) - Histria. 2. Crescimento urbano - So Paulo (Estado). 3. Cidades e vilas -So Paulo (Estado) - Condies sociais. 4. Cidades e vilas -So Paulo (Estado) - Condies econmicas. I. Titulo.

    04-2301. CDD 307.76098162 CDU 316.334.56(815.62)

    Este livro publicado pelo projeto Edio de Textos de Docentes e Ps-Graduados da UNESP- Pr-Reitoria de Ps-Graduao e Pesquisa

    da UNESP (PROPP) / Fundao Editora da UNESP (FEU)

    Editora afiliada:

  • A minha irm Fernanda, pelas similaridades e pelas diferenas,

    mas, de qualquer forma, uma unidade.

  • AGRADECIMENTOS

    Este livro resultado da pesquisa desenvolvida para a tese de doutorado, apresentada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo, em maro de 2001, e s foi possvel sua realizao graas ao apoio inestimvel de pessoas e instituies.

    Aos que me apoiaram e ajudaram a chegar ao resultado final, entre elas meus pais, meus filhos, meus amigos, meus alunos, e particular-mente meu orientador, Prof. Dr. Silvio Soares Macedo. A Capes, pela bolsa de doutorado; e Fundunesp, pelo auxlio-pesquisa. A todos, o meu reconhecimento e o meu muito obrigada.

  • SUMRIO

    Prefcio 11

    Introduo 15

    1 A cidade e sua paisagem: determinantes estruturais locais e globais 25

    Mutao e identidade urbana 42

    cones e smbolos 46 Qualidade visual 49

    2 Configurao morfolgica: elementos caractersticos da paisagem da cidade mdia padro do interior paulista 59

    A paisagem da ferrovia: primeiros tempos e consolidao 64

    A paisagem da rodovia 68

    A paisagem contempornea 74

    Estudo de caso: Bauru, Piracicaba, Rio Claro e So Carlos 77

    Referncias bibliogrficas 127

  • PREFCIO

    Que cidade essa? Ser a cidade do Tudo? A cidade em que todas as partes se conjugam, as escolhas se contrabalanam, onde se enche o vazio que existe sempre entre o que se espera da vida e aquilo que nos toca? (talo Calvino, O castelo dos destinos cruzados)

    Um livro a mais sobre a cidade, e em especial sobre cidades do interior paulista, sempre uma alegria para os olhos e um deleite para a leitura. Pois, leitura de uma obra destinada a uma gama va-riada de leitores, no se pode permanecer alheio ou manter posies neutras em relao cidade e sua paisagem.

    Desde as primeiras palavras deste livro, concorda-se com suas "determinantes estruturais locais e globais": ampliar a compreen-so dos problemas das cidades de porte mdio.

    Esta obra como abrir uma janela e debruar-se sobre uma pai-sagem procurando seus segredos, anseios e expectativas; procuran-do desvendar os seus futuros, os seus rumos, o core de suas cidades. E por que no lanar mo das palavras do mago Calvino, em sua clssica As cidades invisveis, pgina 44, quando assim se expressa:

  • As cidades, como os sonhos, so construdos por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa.

    O que assegura o nosso interesse nesta leitura a justaposio, o entrelaamento dessa mostra de cidades semelhantes em seus as-pectos configurativos, histricos e geogrficos, um liame tnue, que s se revelam no estabelecimento da continuidade e na identida-de prpria s vrias urbes.

    A rapidez e velocidade com que o trem de ferro imprimiu as pai-sagens paulistas, derrubando rvores, desviando rios, construindo pontes, cortando barrancos, foi o meio de transporte marco do scu-lo XIX e incio do XX. A estrada de ferro foi uma construtora de ci-dades, como bem relata a autora em seus captulos. Antes da ferro-via, o emblema da velocidade era o cavalo; depois dela, a rodovia.

    A estrada de rodagem tornou visveis as cidades, adensando a rede urbana em um rosrio de lugares. Umas maiores, outras menores, mas todas desempenhando um papel de destaque. Umas se subordi-nando a outras, realando a importncia da posio intermediria das cidades de porte mdio no territrio do Estado de So Paulo.

    As quatro cidades escolhidas so exemplos felizes, especialmen-te pelas suas localizaes geogrficas. Pois, todas elas, de incio, fo-ram fruto, direta ou indiretamente, da ferrovia. E depois, com o de-senvolvimento frentico do interior paulista, foram uma verdadeira exploso econmica, comandada pela rodovia. Esta cruzando todas as regies, ligando-as capital, aos portos, aos outros Estados do mundo, criando paisagens citadinas, com configuraes baseadas na expanso e no adensamento da mancha urbana.

    Ao chegar a este ponto, a questo qual no se pode esquivar diz respeito paisagem contempornea, muito bem descrita mediante a estrutura espacial, quer pela malha urbana, quer pelo tecido urbano e pelos referenciais urbanos. As cidades de Bauru, Piracicaba, Rio Cla-ro e So Carlos se caracterizam como uma rea central, organizada com edifcios altos e algumas casas antigas remanescentes, em geral

  • alinhados ao redor da praa da matriz. Depois, a expanso se estendeu por terrenos antes vazios, ligando bairros, ampliando a mancha urba-na, fazendo surgir arranha-cus, condomnios abertos ou fechados, constituindo-se em cidades modernas, com belas avenidas arboriza-das, escolas e paisagens marcantes. Todas elas com inmeras dimen-ses, podendo-se dar destaque a duas: a visvel e tangvel e a oculta, misteriosa e sagrada, que est espera de ser desvendada.

    Possam aqueles que percorrerem estas pginas estabelecer um dilogo com estas e outras cidades. Possam, tambm:

    Contemplar essas paisagens essenciais, Kuhlai refletia sobre a ordem invisvel que governava a cidade, sobre as regras a que responderam o seu surgir e formar-se e prosperar e adaptar-se s estaes e definhar e cair em decadncia. (Calvino, 1995, p.112)

    No se espera e no se deseja, contudo, que essas cidades entrem em decadncia, mas que continuem florescendo como este livro, renovan-do-se e trazendo novas abordagens para enriquecer nossas leituras.

    Lvia de Oliveira

  • INTRODUO

    A homogeneidade da paisagem urbana das cidades de porte m-dio do interior do Estado de So Paulo pode ser compreendida com base em dois componentes: seus determinantes locais, fundamenta-dos nas origens semelhantes das cidades, e as atuais aspiraes da populao por padres das grandes cidades, considerados represen-tantes de um status civilizado e moderno.

    As cidades de Bauru, Ja, So Carlos, localizadas1 no Planalto Oci-dental, e Limeira, Piracicaba e So Carlos, na Depresso Perifrica, so o objeto deste estudo. Nessas cidades, observou-se a maneira como suas paisagens se formalizam e se organizam. Mediante a anlise de suas configuraes, identificaram-se agentes homogeneizadores e veri-ficou-se como a paisagem se estruturou a partir desses elementos.

    A abordagem morfolgica, e as questes pertinentes urbaniza-o e aos aspectos socioeconmicos aparecem como subsdios. A idia principal a discusso da cidade do cotidiano, o lado da paisa-gem urbana que totalmente desprovido de glamour, onde a similari-dade morfolgica na paisagem da cidade de porte mdio do interior

    1 IPT. Mapa Geomorfolgico do Estado de So Paulo, 1981.

  • evidente, especialmente por tratar-se de cidades com origem e forma-o similar e onde, paralelamente, o stio natural no apresenta gran-des particularidades.

    Os elementos ditos excepcionais de suas paisagens so os mes-mos que identificam morfologicamente trechos importantes das grandes cidades, verdadeiros cones funcionais e paisagsticos, e que, pela sua adequao ao perfil sociofuncional das cidades em questo, reproduzem-se com os mesmos critrios locais e formais por todo o interior paulista.

    Podem ser considerados como tais os shopping centers, os centros culturais, as rodovirias e at mesmo as reas verticalizadas, nessas ur-bes, restritas a trechos-padro, como reas centrais e vizinhanas. Esses marcos se contrapem homogeneidade do casario, reforando formalmente os padres de similaridade. A reproduo de modelos de uso e organizao do espao, est associado um conceito cultural de va-lor (esttico e de uso do espao urbano).

    A influncia social, cultural e econmica reflete-se na organiza-o do espao urbano, e, em razo desses reflexos dominantes, reproduzem-se, at com certo sucesso, os elementos presentes nas paisagens dos centros com maior influncia. Assim, as imagens formais das grandes cidades so claramente representadas de um modo especfico na paisagem urbana das cidades mdias. Os refle-xos formais e funcionais das paisagens dos grandes centros proje-tam-se sobre a paisagem das cidades do interior, gerando um valor relacionado aos seus aspectos formais e visuais, cujo processo de influncia claramente representado na paisagem urbana das cida-des interioranas paulistas. Essas cidades incorporam valores que sintetizam padres qualitativos da cidade brasileira, e nelas elemen-tos e estruturas dos grandes centros esto presentes, ainda que orga-nizados de uma maneira mais simples e com um porte menor.

    A relativa facilidade encontrada na substituio de elementos originais de pocas passadas se deve especialmente inexistncia de caractersticas marcantes desses elementos na paisagem, tornado-os facilmente descartveis e substituveis por outras estruturas advin-das dos centros de dominao sociocultural e, portanto, pelas novas

  • formas de representao dos valores socioeconmicos vigentes em outros centros maiores, tanto nacionais como internacionais; pois, de acordo com Santos (1999, p.78):

    A cada novo momento, impe-se captar o que mais caracterstico do novo sistema de objetos e do novo sistema de aes. Os conjuntos formados por objetos novos e aes novas tendem a ser mais produtivos e constituem, num dado lugar, situaes hegemnicas. Os novos siste-mas de objetos pem-se disposio das foras sociais mais poderosas, quando no so deliberadamente produzidos para o seu exerccio.

    A cidade de So Paulo, um dos grandes referenciais e geradora de padres urbansticos brasileiros, a sntese de um processo socioe-conmico geral do pas, que se representa formalmente em escalas diversas, nos grandes centros e nas cidades de porte mdio. No caso das cidades do interior do Estado de So Paulo, o processo de influncia da paisagem urbana se estrutura a partir da paisagem que se configura na cidade de So Paulo e em cidades do porte de Campinas e/ou Ribeiro Preto, as quais, por sua vez, se referen-ciam. Por exemplo: os novos padres de uso do solo, como os condo-mnios fechados e a verticalizao; o tratamento das reas pblicas de edificao, como o padro de arborizao e jardinagem urbana; as tipologias arquitetnicas; o desenho de pisos e calamentos; e ainda por meio da arquitetura smbolo de edifcios, como redes de lojas e instituies financeiras.

    Esses novos elementos constituem-se em representaes de uma influncia cultural que indica "modernidades formais", uma repre-sentao de estruturas do poder; assim sendo, as manifestaes lo-cais tendem a tom-las como modelo, realimentando o ciclo da ho-mogeneizao da paisagem por meio de um processo contnuo de importao de formas e de reproduo mimtica de cones espaciais e arquitetnicos exgenos.

  • Esses elementos esto presentes no repertrio formal criado a partir de viagens feitas aos centros de onde emanam esses valores, dos manuais e revistas de construo civil, e ainda dos padres determinados pelo mercado imobilirio, como ilustram as Figu-ras 1A e lB.

    Figura 1A - Bairro residencial de classe mdia alta, em Florianpolis, SC. Os padres arquitetnicos aqui presentes fornecem o repertrio formal, e, por sua vez, tambm so cpias de elementos encontrados em outros centros, num processo de retroalimen-tao.

    Figura 1B- Ilustrao de propaganda imobiliria. Notar a similaridade dos padres for-necidos pelo mercado imobilirio.

    Essa homogeneizao formal urbana por si s no conduz a si-tuaes de degradao ou de baixa qualidade de vida, pois "a forma fsica no a varivel fundamental cuja manipulao dever provo-car a mudana. O nosso cenrio fsico um resultado direto do gne-ro de sociedade em que vivemos" (Lynch, 1999, p.101). A questo est na extrema centralizao e padronizao de solues urbansti-cas e arquitetnicas assumidas, tanto pelo Poder Pblico quanto pela iniciativa privada, que simplesmente adotam e sobrepem aos mais diversos tipos de paisagens e ambientes padres urbansticos e arquitetnicos arquetipados, eximindo-se de propor outras solu-es mais prprias s realidades locais e correndo o risco de incorrer nos mesmos erros praticados nos grandes centros, nos quais a crise paisagstica-ambiental um fato. Adotam-se, por exemplo, padres urbansticos de zoneamento para reas verticalizadas menos rgidos

  • que os da cidade de So Paulo, que conta com restries at avana-das, mas ainda insuficientes.

    O espao urbano , dessa forma, construdo a partir de generali-zaes tcnicas que desrespeitam e desconsideram outras possveis solues mais adequadas s caractersticas locais. A qualidade urba-na se perde com legislaes malfeitas, com a importao de cones e com o fato de a perda de oportunidade de identidade prpria no ser uma questo em discusso.

    Partindo do pressuposto de que a qualidade formal a unio en-tre os cidados e sua cidade, mediante a criao de mapas mentais, h que fomentar a elaborao de solues urbansticas que atribuam uma identidade visual a essas cidades, reforando e/ou construindo elementos e espaos que fortaleam a legibilidade do espao urbano, pois "uma boa correspondncia funcional normalmente significa uma paisagem mais congruente e freqentemente (embora nem sempre) uma paisagem mais transparente, mais significativa e mais identificvel" (ibidem, p.141-4).

    Constata-se, porm, um balizamento formal urbano segundo padres altamente genricos, e mais simplificados, que no repre-sentam de fato as condies urbansticas viveis de implementao em cada ncleo. O que ocorre uma reproduo dos espaos da clas-se dominante, ainda que em dimenses reduzidas, reforando os ar-qutipos sociais e os modelos de dominao.

    Na tentativa de alcanar um grau de satisfao pertencente s elites, at como forma de aspirao social, j que no pertencem classe dominante, as classes mdias, em especial, que nessas cidades constituem o segmento mais importante da populao urbana, co-piam ao menos seu repertrio formal.

    Paralelamente, a adoo de planos e normas urbansticas que fortalecem e ratificam o surgimento de formas urbanas no necess-rias, como a j citada verticalizao, fortalece o processo de cpia, que gerenciado em grande parte pelo mercado imobilirio.

    Ao copiar, porm, a forma sem seu contexto, surgem solues inadequadas em relao morfologia do relevo e ao clima local, e

  • ainda a criao de uma esttica desvinculada do comportamento lo-cal. Essa prtica, ao mesmo tempo que no possibilita atingir o ideal de aspirao social, impede a experimentao de solues mais ade-quadas a cada caso.

    O paradigma projetual urbano adotado um arqutipo da rua e da casa caractersticas do bairro-jardim paulistano, arborizado, com edi-ficaes isoladas no lote. Esse padro simplificado adotado sem re-flexo sobre as particularidades de uso, clima e forma das diferentes reas urbanas, e totalmente respaldado pelas legislaes municipais.

    Paralelamente, observa-se a constituio de um casario comum, que abriga as classes mdia e baixa, reproduzindo, em miniatura, o paradigma elitista, de forma mais acessvel a essas classes sociais.

    Na impossibilidade de adquirir um lote que permita implanta-o semelhante elite, a classe mdia permite-se adaptaes sobre a malha urbana convencional, dando origem a construes com recuo frontal e ao fundo.

    A legislao que define os padres de ocupao urbana, os quais por sua vez definem a configurao fsica da paisagem, versa basica-mente sobre o espao fsico-territorial, alienando-se dos demais componentes da problemtica urbana. Dessa forma, as cidades ho-mogeneizam-se, em razo de um discurso urbanstico baixo, gene-ralista e que colabora para a pasteurizao arquitetnica.

    Assim, ao balizar-se pelos parmetros das elites, a obrigatorie-dade de padres para a cidade como um todo, mesmo onde essas so-lues no tenham as mnimas condies reais de ocorrer, resulta numa m qualidade de vida urbana, que ir se refletir na formao da paisagem, haja visto que a paisagem reflete uma realidade deter-minada por parmetros vrios.

    Desde os tempos do Brasil Colnia, a classe dominante dita as re-gras na produo do espao urbano. Antes da Independncia, a nor-matizao vinha de Portugal, como forma de controlar a vida na col-nia e reforar a dependncia desta ltima em relao metrpole. No sculo XIX, a modernizao da cidade feita por e para as elites, e se estende at os dias de hoje. A legislao sempre refletiu os interesses da classe dominante, sendo criada para e por ela, e direcionou a confi-gurao urbana e, conseqentemente, a formao da paisagem.

  • A industr ial izao da Europa e dos Estados Unidos , na segun-da metade do sculo XIX, significou u m a grande t ransformao nas cidades, fazendo que elas assumissem a forma que ainda hoje se desenvolve, ou seja, " u m a pequena classe construiu uma nova paisagem para permit i r uma produo mais rentvel e u m a con-centrao acumulada de capi tal" , e onde:

    sempre que possvel, o trabalho e a residncia foram separados por tipo e por classe - em certa medida para melhorar a eficincia, mas especial-mente para controlar a ameaa da violncia e da doena, e para afastar dos olhares da classe superior a mo-de-obra laboriosa que sustentava os seus rendimentos, (ibidem, p.27-30)

    Ou ainda, segundo Benevolo( 1991, p.22);

    A cidade burguesa que se desenvolve depois da Revoluo Indus-trial , com certeza, diferente de todo modelo anterior, antes de tudo por seus elementos mensurveis: as quantidades em jogo (nmero de habitantes, nmero de casas, quilmetros de estradas, nmero e varie-dade dos servios e das aparelhagens) e a velocidade das transforma-es; as diversidades quantitativas produzem, somando-se, uma diver-sidade qualitativa, isto , tornam impraticveis os antigos instrumentos de controle, que esto baseados justamente numa limitao conhecida das quantidades e das velocidades, e propiciam o surgimento de novas oportunidades e de novos riscos que s podem ser comparados com no-vos instrumentos de projeo e de gesto: voltam a propor, por conse-guinte, de maneira integral e pela primeira vez depois da Idade Mdia, o problema do planejamento urbano.

    Segundo Macedo (1998), esse controle acentua-se com as altera-es sobre a posse da terra na formao da moderna nao brasileira e com as respectivas formas de controle exercidas pelo Estado, re-presentadas especialmente pelo poder municipal como forma de or-denar as formas de ocupao urbana.

    De acordo com Villaa (1998, p.12), "a estrutura territorial so-cialmente produzida e ao mesmo tempo reage sobre o social"; ou ainda, segundo Reis Filho (1994, p.9), "nas obras e nas formas de

  • sua produo e uso, possvel compreender as condies de vida e as etapas de evoluo das cidades".

    O espao construdo a partir de generalizaes tcnicas impede e/ou desconsidera outras solues mais adequadas s caractersticas locais.

    Como contraposio paisagem homognea, o desenvolvimento de valores estticos a partir de condies ambientais e paisagsticas lo-cais pode servir como ferramenta para projetos urbansticos/paisa-gsticos diferenciados e caractersticos para cada cidade, obtendo, dessa forma, paisagens urbanas particularizadas, respeitando os refe-renciais e as especificidades prprias, podendo at contribuir para uma melhor qualidade ambiental das cidades.

    A homogeneidade dos padres morfolgicos est vinculada a ciclos de desenvolvimento semelhantes. A expanso da produo cafeeira no incio do sculo XX, o conseqente incremento da rede ferroviria e posteriormente o ciclo rodovirio imprimiram s cidades um padro de urbanizao bastante similar, pois a ocupao do territrio paulista aconteceu pela criao de cidades de fronteira. Segundo Matos2 (1981, p. 157), indiscutvel a importncia da ferrovia na paisagem urbana das cidades do interior do Estado de So Paulo.

    Aliado a esse fator, convm ressaltar que, ao repetir nas cidades do interior os elementos formais urbansticos ou arquitetnicos das cidades de So Paulo ou do Rio de Janeiro, procurou-se uma sinto-nia com esse mesmo poder e/ou uma identidade com a modernida-de vigente. Segundo Marx (1980, p.36):

    2 "Consideremos que a ferrovia modelou a paisagem urbana. A chegada dos trilhos quase sempre um marco na histria de uma cidade. Com a estrada de ferro, vem todo o aparelhamento que ela exige, especialmente quando a cidade, por algu-ma razo, escolhida para sede de qualquer atividade especial da estrada: arma-zm, oficinas, ponto de cruzamento de trens e local de baldeao. Tudo isso reflete sobre a vida da cidade, pois constitui mercado de trabalho de certa atrao e estimula numerosas atividades correlatas. Casos existem de cidades que chega-ram a depender de sua funo ferroviria. Foi o caso, por exemplo, de Bauru, no seu incio, ou de Rio Claro, que durante muito tempo praticamente viveu em fun-o das oficinas da Paulista, ali localizadas."

  • As peculiaridades destas centenas de aglomeraes novas so excep-cionais entre ns pela regularidade de conjunto em cada uma. Como Mo-coca, Mato, Bauru ou Glia, os espiges ou chapadas acomodam ruas em tabuleiro de xadrez e uma sempre presente praa central, a matriz. Paisagem e referncia usuais no oeste paulista, que conferem feio mar-cante montona, tanto aos estabelecimentos rurais como aos urbanos.

    Paralelamente, em razo de sua pouca idade, nessas e noutras ci-dades - diferentemente da cidade de So Paulo, onde ainda podemos encontrar vestgios de um centro histrico, ainda que conurbado, re-sultante da no-adaptao dos usos atuais quele espao de implanta-o colonial, ou ainda, cidades como o Rio de Janeiro, onde, alm dos mesmos elementos igualmente presentes em So Paulo, a natureza parte integrante e significativa da paisagem urbana , a monotonia reforada pela falta de tais elementos. E ainda, no possvel verificar nessas estruturas urbanas, calcadas no reticulado xadrez e projetadas para a escala do automvel, percursos que despertem a curiosidade para o que acontecer na prxima esquina.

    De fato, essas situaes s ocorrem em contextos particulares, como no caso de condomnios fechados, em alguns projetos de pra-as e parques urbanos, em cidades tursticas e/ou histricas, ou qualquer situao na qual o enfoque esteja no pedestre e no estar em pblico, e no na rea de passagem, como pode ser observado nas Figuras 2A e 2B.

    Figura 2A - guas de Lindia, SP. Figura 2B - Bauru, SP.

  • Essa ocorrncia pode ser tambm observada em assentamentos es-pontneos, como favelas, onde a organizao independe do automvel.

    As paisagens dessas cidades de fato nunca apresentaram caracte-rsticas particulares significativas, e isso tambm no seria possvel se pensarmos na sua origem comum e, principalmente, na sua for-mao urbana similar.

    Em seus agenciamentos originais, o stio natural no propicia pontos especiais passveis de destaque, fato que justifica tambm a falta de identidade prpria nessas cidades. Dessa forma, os elemen-tos originais da paisagem das cidades paulistas so bastante simpli-ficados, podendo-se observar apenas alguma distino quanto or-ganizao das reas pblicas livres de edificaes. Esses elementos originais raramente se apresentam como um elemento configurador da paisagem, no chegando mesmo a constituir imagens plenas de significado para sua populao.

    So muitas cidades com origem ferrovirias, outras feitas direta-mente pela companhia ferroviria, outras tantas construdas ao lon-go de rodovias, e que so resultado de um processo de urbanizao extensa e homognea, tpica da formao urbana do interior do Estado de So Paulo.

    Assim, pode-se afirmar que esses padres morfolgicos forne-cem um modelo de paisagem, ao qual est ligado um modelo de qua-lidade de vida, em que a sociedade passa a valorizar a presena dos elementos globais que esto em sintonia com os centros de poder.

    A cidade pode ser reconhecida somente por intermdio da sua paisagem urbana, e essa paisagem resultante dos elementos eco-nmicos, sociais e culturais que a produziram num determinado perodo e contexto.

    A paisagem da cidade mdia paulista ento homognea como conseqncia dessa forma de ocupao homognea, a qual decor-rente de cdigos de obras e planos diretores padronizados, bem como de ciclos de desenvolvimento semelhantes, o que resulta em padres de urbanizao uniformes, associados a tipologias arquite-tnicas e materiais de acabamento similares.

  • 1 A CIDADE E SUA PAISAGEM:

    DETERMINANTES ESTRUTURAIS LOCAIS E GLOBAIS

    Pode-se afirmar que, dentre os espaos construdos pelo homem, a forma mais importante aquela referente ao ambiente construdo para seu uso mais constante e dirio, o abrigo de seu grupo social, ou seja, as cidades: desde as pequenas vilas, com a paisagem ainda estru-turada em grande parte pelo ambiente rural e exemplificadas pelas Figuras 1.1A e 1.1B, at a grande cidade, onde o homem no seu coti-diano est habituado a um horizonte completamente edificado, ilus-trada nas Figuras 1.1C e 1.1D.

    Como objeto de anlise, a cidade pode ser encarada de variadas for-mas: como um conjunto de imagens, ou como unidade estatstica e es-pacial. So justamente essas diferentes formas de abordar o espao ur-bano que subsidiam as perspectivas para a compreenso e resoluo de muitos dos problemas urbanos contemporneos (Clark, 1985, p.59).

    As formas de aglomerao humana no se limitam simplesmen-te a suas dimenses e funes. Trata-se de espaos que, para o ho-mem, diferem em qualidade e significao. Assim Santos (Figura 1.2A), a mais importante cidade porturia brasileira, apresenta uma urbanizao compatvel com a dinmica do contato constante com o exterior, enquanto bidos, em Portugal (Figuras 1.2B), uma cidade medieval preservada, apresenta caractersticas que poderiam ser

    UsurioRectangle

  • consideradas obsoletas pelos padres atuais, mas que representam uma vivncia passada, assim como Parati, RJ, e Ouro Preto, MG, so representantes brasileiras dessa ltima realidade.

    Figura 1.1 A-Portugal. Figura 1.1B Cajuru, SP.

    Figura 1.1 C- Lisboa, Portugal. Figura 1.1 D- Porto Alegre, RS.

    Figura 1.2A-Santos, SP. Figura 1.2B- bidos, Portugal.

    Embora a cidade tambm possa ser encarada como um horizonte geogrfico, ela no apenas um panorama para ser visto. A cidade constituda basicamente por estruturas morfolgicas, arranjos orga-nizados de volumes e subparcelamentos que expressam formas de acesso e propriedade, situados em um determinado suporte fsico.

  • Os espaos edificados (residncias, edificaes institucionais, co-merciais e industriais, entre outros) e os denominados espaos livres (ruas, avenidas, jardins e praas, entre outros), como ilustram as Fi-guras de 1.3A at 1.3D, constituem essa estrutura morfolgica e vo-lumtrica.

    Figura 1.3A- Barcelos, Portugal. Figura 1.3B- Porto Alegre, RS.

    Figura 1.3C- Rio de Janeiro, RJ. Figura 1.3D- So Vicente, SP.

    Figuras de 1.3A at 1 3D - Exemplos de volumetria construda e seu contraponto com os espaos livres.

    A funo bsica dos espaos livres justamente possibilitar a cir-culao na cidade. Ou seja, em ltima anlise, os espaos livres so um elemento de aglutinao entre os diversos tipos de espaos edifi-cados, permitindo assim tambm a apreenso, a compreenso e o uso da forma urbana. Os espaos cheios so percebidos a partir dos espaos vazios, numa relao dialtica em que um constri o outro. A cidade flui por seus espaos vazios. A cidade o espao da rua, vista como centro e cenrio da vida cotidiana. A rua um ponto de

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  • fixao do homem ao seu universo urbano, ponto de onde vivencia a cidade, seu espao concreto e familiar. E essa rua, apesar de aparen-temente ser um espao bastante ordinrio, dependendo de sua di-menso ou de seu calamento, ou de seu uso, pode variar enorme-mente. Uma rua estreita e sinuosa, repleta de veculos, pessoas, sons e odores difere de uma avenida larga e bem arborizada (Figuras de 1.4A at 1.4D). A maneira como percorremos essa rua- como pe-destres ou de automvel, a que hora do dia- tambm nos trar uma noo diferente desse espao.

    Figura 1.4.A Rio de Janeiro, RJ Figura 1.4B -bidos, Portugal.

    Figura 1.4C Porto Alegre, RS. Figura 1.4D-- Florianpolis, SC.

    As edificaes e aos espaos livres, associam-se o suporte fsico, a vegetao e os elementos de publicidade, que concorrem para a es-truturao e qualificao do ambiente.

    Assim, a paisagem urbana configura-se e qualifica-se basica-mente por meio desses elementos: o suporte fsico, ou seja, o relevo, o solo, o subsolo e as guas, a cobertura vegetal original ou no, as

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  • estruturas urbanas ou massas de edificaes e sua relao dialtica com os espaos livres, o uso do solo, os loteamentos e o clima com suas alteraes de ciclo diurno/noturno e as estaes do ano. Contu-do, a paisagem urbana no delimitada apenas por esses elementos. Ela uma imagem, uma criao mental e social; est na mente das pessoas, nas relaes de uso que se estabelecem entre os cidados, e entre estes e os elementos citados. A paisagem no formada apenas de volumes, mas tambm de cores, movimentos, odores e sons.

    A produo e construo da paisagem urbana varia de acordo com as tcnicas, modos de produo e ainda de acordo com as rela-es sociais e culturais vigentes em cada perodo.

    Assim sendo, a cidade e sua paisagem no se apresentam apenas por seus aspectos formais e construdos, tais como praas, casas, jar-dins e avenidas, entre outros. A cidade fruto de um contexto social e caracteriza-se tambm pelas relaes de uso e apropriao dos espa-os construdos, estabelecidas pelos usurios desse cenrio urbano. Com isso, a cidade transforma-se em fonte geradora de estmulos perceptivos para quem a habita, entendendo por percepo basica-mente a capacidade de gerar informao nova e diferenciada a partir dos elementos percebidos. Assim, cada espao entendido a partir das informaes que se tm sobre ele, surgindo uma relao de inter-dependncia entre o espao e a informao. A apreenso de cada es-pao ocorre por meio das formas de apropriao que se faz dele. Por-tanto, todo espao edificado identificado por determinadas caracte-rsticas que compem sua particularidade, transformando-o num LUGAR para aquela comunidade que o habita. Essas caractersticas so resultado do domnio e da utilizao, por parte dos habitantes, dos elementos naturais, tais como clima e topografia, de acordo com suas necessidades, seja como moradia, circulao, lazer, trabalho, seja tam-bm como resultado de sua cultura.

    Tuan (1983, p.l14), quando discorre sobre os espaos constru-dos pelo homem, afirma que:

    O espao construdo pelo homem pode aperfeioar a sensao e a percepo humana. E verdade que. mesmo sem forma arquitetnica, as

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  • pessoas so capazes de sentir a diferena entre interior e exterior, fecha-do e aberto, escurido e luz, privada e pblica. Mas este tipo de conhe-cimento rudimentar. O espao arquitetnico - at uma simples choa rodeada por uma clareira - pode definir estas sensaes e transfor-m-las em algo concreto.

    Assim, as atividades de uma populao nesse espao, a cidade, geram padres espaciais, requerendo formas arquitetnicas, que, por sua vez, vo influenciar essas mesmas atividades.

    Como qualquer desenho, a sntese dessas relaes no um pro-cesso lgico, de traado simples, resultado do conhecimento dessas mesmas relaes. As atividades no so entidades separadas e deter-minadas por si mesmas, estando intimamente ligadas aos esquemas de circulao, e suas implicaes na forma fsica e visual devem ser sempre mantidas em mente.

    Poder a ordenao do stio permitir uma clara expresso das principais funes? Ter a organizao das atividades um resulta-do de efeito visual desejvel? O equvoco mais srio est na ten-dncia de pensar em termos de denominaes superficiais levadas ao papel, esquecendo-se de que se trata de formas em trs dimen-ses. Falta uma paisagem organizada tecnicamente, de maneira que suas partes se harmonizem, mas tambm que sejam coerentes para os sentidos, que sua imagem seja congruente com sua vida e utilizao (Lynch, 1980).

    Na escala da cidade, entretanto, essa questo complexa, em parte porque os elementos que compem e definem a paisagem ur-bana se alteram ou persistem em razo dos usos que lhes so atri-budos. A forma urbana pode, ento, ser considerada um produto de foras emergentes associadas s relaes de produo e ativida-des reprodutivas entre si e aos grupos sociais definidos. A estrutu-ra urbana pode ser entendida como resultado de um processo indi-vidual, particular, de tomadas de deciso, que pode perfeitamente ser entendido em termos cognitivos.

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  • O conceito de espao, no sentido arquitetnico, tem tido suas definies acrescidas com base em sua dimensionalidade e morfolo-gia, e tem sido considerado um conjunto de percepes que levam o indivduo ao conhecimento de seu entorno. Essas idias, referentes percepo do espao, tm se refletido no estudo do espao urbano pela arquitetura, onde duas noes so levadas em considerao: a percepo do meio ambiente, entendida como o processo pelo qual as pessoas atribuem significado ao ambiente natural, e a percepo do ambiente urbano, entendida como a assimilao de um esquema perceptivo da paisagem urbana. Dessa forma, o estudo dessas diver-sas relaes pode nos levar a uma melhor compreenso da cidade, fornecendo subsdios projetuais para uma melhora na qualidade da estrutura urbana.

    A cidade, pela sua paisagem, ento, para quem vive nela, uma fonte de percepo por meio dos elementos que a compem. Para o usurio, a paisagem urbana mais do que simplesmente a configu-rao morfolgica da cidade, concorrendo para a sua formao, alm dos elementos fsicos, outros de natureza perceptiva.

    A cidade uma das resultantes da ao da sociedade sobre um meio fsico. Ao produzir e utilizar o espao urbano, este se configura numa espcie de retrato, um espelho no qual a sociedade refletida. Ou seja, sua histria, sua cultura, seu meio de produo, seu estgio tcnico e tecnolgico, a diviso de classes, a luta pelo poder, entre outros fatores, esto espelhados na configurao espacial da cidade. As sociedades mudam ou evoluem ao longo da histria, assim como mudam as condies fsicas na superfcie do planeta. Essa injuno de histria-sociedade e meio fsico gera uma diversidade de solu-es, uma diversidade de formas urbanas. As cidades constroem-se, mudam e diversificam-se por dois vetores: o espacial, que corres-ponde ao territrio, e o temporal, que corresponde histria. Assim, a paisagem urbana que se apresenta num determinado momento re-flete a histria da relao homem/meio ambiente nesse dado mo-mento. De acordo com Galender (1994, p.25):

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  • Diante destas, a reflexo sobre a Paisagem Urbana, deve conside-rar a evoluo dos instrumentos de domnio humano sobre a natureza, no somente limitando-se oposio entre Homem e Natureza, mas incluindo as condicionantes funcionais, tcnicas, estticas e culturais, reais e atuais, transpondo para o desenho a dialtica da sociedade em que se insere o espao.

    A cidade , portanto, resultante dos agentes econmicos, sociais, tcnicos e culturais que a produziram, num determinado tempo e contexto. Entretanto, a cidade somente pode ser reconhecida e ca-racterizada por meio da sua paisagem, que, todavia, se atualiza em razo dos usos que so atribudos aos lugares urbanos.

    Entendendo a paisagem urbana como a relao de usos que se fazem do espao arquitetnico, entende-se tambm quais ativida-des econmicas distintas iro, por sua vez, gerar paisagens distintas. Segundo Amador (1990, p.218):

    Assim sendo, permite-se entender que a Natureza conjugada com a Arquitetura determinam a Paisagem Urbana; enquanto a primeira cons-titui-se em uma condio existente concretamente, de fcil interpretao e operacionalizao, a segunda definida pela sociedade, seu trabalho, sua histria, desenvolvimento tecnolgico e evoluo econmica.

    A paisagem pode ser entendida como as relaes entre o ho-mem e o meio ambiente. Dessa forma, o espao, entendido como campo de trabalho da paisagem, pode ser definido como um re-flexo dessa relao homem/meio ambiente; e a cidade, por sua vez, pode ser considerada o maior exemplo de como o homem in-terage com o meio ambiente. Em resumo, a paisagem seria resul-tante dos processos naturais, o meio ambiente; e das condicio-nantes socioeconmicas e culturais, o homem. A partir do que afirma Spirn (1995, p.20), pode-se considerar que a paisagem no nem totalmente natural nem totalmente artificial. Ela resul-tante duma transformao da natureza pelos seres humanos para servir s suas necessidades.

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  • Em cidades com topografia montanhosa, a facilitao do acesso rpido de um local a outro muitas vezes promove a construo de t-neis, como no Rio de Janeiro, RJ, e em Santos, SP (Figura 1.5).

    Figura 1.5 - Santos, SP. Um exemplo de interveno humana na paisagem original para melhor atender s suas necessidades.

    Sendo a construo de cidades uma das maiores criaes huma-nas, suas formas tm sido, e sempre o sero, um indicador do estgio de civilizao de uma sociedade. Sua forma determinada pela mul-tiplicidade de decises tomadas pelas pessoas que nela vivem, e, em determinadas circunstncias, essas decises interagem para produ-zir uma fora de tamanha clareza e forma com que uma nobre cidade surge (Bacon, 1982, p.13).

    A partir do momento que essa relao homem/meio ambiente dinmica, a paisagem torna-se o resultado de um processo de cont-nua transformao. De acordo com Pereira Leite (1994, p.7):

    A paisagem resultado do equilbrio entre mltiplas foras e proces-sos temporais e espaciais. Em certa medida, a paisagem um reflexo da viso social do sistema produtivo e suas formas transformam-se ou desa-parecem sempre que as teorias, filosofias e necessidades que as criaram no so mais reais ou auto-evidentes.

    A percepo do tempo, do espao e da natureza muda com a evolu-o cultural, o que exige a procura de novas formas de organizao do

  • territrio que melhor expressem o universo contemporneo, formas que capturem o conhecimento, as crenas, os propsitos e os valores da sociedade.

    A sociedade um organismo ativo, empreendedor, ambicioso, que pode selecionar e modificar sua prpria paisagem. A paisagem, entendida aqui como forma de organizar o meio natural, uma ati-vidade observada em toda a histria da humanidade.

    A paisagem se altera em razo das peculiaridades fisiolgicas e ambientais do stio natural e em razo da histria do homem. Assim, a paisagem um reflexo dos sistemas climticos, naturais e sociais (Laurie, 1983).

    Desde a Antigidade, possvel encontrar exemplos de como o homem manipula e altera o stio natural em razo das suas necessida-des, ao mesmo tempo que tambm se adapta aos sistemas naturais, sendo a velocidade das alteraes proporcional ao desenvolvimento tecnolgico, como representado nas Figuras 1.6A e 1.6B.

    Figura 1.6A - Portugal: a topografia acidentada facilita a segurana, assim como ilustra a hierarquia social mediante a organizao do espao fsico.

    Figura 1.6B Ate r ro do Flamengo, Rio de Janeiro, RJ. Transformao da paisagem ori-ginal em razo do crescimento urbano.

    A histria do homem sobre a Terra est diretamente ligada s re-laes que ele estabelece com o ambiente. Esse processo acelera-se no momento que o homem descobre meios mecnicos eficientes que dispensam a sua fora fsica no intento da dominao do ambiente natural. Dessa forma, a natureza construda, ou a construo da pai-

  • sagem, pode ser considerada um marco na histria da humanidade (Santos, 1996, p.17). Porm, essa relao de interferncia no pas-siva nem unilateral. Collot (1990, p.21), quando discorre sobre a percepo das paisagens, afirma que:

    No se pode falar em paisagem a no ser a partir de sua percepo. Com efeito, diferentemente de outras entidades espaciais, construdas por intermdio de um sistema simblico, cientfico (o mapa) ou socio-cultural (o territrio), a paisagem se define incontinente como um espa-o percebido: constitui "o aspecto visvel, perceptvel do espao".

    Mas, se essa percepo se distingue das construes e simbolismo elaborados a partir dela e exige outros mtodos de anlise, seu imedia-tismo no deve omitir que ela no se limita a receber passivamente os dados sensoriais, mas os organiza para lhes dar um sentido. A paisagem percebida , j, ento construda e simblica.

    O indivduo sofre um constante bombardeamento de informa-es perceptivas por parte da paisagem, dando origem a emoes, sentimentos, atitudes e valores. Segundo Machado (1988):

    As paisagens se apresentam como ambientes sensveis, palpveis, tm contedo e substncia e so cenrios significantes das experincias, tanto dirias como excepcionais, sendo presenas constantes e inevit-veis e, conseqentemente, no h experincia ambiental que no seja, em algum sentido e grau, uma experincia de paisagem. A ligao inter-na que une os elementos da paisagem a presena do homem, o seu en-volvimento nela, numa interao incessante, dinmica, onde a paisa-gem experienciada d colorido existncia humana e por ela colorida.

    A paisagem, entendida como a inter-relao homem/ambien te , seria definida por fatores predominantemente culturais, e ainda, a partir de uma anlise perceptiva dessa relao bilateral do homem com seu meio.

    A paisagem urbana , ento, resultado da experimentao de espa-os construdos pelo homem, dos quais a cidade, como j foi afirmado, pode ser considerada uma das maiores intervenes do homem no

  • meio ambiente. Dessa forma, pode-se considerar que a paisagem urba-na configura-se como um espao de sensaes e experimentao.

    A paisagem urbana representa a cidade, e assim torna-se poss-vel conhecer a cidade por meio de sua paisagem, pois, enquanto a ci-dade se configura como linguagem, a paisagem urbana apresenta-se como a sua representao, a qual torna possvel esse conhecimento, estabelecendo relaes entre o modo de representar, no caso, a pai-sagem urbana, e o objeto a ser representado, no caso, a cidade.

    Considera-se ento a paisagem urbana a poro ou a face da es-trutura urbana que se revela aos nossos sentidos. Ou seja, a estrutu-ra urbana somente pode ser dada a conhecer por meio da sua paisa-gem, pois somente esse elemento pode ser percebido pelas nossas sensaes espaciais.

    A forma das cidades e o modo como elas se organizam refle-tem-se na paisagem, e esse reflexo vital para entender como a cida-de funciona.

    A paisagem urbana composta de edificaes, espaos livres, ar-mamentos, vegetao, entre outros. Esses elementos se alteram ou persistem na maioria das grandes e mdias cidades, de acordo com o uso que os habitantes fazem desse espao construdo. Alterando-se as relaes de uso desse espao, as quais so ditadas por condicio-nantes culturais e econmicas, basicamente se altera a configurao morfolgica do espao e, por conseqncia, da paisagem urbana. Assim, seria possvel dizer que a paisagem urbana se altera em razo dos usos que a sociedade faz daquele espao; e, desse modo, a paisa-gem urbana seria gerada no pelo espao fsico propriamente dito, mas sim pelo uso que dele se faz.

    Manipula-se o ambiente para que as pessoas possam fazer nele mais facilmente o que queiram, ou para dar a elas mais oportunida-des de ao. O meio ambiente uma parte intimamente ligada conduta humana. O espao e as construes, juntamente com as idias das pessoas, organizam a gama de atividades do lugar: jogar bola, fazer um piquenique, esperar um nibus, vender alimentos, construir uma casa, entre outros. O uso e o espao podem ir bem conjuntamente ou podem ser antagnicos, estveis ou fluidos, exi-

  • gentes ou permissivos, repetitivos ou nicos. A organizao do uso e sua fixao no tempo e no espao so a contribuio essencial de um projeto do local (Lynch, 1980, p.30).

    Assim como a sociedade, a cidade no um elemento esttico. Esta se atualiza por meio da construo de novos espaos e em razo dos usos que so atribudos aos lugares urbanos. Ela se vivifica me-diante sua paisagem, estabelecida pelo indivduo que percebe o es-pao urbano.

    Na cidade persistem elementos de vrios tempos. Edificaes e configuraes de seu assentamento primitivo convivem com ele-mentos de um passado mais prximo e/ou construes contempo-rneas, refletindo a histria dos grupos sociais que sucessivamente geraram esse espao, como ilustrado nas Figuras de 1.7A at 1.7C. Assim, a cidade pode ser lida e entendida por meio da sua histria, na medida em que essa histria se encontra representada nesses ele-mentos construdos que compem a paisagem urbana.

    Figura 1.7A- Barcelos, Portugal. Figura 1.7B- Portugal.

    Figura 1.7C - Rio de Janeiro, RJ.

    Figuras de 1.7A at 1.7C- Exemplos de espaos urbanos onde se observa a presena de construes de variados momentos histricos.

  • Aquilo que somos neste momento e aquilo que faremos a seguir dependem de uma infinidade de fatos que representam nossa hist-ria. Sem um passado no h expectativa de presente ou de futuro. De forma anloga, a lembrana de uma sociedade, de um povo ou de uma nao significa sua segurana em relao ao futuro.

    Somente seremos capazes de realmente apreender, entender e reconhecer a cidade por meio de sua paisagem se nesta estiverem presentes elementos remanescentes de outros tempos.

    Uma vez que a sociedade se faz presente por meio de seus obje-tos, e considerando a paisagem urbana como um produto resultante de vrios fatores que poderiam ser sintetizados em Histria e Natu-reza, onde a Histria uma interveno cultural do homem num de-terminado momento e a Natureza, uma base fsica qualquer, po-de-se dizer que teoricamente a Paisagem Urbana deve refletir, ou pelo menos denunciar, o momento histrico em que est inserida.

    No final do sculo XX, a velocidade, a racionalizao e a tecnolo-gizao so algumas das caractersticas da cidade contempornea que parecem levar a uma virtualizao do espao urbano. A rua principal, a avenida, antes um espao de convvio, passa a ser to-somente um espao de circulao entre um edifcio e outro. A velocidade sempre almejada, e a rua passa a ser o espao do conges-tionamento e do medo, compartimentada em uma fileira sem-fim de letreiros e outdoors feericamente iluminados. Algumas das obser-vaes de Appleyard (1964) ou ainda de Venturi et al. (1978) podem ser constatadas em qualquer avenida de nossas cidades mdias. A paisagem da rua deixa de ser uma via de circulao e passagem para o ritmo do pedestre, passando a s-lo para o automvel.

    Nesse mesmo sentido, os centros de compras fazem de seus cor-redores e galerias ruas e praas. Estes espaos poderiam ser denomi-nados cenogrficos, pois copiam aspectos especficos das ruas tradi-cionais (Figuras de 1.8A at 1.8C), sem, entretanto, incorporar to-das as suas caractersticas formais e funcionais, tornando-se espaos de segregao social. Se a praa convencional, ilustrada nas Figuras 1.9 A e 1.9B, sempre foi um espao comum, a praa de um shopping sua anttese.

  • Figura 1.8A- Lisboa, Portugal. Figura 1.8B - Rio de Janeiro, RJ.

    Figura 1.8C Rio de Janeiro, RJ.

    Figuras de 1.8 A at 1. 8C - Apesar da organizao distinta dos shopping centers conven -cionais, essas figuras ilustram um centro de compras que simula o espao urbano com todas as suas variveis.

    Figura 1.9A- Porto Alegre. RS. Figura 1.9B- Rio de Janeiro, RJ

    Ora, se a paisagem urbana se constri a partir dos espaos li-vres, as novas caractersticas atribudas cidade contempornea configuram e colaboram para a criao de uma cidade cada vez me-nos visvel e perceptvel, distanciando cada vez mais homem e lu-gar, dificultando a percepo dos espaos. Como prolongamento

  • desse distanciamento, ocorre uma ruptura, em que o homem inde-pende, ou parece independer, do lugar; e o lugar, do homem. Na cidade contempornea, os deslocamentos baseiam-se no em refe-rncias urbanas, mas sim num amplo sistema artificial representa-do pelas placas de sinalizao de trnsito. Ou ainda, como nos en-sina Holanda (1984, p.35):

    as transformaes recentes ... significam uma verdadeira inverso na estrutura do tecido urbano: passamos de uma paisagem de lugares para uma paisagem de objetos. H um duplo sentido nessa afirmao. Primei-ro, num sentido mais estritamente fsico, antes a referncia cidade se fazia no pelos seus edifcios, pela sua massa construda, pelos seus es-paos fechados, mas sim pelos "ocos" definidos por aqueles "cheios": eram as ruas, as praas, os largos, os becos, as vielas...

    Somando-se a isso, ocorre a perda da identidade urbana pela des-truio de seus elementos. De acordo com Toledo (1984, p.29):

    a perda das manifestaes arquitetnicas e paisagsticas expressivas, impossveis de serem criadas fora dos quadros que as geraram, leva perda justamente dos referenciais que permitem a identificao do ci-dado com sua cidade.

    Isso acarreta um desequilbrio e um desprendimento da realidade e dos espaos urbanos. O cidado deixa de reconhecer as paisagens al-tamente padronizadas e, conseqentemente, perde a capacidade de encontrar nelas vestgios e marcas da permanncia de sua prpria existncia e da produo cultural de seu grupo social.

    Em geral, a organizao espacial e estrutural das cidades ocorre em razo da conjuntura socioeconmica e das demandas percebidas ou projetadas pelos dirigentes ou pelas pessoas que detm o "po-der". No atende aos interesses gerais, mas aos interesses da classe hegemnica.

    Essa classe pode estar representada pela Igreja, pelo senhor feu-dal, pelos fazendeiros, numa sociedade agrcola, pelos comercian-tes, pelos industriais etc. Esses so os segmentos da sociedade que,

  • juntamente com a Igreja, movem o mecanismo social, pois repre-sentam o setor produtivo, teoricamente pagam os impostos, trazem riqueza, conferem status. Assim, a cidade se organiza em torno da Igreja, do castelo, da ferrovia, do porto, da feira regional, da praa. Nesse sentido, a cidade sempre "planejada", ou regularmente constituda de acordo com os interesses dominantes. O plano con-siste em adequ-la s situaes atuantes no momento.

    A demanda do setor hegemnico imposta ao restante da socie-dade como adequada e necessria, e, por isso, todas as sociedades urbanas "aspiram" a ter as mesmas condies, o mesmo tipo de or-ganizao e de disponibilidades, e no sentem as mudanas como uma descaracterizao. Pelo contrrio, sentem-se orgulhosas de seus estdios de futebol, de suas fontes luminosas, de seus shopping, de seus "McDonald's", de sua iluminao pblica com luz amarela, de suas praas, de seus bairros "residenciais", de seus condomnios fechados, tudo segundo a "onda" do momento. Quanto disso es-pontneo, quanto imposto? A propaganda, pelos meios de comu-nicao, ajuda em muito nessa imposio.

    A falta de identidade , na verdade, uma identidade. A identifi-cao de uma cidade com outra tem por fim colocar-se dentro da concepo corrente de modernidade e de boas condies de vida. No isso que acontece com o adolescente e a sua "turma"?

    Se os centros das cidades foram abandonados como zonas resi-denciais, isso ocorreu em razo de um "plano" ou interesse social de concentrao do comrcio e servios nessa regio. Se hoje se pensa em revitaliz-los, porque essa distribuio est se tornando cada vez menos eficiente, sobretudo com a concorrncia dos shopping, e as instalaes no podem ficar abandonadas.

    Se as cidades se identificam com a sua no-identificao, h sem-pre momentos em que as pessoas que nela vivem se sentem descon-fortveis. Algo est faltando. Por exemplo, o centro; ele atvico. E a gora dos gregos, a praa pblica, central. O referencial das pessoas est no centro.

  • Durante o sculo XIX, na Europa, j havia queixas de que todas as cidades estavam comeando a tornar-se iguais, especialmente nas novas zonas industriais. Havia, contudo, diferenas considerveis de aparncia e de estrutura social entre cidades como Manchester, Birmingham, Lille e Essen. Ainda havia uma ampla esfera para as manifestaes especiais de orgulho em relao a cada localidade.

    No sculo XX, passa-se a ter menos variedade no aspecto das ci-dades, sobretudo nos novos projetos coletivos de moradia. Os mesmos materiais passaram a ser empregados em regies bastante diferentes do mundo. Disso resultou uma menor variao visual. A iniciativa local tambm foi limitada pela crescente centralizao dos governos, enquanto as expectativas dos consumidores tornavam-se cada vez mais determinadas (nacional e mesmo internacionalmen-te) por produtos industriais padronizados. Isso foi exacerbado nos pases capitalistas pela especulao imobiliria, que estimulou certa padronizao de gosto que lhe era conveniente.

    Mutao e identidade urbana

    A produo cultural se d no espao e no tempo, e os momentos histricos refletem-se nas paisagens. As caractersticas morfolgi-cas das cidades espelham ento as etapas de construo do espao urbano, e a paisagem urbana constituda pela similaridade, que confere homogeneidade, ou pela especificidade, que confere parti-cularidade de alguns perodos. Ou seja, quanto de cada perodo, re-sultado de um processo histrico/cultural, sobrevive em cada nova paisagem. As estruturas urbanas remanescentes nas novas paisa-gens que iro conferir a particularidade daquele espao, justamen-te porque ilustram sua histria, restando-nos, ento, identificar quais so os elementos configuradores que caracterizariam a trans-formao.

    Segundo Kohlsdorf (1998, p.28), " como se a paisagem falasse, nos contando histrias, despertando afetividade e evocando nossas lembranas, pois a memria dos entes queridos contm espaos em que viveram".

  • Assim sendo, entendendo por processo histrico e cultural o produto resultante da ao fsica e/ou conceituai do homem sobre os espaos, pode-se dizer que cidade, paisagem urbana, cidado e percepo, inseridos no espao e no tempo, criam diversas relaes que configuram o processo histrico e cultural.

    Numa anlise do perodo histrico atual, podem-se detectar al-gumas caractersticas que, se, por um lado, do significado e confi-guram a cidade contempornea do interior paulista, por outro, pre-judicam a sua percepo e apreenso, colocando intermedirios en-tre sujeito e objeto e prejudicando, conseqentemente, a prpria produo cultural.

    Essa questo pode ser exemplificada com fatores intermediadores de sujeito e objeto: a velocidade, que atua para desprender o cidado do seu espao, de sua realidade, provocando tambm um achatamen-to e uma abreviao da paisagem; a tecnologizao dos espaos em razo de um valor global, que desrespeita as caractersticas e os valo-res locais, como no caso das cadeias de lojas, shopping, e mesmo edif-cios que abrigam grandes corporaes internacionais ou nacionais, que possuem a mesma aparncia, independentemente da cidade ou da paisagem em que se inserem (Figuras de 1.10A at 1.10C).

    Figura 1.1OC - Rio Claro, SP.

    Figuras de 1.10A at 1.1OC - Exemplos de cadeias de lojas alimentcias onde a ar-quitetura padro, independentemente do stio em que as lojas se encontram.

  • Ou seja, segundo Santos (1994, p.36-7), "nestas condies, o que globaliza separa; o local que permite a unio. O lugar, a regio, no mais fruto de uma solidariedade orgnica, mas de uma solida-riedade regulada ou organizacional".

    Trata-se do alto grau de racionalismo na indstria das constru-es em geral, que, se, por um lado, realiza a utopia industrial da produo em larga escala, por outro, colabora para banalizar os es-paos urbanos, repetindo ao exagero elementos e tipologias constru-tivas tanto nos edifcios quanto nos equipamentos urbanos, como pode ser observado nos conjuntos habitacionais ilustrados nas Fi-guras l.11A e 1.11B.

    Figura LHA Portugal. Figura 1.11B- Florianpolis, SC.

    a partir desses elementos globais que a paisagem se homoge-neiza. Pois, ao ser bombardeado com um grande nmero de elementos e/ou informaes desconectadas, fragmentos referen-ciais de um grande nmero de lugares, o homem no mais identifica seu entorno, a sua poro do territrio (ibidem, p.18-9).

    Essas questes, somadas a muitas outras, entre as quais a virtua-lizao, comentada anteriormente, ajudam a criar cidades cuja pai-sagem torna-se cada vez mais invisvel. Invisvel no no sentido de inexistente, mas de no-vivenciada, de no-experimentada, de no-percebida. A cidade passa a ser percebida como um conjunto de interiores de edificaes que se conectam por um espao externo andino, que deve ser o mais rapidamente possvel ultrapassado, um empecilho a ser vencido pela velocidade.

  • A alterao do uso dos espaos livres urbanos merece nossa aten-o, pois, como comentado anteriormente, a partir desse uso que se percebe e se constri a paisagem, tendo ele um papel fundamental na apreenso do espao. Essa questo pode ser ilustrada analisan-do-se os espaos pblicos ao longo do tempo.

    Os espaos pblicos sempre foram caracterizados pela permann-cia. Na cidade do sculo XX, esses mesmos espaos so caracterizados pela passagem. O estar em pblico outrora assumia um papel de re-presentao social, hoje um estar em movimento; o flaneur substi-tudo pelo movimento com uma direo precisa. Essa questo est to presente em nossa vida, que nem nos damos conta de seus efeitos, que atuam no sentido de nos desprender de nosso espao e nossa realida-de. A apreenso e o contato com a cidade, e principalmente com a pai-sagem, tornam-se superficiais ou at mesmo abstratos.

    A velocidade e/ou acelerao da vida contempornea preju-dica tambm a "memria" por meio do esquecimento. O olhar em velocidade no fixa a imagem e tambm no permite tempo suficiente para que os demais sentidos atuem tornando o ato de apreenso mais completo. Ao virtualizar o espao urbano, ou melhor, ao construir o espao urbano contemporneo a partir da virtualidade, sua imagem - ou seja, a paisagem -, passa-se a de-pender quase que exclusivamente das sensaes visuais. Ao dei-xar os outros sentidos em segundo plano, constri-se uma pai-sagem em simulao quela que as geraes urbanas sempre pu-deram compreender e com a qual se identificar.

    Segundo Santos (1996, p.76):

    A cidade como um todo, teatro da existncia de todos os seus mora-dores, superpe-se essa nova cidade moderna seletiva, cidade tcnico-cientfica-informacional, cheia de intencionalidades do novo modo de produzir, criada, na superfcie e no subsolo, nos objetos visveis e nas infra-estruturas, ao sabor das exigncias sempre renovadas da cincia e da tecnologia.

  • cones e smbolos

    A paisagem virtualizada nos leva a uma outra caracterstica da cida-de atual: o excesso de smbolos e imagens, a substituio do objeto por uma imagem que muitas vezes pouco referencia o objeto, como em uma imensa logomarca de um refrigerante ou de um calado esportivo que parece substitu-los por completo (Figuras 1.12A e 1.12B).

    Figura 1.12A- Porto Alegre, RS. Figura 1.12B Rio de Janeiro. RJ

    Figuras 1.12A e 1.12B- Exemplos de construes onde a propaganda comercial se des-taca em relao ao valor da prpria edificao.

    Esse outro fator que prejudica a fixao da paisagem pela com-plexidade de elementos visuais encontrados principalmente nas grandes metrpoles e nos centros comerciais. Essa configurao acaba criando uma poluio visual, uma sobrecarga informativa que, em vez de "heterogeneizar" um lugar, acaba "homogeneizan-do-o", prejudicando sua leitura.

    De acordo com Santos (1996, p.29-30), "vivemos plenamente a poca dos signos... adoradores da velocidade", e ainda

    a acelerao contempornea , por isso mesmo, um resultado tambm da banalizao da inveno, do perecimento prematuro dos engenhos e de sua sucesso alucinante. So, na verdade, aceleraes superpostas, concomi-tantes, as que hoje assistimos. Da a sensao de um presente que foge.

    A relao paisagem-espao, enfocada pela percepo, forma um par dialtico, "complementam-se e se opem", mas juntos confe-rem materialidade e espiritualidade aos lugares.

  • A paisagem, por ser algo com que interagimos diariamente, tem um papel fundamental na formao do ser humano. So bastante claras nas cidades paulistas essas injunes: as cidades mais antigas foram fundadas num primeiro momento prximas a grandes cursos d'gua, pois os rios eram a principal via de transporte; o ncleo urbano inicial era estabelecido a partir de uma igreja, localizada sempre em um divisor de guas e com a entrada voltada para o nas-cente, definindo a posio da praa e a hierarquizao do espao.

    As ferrovias, que, por uma limitao tecnolgica, foram implan-tadas em terrenos menos ngremes, daro s cidades mais novas, que se estabelecem a partir de uma estao ferroviria, uma outra configurao e hierarquizao do espao urbano.

    Por sua vez, sero diferentes tambm as cidades que surgem ou se desenvolvem a partir das rotas rodovirias, ou do que vem ocor-rendo atualmente com as cidades ao longo do percurso da hidrovia que nos anos 90 se implantou no interior do Estado de So Paulo.

    Se, por um lado, o partido adotado para o lanamento de uma malha urbana um elemento a ser considerado, por outro, no ser de forma alguma, por si s, o elemento definidor da paisagem. A ci-dade algo extremamente dinmico e est constantemente passan-do por processos de transformao mais ou menos drsticos.

    Todas as questes envolvidas na formao e transformao do espao urbano determinam uma configurao fsica, portanto uma paisagem, que certamente se altera conforme se alteram tambm as funes primeiramente estabelecidas. As condicionantes presentes no aparecimento de uma cidade - tais como as das vilas mineradoras surgidas na regio das Minas Gerais na poca da explorao de ouro no Brasil Colnia; ou as das surgidas com o avano do cultivo do caf no Oeste Paulista e posteriormente no norte do Paran; ou ainda mais recentemente com a construo de barragens hidroel-tricas - direcionam e influem na formao e transformao de sua paisagem, determinando uma configurao fsica que certamente se altera quando as funes desempenhadas por esse ncleo urbano tambm se alteram, ou ainda quando as aspiraes de seus habitan-tes mudam.

  • medida que o homem se defronta com a natureza pelos mais variados motivos e a modifica de alguma forma, ocorre entre os dois uma relao cultural, que tambm poltica, tcnica etc. Cada pes-soa, cada objeto, cada relao um produto histrico. Assim, com a produo humana h a produo do espao, da paisagem, sendo esta resultado de todo um contexto histrico na qual est inserida. Con-texto esse representado pelas diferentes formas materiais e tcnica de produo.

    Dessa forma, a paisagem consiste num conjunto heterogneo de formas em razo da diversidade e da multiplicidade das relaes: homem-homem, homem-meio ambiente, em cada espao e em cada tempo.

    Pode-se estabelecer assim uma estrita relao entre paisagem e produo, de modo que, quando ocorre uma mudana muito grande nas formas e materiais de produo do espao, ocorre tambm uma revoluo na paisagem. A inovao traz a revoluo.

    A sociedade vai descobrindo novas maneiras de construir as coi-sas, as quais caracterizam cada momento. No entanto, a paisagem no se cria de uma vez. H todo um processo tcnico, filosfico e so-cial que embasa o modo de construir.

    De acordo com Santos (1999, p.47):

    A tendncia universalizante dos primrdios da histria humana permitia criar, em diversos lugares, solues tcnicas prprias mas con-vergentes, mas no havia simultaneidade em sua apario, nem o seu surgimento em um dado ponto da superfcie da terra acarretava obriga-toriamente repercusses em outros lugares. J o processo iniciado com o capitalismo, e hoje plenamente afirmado com a globalizao, permite falar em uma idade universal das tcnicas, idade que pode ser contada a partir do momento em que surgem (cada uma dessas tcnicas).

    A prpria escolha do sitio e a maneira pela qual se origina ou se orienta a malha urbana so atitudes determinadas pela relao socie-dade-ambiente. Segundo Spirn (1995, p.27):

  • No ambiente natural de cada cidade, existem elementos diferencia-dos e elementos comuns. Muitas cidades devem sua localizao, seu crescimento e histrico e a distribuio da populao, bem como o car-ter de seus edifcios, ruas e parques, s caractersticas diferenciadas de seu ambiente natural. Muitas cidades ocupam o stio de antigas aldeias, escolhido pelos primeiros habitantes por causa da facilidade de defesa, acesso gua, combustvel e material para construo, alm da proxi-midade das rotas de transporte.

    Assim, a paisagem urbana sempre resultado de uma interao entre a configurao fsica e sua percepo, na qual a modificao des-ses elementos leva necessariamente a uma outra paisagem urbana.

    Qualidade visual

    A abordagem perceptiva no desenho das cidades permite justa-mente buscar um resgate das qualidades visuais que poderiam desper-tar enfoques cognitivos no tocante organizao do espao urbano.

    Segundo Santos (1999, p.45):

    As tcnicas participam na produo da percepo do espao, e tam-bm da percepo do tempo, tanto por sua existncia fsica, que marca as sensaes diante da velocidade, como pelo seu imaginrio. Esse ima-ginrio tem uma forte base emprica. O espao se impe atravs das condies que ele oferece para a produo, para a circulao, para a resi -dncia, para a comunicao, para o exerccio da poltica, para o exerc-cio das crenas, para o lazer e como condio de "viver bem".

    A abordagem perceptiva no estudo da paisagem urbana se inte-ressa pelo modo como os indivduos percebem e tomam decises a respeito da cidade. Ta l enfoque procura redirecionar os processos que do origem ao padro urbano. Ou seja, essa estrutura cogniti-va da cidade que oferece novos padres e influencia a interao com os espaos urbanos e as tomadas de deciso no tocante a reas para compras, moradias ou lazer, e no a estrutura fsica da cidade, com-posta por edifcios, ruas e avenidas.

  • Segundo Del Rio (1990, p.92):

    O estudo da percepo ambiental interessa-nos enquanto compre-enso das unidades selecionadas para compor a experincia visual... A partir do estudo do que os usurios percebem, como e com que intensi-dade podem-se montar diretrizes para a organizao fsico-ambiental.

    A construo de uma imagem do ambiente urbano, fruto da per-cepo e da cognio, um processo bilateral existente entre a cida-de e seus cidados, mediante o qual o cidado atribui valores a esse espao urbano, sendo, portanto, algo extremamente subjetivo e par-ticular. A cidade, por sua vez, tambm influencia o cidado diferen-temente. Mas, de qualquer forma, parece existir uma imagem entre indivduos de um mesmo grupo, e essa imagem que nos interessa preservar, resgatando-a de nossa memria e de geraes anteriores, como um instrumento de identificao, de ligao, entre os cidados e sua cidade. Segundo Del Rio & Oliveira (1996, p.XI):

    As obras de Kevin Lynch e Gordon Cullen foram as pioneiras em encorajar o desenvolvimento de metodologias projetuais com base em estudos de percepo ambiental. Ambos admitiam que os atributos do meio ambiente - natural ou construdo - influenciam o processo per-ceptivo da populao, particularmente o visual, o que possibilita o re-conhecimento de qualidades ambientais e a formao de imagens com-partilhadas pela populao. Enquanto os estudos influenciados por Lynch, por exemplo, procuram responder a ideais qualitativos, tais como legibilidade, orientabilidade e identidade, aqueles influenciados por Cullen buscam sensaes visuais topolgicas.

    A percepo do meio ambiente urbano tem sido colocada como elemento vital para a sobrevivncia urbana. A problemti-ca ambiental urbana atual resultado de uma poca em que a re-novao das cidades intensa, profunda e acentuada, justifican-do uma preocupao com seus aspectos visuais. De acordo com Bartalini(1986, p.49):

  • Um dos problemas mais freqentes que podem ser detectados na paisagem urbana a falta, ou perda, de identidade visual. Preocupados, e com razo, com a localizao das funes, estabelecimento de densi-dades, dimensionamentos da infra-estrutura ou com a eficincia do sis-tema virio, os planos geralmente minimizam ou ignoram um aspecto fundamental para a qualidade de vida dos cidados: a criao ou valori-zao de referenciais urbanos, a caracterizao fisionmica das cidades.

    Qualquer interpretao sobre o espao deve, portanto, conside-rar a ao cognitiva sobre ele, e tambm a percepo e a viso, lem-brando-se de que a percepo compreende a viso, alm dos demais rgos dos sentidos - como tato, olfato, audio, sinestesia - e, de resto, todo o organismo.

    Apesar de a viso ser predominante na percepo espacial, chei-ros e sons, sensaes de calor e de frio t ambm colaboram com a vi-so na percepo do espao. E ainda, a percepo depende do fator cultural associado a esses sentidos.

    Por esse tipo de anlise que se comeou a considerar a percep-o como importante elemento mediador entre o homem e seu am-biente urbano. Os estudos baseiam-se especialmente na observao da realidade, utilizando-se de tcnicas fornecidas pela psicologia e t rabalhando com grupos e espaos bem definidos.

    Pode-se afirmar que cidades desprovidas de elementos marcan-tes em sua paisagem esto destinadas a uma no-caracterizao e homogeneizao de sua paisagem.

    Entretanto, segundo Padovano (1987, p.213), nas concluses de sua tese de doutorado, na qual trata da legibilidade do espao urba-no, tendo em vista a comunicao visual nos centros urbanos:

    Seria ingnuo pensar que a organizao, melhora ou complementa -o da forma fsica e visual do meio urbano possam significar, per si, a melhoria da qualidade de vida de uma populao. A qualidade visual do meio urbano pode representar, no mximo, um grau maior ou me-nor de organizao social, de bem-estar de uma populao. No entanto, jamais ser capaz, mesmo em casos em que esta organizao formal do espao antecipe os progressos estruturais de uma sociedade, de substi-tuir a evoluo material e espiritual de um povo, expressa em seu siste-ma social, poltico e econmico.

  • Ainda so poucos, contudo, os estudos perceptivos da cidade vi-sando a uma melhor qualidade de vida urbana, ou seja, aqueles que oferecem um redirecionamento da paisagem urbana, entendida como o resultado perceptivo/imaginrio interagindo com um obje-to, no caso, a configurao ou o ambiente urbano. Entendendo essa relao como interativa, acreditamos que a modificao de uma de-terminada paisagem dar-se-ia por duas vias no excludentes. Uma, mediante a transformao da paisagem pelo cmbio dos elementos culturais que estruturam a percepo; outra, mediante a alterao da poro geomtrica da estrutura urbana, reforando sua imaginabili-dade/legibilidade. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que seria necessrio tanto promover uma educao que no aliene o cidado do espao urbano, como, simultaneamente, dotar os elementos fsi-cos do espao de maior legibilidade ou de uma maior caracterizao e especificidade.

    De acordo com Padovano (1987, p.7):

    Perceber visualmente a pobreza construtiva de uma fachada de um edifcio na periferia perceber a prpria pobreza que est por trs desta fachada. No entanto, esta passagem no linear, pois as fachadas po-dem tambm esconder grande parte dos fenmenos sociais que as ge-ram. Assim, compreendemos o visualmente percebido apenas como um nvel de representao da realidade e no como a exteriorizao for-mal desta realidade, em termos globais e absolutos.

    Essas assertivas, entretanto, no invalidam a afirmao de que o principal elo entre o cidado e o espao urbano se d por intermdio da paisagem, ou seja, no nvel de representao do espao da cidade, haja vista que essa a nica maneira que o objeto, a cidade, se permi-te conhecer, ou seja, por meio da sua representao, a paisagem, constituda por seus objetos mveis e volumes construdos.

    Geralmente percebemos nossa cidade no como um todo, mas de uma maneira fragmentada; ou seja, percebemos partes dela, como os bairros em que trabalhamos ou moramos, ou ainda os percursos de nosso cotidiano; o caminho que percorremos at nosso local de traba-lho, ou para irmos ao mercado, ao banco ou escola dos filhos. To-

  • dos os nossos sentidos esto envolvidos nessa percepo, e a imagem resultante est repleta de lembranas e significados.

    A cidade, porm, no apenas para ser percebida pelas mais variadas pessoas que a habitam, das mais diversas classes sociais e personalidades, e com os mais diversos interesses. A cidade tambm deve ser legvel. E o que confere legibilidade a uma cidade? O que a transforma num LUGAR para seus cidados? A resposta est nas construes e logradouros que estruturam o ambiente urbano: essas construes que identificamos diaria-mente, atribuindo significados aos marcos desse stio urbano, como as casas, as praas, ou bares e cafs.

    por meio da identificao diria desse espao edificado que nos orientamos dentro de nossa cidade. Pela verificao dos marcos urbanos que criamos referncias que fazem que no nos sintamos perdidos. A verificao desses marcos urbanos no fruto s de nossa percepo imediata, mas tambm de nossa percepo passada, de nossa memria e de nossa inteligncia.

    O reconhecimento dessas edificaes ou logradouros, represen-tativos da histria urbana, nos percursos de nosso cotidiano, que promovem o elo entre o cidado e sua cidade, fazendo que o espao urbano assuma uma conotao de LUGAR.

    Sociedades diferentes, por sua vez, iro gerar espaos similares, e a particularidade ser obtida com base em elementos morfolgicos especficos. A no-caracterizao da paisagem nasce de uma carac-terizao genrica, ou ainda da no-especificao.

    Paralelamente, a forma fsica construda num determinado con-texto social pode perfeitamente abrigar outra estruturao da socie-dade, pois a forma fsica pode sobreviver justamente porque a velo-cidade das transformaes sociais mais rpida que a dos espaos construdos. Por exemplo, podemos citar a cidade de Havana, em Cuba, construda sob a gide do capitalismo, imutvel na sua confi-gurao morfolgica, mas abrigando uma sociedade totalmente di-versa. E ainda So Petersburgo, a cidade dos czares, na Rssia, cuja forma igualmente sobreviveu a uma nova organizao da sociedade.

    Segundo Lynch (1999, p.39):

  • Podem procurar-se exemplos da cidade socialista, construda para se adequar aos motivos e s circunstncias dessa nova ordem da socie-dade. Contudo, no se consegue encontrar muitos exemplos devida-mente ajustados. Foram construdas muitas cidades e reconstrudas muitas cidades antigas na U.R.S.S. e na Europa de Leste, mas asseme-lham-se bastante s cidades do mundo capitalista ocidental, apesar de, porventura, no terem aquela segregao residencial por classes que de-forma as cidades ocidentais.

    Existem redes de cidades similares entre si, seja no interior do Estado de So Paulo, no meio-oeste americano, ou ainda nas vilas e aldeias portuguesas, partindo do pressuposto de que todas elas apresentam uma lgica de organizao prpria, pois, de acordo com Lynch (1999, p.39):

    a cidade islmica medieval, por exemplo, com a sua nfase na privaci-dade, bastante diferente das cidades a que estamos habituados. O seu padro denso e dentrtico parece-nos, a princpio, extremamente mis-terioso, at se compreenderem os valores que lhe so subjacentes.

    Existe uma paisagem nascida da relao entre o espao fsico as-sim configurado e o uso que se faz dele. Essa paisagem, aparente-mente homognea, possui referenciais que a particularizam para os cidados, resultantes das diferenas entre o que se poderia denomi-nar fenmeno mundial e fenmeno globalizado: Por fenmeno mundial, entendem-se aquelas ocorrncias em

    tempos simultneos, porm em espaos distintos, e com respeito s caractersticas sociais locais, diferentemente dos fenmenos globais, que independem dos referenciais locais. Assim, pode-se afirmar que as especificidades na produo da paisagem urbana estariam, no passado, relacionadas com o que se denomina fen-meno mundial, completamente diferente dos fenmenos globais que se observam atualmente. Ou seja, no tocante produo da paisagem urbana, apesar dos modelos centrais, ainda assim exis-tia um respeito s especificidades locais quanto a cor, materiais construtivos, avanos tcnicos e tecnolgicos, adaptaes dos

  • programas aos climas e necessidades locais, ou ainda s refern-cias culturais, entre outros elementos. Assim, apesar de uma apa-rente homogeneidade da paisagem, cada uma guardava as suas particularidades.

    J um fenmeno globalizado caracteriza-se igualmente pela ocor-rncia simultnea, porm com a perda dos referenciais locais ante-riormente estabelecidos. Assim sendo, pode-se afirmar que a ar-quitetura e o urbanismo moderno so globalizantes, sobrepon-do-se s estruturas preexistentes, sem necessidade do referencial local, gerando, dessa forma, paisagens homogneas. Dessa manei-ra, a cidade se transforma num cenrio, entendendo-se por cenrio a representao pictrica da paisagem, independentemente da vida que ali se processa. Os smbolos e valores desse cenrio que a nova cidade, onde os espaos tendem a um valor global, ou seja, no se esgotam no limite do lugar, esto caminhando para virar si-mulacros, cdigos de imagens universais que caracterizam um novo estilo de vida. A cidade comea a valer no mais pelo que ela , mas pelo que ela tem: McDonald's, shopping centers, entre ou-tros, isto , quais os cdigos globais de imagem que abriga. Segundo Kohlsdorf (1998, p.28):

    Nesse sentido, a paisagem informa, e a primeira noo que transmi-te refere-se a sua identidade, quando nos diz onde estamos e como po-demos ir dali para outro lugar ... Qualquer pessoa apreende certas ca-ractersticas morfolgicas do espao onde se encontra que lhe infor-mam que lugar aquele, identificando-se e orientando-a ... Quanto maior a presteza da comunicao da noo de lugar, mais forte sua iden-tidade, qual os antigos chamavam de esprito do lugar, o genius loci que os habitava e se manifestava em organizaes nicas de ruas, rvo-res, edifcios, praas, monumentos, bosques, montanhas, rios e praias.

    Ao trabalhar com espaos urbanos, porm, o corpo tcnico ainda considera o projeto para esse espao independentemente das expec-tativas da populao usuria desse mesmo espao, e a forma como essa populao apreende esse espao raramente considerada.

  • Segundo Leite (1998, p.100):

    As cidades possuem imagens prprias, e os habitantes criam ima-gens mentais de suas cidades, imagens que podem ser pesquisadas e analisadas, revelando uma viso pblica ou coletiva que, por sua vez, identifica atributos arquitetnicos positivos ou negativos - marcos re-ferenciais para a coletividade ou paisagens urbanas pobres e sem signi-ficado. Essas pesquisas podem servir como instrumento para a imple-mentao de um desenho urbano adequado, que responda aos anseios da populao. Prximo da virada do milnio e em meio ao caos urbano das maiores metrpoles, tais conceituaes parecem ganhar mais fora do que poca em que foram lanadas por Lynch em 1960. Agora as imagens das cidades so muito preciosas. Por um lado, foram transfor-madas em marketing e utilizadas para vender um produto que atraia in-vestimentos e turismo, ou como exemplos de boa administrao pbli-ca. Por outro lado, atestam o quanto est longe de uma paisagem urba-na adequada, resultado de um desenho urbano responsvel nas nossas cidades.

    C o m esse novo enfoque dado cidade, todos os estudos preocu-pados em como a cidade percebida pelo cidado so, mais do que nunca, relevantes. Segundo Del Rio & Oliveira (1996, p.IX):

    Ao se admitir a importncia desse tema, mais fcil entender por que ambientes construdos que apresentam pouca qualidade fsi-co - espacial so comumente vandalizados em todas as partes do mundo, num dos fenmenos transculturais mais evidentes dos nossos tempos. Constantemente e no sem razo, os cidados expressam o seu descon-tentamento ou descuido para com o meio ambiente construdo das ci-dades, particularmente em se tratando das comunidades menos afluen-tes da sociedade. Isto porque, principalmente nos grandes centros ur-banos, o sofrimento dessas comunidades no se resume questo scio-econmica e ao conflito de classes. Em seu uso cotidiano dos espaos, equipamentos e servios urbanos, elas sentem diretamente os impactos da qualidade ambiental, desde aqueles relativos complexa problem-tica dos transportes urbanos at a baixssima performance ambiental dos bairros de periferia, conjuntos habitacionais, hospitais, escolas p-blicas, dentre outros.

  • Pode-se, entretanto, estabelecer um dilogo com a cidade. A facilidade de entendimento est diretamente ligada s formas que o espao urbano possui, e espera-se que os projetos urbansticos melhorem esse dilogo. Nesse sentido, oportuno salientar a opinio de Kohlsdorf (1996, p.53) sobre a relao entre o projeto e o espao real:

    Entretanto, as caractersticas trazidas por esse sistema (como as re-presentaes em plantas e elevaes) no so captadas pela percepo, que nvel essencial da apreenso. E como se o espao se apresentasse de maneiras diferentes, quando o percebemos e quando o consideramos de forma abstrata, em seus predicados "objetivos". No se pode, por-tanto, trabalhar com apenas um desses tipos de informao; como tc-nicos e estudiosos, nosso problema reside em fazer a ponte entre as in-formaes prprias a tais nveis de conhecimento.

    O processo de Desenho Urbano, preocupado com a qualidade fsico-ambiental do meio ambiente, admite o potencial da contri-buio do estudo da percepo ambiental para a interveno urba-nstica como fundamental, por tratar de interferir na cidade, na sua reconstruo mental e em suas imagens, atributos e qualidades per-cebidas pela populao. Pois, novamente de acordo com Del Rio & Oliveira (1996, p.IX), "o estudo dos processos mentais relativos percepo ambiental fundamental para compreendermos melhor as inter-relaes entre o homem e o meio ambiente, suas expectati-vas, julgamentos e condutas".

    O Desenho Urbano, como ao de projeto, seria o "criador" de imagens urbanas visualmente fortes, baseando-se na "anlise da forma existente e em seus efeitos no cidado" (Lynch, 1982, p.25). A velocidade das transformaes no ambiente urbano "perturba" o cidado, entretanto, mantendo-se as boas qualidades visuais da for-ma urbana, mediante a enfatizao das caractersticas dos elementos componentes da imagem da cidade, o desconforto emocional pode-r ser amenizado (ibidem, p.129).

  • De acordo com Del Rio (1990, p.92), "para o Desenho Urbano, os objetivos principais destes estudos se tornam claros: a identifica-o de imagens pblicas e da memria coletiva".

    A importncia da abordagem perceptiva no Desenho Urbano est justamente na tentativa de retomar essas especificidades. Dessa maneira, a arquitetura passa a buscar um resgate das qualidades vi-suais anteriormente existentes, as quais poderiam despertar enfo-ques cognitivos no tocante organizao do espao urbano.

  • 2 CONFIGURAO MORFOLGICA: ELEMENTOS CARACTERSTICOS DA

    PAISAGEM DA CIDADE MDIA PADRO DO INTERIOR PAULISTA

    As primeiras cidades brasi-leiras, assim como as cidades medievais portuguesas, acomo-davam-se ao terreno de uma maneira bastante irregular. Um dos exemplos ainda existentes a cidade de Tiradentes (Marx, 1980), ilustrada na Figura 2 .1 . Figura2.1 Tiradentes, MG.

    A partir do sculo XIX, tornou-se comum o traado mais reticula-do, conquanto o fato de que muitas das expanses urbanas ainda dei-xam de respeitar o reticulado original, adaptando-se topografia do s-tio, resultando em uma mancha urbana bastante heterognea. Um bom exemplo so as cidades do Oeste Paulista e do norte do Paran, surgidas em razo da expanso cafeeira, onde malha ortogonal origi-nal foram justapostas outras formas de loteamento, criando assim uma verdadeira colcha de retalhos, sem que houvesse uma unidade espacial.

    Essas cidades surgiram com a mesma formao social e no mesmo momento histrico de formao da nao, aps a Independncia, sob

  • a gide do mesmo modo de produo - a monocultura voltada para a exportao, no caso, o caf -, e por meio das mesmas relaes sociais e sob o mesmo Estado.

    Tal fato refletiu no somente nas relaes econmicas e de traba-lho da sociedade como um todo, mas tambm em sua produo ar-quitetnica, tanto no ambiente rural como nas reas urbanas. Modi-ficaes ocorreram em razo da nova riqueza, tanto nos aspectos construtivo-tecnolgicos como no partido arquitetnico do casario que sucedeu as obras de taipa caractersticas do perodo colonial, e ainda nos traados urbanos, implicando transformaes significati-vas nos elementos estruturadores das paisagens.

    A cidade brasileira tradicional estrutura-se numa relao espa-cial bastante rgida entre o pblico e o privado, onde o privado comparece sob a forma do lote urbano.

    A forma de parcelamento do solo baseia-se em lotes retangu-lares, alinhados, com as laterais maiores, e perpendiculares s vias pblicas, e esse modelo s abandonado em reas industriais, conjuntos habitacionais e nas superquadras de Braslia.

    Para Reis Filho (1970), uma caracterstica da arquitetura urbana estar fortemente ligada ao lote onde est implantada, desde as ca-sas do perodo colonial at as superquadras de Braslia. Ambas constituem unidades to coerentes que no possvel descrever a ar-quitetura sem fazer referncia sua implantao.

    Tanto construes coloniais quanto palacetes eclticos ou os arranha-cus esto implantados nessa mesma estrutura de lote co-lonial. Como escreve Benevolo (apud Toledo, 1981, p.7) sobre a cidade brasileira:

    de fato, a cada reconstruo feita, guardam-se, da cidade anterior, so-mente os vnculos inteis: os limites dos terrenos, os alinhamentos das vias pblicas, que antes eram coerentes com os volumes edificados e que se tornaram cada vez mais incoerentes.

    Apesar de todas as transformaes ocorridas na arquitetura bra-sileira na segunda metade do sculo XIX, principalmente em razo