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Lucas Carneiro Leão
Relatos do Padre Fernão Cardim (1583-1625):
Missionação no Brasil da Contra Reforma
Monografia apresentada à disciplina de
Estágio Supervisionado em Pesquisa
Histórica como requisito parcial à conclusão
do curso de História, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade
Federal do Paraná.
Orientadora: Andréa Doré
Curitiba
2005
ii
Aos espelhos de minha alma. Dedico este trabalho a Todos que participaram deste momento especial de minha vida.
iii
AGRADECIMENTOS
A conclusão deste trabalho só foi possível devido a colaboração de várias pessoas.
Algumas delas cruzaram o meu caminho durante o período acadêmico, ao longo do curso
de História, outras estiveram presentes em minha vida antes mesmo de meu ingresso na
UFPR.
Inicialmente, agradeço de forma sincera à Prof. Andréa Doré pela orientação que
prestou. Mesmo em seus momentos mais corridos, com ocupações pessoais e da faculdade,
esteve presente em todo o desenvolvimento da pesquisa, com críticas e sugestões
construtivas que enriqueceram de maneira importantíssima as idéias desta monografia. Mas
agradeço principalmente a extrema paciência com que me auxiliou. Mesmo não deixando
de cobrar resultados, leituras, soube respeitar de maneira excepcional meu ritmo de estudo
e as dificuldades pelas quais passei. Foi um prazer trabalhar sob sua orientação, e o gosto e
entusiasmo que demonstrou pelo tema tornaram este trabalho mais do que um mero
exercício para a conclusão de curso, e aprendi, mesmo que em um momento avançado da
faculdade, a estudar História com prazer e satisfação.
Agradeço também a toda minha família – inclusive à pequena Isabela, a nova
integrante Carneiro Leão – pois mesmo entre algumas brigas essas pessoas sempre
representaram a mais importante parte de minha vida. Não há maneira de agradecer a forma
com que me ajudaram, entre bons ou maus momentos, a crescer de maneira inestimável.
A todos os meus amigos que junto comigo caminharam. Agradecimento especial à
querida Patrícia, ao Wilian e Ronaldo. Durante todo o período em que estive na faculdade
talvez nem mesmo eles saibam o modo com que me encorajaram a continuar. Sem a
presença deles – amigos no sentido mais pleno da palavra – dificilmente eu estaria onde
estou.
Agradeço ao professor Maurílio e aos alunos da Associação Flor de Lótus pelos
momentos descontraídos que tive. Mesmo entre todas as dificuldades pelas quais passaram
– algumas mais felizes, como a vinda do Ian – não deixaram de proporcionar um ambiente
incrivelmente saudável, onde pude desenvolver outras faculdades além das leituras e
estudos.
iv
A Priscila, grande amiga e companheira de maluquices, ao pessoal da Associação de
Estudos Filosóficos e a todos aqueles que de uma forma ou outra têm mostrado caminhos,
sentimentos que até então eu desconhecia. Entre frustrações e alegrias, agradeço
profundamente pela grande ajuda que me proporcionaram, por me ensinarem a caminhar de
uma melhor maneira e por constantemente apresentarem aspectos interiores de mim
mesmo.
v
Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezavam!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa (Mensagem)
vi
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ....................................................................................................iii
RESUMO.........................................................................................................................vii
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1
1. O CONTEXTO HISTÓRICO DA EUROPA NA ÉPOCA DE FERNÃO
CARDIM E SUAS PROJEÇÕES NO ALÉM MAR ..................................................... 3
1.1 União Ibérica e Contra-Reforma nos espaços coloniais............................................... 3
1.2 A Companhia de Jesus.................................................................................................. 8
2. HIBRIDISMO E MESTIÇAGEM NOS DOMÍNIOS COLONIAIS: ALGUMAS
PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS.................................................................. 12
2.1 Missionários e locais: o contato entre civilizações e as dinâmicas do encontro ........ 12
2.2 Os mediadores culturais.............................................................................................. 19
3. FERNÃO CARDIM: VIDA E OBRA....................................................................... 24
3.1 Formação jesuíta e permanência no Brasil ................................................................. 24
3.2 Os tratados cardinianos............................................................................................... 25
3.3 A importância de Cardim na historiografia ................................................................ 28
4. FERNÃO CARDIM E A MISSIONAÇÃO INACIANA ........................................ 32
4.1 Das conversões em massa........................................................................................... 32
4.2 Missionários e nativos: a atuação dos mediadores culturais ...................................... 37
4.3 Intercessões religiosas: a convergência de credos...................................................... 43
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 47
vii
RESUMO Fernão Cardim nasceu em meados de 1543, em Viana do Alvito, no Alentejo, pertencente ao arcebispado de Évora. Ingressou na Companhia de Jesus em 1556, vindo a falecer no Brasil, na Aldeia Abrantes, em 1625 com o advento da invasão holandesa na Bahia. A fonte principal deste trabalho, intitulada Os Tratados da Terra e Gente do Brasil (Lisboa, CNCDP), apresenta a compilação de textos escritos por Cardim enquanto permaneceu na América portuguesa – período de 1583 a 1625 –, notadamente: duas cartas dirigidas ao Provincial da Assistência de Portugal e dois tratados escritos enquanto ocupava o cargo de secretário do padre Cristóvão de Gouveia, denominados “Do clima e terra do Brasil e de algumas coisas notáveis que se acham assim na terra como no mar” e “Do Princípio e origem dos Índios do Brasil e seus costumes, adoração e cerimónias”. Abordando temas bastante variados, os textos cardinianos apresentaram fundamentalmente um relato minucioso sobre a situação da América portuguesa em finais do século XVI e da ação da Companhia de Jesus nesse território. São narrativas que compreenderam as condições climáticas, do solo, fauna e flora, bem como sua utilidade para a alimentação, medicina e economia. Levando em conta o contexto de União Ibérica, Contra-Reforma e suas projeções no Novo Mundo, a presente pesquisa tem como objetivo central analisar o processo missionário descrito por Fernão Cardim no período em questão inserindo-o num quadro maior de formação jesuíta. Pretendo, por fim, privilegiar a figura de Cardim enquanto mediador cultural entre as tradições nativas e a religiosidade cristã, apontando os elementos que possibilitaram essa interação e as dinâmicas particulares assumidas no encontro. Em um sentido proposto nas análises de Serge Gruzinski, o estudo sobre os mediadores culturais permite visualizar em um sentido mais amplo os esforços de aproximação desenvolvidos pelos missionários entre as sociedades nativas, elemento indispensável para a compreensão das passagens, saltos ou transferências de um universo intelectual, material ou religioso para outro.
1
INTRODUÇÃO
O presente trabalho, intitulado Relatos do Padre Fernão Cardim (1583-1625):
Missionação no Brasil da Contra Reforma, esteve baseado na vida e obra de um jesuíta
cujas narrativas remontaram, sob o olhar particular de um padre europeu, o retrato das
terras brasílicas em finais do século XVI. Descrições ricas em detalhes que, se não
deixaram de ressaltar com paixão os passos da nova cristandade entre as sociedades índias,
trouxe notável contribuição sobre o quotidiano de europeus e nativos em um momento
histórico conturbado. Para além dos escritos sobre os trabalhos missionários, Fernão
Cardim nos deixou relatos de um vasto contexto de mudanças, onde a tônica foi, sem
dúvida, o encontro entre mundos distintos. Aos irmãos da Companhia de Jesus, espalhados
por todo o ultramar ibérico, coube a difícil tarefa de trazer à luz do cristianismo sociedades
distantes, cujos aspectos culturais divergiam aos olhos espantados do europeu de maneira
absurda Processo que se mostrou complicado: a permanência dos inacianos entre os
diversos povos nem sempre foi pacífica; e a difusão do cristianismo exigiu determinadas
estratégias de aproximação.
Assim, o principal objetivo deste trabalho é analisar o processo de missionação
descrito pelo padre Fernão Cardim em finais do século XVI e início do XVII, privilegiando
sua atuação enquanto mediador cultural entre as tradições indígenas e a religiosidade cristã,
buscando identificar os elementos que possibilitaram essa interação. Para tanto, as análises
foram divididas em quatro partes.
Para entendermos o sentido da obra de Fernão Cardim é necessário termos em vista
o quadro maior no qual esteve inserida. Portanto, em um primeiro momento serão
ressaltadas as características do contexto europeu, notadamente marcado pelas idéias da
Contra-Reforma religiosa e pela União Ibérica, assim como suas projeções no ultramar.
Dada a complexidade inerente aos contatos culturais tecidos entre europeus e
nativos, o segundo capítulo será dedicado a uma breve discussão historiográfica acerca dos
conceitos e análises que nos permitam visualizar de maneira mais clara as dinâmicas
atribuídas ao encontro.
Da mesma forma que os tratados de Cardim corresponderam a um contexto
histórico particular, foram resultado de sua formação específica na Companhia de Jesus.
2
Assim, faz-se necessário remontarmos a vida e trajetória do inaciano, buscando identificar
suas influências e os elementos que nos permitam ligar sua obra a uma lógica de
missionação jesuíta.
No último capítulo passarei mais especificamente à analise da fonte, buscando
discutir os métodos de conversão desenvolvidos por Cardim e compará-los aos meios
utilizados pelos padres jesuítas em outros territórios – América Espanhola, África, Ásia –,
analisando suas particularidades e pontos que tiveram em comum.
Por fim, espero que esta pesquisa possa trazer alguma contribuição sobre a notável
personagem de Fernão Cardim; figura ainda pouco trabalhada entre os estudos históricos,
cujos escritos nos forneceram inúmeras possibilidades de saber sobre o enigmático cenário
onde europeus e nativos se encontraram, em um processo que tem atraído cada vez mais o
interesse dos estudiosos de diversas áreas.
3
1. O CONTEXTO HISTÓRICO DA EUROPA NA ÉPOCA DE FERNÃO CARDIM
E SUAS PROJEÇÕES NO ALÉM MAR
1.1 União Ibérica e Contra-Reforma nos espaços coloniais
O período que se seguiu após os primeiros movimentos de expansão europeus no
além mar foi marcado por uma série de mudanças: contexto que englobou transformações
políticas, econômicas e culturais que não tardou a ter sua projeção nos espaços coloniais
ibéricos.
No cenário português, a derrota e desaparecimento de D. Sebastião na batalha de
Alcácer Quibir em 1578 originou um conturbado momento político. Desaparecido no
Marrocos aos 24 anos de idade e sem deixar nenhum herdeiro legítimo ao trono, o reino
acabou anexado aos domínios espanhóis; após um curto período de administração do
cardeal D. Henrique – vindo a falecer aos 31 de Janeiro de 1580 – as tropas espanholas
comandadas pelo Duque d’Alba tomaram Alcântara e Felipe II da Espanha foi aclamado rei
de Portugal (adotando ali o título de Felipe I) nas cortes de Tomar em 1581 1.
Entretanto, a União Ibérica não prosseguiu sem determinadas formas de
resistências; tais movimentos não se restringiram às disputas entre os grupos que ensejavam
ocupar o trono, mas esteve presente também entre outras camadas sociais. Exemplo notável
foi o fenômeno do Sebastianismo, cuja crença messiânica pregou a vinda de um “rei
encoberto”, figura de caráter divino que resgataria a soberania e glória portuguesas 2.
Difundida não só entre as classes populares, como também entre círculos de nobres
1 Ver nota de Jacqueline Hermann, in: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-
1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pp. 571, 572. 2 A crença na figura de um Encoberto não constituiu um elemento exclusivo desse período. “É do século XII
um dos mais conhecidos casos de retomada do mito (...), encarnado pelo Imperador Barba Ruiva, que
desapareceu na Terceira Cruzada, em 1190, abrindo espaço para a espera de um continuador de sua obra
salvacionista”. É interessante salientarmos aqui o fato de que, embora o mito tenha adquirido sentidos
diferentes ao longo dos séculos, constituiu uma forma de resistência política e cultural, adequadas,
evidentemente, aos casos particulares. Ibid, p. 525.
4
exilados da administração portuguesa, essas crenças tiveram notáveis influências judaicas,
como é o caso das trovas de Antônio Annes Bandarra.
Acusado de ser “amigo de novidades” e de fazer livre interpretação das Sagradas
Escrituras, Bandarra acabou preso pela inquisição ainda em 1541, mas suas previsões
estiveram ainda presentes no contexto português. Considerado por muitos como um
verdadeiro mestre das leis judaicas – um rabi –, o sapateiro de Trancoso projetou na figura
de D. Sebastião o rei que libertaria Portugal 3, fundando ali o Quinto Império do Mundo,
“paraíso” terrestre onde judeus e cristão poderiam finalmente conviver em paz 4. Mesmo
após a batalha de Alcácer Quibir, os escritos de Bandarra serviram enquanto forma de
resistência política e cultural, messianismo judaico que respondia a um período agitado:
“dilaceramento da identidade dinástica portuguesa, crise sucessória (...)”, elementos que
sem dúvida ensejaram a criação e longevidade do Sebastianismo 5.
Em um contexto mais amplo, o caso de Antônio Annes Bandarra ilustrou, de forma
geral, aspectos que caracterizaram os séculos XV e XVI: perseguições religiosas;
reordenação de mitos; crenças mantidas na clandestinidade, estrita observação das práticas
sagradas. Assim, em 1536 foi criado no reino luso o Tribunal Inquisitorial; embora os
cristãos novos tenham constituído alvos centrais entre as heresias 6, o processo esteve
incluído num quadro maior de reformas, notadamente marcado pela Contra-Reforma, cujo
eixo central foi representado nas determinações do Concílio de Trento.
Reunido pela primeira vez em 1545 por determinação do papa Paulo III e após
várias tentativas malogradas – sobretudo em virtude da peste que assolou a cidade-sede do 3 É interessante notarmos que, ao nascer, D. Sebastião recebeu o cognome de O Desejado. Nesse sentido, o rei
“(...) parecia fadado a retomar o sonho da glória portuguesa e resgatar o império conquistador dos Avis (...)”.
Ibid, p. 524. 4 Essa questão é analisada por Jacqueline Hermann nas obras 1580-1600: o sonho da salvação. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000 e No reino do Desejado: A construção do sebastianismo em Portugal,
séculos XVI e XVII. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 5 VAINFAS, Ronaldo (dir.), op. cit, p. 524. 6 Cristão novo foi a denominação dada aos descendentes de judeus convertidos à força ao catolicismo em
1497, sob o governo de D. Manuel, em Portugal. Tendo em vista a importante presença dos judeus na
primeira fase da expansão ultramarina, não foram adotadas, em princípio, medidas persecutórias. Na Espanha,
ao contrário, a perseguição fazia-se desde 1478, sendo notória a acentuação dos casos de heresias de fundo
judaico ao longo do período de União Ibérica. Ibid, pp. 149, 150.
5
encontro – o Concílo teve suas determinações concluídas em 1562. Período marcado pelas
reformas protestantes e difusão das idéias humanistas 7, a igreja pretendeu responder a uma
avalanche de críticas ao catolicismo, tendo como alvo central um clero precário e alheio aos
dogmas cristãos. “Descobriram-se mais do que nunca, uma religião folclorizada,
moralidades impudicas à luz dos mandamentos, e um clero paroquial não somente
despreparado, mas integrado à vida da comunidade, cujo dia-a-dia só poderia indicar o
triunfo absoluto do Demônio na Terra” 8. Embora essa tenha sido a tônica da Contra-
Reforma – representada como luta do bem contra o mal –, o movimento não se limitou à
defesa do catolicismo frente ao avanço protestante ou à perseguição de heresias, mas
pretendeu antes uma reforma mais ampla, inclusive no interior da Igreja. Buscou:
revalorizar a figura do padre e insistir na castidade, procurando promover a formação de um clero mais digno em seus costumes, melhor preparado intelectualmente, mais coeso enquanto corpo social hierarquizado e mais obediente à Roma. Para isso foram mobilizados os bispos, cujo poder foi reforçado, e accionadas as justiças eclesiástica e inquisitorial para punir as condutas desviantes. A fundação de seminários; a difusão das conferências eclesiásticas; a implementação das visitas diocesanas; o aumento do rigor na seleção dos candidatos à ordenação; a consolidação de uma vasta rede paroquial que viabilizasse a acção pastoral; (...) foram algumas das medidas destinadas a garantir a eficácia da reforma do clero e, por, conseguinte, de toda a cristandade 9.
Da mesma maneira a Contra-Reforma não esteve restrita ao episódio do Concílio
de Trento: representou antes um longo processo de mudanças que visaram responder à crise
do Catolicismo iniciada ainda em finais da Baixa Idade Média. No século XIII “as heresias
medievais, a exemplo dos cátaros, difundiam doutrinas que se opunham à ortodoxia de
Roma, sendo que a inquisição medieval fora criada com o propósito de combatê-las. Além
7 É importante destacarmos, por exemplo, Erasmo de Rotterdam com seu Elogio da Loucura. As críticas
surgidas entre o meio letrado constituíram importante influência nos movimentos da Reforma protestante.
TAVARES, Célia Cristina da Silva. Jesuítas e Inquisidores em Goa: A Cristandade Insular (1540-1682).
Lisboa: Roma, 2004, p. 89. 8 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moralidade, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial.
Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 9. 9 TAVARES, Célia Cristina da Silva. Op. cit, p. 89.
6
disso, ordens mendicantes foram formadas, tal como a dos franciscanos, cujo fundador, São
Francisco de Assis, exaltava a pobreza como valor essencial dos cristãos, em contraste com
a riqueza e ostentação das igrejas”. O Cisma do Ocidente marcou ainda finais do século
XIV e início do XV (1378-1417), evento que, dividindo a cristandade ocidental, acabou por
abalar a estrutura da Igreja 10.
Nesse sentido, as tentativas de reformulação interna e desenvolvimento de meios
coercitivos foram observadas anteriormente ao Concílio de Trento. É o caso da Reforma
Gregoriana, dos séculos XII e XIII, cujo eixo central esteve baseado na reafirmação de
dogmas e sacramentos católicos; a reordenação dos bispados fora já desenvolvida em várias
dioceses ao longo do século XV e início do XVI: “Guillaume Briçonner, em França (1472-
1534), pretendera transformar a diocese de Meaux em sés-modelo, do mesmo modo que
Gian Matteo Giberti, em Verona (1527) e Francisco Ximenéz de Cisneros (1425-1517),
cardeal primaz de Toledo. Todos procuraram estimular a devoção ao Evangelho entre os
clérigos, prepará-los para o exercício da pastoral, disciplinar as ordens regulares, criar
condições, enfim, para uma aproximação mais ampla e profícua entre a Igreja e os leigos” 11. Dessa maneira, a Contra-Reforma deve ser entendida enquanto fenômeno que englobou
um grande espaço temporal e geográfico 12.
Tais elementos permitem-nos observar que a expansão do catolicismo esteve
presente, então, desde cedo nos processos de colonização europeus; desse modo, as
reformas religiosas tiveram igualmente sua projeção no além-mar ibérico. Entretanto, para
entendermos esse movimento conjunto entre coroa e igreja é indispensável levarmos em
10 Id. Ibid. 11 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Op. cit, p. 8. 12 Célia Cristina Tavares discorre sobre essa questão ao criticar linhas historiográficas mais tradicionais que
reduziram a Contra-Reforma como mera reação da Igreja Católica aos ataques protestantes, assim como
visões elitistas que excluíram a atuação e reformulações no interior da própria cristandade. Tendo em vista a
complexidade do movimento, é possível identificarmos três momentos distintos e complementares: “a
preparação da Reforma (dos fins da Idade Média ao princípio do século XVI); o período do Concílio de
Trento (1545-1563), entendido como o da Contra-Reforma, propriamente dita; e, por último, um longo
período de implementação das medidas reformadoras (entre os séculos XVI e XVIII)”. É evidente que o
objetivo aqui não é cair em uma mera divisão cronológica, mas a ênfase do fenômeno enquanto um longo
processo de mudanças. TAVARES, Célia Cristina da Silva. Op. cit, p. 90.
7
conta a questão do padroado. Tendo sua origem ainda na Idade Média, constituiu um
regime no qual a “Igreja instituía um indivíduo ou instituição como padroeiro de certo
território, a fim de que ali fossem promovidas a manutenção e propagação da fé cristã. Em
troca, o padroeiro recebia privilégios, como a coleta dos dízimos e a prerrogativa de indicar
religiosos para o exercício das funções eclesiásticas” 13. Dessa forma, a expansão cristã
esteve sempre ligada aos interesses dos reis, que mantinham através do padroado o controle
sobre a Igreja.
Embora tenha havido constantes divergências entre os interesses Eclesiásticos e da
coroa, “a aliança estrita entre a Cruz e a Coroa, o trono e o altar, a Fé e o Império, era uma
das principais preocupações comuns aos monarcas ibéricos, ministros e missionários em
geral” 14. Na América Espanhola, os Reis Católicos e Carlos I enviaram ordens
franciscanas, dominicanas, agostinianas e mercedárias para os serviços missionários,
seguidas, em 1568, pelos jesuítas. Estes ocuparam papel central nos domínios portugueses,
a exemplo da Índia, onde Francisco Xavier esteve presente ainda em 1542 15. As ordens
religiosas estiveram assim fortemente ligadas aos interesses colonizadores, ocupando papel
central nas conversões.
Ao receber o padroado de diversas regiões, a coroa portuguesa ficou igualmente
responsável pelo patrocínio das missões de conversão de gentios. E foi, de fato, através das
missões que o espírito da Contra-Reforma encontrou terreno nos domínios ibéricos. Assim,
embora anterior ao Concílio de Trento, mas incluída no conjunto de medidas empreendidas
pela Reforma católica, estiveram situadas as missões jesuíticas.
13 No caso de Portugal o rei ficou incumbido não só do padroado de diversos territórios como também
recebeu um padroado régio, “que o habilitava propor a criação de novas dioceses, escolher os bispos e
apresentá-los ao papa para confirmação”. Nota de Guilherme Pereira das Neves, in: VAINFAS, Ronaldo (dir).
Dicionário do Brasil Colonial. Op. cit, p. 466. 14 BOXER, Charles R. A Igreja e a expansão Ibérica (1440-1770). Tradução de Maria de Lucena Barros e
Sá Contreiras. Lisboa: Edições 70, 1981, p. 98. 15 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Op. cit, p. 14.
8
1.2 A Companhia de Jesus
Para a ação da Contra-reforma nos espaços coloniais, foi essencial a criação de
ordens regulares responsáveis pela manutenção da fé nos diversos territórios no além-mar;
assim, criada em 1537, a Companhia de Jesus representou o exemplo mais notável de
“missionação a qualquer parte do globo”, compreendendo uma formação particular de
bispos e padres diretamente ligada aos serviços de catequisação. Para isso pressupôs em seu
interior uma forte organização hierárquica – estrita obediência aos superiores – assim como
a definição de um “método missionário” bem estruturado.
O movimento teve início em Paris, e seu núcleo inicial contou com um grupo de
estudantes do Colégio de Santa Bárbara que se reuniam em torno do basco Inácio de
Loyola 16, cujos estudos tiveram notável influência da Devotio Moderna. Difundida dos
Países Baixos em finais do século XIV e início do XV para outros países da Europa, sua
pedagogia supôs:
uma clara compreensão do latim e a inserção no coletivo da família monástica. A missa da devotio moderna é uma missa curta, missa à qual as pessoas se associam através de uma oração pessoal que não adere estreitamente aos temas litúrgicos. O monge apostava na regra; a devotio moderna, pelo contrário, é socrática, maneja a introspecção e recorre à direcção de consciência. A devotio moderna conhece já a tentação casuística. Mantém de boa vontade um diário, individualiza e recorre a exercícios. Mas é sobretudo imitatio Christi. Está próxima do Cristo e da dor e vive a pietá (...) É necessário ensinar ao povo que, no verdadeiro Deus e verdadeiro homem do símbolo, o Cristo é também verdadeiramente homem e
16 O grupo fundador da Companhia contou com Pedro Fabro, Francisco Xavier, Diogo Laínez, Afonso
Salmerón, Nicolau Bobadilha e Simão Rodrigues. A idéia inicial desses primeiros jesuítas foi a de fazer uma
peregrinação a Jerusalém; posteriormente essa idéia acabou gerando algumas contradições entre os membros
da ordem, “pois havia os que queriam ir (...) com o espírito e, até mesmo, os métodos das cruzadas e os que
defendiam a questão numa óptica mais universal, uma acção para o mundo (a que vai marcar as acções futuras
da Companhia de Jesus)”. A peregrinação acabou não acontecendo, mas o grupo procurou o papa em 1538 e
se dispôs a propagar a santa fé em outras partes do mundo. TAVARES, Célia Cristina da Silva. Op. cit, p. 93.
9
que, além do verdadeiro Deus, existe também nele o verdadeiro homem 17.
Inácio de Loyola buscou sobretudo uma renovação dos métodos missionários,
integrar à cristandade não só um vasto contingente de leigos como também reintegrar os
religiosos nos dogmas cristãos. Para isso deixou os Exercícios Espirituais como orientação
principal para as missionações; com notável influência das obras de Thomas Kempis,
Imitação de Jesus Cristo, e do abade Cisneros, Livro de Exercícios para a vida espiritual –
ambos de inspiração na Devotio Moderna, seus exercícios espirituais formaram espécie de
manual para orações e para o auto-exame de consciência. “Trata-se de uma série de
instruções práticas que ensinavam a utilização de todos os cinco sentidos aliados à razão
para se buscar descobrir a vontade de Deus. (...) Um guia espiritual que a princípio era
seguido individualmente, mas que ao longo dos séculos XVII e XVIII difundiu-se como
prática de grupo” 18.
Após a criação da Companhia de Jesus o movimento inaciano difundiu-se
rapidamente para várias regiões do globo. Quando Inácio de Loyola faleceu em 1556 a
ordem contava com aproximadamente 1000 membros e já administrava diversos colégios,
residências, entre outras instituições ligadas ao ensino religioso. Em finais do século XVI
seus missionários e fundações espalharam-se pela Europa, África, Ásia e América.
Com ambições notadamente universalistas, as missões jesuítas foram marcadas por
um espírito prático de conversão, o que conduziu muitas vezes a uma aproximação cultural
com os grupos a serem evangelizados. Assim, Inácio de Loyola recomendou “(...) proponer
que todo buen Cristano há de ser mas pronto a salvar la proposicion Del próximo que a
condenarla; y si no la puede salvar, inquira como la entende, y si mal la intende, corríjale
com amor, y si no basta, busque todos os métodos convenientes para que, bien
entendiéndola, se salve” 19.
Algumas das práticas jesuítas foram inclusive severamente criticadas entre o clero
mais ortodoxo que as viu como condutas desviantes da fé católica. Mas de fato o esforço de
17 Pierre Chaunu apud TAVARES, Célia Cristina da Silva. Op. cit, p. 91. 18 Ibid, p. 92. 19 LONDOÑO, Torres. Escrevendo Cartas. Jesuítas e Missão no Século XVI. In: Revista Brasileira de
História, n.º 43, vol 22. São Pulo, 2002, p. 26.
10
adaptação às diferentes realidades assim como a proximidade entre missionários e nativos,
caracterizou as missões jesuítas em geral – é o caso, por exemplo, das missões que
utilizaram práticas religiosas distintas como meio de propagação do catolicismo. Esses
elementos, entretanto, não necessariamente constituíram características exclusivas dos
métodos de evangelização da Companhia de Jesus; da mesma forma, vale destacar o alerta
de Célia Cristina Tavares e termos em mente que
(...) mesmo quando os inacianos aparentemente toleraram ou conformaram-se com a realidade cultural e religiosa daqueles que pretenderam evangelizar, o postulado básico da sua acção é o de transformar, ou seja, submeter o outro à sua própria lógica, ao catolicismo, pois o que acreditavam que deve ser feito é promover a salvação das almas daqueles que estão longe da fé 20.
Criada, portanto, para a defesa e difusão do cristianismo na Europa e no além-mar,
os inacianos rapidamente se espalharam por todo o globo. No Brasil, o primeiro grupo –
liderado por Manuel de Nóbrega – chegou em meados de 1549. A chegada dos jesuítas na
América portuguesa não somente se antecedeu às demais ordens regulares, mas igualmente
garantiu o monopólio das atividades de conversão do gentio com a fundação do primeiro
bispado, em 1551, na Bahia.
Quando chegou no Novo Mundo, Cardim presenciou, portanto, um momento
relativamente avançado nos serviços missionários. Entre conflitos com os colonos que
insistiam na utilização da mão de obra índia sobretudo nos engenhos de açúcar, os padres
inacianos já demonstravam agudo senso prático na aproximação com as sociedades locais e
na compreensão de seus elementos sociais. Da mesma forma, já haviam desenvolvido há
tempos grupamentos de nativos em aldeias como meio de fazer avançar sua atividade
apostólica.
Entretanto, essa proximidade com aqueles que pretenderam cristianizar não era
novidade. No Oriente, em meados de 1542 Francisco Xavier já havia dado exemplos da
necessidade de entender determinados aspectos das dinâmicas locais afim de que os frutos
do cristianismo pudessem ser efetivos; compreensão que só se mostrou possível com o
contato direto com as sociedades locais.
20 Ibid, p. 95.
11
Assim a convivência com as sociedades nativas esteve presente desde cedo como
estratégia de conversão. Tais questões nos remetem à discussão de conceitos relacionados
aos processos de encontro entre culturas, reflexões que servem de instrumento para a
compreensão das atividades missionárias inacianas. Proponho então a revisão acerca das
análises que levaram em conta tais processos.
12
2. HIBRIDISMO E MESTIÇAGEM NOS DOMÍNIOS COLONIAIS: ALGUMAS PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS
2.1 Missionários e locais: o contato entre civilizações e as dinâmicas do encontro
Ao longo dos séculos XV e XVI observamos nas grandes navegações européias a
aproximação de mundos diferentes 21. De um lado situa-se um verdadeiro mosaico de
culturas, de sociedades que diferiam na aparência física, língua e costumes; sociedades
ligadas através de complexas relações de aliança, guerra ou trocas tecidas entre os povos.
Por outro lado, as personagens desenraizadas da Europa tentam construir nos domínios
coloniais a réplica do ambiente branco e europeu.
Para além da expansão territorial e constituição de novas redes comerciais, esse
processo significou o convívio com sociedades nativas de várias partes do globo. Somado
ao longo período de perseguições religiosas e renovação cristã marcado pelo espírito da
Contra Reforma, o contato entre diferentes civilizações constituiu marca notável na era dos
descobrimentos.
Ao analisarmos esse complexo quadro de encontros culturais, sociais e políticos
inerente aos movimentos expansionistas ultramarinos, questões como “mestiçagem”,
“hibridismo”, “aculturação”, adquiriram sentidos historiográficos distintos. O objetivo aqui
não é o de em uma generalização equivocada a respeito do tema, pois na verdade apresenta
terreno riquíssimo de análises, mas proponho uma breve classificação de alguns autores
quanto a isso.
Primeiramente, há aqueles que rejeitaram a idéia de que as mestiçagens pudessem
efetivamente constituir um processo de “mão dupla”. Pensando em termos racialistas de
dominação, o contato entre as diferentes culturas – no sentido mais amplo do termo – não
conformou novas existências sociais. “O racialismo de Oliveira Viana, por exemplo, com
21 Os movimentos de expansão têm início sobretudo no século XV, com Portugal à frente, conquistando
Ceuta, no Marrocos, em 1415.
13
sua concepção de ‘embranquecimento’ como resultado indelével da miscigenação (...) não
dava muito lugar à ‘mestiçagem’” 22.
Análises desse tipo foram características de uma historiografia tradicional
desenvolvida sobretudo ao longo do século XIX. Para ilustrar de forma geral uma visão
desse tipo podemos tomar como conceito central a “transculturação”: com influências dos
estudos antropológicos, “pressupunha uma transmissão unilateral de padrões culturais, de
uma cultura específica para outra, rigidamente submetida” 23.
De conotação notavelmente etnocêntrica, essa visão ocupou papel de destaque nos
estudos do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), a exemplo das análises de
Francisco Adolpho de Varnhagen nos anos de 1840 24. Pensando em termos iluministas de
progresso, estágios de civilização, o autor propõe uma identidade branca e européia: cabia
ao colonizador integrar índios e negros à esfera da civilidade – onde obviamente estaria
situado o cristianismo. “História elitista e imperial que, se deu contribuição surpreendente
ao informar sobre os costumes e crenças dos tupis, chamou-os quase sempre de bárbaros e
selvagens e praticamente silenciou sobre os negros. Com Varnhagen, a ‘miscigenação’
permaneceu oculta, seja racial, étnica ou cultural” 25.
Entretanto, sem perder de vista o objetivo do presente capítulo, chamo a atenção
para o termo transculturação no tocante às missionações religiosas. Pressupor que o contato
desenvolvido entre as diferentes religiosidades constituiu um “caminho de via única” seria
admitir que os missionários viram “de fora” o processo de mestiçagem – cultural –, sem
sofrer influências locais. Sem dúvida uma visão desse tipo dificultaria a análise da ação
inaciana nos espaços coloniais ibéricos, uma vez que, constituindo um termo
demasiadamente rígido, a transculturação não permitiria visualizar as “fórmulas de
22 LIMA, Carlos A. M. Um pai amoroso os espera: sobre mestiçagem e hibridismo nas Américas
Ibéricas. In: Philomena Gebran; Carlos A. Lima; Paulo Seda; Ana Maria da Silva Moura (Org).
Desigualdades. 1. ed. Rio de Janeiro, 2003, v. 1. p.3. 23 TAVARES, Célia Cristina da Silva. Op. cit, pp. 95 e 96. 24 Sobre essa questão ver GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. In: Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, 1988, n.1. 25 VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da
historiografia brasileira. In: Tempo. Revista do departamento de História da UFF, 1999. p. 2.
14
entendimento” que os jesuítas pretenderam com as culturas locais, excluindo o papel dos
próprios nativos nas conversões, elemento indispensável para a compreensão do fenômeno
e as várias direções que assumiu26.
Os processos de mestiçagem e mescla cultural ganharam sentido distinto em autores
da década de 1930, a exemplo de Gilberto Freyre, no clássico Casa Grande & Senzala. Sob
influência do historicismo alemão e dos estudos de Franz Boas, Freyre analisa o caráter
híbrido de uma população luso-brasileira. Substituindo o conceito de raça pelo de cultura –
embora Freyre não o faça completamente –, a mestiçagem é vista como elemento positivo:
as culturas negra e índia somente enriqueceram a cultura portuguesa, dando lugar a uma
população original – portanto, dotada de características próprias – nos trópicos 27. Embora a
obra de Freyre tenha sido severamente criticada posteriormente 28 – sobretudo ao longo dos
anos 60 –, os estudos ligados às mesclas e hibridismos culturais têm levado cada vez mais
em conta aspectos do quotidiano nas colônias ibéricas, incluindo os diversos processos de
evangelização.
Passando então a um segundo grupo de análises, que viram na mestiçagem elemento
constituinte de “novas” existências sociais, autores como Nathan Wachtel têm apontando
para um fenômeno mais amplo, sugerindo o conceito de aculturação. Para Wachtel
(...) a aculturação não se reduz a uma única marcha, à simples passagem da cultura indígena à cultura ocidental; existe um processo inverso, pelo qual a cultura indígena integra os elementos europeus sem perder suas características originais. Essa dupla polaridade confirma que a aculturação não pode ser reduzida à difusão, no espaço e no tempo, de traços culturais arbitrariamente
26 Ver TAVARES, Célia Cristina da Silva. Op. cit, pp. 96. 27 Essa discussão é feita por REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 2. ed. Rio
de Janeiro: Ed. Da FGV, 1999. 28 As críticas estiveram muitas vezes baseadas no fato de Freyre ter acentuado demasiadamente a
convergência e contribuição das diferentes raças, deixando oculto conflitos internos e a violência desse
processo.
Sobre essa questão ver nota de Ronaldo Vainfas intitulada “Miscigenação”, in: VAINFAS, Ronaldo (dir.).
Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pp. 400 e 401.
15
isolados: trata-se de um fenômeno global que compromete toda a sociedade 29.
Compreendendo processos que caminharam para a integração e ou assimilação de
valores, a aculturação conformou justaposições, sincretismos, “combinações de elementos
saídos de culturas diferentes, mas que dão lugar a um novo sistema ordenado segundo
princípios distintos daqueles que regiam os sistemas de origem” 30. O encontro atribuiu
dinâmicas distintas a elementos tradicionais nativos e europeus, que tiveram de se adaptar à
realidade colonial.
No tocante ao campo religioso, Wachtel traduziu, na maioria dos casos, as
reordenações culturais enquanto esforços nativos para a manutenção de suas antigas
crenças:
Certamente eles se submetem às aparências do culto cristão, mas elas lhes permitem camuflar os ritos autóctones; os espanhóis, por outro lado, mantêm a ambigüidade edificando cruzes e igrejas sobre os lugares sagrados; quanto aos índios, dissimular ídolos perto das portas das igrejas e sob o altar. (...) No decorrer dos séculos, os elementos ocidentais e autóctones misturam-se pouco a pouco, sem dúvida alguma, num sincretismo mais ou menos equilibrado. 31
Em outros casos identificou formas mais claras de resistência nativa. É o caso do
movimento milenarista de Taqui Ongo, em meados de 1560. Tendo origem nos Andes
Centrais, seus pregadores anunciaram o fim do domínio espanhol: “os deuses nativos que
tinham sido derrotados e mortos na época de chegada de Pizarro voltariam novamente à
vida e entrariam em combate com o deus cristão que, por sua vez, seria conquistado. Então
os Espanhóis seriam expulsos do país (...)” 32.
29 WACHTEL, Nathan. A aculturação. In: História: novos problemas. Direção de Jacques Le Goff e Pierre
Nora, tradução de Theo Santiago. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976, p. 114. 30 Ibid, pp. 118 e 119. 31 WACHTEL, Nathan. A aculturação. Op. cit, p. 122. 32 WACHTEL, Nathan. Os índios e a conquista espanhola. Op. cit, p. 229.
16
De uma forma resumida, o encontro entre nativos e colonizadores assumiu
dinâmicas distintas e respondeu a casos particulares situados entre as diferentes esferas do
social. O fenômeno produziu, assim, adaptações e substituições culturais forçadas ou não.
Análise bastante similar é feita por Ronaldo Vainfas em A Heresia dos Índios 33. A
obra de Vainfas trata, fundamentalmente, de uma série de relatos produzidos durante a
Primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia e ao Nordeste Brasileiro em 1591. O visitador
Heitor Furtado, ao chegar ao Novo Mundo, depara-se com a chamada Santidade de
Jaguaripe, movimento milenarista que, guiado pelo profeta Antônio, conduzia índios
fugidos das aldeias jesuíticas e das fazendas de açúcar rumo à “terra sem mal”, mito tupi
que buscou o paraíso na terra 34.
Através de trabalhos de Capistrano de Abreu, como “Um Visitador do Santo Ofício
à cidade de Salvador e ao Recôncavo de Todos os Santos”, Vainfas desenvolve como
questão central em seu livro a análise da Santidade de Jaguaripe enquanto movimento
anticolonialista, bem como as transformações ocorridas no mito tupi quando este se
deparou com o colonialismo europeu. Nesse sentido, o autor aborda de maneira interessante
uma resistência nativa, seu papel na colonização e a forma com que reagem ao contato com
os brancos.
A base de argumentação do autor é encontrar em elementos como a idolatria ou
Santidade uma forma de apego às antigas tradições; dessa forma, Vainfas aponta para um
sentido bastante parecido ao destacado por Nathan Wachtel, onde o contato entre os
mundos indígena e europeu, antes de caminhar para uma rápida diluição cultural,
conformou pensamentos sincréticos e o reordenamento de mitos.
Nesse sentido, a questão da mestiçagem é discutida na Santidade de Jaguaripe à
medida que Vainfas observa a inclusão de novos valores europeus e a reestruturação do
mito da “terra sem mal”, levando agora em consideração um novo contexto social. O mito
ordenador da Santidade já existia antes mesmo da colonização, mas, ao contrário de uma
tradição baseada na cosmologia, o intercurso entre as culturas branca e tupi dá ao mito um
33 VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. 34 O mito da terra sem mal é discutido também por CLASTRES, Hélène. Terra sem mal: o profetismo tupi-
guarani. São Paulo: Brasiliense, 1978.
17
sentido que passou a ser político. O próprio movimento é visto então como um elemento
situado fora da tradição indígena, promovendo, além de reação anticolonial, uma lenta
desagregação de sociedades tupis, uma vez que haveria conflitos sócio-culturais no interior
da hierarquia nativa (disputas entre guerreiros e chefes religiosos, migrações, guerras,
contradições culturais não só entre europeus e nativos, mas entre os próprios tupis) 35.
De qualquer maneira, o que nos interessa aqui não é analisar o caráter de resistência
social da Santidade. Entretanto, levar em conta o papel nativo nos encontros culturais é
indispensável para a compreensão das dinâmicas que assumiram os processos de
aculturação. Um outro caso bastante ilustrativo disso são as análises de John Thornton a
respeito das conversões no ambiente africano 36. Pensando em termos de revelações e
cosmologias, a interação entre europeus e africanos teria caminhado na direção de um
cristianismo-congolês.
Em seus estudos, Thornton afirma que, apesar das divergências entre cristãos e
africanos, houve elementos comuns entre os imaginários religiosos que permitiram uma
interação entre eles. No caso do cristianismo (católico), observa-se uma clara
hierarquização entre aqueles aptos a divulgar as palavras sagradas e o contingente (muito
maior) de leigos – subentendedo-se aqui uma preparação e qualificação específicas. Da
mesma forma, suas crenças baseiam-se num saber sobre revelações passadas, contidas nas
sagradas escrituras. Por outro lado, a religiosidade africana, mediúnica, é constituída com
base em revelações contínuas: previsões sobre o futuro; mensagens recebidas de
antepassados; incorporação de espíritos. Responde, portanto, a causas imediatas e não
pressupõe uma estrita hierarquização do saber religioso 37 – nas palavras de Thonrton a
“ausência de ortodoxia”, elemento que facilitou o encontro.
Entretanto, embora tenham constituído dinâmicas claramente distintas, Thornton
identifica pontos comuns entre as religiosidades, quais sejam: a crença na existência de dois
mundos; e a própria forma com que se dá a interação com o mundo “divino”, através das 35 GONÇALVES, Marco Antônio. Etno-História de uma Resistência. In: Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, v. 8, n.o 15, 1995. 36 THORNTON, J.K.A. Religiões africanas e o cristianismo no mundo atlântico. In: A África e os
africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Campus, 2004. 37 BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In:. A economia das trocas simbólicas. Trad.
Sérgio Miceli et al. S. Paulo: Perspectiva, 1974.
18
revelações. Estes elementos teriam constituído então pontos-chave para a integração entre
os mundos católico e africano. É evidente que católicos e africanos nem sempre
concordaram com a natureza de certas revelações, instituindo abordagens inclusivas ou
exclusivas. Contudo, dada as similitudes entre a fé católica e africana, o encontro permitiu a
conformação de uma religiosidade bastante particular, ou o “cristianismo-africano”. Nesse
sentido,
“estabelecida a base do conhecimento religioso em ambas as tradições (...) não é surpreendente que a fusão não tenha sido simplesmente um emaranhado de cosmologias nem um empreendimento intelectual mas, ao contrário, um exame complexo das revelações conduzidas tanto por africanos quanto por cristãos” 38.
Como resultado observamos uma noção de religiosidade que, embora cristã – uma
vez que aceitou uma série de santos reconhecidos pelos católicos –, assumiu uma direção
muito particular e diferente do “cristianismo europeu”, pois, além de ser “filtrado” pelos
africanos, teve de aceitar igualmente a inclusão de novos valores.
A intenção aqui não é a de situar as análises discutidas anteriormente em uma única
visão historiográfica: além da óbvia diferença nos recortes temporais e geográficos, sem
dúvida alguma correspondem a problemáticas e objetivos bastante distintos. Entretanto,
forneceram um conceito de aculturação mais flexível para se estudar as aproximações
culturais. Nesse sentido, os diferentes autores têm concebido as mestiçagens como fruto
dessas interações, assim como da necessidade de se viver em novos espaços de
sociabilidades, fenômeno que conduz tanto europeus quanto nativos a amplas
reformulações internas.
Diante dessa breve discussão conceitual, a ação evangelizadora da Companhia de
Jesus pode ser compreendida se levarmos em conta essas chaves de interpretação, uma vez
que, ao mesmo tempo em que portavam elementos culturais notadamente europeus, os
jesuítas entraram em contato direto com variados tipos de culturas. Embora o processo
tenha sido gradualmente incluído num prisma de pensamentos ocidentais, exigiu ou
apontou para direções e esforços de aproximação bastante distintos. Entretanto, as
38 THORNTON, J.K.A. Op. cit, p. 334.
19
missionações inacianas podem ser mais bem entendidas se levarmos em conta o papel dos
“mediadores culturais”.
2.2 Os mediadores culturais
Termo proposto nas análises de Serge Gruzinski, os mediadores culturais foram
responsáveis pelo estabelecimento de “ligações entre mundos, povos e culturas, aqueles que
efectivaram a passagem, o salto ou a transferência de um universo intelectual, material ou
religioso para outro” 39. Essa questão foi observada, por exemplo, no papel dos nativos
convertidos na América espanhola. Segundo Gruzinski
padres e freiras indígenas pertenciam, de modo geral, a uma camada dirigente, que mantinha uma inegável influência simbólica e social sobre a sociedade indígena. Eram eles que, com sua piedade, os modelos que incorporavam e a dominação que ainda exerciam, integravam os meios indígenas à sociedade da Nova Espanha – um pouco como a feitiçaria, num nível completamente diferente, ligava e misturava os dois mundos 40.
Sobre as análises de Serge Gruzinski vale ressaltar que o autor aponta para um
sentido distinto para os fenômenos de miscigenação. “Diz ele que encontro produziu
híbridos que se estabeleceram enquanto tais” 41, mas ao termo aculturação Gruzinski sugere
a ocidentalização. A aproximação entre diferentes personagens produziu mesclas culturais
– sincretismos, reordenamento de tradições – mais ou menos estáveis no Novo Mundo;
entretanto, mais do que um fenômeno conduzido pelas situações locais, a tônica foi dada,
sobretudo, pelos movimentos correntes na Europa 42. “Para simplificar, teriam existido
39 GRUZINSKI, Serge & LOUREIRO, Rui Manoel (coord.). Passar as fronteiras: II Colóquio
Internacional sobre os mediadores culturais. Séculos XV a XVIII. Lagos: centro de Estudos Gil Eanes,
1995, p.5. 40 GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário: Sociedades indígenas e ocidentalização no México
espanhol. Séculos XVI-XVIII. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2003,
p. 384. 41 LIMA, Carlos A. M. Op. cit, p.7. 42 GRUZNINKI, Serge. Op. cit.
20
híbridos renascentistas, no século XVI, híbridos barrocos, no século XVII, e a transição
para híbridos ‘populares’, (...) no século XVIII da Ilustração (...)” 43. Contudo, os valores
adquiriram sentido próprio nas sínteses culturais entre europeus e indígenas. Nas palavras
de Serge Gruzinski: “os pensamentos, as coisas e os homens entregavam-se à mestiçagem.
Novos seres que não tinham, propriamente, seu lugar nem no Novo Mundo nem no Antigo” 44.
De qualquer maneira, a ocidentalização da América espanhola – compreendendo
também a evolução do domínio colonial – exigiu a formulação de determinadas estratégias
de aproximação, que levaram em conta hierarquias, modos de produção, assim como
relações interpessoais no interior das sociedades indígenas. Assim, as tentativas de
instrumentalização de elementos sociais nativos incluíram a necessidade de se compreender
suas dinâmicas; essas tentativas foram observadas, por exemplo, entre as ordens religiosas.
Daí seu papel fundamental enquanto mediadores culturais, uma vez que, situados entre as
fronteiras dos mundos europeu e indígena, muitos dos jesuítas foram capazes de construir
pontes de ligação entre as civilizações 45.
Em uma mesma linha de análise a respeito dos mediadores outro caso que merece
bastante destaque é descrito por Tzvetan Todorov, na obra A Conquista da América: a
questão do outro. Tendo como objetivo central identificar a percepção criada pelos
espanhóis quando estes se depararam com as sociedades nativas no Novo Mundo, Todorov
dedica um dos capítulos à analise das fontes deixadas pelo dominicano Diego Durán 46.
Nascido na Espanha em meados de 1537, Durán seguiu para o México ainda com cinco ou
seis anos de idade; após o longo período em que permaneceu na América, redigiu a
Historia de lãs Índias de Nueva España e Islãs de la Tierra Firme, obra dedicada sobretudo
à descrição da história e religiosidade dos astecas, fruto da proximidade que manteve até
meados de 1588 – data em que faleceu – com as culturas indígenas mexicanas.
43 LIMA, Carlos A. M. Op. cit. p. 7. 44 BERNAND, Carmen & GRUZINSKI, Serge. História do Novo Mundo: Descoberta à Conquista,
Experiência Européia. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1997. p. 589. 45 Os mecanismos de aproximação e conversão das sociedades nativas ocuparam papel de destaque na obra de
BERNAND, Carmen & GRUZINSKI, Serge. Op. Cit. 46 O capítulo é denominado como Durán, ou a mestiçagem das culturas.
21
Dedicando-se à conversão dos povos nativos, Durán reconheceu que a imposição do
cristianismo, assim como a extirpação completa das práticas pagãs, supunha um
conhecimento prévio das religiões desviantes: somente assim os missionários poderiam
reconhecer os ritos que eram mantidos clandestinamente na forma de celebrações cristãs.
Os sincretismos religiosos parecem, inclusive, ter ocupado papel de destaque na obra de
Diego Durán:
Esta é nossa principal intenção: prevenir o clero da confusão que pode existir entre as nossas festas e as deles. Os índios, simulando a celebração das festas de nosso Deus e dos Santos, inserem e celebram as de seus ídolos quando caem no mesmo dia. E introduzem seus antigos ritos no nosso cerimonial 47.
Entretanto, ainda que o dominicano tenha buscado uma eliminação completa das
práticas religiosas nativas, o convívio com os indígenas rendeu algumas analogias bastante
interessantes. Exemplos disso foram os rituais de purificação astecas: “Consideravam a
água como purificadora do pecado. Nisso os índios não estavam enganados, pois Deus
colocou o sacramento do batismo na substância da água, e é por ela que fomos lavados do
pecado original” 48.
O reconhecimento de pontos em comum entre a religião cristã e as crenças
supersticiosas conduziu muitas vezes missionários como Diego Durán a uma posição
bastante particular: o contato os aproximou de uma religiosidade nativa sem deixar de lado,
entretanto, as antigas convicções cristãs; “(...) um cristão convertido ao indianismo que
converte os índios ao cristianismo” 49. Tais casos não ficaram restritos, obviamente, aos
espanhóis; os próprios nativos parecem ter compreendido igualmente isso. Ao censurar um
índio por insistir em suas tradições pagãs, Durán nos conta que ele respondeu da seguinte
forma:
47 Digo Durán apud TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de
Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.202. 48 Ibid, pp. 204, 205. 49 Ibid, p. 214.
22
Padre, não se espante; ainda somos nepantla’. Embora eu conhecesse o sentido da palavra, isto é, ‘no meio’, insisti para que ele me dissesse a qual ‘meio’ se referia. Disse que, já que as pessoas ainda não estavam bem firmes na fé, eu não deveria ficar assombrado por continuarem neutros; não eram guiados por nenhuma das religiões. Ou, melhor dizendo, acreditavam em Deus e também seguiam seus antigos ritos e costumes diabólicos 50.
Este relato nos fornece exemplo significativo sobre o rumo tomado pelo processo de
mestiçagem. Assim como Durán, os europeus e nativos estiveram integrados a uma nova
esfera social: nem espanhola, nem indígena; ao se tornar também um mestiço cultural,
Durán abandonou igualmente seu papel de mediador e intérprete que havia escolhido 51.
A análise sobre o papel dos mediadores culturais não ficou restrita, entretanto, ao
ambiente do Novo Mundo. Esse conceito ocupou papel central, por exemplo, na obra de
Célia Cristina Tavares, Jesuítas e Inquisidores em Goa. Num sentido bastante parecido ao
apontado por Serge gruzinski, Célia Tavares buscou compreender as dinâmicas de atuação
da Companhia de Jesus no Oriente assim como identificar as estratégias de aproximação
cultural formuladas pelos inacianos 52.
Para além das práticas de batismo, confissões em massa e os sermões religiosos, o
processo de cristianização pressupôs o convívio íntimo com as civilizações locais;
conhecimento de suas línguas, organização social e religiosidade que permitiu a adaptação
dos métodos missionários aos diferentes ambientes. Caso ilustrativo foi o de Henrique
Henriques, entre 1548 e 1660, na costa da Pescaria, no extremo sul do subcontinente
indiano, quando relatou:
Temos feito três igrejas grandes, 2 para os paravas e uma para os cearás, em que aos domingos venham à Igreja (...) Os cearás do lugar pequeno e os palevilís (...) têm também cada um sua igreja pequena, para ensinarem as orações aos meninos e meninas e aos domingos vêm os homens às Igrejas principais. Aos Sábados vêm as mulheres dos cristãos paravas e palevilís às duas Igrejas
50 Ibid, p. 207. 51 Ibid, p. 114. 52 TAVARES, Célia Cristina da Silva. Op. Cit.
23
principais. E as mulheres dos cereás ordenamos que viessem à 5.a feira (...) 53.
Respeitando a lógica hindu da sociedade de castas, Henriques demonstrou
reconhecer elementos significativos para que as conversões pudessem ocorrer de forma não
conflituosa; entendeu, assim, a diferença entre os grupos e a necessidade de mantê-los
separados.
Por fim, dito tudo isso, a análise dos métodos inacianos assim como das dinâmicas
atribuídas ao encontro torna-se mais fácil. Levando em conta processos que apontaram para
sentidos distintos – substituições culturais, reordenamento de tradições, sincretismos – e
tendo em vista a atuação estratégica dos mediadores culturais, as narrativas cardinianas
oferecem exemplos notáveis de tais fenômenos, e a análise de sua obra nos permite
visualizar de maneira interessante aspectos que marcaram as missionações jesuítas.
Entretanto, é necessário termos em vista elementos ligados a sua formação particular na
Companhia de Jesus, trajetória de sua vida e as influências que serviram de embasamento
para o desenvolvimento de seus escritos.
53 Ibid, pp. 119,130.
24
3. FERNÃO CARDIM: VIDA E OBRA
3.1 Formação jesuíta e permanência no Brasil
Fernão Cardim nasceu em meados de 1543, em Viana do Alvito, no Alentejo,
pertencente ao arcebispado de Évora. Ingressou na Companhia de Jesus em 1556, vindo a
falecer no Brasil, na Aldeia Abrantes, em 1625, vítima da invasão holandesa na Bahia.
Antes de partir para a América, Cardim concluiu sua formação em Artes Liberais,
Humanidades e Teologia no Colégio de Évora – local onde posteriormente ocupou cargo de
ministro –, que compreendeu cursos de Latim, Gramática, Retórica, Grego e Filosofia.
Dessa forma, esteve preparado para a principal missão dos inacianos, que foi a conversão e
ensino dos gentios à fé cristã.
Após terminar os estudos, Cardim exerceu a função de mestre de noviços em
Coimbra, quando foi nomeado, em 1582, secretário do padre Cristóvão de Gouveia. Aos
cinco de março do ano seguinte iniciou a viagem para o Brasil na nau Chagas de São
Francisco, juntamente com uma comitiva composta pelo governador Manuel Teles de
Barreto, funcionários régios e vários padres jesuítas. Cerca de sessenta e seis dias depois –
com dez de paragem na Ilha da Madeira – desembarcou na Bahia de Todos os Santos aos
nove de Maio de 1583.
Ao chegar na América, Fernão Cardim exerceu cargos administrativos importantes.
Foi reitor dos Colégios da Bahia e do Rio de Janeiro; mais tarde foi nomeado na
congregação provincial em 1598 como Procurador da Província do Brasil em Roma, onde
permaneceu três anos.
Quando regressava para o Brasil, a embarcação onde Fernão Cardim viajava foi
abordada por corsários ingleses. Assim, permaneceu juntamente com seus companheiros
por aproximadamente um ano e meio na prisão de Gatehouse, em Londres. Somente após
várias tentativas de libertação Cardim conseguiria finalmente voltar a se dedicar aos
trabalhos de missionação e administração na colônia, onde ocupou ainda os cargos de
Provincial do Brasil da Companhia de Jesus em 1604, função que exerceu até 1609.
25
Durante sua permanência viveu na Bahia, Pernambuco, Rio de janeiro e São Paulo,
falecendo aos setenta e cinco anos de idade, quando ainda era Reitor do Colégio da Bahia.
3.2 Os tratados cardinianos
A fonte principal do presente trabalho, intitulada Os Tratados da Terra e Gente do
Brasil 54, apresenta a compilação de textos escritos por Cardim enquanto permaneceu na
América portuguesa – período de 1583 a 1625, notadamente: duas cartas dirigidas ao
Provincial da Assistência de Portugal, editadas pela primeira vez em 1847, por Francisco
Adolfo de Varnhagen, sob o título de “Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão
Jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, S.
Vicente (S. Paulo), etc, desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por Visitador o Padre
Christóvão de Gouvêa”; a primeira carta, escrita aos 16 de Outubro de 1585 foi dirigida ao
Padre Sebastião Morais (nono provincial entre 1580 e 1588), e a segunda escrita em 1 de
Maio de 1590, também datada do Colégio da Bahia, dirigida ao Padre João Correia (décimo
provincial). Por fim, a Narrativa Epistolar voltou a ser publicada no Rio de Janeiro, em
1925, incluída numa obra dedicada a Cardim em conjunto com outros textos do padre
jesuíta, intitulada “Tratados da Terra e Gente do Brasil” com introdução e notas de
Baptista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. Nesta obra foram incluídos dois
tratados escritos enquanto Cardim ocupou o cargo de secretário do padre Cristóvão de
Gouveia, sendo eles: “Do Princípio e origem dos Índios do Brasil e seus costumes,
adoração e cerimónias” e “Do clima e terra do Brasil e de algumas coisas notáveis que se
acham assim na terra como no mar”.
Os textos cardinianos (divididos então em duas cartas e dois tratados) trazem
fundamentalmente um relato minucioso sobre a situação da América portuguesa em finais
do século XVI e da ação da Companhia de Jesus nesse território. São descrições que
compreenderam as condições climáticas, do solo, fauna e flora, bem como sua utilidade
para a alimentação, medicina e economia. Assim, seus escritos levaram em conta temas
54 CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil; Ana Maria de Azevedo (ed. lit). – Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997.
26
bastante amplos, incluindo não só os trabalhos de conversão entre os nativos, mas
apresentando igualmente as potencialidades e perigos da terra.
Devido ao tempo em que permaneceu no Novo Mundo Fernão Cardim apresentou
notável influência dos conhecimentos nativos sobre a diversidade de animais e plantas,
perceptível à medida que descreve o modo com que os ameríndios aproveitavam os
recursos da Natureza e os cuidados necessários em muitas situações. Inclusive, em
determinados momentos as influências locais atribuíram às narrativas um sentido
fantasioso. Assim entre seus escritos o inaciano dedicou partes à descrição dos homens
marinhos ou monstros do mar:
Estes homens marinhos se chamam na língua Igpupiára, têm-lhe os naturais tão grande medo que só de cuidarem nele morrem muitos, e nenhum que o vê escapa; alguns morreram já, e perguntando-lhes a causa, diziam que tinham visto este monstro; parecem-se com homens propriamente de boa estatura 55.
Contudo, os Tratados não deixaram de identificar as potencialidades do território
brasileiro com descrições marcadamente rigorosas – próximas a um cientificismo – que
demonstraram a preocupação em notificar a situação colonial em seus mínimos aspectos.
Além da fauna e flora, cujos temas foram retratados separadamente em: espécies de animais
não voadores; volucrário, dedicado às aves; ictuário, aos peixes; ofidário, para os répteis;
assim como o herbário, Cardim retratou com o mesmo rigor a situação dos engenhos de
açúcar; modo com que os inacianos foram recebidos tanto por nativos e europeus; hábitos
alimentares. Exemplo notável foi dado enquanto permaneceu na Bahia:
Os engenhos deste Recôncavo são trinta e seis, quase todos vimos, com outras muitas fazendas muito para ver. (...) Cada um deles é uma máquina e fábrica incrível: uns são rasteiros, outros de água copeiros, os quais moem mais e com menos gastos; outros não são de água, mas moem com bois, e chamam-se trapiches; estes têm muito maior fábrica e gasto, ainda que moem menos, moem todo o tempo do ano, o que não tem os de água, porque às vezes lhes falta. Em cada um deles, de ordinário há seis, oito e mais fogos de brancos, e ao menos sessenta escravos, que se requerem para o
55 Ibid, pp. 140-141.
27
serviço ordinário; mas os mais deles têm cento, e duzentos escravos da Guiné e da terra.
Entretanto, para entendermos os textos cardinianos em seu sentido mais amplo é
necessário termos em vista que, enquanto membro da Companhia de Jesus, Cardim
colocou-se a serviço de uma complexa rede de interesses que se expressa dentro e fora da
ordem, não só na defesa e expansão da fé cristã, mas igualmente a serviço da colonização
portuguesa. Antes de vir ao Brasil Fernão Cardim chegou a ser instruído pelo próprio El-
Rei português para que “eles tratassem particularmente todas as cousas pertencentes não
somente ao serviço de Deus, mas também ao governo da terra e conservação deste seu
estado” 56.
Nesse sentido, as descrições colocam à par da metrópole a situação brasileira,
descrevendo não só as atividades missionárias mas igualmente as potencialidades do
território e atividades comerciais correntes. Mas esse tipo de relato não representou uma
situação isolada entre os inacianos. No interior da Companhia de Jesus as cartas trocadas
entre os missionários e seus superiores representaram um complexo sistema de trocas de
informações que, além de reforçar a unidade entre os irmãos dispersos no mundo, foram
determinantes para o gerenciamento do governo central, “o que não é de se estranhar numa
ordem inserida num tempo em que a correspondência, a crônica, o informe secreto, o mapa,
os visitadores, faziam parte dos instrumentos de controle e das formas de presença de
Estados colonialistas como os da península ibérica (...)” 57.
Da mesma forma, é necessário situarmos a obra no contexto em um contexto maior:
numa época marcada pela União Ibérica – onde a soberania portuguesa ficou sob o domínio
dos castelhanos – o território brasileiro passou a ocupar papel privilegiado. Fundavam-se
povoados, abriam-se linhas de comércio, criavam-se cargos públicos e aumentavam os
interesses privados, cristianizava-se o gentio, descobriam-se novas riquezas e defendia-se a
terra, de forma a que nenhuma das suas parcelas fosse ocupada por estrangeiros.
56 Ibid, p. 212. 57 LONDOÑO, Torres. Op. cit, p. 21. Sobre a questão das cartas jesuítas ver também obra de PÉCORA,
Alcir. Cartas à segunda escolástica. In: Adauto Novaes (org). A outra margem do Ocidente. São Paula:
Companhia das Letras, 1999.
28
Por fim, a serviço da Igreja e do rei, as narrativas cardinianas forneceram amplo
retrato da terra brasílica; se o jesuíta observou com entusiasmo as conversões entre os
nativos, a rigorosidade de seus escritos nos permite visualizar elementos distintos da fauna
e flora no Novo Mundo e aspectos ligados ao quotidiano de seus habitantes, europeus e
indígenas.
3.3 A importância de Cardim na historiografia
Apesar da considerável riqueza dos Tratados, Fernão Cardim ainda é uma figura
relativamente pouco trabalhada na historiografia. Contudo, a variedade de temas e assuntos
permitiu que diferentes análises privilegiassem aspectos bastante particulares de sua obra.
Assim, as narrativas cardinianas estiveram presentes ainda com os estudiosos do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro ainda em meados de 1847, notadamente com Francisco
Adolfo de Varnhagen e, posteriormente, com Capistrano de Abreu.
Na década de 1930 as análises retomaram as narrativas cardinianas privilegiando a
construção de uma identidade nacional. No clássico Casa Grande & Senzala Gilberto
Freyre destacou os elementos aspectos ligados ao quotidiano nacional, como foi o caso, por
exemplo, dos costumes relativos à vida nos engenhos e à alimentação na colônia:
É certo falar que o padre Fernão Cardim, nos seus Tratados, está sempre a falar da fartura de carne, de aves e até de verduras e de frutas com que foi recebido por toda a parte no Brasil do século XVI, entre os homens ricos e os colégios de padres. Mas de Cardim deve-se tomar em consideração o seu caráter de padre visitador, recebido nos engenhos com festas e jantares excepcionais. Era um personagem a quem todo agrado que fizessem os colonos era pouco: a boa impressão que lhe causassem a mesa farta e os leitos macios dos grandes senhores de escravos talvez atenuasse a péssima, da vida dissoluta que todos eles levavam nos engenhos de açúcar 58.
Contemporâneo a Freyre, e não menos importante dentro da historiografia
brasileira, Sérgio Buarque de Holanda destacou em Visão do paraíso as descrições 58 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 21. ed. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio Editora, 1981. p. 37.
29
cardinianas sobre as potencialidades do Novo Mundo assim como a projeção de um Reino
Português nos trópicos. Assim, relatou que:
as próprias plantas e os bichos recebem, muitas vezes, nomes inadequados, mas já familiares ao adventício, que assim parece mostrar sua vontade de ver prolongada apenas, no aquém mar, sua longínqua e saudosa pátria ancestral. Cópia em tudo fiel ao Reino, um ‘novo Portugal’: é o que querem ver no mundo novo, e é o elogio supremo que todo ele ou alguma de suas partes pode esperar desse reinóis. Louvor que aparece nos escritos de Fernão Cardim, autor mais atento, embora, do que muitos outros, àqueles mesmos ‘segredos’ da terra que seduzia os conquistadores nas Índias de Castela 59.
Assim, presente ainda com as análises do IHGB, Cardim ganhou juntamente com
outros relatos coloniais papel de destaque em uma historiografia tradicional no início do
século XX, com o advento do Modernismo. Análises que, embora obviamente tenham
caminhado para direções bastante diferentes, privilegiaram uma identidade nacional,
levando em conta em maior ou menor grau as influências que convergiram em uma “cultura
brasileira”. Contudo, os Tratados cardinianos não ficaram restritos a tais linhas de pesquisa,
acompanhando o desenvolvimento de uma historiografia mais recente.
Ronaldo Vainfas dedicou parte de sua obra Trópico dos Pecados à percepção que os
missionários jesuítas apresentaram sobre os costumes nativos no Brasil. Ao lado da notável
figura dos padres Anchieta, Nóbrega e Vieira, Vainfas observou a visão de Cardim sobre as
crenças nativas no Brasil:
Cardim os vira pouco ‘endemoniados’, e Anchieta só lhes atribuíra a veneração dos trovões, negando que tivessem ‘comunicação com o Demônio’. Usavam de feitiços todos admitiam e ouviam feiticeiros não por neles acreditarem, disse Cardim, mas porque eles ajudavam nas enfermidades. Afinal, se não conheciam a Deus, como poderiam crer no Diabo? – era o que pensavam os jesuítas. Em matéria de fé, portanto, parece ter predominado a constatação
59 HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e
colonização do Brasil. 5. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1992. p. 146.
30
de certa anomia, uma ingênua irreligiosidade, mais do que adoração satânica 60.
Tais elementos não constituíram, evidentemente, uma visão uniforme dos nativos.
Vainfas buscou, antes, pontos em comum e divergências entre os missionários, assim como
a motivação que tiveram para as conversões.
Ronald Raminelli caminhou em uma direção semelhante na obra Imagens da
Colonização. Ao confrontar visões de religiosos e leigos que permaneceram no Brasil, o
autor analisou de que forma a figura do índio e seus costumes foram representados nas
diferentes narrativas, assim como identificar de que forma tais relatos deram subsídios para
a constituição de um imaginário europeu dos trópicos – que variou ao longo do tempo entre
sinal de liberdade ou degeneração total, discussão que ganhou quase sempre um sentido
maniqueísta – que se expressou nas representações artísticas 61.
Por fim, os Tratados ganharam papel central em recente tese de mestrado de Ana
Maria de Azevedo, defendida na Universidade de Lisboa e ainda sem publicação, intitulada
O Padre Fernão Cardim (1548 - 1625). Contribuição para o Estudo da sua Vida e Obra. A
autora desenvolveu, assim, talvez o primeiro trabalho de fôlego sobre o inaciano,
abordando temas específicos acerca de sua vida; visão apresentada do Brasil e de suas
gentes; métodos desenvolvidos para as conversões; e, por fim, a comparação dos relatos de
Cardim com outros viajantes quinhentistas.
Por fim, a figura deste inaciano, ainda que pouco trabalhada na historiografia, não
deixou de estar presente nas análises sobre o Brasil colonial. Abordando temas distintos das
obras cardinianas, diferentes autores têm reconhecido as particularidades dos Tratados da
Terra e Gente e as possibilidades que ofereceram de nos situar, entre europeus e nativos, no
Novo Mundo. É verdade que muitas vezes Fernão Cardim observou os povos ameríndios
de forma distinta em relação a outros relatos de leigos e religiosos:
Fá-lo como etnógrafo, quase que cientificamente, sem emitir juízos de valores, sem criticar os indígenas pelos seus hábitos, ainda que,
60 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios. Op. Cit. p. 21. 61 RAMINELLI, Ronald. Imagens da Colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
31
por vezes, fossem tão diferentes dos dos europeus. Detectamos, mesmo, ao longo das suas palavras, uma certa sensibilidade, admiração e até estima, ao descrever as suas características físicas, hábitos sociais e culturais 62.
Contudo, se as narrativas jesuítas variaram consideravelmente, presenciaram em
grande parte dos casos momentos históricos em comum e, enquanto membros da
Companhia de Jesus, partilharam métodos, dificuldades; buscaram responder a questões
comuns aos missionários em todo o mundo. Mas de que forma se desenvolveram os
processos de conversão? Em que medida as missionações desenvolvidas por Cardim
estiveram situadas entre as estratégias de outros inacianos?
62 Ver introdução de Maria de Azevedo na obra de CARDIM, Fernão. Op. cit, p. 34.
32
4. FERNÃO CARDIM E A MISSIONAÇÃO INACIANA
4.1 Das conversões em massa
A Companhia de Jesus esteve situada em um cenário bastante particular. No tocante
à instituição eclesiástica procurou responder de maneira metódica à crise do catolicismo
que havia se instaurado em toda a Europa. Mas se Inácio de Loyola observou o despreparo
e fragilidade de um clero há tempos atingido, sobretudo, pelas críticas protestantes, o
padroado permitiu às ordens regulares terreno fértil para as conversões; e de fato, foi
através delas que o espírito da Contra-Reforma penetrou nos espaços coloniais ibéricos. O
ultramar ibérico constituiu, assim, um projeto ambicioso: não se limitou à mera expansão
territorial, mas englobou antes a projeção de um vasto império cujas estruturas estiveram
baseadas na religião cristã. Dessa forma:
Inicialmente promovia a convivência entre credos como estratégia necessária para viabilizar o comércio. Depois atuava como conquista bélica, acompanhada de uma política cultural, indispensável para anexar territórios e almas. Para além do comércio, os portugueses promoviam uma radical transformação política e cultural por intermédio das conversões de almas. A idéia de um império dependia da construção de uma lealdade política e estrita obediência às leis religiosas. Promovia, assim, a dissolução das diferenças culturais, políticas e confessionais, transformando toda a humanidade em seguidores de Cristo 63.
Nesse sentido, a cristianização tornou-se fenômeno mais amplo: não se limitou à
reformulação do campo simbólico, das crenças indígenas, mas pressupôs uma ampla
mudança do quotidiano, das sociabilidades e da própria relação individual. Assim, a
63 RAMINELLI, Ronald. Império da fé: Ensaio sobre os portugueses no Congo, Brasil e Japão. In: O
Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). João Fragoso, Maria
Fernanda Baptista Bicalho e Maria Fátima Silva Gouvêa (org). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.
228.
33
questão nativa fundamentou de maneira inextricável a dominação colonial; cabia aos
missionários a difícil tarefa aproximá-los de Deus 64.
Em princípio o recrutamento em massa parece ter sido efetivo em territórios onde os
jesuítas constituíam parcela quase insignificante frente a milhões de homens hostis ou
indiferentes à fé Cris cristã; começava, assim, a época das conversões e batismos em largas
escalas. Prática bastante presente nas narrativas cardinianas, de modo que em dois anos
Fernão Cardim observou não com pouco entusiasmo a salvação de três mil almas 65.
Esse tipo de prática não representou, entretanto, característica exclusiva dos
inacianos, e tampouco foi, em finais do século XVI, algo inovador em termos missionários.
Na América espanhola as ordens franciscanas já haviam iniciado, ainda em meados de
1525, as principais expedições da cristandade no vale do México. Se o franciscano
Motolinía queixou-se da dificuldade dos primeiros passos da expansão cristã, o período que
se seguiu mostrou avanços significativos:
Um milhão de batismos em 1531, nove milhões após quinze anos de apostolado, médias de cem mil indígenas por religioso, com picos de trezentas almas (...). Segundo Motolinía os índices aumentavam: quatorze mil e duzentos batismos em dois dias num mosteiro franciscano, uma média de trezentas a quinhentas crianças por semana em Tlaxcala, nos anos 1530 66.
É evidente que os relatos constituíram casos bastante particulares: corresponderam a
contextos históricos distintos, tendo, portanto, dinâmicas próprias. Mas para além do
número de batismos é interessante notarmos a vasta utilização desse tipo de prática.
Contudo, se por um lado Cardim observou a gradual adesão nativa à causa cristã, as
conversões em massa geraram outras discussões pertinentes: não há dúvida que a conversão
de almas ocorreu em escalas assustadoras, mas até que ponto aqueles novos cristãos
entenderiam o conteúdo da “verdadeira” fé? Como batizar milhares de pessoas respeitando
64 Essa discussão é feita por Ronald Raminelli na obra Imagens da Colonização: a representação do índio
de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. 65 O número é fornecido pelo próprio Cardim na página 246. CARDIM, Fernão. Op. cit. 66 BERNAND, Carmen & GRUZINSKI, Serge. Op. cit, p. 419.
34
minimamente os rituais e cerimônias da Igreja quando na maioria das vezes não possuíam
infra-estrutura apropriada? Tudo isso esteve aliado, ainda, a um nítido despreparo clerical.
Entre as ordens inacianas não foi diferente, e a precariedade dos serviços
missionários ganhou papel de destaque entre as autoridades eclesiásticas. Exemplo disso foi
observado em Goa, em 1539, com o inquérito contra o padre Diogo de Morais por
prosseguir inadequadamente as funções religiosas; uma das testemunhas, o padre Fernão
Pires, confirmou as acusações feitas sobre Morais afirmando que:
quando ele dizia a missa e ele, testemunha, servia no altar, ele lhe perguntava como havia de fazer e que ele, testemunha, lhe dizia: assim haveis de fazer e isto em algumas coisas. E perguntando se sabia bem dizer a missa, e se lia bem, disse que lia mal e com muitas mentiras. E perguntando que sacerdote era, disse que era o mais fraco que nunca vira. E perguntando se sabia dar os sacramentos da Igreja, disse que não sabia batizar, nem dar comunhão, nem benção, nem fazer a estação, nem bem nenhum 67.
Em outro momento, em carta destinada a Inácio de Loyola, o padre Antônio
Criminal descreveu com espanto o modo com que se precediam os batismos pelos jesuítas
no Colégio de Goa “(...) sem ensinar coisa alguma, pois eles chegam e dizemos
rapidamente que queremos que sejam cristãos; ao fim da prédica, quando se predica,
rapidamente os batizamos (...)” 68. Em relação a Cardim pouco ou nada há sobre tal assunto
– muito embora não deixe de comentar que “em Pernambuco se ache mais vaidade que em
Lisboa” 69. Dadas as circunstâncias da carta talvez não conviesse ressaltar tais elementos.
De qualquer maneira, as missões jesuítas evidentemente não puderam ficar restritas
aos batismos e conversões; tornava-se necessário introjetar a cristandade na trama social
nativa. Nesse sentido, a inclusão da família cristã, monogâmica e indissolúvel, entre as
sociedades locais conformou experiência corrente. Embora não chegue a especificar o
número de casamentos executados, esse tipo de prática esteve sempre presente em suas
narrativas, de modo que, enquanto permaneceu no Brasil “casou muitos em lei de graça” 70.
67 TAVARES, Célia Cristina. Op. cit, p. 108. 68 Ibid, p. 115. 69 CARDIM, Fernão. Op. cit, p. 256. 70 CARDIM, Fernão. Op. cit, p. 246.
35
Além da “domesticação dos indivíduos via célula familiar” 71, os confessionários
ofereceram ainda outra arma importante nas conversões, e Fernão Cardim não deixou de
chamar atenção para seus resultados:
É muito para ver e louvar Nosso Senhor a grande devoção de fervor que se vê nestes Índios, quando hão de comungar; porque os homens quase todos se disciplinam a noite antes por espaço de um Miserere, procedendo ladainha e exortação espiritual na língua dão em si cruelmente; nem têm necessidade de esperar pela noite, porque muitos por sua devoção, acabando-se de confessar, ainda que, seja de dia, se disciplinam na igreja, diante de todos, e quase todos tem disciplina, que sabem fazer muito boas 72.
A religiosidade cristã entrou gradativamente nas mentalidades nativas. Através dos
casamentos e confessionários o indígena passava a analisar sua vida e daqueles que o
cercavam através do prisma de pensamentos cristãos: modificavam-se as noções de
individualidade; inculcavam-lhes noções de pecado.
Mas se a conquista das almas foi feita através das palavras, pelos gestos, o processo
incluiu igualmente as expressões musicais e das imagens. Ao som de flautas, batuques e do
órgão, as festas reuniam europeus e nativos em um ambiente onde as fronteiras culturais
parecem ter sido tênues. Fernão Cardim nos deu alguns exemplos interessantes dessa união
entre mundos tão distintos: “Aos 3 de Maio, dia de invenção da cruz, houve jubileu
plenário em nossa casa, missa de canto de órgão, oficiada pelos Índios e outros cantores da
Sé, com frautas e outros instrumentos músicos” 73. Em outra procissão, realizada na Aldeia
do espírito Santo, o jesuíta relatou o modo com que um principal velho levava o crucifixo
em baixo do pálio 74. Devoção em terras tão distantes que causou admiração entre os
inacianos:
Chegando o padre à terra começavam os frautistas a tocar suas frautas com muita festa (...). Os cununis, sc meninos, com muitos
71 A expressão é de Ronaldo Vainfas, in Trópico dos Pecados. Op. cit, p. 12. 72 CARDIM, Fernão. Op. cit, p. 247. 73 Id. Ibid. 74 Id. Ibid.
36
molhos de frechas levantadas para cima, faziam seu motim de guerra e davam a sua grita, e pintados de várias cores, nuzinhos, vinham com as mãos levantadas receber a benção do padre, dizendo em português, << louvado seja Jesus Cristo >>. Outros saíram com uma dança de escudos à portuguesa, fazendo muitos trocados e dançando ao som da viola, pandeiro e tamboril e frauta, e juntamente representavam um breve diálogo, cantando algumas cantigas pastoris 75.
A figura do nativo carregando a cruz; meninos indígenas cantando temas cristãos:
tais descrições fornecem um pequeno retrato do encontro entre europeus e nativos; diálogo
particularmente tortuoso em sociedades cujas tradições sempre estiveram fortemente
ancoradas nas antigas relações familiares, alianças; trocas e no complexo campo do
simbólico.
Mas os elementos apontados até aqui não nos permitem visualizar de forma mais
detalhada a dinâmica das missões jesuítas. Nem tampouco identificam os elementos que
permitiram a Companhia de Jesus um rápido crescimento ao longo do século XVI e sua
permanência entre as sociedades locais. Se “as representações culturais responderam às
exigências da luta contra a idolatria” 76, incluir o nativo na nova cristandade mostrou-se
tarefa complicada:
complexa e difícil, a princípio, a organização religiosa das reduções. Só a larga experiência no contato diário com os índios, o conhecimento exato de suas tendências nativas, e a compreensão dos meios mais eficazes para chegar até a consciência rudimentar que se lhes formavam o exemplo, poderiam conseguir atraí-los e iniciá-los nos mistérios da fé 77.
Para além das conversões e batismos em massa; dos casamentos – que pouco ou
nada significavam entre os nativos e entre os próprios europeus –; da instrumentalização da
música e dança a serviço da cristandade, as missionações jesuítas estiveram envolvidas em
uma questão central: “Formado esse ambiente muito superficial que a menor contrariedade
75 Ibid, pp. 221, 222. 76 GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. Tradução de Rosa Freyre d’Aguiar. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001. 77 HANSEL, José. A Pérola das Reduções Jesuíticas. 4.a Ed. Porto Alegre: Martins Livreiro , 1988, p. 68.
37
poderia desfazer, pela sua ingênita compreensão das coisas imateriais, mister era mantê-lo e
alimentá-lo para que se não perdesse o trabalho precioso da catequese” 78. Nessa direção, o
encontro pode ser mais bem compreendido se levarmos em conta o papel dos mediadores
culturais, assim os esforços de aproximação com as sociedades nativas.
4.2 Missionários e nativos: a atuação dos mediadores culturais
No interior da Companhia de Jesus, um dos pontos-chave na tentativa de transferir o
complexo material religioso cristão para as sociedades locais esteve baseado na
aproximação lingüística; com Fernão Cardim tal preocupação ficou evidente, por exemplo,
nas representações de temas cristãos. Ao chegar na Aldeia do Espírito Santo o inaciano
relatou a apresentação pelos Índios de um diálogo em língua brasílica, portuguesa e
castelhana, “e têm, eles muita graça em falar línguas peregrinas, maxime a castelhana” 79.
Da mesma forma que os nativos eram instruídos nas línguas européias, os padres
inacianos não deixaram de se aproximar do tupi; nesse sentido, os “padres-língua”
desempenharam papel importante nas conversões, uma vez que as missas podiam ser
celebradas nas línguas locais e possibilitaram a passagem do sermão sem o uso de
intérpretes. Fernão Cardim não deixou de demonstrar essa proximidade com as línguas
ameríndias, sobretudo de tupi-guarani, incluindo em seus Tratados vocabulários e frases
nesse idioma e procurando sempre apresentar as respectivas traduções para o português.
Além do tupi, os missionários podiam ser instruídos também em outras línguas que
auxiliassem a educação cristã. No Brasil, além das pregações entre as diversas aldeias
indígenas, os jesuítas desenvolveram os trabalhos de cristianização entre os engenhos de
açúcar, e a comunicação com os escravos negros mostrou-se igualmente tarefa necessária;
assim, entre “os dias de pregação e festas de ordinário havia muitas confissões e
comunhões, e por todas chegariam a duzentas, afora as que fazia um padre, língua de
escravos da Guiné, e dos índios da terra, pregando-lhes e ensinando-lhes a doutrina (...).
Mas o aprendizado das línguas locais à serviço da cristandade não constituiu prática
exclusiva dos inacianos no Novo Mundo, e os exemplos se estenderam em todo o ultramar. 78 Id. Ibid. 79 CARDIM, Fernão. Op. cit, p.232.
38
Seguindo as recomendações de Inácio de Loyola, Francisco Xavier já havia demonstrado o
esforço em desenvolver pontes lingüísticas com as culturas locais; assim, em carta enviada
de Goa, em 1544, ao padre Francisco Mansilhas, o jesuíta apresentou seus conhecimentos
sobre a língua hindu:
no credo, quando dizeis enaquvenum em lugar venum direis vichuan, porque venu[m] quer dizer ‘quero’ e vichuan quer dizer ‘creio’: é melhor dizer ‘em creio em Deus’, que não dizer ‘eu quero em deus’. Não direis vão pinale, porque quer dizer ‘por força’, e Cristo padeceu por vontade, e não por força 80.
As tentativas de aproximação linguística mostraram muitas vezes essa dificuldade
em ambientes onde os dialetos variavam consideravelmente. Da mesma forma, era
necessário uma interpretação cuidadosa das pregações para que seu conteúdo fosse o mais
fiel às sagradas escrituras. “Dominar a língua da região serviu para dois modos de ação:
formar missionários capazes de estabelecer comunicação direta com os cristãos da terra,
principalmente par atender o sacramento da confissão sem o uso de intérpretes, e divulgar a
doutrina através de catecismos e outros manuais” 81.
No Japão, Juan Hernandez, contemporâneo de Francisco Xavier, concebeu em 1565
uma gramática japonesa com precisas regras de sintaxe e conjugações, além de um
vocabulário em japonês-português: “há poucas dúvidas de que o trabalho dos missionários
jesuítas na composição de dicionário e gramáticas japonesas foi grandemente auxiliado por
irmãos e noviços japoneses, apesar de seus nomes continuarem a ser desconhecidos” 82.
Mas se na Índia, China e Japão, onde a propagação do cristianismo foi facilitada
pela unidade lingüística e através da tradução de textos cristãos para as línguas locais, no
Novo Mundo a situação foi diferente. É só nos lembrar que Cardim deparou-se com
sociedades ágrafas, o que muitas vezes dificultou uma maior divulgação do cristianismo.
80 TAVARES, Célia Cristina. Op. cit, p. 116. 81 Ibid, p.135. 82 RAMINELLI, Ronald. Império da fé: Ensaio sobre os portugueses no Congo, Brasil e Japão. In: O
Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). João Fragoso, Maria
Fernanda Bicalho e Maria Gouvêa (org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 241.
39
Entre as civilizações indígenas a conversão tinha de ser muito individual: “índio a índio, ou
melhor, como logo perceberam os jesuítas, de menino índio a menino índio” 83.
Assim como os casamentos e confessionários, a educação dada às crianças mostrou
meios efetivos de inserir o catolicismo no quotidiano do nativo. Fernão Cardim relatou a
existência de escolas destinadas particularmente ao ensino das crianças. Assim, ao se referir
às Aldeias de São João, Santo Antônio e do espírito Santo, Cardim relatou que:
em todas estas três aldeias há escolas de ler e escrever aonde os padres ensinam os meninos índios; e alguns mais hábeis também ensinam a contar, cantar e tanger; tudo tomam bem, e há já alguns que tangem frautas, violas e cravos, e oficiam missas em canto de órgão, coisa que os pais estimam muito. Estes meninos falam português, cantam à noite a doutrina pelas ruas, e encomendam as almas do purgatório 84.
No México essa experiência já havia demonstrado avanços significativos. As ordens
franciscanas reconheceram que “as crianças ‘são como ceras moles’, facilmente acessíveis
à doutrinação. Davam os ‘frutos mais seguros e os mais duráveis’; já mostravam o exemplo
a seus pais, ensinando-lhes a ‘verdade’, partindo para a caça aos ídolos e lutando contra os
‘vícios abomináveis’, ou seja, o sacrifício humano, a sodomia e o canibalismo (...)” 85.
Contudo, embora tenhamos abordado até aqui características que nos remetem
claramente à atuação dos mediadores culturais – pontes lingüísticas; a figura do nativo
missionário – é necessário levarmos em conta aspectos inerentes às conversões que nos
permitam visualizar de forma mais clara o esforço de aproximação cultural dos jesuítas,
assim como do conhecimento das dinâmicas sociais das civilizações que se pretenderam
converter.
Se os inacianos não poderiam simplesmente descartar as tradições nativas
anteriormente existentes, foi necessário instrumentalizar os mínimos aspectos sociais afim
de que o cristianismo se difundisse. Mesmo que os cânticos, rituais fossem agora
83 TAVARES, Célia Cristina. Op. cit, p. 46. 84 CARDIM, Fernão. Op. cit, p. 241. 85 BERNAND, Carmem & GRUZINSKI, Serge. Op. cit, p. 422.
40
demonizados ou rebaixados à categoria de meros folclores, era necessário legitimar o novo
território cristão.
Nesse sentido Fernão Cardim identificou na figura dos principais meio efetivo para
permanência da fé cristã:
Em cada oca (...) há sempre um principal a que têm alguma maneira de obediência (...). Este exorta a fazerem suas roças e mais serviços, etc. excita-os à guerra, e lhe têm em tudo respeito; faz-lhes estas exortações por modo de pregação, começa de madrugada deitado na rede por espaço de meia hora, em amanhecendo se levanta, e corre toda a aldeia continuando sua pregação, a qual faz em voz alta, mui pausada, repetindo muitas vezes as palavras. Entre estes seus principais ou pregadores, há alguns velhos antigos de grande nome e autoridade entre eles, que têm fama por todo o sertão (...). Estimam tanto um bom língua que lhe chamam o senhor da fala. E sua mão tem a morte e a vida, e os levará por onde quiser sem contradição 86.
Reconhecendo o papel social estratégico dos principais, a conversão destes tornou-
se prática indispensável: passava-se a toda a aldeia as palavras cristãs através da figura
nativa. Cardim observou com entusiasmo os frutos da conversão: um dos principais
convertidos, Mem de Sá, acompanhou as missas com “tanta consolação” que tornava-se
exemplo para portugueses e indígenas 87. Era comum, inclusive, que os nativos
convertidos adotassem nomes de portugueses importantes; outro exemplo notável foi o caso
do índio Ambrósio Pires, cuja instrução nas coisas de deus foi feita em Lisboa.
Estratégia semelhante foi utilizada na Japão por Valignano. Entre sociedades
marcadamente hierárquicas e estratificadas, o padre jesuíta reconheceu na figura dos
daimios – nobres locais que eram seguidos por seus vassalos e demais dependentes –
importante meio para a difusão do cristianismo 88.
Vale destacar aqui que tais meios de conversão – notadamente o reconhecimento de
elementos sociais das sociedades locais que facilitassem os trabalhos missionários –
constituíram característica marcante entre as ordens inacianas. Na região de Madure, Costa
Malabar, o jesuíta Roberto Nobili apresentou-se entre os brâmanes como um nobre romano 86 CARDIM, Fernão. Op. cit, p. 236. 87 Ibid, p. 233. 88 Sobre a questão dos daimios ver artigo de Ronald Raminelli, Império da fé... Op. cit.
41
sem vínculos com os demais missionários; dessa forma pode reconhecer os empecilhos e
atalhos á conversão:
o padre Roberto Nobili, italiano de nação e sobrinho do ilustríssimo Cardeal Sforza (...) começando a aprender a língua e os costumes da terra e considerando que o maior impedimento que havia para a conversão era o baixo conceito que os Bagdás tinham dos portugueses e de nossa lei (...) determinou de os levar por seu humor 89.
Assim, Nobili iniciou em 1608 as primeiras conversões utilizando ou mantendo
relativa tolerância com os costumes indianos. Dessa forma “não reprimia o uso da linha
brâmane (tríplice cordão de algodão que os brâmanes traziam a tiracolo da esquerda para a
direita), do Kudum (tufo na cabeça), o uso de sândalo nas fricções corporais, dos banhos
rituais, a continuação de sinais na testa que faziam as distinções das catas, entre outros
costumes” 90.
Embora esses tipos de práticas muitas vezes tenham recebido severas críticas por
parte dos superiores eclesiásticos, elas não feriam os conceitos básicos da Companhia de
Jesus: “adaptação de normas e tolerância das violações que não fossem extremamente
ofensivas” 91, e os resultados foram notáveis, desenvolvendo cerca de 4183 conversões
entre 1605 e 1656 e diversas traduções de textos cristãos para o sânscrito. Entretanto,
mesmo se levarmos em conta a relativa novidade nos métodos desenvolvidos por Nobili, o
italiano já havia sido inspirado na época pelas missionações de seu conterrâneo, o padre
Ricci, na China, que havia obtido igualmente bons resultados “a partir do uso, por parte dos
jesuítas, do hábito usado pelos letrados chineses, pois passaram a ser respeitados como
sábios locais” 92.
Nesse sentido, as missionações inacianas estiveram notadamente marcadas pela
proximidade cultural com as sociedades as quais pretenderam converter. Tal aproximação
89 TAVARES, Célia Cristina. Op. cit, p. 132. 90 Id. Ibid. 91 Id. Ibid. 92 Id. Ibid.
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atribuiu às estratégias de conversão dinâmicas bastante particulares, variando de acordo
com as situações locais específicas. “Onde a presença das autoridades régias portuguesas
era marcante e inequívoca, o modelo de conversão tendia a ser ‘excessivamente
ocidentalizador’, mas nas regiões fora do domínio directo do Império português ‘foram
ensaiadas numerosas abordagens inovadoras’” 93. Da mesma forma, se os métodos
missionários estiveram ligados a uma maior ou menor presença das autoridades lusas,
variaram igualmente ao reconhecer organizações sociais particulares, seus aspectos
culturais, e as possibilidades que ofereceram de conversão. Assim, se na China ou Japão,
por exemplo, as traduções de textos cristãos para as línguas locais puderam ocupar papel de
destaque na difusão da verdadeira fé, no Novo Mundo a inexistência de caracteres exigiu
outras formas de educação; da mesma forma, o reconhecimento das autoridades locais
conformou estratégias distintas: em alguns casos a conversão dessas possibilitou meio
efetivo de legitimar a cristandade, em outros casos, entretanto, apresentaram severas
resistências aos missionários. É só nos lembrar que, no Japão, a atuação jesuíta variou
consideravelmente de acordo com a administração dos chefes locais. Assim, mesmo com o
apoio dado pelos daimos cristianizados aos missionários, o xogum Hideyoshi chegou a
determinar a expulsão, sob pena de morte, dos padres japoneses convertidos.
As ordens inacianas estiveram, portanto, ligadas às situações locais particulares; se a
proximidade cultural permitiu a instrumentalização de elementos sociais dos povos que
pretenderam converter a favor da difusão cristã, essa estratégia ligou padres e missionários
a disputas que não se restringiram ao campo religioso, mas englobaram igualmente
conflitos entre as autoridades locais; tentativas nem sempre pacíficas de viabilização
comercial entre a portugueses e nativos; divergências de interesses entre os próprios
europeus. Tais casos não deixaram de refletir no modo com que religiosos procediam os
serviços da fé, tendo de se adaptar a contextos mais ou menos conturbados. De qualquer
modo, o que se tentou foi a comunicação entre mundos distintos, e coube aos “heróis da
cristandade” aproximar leigos e “bárbaros” da cristandade.
93 Ibid, p. 128.
43
4.3 Intercessões religiosas: a convergência de credos
Ainda que os métodos missionários tenham envolvido muitas vezes uma relativa
tolerância com os costumes locais – elemento que se mostrou indispensável à educação
cristã –, é necessário nos lembrar que os jesuítas não deixaram de atribuir às crenças
desviantes ligações demoníacas, bárbaras, restando, portanto, extirpá-las totalmente. Nessa
direção, não é de admirar que Cardim tenha buscado uma eliminação dos aspectos culturais
indígenas. Em um sentido contrário, entretanto, a proximidade com as sociedades nativas
não deixou de render algumas analogias bastante interessantes. Segundo o inaciano
Esse gentio não tem conhecimento algum de seu Criador, nem de cousa do Céu, nem se há pena nem glória depois desta vida, e portanto não tem adoração nenhuma nem cerimônias, ou culto divino, mas sabem que têm alma e que esta não morre e depois da morte vão a uns campos onde há muitas figueiras ao longo de um formoso rio, e todas juntas não fazem outra cousa senão bailar; e têm grande medo do demônio, ao qual chamam Curupira, Taguaigba, Macachera, Anhangá (...) 94
Mas ainda que os nativos não tivessem, de acordo com padrões da época, uma
religiosidade propriamente dita, Cardim associou figuras míticas locais às crenças católicas.
O inaciano relatou ainda outros casos bastante interessantes, como foi o caso da
denominação para o Deus cristão: “Não têm nome próprio com que expliquem a Deus, mas
dizem que Tupã é o que faz os trovões e relâmpagos, e que este é o que lhes deu as
enxadas, e mantimentos, e por não terem outro nome mais próprio e natural, chamam a
Deus Tupã 95”.
Muitas vezes esse diálogo se tornou extremamente confuso para os jesuítas no Novo
Mundo, uma vez que a ausência de caracteres entre as sociedades indígenas dificultou o
entendimento das crenças locais. Mas se a falta de escrita constituiu algum empecilho aos
missionários, a tradição oral a qual os nativos estavam acostumados possibilitaram em um
maior grau a deturpação do conteúdo sagrado, o que facilitou sua utilização na difusão do
94 CARDIM, Fernão. Op. cit, pp. 165-166. 95 Ibid, p. 167.
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cristianismo. Mesmo que Fernão Cardim possivelmente não tenha compreendido as crenças
tupi, o missionário muitas vezes optou por um caminho distinto à eliminação dessas; se
entre os nativos elas ocupavam papel importante, uma opção considerável foi a sua
utilização para a difusão do cristianismo. Exemplo interessante foi o caso da identificação
de Maire-Monan, Mair Zuname, Sumé ou Pai-Zumé – entidade mitológica, o “grande pajé e
caraíba” que teria ensinado aos indígenas o cultivo da terra – à figura de São Tomé,
apóstolo que teria chego ao Novo Mundo para divulgar a mensagem cristã.
Esse tipo de associação entre credos, revelações, não ficou restrito a América
portuguesa. Outros casos bastante interessantes foram observados, por exemplo, nas
conversões na África ao longo do século XVI. O jesuíta francês Mongin aceitou que
“Vodu, Reboucou e Nzambim que haviam se revelado para os africanos, fossem na verdade
manifestações do Deus cristão, mesmo se eles não concordassem com as revelações mais
correntes que constituíram a base de muitas daquelas cosmologias religiosas” 96.
Nesse sentido, o que observamos foram abordagens inclusivas ou exclusivas das
crenças locais. Em alguns casos os costumes feriam de tal modo o cristianismo que se
tornou inviável sua instrumentalização – como foram os ritos antropofágicos. Em outros
momentos, entretanto, as crenças locais deram espaço para associações com o conteúdo
cristão, possibilitando sua difusão. Esse grau de tolerância variou igualmente de acordo
com situações específicas, de acordo com o grau de receptividade por parte das sociedades
locais e onde a presença de autoridades lusas foi maior.
É interessante notarmos que tais exemplos constituíram casos dúbios: se por um
lado Fernão Cardim conheceu as sociedades nativas e seus elementos culturais atribuindo-
lhes novos valores, a situação inversa foi parecida. Assim, entre os casamentos, batismos,
conversões, o conteúdo cristão entrou na América e nas novas mentalidades de uma forma
diferente daquela original, distante dos europeus e indígenas.
96 THORNTON, J. K. A. Op. cit, p. 349.
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CONCLUSÃO
Durante o tempo em que permaneceu no Brasil Fernão Cardim presenciou não com
pouco entusiasmo o desenvolvimento das missionações jesuítas: os confessionários, as
conversões em massa, batismos, casamentos incluíram gradativamente as sociedades
nativas à cristandade. Entretanto, o processo não significou, em princípio, sincretismos
harmoniosos, mas justaposições forçadas de elementos culturais ou reordenamentos
confusos das tradições. Não é de admirar que o confronto de simbolismos e noções do
sagrado tenha caminhado para algo distante dos pensamentos europeus e nativos. Se os
nativos pouco sabiam o que eram os cantos cristãos devotos; se posssivelmente incluíram o
Deus cristão num vasto panteão das entidades locais, os cristãos não deixaram de conhecer
as novas civilizações e seus aspectos sociais sem criar novos sistemas de significados.
Nesse sentido, integrar as sociedades indígenas no universo cristão tornou-se tarefa
complicada: exigiu a reformulação cuidadosa das relações sociais em seus menores
aspectos; do mesmo modo, a comunicação com os locais em um ambiente onde os
elementos culturais variaram de maneira surpreendente exigiu a formulação de estratégias
que os aproximassem e permitissem o entendimento mais fiel possível do conteúdo sagrado
cristão. Assim como outros jesuítas já o haviam feito anteriormente, Fernão Cardim ocupou
papel de destaque, enquanto mediador cultural, nesse processo: à medida que se aproximou
das culturas índias, o inaciano permitiu a transferência do material religioso cristão para o
complexo universo do Novo Mundo.
Neste ponto, é interessante notarmos que, embora as ordens jesuítas tenham
compartilhado consideravelmente determinados métodos de missionação – como a
educação privilegiada das crianças, os casamentos, batismos e conversões em largas escalas
–, elas foram nitidamente marcadas pela íntima convivência com as sociedades locais. Tal
proximidade permitiu a adaptação constante dos meios de conversão às situações
particulares onde estiveram situados. Da mesma forma, o reconhecimento das dinâmicas
sociais nativas permitiu identificar os atalhos e empecilhos às missionações, assim como
instrumentalizar crenças, línguas, relações internas a favor da difusão cristã.
Entretanto, o encontro constituiu fenômeno de duplo sentido: se por um lado os
cristãos ensinavam a “verdadeira” religião e o modo com que o Diabo os enganaram todo
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esse tempo, os recém-convertidos vivenciavam a influência direta de suas antigas tradições
através daqueles que se recusavam a aceitar o cristianismo – muitas vezes mantendo sob o
pano de fundo das festas cristãs suas crenças. Da mesma forma, o reconhecimento de
pontos em comum entre a religião cristã e as crenças locais conduziu muitas vezes
missionários como Cardim a uma posição bastante particular: o contato o aproximou de
uma religiosidade nativa sem deixar de lado, entretanto, suas antigas convicções cristãs.
Entre desestruturações sociais a aculturação em massa permitiu a constituição
gradual de uma ampla máquina colonizadora: contradições, sincretismos, tradições
mantidas na clandestinidade preparavam o terreno para a nova cristandade. Se o processo
foi gradualmente incluído na esfera de pensamentos ocidentais, europeus e nativos
entregavam-se à mestiçagem, criando novos sistemas ordenados segundo princípios
distintos daqueles que regiam os sistemas de origem. Sujeitos que não tinham,
propriamente, seu lugar no Novo Mundo nem no antigo.
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