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AVIDADE WI BARBOSA m&Èil.,. .^M*^ A VIDA DE HUI BARBOSA A reedição de A Vida de Rui Bar- bosa, reclamada pelo grande público, que em breve tempo esgotou as edi- ções anteriores, vem na hora opor- tuna, quando a figura do mestre das Cartas de Inglaterra, objeto de inten- sa controvérsia no livro, na impren- sa, na tribuna parlamentar e na tri- buna universitária, deveria volver mais uma vez à cena política brasi- leira com a lição de sua vida, o cabedal de suas ideias e o exemplo de suas atitudes. Tomando posição imediata nessa polémica, Luiz Viana Filho proferiu conferências em várias universidades do país, na defesa, veemente de seu biografado. Daí a introdução nova que enriquece esta edição e a atuali- za, com a resposta objetiva e elevada — sem deixar de ser vibrante — às acusações de que Rui Barbosa foi objeto. A contestação de agora vale por uma condensação da biogra- fia e abre caminho à melhor com- preensão da figura do grande bra- sileiro. Todo grande homem é necessaria- mente uma polémica. Enquanto per- dura essa polémica, sente-se-lhe a vitalidade. A vitalidade de Rui Bar- bosa, no panorama político, cultural e moral do Brasil, não poderia ter melhor testemunho do que a con- trovérsia de hoje, pretexto para que as novas gerações se identifi- quem com as suas ideias e o seu destino de lutas, de que este grande livro, além de ser o espelho fiel, é a síntese mais correta e admirável.

Luis Vianna a Vida de Rui Barbosa

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Page 1: Luis Vianna a Vida de Rui Barbosa

AVIDADE WI BARBOSA

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A VIDA D E H U I B A R B O S A

A reedição de A Vida de Rui Barbosa, reclamada pelo grande público, que em breve tempo esgotou as edições anteriores, vem na hora oportuna, quando a figura do mestre das Cartas de Inglaterra, objeto de intensa controvérsia no livro, na imprensa, na t r ibuna parlamentar e na tribuna universitária, deveria volver mais uma vez à cena política brasileira com a lição de sua vida, o cabedal de suas ideias e o exemplo de suas atitudes.

Tomando posição imediata nessa polémica, Luiz Viana Filho proferiu conferências em várias universidades do país, na defesa, veemente de seu biografado. Daí a introdução nova que enriquece esta edição e a atuali-za, com a resposta objetiva e elevada — sem deixar de ser vibrante — às acusações de que Rui Barbosa foi objeto. A contestação de agora vale por uma condensação da biografia e abre caminho à melhor compreensão da figura do grande brasileiro.

Todo grande homem é necessariamente uma polémica. Enquanto perdura essa polémica, sente-se-lhe a vitalidade. A vitalidade de Rui Barbosa, no panorama político, cultural e moral do Brasil, não poderia ter melhor testemunho do que a controvérsia de hoje, pretexto para que as novas gerações se identifiquem com as suas ideias e o seu destino de lutas, de que este grande livro, além de ser o espelho fiel, é a síntese mais correta e admirável.

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Esta biografia, já em oitava edição, comprova duas verdades: u excelência do livro e o interesse pela grande e nobre vida que elo nos conta. A projeção nacional do nome de Luiz Viana Filho nas letras brasileiras começa com esta biografia de Rui Barbosa. Várias razões levaram o biógrafo ao encontro do biografado. De início, a identidade de berço. A seguir, a concordância das ideias políticas. Por fim, o sentimento da admiração pelo homem de letras e pelo homem público, no reconhecimento de que o mestre da Oração aos Moços, pelo apostolada cívico que lhe resume a existência, trazia em si a densidade das vidas exemplares, que lhe cumpria estudar, recompor e contar.

Desde o seu aparecimento, A Vida de Rui Tiarhosa se impôs à crítica nacional como uma obra de excepcional categoria, verdadeiramente mo delar como urdidura e probidade biográfica. Ao interesse pelo destino singular do biografado, somou-se ,i curiosidade pelos dons literários do biógrafo, logo apontado como um mestre de seu género nas letras de língua portuguesa.

Por outro lado, este livro orientou Luiz Viana Filho no caminho que melhor correspondia à sua vocação de escritor. Em breve, outras biografias vieram reunir-se a esta, numa sequência de grandes perfis literários e políticos que colocam o seu autor na preeminência do género entre nós.

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OBRAS DE

LUIZ VIANA FILHO (Da Academia Brasileira de Letras)

I - A SABINADA

II - A LÍNGUA DO BRASIL

III - A VIDA DE RUI BARBOSA

IV - A VERDADE NA BIOGRAFIA

V - O NEGRO NA BAHIA

VI - RUI & NABUCO

VII - A VIDA DE JOAQUIM NABUCO

VIII - A VIDA DO BARÃO DO RIO BRANCO

IX - A VIDA DE MACHADO DE ASSIS

A VIDA DE

RUI BARBOSA

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LUIZ VIANA FILHO

A VIDA DE RUI BARBOSA

Capa de

PERCY DEANE

LIVRARIA M A R T I N S EDITORA EDIFÍCIO MÁRIO DE ANDRADE RUA ROCHA, 274 — SÃO PAULO

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Page 5: Luis Vianna a Vida de Rui Barbosa

Fotografia de Rui tirada pouco antes da morte.

k LUIZ VIANA FILHO

A VIDA DF,

RUI BARBOSA

sétima edição

revista e ampliada

MARTINS

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Page 6: Luis Vianna a Vida de Rui Barbosa

À querida memória

de

D. Maria da Gloria de Lacerda Gordilho

Moteca Mimicipa Prci. Fento Munhoz daMíà-i 'Jetto

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Ç W t t & O . V f r C*,v ...v

Page 7: Luis Vianna a Vida de Rui Barbosa

Aos trinta e poucos anos escrevi esta biografia de Rui Barbosa. E, nas duas décadas que se seguiram, o favor público por este livro está expresso nas suas sucessivas edições, às quais se acresce a de agora.

Creio que hoje não teria a necessária desenvoltura para resumir num pequeno volume o imenso mundo, que é a vida agitada, cheia, extraordinária de Rui Barbosa. Domine, non sum dignus. Àquele tempo a mocidade ajuãou-me a elaborar um livro que, longe de ser uma apologia, ou mero trabalho de ocasião, tinha por objetivo um honesto retrato do biografado. Na realidade estávamos em plena ditadura do Estado Novo, e constituía estímulo acompanharmos a bravura do lutador, que, por vezes isolado e desamparado, — "um homem a pé", como ele se chamou — jamais abandonou as armas empunhadas desde a adolescência. Realmente, também para os grandes homens há os tempos em que estão na moda. E, sob o arbítrio da ditadura, tudo conspirava para que nos voltássemos para o incomparável paladino da Liberdade no Brasil.

Hoje, constitui alegria constatarmos o engano daqueles que por imaginarem-no esquecido e indefeso, tentam agredi-lo, injuriá-lo, negá-lo. Com que surpresa devem ter sentido na própria pele quanto está vivo, presente, e vigoroso. A morte não lhe deu a paz dos cemitérios. Rui — desaparecido há mais de quarenta anos — continua a ensinar, a liderar e a lutar. E, donde seria de acreditar que só restaria o pó da admiração, vemos levantarem-se legiões de fiéis, prontos para lhe desagravarem a memória ultrajada. De fato, de norte a sul, de leste a oeste, por todo o país perpassou um sopra de indignação contra as aleivosas acusações com que tentaram empanar-lhe a figura singular. Sinal de que a nação está viva e vigilante. E não cala, nem se amolenta, ante a assacadilha com que pretenderam macular uma existência devotada ao país.

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Nenhuma grandeza impede a injúria. Não admira, portanto, que, num panfleto atirado contra Rui, encontremos dele este perfil monstruoso: "político entranhadamente conservador, ao mesmo tempo ambicioso, comodista e inconstante, omisso em seus deveres parlamentares, raramente frequentando o Senado, sem real capacidade de liderança, tão longe de suscitar devoções duradouras quanto de assegurar lealdade definitiva a alguma ideia ou pessoa". Imagem de um réprobo.

Que diria de nós, da nossa cultura, e dos nossos sentimentos, o estrangeiro que, depois de observar, por todo o país, inequívocas demonstrações de apreço e reconhecimento a Rui Barbosa — como as que os povos tributam aos filhos que os bem serviram ou enalteceram, lesse aquelas linhas embebidas na injustiça e na paixão do sensacionalismo ?

Em verdade, e felizmente, aquele perfil não é de Rui. É, sim, o anti-Rui. É Rui pelo avesso. É o oposto, o contrário do cidadão que por mais de meio século lutou denodadamente pela vitória dos ideais que semeou indormidamente, sobre-pondo-se a ameaças, perigos e fadigas.

Não fiquemos, porém, em palavras, pois o melhor é des-montar-se peça a> peça, item por item, aquela nefanda objur-gatória. Comecemos pelo Rui conservador. Por certo não teria sido crime se houvesse adotado tal posição política na sociedade do seu tempo. Não foi conservador o Visconde do Rio Branco, tido por muitos como o primus inter pares em relação aos estadistas do Império? Não o foram Cotegipe, João Alfredo, António Prado? Entretanto, tudo repele a leviana afirmação de metermos Rui entre os conservadores. Fazê-lo seria ignorar os fatos, negar a História, e ludibriar os leitores.

É, pois, urgente que a verdade retome o seu lugar. Na realidade, a grande marca, o traço inseparável da ação de Rui ao longo de toda a existência, é a tendência, e mais do que isso, a paixão no sentido de reformar. Que reforma poderíamos ter como mais profunda, e fundamental, do que a Abolição? E não será Rui, porventura, um dos seus grandes líderes? Na imprensa, vos comícios, no Parlamento, vemo-lo, desde a adolescência, a, agitar a bandeira da liberdade dos escravos. Na Bahia, em São Paulo, na Corte, por todos os lugares onde andou nesses vinte anos que medeiam entre 1868 e 1888, deixou êle a marca do abolicionista. Não se diga,

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pois, haver sido atitude de ocasião, ditada por qualquer conveniência de ordem pessoal ou partidária. São vinte anos de luta contra os círculos mais fortes e poderosos da sociedade, todos eles desse ou daquele modo vinculados aos interesses do escravismo, e aos quais, em boa parte, deveu Rui as derrotas eleitorais experimentadas naquele período.

Aliás, é explicável que assim fosse, dada a filiação de Rui ao grupo do Diário da Bahia, chefiado pelo conselheiro Dantas. Este, por vocação, era um autêntico liberal e reformista. Hoje, seria líder populista. Nem devemos omitir haver cabido a êle, segundo o depoimento de Manuel Querino, (As Artes na Bahia, pág. 160, ed. de 1013) introduzir, em 1876, os operários livres, os artistas, como eram então chamados na Bahia, nas lides eleitorais. Por toda a vida, Rui seria fiel à escola na qual se forjara na juventude.

Não fiquemos, porém, na Abolição. Reforma política de alto porte, nos idos do Império, foi, sem, dúvida, a da eleição direta. Quem ignorará o brado dos liberais após o golpe de 16 de julho de, 18(18? — Reforma ou Revolução! — Durante mais de uma década seria o refrão dos liberais. E quando, em 1880, o Imperador entrega o poder a Saraiva, para realizar a decantada reforma, é justamente a Rui Barbosa, então deputado Geral pela Bahia, que cabe redigir o projeto de lei a ser apresentado ao parlamento. Por que? Por ser um conservador? Não, e não. Mas, por ser, há muito, dos mais exaltados reformistas.

Realizadas as duas grandes reformas — Eleição Direta e Abolição — uma política e outra social, ãir-se-ia que o reformista poderia ensarilhar as armas, para merecido repouso. Contudo, nada estava mais longe do espírito do infatigável lutador do que a ideia de um descanso. E, mal a nação começa a adaptar-se ao trabalho livre, ei-lo a desfraldar, — no Diário de Notícias e no Congresso Liberal de 1889 — a bandeira, da federação. Federação com a Coroa, se possível; com a República, se necessário. É que a esse tempo, conforme escreveu ao próprio conselheiro Dantas, inquieto com a veemência do- correligionário, Rui já distava da República "apenas uma linha".

É próprio dos reformadores jamais se sentirem integralmente satisfeitos. E assim seria Rui Barbosa, em cuja vida nunca deixaria de estar desfraldada alguma flâmula reformista. No Ministério da Fazenda, depois de haver sido, sem

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HiliiltUtl

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sombra de dúvida, o grande admirável arquitcto da transformação republicana do Brasil, é ele o extraordinário inovador, que traça rumos para a vida financeira, social, económica do país. E por toda a história republicana, até morrer, continuará comprometido com as ideias e lutas pelas reformas.

Principal autor da Constituição de 1891, nem por isso deixa de ser o mais vigoroso e intransigente pregoeiro da sua reforma. E já no fim da vida, em 1919, quando o mundo político parece disposto a entregar-lhe a Presidência da República, que tantos e tantos apontaram como o sonho das suas ambições, apenas uma condição lhe seria sugerida: silenciar quanto à reforma da Constituição. Um breve hiato, enquanto os amigos tratavam de compor-lhe a candidatura.

No particular é bem conhecida a correspondência que então trocou com Nilo Peçonha, que lhe defendia a candidatura. E a 3 de fevereiro, de Petrópolis, Rui apressa-se em escrever-lhe: "Até hoje, em tudo quanto se tem dito, escrito e praticado com relação à hipótese da minha candidatura, não vejo que se ocupem senão do meu nome e seu valor, ora sobremaneira exagerado, ora malsinado sem medida, nem justiça. Do meu programa, o programa da revisão constitucional, ainda se não tratou. Ora, o meu nome é inseparável desse programa. Com esse programa está identificada a minha candidatura. Eu sou esse programa."

Serão palavras de um ambicioso ou de um idealista, que se não moldava às conveniências e contingências? E, mais explícito quanto aos benefícios trazidos pelas reformas oportunas, acrescia: "Todas as reformas reconhecidamente necessárias são elementos de conservação. O programa radical de 1910 vem a ser, hoje, o programa conservador. Se o rejeitarem, amanhã já não satisfará mais a ninguém. Será mister ir muito além dele; e até onde ninguém o pode saber. Até agora, a política brasileira quer a constituição inalterada para a violar. Nós a queremos reformada, para se conservar."

Apesar do tom categórico, Nilo Peçanha ainda tentou uma cortina de fumaça, capaz de salvar a candidatura de Rui do veto dos anti-reformistas, ou anti-revisionistas, à cuja frente estava Borges de Medeiros, governador do Rio Grande do Sul. E dizia numa entrevista ao Jornal do Brasil, justamente no dia seguinte àquela carta: "A revisão não seria

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a tuia (de Rui) obra de governo, como de nenhum homem de Ettludo no momento."

Sem dúvida, era sugestão para Rui não embaraçar a tarefa dos amigos, que para ele pleiteavam a Presidência da República. Por certo, pensavam pedir-lhe pouco. Não valia Paris uma missa? Entretanto, logo no dia imediato, eis Rui a cortar a vasa à transigência. E escreve ao próprio Nilo: "tenho o desgosto de pensar o contrário na matéria de cada uma das suas sentenças. Não há nenhuma, com a qual tudo o que eu tenho dito, escrito e feito, vai por cerca de vinte anos, não se ache, notoriamente, solenemente, em completo desacordo."

Nada molgava o reformista. Aos setenta anos, o reformador ainda crepitava. Por quê? Para que? Talvez para que mais de quarenta anos após o seu desaparecimento não deixasse de haver alguém, no Brasil, desejoso de dar-lhe um diploma de conservador, se não de reacionário. Pobre Rui! Ou melhor: pobre país!

* ♦ *

Agora, há que cuidar da ambição de Rui. É outro emplastro que lhe põem às costas, para diminuir-lhe o valor da ação, que, longe de movida pelo ideal, estaria a serviço de vulgar ambição.

Como adaptá-la na vida de Rui Barbosa é que não sabemos. Por mais que se medite, por mais que se lhe vasculhem os desvãos da alma, o que encontramos sempre é o desinteresse. Ambição de dinheiro nunca a teve. Ainda bem moço, ao morrer-lhe o Pai, é sabido haver assumido a responsabilidade de pagar-lhe as dívidas, por sinal não pequenas para a época. E disso sempre se orgulhou. "Não pedi misericórdia, e não a tiveram comigo. 0 morto continuava a viver em mim nas suas responsabilidades, pelas quais nunca encontrei quartel. Era assim que eu queria: foi assim que me trataram os estabelecimentos. E assim foi que eu venci." (Dis. no Senado, em 1896).

E quando fechou os olhos após uma vida de trabalho ininterrupto, havendo sido por cerca de trinta anos dos mais reputados advogados e jurisconsulto do país, era quase nada o que amealhara. A formiga jamais pudera acumular. Vivia do trabalho de cada dia. Por isso, quer por ocasião da campanha de 1909, quer da de 1919, vira-se desprovido de recur-

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sos. Assim, em abril de 1920, não pudera pagar pequena importância a um dos colaboradores, Porto da Silveira, a quem remeteu apenas um cheque de um conto e duzentos mil réis com esta nota: "são os últimos restos do que eu tinha no banco." E nele ninguém conhecera o luxo, as viagens ao estrangeiro, ou qualquer forma de esbanjamento.

Mas, se cai por terra a hipótese da ambição de dinheiro, não menos frágil é a balela da ambição política. Teria, sim, aspirações. Quem não as terá na vida pública?

São reiteradas, repetidas, constantes, as provas de que Rui jamais vivera, lutara, sofrera, senão pelos ideais, que aprendera a. acalentar na casa paterna. Jamais a ambição o cegou. Nele, jamais os ideais cederam o passo à ambição das posições políticas.

Não falemos nos quase dez anos em que, sem qualquer remuneração, mourejou no Diário da Bahia. Nem tratemos da sua exclusão do Ministério Dantas, em 188 U, quanto tudo, serviços, dedicação partidária, renome, capacidade, o indicavam para alguma pasta. Preterido, Rui continuou, na Câmara, a ser o mesmo deputado, que "valia por vinte."

Onde, porém, a desambição de Rui se afirma pela primeira vez de modo incontestável é por ocasião do Ministério Ouro Preto, em 1889. A esse tempo já o reformista desfraldara a bandeira da federação, do mesmo modo que pregava a eleição dos presidentes de Província e a temporariedade do mandato dos senadores. E, convidado para organizar o Gabinete, que viria a ser o último da monarquia, o Visconde de Ouro Preto logo pediu a colaboração do conselheiro Dantas, que indicou Rui para o ministério, que recusa, repele, rejeita reiteradas vezes, dada a insistência de Dantas e do próprio Ouro Preto, no correr dos dias 6 e 7 de junho de 1889. Em cartas a Dantas e a Ouro Preto manteve Rui a posição em que se colocara desde o primeiro momento.

Na manhã do dia 7, inconformado com a recusa recebida na véspera à noite, Dantas tentou demover o amigo que conhecera ainda menino ao lado do Pai: — "Só não estarás ministro, se não quiseres. Indiquei teu nome, que o Ouro Preto recebeu alegremente, e que o Imperador acolheu de braços abertos. Assim, estás Ministro, a não ser que finques o pé em não querer." E, ciente de que Ouro Preto não admitira a federação no seu programa, Rui logo respondeu: — "Então, como posso ser ministro no seu Governo?"

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No mesmo dia, ele daria igual resposta a Ouro Preto, que, desejoso de conquistar aquele companheiro, retrucou-lhe: "Não tem razão. Não aceito a escusa. Vá refletir. Dou-lhe tempo para isso. E depois me escreva daqui a uma hora reconsiderando a sua resposta." Esta viria, numa carta, na mesma linha. Conta-se que, ao lê-la, teria dito o Chefe do Gabinete de 7 de junho: "Que loucura de homem! Mete os pés no futuro! Diga-lhe que aguardo em Petrópolis um telegrama seu reconsiderando." Rui, no entanto, não era homem que mudasse por um prato de lentilhas. Por certo será curiosa e original forma de ser ambicioso.

Contudo, a provada desambição de Rui não pára aí. Vi-ce-Presidente da República numa ocasião em que era notório o precário estado de saúde do Presidente Deodoro da Fonseca, não teve dificuldade em renunciar expontaneamente ao posto, que julgava então mais próprio para um militar. To-mou-lhe o lugar o seu amigo Floriano Peixoto. Bastou, entretanto, que este se afastasse da legalidade, tal como Rui a entendia, para que este iniciasse uma das mais vigorosas campanhas jornalísticas de que há notícia. É a fase verdadeiramente gloriosa dos habeas-corpus, na qual Rui arrosta perigos e ameaças, afronta todas as vicissitudes, até ser obrigado a exilar-se.

Nessa ocasião, Glicério, seu colega do primeiro ministério republicano, ainda tenta atraí-lo para a órbita de Floriano por ocasião do rompimento deste com Demétrio Ribeiro, desafeto de Rui, a quem escreve: "Olha, Rui: estou convencido de que estás politicamente em caminho errado." Por certo, um ambicioso não seria indiferente a tal aceno, cujo atendimento representaria a marcha batida para as comodidades do Poder. Mas, que importam as vantagens ao idealista, cujo reino parece não ser deste mundo? Rui mante-ve-se surdo à advertência de Glicério. E denodadamente perseverou no caminho que levaria às agruras do exílio.

Curiosa ambição. Não há memória de que Rui se apressasse em correr para as galas e as facilidades das posições. Mas, são reiteradas, repetidas as ocasiões em que, chamado para algum sacrifício, logo se dispõe a enfrentar a tormenta. Quem ignora a luta que tiveram os amigos, com António Azeredo à frente, para que aceitasse representar o Brasil em Haia? Entretanto, quando, em 1909, José Marcelino, Governador da Bahia, vai pedir-lhe que aceite uma candidatura

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perdida, não vacila um instante. João Mangabeira, que acompanhou aquele, por ocasião do convite, gravou numa forte página a evocação do episódio, que ouvira logo após o encontro, no qual José Marcelino dissera a Rui: — "É uma derrota certa, mas não morreremos no ridículo. É mais um dos seus sacrifícios. Com a bandeira na sua mão, ao menos ela se salvará." A resposta foi imediata: — "Você tem razão. Eu sou dos sacrifícios. Se fosse para a vitória não me convidariam, nem eu aceitaria, mas, como é para a derrota, aceito."

E quando a Convenção Nacional, em agosto, proclama Rui candidato em oposição ao Marechal Hermes, escolhido em maio, o senador Azeredo, velho amigo de Rui, mas que dele divergira, escreve-lhe chamanão-o o "mártir da Convenção." Não saberia não existir qualquer "probabilidade de êxito?" Como seria de esperar a réplica de Rui foi lapidar e corajosa:

"Contra essa catástrofe que nos ameaça, "o mártir da Convenção" — escreve ele a Azeredo em 30 de agosto — correrá, se Deus quiser, a via dolorosa, não de rastos, com a cruz às costas, mas em todo o antigo ardor de 1889, 1893 e 1895, como quem cumpre o maior dos deveres... A "probabilidade do êxito" não me preocupa, quando oiço o rebate da minha consciência. A própria vida não é nada..."

Certamente, é estranha maneira de ser ambicioso. Ou seria ambição pretender servir ao país, à justiça, e à liberdade? De fato, se pleiteou postos públicos, Rui, sempre que os alcançou, serviu-se deles tão-sòmente como instrumentos em favor dos grandes ideais que acalentou por toda a vida. A que título, portanto, chamá-lo de ambicioso? Este, sem dúvida, é o que, por vaidade ou cupidez, e com indiferença pelos meios, se atira sobre as posições, sobre os cargos, que pretende colocar não a serviço do bem público, mas de mesquinhos desejos de poder ou de dinheiro. Quem encontrará Rui nessas vielas. Êle que sempre trilhou as largas e limpas estradas dos ideais?

A injustiça dói. Esperemos que também constranja os que a praticaram com desenvoltura e leviandade.

Outra balda atirada contra Rui é a do comodismo e da inconstância. Rui comodista! Rui inconstante! É triste que

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após longa existência de sacrifícios e de fidelidade a alguns ideais pelos quais não mediu fadigas, nem perigos, verse acoimado de comodista e inconstante. Felizmente, de 1868, quando saúda José Bonifácio, o Moço, até 1923, quando passa para a eternidade, tudo na vida de Rui é o mais veemente, clamoroso, inconteste desmentido ao fel da aleivosia. Fatos? Eles aparecem aos borbotões, para afogar a injúria. Onde estará, por exemplo, o comodista? Estará, por ventura, no jovem que, durante cerca de dez anos, trabalha no Diário da Bahia sem perceber um centavo? Estará no autor da introdução ao O Papa e o Concílio, que contra êle cimentava o ódio dos ultramontanos e clericais? Estará no campeão da liberdade religiosa e do abolicionismo, que lhe custam a exclusão do Parlamento? Ou iremos encontrá-lo no advogado dos habeas-corpus de 1892, quando arrostou, inclusive, as ameaças de assassinato ? "O mundo político e parlamentar — escreveu um historiador sobre esse período — estava todo em pânico. Mv (Rui) foi naquele instante o único homem que realmente não teve m,êdo." Ou será comodista o redator do Jornal do Brasil, cuja campanha acabaria por lhe valer o exílio? Não o encontramos aí? Vamos mais adiante. Quem sabe se não o identificaremos no candidato que, pelo país a fora, desfralda, em 1909, a bandeira do civilismo? Ou será comodista a voz que, no Senado, se levanta, em 1910, contra a negra página do Satélite? Sabe-se que, após o primeiro discurso, choviam as ameaças contra a vida de Rui, caso voltasse a insistir. E o seu amigo J. J. Palma disso lhe deu ciência, obtendo apenas esta resposta: "Irei de qualquer modo, e falarei com maior veemência ainda do que da primeira vez." E assim- fêz.

É esse mesmo Rui, cuja grandeza empolgou geração sobre geração de brasileiros, que vamos encontrar em 19H, seja no Senado, seja nos Tribunais, batendo-se em defesa das vítimas d*) Governo e do seu arbítrio. Nesse ano, além de dezenas de pareceres, proferiu, no Senado, quarenta e dois discursos. Na realidade, à vista do que produziu e não encontra paralelo no mundo inteiro, tem-se a impressão de que Rui multiplicava o tempo. A peleja como que o revigorava. Era o seu clima. E êle próprio escreveria então: "estas lutas não afadigam. Eu as atravessso serenamente como um elemento de minha vida." E acrescentaria, no dia seguinte a essa confissão: "No meio dessas lutas o meu norte foi a

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justiça. Nunca vi oprimidos os meus adversários, que me não inclinasse para eles. . . Km 1892, em 1895, e 1898, em 1905, em todas as crises do regime republicano, tenho estado sempre ao lado dos meus adversários toda vez que contra os seus direitos se procura atentar com as armas arbitrárias do poder." Não dissera ele que "a injustiça, por ínfima que seja a criatura vitimada, revolta-me, transmuda-me, incen-deia-me, roubando-me a tranquilidade do coração e a estima pela vida?"

E não tardaremos a vê-lo, entre 1919 e 1920, empenhar-se em duas campanhas perdidas, que não podiam ter outro objetivo senão constituir protesto, ensinamento, exemplo. No fim da vida, doente, alquebrado, era extraordinário vermos aquele homem a pé levantar-se contra todo o mundo político que se acomodara em torno da candidatura Epitácio Pessoa. Mas, se a campanha presidencial é empolgante, sobretudo pelo sacrifício que representavam as desconfortáveis viagens através do país, muito mais empolgante é a campanha da Bahia, em favor da candidatura Paulo Fontes ao Governo do Estado. Não era Rui que estava em jogo. E além de não estar em causa sabia-se ser uma causa sem possibilidade de êxito. Quase ninguém acreditava que Rui, de saúde cada vez mais precária, deixasse o Rio para se embrenhar pelo interior da Bahia. Tanto mais que a família, com Dona Maria Augusta à frente, temia pelas consequências de uma viagem, que julgava temerária. Realmente, era o Grande Sacrifício. E dir-se-ia bastar essa condição para que não recuasse. De fato, com surpresa para os amigos, c inquietação da família, Rui, em novembro, embarcava para uma jornada áspera, marcada pelo desconforto, e pela fadiga. Quem, nessas horas demoveria o "comodista"?

Aos setenta anos, visivelmente combalido, ele iria, no fim da vida, compor uma das mais belas páginas na gloriosa existência do incorrigível Quixote, sempre a pelejar por ideais inatingidos. A Bahia, pelo que tinha de mais representativo da sua cultura e das suas tradições, vibrou ante aquele exemplo edificante. Lembra Napoleão ao retornar da ilha d'Elba. E a campanha que Rui realiza, transportando-se de cidade a cidade, e entre uma e outra escrevendo as lapidares conferências que proferiu, é algo de grandioso. Feira de Santana... Cachoeira... Nazaré... Alagoinhas... Serrinha... Bonfim... Cada um desses nomes associa-se a algumas pá-

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giuas que o tempo não apaga, e imortalizam o Verbo que as percorreu. Mas, principalmente, cada uma delas evoca uma jornada de grandes sacrifícios. Pelo Natal, na Feira de Santana, Rui se dá conta da ausência de Maria Augusta, e era a primeira vez que isso lhe sucedia. E ele consignou o fato* niim discurso: "Não permita Deus que nunca mais nesta data (ii me encontre longe dela; é a primeira vez que tal me acontece, c. só me consola o sentimento de o fazer por uma causa, (ni benefício da qual não devemos poupar sacrifícios." Sem d árida, estes eram o forte do homem que a maldade extrema haveria de acoimar de comodista.

Mas, se tudo repele o comodismo, o mesmo ocorre com a inventada inconstância. Ninguém, em verdade, mais fiel, mais arraigado, mais inseparável dos ideais que foram a razão de sua vida, e de sua luta. "As minhas convicções, escreveu certa feita, têm raízes inabaláveis no fundo da minha consciência." Contudo, os inimigos, não o poupariam por haver mudado cm certas ocasiões quanto a julgamentos ou concepções de menor importância. No âmago, no cerne, ele jamais variaria, ou sequer vacilaria. Quem o veria abraçar o arbítrio ou a violência contra a ordem jurídica e as garantias que the são inerentes? Onde daria êle as costas à Liberdade liara aplaudir a Ditadura? Como êle próprio observou, "o liom(in não se contradiz verdadeiramente senão quando contra vêm a substância de suas ideias." E isso jamais haveria de aconlecer-lhe. No caso, entretanto, não é possível esquecer esta observação de João Mangabeira: "A crítica, sobretudo em política, é a função prcdileta da incompetência, da mediocridade, incapaz de produzir e criar..." E a mediocridade náo perderia, o bom prato das "contradições" ou mudanças de líiii. Nisso, aliás, seria réu, confesso, pois "só as pedras não mudam".

Contudo, para deslroçar a balela definitivamente, nada mais próprio do que dar a palavra ao próprio Rui, que, em cúrias ocasiões, se deu ao trabalho de a pulverizar. Escreveu êle de cr ria feita:

"A sinceridade, a razão, o trabalho, o saber não cessam de mudar: não há outra maneira humana de acertar e produzir. Varia a fé, varia a ciência, varia a lei, varia a justiça, varia a moral,

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varia a própria verdade, varia, nos sem aspectos, a criação mesma; tudo, salvo a intuição de Deus e a noção dos seus divinos mandamentos, tudo varia. Só não variam o obturado, ou o fóssil, o ape-deuta, ou o néscio, o maníaco, ou o presumido.

Pode ser que no miolo de um compilador caiba inteiro o imenso universo jurídico, petrificado, imutabilizado e catalogado nas suas regras, nas suas hipóteses e nos seus resultados. Tirante, porém essas cabeças privilegiadas, tudo no direito ê mudar constantemente..."

E, em outra oportunidade, ao prefaciar a Queda do Império, assim voltou ao assunto:

"Pelo que toca ao variar de opiniões, deixem-me ter, mais uma vez o consolo de trazer à praça como coisa de que me prezo, e não me pesa, a deliciosa culpa dos homens de consciência, a única em que hei de morrer impenitente.

Beata, beatíssima culpa! Não mo tenham a mal os imutáveis. Deus os desencrue. Deus os reverta da pedra e cal em homens. Deus os ensine a mudar. Porque todo o aprender, todo o melhorar, todo o viver é mudar. De mudar é a glória dos que ignoravam, e sabem; dos que eram maus, e querem ser justos; dos que não se conheciam a si mesmos, e já melhor se conhecem, ou começam a conhecer-se.

O que, no mudar, se quer, é que se não mude para trás, nem do bem para o mal, ou do mal a pior. Se me achassem, hoje, menos tolerante, menos liberal, menos amigo da justiça, menos dedicado às leis, menos humano, menos dado ao trabalho, menos cristão do que ontem, aí sim, bem era que mo imputassem a culpa, vergonha, ou crime.

Mas em todos esses pontos, é sempre de menos para o mais, suponho eu, do mal para o bem, ou do bem para o melhor que tenho mudado, ou feito por mudar."

xvm

Será que não basta aos difamadores?

* * *

A caricatura surgida da agressão não é de poucos traços. Pelo contrário, nesse vale-tudo da difamação quanto mais se inventar melhor. Daí atirar-se contra Rui a pecha de "omisso nos seus deveres parlamentares". Na realidade, se ao congressista que os contemporâneos, tiveram como o maior em toda a existência do sistema representativo no Brasil, se confere, em algumas palavras, diploma de desidioso, aos que o admiraram, e aclamaram durante décadas, é evidente atri-buir-se a condição de pobres beócios, incapazes de perceberem o que agora nos desvenda o azedo revisor da história.

Nem outra a conclusão se, somente no Senado, orgulhou-se a Bahia de o ter como seu representante por mais de trinta anos, ininterruptamente. E isso embora por duas vezes, em 1892 e 1921, houvesse Rui renunciado ao mandato, que os baianos, sempre tão orgulhosos do incomparável conterrâneo, logo lhe devolveram entre as maiores demonstrações possíveis de admiração. Não veriam, porventura, tratar-se de um "omisso nos seus deveres parlamentares?" Por que por duas vezes, e em ocasiões nas quais não contava ele com o favor do Covérno federal, lhe causaram a renúncia, exigindo que permanecesse como representante da terra natal?

A verdade é que somente um "relógio de ponto" se lembraria de considerar Rui omisso nos seus deveres de parlamentar. De fato — e não há por que escondê-lo — ele não seria jamais o prisioneiro da rotina, o senador do rame-rame parlamentar. O seu mandato era para os grandes dias, para as grandes tormentas, e os grandes perigos. Aí era o primeiro, e era inexcedível. Quem o viu calar nas horas em que a nação esperava ouvir a palavra do decurião da Uberdade? Quem o viu deixar a gávea nos momentos de tempestade? Quem, o viu abandonar os amigos pela aproximação do naufrágio, ou os adversários atingidos pela violência? Por certo, desertar não seria nunca o seu forte.

Aliás, foi graças à bravura em face das ameaças, e à firme constância com que serviu aos ideais acalentados por toda a vida, que se tornou — acima das vicissitudes da política, — o orgulho dos seus pares e a glória da corporação a que serviu. Que importa, pois, que lhe assaquem o epíteto

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de omisso, descurado, ou relapso? A nação sabia e sabe que ele a bem serviu no parlamento, quer como deputado, no Império, quer como senador, por mais de três décadas republicanas. É quanto basta. A resposta dá-a o próprio Rui: "Bem sei que os serviços políticos, neste país, se escrevem na areia."

Para o crítico faccioso, nada há de ficar de pé. E na enxurrada de lama não faltaria um Rui "sem real capacidade de liderança." Vê-se que, para o autor do conceito, um líder deverá ser um manipulador de chorrilhos, nos desvãos da política. Mas, será essa a imagem verdadeira do líder, do guia, do condutor na vida pública? Um ministro precisa ser nomeado. E o mesmo ocorre com o presidente de uma assembleia. Um líder, entretanto, faz-se, impõe-se, conquista sozinho a sua posição de comando.

Negar a Rui, de quem, ainda no Império, dizia o senador Dantas que "valia uma Câmara", capacidade de liderança equivale a negar o sol. De fato, enquanto viveu foi ele o maior líder do país. Ninguém antes dele lograra, no Brasil, arrastar as multidões fascinadas pelo orador, que ouviam, encantadas, durante horas a fio. Multidões delirantes, que, no Rio, em São Paulo, em Minas Gerais, na Bahia, enfim por todo o país, o seguiam e aclamavam. Quando se anunciava que falaria no Senado, a casa logo se atopetava de admiradores. As galerias transbordavam. O mesmo acontecia nas salas, teatros, ou praças cm que houvesse que falar. O Supremo Tribunal Federal, cujo regimento limitava o tempo dos advogados que lhe ocupassem a tribuna, sempre lhe permitiu usá-la indefinidamente. Quem se animaria a interromper aquela palavra, que somente encontrava paralelo em Cícero e no Padre António Vieira?

No curso da campanha civilista, certamente a maior que a nação presenciara em toda a sua existência, bastava saber-se que Rui, ãe volta de uma das excursões políticas, passaria pela Avenida Central (atual Rio Branco) para esta se encher de partidários exaltados. No particular, prefiro dar a palavra a José Veríssimo, ãe quem, maliciosamente, foi invocada antiga e reconsiderada opinião contra Rui: "Assisti ontem pela primeira vez — escreveu José Veríssimo a Mário de Alencar, em 23 de fevereiro de 1910 — a uma das chegadas do Rui. É assombroso o que se passou, e as mais exageradas notícias não exageram. Eu mesmo senti um frémito de entusiasmo e custou-me a conter-me que não me juntasse à enorme

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massa delirante que o aclamava. Era um lindíssimo e raro cspetáculo daqueles milhares de mãos batendo palmas em toda a extensão da Avenida. Fiquei contente de tê-lo presenciado. Mas, como cada povo tem o governo que merece, este terá o do Hermes." Não será a viva presença de um líder? Ou deveremos medir os líderes pela capacidade de intriga nos bastidores? Certamente, para o jornalista, o tribuno, o parlamentar, que comandava a céu aberto os seguidores das suas pregações, o enredo, a mesquinha manobra política jamais seria o seu forte. Em nosso dicionário, no entanto, o< líder verdadeiro, autêntico, não ê o das sombras cavilosas. Ao que apunhala na escuridão preferimos o que arrasta as multidões, pela eloquência e a dialética. E este chama-se Rui.

Mas, como tiro de misericórdia para liquidar-lhe a memória, está a afirmação de que jamais suscitara devoções duradouras, nem assegurara lealdade definitiva a alguma ideia ou pessoa. Separemos, porém,, as pessoas das ideias. Quanto a estas é a surrada balda das imaginárias contradições de Rui, e por este mesmo enterradas, conforme já se viu. Restam as pessoas, os amigos e companheiros. E é fácil imaginar que ao longo de extensa e agitada vida política, num meio inclinado a sobrepor os interesses aos princípios e às conveniências do país, não fossem raras as ocasiões em que divergiu de afeiçoados companheiros. Bastará, porém aprofundar o exame para verificar que, mesmo nas horas de maior separação, os velhos amigos conservavam em relação a Rui uma nota de admiração, e até de carinho, em muitos casos. Colegas de adolescência e juventude, no Colégio e na Academia, não foram poucos os que se mantiveram seus amigos até a morte, em que pesem as divergências políticas. E nesse caso há que lembrar Araújo Pinho, Sátiro Dias, Luiz Viana, para citar apenas alguns. Torquato Bahia e Olímpio Chaves raiaram por uma admiração sem limites. Rodolfo Dantas, o mais moço dos ministros brasileiros, jamais deixou de sentir encanto pelo amigo extraordinário. E a Rui, já na República, caberia dar a mão ao velho Dantas, conservando-o na presidência do Banco do Brasil. Que dizer da sedução que exerceu sobre amigos e colegas como Quintino Bocaiuva, Pinheiro Machado, António Azeredo e Tobias Monteiro, todos eles incapazes de esquecerem, mesmo quando atacados, a sedução de outros tempos? Mas, se daí passarmos para as gerações mais novas, e nas quais a devoção parece haver tomado o lugar da

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amizade, o que encontramos é uma série de amigos dispostos a todos os sacrifícios ao lado do mestre incomparável. E quando nos lembramos que alguns desses chamavam-se João Mangabeira, Francisco Sá, Cincinato Braga, José Eduardo de Macedo Soares, poderemos, pela grandeza dos discípulos, avaliar a altitude do mestre. Por vezes, levados pelas circunstâncias, houve os que se afastaram momentaneamente. E da transitoriedade dessas desavenças, que a admiração logo dissipava, nenhum exemplo melhor do que o de Carneiro Ribeiro, antigo professor de Rui e seu opositor principal nas questões de linguagem no Código Civil, ao saudá-lo, já octogenário, quando visitou a Bahia, em 1919.

A lista é infindável. Velhos e moços, companheiros de juventude e discípulos da maturidade, todos, sem distinção, dir-se-ia fascinados por aquele imenso foco de luz. Rui deslumbrava. E, para desmentir a aleivosa acusação, é eloquente evocar-se um punhado de admiradores, que por toda a vida se orgulharam de freqúentar-lhe a amizade: Francisco de Castro, J. J. Palma, Oliveira Lima, Sancho de Barros Pimentel, Porchat, Júlio de Mesquita, Miguel Calmon, Octávio Mangabeira, Simões Filho. Cada qual tem o seu lugar na história do país. Mas nenhum deixaria de acrescer ao fato à honraria de haver sido amigo de Rui Barbosa. Que, entretanto, mais empolgou a cada qual, dentre as numerosas facetas daquele poliedro de luz e de devoção aos ideais, não poderemos saber. O homem de Estado? O jurista? O financista? O orador? O jornalista? O escritor? Como sabê-lo, se é impossível afirmar qual o maior?

Do monstruoso retrato citado no começo deste prefácio nada mais resta além da paixão do autor, felizmente impotente na sua tentativa destruidora, que o tempo, caridosamente, sepultará, como faz com obras desse género.

* * *

A vida é triste. Frequentemente má, se não terrível nos seus desígnios. Devemos, pois, ser agradecidos à circunstância de não nos haver reservado, na distribuição dos papéis, o da difamação e da injúria contra alguém que "estremeceu a pátria, viveu no trabalho, e não perdeu o ideal!"

Rio de Janeiro, maio de 1965. L.V.F.

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A VIDA DE

RUI BARBOSA

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I — OS BARBOSAS

Nasci ria pobreza; c de tal me honro; porque essa, pobreza, era, a coroa de uma vida, que o amanjor dou sacrifícios não deixou frutificar em prosperidade.

Rui .

E M 1755, no dia de Todos os Santos, Lisboa foi destruída por um terremoto. A catástrofe pareceu irreparável. Mas,

já descobertas as minas do Brasil, o império português estava no apogeu e seria possível reconstruir a cidade arrasada. Portugal nadava em ouro. Em 1730, por exemplo, correndo rumores, em Madri, de se encontrarem vazias as arcas de Lisboa, D. João V, para desmentir a notícia, apressara-se a mandar à filha, a Princesa das Astúrias, sessenta mil cruzados em barras de ouro. Era ouro do Brasil. Com êle sustentava-se toda a pompa da monarquia portuguesa e ainda sobrava para edificações monumentais, que inflamavam a imaginação do povo fascinado por esse paraíso distante, donde as embarcações voltavam carregadas do valioso metal, diamante e açúcar. Desse país longínquo contayam-se coisas maravilhosas, e os portugueses, já menos propensos às conquistas da África e da Índia, emigraram aos milhares para a colónia americana.

Na Bahia, capital da América Portuguesa — repicaram os sinos em 27 de março de 1756, convocando nobreza e povo, a fim de lhes ser lida a carta de D. José I, solicitando donativos para a reedificação de Lisboa. Dos trinta mil habitantes, setenta e oito compareceram e deliberaram sobre o pedido do Rei. Entre estes estava António Barbosa de Oliveira, escrivão no Tesouro, recentemente chegado do Porto. Viera tentar fortuna na América. Não que fosse um aventureiro, descendia de boa estirpe e trouxera o seu brasão. As armas da família, lembrando o feito de um Barbosa, que, em combate, submetera sozinho três galeras mouras, gravavam-se "em campo de prata sua banda azul, carregada de três crescentes de ouro entre leões vermelhos batalhan-

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4 A VIDA DE RUI BARBOSA

tes." Outro Barbosa comandara uma das naus na primeira viagem de circunavegação. E todos eles se orgulhavam desses antepassados ilustres. (1)

António Barbosa de Oliveira, homem prático, não teve ideais políticos. Foi Sargento Mór de Ordenança, (1-A) e quando morreu, em 1784, legou aos dez filhos pequeno cabedal, e um cartório de tabelião. Um dos filhos, Rodrigo, casou-se com D. Maria Simas e morreu cedo, deixando oito órfãos entregues à pobreza da viúva. O mais velho chamava-se João, e a mãe esperava vê-lo um dia substituindo o pai no comércio. O menino, entretanto, tinha muita imaginação e gostava de ouvir contar como um tio defendera, no júri, os revolucionários baianos de 1798, e ingressara depois na vida religiosa, alcançando altas dignidades eclesiásticas. (2) Ele também queria ser advogado, estudar em Olinda ou Coimbra, onde um primo, durante a campanha de Napoleão, lutara contra os franceses no Batalhão Académico. A mãe adver-tiu-o, porém, de não ter recursos a fim de mandá-lo para Olinda ou Coimbra. Na Bahia, a única faculdade era a de medicina, e, por isso, devia ser médico.

Logo no primeiro ano, em 1837, os estudos de João Barbosa foram interrompidos por uma revolução, a "Sabinada". Durante quatro meses a Bahia esteve sitiada pelas tropas legais, e quando estas entraram na cidade foi preso o processado. (3)

Por esse tempo a Bahia era uma cidade próspera, orgulhosa e valente. Cercada de antigas fortalezas, coberta de igrejas, escalavam o seu porto, dando-lhe ares cosmopolitas, embarcações vindas da África, Ásia e Europa, e os seus armadores despachavam navios para contrabandearem escravos da Guiné em todas as colónias do continente. Exportava-se muito açúcar, e tudo isso da-va-lhe riqueza. Nada, no entanto, a envaidecia tanto quanto os seus forais de cultura, os seus centros de estudo, o que contribuiu para aí se disseminarem com facilidade o Contrato Social de Rousseau e os Direitos do Homem, doutrinas que empolgaram João Barbosa. Deixara seduzir-se pelas ideias liberais e, embora conseguisse a absolvição, a aventura não agradou aos parentes fiéis ao trono, entre os quais o juiz Albino José Barbosa de Oliveira, homem honesto e bom que lhe auxiliava os estudos, e aspirava tornar-se o patriarca da família. (4) Ambição simpática. E não tardou em realizá-la, casando-se com rica órfã, sobrinha do marquês de Valença, que lhe propusera o matrimónio. Nunca vira a noiva, mas a união foi feliz, e facilitou-lhe rápida e brilhante carreira na magistratura.

OS B A R R O S A S 5

A revolução marcou a alma de adolescente de João Barbosa. (5) Continuou sempre um revoltado. O sonho malogrado da mocidade jamais deixou de viver nele. E sendo apenas um intelectual, lia autores liberais ingleses o franceses.

João Barbosa, após uma estada em Caravelas, fixou-se em Salvador. Contudo, embora a exercesse" com zelo, como ocorreu por ocasião da epidemia de cólera, em 1855, não chegou a amar a sua profissão. Nesse tempo, a medicina nutria-se de dogmas pretensiosos e êle a julgava uma ciência exata demais para a sua imaginação. Continuou por isso a investigar clássicos da língua. Depois, perdendo um concurso na Faculdade; de Medicina, abandonou definitivamente a carreira. (6)

Que seria daquele rapaz, lendo coisas inúteis e apaixonando se por problemas abstratos? Isso preocupava a família de João Barbosa. Mas, como não st; mostrasse inclinado a procurar remuneração para as suas atividades intelectuais, consideraram-no com evidente vocação para a política, cujos problemas o apaixonavam.

Entre as personalidades influentes do partido liberal, que detinha o poder há dois anos, desde 1844, estava Luiz António Barbosa de Almeida, também implicado e absolvido na revolução de 1837, e cujas qualidades faziam prever uma rápida ascensão. l-Ae próprio pensava assim, e zangava-se quando não lhe davam lugar de destaque. Era primo de João Barbosa, e fê-lo deputado provincial. (7) Carreira natural para quem não se mostrava disposto a outro esforço além das suas leituras, investigando ques-toes políticas e de linguagem. E, no mesmo ano em que tomou posse, João Barbosa casou-se com uma irmã de Luiz António, Marin Adélia, moça calma e bem educada. (8)

Um partido, quando so sente; bastante sólido no poder, começa a dividir-se e a errar. E os liberais, julgavam-se indestrutíveis. A opinião política do país, nessa ocasião, depois de quinze anos de revoluções consecutivas, discutia o tráfico de escravos. Assunto sentimental, e, portanto, perigoso. Os liberais, em oposição aos conservadores, haviam sido contrários ao tráfico. Mas, considerando-se fortes, quiseram mudar de rumo. A incoerência foi fatal. E, em setembro de 1848, organizou-se um ministério i onservador. João Barbosa não seria reeleito. Começava mal, e is adversários iriam rir-se desse estreante infeliz. Ideia insupor

tável para um homem orgulhoso. No mesmo ano, com alguma surpresa dos amigos, que o não

|uliavam capaz de qualquer ação, João Barbosa apareceu diri-".iiidc "O Século", fundado pelo cunhado e impresso nas oficinas

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8 A VIDA DE RUI BARBOSA

/m i. „,rtn de 12 de agosto de 1878, publicada no "O Monitor" ( l e l 'd, : e ^ f r n í f a n o , f reproduzida no "Jornal do, Com roxo de ' , , ,„virv de 1878 Luiz António informa que O Século tora tun d d: pi ; a V t fadministração de Serra I * V « * g ™ ^ , J £ £

republicano. Batista pereira, in ri r inicialmente im-, r V ° " r T l S Í S u ^ e ^ o S S H S S ^ a tipografia Serva, veio "O I S " em 1 8 4 9 ? ^ t V oficinas próprias adquiridas, no Rio, por Lui. António', servindo Teófilo Ottoni de intermediário.

Ouanto ao papel de João Barbosa na redaeao do O Século o. yuamo M> jja^c j Rarlinsa em 27 de íunho de 1878,

Luiz António, no "O Momtor, de 13 de agosto de ia /» ^ ^

que o principal na administração mesmo na tipogratia. B. ciar veio q f Í < O U ( l t ^ e S u - Í o T S : - d e Ru, cm 5 de maio de 1850.«, ora-uJdl r e í d t d a de António Gonçalves g ^ » £ % ? , % * £ $ . ^ ' Í u t r i a f t ^ R u i ^ r o ^ ? ^ f K j . ' , - * , « 5 -Kernandes Tirito

1 9

() SOFRIMENTO CONDUZ AO PRAZER

A lenda de Ahaxvero é a vida da humanidade.

Rui (1865).

CONI'(>HMK u posição em que estejam, os políticos acreditam que o poder e eterno ou o ostracismo efémero. Assim, nos quatro anos que se seguiram ao nascimento do

filho, Jouo hniliosa supôs sempre estar às vésperas da vitória e odiava qualquer iniciativa. Maria Adélia, porém, não se desiludia daquele homem Ião elieio de confiança no futuro e que apenas lia e escrevia como se a vida lhe corresse próspera. Mesmo quando as dívidas começaram a acumular-se, êle não modificou os seus hábitos, continuando a anotar clássicos portugueses, manusear escritores ingleses e trabalhar no jornal gratuitamente.

Contudo a vitória não veio tão rápida quanto imaginara. E como ainda estava muito moço para se contentar com a ideia de que o filho poderia vir a ser um grande homem, os reveses políticos entravam a irritar João Barbosa. A família aumentara com o nascimento de uma filha, Brites, e fora forçado a mudar-se para outra casa ainda mais modesta. Aborrecera-lhe ter de desarrumar os seus livros, e vingara-se escrevendo violentos artigos contra os adversários, responsabilizando-os por todos os males do país.

Maria Adélia, compreendendo, então, que o marido não estava disposto ao sacrifício cio seu direito de sonhar com triunfos imaginários, mobilizou os escravos da casa, organizando pequeno fabrico de doces. Isso foi providencial. Da manhã à noite, negros semi-nus trabalhavam em torno de grandes tachos de cobre, donde rescendia agradável cheiro de açúcar. Não pediu mais dinheiro ao marido. E João Barbosa pôde novamente convidar os amigos para em sua casa discutirem assuntos políticos.

Algum tempo depois, a residência de João Barbosa tomava-se um centro de reunião, onde, frequentemente, se encontravam liberais de certa importância para tratarem dos interesses do par-

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10 A VIDA DE RUI BARBOSA

tido. Manuel Dantas, jovem advogado, de temperamento expansivo e alegre, contava-se entre os mais assíduos, e poucos acreditariam esconder-se uma grande ambição atrás daquela espontânea loquacidade. Enfim, todos possuíam a imaginação bastante ardente para idealizarem conquistas retumbantes .

N u m desses encontros, mais tarde, em 1859, quando o Imperador visitava a Bahia, escolheram João Barbosa para saudar o monarca. E êle, com muita dignidade, chamara a atenção do Rei para "os ventos que sopravam dos quatro pontos do céu". Frase sibilina, mas que não impediu ser agraciado com uma comenda, embora jamais a usasse. (1) João Barbosa não podia dominar o orgulho.

Muitas vezes, vendo-o irritado, os amigos lembravam-lhe que os Barbosas, devido ao génio rancoroso, acabavam doentes do fígado. — "Não faz mal", respondia-lhes com mau humor. Quando veio, porém, a Conciliação, — união de conservadores e liberais, cm 1853, sob a direção do visconde do Paraná — estava ainda mais incompatibilizado com os adversários do que seria aconselhável a um político hábil. A ocasião era dos que não tinham atraído grandes ódios, e por isso teve de satisfazer-se com uma cadeira na câmara provincial. Depois de cinco anos de luta não avançara um passo. Uma derrota c, talvez, uma lição.

No seu papel de pai, João Barbosa era amigo e gostava de contar aos filhos pequenos, histórias de Inndo moral. Kles, porém, preferiam aquelas narradas pela mãe, que compreendiam melhor, embora já tivessem vaga noção de ser o pai um grande homem. Admiravam-no; mas, para eles, no mundo não havia ninguém melhor do que Maria Adélia, deixando-os correr pela casa com os filhos dos escravos, montados em bravos cavalos de flecha.

Quando Rui completou cinco anos, o pai considerou-o em idade d e aprender as primeiras letras. Agora o filho teria menos tempo para apanhar pássaros e borboletas em casa dos avós, na Boa-Viagem. E foi confiado ao prof. Ibirapitanga, (2) cujos métodos modernos João Barbosa desejava aplicados a Rui. Razão decisiva na escolha do professor. No colégio, o menino fêz progressos surpreendentes. Em quinze dias sabia ler e conjugar verbos. E o professor, tão entusiasmado consigo quanto com aquele discípulo extraordinário, publicou um anúncio, narrando o fato e acrescentando que, em trinta anos de magistério, ainda não encontrara criança tão inteligente. (3) Ao menino isso não daria grande contentamento. Mas, o pai ficou radiante e orgulhoso.

O SOFRIMENTO CONDUZ AO PRAZER 11

Depois desse pequeno triunfo Rui não teve mais descanso. (4) O pai preparava-o para ser um erudito e um orador, e a cada instante chamava-o para ler e decorar longos trechos. Fazia-o também subir numa alta mala, ensinava-lhe a posição em que deviam ficar as mãos do orador, obrigando-o a declamar em voz lorle, sílaba por sílaba, como se estivesse diante do sonhado audi-l(')l'iO.

Nosso programa, João Barbosa foi inflexível. E min dez anos Kui era uma criança triste e amava os livros. Sabia regularmente Camões, cujos versos recitava, conhecia Vieira e lia Castilho — os escritores proferidos pelo pai.

Todos os dias, depois da ceia, começava a aula de história sagrada. (5) Sòlire a mesa da sala de jantar, abria-se a "llistoire iln Nouvrau Testainent", de Perónio, numa edição cheia de gravuras sóbi r a vida de Jesus, o o pequeno Bui c a irmãzinha iniciavam a leitura, que u pai interrompia com explicações, enquanto Maria Adélia meditava sobro as páginas das "Novas Horas Marianas", a sua dislraçao prodilota. Assim, aos poucos, as duas crianças aprendiam a vida do Salvador contada pelos apóstolos. As estampas davam grande interesse ao livro-, e com prazer elas liam a narrativa de Jesus tentado pelo demónio, luta entre o bem < o mal, o que a mãe pedia para repetirem só para os ouvir di/or com muita convicção: — "la vie entière de 1'homme vertueux ost, à proprement parler, un combat peqDétuel contre le vice". No dia seguinte recomeçava a lição. Chegava a vez das nvipeias de Cana. Depois vinham passagens de Nicodemos, o encontro de Jesus com a Samaritana, episódios de Judas, Pedro e Pilatos. Como era emocionante o degolamento de S. João! Brites desejava saber se havia pessoas tão más quanto Herodes, c Maria Adélia, paia consolar a filhinha, fazia-a ler palavras do mesmo João sobre Maria Madalena, ensinando que "os grandes sofrimentos são o <amiiiho por onde Deus nos conduz aos grandes prazeres". Frase que podia parecer estranha ao filho, mas êle a repetia com ênfase. Como era belo esse livro de folhas douradas, tão cheio de ima-gens, o onde, satisfeito, colocara o seu nome: "Ce livre appart ient a iiKinsieur Ruy Barbosa". Na casa, para êle, não havia outro igual . (())

a # a

Knlre as pessoas cultas da cidade era muito acatado o dr. Abílio Borges, diretor do "Ginásio Baiano", homem grave, de boas maneiras, e com o espírito permeável às reformas do seu lempo. Como educador abolira qualquer castigo corporal, proi-

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12 A VIDA DE RUI BARBOSA

bindo os professores de baterem nos alunos. Inovação radical, pois acreditava-se nas virtudes da palmatória para corrigir meninos vadios, e os próprios pais nem sempre se convenciam dos resultados daquele método generoso. Várias vezes João Barbosa, também dedicado ao assunto, discutira com êle problemas de educação, encontrando-o sempre a par das últimas doutrinas. Não seriam, portanto, necessários outros motivos para Rui ingressar no colégio do dr. Abílio, no início do curso de humanidades.

O colégio, importante residência senhorial, cercada de janelas, a escadaria majestosa dando acesso ao andar superior, ficava numa esplanada cheia de árvores. Frondosas mangueiras, de troncos enormes, cercavam o edifício, compondo a paisagem dessa mansão, onde residira o marquês de Barbacena, e a brisa amena, tão peculiar à região, varria a casa em todas as direções, tornando o lugar, além de belo, saudável.

Os professores receberam com simpatia aquele menino tímido, esquivo, de olhar meigo, extremamente pálido, e que apenas falava quando lhe perguntavam alguma coisa. Um deles, o padre António de Macedo Costa, afeiçoou-se bastante à criança de semblante triste, que parecia sempre preocupada com algum pequeno drama íntimo. Gostava por isso de saber ser êle o primeiro da classe, e que, nas horas de recreio, preferia ler ou sonhar sentado numa pedra situada no pátio, a correr com os colegas pelas encostas do morro. Às vezes, os companheiros, para aborrecê-lo, tomavam-lhe o lugar predileto. Êle, porém, nada dizia, esperando pacientemente que se retirassem.

Na escola, além do latim, da matemática, e do francês ensinado pelo jovem professor Carneiro Ribeiro, Rui aprendeu outras coisas. Viu, por exemplo, como naquele aglomerado de meninos, ingénua miniatura do mundo, havia bons e maus. Alguns, sem que soubesse por que, pareciam não gostar dele, e não perdiam ocasião para apontá-lo ao escárnio dos outros. Certa vez, um jornal, por engano, publicou a idade de Rui aumentada de três anos. Todo o colégio riu. — "Então o Rui estava escondendo idade?" — "Bem se via não ser possível tal adiantamento num menino da mesma idade deles". Nesse dia, quando chegou à classe, todos o receberam gritando em coro: "Rui é velho!. . . Rui é velho!. . ." Nenhum acreditou no equívoco, e êle voltou para casa melancólico. Não se lembraria de que "os grandes sofrimentos nos conduzem aos grandes prazeres?"

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Os colegas nunca puderam compreender por que motivo Rui mio era igual a eles e não amava os mesmos brinquedos. Êle próprio não o saberia. Mas, o seu prazer era ler. (7) Em casa, logo ás primeiras horas do dia, o pai surpreendia-o cercado de livros, sob a luz de uma vela. (8) E, embora satisfeito por aquela precoce curiosidade intelectual, repreendia-o com brandura. Nisto, entretanto, mostrava-se incorrigível. A eonseqiiência foi acabar doente da vista, agravada uma hipermetropia e obrigado, por algum tempo, a separar-se dos seus queridos livros.

Um dos hábitos do colégio consistia na realização de torneios li (erários, onde o dr. Abílio estimulava as vocações dos discípulos pelas belas-letras. (9) Nessas ocasiões, aqueles jovens intelectuais declamavam as próprias composições, e quase todos se imaginavam grandes poetas ou grandes escritores. Contudo, nessas festas, Mui juttiulN alcançou grande êxito, pois somente a poesia entusias-iliuva o mordii'/ auditório, o, êle, evidentemente, não era inspirado poliu miiNitN. (10) Kslavn-No aluda no período romântico, e até ON monlnoN conheciam liyion, que tinham na conta de um semi-diNifi. Por Isso nenhum dentre eles gozava a popularidade de CaNtro Alves, belo colega, de olhos profundamente negros, sempre multo alegre, e cujo nome corria de boca em boca, pronunciado com admiração. Era o ídolo daquela turba trêfega e feliz. Por toda a parte, nas paredes das salas, nas carteiras, nos livros, o seu nome estava gravado como o de um triunfador. (11)

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Km 1801, organizado o gabinete conservador presidido pelo marquês de Caxias, dele se afastaram antigos correligionários, Indo reunir se aos liberais, paru formarem nova composição política, que tomou o nome de "l.iga". No ano seguinte os liberais e ON conservadores dissidentes governavam o país. Principalmente na liahla, onde mais se fizera sentir o dissídio, com a retirada de Nabueo, Zacarias c Saraiva das fileiras conservadoras, refle-tiu se a nova situação. João Barbosa viu realizado então um dos seus sonhos de mocidade: a cadeira de deputado geral. (12) Também l.uiz António e Manuel Dantas foram eleitos.

Custou-lhe muito separar-se do filho, de quem se orgulhava de ser o mais dedicado professor. Realmente, nessa missão, era incomparável. Se em meio a uma reunião o relógio advertia-o «le aproximar-sc a hora em que devia explicar uma lição a Rui, logo pedia licença e retirava-se. A política rinha, porém, grande

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14 A VIDA DE RUI BARBOSA

sedução. E João Barbosa, com a intolerância de um cristão que partia para a guerra santa, viajou rumo à Corte. Maria Adélia, entretanto, preferiu ficar com os filhos.

Era a primeira vez q u e ia à capital e aceitou morar com o primo Albino, aquele que aspirava ser o patriarca da família, e em cuja casa, um palacete à rua dos Inválidos, costumavam hos-pedar-se os parentes. Na Câmara, fez boas e úteis amizades, naturalmente de acordo com as suas tendências radicais. Sobretudo de dois deputados, António Jacobina e Saldanha Marinho, aproximou-se sinceramente. Ent re os três houve perfeita compreensão. E, até quando os dois amigos de João Barbosa se tornaram republicanos, não deixou de existir entre eles mútuo entendimento. Out ro parlamentar com quem se avistava frequentemente em casa de Albino, era Francisco Otaviano, t o r r e to jornalista, espírito meio cético e culto, amigo do Imperador, de quem dizia aos colegas, quando lhe perguntavam por Sua Majestade: "vai b e m . . . fazendo maus versos e criticando os bons". (13) Pequeno defeito do qual Pedro II nunca logrou corrigir-se.

Também velhos companheiros de luta, como Salustiano Souto e João Moura, figuravam entre os representantes da -Bah ia no parlamento. E José António Saraiva, recentemente incorporado às hostes liberais, íè/.-se seu amigo. Saraiva, sempre preocupado com a opinião dos outros a respeito dele, distinguia-se pela prudência das atitudes. Tudo nele era medido, até mesmo no modo cerimonioso com que cumprimentava as pessoas. O grupo form a d o por esses deputados era seleto, e entre eles parecia existir certa solidariedade. Aparência breve, entretanto, pois quase todos se julgavam com os mesmos direitos dentro do partido, e a coesão não podia durar.

A ausência do pai não fez grande falta ao filho. Agora cabia a Maria Adélia proibir-lhe as leituras excessivas. Que desejaria ser aquele adolescente tímido e sempre debruçado sobre os livros? A pergunta não era tranquil izadora para a mãe. Já experimentada pelos reveses do marido, ela não aspirava para o filho o mesmo destino. Sobretudo não estimava vê-lo político; e nisso tinha o apoio de João Barbosa. (14) O menino, porém, estava bastante contaminado pelos exemplos da família, e ouvia satisfeito episódios da vida política dos parentes, principalmente daqueles mais exaltados, e que t inham sido presos como revolucionários. Êle t ambém poderia lutar por princípios liberais. Entretanto, Maria Adélia, se lhe pudesse marcar o futuro, pre-

0 SOFRIMENTO CONDUZ AO PRAZER 15

leiiria fazê-lo um pacato pai de lamília, magistrado ou advogado, como tinham sido outros Barbosas, êsles mais felizes e abastados do que os inquietos reformistas da lamília. Por enquanto, porém, apenas decidira seguir o curso jurídico. Depois. . . Iria estudar cm Recife, e isso agradava ao pai: o filho realizaria o que êle nao conseguira. Contudo a eseollia aborreceu profundamente o prolcssor de matemática de Rui. Almejava a glória de fazê-lo um engenheiro notável, c, desatendido, nunca mais quis ver o discípulo. (15)

Quando João Barbosa regressou, cm ISíil, líui concluíra os '.cus estudos de humanidades c era o primeiro do colégio.

Kspcrava-o, porém, amarga decepção. Ksquecido cie que ainda nao completara a idade exigida para a matrícula, já se imaginava partindo para o Ucciíc, quando <> pai o chamou e disse-lhe "mio ser possível iniciar a vida pui- uma falsidade". (16) Era verdade que inuilos obtinham certidões graciosas para burlarem a lei. mas João Barbosa pensava de modo diferente. O exemplo, para êle, valia o tempo perdido. "Aproveitaria o ano aperfeiçoando se no alemão", (17) acrescentou o pai, como se desejasse consola lo. Consolo insignificante para quem sonhava com a academia.

Uni ano passou depressa. E Rui despediu-se dos colegas pronunciando um discurso, onde repontava o pequeno moralista.

Apesar de o ter preparado para ser um orador como êle, ensi-nando-lhc como devia pronunciar as palavras e colocar as mãos, João Barbosa, ((liando ouvili o discurso do filho, não acreditou que <: houvesse feito sozinho, e indagou ao dr. Abílio se não colaborara no trabalho. — "A mesma pergunta eu ia fa/.er-lhe", (18) respondeu o direlor. Depois, diante do auditório ansioso para ouvir as nolas de cada qual, o dr. Abílio chamou Rui e convidou o arcebispo, o conde de Sao Salvador, para lhe entregar a medalha de ouro, (pie lhe lura conferida. Aquilo tudo era muito solene, e o menino, com o coração fustigado pela "maior emoção da sua vida' (10), avançou até o prelado. Ouviram-se aplausos, e sobre o peito Iran/ino ficou pendurada a vistosa medalha de ouro. Ela liem valia todo o seu esforço paciente, as leituras durante as madrugadas, c, sobretudo, era a melhor resposta aos colegas que nao gostavam dele. Enfim, o mundo não parecia tão injusto.

foi interessante ouvi-lo enunciar, com a convicção de adolescente, ingénuos conceitos sobre a vida, encorajando os com-panheiros: "ânimo! que os espinhos se hão de converter em flores,

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16 A VIDA DE RUI BARBOSA

e as palmas do martírio se hão de trocar em lauréis de triunfo". (20) O adolescente acreditava no que dizia.

NOTAS AO CAPITULO II

(1) Encontra-se na "Casa de Rui Barbosa" a comenda da Rosa, que pertenceu a João Barbosa. O jornal "A Rua", do Rio, publicou, em 15 de outubro de 1917, o discurso de João Barbosa ao Imperador D. Pedro II, na Bahia, em 1859.

(2) Prof. António Gentil Ibirapitanga. Dele diz A. F. de Castilho, em carta dirigida do Rio à mulher, em 12 de fevereiro de 1855. (Obras Completas, vol. III, Lisboa 1910, p . 134). "Ibirapitanga é um verdadeiro fanático da Instrução primária; faz-lhe toda a espécie de sacrifícios, inclusive de dinheiro sendo pobre, e contando nada menos de quatorze filhos vivos, além de seis que ja lhe morreram Como professor, e como povoador, merecia ser premiado." Em outro tópico da mesma carta, escreve Castilho: "ensina pelo meu Método com excelente resultado." Em carta a Elpídio de Mesquita, em 26 de maio de 1897, in Arq. C. R. B., Rui se refere à casa dos avós, na Boa-Viagem.

(3) A nota do prof. Ibirapitanga, publicada no "Correio Mercantil" de 22 de junho de 1855 e reproduzida no "Jornal de Notícias" (ambos da Bahia) em 5 de novembro de 1904, depois de se reefrir ao método Castilho, assim conclui: "lira do meu imperioso dever apresentar ao público baiano o resultado de minhas observações, estudo c prática do método Castilho no tempo prometido. Apliquei o método Castilho, de preferência à gramática, a um menino, filho do dr. João Barbosa de Oliveira. Este menino, de cinco anos de idade, é o maior talento que eu já vi, em 30 anos de magistério. Em 15 dias aprendeu análise gramatical, a distinguir orações e a conjugar corretamente todos os verbos regulares. Bahia e colégio de instrução primária, sito atrás da cadeia, casa n.° 13, 18 de junho de 1855."

(4) São conhecidos os extremos de zelo postos por João Barbosa na educação do filho. A propósito informa João Florêncio Gomes, colega de infância de Rui (V. Bahia Ilustrada. "A infância de Rui", agosto de 1918): "Sabia-se que até em feriados seu ilustre pai, o dr. João José Barbosa de Oliveira, que Rui mesmo qualifica de espírito severo, o aplicava a estudos, em determinadas h o r a s . . . " Também João Mangabeira ("O Estadista da República", Rio, 1943, p. 388) lembra o episódio em que João Barbosa, em meio a uma manifestação, que lhe era feita, voltou-se para o filho, dizendo-lhe: Rui, são horas da banca.

(5) Cm. ao autor por D. Maria Cândida Gesteira Magalhães, pessoa da intimidade da casa de João Barbosa, em depoimento prestado em presença do cónego Paiva Marques, em 8 de novembro de 1938. A informação é confirmada por D. Amélia Barbosa Lopes, sobrinha de Rui Barbosa.

(6) O exemplar de Derôme que pertenceu a Rui Barbosa foi entregue pelo autor à "Casa de Rui Barbosa", onde se encontra. Nele, além da nota referida, escreveu Rui: "Me foi dado por meu Pai em outubro de 1866".

(7) Cf. João Florêncio Gomes. "Não morrerás. . .", in "A Tarde (Bahia), de 12 de agosto de 1918, artigo no qual, a propósito de Rui,

O SOFRIMENTO CONDUZ AO PRAZER 17

escreveu: "até em seus lazeres colegiais empregava o tempo em ler ou escrever." V. também Ernesto Carneiro Ribeiro, "Reminiscências", in "Bahia Ilustrada", agosto de 1918. Urbano Duarte, "Rui Barbosa quando criança", in Almanaque Brasileiro Garnier para o ano de 1911, afirmou que Rui, certa vez, ficara de castigo, o que sempre foi contestado por este.

(8) Cf. Rui Barbosa, "Oração aos Moços". (9) Sobre os célebres "outeiros", denominação dada aos torneios lite

rários do "Ginásio Baiano", podem ser consultados, além dos folhetos publicados por Abílio César Borges, Xavier Marques, "Vida de Castro Alves" (Rio, 1947) e Rozendo Moniz, "Francisco Moniz Barreto" (Bio, 1886).

(10) Ê dessa época o soneto de Rui ao 2 de julho (1865). Informa Batista Pereira ("Rui estudante", p . 59) que Rui "não gostava que lhe falassem nos seus versos, nesses pecados da juventude".

(11) Cf. Raimundo Bizarria, in "Diário da Bahia" de 3 de setembro de 1893. Sobre a vida de Rui no "Ginásio Baiano" podem ser consultados os seguintes artigos publicados na "Bailia Ilustrada" de agosto de 1918: João Florêncio Gomes, "A infância de Bui"; Ernesto Carneiro Ribeiro, "Reminiscências"; Mons. Elpídio Tapirnnga, "O pequeno terrível". Também tivemos em mãos, cedido pelo dr. Hermano Santana, que o possuía, um autógrafo de reminiscências de João Florêncio Gomes, e no qual, a propósito de Rui Barbosa, escrevera: "Entre tão distintos estudantes, e tão consumados mestres, Rui Barbosa sobressaía com evidente vocação para as letras; — vocação promissora de virentes loiros, emocionada pela emulação, que era o segredo superior do prestígio do educador, incutindo no espírito dos alunos, a par com elevados sentimentos de dignidade, patriotismo, independência e ordem, esse heróico estímulo moral, que soe realizar prodígios: labor omnia vincit. Até em curtos lazeres Rui Barbosa aprovei tava o tempo; lia e redigia artigos para pequenos jornais manuscritos e crónicas da vida colegial, os quais, em determinados dias, o diretor faria ler perante a colegiada, sendo redator em chefe, ou cronista, já Sátiro (Dias), já Milton (Aristides Milton), já Guimarães (Cerne), ou outros previamente escolhidos; assim também sobressaía Rui nos legendários outeiros patrióticos, ou em festivas comemorações do aniversário do mestre. O jornal do colégio, a princípio manuscrito, foi depois impresso sob o nome de "O Ginásio'.

Rozendo Moniz, obr. cit. p . 74, assim se refere ao Ginásio Baiano: "Que vitórias de ensino secundário, em colégios de miraculosa emulação, qual a do Ginásio Baiano, dirigido pelo dr. Abílio e donde saíram para os cursos superiores, para a política, para a administração e para a glória Sátiro Dias, Bui Barbosa, Araújo Pinho, Benieio de Abreu, Cavalhal, Rodolfo Dantas e Castro Alves!".

(12) O "Diário da Bahia" de 4 de dezembro de 1863, noticiando a partida de João Barbosa para a Corte, onde ia assumir a cadeira de deputado, diz que fora eleito pelo povo "indiferente às calúnias com que o guerrearam os despeitados".

(13) Cf. Salvador Mendonça, "Coisas do meu tempo , in O Impai ciai" (Rio), 23 de fevereiro de 1913.

(14) Cf. Rui Barbosa, in prefácio à "Queda do Império", onde diz textualmente: "Destarte me aparelhava êle [João Barbosa] mal para a polí-l iea, na qual, aliás, se me envolvi, foi por lhe não ter escutado os conselhos."

(15) Cf. Batista Pereira, obr. cit. p . 29. Trata-se do prof Silva Pereira, mestre de matemáticas de Rui.

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18 A VIDA DE RUI BARBOSA

(16) Cf. Rui Barbosa, Introdução à "Queda do Império", p. XII. (17) Idem, idem, p. XIII. Serviu de professor de alemão de Rui,

o sr. Adolfo Hasselman, que se tornou um dos dedieados amigos da família de João Barbosa.

(18) Cf. Nazaré Menezes, "Rui Barbosa", p. 140 (Rio, 1915). (19) Cf. "O Tempo", In Memoriam. (20) Rui Barbosa, discurso proferido em 26 de novembro de 1865,

no "Ginásio Baiano". III — A F O R M I G A B N T R l i AS C I G A R R A S

. . .a rniln /IIIKNO da minha vida, o que cu sinto (lenho <lo mais íiilimo de mim mesmo, c men l>ai.

Rui.

1-7OI calmo o primeiro ano do curso jurídico de Itui. listava-se ainda na época romântica, justamente o período em que era

elegante dedicar-se versos apaixonados às raparigas lânguidas ou trocar as aulas por noites alegres de boémia. Diante da vida, a mocidade tomava uma atitude de desprendimento, considerando-a vã e inútil se não íòsse imolada em holocausto a algum ideal de bcle /a ou emoção. Èle, porém, não foi além de alguns raros versos inexpressivos c a colaboração numa sociedade abolicionista de estudantes, onde, empunhando a lira do génio poético, imperava Castro Alves. Apesar da habitual participação dos académicos nos debates partidários, a política não o atraiu. Os liberais estavam no governo e era vulgar apoiar um partido vitorioso.

Rui foi habi tar o convento dos frades beneditinos, em Olinda, velho arrabalde avançado sobre o mar. (1) Solidão e silêncio. Passadas as horas dos ofícios divinos, apenas de quando em quando se ouvia o caminhar medroso de algum religioso, passeando no claustro com o seu livro de orações.

Às vezes, tomava banhos de mar. Entretanto, nada o encantava como a t ranquil idade da vida conventual. Ao seu temperamento tímido fèz bem aquele ambiente quieto, e dominou-o uma intensa sensação de felicidade. Deveria ser deliciosa a existência inteira passada entre as quatro paredes da cela, longe da agitação do mundo, entregue às leituras apenas entrecortadas pelos longos intervalos de paz e meditação. Esses pensamentos corriam rápidos pela imaginação do estudante. Chegou mesmo a desejar vestir o hábito e ser um daqueles anónimos religiosos. (2) Ideia contraditória e absurda. Como poderia medrar sob a ramagem das ambições terrenas, tão vivas e tão fortes no seu espírito?

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20 A VIDA DE RUI BARBOSA

Foram breves esses dias entre os irmãos de S. Bento, e Rui não mais cogitou de ingressar na vida monástica. Olinda, onde até alguns anos antes funcionava a faculdade, ficava agora muito distante da sede do curso jurídico. E, depois de submeter-se, com bom êxito, aos exames necessários para se matricular, Rui trans-feriu-se para o Recife. (3) Aí, numa pensão modesta, de propriedade de um inglês, o sr. Purcell, continuou a vida de taciturno. Apenas durante as refeições expandia-se em alguns comentários, e, ao dirigir-se ao sr. Purcell, surpreendendo os outros hóspedes, fazia-o num inglês correto. (4)

Mas, enquanto passava tranquilo o noviciado jurídico do rapaz, a política agitou-se na Bahia. Rui ficou atónito quando recebeu uma notícia surpreendente — João Barbosa e Luiz António estavam de relações cortadas. Por que? Mistérios da política. Quando partira da Bahia o tio deixara dias antes o governo da Província, e isto fora o prenúncio da tempestade.

Rebentara, nesse ano, a guerra entre o Brasil e o Paraguai, e o país vibrava em demonstrações patrióticas. Contudo, as contendas partidárias não arrefeceram. E, como fora fácil prever, a discórdia estabeleceu-se no grupo político onde muitos desejavam o lugar ile chefe. Saraiva e Luiz António olhavam-se com desconfiança. E João Barbosa pressentindo aproximar-se a borrasca, escreveu a um amigo julgando "irremediável a separação". Acrescentara, porém: "eu hei de seguir a sorte do Luiz". (5) Afirmativa sincera. Mas, quem poderá saber para onde será levado pelas águas volúveis da política?

O desfecho das divergências iniciadas nos bastidores foi a nomeação de Manuel Dantas para a presidência da Bahia. Luiz António estava vencido. E, imprevistamente, João Barbosa colo-cou-se ao lado de Saraiva e Dantas contra o cunhado. Ambos intolerantes, ambos exaltados, ambos Barbosas nas suas paixões, a querela política degenerou em áspera inimizade pessoal. A luta desencadeou-se violenta e sem limites. Na imprensa e no parlamento agrediram-se sem piedade, inteiramente esquecidos do parentesco e do passado. Maria Adélia sofreu com a desavença entre o marido e o irmão, e muitos censuraram o procedimento de João Barbosa, que julgavam inexplicável e injusto. Rui, porém, identificou-se logo com o ódio paterno: Luiz António era também seu inimigo.

Maria Adélia não suportou aquela briga de família. Ficou acabrunhada e, um ano depois, faleceu. (6) Os dois Barbosas sepa-raram-se definitivamente.

A FORMIGA ENTRE AS CIGARRAS 21

O adolescente mergulhou, então, em profunda melancolia, e, para a exprimir, compunha versos como estes:

"Oh! como é triste esto arcai da vida Que aflitiva mudez o envolve ao l onge ! . . . Como é vasto, meu Deus, êsle deserto. Como se estende além!. . .

Que é desse mundo esplêndido de encantos Que minha alma sonhava? esse íris vividos. Esse céu transparente, esses fulgores De uma aurora sem fim?

Para o coração do filho, desaparecida Maria Adélia, o mundo transformara-se num ermo insuportável.

Ao retomar do Recife, terminado o segundo ano, Rui encontrou a casa vazia e triste. Por aquelas salas amigas não mais veria movor-se, dirigindo o lar com autoridade suave, o perfil da mãe, de quem herdara a exagerada sensibilidade. As "Novas Horas Marianas" haviam passado para as mãos de Brites, e nelas João Barbosa escrevera: "À minha filha Brites, depois da morte de sua virtuosa mãe e em nome dela o livro por onde ela rezava implorando virtude e felicidade para os seus queridos filhos, lho oferece como relíquia sagrada, o seu melhor amigo e seu pai". Como tudo isso era melancólico e real. Principalmente, magoa-va-o não ter assistido aos últimos momentos da morta.

Rui, nesse ano, também não fora feliz no Recife. Primeiro tivera um incómodo diagnosticado como sendo congestão cerebral. Depois acontecera-lhe coisa muito pior, tanto para o orgulho do filho como para o do pai: em uma das matérias obtivera medíocre aprovação. (7) Ambos se sentiram feridos no seu amor próprio, e expostos ao escárnio dos adversários. No pequeno mundo do estudante o fato tomou proporções extraordinárias. A humanidade pareceu-lhc mesquinha e injusta. Mas, em novembro, quando chegou à Bahia, já estava restabelecido. Contudo, não lhe tinham sido propícios os ares do Recife e o pai resolveu transferi-lo para São Paulo, onde continuaria o curso.

Entre Rui e Brites, apesar de reinar a melhor camaradagem, li.ivia breves cenas de ciúme, pois ela se dizia preterida pelo pai. Suspeita, em parte, verdadeira, pois, sobretudo agora, depois da viuvez e da luta com o cunhado, João Barbosa ainda mais se apegara ao filho, "o meu Rui", como o chamava cheio de orgulho. As vezes, quando falava à irmã, o rapazinho tomava ares de gente

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grande e, em certa ocasião, para a ensinar como se estudava, começara a acompanhá-la nas aulas de piano. Retirara-se, porém, vencido. A música não era o seu forte. Mas, a um amigo íntimo do pai, Olímpio Chaves, perguntara qual dos dois parecia mais inteligente, se ele ou Brites. (8) E como obtivesse resposta esquiva, fizera" o seu prcSprio julgamento: a irmã não podia com èle. Coisas sem importância maior, pois, afinal, ambos se queriam muito e entendiam-sc perfeitamente bem.

Após uma estada de descanso em Itaparica, aprazível estação de veraneio na ilha fronteira à Bahia. Bui seguiu para São Paulo. (9) Não era um estudante vulgar. Levava o seu Story, o seu Tocqueville, o seu Bertauld, o seu Duvergier cVHauranne, os clássicos do direito político da época. (10) A bagagem de livros excedia, sem dúvida, a que habi tualmente levava um académico, e os colegas admiraram-se vendo-o desembarcar com alguns caixotes da sua pequena biblioteca.

Na passagem pelo Rio de Janeiro conheceu o primo Albino, muito mais velho do que éle, mas sempre interessado por tudo quanto se referisse à vida dos parentes. O respeitável magistrado recebeu-o com carinho. O rapaz, porém, mostrava-se mais liberal e ardente do que èle desejaria. Deu-lhe, por isso, conselhos paternais e falou-lhe da utilidade das aliludes modernas. Lembra -va-se de |oão Barbosa, tão sacrificado pelo temperamento inflamado. Quando se despediram, o conselheiro Albino advertiu-o: "Seu Rui, talento não é juízo". E, apesar da diferença de idade, ficaram amigos.

Alguns dias mais e Rui chegou a São Paulo, cidade de cerca de cinquenta mil habitantes, baixas casas de aspecto colonial, ruas íngremes e tortas, onde estouvados estudantes se tornavam o centro de atração da vida social. A mocidade turbulenta e entusiástica tomava partido tanto nas discussões políticas como nas rivalidades teatrais. Durante as férias a capital ficava triste e monótona.

Ao presidente da Província, Saldanha Marinho, homem expansivo, mas que procurava esconder os próprios sentimentos, fin-gindo-se sempre zangado, João Barbosa recomendara o filho, e Saldanha levou-o para residir no Palácio até encontrar uma ^daquelas habitações coletivas de estudantes — as "repúblicas — onde os académicos repart iam alegres a pobreza habitual. (11)

Embora não o seduzissem as disputas académicas, Rui nunca se sentira tão senhor de si mesmo. No seu íntimo parecia despertar a forte sensação de que se tornara um homem. São Paulo era

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um mundo novo e dava-lhe a impressão de segurança. Rapidamente, cicatrizavam as feridas trazidas do Recife e da Bahia.

Castro Alves também viera cursar em São Paulo, e dominava a vida intelectual da Academia. Muitos, porém, tinham saudades do Jucá Paranhos, filho do visconde do Hio Branco, e celebrizado pela originalidade das suas estroinices. Quanto a Rui foi eleito segundo orador de uma sociedade literária de académicos, o Ateneu 1'aulistano, presidido por Joaquim Nabueo, notável estudante, elegante e belo, filho do senador Nabueo. (12)

No Ateneu, Rui féz rápidos progressos. Com Nabueo e Castro Alves, integrou a "comissão de literatura". Km julho, talvez como sinal dos seus pendores pelo estudo de lenias religiosos, entro as teses sorteadas para o deba te da mocidade, eslava a que apresentara: "Qual a influência do celibato clerical sobre o povo?" K, no lim do ano, indo Nabueo concluir o curso em Recife, Rui passou a ocupar a presidência.

Kntao, ao empossar se "no alto e espinhoso cargo" — secundo ele próprio o chamou , o jovem estudante, cheio de imaginação e de conlianoa. e como se traçasse o seu destino, dirigiu-se aos pares num inllamado discurso, dizendo-lhes com ênfase: — "não creio senão no futuro como o asilo do direito e da l iberdade." (13)

Minai, naquele grupo de jovens, entre estudantes famosos, <oin<> Rodrigues Alves, Martim Cabral, Afonso Pena e Bernardino 1'amplona, era o "presidente".

« a o

Km julho de .1868, como caça surpreendida por tiro certeiro, <>s liberais tombaram do poder. Vitória de Caxias contra Zacarias. Kntre o governo liberal e o marechal conservador, que lutava no Paraguai, o Imperador optara por este e afastara os liberais. Sig-nilioava a morte ostensiva de velho preceito político: o rei reina, mas nao governa. Agora, o rei reinava e governava. O mundo político tremeu sob a impressão de que acontecera alguma coisa de muito grave. K os liberais, aliados a outros descontentes, logo lundaram o Clube da Hoforma destinado a enfrentar o "poder pessoal do liei, e tendo como lema: "reforma ou revolução". A líelorma representava a modificação do sistema eleitoral com a aloção da eleição direta. Kòra assim na Inglaterra, em 1 8 3 2 . . .

A Câmara foi dissolvida. 15 João Barbosa, como se lhe não bastasse perder a cadeira de deputado, não tardou em ser demitido do emprego, na Bahia. Era o espectro da miséria a bater-lhe mais uma vez à porta. "Conforme V. por aí terá sabido, escreveu

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24 A VIDA DE RUI BARBOSA

então a Saldanha Marinho, estou demitido, e sem o menor rendimento para sustentar minha família." (14)

O filho não podia ficar alheio à sorte do pai: Rui sentiu íerver-lhe o sangue. E toda aquela indiferença diante dos acontecimentos políticos se transformou depressa no vivo desejo de combater e alistar-se na vanguarda dos que se opunham ao golpe partido do trono. O lutador acordava.

Vitor Hugo estava na moda, e Rui imaginou escrever um poemeto, lacerando a monarquia com imagens candentes. Alguns dias depois o trabalho estava pronto. A poesia chamava-se 'Humanidade". Escrita em estilo gongórico, abrigava a queixa de um espírito torturado por um "desejo insaciável" e atirado "no mundo ermo e funéreo, onde só brota a flor do desengano". Esse espírito era o dele.

"Senhor, o desespero me consome, a eternidade me requeima o seio, o passado é uma ideia, que me oprime, o futuro é um segredo, que me aterra, e o presente é um fardo de misérias, que esmagaria os ombros do Himalaia". Em seguida, como um deus implacável e vingativo, a "Humanidade" respondia, anunciando a era feliz de liberdade. O espírito um tanto versátil mostrava-se, porém, capaz de variar de um extremo a outro. E Rui respondia a Rui, prevendo a ruína das dinastias: "A púrpura é o labéu dos povos livres, é uma nódoa de sangue em vossa história, os reis são os flagelos dos impérios, vermes cobertos de ouro, que eu desprezo, seres da morte ante a eterna majestade". A linguagem, certamente, não era de um monarquista.

A poesia foi lida numa sociedade literária, mas, com pesar para o autor, não despertou grande entusiasmo. (15)

Entre a mocidade académica, inclinada às atitudes desinteressadas, foi forte a repercussão da mudança política. Jovens radicais viram no gesto da monarquia uma afronta à nação. A democracia periclitava, sendo necessário salvá-la. Alguns desejavam caminhar logo para a república. "Aqui não havia republicanos, escrevia depois, da Bahia, um político ao senador Nabuco, e agora não somente os há, como não há liberal que não se mostre disposto a sê-lo". (16) O fato, realmente, abria a porta às ideias republicanas.

Em São Paulo as manifestações dos estudantes liberais con-cretizaram-se num banquete ao deputado José Bonifácio, professor de direito, e que protestara contra a usurpação da Coroa. Figura fascinante, dele se dizia que fisicamente tinha o defeito de lhe faltarem alguns dentes, mas "moralmente não se lhe co-

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nhecia um só". Em torno do professor reuniu-se a mocidade "avançada". Oradores exaltados investiram contra o Imperador, e Rui pronunciou o seu primeiro discurso. Aos dezoito anos, o rapaz que Maria Adélia não desejava ver político, estreava nas lides partidárias. Nunca mais sairia. Preocupado com as ideias políticas do filho, escrevia-lhe João Barbosa: "Até radical e membro do clube estás! Acho pouco senso eni te lazeres notório neste ponto antes de tempo. . . Entendes, porém, que o sr. Olímpio pensa melhor que eu — segue lá o que quiseres; o inundo te ensinará. O que sei, porém, é que com isto íiaqucarás no estudo; e que irás tendo a mais e mais a reputação de estudante bom é verdade, porém melhor literato que jurista; reputação que hoje sei adquiriste desde Pernambuco. Assa/, o sinto, meu filho; porque, depois encontrarás dificuldades quando quiseres conceito de advogado." E acrescentava adiante: "Hás de sentir, meu filho, a falta do alemão, que não parece te merecer tanto como a tal política, que queira o céu não te dê desgostos." (17) Adivinhava.

Para João Barbosa surgira um grave problema: não tinha recursos para manter o filho cm São Paulo. Morta Maria Adélia extinguira se a única fonte certa de renda da família — o fabrico doméstico dos doeis — e que permitira ao marido enfrentar uma situação idêntica, dez anos atrás. Rompera definitivamente com a medicina, e apenas ganhava alguma coisa em modestos serviços de advocacia confiados por amigos, como Saldanha Marinho, Tito Franco e Nabuco. (18) Entretanto, muito pouco para atender às despesas do filho. Os amigos souberam disso, e um deles, João Moura, estendeu-lhe a mão. (19)

Como era hábito, Rui veio passar as férias na Bahia. O pai contou-lhe como se abrira em seu favor a bolsa de João Moura, e o estudante escreveu-lhe uma carta comovida, convidando-o para ser seu padrinho de crisma. Isso não se realizou, mas as expressões da carta testemunhavam quanto o amparo desinteressado lhe tocara o coração. "Quando a adversidade se tem tornado um espantalho que a todos afugenta, estender a mão ao amigo proscrito é um rasgo de heroísmo que só não comoverá as almas corrompidas, incapazes de reconhecimento pelas grandes ações." (20) A desgraça parecia ensinar-lhe alguma coisa. Ainda não conhecera de perto essas reviravoltas da fortuna e o revés seria útil.

Sobretudo, o infortúnio fêz-lhe conhecer o pai. Era verdade ter em certa ocasião, por motivos eleitorais, visto a casa paterna amanhecer coberta "por um símbolo de irrisão popular", ali posto pelos adversários de João Barbosa, que, sem permitir que o reti-

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rassem, o mostrou ao filho como prova do pouco valor das "afrontas políticas". (21) O transe atual, no entanto, era bem mais grave. E João Barbosa, como se quisesse educar o filho nesse exemplo do "sacrifício coroado pelo sacrifício", suportou-o com altivez. Rui sentia-se orgulhoso da atitude do pai cuja bravura era tão grande quanto os reveses que lhe batiam à porta. Às dificuldades financeiras somara-se grave enfermidade, e João Barbosa escrevia ao filho: "Calculo quanto te inquietará a falta de cartas de casa, por tanto tempo, e por aí imagina o que tantas vezes tenho passado. E é também verdade que o coração te era pressago de algum modo. Verás com efeito dessa minha anterior que me chegou doença mais séria do que se pensava. O meu mal está nos centros nervosos — é na medula espinal, parte superior — os quais têm o condão de nos privar mais ou menos das pernas. Por isso, conquanto hoje tenha apetite devorador e a inteligência como dantes e o mais, todavia não posso andar senão como bêbado, dançando, equilibrando-me ou apoiando-me como roda nalguém ou nalguma coisa. Entretanto já lá vão 39 dias!" (Carta de 14 de julho de 1869, in Arq. C. R. B.) E alguns dias depois: "Dei-te parte do meu estranho padecimento atual. Vou melhorando, conquanto lentlssimamente, das pernas e do andar; porém do ouvido esquerdo continua a zoada, a chiada de cigarras — a surdez ora total, ora não, conforme os dias úmidos ou não." E continuava, esperançoso: "Não me importo de perder o ouvido — do mais me incomodo, porque não careço só da vida, preciso muito de saúde para a nossa família. Deus é grande, êle me tem sempre valido, ou valido a Vocês, que é só e só o que me liga a este vale de dores, do qual estou já bem farto, posto que bem cedo, visto como nunca eu gozei." (Carta de 30 de julho de 1869.) Contudo, sob o aguilhão do dever era preciso continuar lutando, e a admiração de Rui pelo pai não conheceu limites.

« * «

Os dois últimos anos foram metodicamente divididos entre os estudos e a campanha política.

"Não há que hesitar na escolha: A Reforma! E o país será salvo." Essa a palavra de ordem lançada por Nabuco, Zacarias, Ottoni, Francisco Otaviano, e Paranaguá, sem dúvida alguns dos mais autorizados chefes liberais, signatários do manifesto do "Centro Liberal". (22)

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E a fundação de um clube, miniatura daquele organizado na Corte pelos dirigentes liberais, marcou, entre a mocidade de São Paulo, o início da jornada.

Cliamou-se o Radical Paulistano, e o programa adotado, em cujas entrelinhas já era possível divisar a republica, admitia amplas reformas, como a federação, o ensino livre, senado eleito, extinção do poder moderador, eleição direta e abolição. Um jornal foi o veículo dessas ideias. (23) E, juntamente com Luiz Gama, Américo do Campos e Bernardino Pamplona, Rui viu-se escolhido paru mir um dos redutores. Todos tiniium tendências republica-flM, um* nenhum possuía a atividade do Pamplona. Êle e Rui ld*ntifiournin-NO Intimamente.

Unin-Ol, principalmente, a convivência na loja maçónica, N d t tmbOl militavam NO1> O mesmo Oriente. O templo dos MdfdrOI-livm era ambiente propicio a germinação das ideias flbcrail • muitoi «endémico* dele faziam parte. Não tardou, contudo, qua meimo nl, «oh m ritos secretos das cerimónias, se veri-floMia um choque entre os espíritos avançados e moderados. Rui, como ornrior da Loja América, propôs que os "irmãos" libertassem ON filhos diis suas escravas. Combateu-o António Carlos, professor de Hni na Academia, e que, vencido, renunciou à dignidade maçónica. (24) Pcnsou-se então em estender a proposta de Rui às outras lojas do país, mas Pamplona, já formado e residindo no Rio de Janeiro, escreveu ao amigo, desiludindo-o: "as coisas estão por tal forma que um homem, depois de duvidar de todos, acaba duvidando de si mesmo". (25)

Apesar de distante, Pamplona continuava a escrever a Rui. "Os negócios políticos vão por aqui mal; o rei cada vez cria mais fórçu, enquanto o elemento democrático se desbarata". Mas logo acrescentava: "se não acreditasse no fatalismo da história, se não visse mesmo neste desânimo e descrença o exórdio de alguma coisa superior, eu te diria que podíamos perder a esperança a respeito do nosso futuro. Mas a história não mente, porque os acontecimentos políticos têm a sua marcha inevitável e necessária, em (pio os homens são mais instrumentos do que atôres". (20) Kssas ilusões davam-lhes alento para prosseguirem. Com o tempo, porém, aqueles jovens impetuosos iam tomando rumos diferentes. E os mais impacientes, como Pamplona, rompiam abertamente contra a monarquia. Outros, como Rodrigues Alves e Afonso Pena, menos propensos às aventuras duma campanha Incerta, permaneciam fiéis ao regime. Mas era grande o número clim impacientes.

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Essa fuga da mocidade para os ideais republicanos assustava os chefes liberais. Haviam instigado os rapazes contra o Imperador mas, sentindo-se sem forças para detê-los, suspenderam a publicação de um dos jornais onde Rui colaborava, " 0 Ipiranga", dirigido por Salvador de Mendonça, mais homem de letras que de política, e que de si próprio dizia ter nascido "para cuidar de rosas e fazer embrulhos", (27) embora apenas a primeira parte fosse verdadeira.

Rui ainda não se decidira. Vacilava. De um lado estavam os companheiros, os colegas da Academia, do outro João Barbosa. Como folha lançada à torrente, não tinha rumo certo, embora frequentemente participasse de comícios liberais e abolicionistas, atacando D. Pedro II com ásperas expressões. Isso assustava o conselheiro Albino, e Pamplona confiava na definitiva conversão de Rui aos ideais republicanos.

Em 1869, passando por São Paulo tropas de volta do Paraguai, o espetáculo inflamou Rui, que não esqueceu mais o episódio. "Estava eu nos anos derradeiros do meu curso, escreveria mais tarde, mas já tribuno, jornalista já, e já lutador público (um pequeno herói, deveria ter pensado) com todo o sangue na guelra do meu temperamento incendido nos grandes e nobres entusiasmos. Quando a força regrcssante do sul, assomou num dos extremos da rua de S. Bento, bateu por ela, à marcha, música à frente, bandeiras desfraldadas, e, numa torrente de harmonia e bravos, se acercou do sobrado, onde eu me achava, o quartanista não se conteve no ímpeto da sua comoção. Uma voz borbotante de calor patriótico se precipitou daquela sacada, golfando em redemoinho sobre os soldados, sobre o povo, sobre a rua^ de um momento para outro incendiada em clamores patrióticos". (28) A narrativa não é modesta. Mas, realmente, a palavra vibrante do jovem orador deve ter agitado e inquietado, pois pensaram em suspender as festas comemorativas da chegada das forças vitoriosas e ameaçaram-no com um processo disciplinar. Isto, aliás, não o fêz recuar. E em três noites consecutivas falou aos soldados, que desfilavam pela rua de S. Bento, colhendo os "aplausos ainda quentes do calor das batalhas - é êle próprio que narra - calor que, embebendo-se ali, no delírio da turba apaixonada, fervia em ebulições de civismo e se exalava em hinos à liberdade". Rui gostava de contar estas cenas, onde, como um grande ator, aparecia entre as aclamações da plateia. Certamente não nascera para ficar entre os espectadores, e novamente as ideias políticas do filho voltaram a inquietar João Barbosa: "Doeu-te que teu

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pai te escrevesse com certa energia, a propósito do teu discurso no caminho ao povo, e da continuação de tuas manifestações radicais. Faze primeiro ideia do susto, da aflição que padeci ouvindo essas notícias, por mais de uma pessoa, desses fatos teus públicos, que, meu filho, me preocupam — por que (tenho dolorosíssima experiência) eles podem armar contra ti, ao principiares a carreira, poderosos ódios, produzindo a penúria, a pobreza, a luta desesperada, coisas estas todas que eti quisera que Deus afastasse de t i . . . Não te quero hipócrita, não quero-to sem o Ncntimcnlo do teu século, não te quero inimigo das liberdades modernas; mas quoro-te prudente. . . Também te incomodaste

Sorqiie notei cm ti desejos de parecer mais adiantado cm política 0 OU» «ill. Iri li este respeito me lembras que os filhos podem (e

•té OOVOm) Nnbci- mais que os puis. . . Folgo muito de que minha •dllMÇlo nim ta permita a hipocrisia, nem te comprimisse os voos InttUÓtuail, «Mm (U twferu paterna". Entendimento aparente. No fundo Joio BnrboNH tamil» ou sofrimentos que aquelas ideias avançada» trnrlnm paru o filho.

A» tttivIdmlciN politicas não o desviaram, porém, dos seus livrou. Durante os anos da vida académica pudera observar como li maioria dos colegas gastava o tempo em diversões ou contendas Intelectuais. Atri/es famosas faziam-se o centro de grupos apaixonados, e os dias corriam alegres, enquanto a mocidade cantava como a cigarra descuidada e feliz. Entusiasmadas multidões deliravam ouvindo Castro Alves declamar os seus próprios versos. F,, tanto no teatro como nas pequenas reuniões íntimas, tão do gosto dessa época, aos poetas tocavam aplausos calorosos.

Nesse inundo de poetas triunfantes não foi côr-de-rosa a existência de Rui. Falhara ao tentar a poesia condoreira e isto lhe feriu o amor próprio. Atormentou-o essa posição de segundo plano. Tudo aquilo lhe parecia fútil e a Academia encheu-o de ledio. "Aqui me acho, pois, escreveu ao bom conselheiro Albino, matriculado e engolfado nesta vida académica, que Deus aparte de mim quanto antes." (29) O tímido necessitava, porém, de alguma compensação. E, sentindo-se atraído "para a grande publicidade: o lóro, o jornalismo, o parlamento", Rui refugiou-se nos livros. Traçara um severo plano de estudos e levaria "vinte anos, diz Nahuco, a tirar o minério do seu talento, a endurecer e temperar o aço admirável" (30) do seu estilo. De que não é capaz a lonniga paciente?

Por esse tempo êle lera muito Shakespeare, e agradava-lhe repetir estes versos da "A Tempestade": (31)

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" We are such stuff As dream are made on, and our little life Is rounded with a sleep".

Sim, entre um sonho e um sono esgotava-se a breve vida, mas nesse curto espaço Rui desejava realizar um grande sonho. Shakespeare era admirável. A cada passo encontrava conceitos ajustados aos seus sentimentos: ". . .Security is mortal's chiefest ennemy". Esse inimigo perigoso, porém, não o atormentava. Pelo contrário, sentia-se inseguro, e tinha necessidade de lutar para subsistir. Como era exata esta frase que o poeta pusera na boca de Malcolm: "dispute it like a man".

Todos os dias, com a pontualidade de um relógio, os colegas viam-no consultar altas pilhas de livros, donde, como um tenaz catador de diamantes, ia tirando e copiando os melhores trechos. No fim da pesquisa o caderno de apontamentos, que conservou até morrer, ficava cheio de notas colhidas aqui e ali. "Partout oú le despotisme commande, il prend le luxe pour premier ministre" (Decadence de la monarchie, Eugène Pelletan). Ou então: "À Romc lo citoyen est roi". E mais adiante: "Le premier devoir du citoyen c'est do jamais perdre 1'occasion d'agir ou de parler" (Laboulaye). Alil êle nunca perderia a oportunidade para intervir nos debates. Anotações de quem se preparava para lutar pela liberdade.

Intercssavam-no, principalmente, os livros de história e os que se referissem aos costumes políticos da Inglaterra e dos Estados Unidos. Lia os discursos de Jefferson publicados por Cor-nelius Witt; "Les États Unis, en 1861", de George Fish; "L'An-gleterre et la vie anglaise", de Esquino; as cartas sobre a Inglaterra, de Louis Blanc. Era a continuação da preferência adquirida na biblioteca do pai, onde sempre encontrara publicações sobre a guerra de secessão. (32) Isto comprazia a João Barbosa. Do idealismo erudito nascera outro idealista erudito: o fruto era igual à árvore. Também no génio "teimoso e resistente" o pai reconhe-cia-se no filho. Certa vez, aliás, censurara-lhe o "génio desconfiado." Mas, a verdade é que ainda aí êle se devia rever (carta de 29 de maio de 1870).

No dia em que concluiu o curso, querendo dar ao pai uma lembrança, nada pareceu a Rui mais adequado do que oferecer-lhe um livro — "La Republique Américaine", de Brownson. "A meu Pai, mesquinho, mas singelo penhor da mais profunda gratidão filial. No dia do meu grau, 28 de outubro de 1870". (33) A oferta tinha qualquer coisa de simbólico. O pai e o filho identifica-

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vam-se num ideal comum: a admiração pela pujante democracia norte-americana.

Nas suas leituras êle deparara muitos tipos, uns reais, outros imaginários, mas todos complexos e contraditórios como a alma humana. Nessa galeria, ao lado de nobres figuras, havia outras desprezíveis. Ulisses por exemplo, preferindo o ardil e a astúcia a luta franca e leal, era detestável. Principalmente se comparado com Aquiles, aquela impávida personagem mitológica, meio homem e meio herói, mas cujas paixões o tempo ia aplacando. A isso êle chamaria "a beleza olímpica na pessoa de um mortal". (34) Modelo sublime para quem sentia o espírito devorado por imensas paixões e altos ideais. Conseguiria êle algum dia apro-ximar-se da perfeição desse semideus grego, sufocando a ira para desabrochar vitoriosa a alma do altruísta?

O sonho foi interrompido pela realidade. Já perto de receber o diploma os companheiros tremeram pelo destino daquele jovem sempre às voltas com livros e episódios da Grã-Bretanha e da América do Norte. Vertigens fugazes impediam-lhe de prosseguir nas investigações. (35) A princípio pareceu coisa sem maior importância, mas, como persistissem os sintomas, os médicos recearam uma grave enfermidade e proibiram-lhe qualquer esforço. Até as cartas para o pai passaram a ser escritas pelos colegas. Não podia comparecer às aulas. "Tudo flutuava em derredor de mim", explicou depois. (36) E João Barbosa temeu pelo futuro do filho. "Mas, quer Deus provar-me — escreveu êle a Rui — por todos os modos ao mesmo tempo — como se já não bastassem as contrariedades tão duras — que por cá suporto! Faça-se a sua santa vontade! Êle, que tanto me tem amparado, não me desamparará de todo." (carta de 25 de julho de 1870)

O repouso não deu resultado. Sentia-se sempre pior, e as tonteiras tornavam-se mais frequentes. A cada instante receava cair fulminado por uma síncope. Era a má sorte dos Barbosa, fíle nunca fora forte, mas acabrunhava-o faltarem-lhe as energias <(nando delas mais necessitava, para enfrentar a vida com o seu diploma de bacharel. Contudo, por deferência dos professores, conseguiu prestar os exames e receber o grau, a fim de retomar para junto do pai. (37) Pensara no regresso de um vitorioso, e o destino fazia-o voltar como um enfermo. (38)

Enfim, a etapa estava transposta. Um estojo de prata encerrava o selo aposto pela faculdade ao diploma, e aí, numa das faces, fizera gravar esta inscrição: "A minha Mãe. Subumbra iilimiin-tuarum". Torturado pela visão da moléstia, o jovem doente,

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como a ave ferida em busca do ninho, refugiava-se sob as asas de Maria Adélia. (39) Ela, por certo, continuava velando pelo destino do filho.

NOTAS AO CAPITULO III

(1) Cf. Carta de Rui a Olímpio Máximo Chaves, de 13 de março de 1866, in "Correspondência" (Rio, 1933), p. 5. Por esta carta vê-se que Rui fora recomendado aos religiosos beneditinos fr. António do Patrocínio Araújo e fr. Manuel da Conceição Monte.

(2) Cf. Ulisses Brandão, "Rui, estudante no Recife", in "Jornal do Comércio", de 5 de junho de 1927.

(3) Cf. carta de Rui a Olímpio Chaves acima referida. (4) Cf. Ulisses Brandão, obr. cit. As notas referentes à estada de

Rui em casa do sr. Purcell foram transmitidas a Ulisses Brandão pelo sr. Otávio Tavares, conforme carta deste àquele, em 31 de dezembro de 1926, pg. 151-153, e na qual narra o seguinte:

"Recordo-me ainda perfeitamente de que, estando a cursar a Faculdade em 1890, estive hospedado no antigo Hotel D. Maria, que dava paia o Largo do Arsenal da Marinha. Esse hotel, muito frequentado por gente do comércio, já não existe.

Ali fiz conhecimento com um cavalheiro pertencente a uma família inglesa, que residia numa chácara para os lados de Santo Amaro. Era o senhor Purcell, proprietário de uma litografia situada na Rua Marquês de Olinda, que já desapareceu, demolida para abrir espaço à avenida do mesmo nome.

Quanlo à litografia, não sei que destino teve. O senhor Purcell era no hotel meu vizinho de mesa. Dele ouvi várias

referências aos primeiros anos da vida académica do então ministro da fazenda do governo provisório da República.

Afirmou-me aquele cavalheiro que havia sido em casa de seu pai, o velho Purcell, que Rui Barbosa residira durante o tempo em que cursou o primeiro ou o segundo ano da nossa Faculdade. E, a propósito, acrescentava que o jovem Rui poucas palavras trocava com êle, embora fossem da mesma idade. Sempre esquivo e taciturno, às voltas com os livros, quase só falava com as pessoas da casa por ocasião das refeições.

Quando não andava pela Academia, frequentando as aulas, é porque estava em seu quarto, estudando. Raramente saía a passeio. Rui falava perfeitamente o inglês, e era nessa língua que se comunicava com as pessoas da família Purcell.

E foi tudo o que ouvi de uma pessoa a quem conheci por mero acaso, e com quem nunca mais me encontrei depois.

O senhor Purcell, sei que já é falecido. Ignoro se existe no Recife algum parente dele".

Sobre o assunto, depois de publicada a 2 . a edição desta biografia, recebemos do sr. Huascar Purcell, datada do Recife, 10 de agosto de 1946, interessante carta, da qual transcrevemos as notas abaixo:

"O meu avô Purcell — Guilherme Martim Purcell — era um irlandês de boa raça, intransigente, honesto e bom, expatriado dos seus lares e penates por força das lutas políticas irlandesas, aqui aportado em princípios de 1820. Como bom irlandês, jamais deixou de amar a terra dis-

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tante, porém nunca mais lá voltou. Aqui se radicou e constituiu família, o ramo brasileiro dos Purcell, bem conhecido neste Nordeste e no vale amazônico.

Não creio ter tido o meu avô pensão alguma de sua exploração nesta cidade de Recife, onde viveu e morreu como modesto comerciante burguês, económico, com meios suficientes, entretanto, para mandar educar na Inglaterra, naquela época, quatro filhas. De volta sua filha Mary mantinha, no 1.° andar da casa em que todos residiam, na Rua do Lima, em Santo Amaro das Salinas, bairro entre Recife e Olinda, um colégio sob sua direção. Minha tia Mary faleceu em 1916, perdendo-se, assim, o seu depoimento.

Nesse colégio, ou antes, nessa residência, é que o jovem Rui deve ter sido recebido como hóspede eventual. Minha tia Isabel, falecida em 1939, recordava-se muito bem da estada de Rui na casa do seu pai, nunca se referindo a êle como pensionista, ainda que orgulhoso como era, Rui exigia que meu avô recebesse uma pequena quantia para sua hospedagem.

Apontamento algum existe, nos velhos papéis da família, que esclareça completamente a presença de Rui cm casa do meu avô. Atribuímos, entretanto, o fato à seguinte suposição:

Meu pai, Guilherme Purcell (Júnior) teve com seu pai, meu avô, Guilherme Purcell (Sénior), uma séria desavença, motivada, segundo dados ou aparências, por política local, mercê dos ardores da mocidade. Daí seu desterro "involuntário" para a Bahia; à época, João Barbosa, pai de Rui, tomava parte ativa na política liberal. Guilherme Purcell (Júnior), meu pai, teria por certo tido contacto com o pai de Rui e dele, muito provavelmente, recebido atenções e obséquios. Deduzimos assim, na família, que o jovem Purcell, ao saber do jovem Rui em Recife, lhe tenha fornecido o endereço paterno em Pernambuco, recomendando-o a um bom acolhimento em retribuição a gentilezas que por certo teria recebido n a Bahia."

(5) Cf. carta de João Barbosa a António Gonçalves Gravata, padrinho de Rui, em 23 de maio de 1865 (in Arq. C. R. B.), e na qual diz o seguinte: "ocorre que o Luiz António está muito intrigado pelos bandalhos (refere-se aos liberais do sul, que promoviam uma cisão na "Liga") com o Saraiva; parece que é irremediável a separação, que eu trabalho muito por evitar; posto que com pouca esperança, visto como querem ser presidente daí (Bahia) o João Moura, o Dantas, o P. Moniz - e disso é que tudo provém há muito tempo. E eu liei de seguir a sorte do Luiz, conquanto não queira ser soldado do T. Oltoni e outros que tais, que têm mais orgulho que princípios."

(6) Faleceu a mãe de Rui Barbosa em 16 de junho de 1867, quando Rui cursava em Recife o segundo ano jurídico, o que o levaria a escrever mais tarde, por ocasião da morte da irmã: "como minha mãe, foi-se, sem que eu ao menos a pudesse abraçar na partida". (Carta a Olímpio e Dalmácio Chaves, em 12 de março de 1879, in "Correspondência", p . 16).

Quanto à época em que se verificou a cisão entre Luiz António e |oão Barbosa informa Batista Pereira, in "Rui estudante", p. 32, que "Saraiva, em 28 de janeiro de 1864, já definira o partido progressista, ramo dissidente do liberal. Luiz António ficou com o velho partido. João Barbosa com os progressistas". E acrescenta: "Daí rutura formal de relações, ficando João Barbosa, sozinho dum lado, e os outros parentes do lado de Luiz António." Entretanto, conforme se vê da carta de João Barbosa

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a Gonçalves Gravata, em maio de 1865, e acima citada, somente depois dessa data se teria verificado a separação.

Realmente, sobre o assunto existem dois depoimentos, que, por certo, não deixam dúvida quanto a se haver verificado em 1866 o rompimento entre João Barbosa e Luiz António. O primeiro é do próprio Luiz António, que, nos "Apontamentos" já mencionados, e depois de dizer ter sido "amigo do sr. João Barbosa como não fui de ninguém", e a quem fizera padrinho da única filha, assim narra a desavença com o cunhado: "Infelizmente, vindo para a administração desta Província (Bahia), que tantos desgostos me deu e me legou, todas essas coisas foram esquecidas e a igualdade da posição política habilitou ao sr. João Barbosa para romper comigo". Em seguida, explica que a separação tivera motivo no provimento de dois lugares existentes na secretaria da Assembleia Provincial, e para os quais não pudera nomear um candidato de João Barbosa. Ora, havendo sido Luiz António nomeado presidente da Província em meado de novembro de 1865, seria pouco provável que ainda nesse ano ocorresse a luta de família. Mais preciso, porém, é o testemunho de Rui: "Já em 1866, ano em que me matriculei no curso de direito, estavam publicamente rotas as relações entre meu pai e esse parente, separados, desde então, por figadal inimizade até a morte do primeiro, em 28 de novembro de 1874". (In "Queda do Império", p . 284, artigo no "Diário de Notícias" de 5 de maio de 1889). Fixa-se assim em 1865 a luta entre os dois Barbosa, e que tanta repercussão teria na vida de Rui Barbosa. V. também Rui Barbosa, artigo no "Diário da Bahia" de 22 de março de 1886, em resposta a Franco Filho.

(7) Cf. Batista Pereira, obr. cit. p. 34, e Fernando Nery, "Rui Barbosa" (Rio, 1932), p . 39. Realmente, ao prestar os exames do segundo ano jurídico, teve Rui um "II", ou seja uma simplesmente, dada pelo prof. Drumond, o que, provavelmente, concorreu, além da saúde, para a transferência de Rui para S. Paulo. Entretanto, ao chegar á Bailia cm meados de novembro de 1867, Rui já estava bom. (V. carta de Brites a D. Francisca Barbosa de Oliveira, in "Mocidade e Exílio" (São Paulo, 1934), p. 51. A guia de transferência, assinada pelo Visconde de Camaragibe, é de 22 de novembro de 1867. (António Gontijo de Carvalho, Rui estudante, Rio 1949).

(8) Cm. por D. Maria Cândida Gesteira. Sobre os estudos de piano de Rui v. "O Tempo" (Rio, 1924), In Memoriam.

(9) Cf. carta de Brites a Francisca Barbosa de Oliveira, in "Mocidade e Exílio", p . 51 .

(10) Sobre a chegada de Rui em São Paulo, em 1868, Adriano Fortes de Bustamente, colega e amigo de Rui na Academia, escreveu interessante página de memórias — "Rui Barbosa estudante de São Paulo, 1868-70" — e que se encontra transcrita no livro do sr. Nazaré Menezes, "Rui Barbosa" (Rio, 1915), p. 7. Conta ai que ao desembarcar Rui em Santos, em 7 de março de 1868 do vapor "Paulista", perguntara a Sancho de Barros Pimentel, à vista dos caixotes de livros de Rui, de quem se tratava, ao que respondera Sancho: — "Vai ser nosso colega de ano; é Fulano, vem de Pernambuco, é um grande estudante." Aliás, como o demonstrou o sr. António Batista Pereira no seu trabalho Rui Barbosa em Santos (Rio, 1956) Bustamente equivou-se quanto à data e o navio em que Rui chegou a Santos. Na realidade êle aí aportou no dia 12 de março de 1868 pelo vapor Santa Maria. Foram seus companheiros de viagem António de Castro Alves e

A FORMIGA ENTRE AS CIGARRAS 3 5

Eugenia Câmara. Sobre a vida académica de Rui, em São Paulo, deve ser consultado o artigo de A. Gontijo de Carvalho: "Rui Barbosa em São Paulo", in "Jornal do Comércio" de 28 de abril do 1946.

(11) Cf. Rui Barbosa, in discurso na Fac. de Direito de São Paulo, •em 17 de dezembro de 1909 ("Novos discursos e conferências", p . 274), onde informa que ao chegar em São Paulo, de que era presidente Saldanha Marinho, amigo de João Barbosa, tivera a "honrosa hospedagem num lar de virtudes patriarcais como o daquele ilustro brasileiro.' Sobre as outras residências de Rui, em São Paulo, ao tempo da Academia, V. Batista Pereira, obr. cit., p. 35, e Fernando Nery obr. cit., p. 40.

(12) Rui Barbosa entrou para o "Ateneu" logo após haver chegado e m São Paulo, conforme se verifica da publicação feita no "O Ipiranga de 18 de março de 1868, e citado por Henrique Coelho in "Rui Barbosa estudante de direito em São Paulo ' . ("O Estado de São Paulo", número 20, de agosto de 1924). "O Ipiranga" parou em 1869, não sendo reaberto pelo Centro Liberal de São Paulo, porque "no tom em que ia levava à República, e recuar era o desalento." (Salvador Mendonça, no "O Imparcial" de 4 de abril, 1913).

(13) Encontra-se no Arq. da C. R. B. o autógrafo do discurso de Rui Barbosa ao se empossar como presidente do Ateneu Paulistano. No "O Ipiranga", de 9 de julho de 1868, está publicada a notícia sobre a tese de Rui apresentada ao Ateneu.

(14) Cf. carta de João Barbosa a Saldanha Marinho, em 18 de agosto d e 1868, e cujo original se encontra no Arquivo Municipal do Rio de Janeiro entre os papéis de Saldanha Marinho.

(15) Rui leu a poesia "A Humanidade" na sessão do Ateneu de 22 de julho de 1868. Quanto à posição de Rui, como poeta, ao tempo da Academia, tem sido motivo de controvérsia. Ao nosso ver, evidentemente não era o seu forte, embora "O Ipiranga", por ocasião da poesia "Dois de Julho", dissesse que "só essa produção firma uma reputação literária". E tanto parece estarmos certos que Salvador Mendonça, em artigo publicado na "Imprensa Académica", de 15 de outubro de 1868, sobre "A literatura Académica em 1868", nem sequer cita o nome de Rui Barbosa, mesmo entre os que chama de estimáveis. Também no número 7 de maio de 1871 existe um estudo de Evaristo Marinho sobre as "Espumas Flutuantes" e no qual, examinando a literatura estudantil, silencia completamente sobre Rui Barbosa. Spencer Vampre, nas "Memórias para a história da Academia de S. Paulo", (S. Paulo, 1924), vol. II, p. 226, escreve que a poesia Humanidade foi recitada na Sociedade Concórdia. Está ainda no mesmo autor, (obr. cit. p. 295, vol. II) a informação de haver sido Rui redator de "A Independência", bem como de serem redatores do "Radical Paulistano" Luiz Gama, Rui, irmãos Pamplona de Menezes, Martim Cabral, e outros (vol. II, p . 302). O próprio Rui não se tinha como poeta. Conta João Mangabeira (Rui Barbosa, Rio 1958, pág. 45) que Rui, tendo notícia de que Eduardo Ramos iria recitar poesias dele por ocasião da solenidade do jubileu realizada na Biblioteca Nacional, comentou no automóvel que o transportava para a solenidade: "Que ideia! Fiz poesias, como todos os moços do meu tempo. Abandonei-as. Não sou poeta. Nunca fui poeta. Nunca disse a ninguém que desejava ser poeta. Pecadilhos da mocidade."

(16) Cf. Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, 2.° ed., vol. II, p . 167.

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36 A VIDA DE RUI BARBOSA

(17) Carta de João Barbosa a Rui, em 27 de setembro de 1869. In Arq. C. R. B.

(18) Cf. carta de João Barbosa a Saldanha Marinho, em 18 de agosto de 1868, in Arquivo Municipal do Rio de Janeiro. Conforme se vê de uma carta de João Barbosa a Rui (27 setembro 1869) e agora incorporada, com várias outras, ao Arq. da C. R. B., aquele pedira a Saldanha Marinho a indicação de advogado com quem o filho pudesse praticar. Dado o silêncio de Saldanha, João Barbosa desejou que Rui trabalhasse com José Bonifácio. "Já agora o melhor é esperar para o ano, e ver com quem praticarás aí: talvez, então, possa ser com o José Bonifácio."

(19) João Ferreira de Moura, amigo de João Barbosa. No arquivo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia existem várias cartas de J. Barbosa dirigidas a João Moura.

(20) Carta de Rui Barbosa a João Moura, em 28 de novembro de 1868, e cujo original se encontra no arquivo do Instituto Geográfico e Hist. da Bahia, pasta 5, maço 2. n

(21) Cf. artigo de Rui Barbosa publicado na "A Imprensa de 23 de novembro de 1899, Uma reputação esfarrapada. Reproduzido no vol. "Colunas de Fogo" (Rio, 1933).

(22) É o manifesto do "Centro Liberal". Traz a data de 31 de março de 1809. , ,

(23) É o "Radical Paulistano". Rui a êle varias vezes se referiu, podendo leinbrar-se os discursos na Fac. de Direito de São Paulo, em 1909; o discurso de recepção no Instituto dos Advogados, em 1911; o discurso do jubileu, cm 12 de agosto de 1918, o o discurso sobre José Bonifácio, em 1886. No discurso do Instituto dos Advogados, diz que, em 1869, eram seus companheiros do redação Luiz. Gama o Américo de Campos. E no discurso do 1909, na Ficuldadc do Direito do São Paulo, diz que lho "coube um dos lugares principais" entro Américo do Campos, Luiz Gama, David Elói, Benedito Oltoni, o Bernardino 1'amplona.

É dessa época a conferência que pronunciou om 12 do setembro de 1869, no "Radical Paulistano", sobre o elemento servil, e publicado no mesmo jornal em 23 de setembro de 1869. No Arq. C. R. B. existe uma parte dos autógrafos da conferência, que foi a 5 . a duma série promovida pelo jornal.

No Arq. C. R. B. existem várias cartas, de 1869, dirigidas a Rui Barbosa, e tratando de assuntos ligados ao "Clube Radical Paulistano" ou ao "Radical Paulistano". Também existe no Arq. C. R. B. o autógrafo (incompleto) dum parecer dado por uma comissão incumbida de tomar as contas dos tesoureiros do Club, e cujo mandato terminara. A comissão era composta de Paulo Emídio dos Santos Lobo, Félix José da Costa e Souza, Adriano Fortes de Bustamente, e Rui Barbosa, que é o autor do parecer. Deste julgamos útil transcrever o trecho abaixo, que dá ideia da posição da famosa sociedade estudantil:

"Concluindo estas linhas, não pode a Comissão esquivar-se à necessidade de dirigir a seus irmãos em crenças uma palavra de exortação que lhes sugeriu o exame das vicissitudes por que tem passado, em circunstâncias em que atualmente se acha o Clube Radical Paulistano.

Não, não desanimeis, esforçados apóstolos da democracia. Deus protege as causas que se inspiram na justiça. A iniquidade é uma anomalia no destino providencial do género humano; crede no direito, porque nele está

A FORMIGA ENTRE AS CIGARRAS 37

vi ri udo, a força e a eternidade. Inda há bem pouco principiamos e que largo espaço já não temos percorrido! Quão próximo está ainda as nossas estrias o quão adiantado o nosso trabalho! No começo éramos apenas um |ni"i!o de moços, tão poucos que ninguém nos contava, tão débeis que ninguém chegou a ameaçar-nos; tão pequenos que não nos maldiziam, tão poucos que metíamos dó aos homens experientes, tão mudos que não possuímos um órgão, tão pobres que não podíamos dispor de um ceitil; hoje (note bom, são apenas seis meses de intervalo) hoje somos tantos que a piovíncia toda, que o país inteiro nos conhecem; ó tal o nosso prestígio que a inquisição imperial entra a assustar-sc o pensa talvez om amordaçarias ; tão amplos são os resultados de nossas diligências que a mentira,_ a calúnia, a intriga principiam felizmente a erguer contra a nossa reputação; tão provável é a vitória de nosso programa que os especuladores políticos já não se desdenham de contrariar-nos com o sofisma, quando há poucos meses nos tomavam com o desprezo; tão abençoados têm sido os nossos passos que uma tribuna, um jornal, obra do nossa constância, derramam sobre o povo a chama salutar das klóias radicais; Ião aumentados os nossos meios, tão engrandecido o número de nossos auxiliares que a nossa tesouraria chega a despender durante o espaço de poucos meses a quantia comparativamente enorme de 1/fi —

Vede como ó poderosa a vontade; como são milagrosos os seus influxos; como são brilhantes os seus troféus."

(24) Cf. Uni Barbosa, in disc. na Fac. de Direito de São Paulo, em 1909. São dessa época as consultas, que, em 17 de abril de 1870, dirigiu liui ao Barão de Ramalho, Justino de Andrade, e Américo Brasiliense sobre a liberdade dos filhos de escravos, e o projeto de emancipação de que resultou o afastamento de António Carlos. O projeto foi apresentado em 1-4-1870. Os originais das consultas existem no Arq. C. R. B. As conferências de Rui na Loja América, conforme se infere do documento abaixo transcrito, devem ter sido proferidas nos dias 17, 18 e 19 de março de 1870, havendo motivado o seguinte ofício (V. Arq. C. R. B.)': "À Glor. . . do S u p . . . Arch . . . do Univ. . . C a r . . . I r m . . . Cf. Rui Barbosa. A Aug. . . L o j . . . "America", em s e s s . . . celebrada nos 21 dias do mês de março de 1870 ( e . . . v . . . ) deliberou que por intermédio do secret. fosse louvada a brilhante exposição e defesa dos princípios democráticos por vós feitas nas noites de 17, 18 e 19 do corrente mês. O Sup. . . Arch. . . do Univ. . . vos Ilumine e Guarde, (ass.) António José Rodrigues de Oliveira Pinto, adj. . . de secret. . ."

Também existe no Arq. C. R. B. o autógrafo de um discurso versando sobro a "Fé, Esperança, e Caridade", e que Rui possivelmente terá lido na Sociedade fundada pelo Dr. Júlio Frank — a Buschenshaft — pois, pelo lôxto, se verifica tratar-se de oração proferida numa sociedade secreta.

(25) Carta de Bernardino Pamplona a Rui Barbosa, in Arq. C. R. B. (26) Carta de Bernardino Pamplona a Rui Barbosa, em 14 de fevereiro

de 1870, in Arq. C. R. B. (27) Salvador de Mendonça, "Coisas do meu tempo", in "O Impar-

« ial" de 13 de agosto de 1913. (28) Cf. Rui Barbosa, disc. no Clube Militar, em 27 de junho de 1921,

in "Novos discursos e conferências", p . 452. (29) Cf. carta de Rui ao cons. Albino Barbosa de Oliveira, em 17

ile i i.irço de 1869, V. "Mocidade e Exílio", p. 57.

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38 A VIDA DE RUI BARBOSA

(30) Cf. Joaquim Nabuco, "A Minha Formação" (S. Paulo) 1947, p . 16. (31) Entre os autógrafos de Rui Barbosa existentes na Biblioteca Muni

cipal, de São Paulo, está um caderno do tempo de estudante, e do qual tiramos estes versos de Shakespeare, bem como as referências abaixo mencionadas.

(32) Em carta a Joaquim Nabuco, em 22 de julho de 1906, e da qual existe cópia no Arq. C. R. B., escreveu Rui Barbosa: "Ninguém terá por aquele país (Estados Unidos) maiores simpatias do que eu. Comecei a conhecê-lo e querer-lhe, quando eu e V. éramos estudantes, na época da guerra separatista, pelos livros de meu pai, que se sortia de todas as obras sobre a grande nação e a sua luta."

(33) Além deste, existe na Biblioteca da Casa de Rui Barbosa outro livro com dedicatória de Rui ao pai: É "O Brasil e os brasileiros", de Kidder e Fletcher, no qual apôs o seguinte oferecimento: "A meu querido Pai em sinal de lembrança. Recife, 11 de novembro de 1867", V. Careton Sprague Smith, "Os livros norte-americanos no pensamento de Rui Barbosa", in "Conferências", vol. II, Rio, 1945.

(34) Cf. Rui Barbosa, conferência de 24 de maio de 1897, in "Discursos e Conferências" (Porto, 1921), p . 433 e disc. no Colégio Anchieta, 1903.

(35) Sobre a doença, que atormentou Rui no último ano do curso jurídico, veja-se Nazaré Menezes, "Rui Barbosa", p . 15-18.

(36) Cf. Henrique Coelho, obr. cit. e que diz ter ouvido do próprio Rui, em 1886, a informação.

(37) Na Rev. da Faculdade de Direito de São Paulo, n.° de outubro-dezembro de 1934, vol. XXX, fase. IV, p . 651 a 664 estão publicadas três provas escritas de Rui, em 1870. A última é justamente de 29 de outubro de 1870, data em que recebeu o grau, o que prova a pressa com que prestou os exames. Em carta de 22 de setembro de 1870, dizia João Barbosa a Rui: "Vê se podes obter, cm atenção á necessidade de vires quanto antes recuperar a saúde na Bahia, que a Congregação ordene que seja o teu ato o primeiro de todos; a fim de que aqui passas logo e logo chegar." Rui requereu a antecipação do exame em 24 de outubro de 1870. (V. António Gontijo de Carvalho, obr. cit. pg. 42).

(38) Quando Rui deixou S. Paulo, indo para a Bahia após a formatura, o Correio Paulistano publicou, na primeira página, uma notícia que dá a medida da fama grangeada pelo estudante. "Moço ainda, mas notável pela robustez de inteligência e ilustração, democrata de ideias firmes e definidas, e como tal um caráter político excepcional, um sincero e incansável apóstolo da nova era que surge para o Brasil, é sem dúvida preciosíssimo o concurso que pode e há de prestar à causa do povo, à causa americana. O Dr. Rui Barbosa não leva desta Província simplesmente o renome académico. O jornalismo e a tribuna política o popularizara entre nós, tornando respeitáveis e admiradas a sua pena, a sua palavra, e, mais ainda, a nobreza da consciência com que sabe desdenhar das conveniências do presente, ante as suas convicções e as exigências do futuro." Apud A. Gontijo de Carvalho, obr. cit. pg. 44).

(39) Nos autógrafos do discurso sobre a "Fé, Esperança, a Caridade", ao qual já fizemos referência em nota anterior, há o seguinte trecho, em que Rui evoca a memória da mãe: "A imagem querida de minha Mãe desapareceu um dia de cima da terra sem que eu pudesse abraçá-la ao partir, sem que eu tivesse a amarga ventura de fechar-lhe os olhos, nem

A FORMIGA ENTRE AS CIGARRAS 39

colhêr-lhe dos lábios as últimas pérolas de sua alma. Então, achei os livros mudos, a razão muda, e a filosofia estéril. Chorei e abracei-me à cruz. Foi a fé que me salvou. Hoje a recordação daquele grande espírito dorme no seio de minha alma embalsamada pelo amor e pela saudade". Em relação ao trecho citado chamamos a atenção do leitor purn a nota religiosa, que é uma constante no espírito de Rui, mesmo nos momentos em que esteve mais afastado da Igreja Romana.

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I V — E N S A I O S

Eu sentia em mim uma paixão entusiástica pelo estudo, sentia um atrativo irresistível pela ciência, tinha a vontade heróica do trabalho.

RUI.

O ESTUDANTE concebera grandes planos. Mas que pode realizar um rapaz pobre e doente? Tudo quanto a imagi

nação ambicionara, o sonho de uma carreira brilhante "nas letrás, nas artes, ou na ciência desinteressada", tudo parecia fugir-lhe irremediavelmente. A vida, com as belas coisas que fazem o seu encanto, não havia sido feita para êle. E, se desse um balanço nesses três últimos anos de sua existência, só encontraria tristezas. Primeiro, fora a morte da mãe; depois, o ostracismo do pai; agora a enfermidade, imobili/ando-o. A existência para êle resumia-se em miragens fugitivas, esquivando-sc enquanto corria para as alcançar. N

Ao mesmo tempo em que Rui chegava a Bania, doente e desalentado, o movimento republicano, em São Paulo e no Rio de Janeiro, entrava numa fase ativa. Os seus partidários agremia-ram-se no Clube Republicano, fundado na Corte, e lançaram ao país um vibrante manifesto de oposição ao regime monárquico. O seu primeiro signatário era Saldanha Marinho, e pouco abaixo estava o nome de Bernardino Pamplona. Este não perdia a esperança de ver Rui entre os adeptos do novo credo politico e, em 5 de dezembro de 1870, dois dias depois de publicado o manifesto, escreveu-lhe solicitando o apoio. "Aqui te envio o 1. numero do nosso jornal; nele encontrarás o nosso manifesto. Peço-te que faças o possível para que êle seja transcrito em algum jornal dessa província. Tiramos 3.000 números da República, que logo se esgotaram, e vamos mandar tirar 5.000 do manifesto, em folheto, para distribuir pelas províncias. A coisa vai bem por ca, e o clube a respeito da Bahia espera tudo de tua pessoa . (1)

A distância e o ambiente tinham, porém, acalmado os entusiasmos do jovem bacharel. Próximo do pai, convivendo com os

K N S A I O S 41

seus amigos, todos liberais e monarquistas, já se não sentia no momento tão seduzido por aquelas ideias revolucionárias, diante das quais tanto vacilara em São Paulo, contaminado pelos companheiros, que atacavam impetuosamente a dinastia brasileira dos Braganças. O certo é que o manifesto não foi publicado na Bahia. Passara o "Sarampo republicano".

Sobretudo numa ocasião de infortúnio, o dever exigia-lhe ficar solidário com o pai. Quando alguém começa a cair na vida raramente desce apenas um degrau. João harbosa descera vários. Havia um ano que a pobreza o expulsara da cidade, obri-gando-o a ir viver em Plataforma, povoado próximo à capital. Mudança terrível. João Barbosa a Rui, cm 22 de setembro de 1870: "Meu prezado filho. Hoje às 7 Víi da manhã partimos para a Plataforma, de mudança. Deus abençoe os sacrifícios que nisso fazem tua Irmã, tua Tia o teu pai. file se condoa de todos nós!" Aí, para manter a família e ter o direito de continuar liberal, organizara rudimentar fabrico de tijolos e telhas, indústria destinada ao malogro. (2)

Separada da cidade por estreita faixa de mar, sempre varrida por uma brisa fresca, Plataforma era um lugar quieto, de poucas casa.:, convidando mais ao repouso do que ao trabalho, e início duma praia alva, onde os pescadores, à tarde, estendiam as suas redes. Mas, o homem torturado não vê a paisagem. E a situação de João Barbosa era quase de desespero. Amigos auxiliavam-no emprestando-lhe bois e burros de tração, mas frequentemente as locomotivas matavam os animais, paralisando a pequena indústria. Um inferno! A isso João Barbosa chamava "o azar dos Barbosa", e invocava o testemunho divino: "só Deus sabe a minha presente quase irremediável situação". Mas, intransigente, agarrado aos seus "princípios", e como se desejasse incutir no filho aqueles exemplos de altivez, acrescentava: "Felizmente, morro cumprindo meus sagrados deveres." (3)

Panorama suficiente para desenganar alguém. Mas, quanto a Rui, completava-o a enfermidade.

Os sonhos do rapaz foram assim esmagados pela cruel realidade. Diante daquele jovem pálido, de faces cavadas e cabeça exageradamente grande, os médicos permaneciam indecisos. Os diagnósticos não passavam de vagas hipóteses. Aconselhavam repouso e sangrias sucessivas, até melhorarem as vertigens, mas João Barbosa preferiu não ouvir os médeios. Suprimiu as sangrias, e limitou o tratamento a um longo período de férias no ambiente tranquilo de Plataforma. Isto devia fazer bem ao filho. (4)

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42 A VIDA DE RUI BARBOSA

A situação de completa inatividade, para um jovem cheio de ambições é insuportável. Depois de algumas semanas perdidas na contemplação do mar batendo próximo à casa, as pequenas canoas tangidas pelo vento e deslizando ligeiras sobre as águas, Rui resolveu aproveitar o tempo em minucioso estudo da obra de Shakespeare. Alguns meses foram gastos na análise dos vários dramas. A sua distração era sempre ler. E mesmo quando se realizavam, na praia, animadas corridas de cavalos, não se afastava dos livros. E João Barbosa, satisfeito por ver a tenacidade do filho erudito, dizia aos amigos: "É mais fácil tirarem o mar dali do que o Rui dos livros". Depois dessa excursão por Shakespeare êle o conhecia em todas as suas sutilezas. (5)

Contudo o descanso não o salvara do seu drama pessoal. Continuava doente, e os vários tratamentos a que se submetera com "imensa resignação" tinham falhado completamente. A incredulidade começava a invadir-lhe a alma. E quase já não acreditava na possibilidade de restabelecimento, enquanto as esperanças de cura morriam uma a uma à medida que experimentava novos remédios, todos inúteis. Era uma tragédia shakespeariana a desse rapaz a quem a moléstia não permitia transformar em ação os seus desejos de vitórias, que se desfaziam como ténues bolhas de sabão batidas por vento mais forte. Êle assim a descrevia ao conselheiro Albino: "Imagine o sofrimento em que vivo, com a idade que tenho, com o brio que Deus me deu e com a sede de trabalho que de dia para dia sinto crescer dentro de mim". (6) E o desespero principiava a dominá-lo inteiramente.

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O retiro torna os homens facilmente apaixonáveis e imaginosos. Rui estava, havia um ano, preso na sua estação de cura, e os longos meses tinham-se escoado entre esperanças e desesperos. O tempo passara sempre. Corria. E se continuasse a correr diante da ociosidade forçada, êle talvez; não conseguisse alcançar a oportunidade para realizar os projetos que lhe povoavam a ambição. De qualquer modo era necessário começar.

Nas suas visitas à cidade, frequentemente, encontrava-se com os correligionários do pai, muitos dos quais o conheciam desde a infância e se enterneciam com o áspero destino, que lhe impedia converter em profícuos instrumentos de trabalho os conhecimentos adquiridos pacientemente. Entre eles estava Manuel Dantas. Depois de militar longos anos na política e ter conquistado sólida predominância no seu partido, Dantas já não temia

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a concorrência dos jovens e compreendia as vantagens de atraí-los para o seu círculo de influência. Vários formavam a sua roda de auxiliares e admiradores.

Embora não fosse o que se chama um homem culto, Dantas possuía inteligência e sagacidade. Na direção do seu grupo as-semelhava-se a um diretor de teatro, sabendo distribuir os papeis entre os atôres. Também era advogado e Rui aceitou um convite para trabalhar no seu escritório. (7) Afinal, ia começar.

Amália Dantas, a simpática mulher de Manuel Dantas, apesar de emitir de quando em quando indiscretas opiniões sobre os negócios políticos do marido, auxiliava-o eficazmente, acolhendo com encantadora simplicidade quantos entravam por aquela casa sempre aberta, e interessou-se pela sorte daquele rapaz infeliz, que lhe lembrava a sua amiga Maria Adélia. Em pouco tempo Rui tornou-se íntimo dos Dantas e completa camaradagem uniu-o aos filhos do casal. Principalmente de Rodolfo, poucos anos mais moço do que êle e académico de direito, tornou-se um amigo perfeito. Apesar de bastante diferentes, Rui e Rodolfo compre-enderam-se magnificamente. Rodolfo, como é explicável no filho de um homem abastado e de projeção social, desde cedo adquirira hábitos de herdeiro venturoso. Gostava da vida mundana, e as moças em idade de casar cortejavam-no, achando-o um belo rapaz. Justamente o oposto do seu feio amigo taciturno e pobre. Isso, porém, não impediu ser sempre crescente a amizade entre ambos.

Na casa dos Dantas, Rui pôde rever os antigos companheiros de João Barbosa, cujas simpatias não tardou em conquistar. João Moura e Salustiano Souto, assíduos frequentadores dessas reuniões, simpatizaram com as atitudes de precoce severidade do rapaz. Nas conversas contavam episódios célebres do parlamento. Falava-se com intimidade de grandes estadistas, pois vários deles, entre os liberais, como os senadores Zacarias de Góes e Nabuco de Araújo, haviam nascido na Bahia e Rui, quase sempre calado, ouvia com interesse estas narrativas. Algum dia êle também seria assim.

A advocacia não é, porém, propícia a rápidas vitórias, e Rui teve de aguardar algum tempo até alcançar certa nomeada. Chegara a ser designado promotor adjunto, num ruidoso processo contra os autores duma tentativa de roubo na Tesouraria Geral. (8) Pouco depois, patrocinando a causa duma pobre moça seduzida pelo ricaço António Godinho, encontrou a oportunidade para ver realçadas as suas qualidades de orador, valendo-lhe isso "uma

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bonita reputação literária". (9) Assim, vencia de vagar, mas não lhe faltava paciência.

Em meio à desgraça de João Barbosa, esses modestos triunfos do filho constituíam o consolo único. Inquietou-o, porém, saber que Rui estava apaixonado. O rapaz andara bastante depressa. Ao coração amargurado pelo sofrimento o amor fora um bálsamo, inundando-o de esperanças e já fizera até alguns versos dedicados à sua preferida:

"Pois ouve. . . não fujas, não . . . Escuta o gemer da brisa; É minha alma que desliza Nas asas da viração."

Era mau sinal. E o pai, pouco satisfeito com a aventura sentimental, resolveu interrompê-la, apesar da condição da namorada, Brasília Silva, ligada a conhecidas famílias liberais. (10) Tarefa difícil, pois, para o jovem amoroso, não havia razões fora do seu enlevo. Tão teimoso quanto o pai, Rui não cedeu uma linha. Foram improfícuos todos os argumentos e raciocínios. Amava c julgava-se no direito de resolver por si mesmo este assunto afetivo. Por fim, percebendo ser impossível demover o filho da sua resolução, João Barbosa desistiu de vencer a escaramuça doméstica, impondo ostensivamente a sua vontade. Mudou de tática. Compreendera ser "preciso fazê-lo convencer-se por si" e resolveu contornar os obstáculos por "meios indiretos e imperceptíveis". Fingiu desinteresse. E assim, livre para decidir, Rui não tardou em encerrar o romance no dia em que julgou não estar só no coração do seu primeiro amor. (11) Rompimento chocante, e que muitos julgaram uma canalhice. Entretanto, o malogro sentimental acabrunhara-o terrivelmente.

Depois de tudo quanto padecera era horrível esta desilusão. Certamente, êle não viera ao mundo para ser feliz.

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Na vida de Rui, os instantes de felicidade eram passageiros. No fundo do quadro, dominando-o, havia sempre a enfermidade.

Isso o fazia cada vez mais retirado, recolhido ao mundo das suas fantasias, o único ainda igual àquele arquitetado pelos seus devaneios. Aos próprios colegas, que a formatura dispersara pelo país, o seu temperamento delicado e sensível, receoso de os aborrecer com as constantes narrativas da doença, evitava escrever.

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l'm deles, porém, Adriano Bustamente, insistia, pedindo-lhe noticias. " . . . Como vais tu? Escreve-me, não receies magoar-me com os teus incómodos como me disseste... Eu me julgo na obrigação de compartilhar a tua natural tristeza de quem sofre liá tanto tempo. E se isso te contraria, eu vou sugerir um alvitre milito fácil: não me fales, se assim te apraz, na tua enfermidade". (12) Pamplona mostrava-se otimista. Para êle, que tanto o conhecia, os males de Rui "eram simplesmente nervosos, complicados com alguma causa do estômago". Certamente exagerava distúrbios de pouca importância, e Pamplona acreditava que a advocacia, desviando-lhe a atenção, seria suficiente para curá-lo: "dis-Iraindo-te ela o pensamento, livra-te da cisma, e esta, no meu entender, era o teu maior incómodo". (13) Entretanto, tudo quanto lhe diziam os amigos não passava de palavras. Simples palavras, encorajando-o para suportar o destino. Mas quase dois anos se haviam escoado, e, por maior que fosse a sua confiança, o sofrimento dominava-o. Na realidade, era dolorosa a sua existência.

Em 1872 um imprevisto novamente modificou a vida de João Barbosa. Plataforma foi vendida, e, apesar da intervenção de Manuel Dantas, o proprietário obrigou-o a ceder-lhe a indústria modesta com prejuízo considerável. Do episódio da conta uma carta de João Barbosa ao filho: "Eu te agradeço - dizia - a coragem, que me buscas inspirar para o sacrifício, a que estava resignado, mas não tão considerável como o prevejo já, à vista do procedimento de algoz, não de louvado, que o J. Lopes teve, propondo 7:500$000... À vista disto quererá o J. Lopes e o Hrandão - conciência — comprar uma casa de 110 palmos de frente, nova, bonita, bem feita, etc. e mais uma fábrica completa c boa de tijolos - tudo isto por 4 ou 5:000$000? Isto não tem nome, mormente quando escangalham um pai de família honrado, <|iie, talvez pelo ser, se meteu em tal ratoeira." (11 de julho de 1872.) Para os Barbosa tudo terminava mal. E êle assim registrou o fato: "Lá vou, pois, de novo para a cidade - Deus sabe a viver <!<• q u e . . . " (14)

Contudo, isso que para o pai representava um desastre, para .» filho foi oportunidade excelente. Os Barbosa vieram residir próximo à redação do "Diário da Bahia", o jornal dirigido por Manuel Dantas, e era agora instalado no velho solar dos condes de Passe. Desde 1868, quando os conservadores haviam tomado o poder, lorniira-so a tribuna donde famosos jornalistas liberais agrediam liirioMiinfntc os adversários. Virtualmente, era a sede do partido.

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46 A VIDA DE RUI BARBOSA

Morar perto do jornal significou para Rui poder frequentá-lo diariamente, e algum tempo depois figurava entre os seus redatores. (15) Manuel Dantas, já entusiasmado por aquele jovem erudito, fê-lo um dos seus auxiliares imediatos no jornal. Assim como lhe abrira as portas do seu escritório de advogado, admitia-o, agora, na imprensa.

Nada podia ser mais propício às ambições políticas de Rui que essa convivência com os dirigentes do seu partido. Realmente, era o "seu" partido. A leitura de autores ingleses fizera-o conhecer bastante a vida parlamentar britânica, e tinha a cabeça cheia de Macaulay. Sentia-se um whig tão convencido quanto Glads-tone, e julgava os tories uma expressão do passado. Aqueles encantavam o seu espírito reformista.

Para um bom observador a intimidade do jornal seria fonte inesgotável de úteis ensinamentos. Presenciavam-se rasgos de abnegação e ações mesquinhas. Desfilavam pequenas vaidades. Homens respeitáveis pediam notícias de aniversários, mas os miseráveis apenas apareciam reclamando contra violências e injustiças. Rui, se olhasse mais para os outros do que para dentro de si próprio, aprenderia também a necessidade que tem um principiante cm ceder os primeiros lugares aos mais velhos, assim como ter palavras amáveis para os trabalhos dos companheiros. O rapaz, entretanto, não podia ver o que se passava em torno dele. Queria derrubar os conservadores, prazer que prelibava desde o ostracismo de João Barbosa; em 1868, e muitas vezes parecera chegada a ocasião de consegui-lo: os adversários cambaleavam. Mas, como a torre de Pisa, a inclinação não lhe prejudicava a solidez no poder. E Rui, sobrepondo-se às vertigens, que continuavam a afligi-lo, prosseguia lutando com entusiasmo.

Em dezembro chegou o verão. Das mangueiras pendiam frutos maduros e os cajueiros vergavam carregados. Era a época das pessoas abastadas retirarem-se da cidade. Manuel Dantas também partiu para uma praia de banhos e entregou a Rui a direção do "Diário da Bahia". Pela dedicação e inteligência êle fizera jus a essa prova de confiança, sendo escolhido entre outros redatores mais antigos para ocupar o primeiro posto. A preferência encheu-o de alegria. Amava aquela vida de jornalista, que lhe dava a ilusão de ser uma força somada às outras em oposição aos conservadores; e, aumentadas as responsabilidades, também cresceu a sua atividade. Na confecção do jornal Rui mostrou-se infatigável e Dantas escreveu-lhe, reconhecendo os seus serviços. "Limito-me a dizer que fui bem inspirado quando escolhi o teu

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lugar: estamos todos muito satisfeitos". (16) Dantas dificilmente se enganava.

Mas o esforço era superior às forças de um doente: em poucos meses o seu estado agravou-se bastante. As tonteiras voltaram mais frequentes, emagreceu, e sentiu-se sem energias, enquanto (is médicos, incapazes de um diagnóstico, aconselhavam dieta rigorosa, e êle ficava cada dia mais fraco. (17) Quadro alarmante: ;i moléstia parecia fatal. Falou-se numa viagem à Europa, para («insultar clínicos célebres, mas isso era impossível.

Contudo, por coincidência, nessa mesma ocasião Rodolfo regressou enfermo de São Paulo. Uma estação de águas cm En-gliiens-les-Bains seria indicada para o seu restabelecimento, c Manuel Dantas resolveu partir com o filho para a Europa. Foi a oportunidade para Rui realizar a viagem de que necessitava. Os Dantas ofereceram-se para levá-lo. É, em julho, no "Illima-ni", todos partiram para a França. (18)

Paris. Os dias tristes de Sedan já estavam esquecidos e a cidade voltara a divertir-se. Os turistas enchiam novamente os "boulevards". Nas ruas trauteava-se a música de "Madame An-go", que se representava com grande êxito no Folies Bergère. K no mesmo dia em que chegaram — eles eram autênticos "sud-américains" — os viajantes foram assistir ao espetáculo um tanto escandaloso, onde os ditos maliciosos se misturavam com pernas <le coristas. (19)

Depois Rui foi consultar os médicos e se fêz fotografar no lloulevard des Capucines. No retrato via-se um homem bastante feio, de cabeça enorme, e sustentada por um pescoço débil, emergindo dum alto e largo colarinho de pontas viradas. Os médicos, mu tanto céticos, mandaram-no para Enghiens-les-Bains.

A estação de águas sulfurosas não produziu qualquer efeito iiléin da recuperação de energias devido ao descanso. Disseram-llio então que voltasse aos trópicos. Embora sem o declararem, consideravam mais humano morrer-se cercado pela família. E Uni, após uma excursão de quatro meses, voltou à Bahia. Gastara as pequenas economias, contraíra dívidas e perdera as poucas esperanças de cura. Este o resumo da viagem dispendiosa.

Ainda uma vez ia recomeçar o suplício imposto pela medicina o repouso. O repouso em plena juventude. Isso, para Rui,

dignificava ser um parasita. João Barbosa continuou, porém, a lutar desesperadamente

puni salvar o filho. A vida já lhe tinha sido bastante amarga, e Air, ugora, sentia fugir-lhe a esperança que lhe restava entre

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48 A VIDA DE RUI BARBOSA

tantas atribulações. Percorria os consultórios médicos com o filho. Mal tinha notícia de algum, ia consultá-lo. Nenhum, entretanto, decifrava o enigma daquelas vertigens.

Nessa ocasião passou pela Bahia um médico português, Pedro Alvarenga, clínico em Lisboa. João Barbosa levou-o para ver o filho. O doutor examinou o rapaz, inquiriu-o, e diagnosticou uma simples anemia cerebral. Depois anunciou-lhe a receita: "Se o senhor puder coma até pedras". E acrescentou: "O seu mal é fome". Aquilo parecia absurdo, mas o remédio foi eficaz. Rui retomou, então, os trabalhos da advocacia e do jornal com o ímpeto de q u e m deseja recuperar o tempo perdido. Nenhum correligionário o excedia em atividade.

Crescia a irritação dos liberais contra os conservadores. Não só por lhes terem arrebatado o poder inesperadamente, mas, principalmente, por se terem apropriado das suas ideias de combate. A libertação do ventre escravo, por exemplo, realizada pelo visconde do Rio Branco, ecoara nas hostes liberais como um roubo, pois fora deles a iniciativa. Um perigo para a Coroa, diziam os liberais, essa corrida dos dois partidos atrás de ideias "avançadas". Só files, entretanto, se julgavam com o direito de reformar. Saraiva a Nahuco: "Paranhos (releria-se ao visconde do Rio Branco) tem ideias? A sua gente tem disciplina? Entretanto governa e governará enquanto lhe for possível corromper as câmaras. Os meus receios são outros: o que me assusta e ver que grande número d e liberais monarquistas vão descrendo de nossas atuais instituições, e concorrendo assim para a formação de uma situação arriscada para os liberais e impossível talvez para os conservadores". Seria a república. E arrematava com sutil ironia: "Mas o que me tranquiliza é ver que Sua Majestade nada receia e que tem tempo para estudar e fazer jus a um assento no Instituto de França". Saraiva não simpatizava com os estudos do Imperador .

Entretanto, outra bandeira foi levantada pelos liberais — a eleição direta. Para um espírito embebido em leituras inglesas e que admirava os whigs, nada podia ser mais agradável do que pelejar por uma reforma eleitoral. Era como se estivesse combatendo ao lado de lord Grey e lord Russell, enfrentando o duque de Wellington. A imaginação podia transportar-se para as ruas de Bristol, onde se ameaçara o cetro de Guilherme IV.

Assim, ao ter de falar num comício em favor da reforma, que os liberais pregavam com u m vigor ainda não visto no país, o discurso de Rui foi repleto de referências a exemplos britânicos. E, indo mais longe do q u e desejavam os correligionários, exe! miou

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• i certa altura: "A Inglaterra nunca teve respeito a reis que a des respe i t a s sem. . . " 1'Yase de um radical, mas a assistência vi-Itrim diante daquele jovem de voz harmoniosa c que citava casos passados em países distantes. Como sempre, o mais entusiasmado ri-ii João Barbosa. Um amigo tioton-o triste e pensativo, e perguntou lhe o que tinha. - "Até onde irá o Bui? ' , respondeu. (20)

Henlmentc o rapaz prometia ir longe. O pai. orgulhoso do talento do filho e do seu apego aos livros, esquecia um pouco ON embaraços financeiros, q u e o haviam compelido a morrer num «Cjnmdo andar. Imaginava-o na Câmara, quando os liberais vol-tNliem uo governo. K anotava radiante: "O Dantas e outros di-Mm*mo nut» Rui é superior a José Bonifácio e sustentam que n r -tMMItt t nojo lido se fula melhor do que file." (21)

NOTAS Aí) CAPITULO IV

(I) Curta In Ar<i. C II. 11. J , (B) V. In "MoHdwlo n Kxlllo" n correspondência dessa época de João

lUrboiR, «i In Arquivo do Instituto Geog. e Hist. da Bahia as cartas de JoSn IliirhnKii a Jofio Moura.

(.1) Cl. Curtii d(i João Barbosa a João Moura, em 6 de fevereiro de IH7I, in Ar(|. do Instituto Geog. e Hist. da Bahia.

(4) V. Constâncio Alves, "Rui Barbosa e os livros", in Rev. da Academia Brasileira de Letras, vol. XVII, p. 243.

(5) Idem. (6) Cf. carta de Rui ao Cons. Albino B. de Oliveira, em 21 de agosto

de 1871 in "Mocidade e Exílio", p. 64. (7) Rui começou a trabalhar como advogado no escritório dos futuros

senadores Manuel Dantas e Pedro Leão Veloso. (8) Rui foi nomeado promotor adjunto em 20 de janeiro de 1872 em

substituição ao promotor José Ferreira da Silva, que estava impedido de funcionar.

(9) O "Diário da Bahia" de 3 de março de 1872 dá noticia do júri, havendo sido o réu António Tavares da Silva Godinho condenado no grau máximo. Rui, in "Discursos e Conferências", p. 467 refere-se a esse episódio da sua vida, e do qual João Barbosa, em carta de 16 de agosto de 1872, deu conto ao cons. Albino B. de Oliveira. (V. "Mocidade e Exílio", p. 70).

(10) Brasília Silva era irmã de José Salustiano Silva, chefe liberal no distrito da Penha (Bahia), e casado com uma irmã do dr. Almeida Couto, prestigioso elemento do partido Liberal, do qual era um dos dirigentes. Casou-se com o sr. Joaquim Oliveira.

(II) Cf. carta de João Barbosa ao cons. Albino B. de Oliveira em 16 de agosto de 1872, in "Mocidade e Exílio", p. 69.

(12) Carta de Adriano F. Bustamente a Rui, em 20 de janeiro de 1872, in Arq. C. R. B.

(13) Cf. carta de Bernardino Pamplona a Rui em 25 de abril de 1872, in Arq. C. R. B.

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50 A VIDA DE RUI BARBOSA

(14) Cf. carta de João Barbosa ao cons. Albino de Oliveira, em 16 de agosto de 1872, in "Mocidade e Exílio", p . 68.

(15) Fixamos em 1872 o início das atividades efetivas de Rui Barbosa, no "Diário da Bahia". É também a data preferida pelo sr. Homero Pires, em nota à página 12 de "Correspondência". E o sr. Fernando Nery ("Rui Barbosa", p . 45), embora escreva que "de 1873 a 1880 trabalha Rui, diariamente, no jornal. . .", também informa, pouco antes do trecho citado, que "nesse ano (1872) entra (Rui) para a redação do "Diário da Bahia". Realmente, à vista da correspondência de Rui Barbosa e João Barbosa publicada in "Mocidade e Exílio" não parece provável que tivesse aquele começado efetivamente as suas atividades no órgão liberal antes de 1872. Assim é que, se, em carta de 21 de agosto de 1871, Rui, depois de se queixar da inatividade em que estava anuncia o seu propósito de começar em setembro a advocacia, nenhuma referência fazendo ao jornalismo, João Barbosa, nas cartas de 16 de agosto de 1872, limita-se a mencionar os trabalhos forenses do filho.

Entretanto, não são uniformes os depoimentos do próprio Rui sobre o assunto. Em artigo publicado no "Diário de Notícias", em 5 de maio de 1889 (V. "Queda do Império", vol. II, p . 285), diz o seguinte: "O único jornal, cm minha província, onde escrevi, foi o Diário da Bahia, a cuja redução pertenci desde 1873 até 1882". Mais tarde, porém, em artigo publicado na "A Imprensa" de 8 de março de 1901 retificava êle próprio as duas datas, escrevendo que servira como redator do "Diário da Bahia" de 1871 n 1878, sem perceber um real. Não fica, no entanto, aí a divergência, pois escreveria de outra feita: "Depois, de 1871 a 1881, vivi quase constantemente na imprensa do meu Estado natal, onde me coube, durante essa década, um dos lugares dirigentes e, por algum tempo, a direção exclusiva do seu grande órgão liberal: o "Diário da Bahia".

E, no prefácio i\ Queda do Império, p. XLVIII, ainda reduz o tempo em que teria trabalhado no jornal, pois escreve: "Cerca de oito anos servira eu no órgão do partido, entre cujos r e d a t o r e s . . . "

Na realidade, não é de admitir, até melhor prova, que Rui haja entrado, em caráter efetivo, antes de 1872 para a redação do "Diário da Bahia". Até porque, havendo chegado à Bahia, depois de formado, em fins de 1870, Rui, como é sabido, passado algum tempo, e por motivo de saúde, demorou cerca de um ano no arrabalde de Plataforma, donde João Barbosa só se mudou em fins de 1872. Tais fatos, porém, não excluem a hipótese de Rui, antes de 72, haver colaborado no jornal, para o qual, durante as férias de 1869-1870, chegou a escrever, sob o pseudónimo de "Gaspar", versos humorísticos, de que existem alguns, em autógrafo, no Arq. C. R. B. São versos contra o futuro visconde de S. Lourenço, grande chefe conservador, e ao qual João Barbosa atribuía parte das perseguições de que foi vítima.

O "Diário da Bahia", fundado em 1856 por Demétrio Ciríaco Ferreira Tourinho, Silva Lima, e Landulfo Medrado, transferiu-se, em 1872, da Rua das Vassouras para o prédio do Largo do Teatro antiga residência dos condes de Passe.

(16) Cf. carta de Manuel Dantas a Rui, em 4 de dezembro de 1872, datada de Madre de Deus. In Arq. C. R. B.

(17) V. Fernando Nery, obr. cit. p . 45.

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(18) No "Diário da Bahia" de 5 de julho de 1873 está publicada a notícia do embarque ocorrido na véspera. Também embarcou Jerónimo Soclré.

(19) Mais tarde, por ocasião da Conferência de Haia, Rui, em carta à mulher, que estava em Paris, assim lembrava o seu conhecimento dos teatros parisienses: " . . . s e m dúvida já terá gozado o prazer, que eu tive, <l<- ver os teatros de Paris". (Carta de 17 de junho de 1907).

(20) Trata-se de Rogociano Pires Teixeira, que assistiu com João Barbosa o conhecido discurso de Rui, na Bahia, em 1874, sobre a eleição direta.

(21) Cf. carta de João Barbosa ao cons. Albino H. de Oliveira, em (i de agosto de 1874, in "Mocidade e Exílio", p. 76.

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V — ESCRAVO DOS CREDORES

Não vejo ninguém que, na minha idade, tenha transposto as provações que me têm enchido de fel os melhores anoe da vida.

Rui. (1876)

A INDA menino, Rui tinha o hábito de interceder, defendendo v os escravos de casa ameaçados de algum castigo. O pai,

embora não o contrariasse, advertia-o suavemente: — "Rui, tu és o advogado dos cachorros". Quinze anos passaram-se. A criança fêz-se um homem. Entretanto, continuava o mesmo, sempre sensível ao sofrimento dos outros. As dores próprias haviam-no feito compreender as alheias, e inflamava-se diante de alguma injustiça. Êle nunca se esquecia dos dias amargurados do colégio. João Barbosa apreciava essas virtudes do coração do filho, nisto igual à mãe.

Desde pequeno, apesar dos ciúmes de Brites, Ruí fora o preferido de João Barbosa, que, a princípio, lhe servira de mestre, orientando-lhe as leituras e os estudos. Com o tempo fizera-se o seu melhor amigo. Jamais, entre um pai e um filho, se notara solidariedade tão perfeita. Fisicamente parecidos, ambos de baixa estatura, assemelhavam-se também no génio impetuoso e irascível. escondendo-se sob maneiras muito polidas e educadas. E admi-ravam-se reciprocamente.

Essa união foi abruptamente desfeita pelo falecimento de João Barbosa, em novembro de 1874. Morte inesperada. Em três dias uma "inflamação intestinal" causou o desfecho fatal, apesar dos esforços da medicina. Por último haviam despejado sobre a cabeça do enfermo um grande barril de água fria. Tudo inútil. E João Barbosa, como bom cristão, depois de reconciliado com Luiz António, que fizera chamar pelo filho, recebeu os sacramentos da Igreja. (1) Seis cavalos puxaram o coche fúnebre.

Rui viu-se inteiramente só, sem ter a quem recorrer nos momentos de aflição. Os seus melhores amigos estavam ausentes.

ESCRAVO DOS CREDORES 53

liodolfo estudava em São Paulo, e eserevcu-lhe dando conselhos habituais nessas ocasiões. E, como lhe conhecia os sentimentos ii-ligiosos, invocou a vontade divina: "recebe como um forte os !'cretos dessa Providência em que tanto crês". Manuel Dantas

estava na Corte, onde soube pela mulher que o amigo, antes de expirar, lhe confiara o filho. E logo escreveu a Rui, aceitando .i incumbência do morto: "Ê legado sagrado." (2)

Apesar de já contar vinte e quatro anos, o aspecto do rapaz «ia o de um adolescente. Ficou acabrunhado, melancólico e o conselheiro Salustiano Souto, compadecido, Ievou-o para passar .ilguns dias em sua casa. Essa convivência seria decisiva no destino de Rui. Souto, professor da Faculdade de Medicina, fora colega de João Barbosa na Câmara. Tornara-sc conhecido, principalmente, anunciando o emprego da eletricidade na cura de certas moléstias, coisa que, na época, muitos colegas recebiam como simples fantasia, mas a sua ambição consistiu em ser senador do Império. Morreu zangado com o Imperador por nunca ter merecido a sua preferência, embora figurasse em várias listas submetidas à escolha de Sua Majestade.

Mais uma vez a vida fazia a Rui triste surpresa. Da família restava-lhe apenas a irmã. Mas, já antes do desaparecimento do pai, aquele jovem que tão facilmente capitulava diante de Cupido se apaixonara por uma vizinha de olhar meigo. Filha durn tenente-coronel da Guarda Nacional, Justiniano Anselmo da Cruz, tinha a beleza dos dezessete anos e chamava-se Maria Rosa. O pai ainda desta vez opusera-se fortemente aos amores do filho, ' o velho primo Albino também mandou conselhos para modificar essa resolução da mocidade. Foi inútil. Dominava-o "um senti-mento mais forte que os cálculos comuns da conveniência", res-|x>ndeu êle ao primo patriarcal, e contratou casamento. Rui nada via a desaconselhar a união além da "pouca fortuna" da sua amada. (3) Razão bem fraca para o jovem enamorado.

o o o

Exceto seis escravos legados aos filhos por Maria Adélia, e os modestos móveis da casa, João Barbosa deixara apenas dívidas. Cerca de doze contos. (4) Nessa situação Rui e Brites deviam entregar tudo aos credores, para que se cobrassem do melhor modo possível. Isso, entretanto, repugnou ao rapaz orgulhoso, que resolveu tomar a si as responsabilidades firmadas pelo pai. Os amigos disseram-lhe ser loucura, mas êle se entendeu com iis bancos, pediu aos amigos para lhe abonarem a assinatura, e

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54 A VIDA DE RUI BARBOSA

substituiu por títulos seus os compromissos paternos. Parecia ter a volúpia do sofrimento. Não satisfeito com o árduo quinhão que lhe tocara na vida, ainda ia aumentá-lo com as próprias mãos.

Várias vezes Rui recordou com satisfação a coragem desse sacrifício totalmente voluntário. Eis como o evocou numa destas ocasiões: "Eu herdara, pois, o trabalho e a luta, mas a luta como quem nasceu para a menear com a energia de uma arma, e o trabalho como quem fora talhado para vencer num campo de batalha. Facílimo era evitar o peso dessa herança: bastava renunciar a sucessão a benefício do inventário. Mas me pareceu que o dever mo vedava. Renunciei, pois, nos autos, em favor de minha irmã o ativo do casal: os móveis, as alfaias, todos os valores encontrados em casa, e substituí, nos bancos, sem reserva de condições, a firma de meu pai pela minha. Não pedi misericórdia, e não a tiveram comigo. O morto continuava a viver em mim nas suas responsabilidades, pelas quais nunca encontrei quartel. Era assim que eu queria: foi assim que me trataram os estabelecimentos. E assim foi que eu venci." (5) A realidade, entretanto, não tinha sido bem assim. Rui não renunciara a herança em favor da irmã, como mais tardo, quando fêz esta evocação, desejaria ter feito: alegando haver assumido a responsabilidade das dívidas de João Rarbosa, pedira a adjudicação dos bens deixados pelo pai, pouca coisa, aliás, e que não chegava a valer um conto de réis. Mas, nem por isso a atitude era menos heróica. (6)

A morte do pai mudara-lhe completamente a existência. Os pesados encargos exigiam maiores recursos para atender às dívidas vencidas em cada mês, e Rui teve de suceder ao pai no lugar de Inspetor da Santa Casa de Misericórdia. Manuel Dantas nada pudera conseguir-lhe de melhor, e um ordenado de duzentos e cinquenta mil-réis mensais remunerava-lhe o trabalho. Função pouco interessante. O hospital de indigentes, último refúgio dos desgraçados, que nada mais esperavam do mundo senão o alívio da morte, punha-o diante de novas cenas de miséria. Uma correspondência triste sobre o serviço interno do estabelecimento mar-ca-lhe a atividade de cada dia e tudo aquilo devia ser bem diferente dos seus inquietos sonhos de glórias. Por mais alto que voasse a imaginação, tinha de continuar enviando monótonos bilhetes às irmãs de caridade, para recolherem algum miserável, ou às empresas funerárias, providenciando o enterro dos mortos. (7) Era uma fatalidade que o esmagava: e êle não a podia com-

ESCRAVO DOS CREDORES 55

preender nem evitar. Contudo, o seu espírito místico confiava numa vitória final.

Nesse ano (1875) o país foi agitado pela ideia do serviço militar obrigatório, que se dizia trazida da Europa pelo Imperador. Rui, como todos os liberais, considerara-a um crime: e opôs-se-lhe com tamanho vigor que os adversários o apontaram como um revolucionário. Realmente, a sua cabeça estava cheia de discursos de Rright, Cobden e 0'Connell, durante a campanha de Manchester, e a sua palavra tinha acentos sediciosos.

Em 1.° de julho, véspera dos festejos da independência da Rama, o povo percorreu as ruas e Rui pronunciou um discurso incitando-o a reagir contra a conscrição. (8) No dia seguinte grave incidente assinalou as comemorações. O governo receou até perder o domínio da cidade. Mas, dois dias depois, como um rio refluindo após ter transbordado, a população voltou tranquilamente aos lares e ao trabalho. Havia alguns mortos e feridos.

Luiz António, porém, não perdoava o sobrinho. E a ocasião pareceu-lhe propícia para escrever a Saraiva, chamando a sua atenção para os fatos, "e muito especialmente para o discurso pronunciado pelo sr. Rui". Os inimigos vigiavam-no.

Quanto às dívidas, embora não soubesse como as iria pagar, tinha confiança em consegui-lo. O erudito místico "contava com o poder miraculoso das inspirações do dever". O milagre custou, entretanto, a realizar-se e Rui teve de solicitar dos credores a cessão temporária das amortizações. Isso significava apenas um adiamento. Depois, o pesadelo voltaria. E, sem ilusões sobre o que o aguardava, escreveu ao primo Albino: "Desta maneira toda a minha vida, toda a minha profissão, por assim dizer, de ora em diante, o meu futuro, tudo vem a cifrar-se em trabalhar para extinguir interminavelmente gota a gota, com o suor de sangue, esta dívida acabrunhadora. Nem a minha carreira natural, a advocacia, me será lícito exercitar; e verdadeiro ganhador, servo, escravo dos credores, nada mais me resta esperar que algum desdouro público, certo, sem dúvida nenhuma, e provavelmente não remoto." Contudo, suficientemente orgulhoso para não recuar, estava deliberado a enfrentar a situação, e chamava-a "o desempenho de um rigoroso dever filial".

Rui, no entanto, não herdaria do pai apenas as dívidas. Dele lambem recebera os "princípios", as convicções liberais, e, dentre estas, um arraigado sentimento antiultramontano, que, por muitos anos, seria o seu sudário na vida pública. Dois fatos, aliás, viriam

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56 A VIDA DE RUI BARBOSA

provar que não estava disposto a renegá-los, fossem quais fossem as provações.

Ocorreu o primeiro ao ser publicada, já após a morte de João Barbosa, a tradução que fizera, sob o pseudónimo de "Febrô-nio", da "A Imaculada Conceição", de Laboulaye. (9) Breve prefácio, falando da "origem impura do dogma herèticamente promulgado por Pio IX em 1854, contra todas as boas tradições da Igreja católica", marcava a posição do tradutor. Mobilizaram-se os ultramontanos. E, não podendo agredir o morto, voltaram-se contra o filho. Censuravam-no através de malévolos comentários, imputando-lhe haver desenterrado do espólio paterno um trabalho, que se não destinava à publicidade. Rui não tardou a saber das críticas. E, como era do seu feitio, também não demorou em vir a campo, provando já estar o trabalho impresso no momento da morte de João Barbosa. À vista da carta, que lhe dirigira o próprio editor, negava qualquer parte na impressão do trabalho. Mas, das ideias de João Barbosa, não se afastava uma linha. E assim, inteiramente fiel aos "princípios", concluía êle a explicação, que a bem dizer transformara num ataque aos ultramontanos:

"Sei que, na hora extrema, requereu e recebeu meu Pai, Sacramentos da Igreja; que morreu edificantemente com a placidez, a fortaleza, a esperança de um cristão. Mas não sei, não posso concluir, não admito, contesto, que esse fervor religioso importasse uma conversão, um repúdio de crenças que lhe tinham raízes na alma. .

"Em conta de católico teve-se meu pai sempre. Divinos reputava os sacramentos, e à sua família os aconselhava. Professava todos os artigos do antigo credo católico. Mas quanto aos dogmas, proclamados neste século, quanto ao dogma de 1854 e o dogma de 1870, esses a consciência rejeitava inflexivelmente. Logo de que no momento supremo reclamasse o conforto sacramental em cuja legitimidade acreditou sempre, ninguém neste mundo tem o direito de depreender que tivesse tacitamente abraçado crenças, que até então sempre rejeitou.

"De um derradeiro ato de adesão com que alguém demonstre, ao deixar a vida, persistência em convicções que no decurso da vida inteira professou, coligir a presunção de uma renuncia implícita a ideias que, durante a existência toda, nao cessou de reprovar nunca, - é uma espécie de raciocínio que Deus deixou aos mentecaptos o monopólio.

ESCRAVO DOS CREDORES 57

"Mal procederia eu, sim, se por um pusilânime receio, não houvesse respeitado ao mais extremoso pai o cumprimento de um propósito que a surpresa da morte lhe atalhou.

"O catolicismo de meu pai era o velho catolicismo de Doel-linger. Nas criações dogmáticas do pontificado atual via êle uma degenerescência, armas de política temporal, como poderão averiguar os que lerem o prefácio da tradução. Execrava o ultra-montanismo como a um inimigo público. O Syllabus era a seus olhos a Carta de uma teocracia abominável. Cria nessas ideias mais que com certeza: com profundíssima paixão. Não havia questões em que o seu coração transbordasse tanto. Bem vêem, por conseguinte, os mercadores de escândalo que não é pela bitola deles que eu havia de julgar os últimos pensamentos de meu pai, daquele alto espírito de têmpera diamantina, que nem a hipocrisia poluiu nem a covardia dobrou nunca.

"Eu conheço a ponta dêsso estilete, que fere em nome do Evangelho. Ê sempre o mesmo aço. Ê o mesmo sistema jesuítico. É a mesma praxe de devassar câmaras de moribundos para extorquir à fraqueza abjurações inconscientes, ou transfigurar em conversões imaginárias atos comuns de piedade cristã. É a mesma arte com que, sob a invocação dos mortos, buscam dilacerar aos que em vida lhes foram mais estremecidamente caros.

"Felizmente, aqui baldam o esforço. E, se a alma de antigo batalhador da liberdade, cuja honra é a minha sucessão única, tivesse voz audível aos vivos, seria para indigitar mais essa miséria como antegôsto do céu que certa seita pretende realizar na terra." (10)

Mais do que defesa, era uma proclamação: o filho continuaria a lutar pelas ideias de João Barbosa. Mas, ainda que não bastasse essa nítida tomada de posição, para congregar contra Rui os ultramontanos, havia, completando-a, a ação desenvolvida como representante do "Conservatório Dramático", (11) espécie de clube de intelectuais, em favor da representação, na Bahia, da peça "Os Lazaristas". De fato, enfrentando a intolerância dos que se batiam contra a exibição, dirigira-se Rui ao presidente da Província. Que importava reprovasse o drama "o princípio ultra-montaiio, o Syllabus, e a Encíclica de 1864, e o poder temporal do pontífice romano?" Não era direito de todo cidadão discutir tais temas? (12) Sem dúvida, dentro dos seus "princípios", Rui estava certo, e, mais do que isso, fiel aos ensinamentos de João Barbosa. A Igreja, porém, não perdoaria o católico liberal, insub-niisso aos dogmas. Muitos anos mais tarde, voltando os olhos

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58 A VIDA DE RUI BARBOSA

para esses passos da juventude, êle próprio, com amargura, assim lembraria as injúrias assacadas contra os seus sentimentos religiosos: "Essa exploração tem sido o flagelo da minha carreira política. Não me queixo. Lamento a profanação dos sentimentos desinteressados..." (13)

Agora, estava cheio de entusiasmo. E, em vez de queixar-se, dispunha-se a enfrentar bravamente os ultramontanos.

Um exame, tão rigoroso quanto possível a um espírito atribulado, mostrou-lhe ser esta a realidade: trabalhava muito, devia ainda mais, e ganhava pouco. Por mais que se esforçasse, dividindo as atividades entre o jornal, a advocacia, e o emprego na Santa Casa, o dinheiro estava sempre muito aquém do exigido pelos compromissos. Os juros acumulavam-se incorporados a novas dívidas contraídas para saldar as vencidas em cada mês, e Rui submeteu-se então a severas privações e enérgica fiscalização das próprias despesas. Entretanto, nada bastava para cumprir aquele penoso dever filial.

Assim passou-se mais um ano. Embora nada lhe houvesse acontecido de mal, também em nada melhorara a sua sorte. Aliás, às suas vitórias correspondiam sempre derrotas. Se, por exemplo, podia alegrar-se por ter sido eleito presidente do Conservatório Dramático, por outro lado afligia-o a saúde da noiva.

E, mal despiu o luto do pai, a morte veio amargurar-lhe novamente o coração. Quando se festejou o Natal, tendo Maria Rosa sucumbido em 8 de dezembro, ele estava desolado. Parecia do seu destino ver desaparecer as pessoas a que se apegava. Tinha vinte e seis anos e, desde a adolescência, tivera sempre cheio ou seu cálice de sofrimento. Maria Rosa falecera tísica.

A perda da noiva inspirou-lhe uma poesia cheia de dor. "Densa tristeza me escurece a mente", escrevera. Como sempre, maus versos. Exprimiam, porém, o "penoso estertor" em que se lhe debatia o espírito diante dessa provação.

Assim como sucedera por ocasião do falecimento de João Barbosa, o rapaz de exagerada sensibilidade ficou abatido, desgostoso da vida, mas o conselheiro Souto, que nunca se casara, achava aquilo uma pieguice. Ainda uma vez levou-o para casa, procurando reanimá-lo com pragmáticos conselhos sobre amor. Toda a sua filosofia de homem prático, e acostumado a tratar com as mulheres, se resumia numa frase frequentemente repetida para encorajar o jovem melancólico: — "uma paixão mata outra'. Tinha razão. Rui necessitava de afeto; um grande afeto, onde

ESCRAVO DOS CREDORES 59

se sentisse seguro, e ao abrigo das intempéries. Agora, porém, o tímido estava desamparado.

NOTAS AO CAPITULO V

(1) Cf. Luiz António, "Apontamentos" já citados. (2) Carta do Cons. Dantas a Rui, do 9 do dezembro de 1874, in

Arq. C. H. B., e na qual diz sobre João Barbosa: "Perdi um amigo a quem muito queria e por quem era muito tumulo".

('!) Cf. caria de Bui ao cons. Albino B. de Oliveira, em 1!) de dezembro ile I87.r>, iu "Mocidade o Kxílio", p. 81.

(4) Cf. carta citada de ]í) do dezembro de 1875. Convém notar que no Inventário de João Barbosa não foram incluídas todas as dívidas, figurando npriuiN a nlralilas em estabelecimentos bancários.

(8) Cf. ilide, de Itiil Senado, em 1.1 de outubro do 1896, em res-pMla D Cénitr /uniu.

(6) Nll IllVhlltárlo de Judo HIIIIIONII, que existe, cm original, no Arquivo Publico (IH Hlllllll, tmlA II petlcflo de Hm, de 2 de junho de 1875, e na qual rnquerrili l.°) ll(l|udlcnc»n dos bens para pagamento das despesas mortuÁrlim; 2.°) CMNHO n Irinli da escrava Itutli; 3.°) Desistência dos direitos de credor du IrinA pcliiN dividas, que resgatara.

(7) Itul foi nomeado para a Santa Casa da Bahia em 15 de dezembro de 1874, conforme se v^ do oficio do dia seguinte, assinado por Cincinato Pinto da Silva, o que se encontra no Arq. C. R. B. Da correspondência de llui, nu exercício dessas funções, existem, no arquivo da Santa Casa da llnliia, os originais de alguns bilhetes.

(8) llui, na resposta a Luiz António publicada no "Diário da Bahia", di' M de agosto de 1878, trata do assunto.

(9) No folheto existente na Casa de Rui Barbosa, colocou Rui, abaixo do pseudónimo de "Febrônio", o nome do pai: — Dr. João J. Barbosa de oliveira. Como curiosidade bibliográfica, convém notar que embora traga na capa a data de 1875, que deve ser exata, no ante-rosto traz a data de 1871, o que talvez sirva para provar que já estava impresso por ocasião da morte de João Barbosa, conforme afirma Rui. Entretanto, o sr. Homero Pires, apesar da asserção de Rui, informa que a tradução foi "publicada I>(!<> lillio" (V. "Água que corre da água que já correu", in "Diário Carioca" de l(i de agosto de 1942.) A tradução, bem como ao ofício de Rui sobre ix representação de "Os Lazaristas", refere-se, em carta do Recife de 25 ile outubro de 1875, Rodolfo Dantas, e na qual diz o seguinte:

"Mandaste-me tarde os folhetos de Imaculada Conceição — poucos dias IIilcs de encerrar-se a Academia. Todavia, já tenho passado uns 40 e conto

que te levarei uns 100 e muitos mil réis. No mesmo dia em que recebi tua segunda carta (anteontem) fui

piocurar o Aprígio, mas não o encontrei; ontem renovei sem melhor sucesso ,i mesma tentativa. Hoje porém cuido achá-lo inevitavelmente.

l)ou-te um aperto de mão: a tua resposta é digna de ti. Indo quanto deu-se aí acerca dos Lazaristas foi aqui imediatamente

pii lil içado, antes mesmo que me escrevesses. Não só na Província como no t nl cio Recife. O teu procedimento conquistou muitas simpatias. Adeus meu caríssimo Rui. Não há mais tempo." Outros pormenores sobre o

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60 A VIDA DE RUI BARBOSA

upisódio podem ser encontrados em Luiz Viana Filho, Rui & Nabuco (Rio, 1949), pgs. 108-115.

(10) Cf. original existente no Arq. C. R. B. (11) Rui entrou para o Conservatório Dramático, segundo se lê no

"Diário da Bahia" de 24 de maio de 1873, no dia 22 do mesmo mês e ano, sendo admitido justamente com Bruno Seabra, João Neiva, c Raimundo Mendes Martins. , . . . A . ,

(12) A petição de Rui ao presidente da Província, Luiz António da Silva Nunes, é de 15 de setembro de 1875, e está publicada no volume "Correspondência Intima", p. 43.

(13) Cf. Rui Barbosa, "Srs. Eleitores Baianos , in Diano da Bahia dr 11 de setembro de 1892.

VI — M A R I A A U G U S T A

Desde que <i enroiilrci tomou-se ela o princípio e o fim da minha, exisléveie.

I t t i l .

O conselheiro Souto, embora dêlo ainda se contassem algumas aventuras, chegara à idade em que seria temerário

pensar no próprio casamento. Talvez por isso mesmo gostava de promover aproximações entre moças e rapazes da sua amizade, pelo prazer de vò-los, depois, unidos pelo matrimónio. Na sua casa de solteiro muitas vezes haviam-se reunido grupos de mocinhas em torno de Castro Alves, para ouvi-lo declamar as ^suas poesias. Desde quando estivera na Europa, Souto adquirira estes hábitos elegantes de receber, e a idade não o havia feito abandoná-los. /

Entre as jovens das suas relações nenhuma, porem, gozava dele as preferências de Maria Augusta Viana Bandeira, que as pessoas mais íntimas chamavam apenas de Cota. Deliciava-o ouvi-la ao piano, acompanhando as árias clássicas cantadas pela irmã mais velha, Adelaide, casada com um alemão corretor de títulos, João Dobbert. As duas irmãs formavam um par alegre, c onde estivessem era certo não ficar ninguém triste. Tocavam, cantavam, organizavam jogos de prendas, promoviam diversões adequadas aos salões, e em roda delas logo se formava um círculo de admiradores. Muitas vezes o conselheiro Souto dissera a Maria Augusta desejar arranjar-lhe um noivo.

A ocasião pareceu-lhe oportuna para realizar essa vontade. Hodolfo Dantas voltara formado do Recife, e tudo indicava ter diante de si um futuro vitorioso. Rui, ainda acabrunhado pelo desaparecimento de Maria Rosa, precisava pôr em prática aqueles sensatos conselhos do amigo experiente, a fim de encontrar novamente o encanto de viver, e qualquer deles, portanto, podia ser o candidato procurado para a mão de Maria Augusta. Isto mesmo Souto disse à sua querida amiga.

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62 A VIDA DE RUI BARBOSA

Maria Augusta, filha de modesto funcionário público, Alfredo Ferreira Bandeira, pertencia à velha família baiana dos Ferreira Bandeira. Vários deles haviam enriquecido e mandado os filhos estudar em Londres ou Heidelberg. Com o tempo conseguiram também títulos de nobreza, pois a prosperidade alcançada nos engenhos de açúcar, base económica da região, era bastante para trazer aos felizes proprietários disputados brazões, que logo faziam gravar nas louças e nas librés dos pagens. Contudo, nem todos os Ferreira Bandeira atingiram a abastança. E a família, por esses motivos económicos, dividira-se em dois ramos: os ricos e os pobres. Isso era suficiente para os distinguir e separar. O pai de Maria Augusta figurava entre os últimos.

Ela, porém, não se julgava menos feliz por Jsso. Cosia os seus vestidos; era bem recebida nos salões elegantes da cidade; sobretudo era muito "chie". Não fazia muito que em certo baile na casa de Pereira Marinho, milionário casado com a formosa Helena Marinho, fora proclamada a mais bem vestida das convidadas. Todas deviam apresentar-se com trajos de chita, e havia prémios para as que se distinguissem. A vitória, tão desejada entre as senhoras, foi motivo de inveja, e várias delas não compreendiam como pudera caber a uma pessoa pobre. Mas, em verdade, nenhuma tinha o donaire de Maria Augusta. O porte esguio descansava no andar gracioso e altivo, o a cabeça mantinha-se sempre em posição garbosa. À primeira vista a atitude parecia irritante, mas nela era natural, e dava-lhe ar de grande dama. Maria Augusta era extremamente atraente.

Ambos os rapazes, Rui e Rodolfo, lhe foram apresentados. Como escolher? Aquele era baixo, feio, calado, pobre, mas as suas roupas estavam sempre bem cuidadas. O outro conservava as maneiras do nascimento feliz, não lhe faltava uma palavra galante para as senhoras, e tinha o perfil de um belo homem. Nunca se preocupava com mesquinhas questões de dinheiro, e gastava mais do que podia.

Mas, o coração tem as suas razões. . . Depois de permanecer indecisa algum tempo, Maria Augusta acabou simpatizando com aquele rapaz feio e pobre. E o romance começou como começam todos os romances. Contudo, a amizade entre Rui e Rodolfo continuou a mesma.

Como era seu costume, a paixão de Rui foi rápida e violenta. Depois de longos anos de sofrimento o coração inquieto parecia encontrar novos motivos para viver. O amor aplacava as feridas duma caminhada árdua e desesperada, e como um navio lançando

M A R I A A U G U S T A 6 3

a âncora nas águas tranquilas do porto depois da procela, êle gozava singular sensação de segurança. E essa impressão de ventura não tardaria a refletir-se na poesia do jovem apaixonado:

"Agora sou feliz! Sinto o céu dentro de mim Que calma ao pé de ti Concentras-me, querida, A vida toda aqui!"

Voltara, assim, a vibrar a lira amorosa, que adquiria o mesmo tom cálido de outros tempos. Maria Augusta tornara-se a sua musa, e a ela eram dedicadas estas estrofes:

"Se lânguida e dormente Pendes ao seio meu, Do teu suavemente Exala-se-me o cóu."

"Quem 6 que não te anela Meu génio tentador? Dormir, dormir, oh! bela, Dormir, e sempre, amor!"

Agora o passado era o passado: o rapaz ardia num amor incontido. Ela, porém, bem mulher, não tinha tanta pressa; e quando o jovem sôfrego lhe falou em casamento, logo atalhou-o com malícia feminina: "O senhor vai sacrificar a sua carreira, casando-se com moça p o b r e . . . " Mas, que importava a carreira? E o conselheiro Souto assistiu à vitória do seu plano: Rui e Maria Augusta ficaram noivos. 1876 começava bem.

O noivo não se afeiçoou, porém, apenas a Maria Augusta. Encontrara também na família dela o lar, que desejava ter, e que a morte ceifara tão impiedosamente. Em cada um dos futuros parentes via um daqueles arrimos afetivos, cuja falta tanto o afligira. E à boa D. Maria Luiza, mãe de Maria Augusta, êle, com ternura filial, chamava de Mamãe.

No entanto, pondo uma nuvem no episódio íntimo e feliz, os inimigos de Rui não se eximiram de intervir no assunto, advertindo ao pai da noiva sobre o "perigo" a que expunha a filha. E o próprio Rui, cheio de indignação, escrevera a Maria Augusta: "Eu sei que a ralé do Monitor, a gente mais que infame do Luiz António, canalha que não me envenena porque não pode, mas matou minha Mãe, encheu de desgostos os últimos dias de meu Pai, e emprega-se aí na Bahia em desconceituar tudo quanto tem

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64 A VIDA DE RUI BARBOSA

honra num e noutro sexo, eu sei que esses meus, graças à Providência, figadais inimigos, tiveram a insolência, que só com um braço de ferro se retribuiria, de censurar a Papai face a face o ter me concedido a tua m ã o . . . " (1) Era a gota de fel num mar de ventura.

e e «

Brites, nesse ano, casou-se com um negociante. (2) Rui pre-parou-lhe o enxoval. Deu-lhe peças de linho, o seu esguião, e o seu madrasto. Entretanto, não significava que a sua situação fosse melhor. Para isso, com a garantia de Manuel Dantas, tomara de empréstimo oitocentos mil réis. (3)

Tudo agora na vida de Rui girava em torno duma ideia fixa: ganhar dinheiro, para poder casar-se. Aspiração natural num jovem apaixonado. Mas, como? A advocacia — única esperança — não se anunciava promissora, pois, talvez propositadamente, com o fito de fazer-lhe mal, espalhara-se ser a sua erudição prejudicial às causas que patrocinava, tornando-as complexas.

Desse modo a situação tornou-se angustiosa. Êle se impacientava. Êle, que tanto se habituara a esperar. No horizonte só havia dívidas. Enchiam todo o cenário, cresciam, multiplica-vam-se como visão fantástica. Mas, Rui já não estava só. Insensivelmente, quase som ser percebida, Maria Augusta começara o seu trabalho e, provavelmente, ninguém proporcionara ainda àquele espírito angustiado uma tal confiança em si mesmo. E, embora senhoras invejosas dissessem às vezes não ser ela a mulher ideal para um intelectual, a verdade era bem diversa. Maria Augusta ajustava-se admiravelmente ao noivo tímido, e confiava poder conduzi-lo à vitória.

Como acontece em geral com as mulheres Maria Augusta possuía o senso da realidade. Coisa importante na companheira de um idealista, sempre mais preocupado em ler e coordenar doutrinas políticas, do que em encarar a vida tal qual é. Ela admirava o talento e a força de vontade do noivo, mas julgava-o incapaz da audácia de uma decisão. E rapidamente, compreendendo a necessidade de imprimir rumo inteiramente novo à existência de Rui, resolveu agir. Audaces fortuna juvat . . . Contudo, a primeira condição seria sair da Bahia, pois, pensava, a Província jamais passaria dum campo de combates estéreis, de pequenos ódios e invejas mesquinhas, onde a vida se escoaria entre inúteis discussões com o tio Luís António, sempre pronto a usar o seu prestígio para colocar obstáculos no caminho do so-

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brinho. Este, aliás, era o primeiro a saber disso, e não fazia muito que escrevera ao primo Albino: "O falecimento de meu Pai não extinguiu os ódios que lhe amarguraram a derradeira quadra da existência. Todos esses rancores herdei-os eu gratuitamen-t e . . . " (4)

Não tardou que Rui também se convencesse da necessidade de emigrar. Devia procurar na Corte a oportunidade, que até então lhe fugira teimosamente. Na Capital reuniam-se os grandes chefes do partido, publicavam-se os maiores jornais, agitavam-se as questões mais importantes, e funcionava o parlamento com os debates, que dividiam a opinião do país. Também o centro dos liberais estava aí: o Clube da Reforma, (5) onde os correligionários ouviam com emoção as palavras de Zacarias, Nabuco, Francisco Otaviano, e Silveira Martins. Êle também poderia conviver neste círculo. Caminharia ao encontro desse grande público, ou melhor, Maria Augusta empurrava-o para esse grande público.

Não era, porém, possível fazer qualquer coisa sem consultar o conselheiro Albino, muito cioso das suas prerrogativas de patriarca. Rui escreveu-lhe, pedindo a opinião sobre a conveniência de partir, e acrescentara ser o conselho dos seus "mais experientes e melhores amigos". (6) Realmente, exemplos palpitantes provaram como outros, também mal sucedidos na terra natal, conseguiam triunfar no ambiente generoso da Corte.

Entretanto, emigrar custava-lhe muito. De certo modo representava abandonar tudo quanto construíra durante anos, decepando de um só golpe todos os laços, que o prendiam ao passado. Devia deixar os amigos, ficar longe de Rodolfo, o seu inseparável Rodolfo, e estas ideias não lhe agradavam. Por vezes, as esperanças de êxito eram menos fortes que os temores da marcha para o desconhecido. O tímido vacilava. Mas, reagia. Êle estava firmemente disposto a ser "profeta em algum ponto do mundo". (7)

Por fim, Maria Augusta venceu a partida. Rui obteve uma licença do emprego na Santa Casa e resolveu queimar o passado. Mas, conseguiria êle, como Fénix, ressurgir das cinzas? Maria Augusta estava certa disso.

Depois do balanço nas parcas economias, Rui verificou serem insuficientes para viajar. Ainda nisso Maria Augusta interveio e o conselheiro Souto emprestou-lhe o dinheiro necessário.

Enfim, ia partir. Acompanhado dum escravo, como se fosse um gentil-homem, Rui, em maio, embarcou no "Habsburg". (8)

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66 A VIDA DE RUI BARBOSA

E, despedindo-se do companheiro em busca de "outro teatro", os correligionários, pelo "Diário da Bahia", assim registraram a separação: — "Em toda a parte o apóstolo convencido a que já tanto devem as ideias liberais, continuará prestando seus valiosos serviços, a que o partido não deixará de corresponder fazendo justiça". (9) O apóstolo! A muitos, pois Rui tinha então vinte e seis anos, poderia parecer demasiada a expressão. O apóstolo! De qualquer modo, valia como o julgamento dos mais íntimos, que, assim, talvez se antecipassem ao futuro.

Nada o fêz sofrer tanto quanto a separação de Maria Augusta. Quatro dias durou a viagem. E cada um deles foi marcado por uma carta, exprimindo a angústia do jovem apaixonado e ardente, cheio de vontade, e que deixava tudo, levado por uma esperança de vitória. Correspondência lírica, amorosa, a assinalar suave interregno na vida áspera do lutador, e que resume os dias solitários do viajante. Rui a Maria Augusta:

"Bordo do Habsburg, 25 de maio, às 7 e Vz da manhã. Maria Augusta, minha muito querida noiva. Passou a primeira noite desta amarga ausência, e o primeiro pensamento meu, ao amanhecer, não pode ser outro senão buscar conversar contigo. Já é uma consolação a tão dolorosas saudades. Há pouco perdi a terra de vista, mas minha alma não perdeu a vista de ti. Tua imagem, tua alma estão em mim como na presença. Aqueles abraços de despedida, longos, puros, estremecidos abraços, cheios de pranto e de soluços, ainda não me sairam, nem sairão nunca do coração. Quantas emoções querida noiva! e quão acerbas! Meus olhos buscaram-te ontem, ao sair de tua casa, e não te viram. Mas ouvi-te, ouvi a explosão do teu pranto, que de longe me dilacerava ainda! Noiva, formosa flor de minha vida, não te abandones mais ainda a um sofrimento que nos mataria a nós ambos." E continuava: "Hoje, quando a tarde vier no meio da infinita melancolia do oceano, não terei mais a alegria inexprimível daquelas horas de confidências e expansão mútuas, em que, ao pé de ti, enriquecia todas as tribulações de minha existência, tão breve, quanto magoada. Logo que a noite cair com as suas sombras sobre o mar, meu coração abismar-se-á todo na dor dessas recordações."

No dia seguinte, a linguagem era a mesma: "26 de maio, às 5 VÍ da tarde. Aí vem, querida noiva, tão desconsolada e saudosa como as de anteontem e ontem, a noite de hoje." Contudo, para iluminar o sofrimento, Rui evocava agora alguma coisa que sempre lhe seria muito cara — o seu dever — e, acrescentava: "Vê,

M A R I A A U G U S T A 67

minha Maria Augusta, que muito poderosa deve ser a lei dos nossos deveres, para que eu me imponha a mim mesmo este sacrifício intolerável." E, retomando a nota amorosa, prosseguia: "Querida Maria Augusta, minha noiva, eu te amo muito, muito, ilimitadamente, indizivelmente, inexcedivelmente, de todo o meu coração, de toda a minha alma, de toda a minha vida. Teu nome, noiva formosa e pura, é o nome de minha mãe. Como ela iluminou os primeiros anos de minha vida, tu serás a estrela dos que me resta! Como ela foi o anjo da guarda do meu passado, tu serás o do meu futuro, e já és o do meu presente! Os sentimentos que ela semeou em mim tu os colherás."

Mais um dia fora vencido. Contudo, o que Rui não conseguia vencer era a crescente angústia da solidão, que o envolvia e dominava. E, ao terceiro dia de viagem assim se externava: "Estou só, querida noiva, só com as minhas recordações, e o teu amor! Ninguém que me entenda! Ninguém que me ouça. Ninguém a quem me seja lícito descobrir as angústias de um sofrimento, que às vezes me fere o íntimo d'alma como uma ponta de aço numa ferida viva! Que seria de mim, noiva do meu coração, anjo protetor da minha vida, que seria de mim, se não fosse a ideia de que me acompanhas de longe com as tuas saudades, com as tuas preces a Deus, que te há de ouvir, pela fortuna do noivo, atirado, entre tantas incertezas, a esta aventura, tão perigosa como o mar que me está cercando?"

Por fim, o navio aportou à Corte, onde Rui iria começar o que chamava a "aventura tão perigosa". E, ainda de bordo, à vista das altas montanhas, que circundam a cidade, escreveu à noiva: "Habsburg, 28 de maio, às 7 % da manhã. Maria Augusta, querida noiva do meu coração. Estamos, há uma hora, fundeados no Rio. Ainda não me deslembrei de ti um instante. Amo-te sempre mais." (10) Sem dúvida, o jovem tantas vezes batido pela vida, ardia numa paixão extraordinária.

No Rio, Rui hospedou-se numa pequena pensão de suíços, no Catete. (11) Os jornais liberais, noticiando a chegada do correligionário, referiram-se ao seu "robusto talento e dotes de tribuna." (12) E, como não queria perder tempo, Rui começou logo a trabalhar com o advogado Souza Carvalho. (13) Estava feita a vontade de Maria Augusta.

Manuel Dantas dera-lhe cartas de apresentação para influentes personalidades do mundo político, e, depois de instalar-se nos cómodos reservados pelo conselheiro Albino no palacete da Rua dos Inválidos, Rui foi procurá-las. O primeiro foi o senador Za-

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68 A VIDA DE RUI BARBOSA

carias. Zacarias era como essas espécies da fauna marinha em que é impossível tocar sem ferir-se. Tudo nele porejava sarcasmo, e os próprios colegas de parlamento temiam-no. E, mal concluiu a leitura da carta, disse-lhe com mordacidade: "O senhor é mais pequeno do que seu pai". (14) Rui nunca mais o procurou. Bem diferente fora o visconde de Paranaguá que o acolheu com afabilidade. O conselheiro Nabuco e Francisco Otaviano também o receberam com palavras animadoras. Para estes, Rui era, antes de tudo, o filho do infeliz e intransigente João Barbosa.

Em pouco tempo tornou-se conhecido nas rodas liberais. Frequentava A Reforma, e estava sempre apto a escrever sobre qualquer assunto. E, ao realizar-se, presidido pelo barão de Co-tegipe, o jantar em homenagem a Blest Gana, ministro chileno, os presentes puderam ver o dedo do gigante, que ferira uma das suas notas preferidas — a liberdade, inclusive a liberdade religiosa. (15) Isso, aliás, mereceu alguns reparos dum jornal — O Globo —, e Rui, em resposta, logo redigiu uma carta, estranhando partir a censura dum jornal, que publicava trechos do "Der papst und das Concil", obra que o cardeal de Westminster, lembrava Rui, marcara "com o estigma de libelo infame." Por fim, resolvendo não enviar a carta, fêz, publicar o discurso, que recompusera com o auxílio de Manuel Dantas Filho. (16)

Politicamente, porém, o seu melhor êxito foi proporcionado pelo artigo, que publicou na A Reforma, sobre os acontecimentos partidários na Bahia. Irritara os adversários, e estes fizeram-no xingar pela imprensa. Rui revidou o ataque (17) com a energia, que lhe era peculiar, investindo contra o barão de Cotegipe e o conselheiro Pinto Lima, importantes chefes conservadores. Nos círculos políticos comentou-se o fato. O rapaz tinha talento e coragem.

NOTAS AO CAPITULO VI

(1) Cf. carta de Rui Barbosa a D . Maria Augusta, em 9 de setembro, 1876, in Arq. C. R. B. Os versos acima citados existem em fotocópia in Arq. C. R. B., por gentileza do sr. Batista Pereira. São datados de 14 de março de 1876.

(2) Januário da Silva Lopes. (3) No "Diário" de Rui de 1876, in Arq. C. R. B., há, no dia 18

de fevereiro de 1876, a nota de haver tomado, para o casamento de Brites, oitocentos mil réis a Teixeira Queirós & Hasselmann, prazo de três meses e juros 10%.

(4) Cf. carta de Rui ao cons. Albino B. de Oliveira, cm 19 de dezembro de 1875, in "Mocidade e Exílio", p. 84.

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(5) No Clube de Reforma, fundado após o golpe de 16 de julho de 1868, que levara ao poder, contra uma camará liberal, o partido conservador, reuniam-se os mais prestigiosos chefes liberais.

(6) Gf carta de Rui ao cons. Albino ». de Oliveira, em 1.° de março do 1876 in "Correspondência", p . 14. Nela anuncia Rui o seu projeto de u à Corte, em maio ou junho, como, de falo. se realizou. À carta citada pôs o sr. Homero Pires a seguinte nota: "Não se realizou a experiência da proeitada viagem à Cor te ' . , , . , . , .

(7) Cf. carta de Rui ao cons. Albino Barbosa de Oliveira, k a mesma referida na nota anterior.

(8) Rui embarcou no dia 24 de maio de IH70 (9) Notícia publicada no "Diário da Bahia de 2r. de maio do 1876,

e transcrita na "A Reforma" de 7 de junho de 1876. (10) As cartas de Rui Barbosa a D. Maria Augusta acima referidas

encontram-se in Arq. C. R. B., por doação do dr. Batista Poro.ra. (11) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta em 29 de maio

de 1876, in Arq. C. R. B. Rui hospedou-se na Rua do Catolé, n. 1HO. (12) In "A Reforma", de 7 de junho do 187(5. (13) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 9 de 1Unho

' ' ' ^ H ) i nCm r qpelo dr . 'Tobias Monteiro. O cons. Dantas em carta de .<-, de junho de 1876, dirigida a Rui (in Arq. C R. B.) da noticia de ,á haver recebido cartas de Zacarias e Paranaguá, falando dele^

(15) Reali/ou-se o jantar a Guilherme Blest Gana no Hotel d fcuropa, cm 22 de junho de 1876. Presidido pelo barão de Cotegipe, nele discursaram, além deste, Quintino Bocayuva, o visconde de Rio Branco Miranda Azevedo, Ataliba. Gomensoro, Tomaz Alves, Abílio César Borges e Rui

a r n e í O discurso de Rui a Blest Gana é dos menos conhecidos nfo figurando em nenhuma das coletâneas existentes. Publicou-o O Globo , em 28 de junho de 1876. Está datado de 26-6-76. No arquivo da Casa de Rui Barbosa está o autógrafo da carta de Rui ao que nos referimos, mas que certamente, não chegou a remeter ao destinatário, pois alem de nao estar publicada, o próprio texto da nota com que Rui antecedeu a publicação do discurso confirma aquela assertiva. Embora nao mencionado na ocasião da divulgação do discurso pelo "O Globo de 28 de junho de 1876, o nome de Manuel Dantas Filho figura no original da carta de Kui acima referida. , , . . . . , . ,

(17) O artigo de Rui, na "A Reforma", sob o titulo Negócios da Bahia", foi publicado cm 28 de junho de 1876. Em 20 de julho do mesmo ano inseria "A Reforma" uma carta de Rui, revidando ataques do Diário do Rio", que o mandara "xingar". Assim começa a carta de Rui: l.i a pernóstica, insípida, c descomposta parlenda. . ."

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VII — "O PAPA E O CONCILIO"

O catolicismo de meu pai era o velho catolicismo de Doellinger.

Rui. (1874)

^ viagem produziu efémero bem-estar. Mas, passado o primeiro entusiasmo pela metrópole, Rui novamente mergulhou na

melancolia. Outro poderia deixar-se fascinar pela vida absorvente da Corte, tão cheia de seduções para os homens da sua idade, sobretudo aqueles vindos das Províncias. Êle, entretanto, man-teve-se indiferente e taciturno.

Afastados do poder, os seus amigos em quase nada o podiam ajudar: devia conquistar por si o seu lugar ao sol. Coisa difícil num grande meio, para onde, de todos os pontos do país, afluíam centenas de jovens como êle, também em busca de vitórias retumbantes. A imaginação voltava-se, então, para a Bailia. Lem-brava-se das pessoas queridas e distantes, o conselheiro Souto, os Dantas, e a sua adorada Maria Augusta. As saudades torna-ram-no ainda mais afetivo. E, apesar dos cuidados do conselheiro Albino e da boa camaradagem com Jacobina, o antigo companheiro de João Barbosa no parlamento, cujos negócios o haviam feito abandonar a política, procurava compensar através de incessante correspondência as apreensões de isolamento. Emigrar era doloroso.

« 9 V?jk,? D a n t a s estava morto de saudades, e assim escrevia ao "filho": "Meu Rui. Tuas cartas têm tido para mim um valor inestimável sob muitos pontos de vista. Elas e só elas, por enquanto, podem diminuir um tantinho o vácuo extraordinário que sinto com a tua ausência. Como estás? Deus te proteja e cada dia vá aumentando-te as probalidades de conseguires aí o que te desejo como a um filho." (1)

Mas, por enquanto, a realidade estava bem distante dos votos do velho Dantas. Em lugar da vitória, Rui encontrara o desengano, e isso lhe punha no espírito uma nota pungente de amar-

0 PAPA E 0 CONCILIO 71

gura. "Cada vez me vou convencendo mais, escreveu então a Maria Augusta, de que nem a dedicação ao trabalho, nem a honestidade, nem a boa reputação, nem a simpatia de admiradores desinteressados são neste mundo meio de prosperidade para ninguém." (2) E alguns dias mais tarde: "Cometo, reconheço, o erro imperdoável de acreditar que o trabalho incessante, ardente, iluminado por uma pouca luz da inteligência, mas por um estudo infatigável, nutrido por uma força de vontade, a que, não hesito em dizer, não reconheço superioridade em ninguém, aviventado por um amor que me centuplica as forças, fosse meio de vida em minha terra. Vejo agora que é meio de morrer de fome." Depois, acrescentava: "Estou resignado a este suave destino." (3) A verdade, porém, é que ninguém melhor do que êle próprio sabia que jamais se resignaria á derrota, ou ã transigência.

Nele, desde o amor próprio ã flor da pele até à paixão pelas grandes causas, tudo o levava a ser sempre um batalhador inconformado. Desde a adolescência conhecera a luta e assim a definia: — "luta que me embebe de fel as mais caras afeições da alma, que rapidamente me vai esgotando a vida, e que me consome prematuramente uma mocidade, que nunca teve uma hora de descanso à sombra de uma esperança satisfeita." (4)

Realmente, ainda não lhe tocara senão o sofrimento. Mas, agora, uma fada benfazeja surgia dos seus sonhos: Maria Augusta. E bastava para afogá-lo em felicidade. Cada carta era um mar de bem-aventurança, e Rui lhe escrevia comovido: "Tuas cartas são como a tua conversa, cheias de naturalidade, sensibilidade, e graça." (5) Ou então, agradecido à terna correspondência: (6) "Ela tem para o meu coração mais encantos que a mais suave música, a mais deslumbrante poesia, a eloquência mais prodigiosa." São assim os enamorados. E Rui, dentre eles, não fazia má figura: amava loucamente.

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Desde a morte do pai, Rui tomara o hábito de anotar em pequenos cadernos todas as suas despesas, até as mais insignificantes. Eram o espelho das suas dificuldades financeiras. Aí, diariamente, registrava o porte das cartas remetidas aos amigos ausentes. Para Maria Augusta, que tanto sofria com a separação, era comum expedir duas no mesmo dia. E Rodolfo, como zeloso confidente, mandava-lhe notícias sobre o que ia correndo na Bahia. " . . . as saudades que temos de ti aumentam sempre. Ontem estivemos até meia hora depois da meia-noite em casa do Dobbert . . . escusado é dizer-te que foste o tema predileto, cons-

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tante, mil vezes lembrado da conversação." E logo adiante: "Cota está magrinha. Todavia ela mostra-se animada pela esperança da tua volta. Dou-te muitos abraços por tuas últimas bri-Ihaturas: a do brinde ao Chile e do artigo para a "Reforma". Estiveste irrepreensível e admirável em ambas. Hás de ser sempre um demónio". (7)

Expressão injusta. Rui nunca seria um demónio. Nada tinha de diabólico, e era até um tanto ingénuo. Faltava-lhe, principalmente, malícia. Como poderia o idealista impetuoso fazer cálculos sobre a conveniência duma atitude? Não, êle era apenas um demónio de inteligência. Mas, infelizmente, esta ainda não o ajudara a ganhar o dinheiro, que tanto queria, pois faltava-lhe jeito para isso. Por mais que se procurasse corrigir, Rui, como borboleta encandeada, logo voltava à queimar as asas na chama do ideal, esquecendo-se, entre os livros e o sonho, que viera, se não para enriquecer, pelo menos para conseguir algum pecúlio.

O desalento chegou a dominá-lo. A vitória tardava, e dia a dia esgotavam-se os recursos trazidos da Bahia. Rodolfo aconse-lhava-o, porém, a prosseguir:

"As tuas últimas cartas não deixaram de sobressaltar-nos um pouco, e cm conversa disse-me meu pai, que enquanto êle não o fizesse, eu te escrevesse dizendo que se a tua estada aí por algum tempo mais depender de recursos financeiros, deverás nesse caso usar sem constrangimento do crédito que, segundo comuni-eou-me o Dobbert, o Souto aí abriu-te.

Já agora deves tentar o que mais puderes na Corte, e usando do crédito do Souto, nenhum mal farás, atentas as tuas e as circunstâncias dele Souto." (8)

E, animando-o, insistia em outra carta: "Aeho-te desanimado, e alguém (seria necessário declinar o nome de Maria Augusta?) além de mim não pode gostar disto. É preciso que tenhas mais coragem e mais esperança: sei que tuas circunstâncias são muitíssimo críticas: é necessário, porém, que não desesperes senão quanto fôr inevitável a ocasião". (9) Êle continuaria. Entretanto, se do campo económico passássemos para o literário, era bem diverso o panorama. As cartas do conselheiro Dantas, por exemplo, revelavam esta diferença. " . . . Que te direi? Sabes que tuas glórias, aqui para mim, e para esta minha família, cá desse teto, são festejadas como as dum filho, as dum irmão e as dum neto. Eu tinha a certeza de que assim aconteceria e por mais que subas no conceito geral aí, não serei surpreendido, porque te conheço". (10) Tsso podia encher de alegria o espírito ambicioso de glórias,

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e que sonhava com Aquiles, mas não acalmava o coração inquieto do jovem apaixonado.

Durante dois meses, Rui nada ganhou. Somente no fim de julho teve a satisfação de registrar no seu diário de contas: "Advocacia: honorários por uma consulta e petição (primeiro dinheiro que ganhei no Rio) Rs. 10$0()0". Afinal, o advogado erudito conseguira um cliente. Dez mil ré is . . . Quantia bem modesta. Mas, na ocasião, representava um tesouro.

A estada no Rio de Janeiro novamente o pusera em contato com Saldanha Marinho. Saldanha era então dos nomes mais conhecidos e discutidos do país, sobretudo devido aos artigos em estilo bíblico, escritos durante a questão religiosa sob o pseudónimo de Ganganelli. Depois do manifesto de 1870, Saldanha entrincheirou-se num jornal — o "Diário do Rio de Janeiro" — cercado por fogoso grupo de republicanos. Um núcleo de atrevidos e irreverentes rapazes, quase todos antipapistas. Vários dentre eles haviam sido companheiros de Rui, na Loja América, e, embora êle tivesse abandonado definitivamente a maçonaria, recebiam-no ainda como um "irmão". Rui admirava Saldanha e considerava a sua ação "infatigável, admirável, heróica". E aos poucos, foi-se integrando com aquele círculo furiosamente contrário aos ultramontanos.

Em julho, Rui inscreveu-se publicamente entre os adversários do Papa. A maçonaria resolvera abrir um curso de conferências populares sobre a liberdade religiosa, e a êle fora confiada a sua inauguração. Oportunidade magnífica. E, com bom humor, êle participou a Maria Augusta: "Deus me ajude a não sofrer algum espicharetur." (11) De fato, Deus não o desamparou, e a conferência, realizada no "Grande Oriente Unido do Brasil" sobre "A Igreja e o Estado", alcançou êxito fora do comum. (12)

Logo na manhã seguinte, como se estivesse ávido de enviar boas novas, Rui escreveu longamente à noiva, dando conta do triunfo extraordinário. Breve sorriso da vitória, que o jovem apaixonado assim descreveu à sua bem-amada:

Corte, 22 de julho de 1876, às 5 horas da manhã. Maria Augusta, minha muito adorada noiva: Quero que todas as minhas emoções, todas as minhas alegrias

sejam primeiro tuas que de ninguém. Não cuides haver, no que te vou referir, o mínimo vislum

bre de vaidade. Não, eu te afianço. Há apenas a satisfação, uma satisfação

infinita, de ver que o horizonte parece querer clarear agora para

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74 A VIDA DE RUI BARBOSA

nossa felicidade comum. É também só a ti e a nossa família que eu julgo de meu dever relatar, sem falso acanhamento, um fato, que eu penso vai contribuir imensamente para a aproximação da nossa aliança. A estranhos, não; porque sem conhecer-me, podem fazer de mim um juízo neste ponto injustamente desfavorável.

Aludo, minha querida Cota, à minha anunciada conferência popular, que efetuou-se esta noite. O que se deu comigo nela, a fortuna que Deus me deparou foi de tal ordem, que, se estivesses presente, vendo, tão imerecidamente, é certo, honrado, mas enfim tão honrado o teu noivo, tu, que, tão sem motivo, te ensoberbeces de mim, enlouquecerias de prazer. O que sucedeu, minha cara Maria Augusta, é indescritível, é inimaginável. Foi, de certo, Deus que ouviu tuas preces; porque eu absolutamente não merecia tanto! Não sei que aura me soprou, que tudo cor-reu-me prodigiosamente. Tinha tosse, e não tossi. Estava um pouquinho rouco, e a voz, com o esforço, em vez de abafar, dila-tou-se. A conferência devia ser de uma hora; e eu falei duas, no meio de um auditório imenso, em cujo seio havia, até, diversas senhoras, sem que uma só pessoa partisse, sem que a atenção afrouxasse um momento, sem que houvesse um murmúrio desa-provador, e, afinal, estranharam-me, ainda, que eu tivesse terminado tão cedo, que não tivesse concluído o que planejara dizer. Pintar-te o que se passou é impossível. O auditório ria, chorava, delirava, indignava-se, batia palmas acompanhando servilmente todas as emoções interiores de minha alma, profundamente apaixonada naquela ocasião pelas ideias que eu pregava. Dir-se-ia que o diabo entrava-lhes no corpo. Quando o discurso terminou, às nove da noite, aquele auditório inteiro atirou-se ao pobre do teu noivo, a abraçá-lo, a apertá-lo, a machucá-lo, a beijá-lo como a uma criança. Escapei de boa, naquele tumulto indizível!

Todos vinham apresentar-se-me pelos seus nomes, com os maiores protestos de admiração. E convém saberes que não era poviléu; era a melhor gente daqui. O que me diziam, o como me exaltavam tão enormemente exagerado e monstruoso era, que a ti mesma repugna-me repetir. Alguns estreitavam-me longamente e tomavam, e tornavam, sem uma palavra. Outros, como Saldanha Marinho, cobriam-me do beijos enternecidos, enamorados como a uma moça bonita. O Souza Carvalho, gago de já não poder mais, dizia-me: "Foi o maior triunfo concebível!"

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Em seguida, com modéstia, embora não houvesse exagerado, êle depunha aos pés de Maria Augusta a láurea da vitória:

"Eu só dou graças a Deus e a ti, a ti, minha noiva; porque — eu te juro! — se alguma inspiração houve, nas pobres coisas que eu disse, devo-a principalmente à tua lembrança, que, durante o meu discurso todo esteve fixa em mim, ao pensamento vivíssimo de ajuntar por um esforço extraordinário as minhas limitadas faculdades, para apressar a nós ambos a felicidade tranquila e pura, que, por ti e contigo, é hoje a minha aspiração única. Bem vês, pois, que não há em mim orgulho. Se eu não estivesse habituado, pela ação deprimente de uma vida sempre contrária, a ni'io tilar neste mundo nada senão o meu dever, poderia cair na tolice de cníatuar-inc; porque, francamente, havia de quê. Mas Min fiicupiiz dessa meninice. Conheço o nada que valho." (13)

Curto ora que, por momento, eslava radiante. Os aplausos Imvluin actaliniuío o coraçuo torturado, e no dia imediato, Rui, dlrlglndo-No n nolvii. Insistia na mesma nota, entre satisfeito e humilde: "Só hn uma vaidade em mim que eu confesso: é a de ser teu noivo. Dizem por aqui mil tolices a meu respeito. Afiançam <pie eu consegui o que nenhum falador conseguiu nunca no Itio de Janeiro. O Souza Carvalho e outros apregoam-me o primeiro orador, exaltam-me acima de todos. Bem vês que tudo isso é impossível. Digo-te apenas porque te há de ser agradável." li, perfeitamente consciente da reação, que a conferência provocaria entre o clero, acrescentava: "O Apóstolo que é o periódico dos padres, há de me descompor." (14) Não se enganava. Passados alguns dias, o jornal católico propunha que Rui fosse processado. Mas, que lhe importava o que diziam os padres?

Ao calor daquelas aclamações entusiásticas Rui poderia imaginar que a fortuna começava a mudar. Ilusão passageira. Nos meses que se seguiram deve ter percebido a distância que separa o êxito intelectual da prosperidade financeira, e isso era insuportável para o namorado ardente, que, acima de tudo, desejava casar-se o mais depressa possível.

As dificuldades económicas pareciam levá-lo ao desespero, e extravasava agoniado: "Luto, afadigo-me, mato-me, e sempre a mesma estrela ruim a perseguir-me!" Ou então: "Não imaginas a frieza, o egoísmo glacial desta gente aqui." (15) As frases dão a medida do quanto sofreria naqueles dias de solidão, distante da mulher amada, e entregue à sua própria sorte, numa luta sem ti égua, e que se afigurava sem fim. Contudo, não se inferisse daí que fosse capaz de deixar vencer-se. Agora, como sempre, parecia

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orgulhoso das próprias provações, e, confiante, dizia a Maria Augusta: "Não sou fácil de desalentar, não. Pelo contrário, tantas tempestades, minha Cota, têm passado sobre esta cabeça e neste coração que se Deus não me tivesse dotado com uma energia de vontade superior, muito há que eu seria um homem perdido. Tu ehamas-me invencível." (16) Invencível... E tinha razão — êle não a decepcionaria.

Excetuados os triunfos intelectuais, — pobre recompensa para um trabalho insano — o mais, para Rui, eram dissabores em meio aos quais Maria Augusta, e tudo quanto pudesse dar ao moço enamorado a impressão de estar menos longe dela, representavam a réstia de luz a dourar-lhe a juventude tão duramente flagelada pelo destino. Uma carta, algum objeto, uma simples notícia lembrando a noiva constituia fonte de felicidade. Por isso, ao saber que Adelaide, o marido, e o bom cons. Souto estavam de partida para o Rio, Rui exultou. Afinal, agora, era a "sua" família. E, esquecido de que não ficava bem a uma noiva, sem os pais, encontrar-se com o noivo, chegou mesmo a imaginar que Maria Augusta também viria. Mera ilusão, como tantas outras.

Em setembro, os viajantes estavam instalados em Friburgo, pequena cidade próxima à Corte, e fundada por emigrantes suíços, que aí, sobro altas e frescas montanhas, tinham a impressão de estarem menos distantes da pátria. Adelaide, que Riú chamava com ternura "a nossa irmãzinha", precisava dos ares amenos da serra, para recuperar a saúde um pouco abalada, e não custou improvisar pequeno lar, alegre, e acolhedor. Aí, Rui se sentiu perfeitamente à vontade. O ambiente lembrava os dias de noivado, e, com frequência, o rapaz tímido e insatisfeito deixava a Corte para se vir abrigar junto àqueles corações amigos. Adelaide melhorara rapidamente, e as horas eram agradáveis. Às vezes, como na Bahia, ela cantava, e êle não se furtava a recitar os versos líricos da "A Judia", de Castro Alves. (17) Como tudo aquilo o fazia recordar-se de Maria Augusta, para quem traduzira as árias da "Stela Confidènti" e do "Non ti scordar di me". (18) E, ardendo na ânsia de apressar as núpcias, arquitetava planos mais ou menos vãos, que lhe permitiriam unir-se para sempre àquela que amava "ilimitadamente, indizivelmente, inex-cedivelmente". "Espero vencer tudo, escreveu em setembro, para quanto antes voltar à companhia da minha Cota." (19) Imaginava então casar-se dentro de três ou quatro meses. Realidade ou miragem fugitiva? Ter-se-ia, porventura, esquecido que as dívidas de João Barbosa ainda lhe pesavam terrivelmente?

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Não. Rui não olvidara continuar o "escravo dos credores". I >ipositava, no entanto, as mais largas esperanças nos proventos ilimia tradução do "O Papa e o Concílio", e chamava-a a sua "tábua de salvação". (20)

• o o

A agitação religiosa da segunda metade do século XIX pa-icciíi ter posto diante do mundo esta interrogação: — "podem coexistir com a Igreja, a Liberdade e o Progresso?" — "Não", havia respondido um número considerável de liberais. Os maçons mtiiviim entre estes. Era a luta contra Roma.

No Brasil o debate só tomou proporções maiores cm 1873, w m H ohumuda questão religiosa. Motivara-a ter o bispo de Olinda MDuliado o« maçons das confrarias religiosas. Seguiu-lhe o MNMM 0 blipo do Pará, posição u que ascendera aquele padre Í M B Í fcWMnO, qu« tnnto NO afeiçoara a Rui nos dias tormentosos i è oÕMfiO dÕ dr. Abílio, Talvez, por isso, ao serem pedidas as pMM da prlllo, n qtifl forniu condenados os bispos depois do ruidoio pmonMO, qun »imtn emocionou o país, Rui advogara no "DIÀHo d« Bahia", n absolvição dos prelados. (21)

Agora, porém, a dúvida devorava-lhe o espírito. Aquelas verdades eternas ensinadas por Maria Adélia estavam abaladas na alma do filho. Seria realmente a Igreja um obstáculo à Liberdade? Imenso conflito instalou-se na alma do liberal e Rui mtiegou-se com avidez às leituras sobre o assunto. Michaud loi-lhe uma revelação: as suas obras encheram-lhe as estantes. O "filnde estrategique contre Rome"; "L'Esprit et lettre dans la oiété"; "Plutôt la mort" e outros trabalhos desse autor foram lidos um atrás do outro. Depois vieram Dupanloup, Tondini, Kcttcher, Doellinger, cada qual mais violento. (22) No curso das investigações Rui também ficara cada vez mais odiando o Papa, <• convencido da necessidade de separar-se a Igreja do Estado.

Ouando leu a "Somme contre le Catholicisme Liberal", do padre Júlio Morei, vibrou de indignação. A certa altura dizia o abade: "Et ne dites pas que la force ne peut jamais persuader les hommes et qu'elle ne fait que des hypocrites; car on pourra vous repondre que la peine suspendue sur la tête du coupable agit sur la volonté et la prepare à conformer ses actions au cita-nien de la conscience". Evidente ameaça à liberdade, e, à margem, Rui colocou esta nota: "Ah! sofista cínico!" (23) Para êle, acima de tudo, devia estar a liberdade.

Assim, cada dia mais se aproximava dos maçons. Quando i •!( s promoveram uma homenagem ao conselheiro Dantas, que

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os havia defendido na questão religiosa, Rui foi escolhido para saudar Saldanha Marinho e este lhe respondeu chamando-o "o jovem mais esforçado propugnador das conquistas da civilização e do progresso". (24) O elogio, dada a autoridade do seu autor, constituía magnífica apresentação.

Ambos, aliás, já se entendiam bem, quando Saldanha propusera a Rui traduzir "O Papa e o Concílio", a tremenda acusação contra o Vaticano, cuja autoria se atribuía a Doellinger. O convite era sedutor, e foi aceito de bom grado. Ainda uma vez perfeitamente consciente dos perigos a que se expunha, apresentando o "libelo infame", Rui iria atravessar no caminho da Igreja. (25)

Em pouco tempo o trabalho estava terminado. Nele, porém, avultava a introdução de Rui, duas vezes maior do que a obra traduzida. No Brasil ainda não se escrevera coisa igual. Fazendo a revisão da matéria suscitada pela questão religiosa, investia cruelmente contra o Papa e o Governo. Numa alusão cáustica a visita do Imperador D. Pedro II ao Papa Pio IX, comentava com mordacidade: "A Europa soube pelo "Times" que o chefe do Estado do Brasil prostara-se aos pés da sedição clerical, personificada no autor das famosas encíclicas congratulató-rias à anarqiii/.íulora insurreição dos bispos, que deram neste país o rebato da campanha ultramontana contra as instituições liberais da Carta de 25 de março. Houve palavras afetuosas de concórdia. Pio IX sorriu, abençoou, anuiu paternalmente, mas invocando sempre à boca cheia os princípios inalteráveis da Igreja. É deste feitio o evangelho da aliança ultramontana; vinde a mim, párvulos, chefes de Estado da terra; trago-vos a oliveira da paz; mas eu sou a imutabilidade eterna, vós sois o contingente, o variável, o efémero".

Mas o motivo principal da introdução era a infalibilidade do Papa, decretada pelo Concílio. Rui, como todos os antipapistas, insurgia-se contra o decreto do Vaticano, contestando-o com abundantes e fatigantes episódios históricos. Fazia a separação entre o "primitivo catolicismo e o catolicismo farisaico" posterior ao Concílio. Falava da "índole opressiva da hierarquia episcopal", e das "crueldades romanas", resumindo nesta frase o sistema papal: "difamar sem escrúpulos, espoliar implacàvelmente o adversário vivo, e, morto, persegui-lo ainda, negando-lhe ao cadáver o obséquio da sepultura, nodoando-lhe a memória, eternizando nos seus anais ímpios contra a vítima o ódio e a mentira". Tudo muito erudito e apoiado em longas citações. A bibliografia era extraor-

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dinária, e o tom agressivo mantinha-se do princípio ao fim em hábil dialética.

A própria Princesa Izabel, herdeira presuntiva da Coroa, e que diziam dominada pelos padres, não escapava: "Duas regências assoberbadas de erros, especialmente a última, assinalada por um ultramontanismo sem senso e sem decoro, enuviam de pesadas sombras o reinado eventual da sereníssima princesa". Os longos dissabores do tradutor pareciam ter-se transformado num assomo de destruição. Talvez fosse a sua desforra. Ele tinha o coração não apenas cheio de amor, mas também de amargo ressentimento.

Contudo, tanto ou mais do que a parte intelectual do trabalho, interessava a Rui o aspecto comercial. A princípio, havendo Saldanha Marinho se comprometido, em nome da maçonaria, a adquirir mil c quinhentos exemplares, propusera a um editor, Laemmert, a cessão dos direitos autorais em troca dos volumes a serem comprados pelos pedreiros-livres. Durante alguns dias, os doze contos — era quanto esperava ganhar —, pequena fortuna que lhe permitiria casar-se livre dos credores, acalentaram mil projetos de felicidade. Afinal, a transação morreu esmagada pela negativa do editor. (26)

Outros planos vieram. Como poderia êle abandonar a sua "tábua de salvação"? E, sôfrego por uma saída no assunto em que pusera tantas esperanças, Rui, fiado nas promessas da maçonaria, acabou resolvendo publicar o livro por conta própria. A edição, contratada com Brown & Evaristo, custaria cinco contos, dos quais a metade deveria ser paga adiantadamente, e essa importância Rui a tomou, por empréstimo, ao sogro de Manuel Dantas Filho. Possivelmente, uma temeridade, que êle reconhecia, explicando a Maria Augusta: "não havia outro lado para onde correr; e, sendo a minha situação desesperadora, era preciso ter a coragem de atrever-me ao ensaio." (27) E, no derradeiro dia de agosto, a obra começa a ser impressa.

O penoso trabalho de revisão, consumindo, diariamente, sete ou oito horas, e que, conforme êle próprio afirmava, não o deixava sequer respirar, (28) foi amenizado pela correspondência amorosa dos noivos. Rui continuara a frequentar Friburgo, onde, enternecido, apanhava flores, para Maria Augusta. "As flores, que aí vão, escrevia-lhe, foram colhidas para ti em diversas ocasiões, e preparadas com um cuidado que não calculas." (29) Certamente, não era sem motivo que êle lhe podia dizer, embevecido: "Sim, tens razão, minha Maria Augusta: como é lindo o nosso

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amor!" (30) Quv pode haver de mais belo do que um idílio povoa do de sonhos?

A distância e o tempo não haviam feito, no entanto, que Rui fosse esquecido pelos cruéis desafetos. Jamais êlcs o poupariam. Agora, compraziam-se em anunciar que o casamento não se realizaria. E, ao saber dessa maledicência, ferido cm cheio no seu amor e no seu caráter, não pensou mais noutra coisa senão em casar-se logo. Nem sequer aceitou os conselhos de Maria Augusta, que julgava preferível aguardarem o resgate das dívidas legadas por João Barbosa, e respondeu-lhe, vibrando de indignação: "É-me absolutamente preciso tapar quanto antes a boca a essa ralé de inimigos vis que predizem de mim uma vilania, e contra ti uma desgraça". (31)

Não era esse, porém, o único motivo a apressar o casamento. Certo do revide que a tradução provocaria no seio da opinião católica, Rui receou que os padres viessem a recusar o sacramento do matrimónio ao escritor ímpio. Precisava casar-se antes da publicação do livro maldito: primeiro, êle e Maria Augusta deveriam receber-se por marido e mulher. E escreveria à noiva: "O que, porém, absolutamente, nem agora, nem nunca deve deixar de ser segredo, ó a causa que nos leva a acelerar o casamento. Nem depois de concluído êle convém (pie se saiba havermo-lo nós apressado para evitar a hostilidade dos padres." (32)

Tudo isso era fácil de dizer. Poderia, porém, aquele rapaz pobre, cheio de dívidas, e que mal começava a tirar os primeiros e parcos proventos da advocacia, transformar as palavras em realidade? Verdade é que havia, agora, pequenos indícios de prosperidade, e da cadeia do relógio pendia delicada e colorida miniatura de Maria Augusta. Mas, quanto estava ainda longe de poder arcar com as responsabilidades de um lar.

Em meio à aflição, encontraria, no entanto, a mão amiga do cons. Souto, que lhe proporcionou os meios, para o casamento. E, nos fins de outubro, participando à noiva que as núpcias deveriam realizar-se dentro de um mês, exigia "segredo inviolável", e dizia-Ihe, referindo-se ao amigo generoso: "Abençoado seja Deus, que pôs no mundo almas como essa para compensação de tão longos sofrimentos como os meus." (33) Sim, sofrera muito, sofrera desesperadamente. Agora, dealbando o horizonte, uma estrela acenava-lhe com um mundo novo < feliz. Chamava-se Maria Augusta.

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Rui regressou à Bahia em 14 de novembro. Desde que se formara nenhum ano fora melhor do que este. E o casamento estava marcado para nove dias depois.

Os últimos dias do noivado foram admiráveis. Os namorados passavam longas horas juntos a um velho forte, agora transformado em pacato farol assinalando a entrada da barra, e donde a vista, correndo sobre o azul ferrete do mar, pordia-se no horizonte sem fim. O lugar era poético e muitos outros pares aí também se encontravam para fantasiarem, entre juramentos de amor, a felicidade ambicionada. Sentavam-se sobro antigos canhões abandonados na praia, onde escreviam nomes, que as ondas apagavam depressa, enquanto pequenas embarcações, tangidas pelo vento, deslizavam sobre as águas, marcando no céu o gracioso perfil das velas enfunadas. E acompanhando com o o lhar as andorinhas, que pousavam confiantes nas guaritas da fortaleza. Rui, como aquiles pássaros, sentia-se venturoso e tranquilo.

O casamento foi simples. (34) Apenas os íntimos compareceram. O conselheiro Dantas serviu de padrinho a Rui; e Maria Augusta, dentre as suas amigas, escolheu a bela Helena Marinho e D. Maria Clementina Sodré de Carvalho e Silva.

Para a lua de mel, Rui traçara um programa romântico. Nove dias depois (35) o novo casal embarcou para o Rio de Janeiro, donde se transportou para Friburgo, pequena cidade de "delicioso clima — eram palavras de Rui —, frio à europeia e perfeitamente seco, sem umidade nenhuma, como na Europa mesma é raro encontrar." (36) Após tantos desenganos, êle, aí, podia sorver em grandes goles os encantos do lar feliz. Aquilo parecia um sonho. Um sonho construído pelo esforço inaudito daquele homem invencível.

Como todos os seus sonhos este também durou pouco. A lua de mel foi interrompida por uma grave enfermidade de Rui. Contraíra tifo e durante dois meses, embora Maria Augusta fosse a mais carinhosa das enfermeiras, a sua vida esteve em perigo.

Agora ela o conhecia ainda melhor, e estava cada vez mais apaixonada. E, sobretudo, surpreendera-se quando o marido, que os ultramontanos acoimavam de herege, de ímpio, de ateu, adver-tiu-a com ternura de que, à hora de deitar-se, devia orar de joelhos . . . (37)

o o o

Nesse ano, em São Paulo, também se casou um guapo rapaz gaúcho. Chamava-se Pinheiro Machado. Êle e Rui não se conheciam; mas na vida, deveriam encontrar-se muitas vezes. Pi-

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nheiro, ainda muito moço, fugira da Escola Militar para lutar nos campos do Paraguai, onde o pai, mal satisfeito com esse patriotismo do filho, fora buscá-lo. E, contrariando-lhe a vocação para a carreira das armas, obrigara-o a ir estudar direito, em São Paulo. Aí Pinheiro conhecera Benedita Brasilina, que ninguém chamava senão pelo delicado apelido: Nhanhan. E, impaciente, consorciara-se ainda no terceiro ano do curso. A jovem, entre bonita e feia, era simples, afável, e sobretudo admirava aquele marido de maneiras bruscas e varonis, onde se traduzia a alma de um homem dos pampas. O campeador vivia sob os trajos do homem da cidade. E às vezes, roçando o peito duro da camisa, era possível entrever, no bolso da casaca, o cabo duma pequena faca de prata. Pinheiro usava-a para fazer fortes cigarros de palha, cortando o fumo sobre a palma da mão.

Passada a convalescença, Rui voltou à vida de trabalho. Embora casado continuava residindo no palacete do conselheiro Albino, casa alegre, sempre cheia, e onde os convidados não se distinguiam pelos matizes políticos. Maria Augusta participava dos encargos de fazer as honras da casa, e a todos encantava com as suas maneiras distintas c ao mesmo tempo discretas. Rui sentia-se feliz o também orgulhoso da mulher que escolhera. Frequentemente, o casal ia ao teatro, diversão predileta do marido. E quando regressavam, já alta noite, Maria Augusta preparava a ceia modesta e venturosa. Servia chocolate e para os dois corações apaixonados as coisas mais simples tinham a beleza de um idílio.

Em julho apareceu nas livrarias a tradução do "O Papa e o Concílio" e Rui esperava fartos lucros do seu trabalho. (38)

A imprensa liberal recebeu a obra com entusiasmo. O "Anglo Brazilian Times" disse ter direito a "um lugar de primeira linha entre os livros magistrais a respeito do papado e seus intuitos" mas a opinião católica movimentou-se irritada para rebater com energia o ataque que lhe era feito. Por todo o país pro-pagou-se a onda de indignação contra o tradutor do "libelo infame". Dos jornais ultramontanos, das sociedades religiosas, dos púlpitos foram atiradas contra Rui increpações violentas que terminavam sempre pedindo a proscrição do herege cuja pena se rebelara contra a vontade divina. Muitos fiéis apontavam-no como a própria encarnação do demónio.

Rui suportou a acusação com coragem: não agira, diria, em nome da irreligião, mas em favor da Liberdade. Contudo, a Igreja considerava-o um adversário, que era necessário extermi-

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nar. Que importava? Não estava em jogo a Liberdade? Isso bastava para lhe tranquilizar a consciência. No momento, a audácia iria custar-lhe caro.

NOTAS AO CAPITULO VII

(1) Carta do cons. Dantas a Rui, cm 27 de junho de 1876, in Arq. C. R. B.

(2) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, rai 9 de junho de 1876, in Arq. C. R. B.

(3) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, cm 8 do junho de 1876, in Arq. C. R. B.

(4) Cf. carta de Rui Barbosa a I) . Maria Augusta, em 17 de julho de 1876, in Arq. C. R. B.

(5) Cf. carta de Rui Barbosa a O. Maria Augusta, em 23 de junho de 1876, in Arq. C. R. B.

(6) Cf. carta de Rui Barbosa a 1). Maria Augusta, cm 25 de junho de 1876, in Arq. C. R. B.

(7) Carta de Rodolfo Dantas a Rui em 8 de julho de 1876, in Arq. C. R. B.

(8) Carta de Rodolfo Dantas a Rui, sem data, in Arq. C. R. B. (9) Carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 18 de julho de 1876, in Arq.

C. R. B. (10) Carta do cons. Dantas a Rui, em 28 de julho de 1876, in Arq.

C. R. B. (11) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 9 de julho

de 1876, in Arq. C. R. B. (12) Conferência no "Vale dos Beneditinos", em 21 de julho de 1876.

Às vezes aparece com a data de 21 de junho. Pela carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 23 de julho de 1876, in Arq. C. R. B., sabe-se agora que a conferência foi taquigrafada.

(13) Cf. carta in Arq. C. R. B. (14) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 23 de julho

de 1876, in Arq. C. R. B. Rui, no discurso de 27 de julho de 1880 (V. Obras Completas, vol. VII, t. I) referc-se à denúncia do "órgão episcopal".

(15) Cf. cartas de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, respectivamente, em 1.° de agosto e 7 de agosto de 1876, ambas in Arq. C. R. B.

(16) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 23 de julho de 1876, já citada.

(17) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 8 de setembro de 1876, in Arq. C. R. B.

(18) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 10 de agosto de 1876, in Arq. C. R. B.

(19) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 9 de setembro de 1876, in Arq. C. R. B.

(20) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 17 de agosto de 1876, in Arq. C. R. B.

(21) Cf. Rui Barbosa, in prefácio à "Queda do Império", p . 48. (22) Pelo "Diário" de Rui, de 1876, in Arq. C. R. B. é possível ver-se

os livros que adquiriu nessa ocasião.

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84 A VIDA DE RUI BARBOSA

(23) Julcs Morei, "Somme Contre le Catholicisme liberal" (1875), vo!. I, p. 240. Exemplar na "Casa de Rui Barbosa".

( (24) Na "Gazeta de Notícias" (Rio), de 8 de abril de 1877 está ,i notícia da manifestação realizada, no dia 6 de abril de 1877, pelo Grande Oriente Unido do Brasil ao cons. Dantas. Rui saudou Saldanha Marinho, e este respondeu.

(25) V. carta de João de Assis Lopes Martins, amigo de Ruí, ao dr. Américo Jacobina Lacombe, em 24 de outubro de 1941, in Arq. C. R. B.

(26) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 17 do agosto de 1676, in Arq. C. R. B.

(27) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 1.° de setembro de 1876, in Arq. C. R. B.

(28) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 9 de irtembro de 1876, in Arq. C. R. B.

(29) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 8 de outubro de 1876, in Arq. C. R. B.

(30) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 9 de setembro de 1876, in Arq. C. R. B.

(31) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 19 de outubro de 1876, in Arq. C. R. B.

(32) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 3 de novembro de 1876, in Arq. C. R. B. Corrobora a circunstância a carta, que, em resposta a Rui, lhe escreveu o cónego Manuel Teodolino Ferreira, velho amigo de João Barbosa, e na qual dizia: "Estou nas melhores relações com V. e serei seu amigo até a morte. Km breve lhe escreverei minuciosamente. Creio não será mau um documento, que prove-o desembaraçado, visto estar ausente da Província". Kssa carta c de 28 do outubro de 1876. O cónego Teodolino deve ser o mesmo que aparece às páginas 8 c 10 do vulume de de "Correspondência", de Bui Barbosa, e (pie o si. Homero Pir-s não conseguiu identificar. No Arq. C. R. B., existem outras cartas do mesmo a Rui Barbosa, cuja primeira filha bati/ou.

(33) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 23 ile outubro de 1876, in Arq. C. R. B.

(34) A Adriano Fortes de Bustamente, seu colega de Academia, como já foi dito, enviou Rui, em 21 de novembro de 1876, o seguinte convite: "Meu caro Bustamente. Depois de amanhã, às 8 horas da noite, entrarei no rol, a que, mais adiantado do que eu, já pertences há tanto tempo, dos homens sérios, casando-me com Maria Augusta Bandeira, filha do Major Alfredo Bandeira. Bem que eu não tenha festa, nem faça convites, a presença de um amigo como tu, e de tua Família, será sempre uma fineza e uma ocasião do mais grato prazer a este teu sempre muito amigo do C. Rui".

(35) Rui e a mulher embarcaram para o Rio, no vapor "Valparaízo", em 2 de dezembro de 1876.

(36) Cf. carta de Rui Barbosa a D. Maria Augusta, em 8 de setembro de 1876, in Arq. C. R. B.

(37) Cm. por D. Maria Augusta Rui Barbosa ao dr. Américo Jacobina Lacombe, em presença do autor.

(38) A julgar pelas notas que Rui lançou num caderno ainda hoje existente na "Casa de Rui Barbosa", somente em maio terminou a impres são d ' 0 Papa e o Concílio, cujos primeiros exemplares enviou ao cons Dantas

0 PAPA E O CONCILIO 85

<•• a Saldanha Marinho em 11 daquele mês. Para maiores esclarecimentos sobre a tradução, impressão c pagamento d ' 0 Papa e o Concílio ver Luiz Viana Filho, Rui & Nabuco, pgs. 129-193. A edição, além de limitada tira-«cm em papel especial, era de três mil exemplares, tendo o volume 608 páginas. Preço: 8$000.

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VIII — DUAS CÂMARAS

Duas vezes entrei na câmara dos deputados: uma flutuando sobre nove anos de assinalados labores jornalísticos... a outra, pela porta libérrima de eleição Saraiva.

Rui.

X? UI demorou pouco no Rio de Janeiro. Embora aí tivesse sido - ^ - feliz, a permanência na Corte apenas lhe asseguraria, possivelmente, próspero futuro como advogado. Bem pouco para a sua ambição. Ser um grande advogado, representaria a abastança, jamais a "sua" vitória. E, passada a tormenta, que o obrigara a emigrar, no seu espírito recompunham-se velhos painéis outrora criados pela imaginação. Renasciam antigos ideais de triunfos políticos, os únicos certamente que lhe dariam plena sensação de vitória. Frequentemente espicaçados pela arrogância do seu liberalismo, os adversários, na Bahia, o atacavam. "Outro dia, em artigos de fundo, informava-lhe Rodolfo, chamaram-nos de comunistas, porque não queremos o casamento, nem a família nem a propriedade". Nessas ocasiões a chama daqueles ideais crepitava.

Além disso, a metrópole não era o lugar indicado para os jovens iniciarem a vida política. Esta, em regra, devia começar nas províncias. E Rui, em 1877, resolveu regressar à Bahia.

Como todos os liberais, acreditava próximo o fim dos conservadores. Havia mais de vinte anos que estes, quando em dificuldade para manter o poder, recorriam ao prestígio do Duque de Caxias, que chamavam simplesmente o Duque, e lhe confiavam a salvação do partido. Expediente eficaz, mas nunca o Duque transmitira o governo a um correligionário: quando se retirava, o partido caía. Por isso, esquecendo os serviços do velho soldado, o romancista e político José de Alencar, seu partidário, chamava-o o "penacho funesto". Ainda uma vez seria assim: Caxias era, agora, chefe do gabinete.

DUAS C Â M A R A S 87

Em junho, Rui tornou à Bahia. Viagem um tanto apressada, pois Maria Augusta ia ser mãe, e estava ansiosa para se reunir à família. (1) Quanto a êle, deliberara abrir escritório, e, a fim de dedicar-se com mais afinco à advocacia, exonerara-se do emprego na Santa Casa. (2)

Esperava-o, porém, uma surpresa. Rodolfo, doente, estava de malas arrumadas para a Corte, c confiou a Rui a direção do "Diário da Bahia": "Parto para o Rio coin a certeza que me deu meu pai que em minha ausência trabalharias para o Diário." (3) Assim, não teria descanso. E somente mais tarde retomaria o velho hábito de dividir com o amigo fraternal as responsabilidades da trincheira liberal, na imprensa da Província. "Tu e êle, escreveu a Rui o cons. Dantas, formarão uma creatura e tomarão o principal encargo da redação." (4) Dantas animava-o sempre e, às vezes, dava-lhe conselhos paternais: "Tenho gostado muito dos teus escritos e assim diversos amigos com quem tenho conversado. Trabalhem que é este o único caminho para o verdadeiro bem estar; não conheço outro em todas as carreiras e profissões". Conselho desnecessário, pois Rui nunca deixava de trabalhar infatigavelmente.

Na verdade, Rui conseguira impor-se como a figura principal do jornal. Os seus artigos, despindo-se das frases difíceis e um tanto pedantes, que antes lhe tornavam o estilo desagradável ganhavam em vigor e simplicidade. Apenas quanto à extensão era incorrigível: escrevia sempre muito. Até demais. Rodolfo a Rui: "Estou atrapalhadíssimo e se me é permitido lembrar qualquer coisa ao mestre, lembro-te que o artigo pode ser conciso, o que te torna menor a massada. Repito: faze um artigo à Rui." (5) A linguagem apesar de partir de um amigo, denotava progressos. Pela primeira vez alguém o chamava de mestre.

De fato, o jornalista aprimorara-se, tornando-se requestado. Recebia pedidos de colaboração, e prometiam recompensar-lhe generosamente o trabalho. "O Diário de Notícias", jornal então aparecido na Bahia, solicitara-lhe redigir uma seção, que se deveria chamar "Assunto do Dia", e "O Cruzeiro" lhe fizera proposta vantajosa, (6) Contudo, o que o seduzia era trabalhar no "seu" jornal, no velho órgão liberal, onde nada ganhava. Aí, refletindo a irritação dos liberais, e também as próprias tendências nascidas na Academia, não revelaria Rui grande apreço pela monarquia. Nesse ano, por exemplo, ao voltar D. Pedro II ao Brasil, escrevera um artigo, dizendo esperar que o Imperador

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88 A VIDA DE RUI BARBOSA

pudesse provar não ser o cetro "um luxo de arte, um símbolo vão, oneroso à regularidade das instituições." (7)

Sobretudo como orador alcançara sólida nomeada. Coloca-ra-se mesmo acima de César Zama, homem de grande talento, e até então o primeiro entre os oradores do partido, na Bahia. Zama nunca o perdoaria. Podia convidá-lo para tomar chá em sua casa, (8) mas a ferida ficaria sempre aberta.

Quando, em outubro, passou pela Bahia o general Osório, herói da guerra do Paraguai, Rui foi incumbido de saudá-lo em nome dos liberais. Os partidos estimavam aliar às suas ideias espadas gloriosas. Isso era útil. Se os conservadores tinham no Duque de Caxias o seu patrono, o dos liberais era Osório e talvez por isso, os dois militares não se gostavam. Ainda neste ano, ao ser Osório empossado como senador, todos os novos colegas o haviam cumprimentado, menos Caxias, que na ocasião era o ministro da guerra. Atitude descortês, mas que Caxias explicou com maldade: "Não me consta que o marechal marquês de Ilerval (o título de Osório) esteja na Corte; posso mesmo afirmar que não está, porque soldado disciplinado como reconheço que élc é, teria se apresentado ao ministro da guerra, o que não fêz". Osório ouviu silencioso a censura, e no dia seguinte apresentou-se ao ministro. À tarde, no senado, Caxias entre aplausos, levantou-se para felicitá-lo. No fundo, ciúme de colegas.

Essa rivalidade estimulava os liberais, que prepararam imponente recepção ao bravo correligionário. A cidade foi embandeirada. Das janelas pendiam tapetes e colchas vermelhas de damasco. E quando o velho marechal, já alquebrado, entrou no carro, o povo desatrelou os cavalos e puxou-o triunfalmente até ao "Diário da Bahia". Aí Rui deveria falar. (9)

Para quem estava imbuído de ideias inglesas e, portanto, desabituado a ver nos seus devaneios políticos o brilho dos galões, a missão não era cómoda. Rui, entretanto, resolveu dizer o que pensava. Depois de recordar episódios da vida de Osório, tão cheia de serviços à Pátria, acrescentou: "Longo tempo, senhor general, os instintos menos humanos do homem simbolizaram no ferro ensanguentado o heroísmo. A civilização deste século, porém, sente já que o génio militar não é senão uma inteligente e perigosa expressão da força se não fôr o agente de uma ideia superior, de um sentimento grande, de um movimento providencial; toda vez que não encarne em si uma reação nacional, liberal, civilizadora. O direito é agora quem sagra os heróis; não a conquista. A idolatria das espadas ambiciosas passou". A referência

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arranhava Caxias, que exigira, em 68, a substituição de Zacarias contra o voto do parlamento, e podia ter sido evitada. Audácia imprudente. No final de contas, Osório também tinha a sua espada e as suas ambições. Apesar disso ouviram-se "bravos". O povo gostava desses rapazes sem juízo e as frases não tiveram importância maior.

o o •

Economicamente, "O Papa e o Concílio" falhava completamente. As promessas de Saldanha Marinho, que lhe acenara com bons lucros, não custaram a desfazer-se como bolhas de sabão. E, em lugar dos pingues proventos, que imaginara, o que se deparava a Rui eram os editores a lhe baterem à porta, cobrando insistentemente o preço da impressão. Estes, nem sequer primavam pela delicadeza. E, como se se dirigissem a um devedor qualquer, reclamavam com impertinência o pagamento do trabalho. Que poderia ferir mais aquele homem, sempre tão zeloso nos seus compromissos, mas sem recursos para satisfazer ao que lhe exigiam? Então, tomando da pena cheio de amargura, e também de altivez, respondeu aos srs. Brown & Evaristo — assim se chamava a firma editora — numa carta, (10) em que narrou a história de um dos livros mais discutidos no Brasil. E, após apontar os equívocos em que estavam os exigentes credores, assim concluía:

"O Sr. Cons. Saldanha Marinho, ainda poucos dias antes da minha vinda, ao Sr. Cons. Manuel Pinto de Souza Dantas, que serviu de intermediário nisso, afiançou que, à conta dos nove contos meus, ficava eu desobrigado quanto às despesas da edição, que êle assumia diretamente, empenhando-se a saldá-los, sem que eu fosse mais inquietado. A carta de V. S. foi, portanto, para mim a maior das surpresas. Confiei sempre, e ainda confio, na palavra do Sr. Cons. Saldanha, solenemente empenhada para comigo a esse respeito em muitas ocasiões. Essa palavra foi o que me animou a imprimir um livro tão caro num país onde ninguém lê. Sou, pois, obrigado a recorrer a S. Ex.a antes de qualquer outra medida, para ficar sabendo se, o que acho e assevero impossível, a minha confiança foi temerária. Entretanto, haja o que houver, o que lhes posso assegurar é que não ficarão no desembolso de que se queixam, porque ainda quando todos os meus devedores e os de V. S.a faltassem a empenhos dessa ordem, eu é que, custe-me o que custar, não figurarei nunca nesse rol, nem desejo, nem peço, nem aceito de meus credores misericórdia."

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90 A VIDA DE RUI BARBOSA

Verdade c que, para o ajudar a carregar a cruz, Rui encon-tara alguns cirineus. O Cons. Dantas escrevera para as províncias do Norte, recomendando o livro. (11) Franco de Sá dera cartas para o Maranhão e para Pernambuco. (12) O próprio Visconde do Rio Branco, a pedido de Salustiano Souto, pois ambos eram maçons, procurara obter compradores entre os irmãos do "Vale do Lavradio". (13) Mas a maçonaria, apesar dos compromissos de Saldanha Marinho, e na qual repousavam as esperanças de Rui para o êxito económico do livro, jamais vendera os mil e quinhentos exemplares, que tomara a seu cargo. (14)

A decepção deve ter sido atroz. Muitos anos mais tarde, como alguém lhe falasse em fazer nova edição do livro, que tanto o atormentara, Rui, talvez se lembrando de tudo quanto padecera por causa desse trabalho da mocidade, envolveria a negativa numa frase na qual ainda seria possível descobrir os travos do sofrimento: — "já pertence à historia antiga da minha v ida . . . " (15)

o e *

Para aplacar o ânimo daqueles inquietos liberais, que pediam a Reforma aos gritos de "Reforma ou revolução!", os conservadores haviam feito votar um novo sistema eleitoral, logo conhecido como a "lei do torço". Os liberais, porém, não a consideravam senão uma tática, e continuavam clamando pela eleição direta. Alguns dos seus chefes julgavam-na mesmo uma burla, e aconselhavam os correligionários a não comparecerem às votações nem se apresentarem candidatos. Entre os que participavam dessa opinião estava o senador Nabuco. Outros pensavam de modo diferente. Dantas, por exemplo, era de opinião que a mocidade do partido, depois de dez anos de combate, estava sôfrega e ansiosa para candidatar-se aos postos políticos, mesmo para derrota, e deveria ser atendida nessa aspiração. (16)

Rui figurava entre esta juventude liberal, quase toda saída das academias durante o ostracismo, e que almejava ganhar uma tribuna no parlamento. Realmente, ao reunirem-se os liberais, para escolherem os seus candidatos à Assembleia Provincial da Bahia, foi um dos indicados. (17) Praticamente nada significava, pois o governo costumava eleger câmaras mais ou menos unânimes e a candidatura apenas servia como demonstração de estima dos companheiros. Na realidade deveria esperar até quando o Imperador quisesse confiar o poder aos liberais.

Mas a política tem surpresas. Em 1.° de janeiro de 1878, poucos dias antes do pleito, Caxias, em nome de Sua Majestade,

D U A S C Â M A R A S 91

convidou o Visconde de Sinimbu a comparecer ao palácio de S. Cristóvão. Mais uma vez o Duque não seria substituído por outro conservador. Era a ascensão dos liberais. E, impaciente, logo que teve a notícia, Rodolfo, embora estivessem diariamente juntos no jornal, escreveu a Rui: " . . . recebi um telegrama do Rio comunicando que o Sinimbu foi chamado ao paço. Teu do C. Rodolfo." (18)

Realmente, Sinimbu foi incumbido pelo Rei de; organizar o ministério.

Preferência tanto inesperada. Zacarias falecera, mas antes de Sinimbu, nas fileiras liberais, estava Nabuco, e mesmo Saraiva. No começo do reinado, D. Pedro II lóra impetuoso e sentira prazer em exteriorizar a sua vontade de soberano. Graças a isso alguns grupos políticos o haviam influenciado nas suas decisões. Mas, não tardou em ter certo desencanto pelo poder. Ficou um Rei triste e frio, acima dos partidos. Parecia preferir as glórias de literato ou cientista, tanto os homens gostam de aparentar o que não são. Interessava-se pelas pesquisas de Pasteur e Graham Bell. Contudo, no fundo da alma, ainda ficara alguma coisa de adolescente voluntarioso, e, às vezes, talvez para que se não esquecessem ser êle o Imperador, fazia dessas surpresas aos partidos, deixando de colocar nas mãos dos seus chefes o bastão de comando. Além disso parecia simpatizar com aqueles homens graves e mansos, como Sinimbu. Particularmente sem qualquer importância para Rui.

O principal, para êle, era terem os liberais conquistado o governo. Completa reviravolta. Aquilo que se afigurava quase impossível tornou-se fácil: Rui, sem pedir votos, foi eleito. O ano não começava mal.

Na Câmara, não demonstrou entusiasmo pela função. Alguns anos antes talvez o tivesse enchido de alegria, mas, agora, a recebia quase com indiferença. Como as coisas já obtidas, perdera o sabor, e Rui conservou-se numa posição apagada. Não houvesse surgido um projeto que logo julgou "uma dessas questões de alta política", (19) as únicas que considerava capazes de inflamá-lo, e teria sido possível não se lhe notar a passagem pela câmara provincial. Consequência da seca, que assolara, no ano anterior, várias províncias do Norte, onde agora reinava a fome, começara a escassear a farinha na Bahia, pois, atraídos pelos altos preços, obtidos nas províncias famintas, os negociantes expor-tavam-na com prejuízo do abastecimento local. Faziam-no em

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nome. da liberdade do comércio, mas o governo resolveu submeter à Câmara um projeto proibindo a exportação.

Assunto interessante e que, na época, apaixonou. Fazia lembrar a Inglaterra, cuja opinião também se cindira em torno de questão semelhante. Falava-se muito em livre câmbio e Stuart Mill. Mas, para Rui, surgia também a oportunidade para atirar-se contra o tio Luiz António, chefe duma facção liberal contrária ao projeto. Êle jamais esquecera a áspera desavença, que tanto amargurara João Barbosa e Maria Adélia. "Já em 1866, escreveria mais tarde, ano em que me matriculei no curso de direito, estavam publicamente rotas as relações entre meu pai e esse parente, separados, desde então, por figadal inimizade até à morte do primeiro, em 28 de novembro de 1874. Formando-me 1870, encontrei, na Bahia, dividido o partido liberal. Acaudilhava esse irmão de minha mãe os dissidentes. Meu pai estava, e esteve, até falecer, ao lado do Sr. Saraiva e do Sr. Dantas, como toda gente sabe. Acompanhando estes, segui, portanto, as pegadas paternas." (20) Agora, o ódio de família acumulado durante anos extravasava. E, ao mesmo tempo que combatia a exportação da farinha, Rui investia violentamente contra o tio. Foi um escândalo. Aqueles deputados pertencentes a uma sociedade precocemente amadurecida, já decadente devido á baixa dos preços do açúcar e á cessação do tráfico e por isso muito aferrada aos preconceitos, arrepiaram se horrorizados. Fazia tremer aquele ataque do sobrinho contra o tio, e muitos consideraram a atitude como indício de mau caráter.

O incidente não morreu na Câmara. Luiz António, diretor do "Monitor" (21) e pessoa do melhor conceito, defendeu-se pela imprensa, declarando, entre outras coisas, "não ter o hábito de repudiar o seu sangue". Maneira astuta de colocar o sobrinho em posição antipática, mas Rui replicou negando ao tio "a santidade do afeto com que tem reconhecido em mim o filho de sua irmã". Os adversários de Luiz António exultaram. Mas, em geral, os comentários foram desfavoráveis a Rui. A polémica emocionou profundamente.

O próprio Cons. Albino, quando soube do incidente, não lhe deu razão, e escreveu a Jacobina: "O pior foi a triste polémica pela imprensa, onde o Rui maltratou horrivelmente o Luiz António, seu tio. O Otaviano (Francisco Otaviano) conversou comigo e reprovou o procedimento do Rui; mas Rui não é dócil, e é mais orgulhoso que o pai." (22) De falo, ao atirar-se contra um adversário, êle o fazia com ferocidade;, como se desejasse estran-

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gulá-lo. Apaixonava-se. E ainda agora a paixão induzia <> a êrio. embora se considerasse no melhor caminho.

A falta, entretanto, fora bem grave. Numa cidade pequena, defendendo pelo preconceito as suas tradições, a atitude chocara muito. Os jornais pouco simpáticos a Rui falaram "no punhal colocado na mão do sobrinho" (23) e quando já estava proibida a exportação de farinha, o incidente continuou motivo de conversa. Por muito tempo ninguém o esqueceria. Tal qual previra Maria Augusta.

Havia, porém, novo encanto na vida de Rui. Nascera lhe uma filhinha, que recebeu o nome de Maria Adélia, ". . .um anjinho", participou êle ao Cons. Albino. (24)

o o o

Não foi longo o estágio de Rui na câmara provincial. Jamais os partidos alcançavam o poder devido às eleições, invariavelmente ganhas pelo que detivesse o poder na ocasião. Ao Imperador, a fim de evitar a perpetuidade de qualquer deles no governo, cabia chamar ora um, ora outro, sem atender à maioria do parlamento. Sua Majestade acedia, então, na dissolução da Câmara e o ministério incumbia-se de conquistar as cadeiras necessárias para governar. Ainda agora fora assim.

O fato abriu novas perspectivas à carreira de Rui. Depois de ser deputado provincial todo político aspirava a tornar-se deputado Geral, e não lhe faltavam títulos para isso, principalmente pelos serviços prestados aos liberais, na imprensa e nos comícios populares. Às vezes, em tom de remoque, os que não lhe eram afeiçoados chamavam-no o "novo Castelar", alusão ao grande tribuno liberal espanhol, mas, mesmo assim, a comparação significava alguma coisa. O maior embaraço para o acesso estava, porém, na falta de jeito de Rui para solicitar qualquer coisa. Não tinha culpa: nascera assim. Dominava-o um misto de timidez e de orgulho e sentia-se sem coragem para pedir. Contudo, Dantas manifestou por êle as suas preferências e, em agosto, o partido ratificou a indicação.

O pleito, em setembro, correu tranquilamente e Rui foi eleito, pois os conservadores, como todo partido que acaba de cair, não puderam oferecer qualquer resistência. A Câmara que se inaugurou em 1879, ia assistir ao início de várias carreiras brilhante*, Afastados do poder desde 1868, os liberais haviam acolhido IIIIN suas fileiras uma juventude fogosa e sôfrega por aparecer no cenário do país, realizando as grandes reformas por que NO huvlii

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94 A VIDA DE RUI BARBOSA

batido. Principalmente a adoção da eleição direta, que eles chamavam simplesmente "A Reforma".

Ent re estes moços estavam Buarque de Macedo, Joaquim Nabuco, José Mariano, Afonso Pena, Rodolfo Dantas e Rui. Na-buco e Rodolfo seriam também os líderes da elegância e das boas maneiras. Aquele, que se dava ao luxo de usar casacas de Pool — o célebre alfaiate de Londres — escandalizou o parlamento comparecendo às sessões com o seu terno cinza-elaro. (25) Atitude igual à do Visconde de Camaragibe, no Senado, depois de regressar da Europa. E Rodolfo encantava pela delicadeza do trato, sempre muito polido e ameno, lembrando um "gentleman" inglês.

Na Câmara não havia grandes chefes. Estes, como Cotegipe, entre os conservadores, e Saraiva, Dantas e Paranaguá, en t re os liberais, t inham assento na câmara vitalícia, onde ficavam acima da flutuação dos partidos. Zacarias e Nabuco (pai) estavam mortos. E, em consequência muitos deputados, imaginando-se futuros ministros, disputavam a posição de líderes. Por isso mesmo falavam demais, havia discussões entre membros do mesmo partido, e nem sempre reinava boa ordem.

Dos mais antigos destacavam-se Saldanha Marinho, Lafaiete Pereira, José lionilacio. Silveira Martins e Martinho Campos. Este, veterano da oposição, celobi i /ado pela mordacidade dos seus ataques frequentes aos conservadores, recebia os novos colegas instruindo-os sobro a vida parlamentar. Dava-lhes conselhos sobre as maneiras de vencer, resumindo-os nestes quatro itens: Primeiro: ser amigo do presidente da Câmara; segundo: atacar os adversários, mas sem esquecer a possibilidade de futuras reconciliações, pois a política, dizia, dava muita volta; terceiro: permanecer no recinto e não nos corredores do parlamento, mantendo-se sempre em atitudes correras; quar to : prat icar a lgum ato de energia e repelir a primeira agressão, pois evitava outra e concorreria para a boa harmonia. (26)

Rui poderia ouvir tudo aquilo sem perder a sua habitual fisionomia de humildade, mas apenas o último lhe parecia exato. Estava muito convicto da força das suas ideias para poder acreditar na conveniência de poupar os adversários. Também, havia dez anos que os liberais aguardavam a desforra!

O primeiro debate em que a Câmara se interessou foi sobre a dúvida existente em torno da eleição d e dois deputados — um liberal e outro conservador — que disputavam a mesma cadeira. Alguns, coerentes com a opinião anterior dos liberais

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em relação aos adversários, julgavam incompatível o candidato liberal, por ter negócios com o governo. Agora, porém, trata-va-se de um correligionário. Como deveria agir neste episódio um estreante? O melhor seria conservar-se calado e votar com o partido. Mas, com indescritível surpresa, a Câmara viu Rui lo-vantar-se e propor a exclusão do próprio correligionário. (27) Ati tude impertinente e imperdoável, apesar de justa. Quereria ele ensinar aos companheiros como se deveriam portar? Irltt esquecer tão depressa os seus compromissos com o partido que o elegera ou desejaria apenas parecer melhor e mui» puro dl) que os outros? Ofendidos com aquele pudor de couNulAnulil, mwlo despeitados e sem coragem para assumirem poslçflo Idêntica, alguns liberais consideraram a proposta uma traição, Itul deíen-deu-se, porém, bri lhantemente. Obteve até IIIIIIN votos do que seria de esperar, mas o grosso do partido uno atendeu às razoes de consciência. Pelo menos imediatamente, êle nada linha ganho. Pelo contrário, politicamente 1'ora um mau golpe.

Há um preceito que a política desconhece inteiramente: não fazer aos outros aquilo que náo desejamos que nos laçam. Km 1868 os conservadores receberam o poder diante de uma câmara liberal. Consequência: os liberais at iraram graves acusações sobre o Imperador. Agora os liberais tomavam o governo perante uma câmara conservadora, que passara a atacar a at i tude de D. Pedro II . Cabia, porém, ao part ido beneficiado defender o monarca e, geralmente, fazia-o invocando os mesmos argumentos usados na véspera pelos adversários que haviam combatido.

Nessa ocasião Rui estava novamente coberto de luto e da sua família "ceifada com tanta pressa pela morte", conforme êle próprio dizia, era o único sobrevivente. Brites falecera cm março, na Bahia, ao nascer-lhe o segundo filho. Acabrunhado, êle escrevera aos amigos, como se deixasse escapar um grito de dor: — "Que destino o meu!". (28)

O luto não impediu fosse escolhido para responder às críticas dos conservadores. Depois de algumas atitudes imprudentes, convinha um discurso ni t idamente partidário, a fim de readquirir a confiança dos correligionários. As galerias eneho-ram-se para ouvir o debate . E havia certo nervosismo entro os deputados quando aquele principiante, cuja palidez era realçada pela roupa preta, se levantou para justificar a ascensão dos liberais. Como era hábito, as primeiras palavras saíram com dificuldade. Os olhos semicerrados, quase imóvel, a mão esquerda colocada às costas, apenas o braço direito agitava-se em movimentou

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raros. (29) Parecia indiferente aos colegas, que o iam cercando na tribuna. O início do discurso foi uma invocação aos longos anos de ostracismo, "à amargura inexprimível e a suprema satisfação do dever cumprido quase sem esperança em compensação do futuro." Depois enveredou pelos exemplos históricos. Lembrou os whigs, em 1834, chefiados por Lord Helbourn, e apeados do poder pelos tories comandados por Robert Peei, apesar de terem a maioria do parlamento. Recordou lord Derby sucedendo a lord Russell diante de uma câmara liberal, em 1854, e assumindo o governo, em 1858, em idênticas condições. Era o direito da Coroa de, em qualquer momento, apelar da câmara para o povo, segundo o exemplo da Inglaterra, que chamava a "nossa única e verdadeira mestra do sistema representativo". O orador, "franzino, compleição mórbida, parecendo insuscetível do mais leve esforço, e prestes a desfalecer", (30) falava ininterruptamente. Às vezes surgiam apartes irritantes. Mas, embora não os estimasse, Rui continuava.

Havia duas horas que discorria sobre a legitimidade da subida dos liberais. Alguns deputados, fatigados, foram descansar nos corredores. Voltaram meia hora depois e ainda o encontraram na tribuna. Passara da defesa ao ataque. Acusava o barão de Cotegipe de pretender ser um Peel-mirim, pregando a negação dos princípios do próprio partido: "Com as duas apostasias mais monumentais que a nossa história recorda, dizia Rui, traduzidas nas leis de 28 de setembro de 1871 e 20 de outubro de 1875 (respectivamente a "lei do ventre livre" e a "lei do terço"), compraram à custa do caráter dos chefes e da humilhação do partido mais de seis anos de poder sem dignidade".

O discurso durou quatro horas. Mas, apesar disso, já no fim ainda se ouviam vozes incitando o orador: — "Continue, continue . . . " . O cons. Dantas, que viera à Câmara assistir ao debate, acompanhava o discurso com um sorriso melífluo e o deputado Souza Carvalho batia palmas calorosamente. Rui podia ter a certeza de ter desempenhado bem o seu papel.

No dia seguinte, no "Jornal do Comércio", que no fundo era conservador, mas gostava de aparentar posição de neutralidade diante dos partidos, alguém chamou o discurso de "crónica íntima de monarquia inglesa", e declarou que "muitos deputados admirados daquela facúndia de retórica pasmaram de todo". (31) Achava, porém, que ao jovem deputado ainda faltava senso. A "Revista Ilustrada" numa caricatura também glosou aquele discurso infindável. Rui aparecia como um desses bonecos de

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corda, e no pedestal lia-se esta inscrição: "corda garantida por 24 horas. Privilegiado pelo Governo Imperial". Amável e inútil advertência para que, no futuro, fosse menos extenso.

o o o

Quem observasse a situação interna dos liberais notaria não ser satisfatória a coesão do partido. Se havia chefes moderados, como Sinimbu, cujo feitio o aproximava bastante de um conservador, outros, como Silveira Martins c José Bonifácio, eram inquietos. O visconde de Paranaguá estimaria congregar o partido em torno dele, mas notando o ciúme de alguns companheiros, perdia o gosto para disputar o posto; e o bastão de comando parecia indeciso, oscilando entre vários líderes, que não se entendiam com a franqueza necessária.

Aliás, desde a derrocada de 1868, notava-se o aparecimento duma facção radical entre os liberais. O seu chefe era Silveira Martins. Fisicamente assemelhava-se a um novo Moisés. Politicamente lembrava Gambetta, dominando pela coragem e a eloquência a juventude do seu tempo. Tudo nele era grande. A voz parecia de um gigante, falando em nome dum direito até então ignorado: o do povo. O corpo, talhado em formas colossais, como que fora feito pela natureza para encarnar o arauto das novas ideias à frente duma geração. E às vezes meio consciente dos perigos, que cercam o lutador na arena, falava na própria queda: — "Quando eu cair há de ser de pé!" (32) Palavras. Êle mesmo não acreditava nisso.

O primeiro sinal da gravidade das dissenções entre os liberais foi a retirada de Silveira Martins do ministério, onde ocupava a pasta da Fazenda. Prometia investir contra o gabinete. E sobre o parlamento pesou uma interrogação: "Quem se poderia opor a Silveira Martins?"

Foi quase com espanto que souberam ter sido Rui designado para terçar armas com o ministro demissionário. Davi contra Golias, disseram. Mas, conseguiria Rui derrubar o gigante?

Pelo menos o cons. Dantas, que acertara com Saraiva a designação, estava certo disso. E como Rui buscasse escusar-se da tarefa, dissera-lhe paternalmente: — "Meu Rui, vais fazer este sacrifício." (33) Na verdade, era uma ordem.

Havia muito que a Câmara não assistia a enconrto de tanta sensação. As opiniões dividiam-se quanto ao resultado, surgiram comentários contraditórios e todos aguardavam ansiosos aquele "espetáculo". Silveira Martins adquirira a justa fama de

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demolidor de talentos; e muitos deputados ainda se recordavam da maneira pela qual esmagara Gusmão Lobo, que João Alfredo trouxera "para Contestável da sua Adjudicatura", quando o visconde do Rio Branco o incumbira de defendê-lo das acusações de Silveira Martins.

Nessas ocasiões o parlamento sentia o prazer dos homens civilizados diante duma cena bárbara. Satisfazia-o ver um dos contendores aniquilado. Os deputados socorriam o lutador golpeado, e vivavam o vencedor. Mas, as simpatias jamais eram do estreante.

No dia marcado (os jornais haviam feito anúncios iguais aos de um acontecimento sensacional) a Câmara estava repleta, e a presença de deputados era maior do que a habitual. Os ministros ocupavam os seus lugares, e vários senadores haviam comparecido. Na "montanha" — assim se chamava o local que ocupava na Câmara — estava Silveira Martins com o seu grupo.

O ataque de Silveira Martins, como sempre, foi maciço e violento, como uma carga de baioneta. Os seus argumentos, na moldura daquela voz tonitroante e daquele corpo imenso, tomavam proporções extraordinárias. E ainda mais importante era a sua lama. O visconde de Sinimbu aceitou o desafio lançado pelo ex-ininistro da Fazenda: a Câmara decidiria. Chegou, então, a vez de Rui. Estava evidentemente doente, mas a tr ibuna reanimou-o. Começou declarando que "ante as leis da decência parlamentar, como ante os princípios mais triviais do dever comum" afigura-va-se insustentável a posição de Silveira Martins, combatendo um governo de que participara até a véspera. A estocada bateu em cheio e nessa altura começou o duelo. Silveira Martins: — "Não recebo lições". Rui deixou passar e prosseguiu. As suas palavras fustigavam o adversário, "queimando-o como o fogo de um remorso", escreveu no dia seguinte o "Jornal do Comércio". Os apartes cruzavam-se e Silveira Martins, procurando desviar o debate do ponto moral em que Rui o colocara, esforçava-se para dominar o ambiente pela verve. Muitas vezes usara com bom êxito esse método de destruição dos antagonistas: Silveira Martins: — "Ha muito q u e já morri". (Hilaridade). José Mariano: — "Apoiado; e foi para a vala desconhecida". (Rumor nas galerias). Choviam os apartes e o Presidente viu-se obrigado a intervir, pedindo atenção. Rui, porém, não se per turbou. E, quando serenaram os ânimos, acrescentou em continuação ao correligionário, que interviera em seu favor: — " . . . como bem observa o nobre deputado por Pernambuco, não escaparia da vala comum, do lugar que tão justo horror parece infundir-lhe". Malograda a ten-

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tativa de Silveira Martins, para desnortear com frases de espírito o adversário, a sua posição tomou-se insustentável. Como poderia justificar o a taque a um ministério, que defendera até a véspera? Golias fraquejava.

Aos poucos as posições iniciais modilicaram-se. Senhor do debate , era Rui, que um deputado chamara ironicamente de "imberbe", (34) quem, agora, farpeava o gigante com acres ironias. Silveira Martins desistira de apartear, e silencioso, a lisionomia contrariada, "limitava-se a ouvir, batendo com os punhos sobre a carteira".

E toda Câmara compreendeu e riu quando, numa clara alusão às enormes proporções e à fama do antagonista, Hui sublinhou n u m tom causticante: "As sociedades regein-se com o tr idente netunino, que abonança as ondas; não com as bochechas de Bó-reas, que não servem senão para soprar e devastai-". Aliás, êle estava muito mais próximo de Bóreas do que de Netuno. Mas, a comparação mordaz teve o efeito d e um tiro d e misericórdia. Resultado inesperado: pela primeira vez assistia-se a queda do possante demolidor.

Nesse dia, Rui estava evidentemente protegido pelos deuses. José Bonifácio, o mestre que tanto admirara na Academia, agora em oposição ao gabinete, sucedeu-o na tr ibuna. O seu começo: — "As palavras do nobre deputado (Rui) acabam de receber o maior castigo nas palmas com que foram acolhidas". Sensação. Mas, Rui logo o interrompeu: — "Palavras d e Montalembert , em 1848, respondendo, na Câmara dos Pares, a uma interpelação de Vitor Hugo". (35) Foi um delírio entre os correligionários do ministério. Mais do que o discurso, o aparte consagrava as qualidades e a capacidade do parlamentar. Talvez Rodolfo tivesse razão: Rui era um demónio.

Grande maioria rejeitou a moção de Silveira Martins contra o ministério. E Sinimbu, tendo atravessado as Termópilas, podia tentar agora a Reforma, um dos antigos ideais de Rui.

NOTAS AO CAPITULO VIII

(1) No "Jornal do Comércio" de 15 de junho de 1877 está a excusa de "Rui Barbosa e sua senhora, retirando-se à pressa, por motivo de saúde, para a Bahia, sem tempo de despedir-se pessoalmente das pessoas que os honrarão.. ." V. também carta de Manuel Dantas Filho a Rui, em 19 de junho de 1877, in Arq. C. R. B.

(2) A demissão de Rui da Santa Casa foi pedida em 15 de agosto de 1877, e concedida em 6 de setembro de 1877. V. does. in C. R. B.

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(3) Cf. carta de Rodolof Dantas a Rui, em 19 de junho, in Arq. C. II. B. A caria não traz o ano. Entretanto, por outros assuntos nela tratados, verifica-se ser de 1877.

(-1) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, in Arq. C. R. B. (5) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, in Arq. C. R. B. (6) A colaboração de Rui no "O Cruzeiro" está mencionada nos catá

logos de Batista Pereira e Fernando Nery. Não conhecemos os artigos, que teria publicado. Há, entretanto, no Arq. C. R. B. a carta de Manuel Dantas Filho a Rui, em 19 de dezembro de 1877, informando sobre o próximo aparecimento do "O Cruzeiro", que não teria "caráter propriamente político", e, dizendo a Rui que Reinaldo Carlos Montoro lhe escrevera, convidando-o para dar "duas correspondências por mês e ganhando, mensalmente, lOOfOOO". Quanto à colaboração no "Diário de Notícias" veja-se a carta de Lopes Cardoso a Rui, em 29 de dezembro de 1877, in Arq. C- R- B-

Sobre a colaboração, no "O Cruzeiro", há uma carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 15 de abril de 1878, e na qual diz: "Manda-me os Cruzeiros que trazem os dois primeiros artigos do Quintino. Dos que ontem me deste, graça à minha dor de cabeça, que atormentou-me a noite inteira, inda não pude ler senão a tua correspondência. Está excelente, e pelo que escreveste sobre o beribéri te felicito. Parece-me estar um especialista. Na Biblioteca Nacional não existem os números de março e abril de 1878, nos quais deve estar a mencionada correspondência de Rui, tratando do beribéri, tema a que voltaria outras vezes, pondo à prova seu gosto por assuntos médicos.

(7) Cf. artigo de fundo do "Diário da Bahia" de 23 de setembro de 1877, de autoria de Rui. embora não esteja assinado.

(8) Cf. carta de César ' /ama a Rui, em 17 de abril de 1878, in Arq. C. R. li.

(9) O discurso de Rui a Osório foi publicado no "Diário da Bahia" de 26 de outubro de 1877.

(10) Carta de 15 de dezembro de J877, c da qual existe cópia no Arq. C. R. B.

(11) Cf. carta do cons. Dantas a Rui em 16 de setembro de 1877, in Arq. C. R. B. e também notas de Rui no "Diário" de 1877, onde existe assentamento dos exemplares do 'O Papa e o Concílio', remetidos para "as províncias do Norte, mediante recomendação do cons. Dantas".

(12) Cf. carta de Manuel Dantas Filho a Rui, em 1.° de julho de 1877, in Arq. C. R. B.

(13) Cf. carta do visconde do Rio Branco a Salustiano Ferreira Souto, em 17 de maio de 1877, in Arq. C. R. B.

(14) Sobre o assunto podem ser consultados o recibo passado ao Grande Oriente, em 14 de janeiro de 1881, por Alfredo Viana Bandeira, cunhado e procurador de Rui, recebendo os exemplares devolvidos, e a carta de Manuel Dantas Filho a Rui, em 3 de setembro de 1879. Ambos os does. in Arq. C. R. B.

No Catálogo da Bibiloteca Ramos da Paz (Rio, 1920), há, na pág. 416, sob número 246, a seguinte nota: "Cartas, s. d., de Rui Barbosa a R. da Paz comunicando a remessa, por determinação do sr. Saldanha Marinho, de 390 exemplares de uma obra do sr. Rui Barbosa para a Secretaria (do Grande Oriente?) e solicitando a intervenção para que a Gazeta de Notícias publique o juízo analítico que se comprometera fazer do seu

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escrito, antes que parta para a Bahia." A caria devia estar na Biblioteca Nacional, onde porém, não a encontramos.

(15) Cf. carta de Rui Barbosa a Romeu de A. Camargo, em 18 de m,tubro de 1919, in Arq. C. U. B.

(16) Cf. Joaquim Nabnco, "Um estadista do Império", 2. a ed., vol. II, p. 294.

(17) No prestimoso volume "Correspondência", em que reuniu cartas <• documentos de Rui Barbosa, publica o sr. Homero Pires, (p. 11) uma circular de Rui dirigida aos eleitores do 3.° distrito, datada de 4 de outubro de 1875, e à qual pôs o dr. H. Pires a seguinte nota: "Somente em 1878 Rui Barbosa teve ingresso na Assembleia Legislativa Provincial da Bahia". De fato, a circular existe em "fac-simile" no Arq. C. R. B. Entretanto, uma vez que essa nota pode suscitar equívoco, deve ser esclarecido que, na realidade, Rui candidato em 1878, o foi nesse ano pela primeira vez. Até porque, em 1875, estava o Partido Liberal afastado das lides eleitorais, atitude que só foi modificada em 19 de março de 1876, conforme se vê do ofício enviado em 20 de março de 1870, pelo Partido Liberal Baiano à Comissão Executiva do Partido Liberal da Corte, e do qual existe cópia do punho de Rui no Arq. C. R. B. Nele se declara que por unanimidade ficara resolvido "Quebrar a abstenção que há oito anos inflexivelmente guardava". Aliás, o próprio Rui, ao responder à comissão promotora da candidatura dele pelo L ° distrito da Corte, em 1889, declara expressamente: "Nos cinco escrutínios em que corri os azares da luta eleit o r a l . . . " Ora, os cinco escrutínios são o de 1878, o de 1861, o de 1884, o de 1886, e o de 1888.

(18) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, sem data, in Arq. C. R. B. (19) V. disc. de Rui na Assembleia Provincial, em 27 de junho de 1877. (20) Cf. Rui Barbosa. "Queda do Império", vol. II, p. 283. (21) "O Monitor" foi fundado em 1876 pelos liberais dissidentes da

Bahia, também chamados "liberais históricos", e teve como um dos principais orientadores Luiz António Barbosa de Almeida, tio e desafeto de Uni. Em seus redatores Belarmino Barreto, Pedro Falco, António Euzébio de Almeida, e António Alves Carvalhal.

(22) O discurso do Rui na Assembleia, em 27 de julho de 78, provocou uma carta de Luiz António, julgada, no 'O Monitor' de 13 de agosto do 1878, c na qual havia várias alusões ferinas contra Rui, sobretudo no sentido de salientar que este se esquecera de vínculos sagrados. Rui lesjhiiideu pelo "Diário da Bahia" logo no dia imediato, e Manuel Dantas 1'ilho fêz transcrever no "Jornal do Comércio" de 23 de agosto de 1878 esta réplica, ft o que participa a Rui, em carta de 19 de setembro de 1878, in Arq. C. R. B., dizendo-lhe: "Li a sova que deste ao ruim e muito ruim. L. A. e fiquei satisfeito publicando aqui, incontinenti, a tua resposta ao escrito dêlc."

(23) V. "O Monitor" de 18 de agosto de 1878. (24) Cf. carta de Rui ao cons. Albino B. de Oliveira, em 20 de no

vembro de 1878, in "Mocidade e Exílio", p . 98. (25) Cf. Oliveira Lima, "Memórias" (Rio, 1937) p. 118 e 201.

~ (26Í—C£-JdEonso Celso, 'Oito Anos de Parlamento', (Rio, 1901), p. 48. cidade e Exílio", p. 100; e Batista Pereira, "Coletânea

p. 40. R.u- (27) X "M cida

Literária , (Rio, . 935) P r o ' - . " '--lo Munhoi

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(28) Cf. carta de Rui a Olímpio e Dalmácio Chaves, em 12 de março de 1879, in 'Correspondência íntima', p . 57. Brites falecera no dia 2 desse mês e ano.

(29) Nazaré Menezes, "Rui Barbosa", p . 137. (30) Cf. Afonso Celso, obr. cit. p. 147. (31) In "Jornal do Comércio" de 18 de março de 1879. Refere-se

ao discurso de Rui, na Câmara dos Deputados, em 17 de março de 1879. (32) In "Jornal do Comércio" de 4 de fevereiro de 1879. (33) In "O Tempo", número "In Memoriam" de Rui Barbosa. Sobre

o episódio, um dos mais conhecidos da vida de Rui, há no Arq. C. R. B. a seguinte carta de Rodolfo Dantas a Rui: "Rui. Envio-te o Macleod. Quanto ao Beaulieu, o Joaquim Nabuco pediu-me emprestado há dois ou três dias e inda mo não resistiu. Faze por falar a meu pai hoje, que pediu-me para dizer-te que aparecesses. É sobre negócio importante (interpelação Gaspar) que êle quer falar-te. À tarde darei um pulo aí." E acrescenta, em P. S. —: "Quando meu pai disse-me que te chamasse para falar com êle sobre a interpelação Gaspar, eu não pude dizer-lhe, por estar presente gente de fora, qual a nossa intenção'. Que intenção seria essa? Seria a de não entrar no mérito da interpelação, como de fato aconteceu? (V. Batista Pereira, Coletânea Literária, p. 40). Veja-se também Carlos Fontes, motivos e aproximações, Rio, 1953.

(34) Aparte do deputado Higino Silva, durante o discurso de Rui, respondendo a Silveira Martins, em 16 de abril de 1879. V. Mário de Lima Barbosa, "Os atestados da Glória de Rui Barbosa", in "Jornal do Comércio" de 7 de julho de 1946.

(35) Cf. "O Tempo", In Memoriam; e Fernando Nery, obr. cit. p. 51 .

IX — A REFORMA

Bem sei que os serviços políticos, neste país, se escrevem ?ia areia.

Rui .

~ ^ T Ã O tendo seguido os conselhos de Martinho Campos sobre * ^ a maneira de conduzir os debates sem fazer inimigos, Rui vira desaparecerem completamente as suas relações com Silveira Martins. (1) Maltratara-o demais. Contudo, o rompimento não impedira que conquistasse esporas de cavaleiro no torneio com o tribuno gaúcho. Em poucos meses avançara bastante, e podia, sem prejuízo, manter-se agora em certo retraimento. Esperaria a oportunidade para vestir o seu fardão de ministro.

Contudo, isso não significava repouso e muito menos diversão. Excetuadas as habituais recepções na casa do cons. Albino, raramente comparecia a qualquer reunião mundana. Apenas conservava o gosto pelo teatro. Mas, salvo essa distração inocente, gastava horas entre os estudos, tão metódicos quanto ao tempo de académico, os trabalhos da advocacia onde se associara ao modesto Sancho de Barros Pimentel, seu colega de formatura e Rodolfo. Este, absorvido pela vida elegante, nem sempre podia atender aos serviços da profissão, que confiava a Rui: "Faze um dos teus milagres, para que ao menos amanhã, cerca de seis ou sete horas da noite, eu tenha as razões prontas e faça as cópias, ainda que se perca a noite." (2) Rui, embora sobrecarregado de trabalho, atendia-o. Saberia recusar alguma coisa pedida por aquele amigo fraternal?

Apenas um discurso sobre a eleição direta marcou a ativi-dade política de Rui no resto da sessão parlamentar de 1879. Estudara muito a vida partidária inglesa e podia, assim, citar episódios também lembrados por ocasião da Reforma, na Inglaterra, cinquenta anos atrás. A câmara, por exemplo, divertiu-se ouvindo-o narrar este fato ocorrido numa eleição britânica, antes da Reforma: — "Uma assembleia eleitoral composta, afora o sheriff e o escrutador, de um eleitor único, encetou gravemente

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as suas funções. Esse bom homem (único eleitor) ocupou a cadeira presidencial: procedeu seguidamente à chamada de estilo, respondeu em seu próprio nome; depôs o seu voto solitário, propôs a sua nomeação; apoiou o proponente; pôs a votos a moção; e foi eleito unanimemente, por si mesmo e por si só". Agora o ambiente já lhe era familiar e sentia-se menos medroso quando falava. Conservava, entretanto, certa dose de emoção o quantum satis para que o orador não perdesse o entusiasmo: jamais conseguiria sentir-se perfeitamente à vontade ao ter de pronunciar qualquer discurso. Condição favorável, aliás, tanto é certo que os auditórios não estimam os oradores frios, e nos quais não há um pouco de ator.

Ao longo debate sobre a necessidade de modificar-se ou não a lei eleitoral sucedera quase geral assentimento à adoção do sistema direto. Mesmo os mais recalcitrantes se haviam encolhido ante os desejos manifestados pelo Imperador e ninguém tinha dúvida quanto à próxima vitória das ideias sustentadas pelos liberais. Havia, contudo, profunda divergência sobre a maneira de realizá-las. Uns julgavam indispensável a convocação de uma Constituinte, e essa era a opinião de Sinimbu. Outros consideravam suficiente a votação cie uma lei pelo parlamento. Sobretudo o senado, receoso de conceder uma oportunidade para to-car-se na vitaliciedade dos membros da câmara alta, opunha-se à orientação de Sinimbu. Conservadora e formalista, aquela corporação mantinha-se aferrada as tradições, até às menores. Certa vez o senador Ferraz, replicando a um colega, usara a seguinte expressão: — "Eu entendo, senhor presidente, que o nobre senador não entendeu o que disse o nobre ministro da marinha, ou fingiu que não entendeu". E o visconde de Abaete, que presidia à sessão, logo o interrompeu com muita gravidade: — "A palavra fingiu acho que não é própria". E Ferraz: - "Peço perdão a V. Excia., retiro a palavra". (3) O senado era assim.

E, embora a câmara aprovasse o projeto de Sinimbu, os senadores rejeitaram-no. Depois disso a Reforma pareceu um desses jogos de salão, nos quais os parceiros, se caem em determinados números, são forçados a voltar ao ponto de partida. O senado atirara a eleição direta num desses números fatais, e tudo deveria começar novamente. Coisa que no íntimo alegrava os conservadores.

Aliás, os liberais sentiam a falta de alguns dos seus chetes, recentemente desaparecidos. Nos últimos anos, três deles haviam tombado. O primeiro fora Zacarias, que Nabuco comparou a

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"um navio de guerra com os poitalós fechados, o convés limpo, os fogos acesos, a equipagem a postos, solitário, inabordável, pronto para a ação". Falecera nos últimos dias de 1877. Depois, dois meses após a organização do ministério do visconde de Sinimbu, o cons. Nabuco sucumbira vítima de infecção biliar. Esperava em vão ser o chefe do gabinete e não conseguira sobreviver à preterição. Por último, em outubro de 187S), chegara a vez de Osório. Aquele soldado habituado as noites de campanha enfrentando os temporais, havia sido abatido em poucos dias por uma pneumonia, e esses golpes sucessivos, desfalcando as fileiras dos liberais, deixavam claros difíceis de preencher.

Desaprovado o projeto da eleição direta pelo senado, o ministério resolveu entregar ao tempo a solução do caso. Adiou a reabertura do parlamento e isso equivaleu a oportuna moratória concedida ao governo. Férias mais longas e cheias de expectativas. Rui voltou então à Bahia. Quanto tempo duraria a inati-vidade parlamentar? Um imprevisto modificou, no entanto, os cálculos hábeis de Sinimbu. Ao entrar em vigor, na capital do Império, um pequeno aumento nas passagens dos bondes, o povo insurgira-se contra a medida. Houve distúrbios e a polícia interveio, causando algumas mortes. Seria também a morte do ministério.

O Imperador não gostava de ouvir falar em sangue derramado

f>ela polícia. Tanto lhe tinham falado os preceptores das vio-ências paternas e das suas consequências que parecia temer

qualquer excesso. Aceitou assim a renúncia contrafeita de Sinimbu, autorizando-o a convidar o cons. Saraiva para formar o gabinete. Saraiva, que anos antes se declarara "conservador de ontem, de hoje e de amanhã", era agora o chefe dos liberais. Calculista, não amava os riscos das partidas. Preferia jogá-las na certeza de vencê-las. Numa ocasião, acusado de não ter tomado determinada deliberação, assim se justificara: — "a medida era boa, mas arriscada; não a pus em prática porque se acertasse ninguém me agradeceria, e se errasse todos me caíam em cima". (4) Ainda desta vez, não se resolveria a aceitar o poder, antes de cauteloso exame dos horizontes tão cheios de nuvens. Dois meses demorou a sua resposta, até aceitar o convite.

Saraiva, ao contrário de seu antecessor, e certo de vencer assim os escrúpulos do senado, julgava possível a Reforma sem a Constituinte. Como Rui, êle também fora passar na Bahia a vilegiatura. Ali recebera a incumbência de organizar o ministério e desejava chegar à Corte sobraçando o seu projeto. Seria, po-

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rém, capaz de redigi-lo? Dele se dizia que há muitos anos nada lia além da "Révue des Deux Mondes". Conceito pouco lisonjeiro, talvez não muito longe da verdade, mas que o irritava. O certo é que, por intermédio do cons. Dantas, escolhido para ministro da Justiça do novo governo, Saraiva confiou a Rui a tarefa de elaborar o projeto de lei da eleição direta. Como sempre, entre-gavam-lhe o maior trabalho, nunca o melhor quinhão.

Aliás, por estar doente na ocasião, o velho Dantas não pôde procurar Rui pessoalmente, para lhe transmitir, junto com as sugestões, que Saraiva mandara escritas do seu engenho, na Po-juca, o pedido para redigir o projeto da Reforma. Incumbira Rodolfo e Sátiro Dias, antigo colega de Rui, no "Ginásio Baiano". Havia pressa, disseram-lhe, e tudo deveria estar pronto em quarenta e oito horas. Prazo extraordinariamente curto, e Rui relutou em aceitar a incumbência. (5) Mas, como diria mais tarde, poderia furtar-se à "obediência, e à fascinação de uma ideia" que o arrebatava? (6) Certamente, não. E, mal tendo tempo para comer c dormir, lançou-se ardentemente à redação do projeto. Assim, inesperadamente, tocava-lhe ser o autor de uma reforma pela qual se batera desde os bancos académicos. Pregara-a na imprensa e na tribuna, c constituía um dos seus mais arraigados ideais políticos. De lato, êlc a ambicionara. E, ao morrer, entre os seus papéis, guardando algumas tiras de jornal amarelecidas pelo tempo, foi encontrado um envelope, onde colocara estas palavras, lembrando os dias idos da mocidade: "Velhos escritos meus da Bahia, em 1872 ou 1873, artigos sobre a Reforma Eleitoral." (7)

No prazo marcado, o trabalho estava concluído. Era completo. E, assim, tendo-o tal como pedira e desejara, Saraiva podia embarcar levando o "seu" projeto.

Em 28 de março de 1880, depois de apresentar a Sua Majestade os novos ministros, Saraiva assumiu o poder. Ia realizar a Reforma em cujas águas naufragara Sinimbu. A princípio o Imperador insistira pela necessidade de reforma da Constituição. Contudo, não custou em ceder às ideias de Saraiva.

Com o velho Dantas à frente da pasta da Justiça, Rui pôde ver satisfeita neste ano antiga aspiração do primo Albino. Chegara a oportunidade dele servir àquele amigo tão dedicado e tão bom, que o auxiliara em momentos difíceis, como já havia ajudado a João Barbosa. Vagara-se o posto supremo na magistratura do país e, tendo intercedido em favor do parente, Rui não tardou em receber com alegria esta informação de Dantas: "Res-

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pondo-te agora, deixando-te em confiança, que ontem, à noite, cm despacho, propus e ficou resolvida a nomeação do cons. Albino para Presidente do Supremo Tribunal de Justiça". Era a cúpula da longa carreira de magistrado, o o seu artífice principal fora aquele rapazinho pálido e ardente, que o cons. Albino recebera doze anos antes de viagem para São Paulo.

Nesse ano, a Reforma absorveu quase toda a atividade parlamentar de Rui, que em maio, completando o projeto redigido para Saraiva, enviou a Dantas novas sugestões:

"Sob o pensamento fixo, que nos domina, de fazer do nosso projeto sobre eleições uma lei tão perfeitamente liberal quanto as circunstâncias nos permitirem, cumpro, segundo me parece, um dever cujo alcance todos sentimos, manifestando a V. Excia., e rogando-lhc a fineza de comunicá-las ao nosso ilustre e prezadíssimo amigo e chefe o senhor cons. Saraiva, certas reflexões que de dia em dia vão atnando com mais força em meu espírito". (8) Em seguida embora reconhecesse não haver nenhum sistema capaz de evitar totalmente a fraude, desejava reduzi-la ao mínimo. Para isto, propunha a criação de um imposto de um por cento sobre o aluguel de todas as casas de valor locativo superior a cem mil réis por ano, destinado à propagação do ensino popular e gratuito, nos municípios que o arrecadassem. O imposto visava coibir os recibos graciosos, que os proprietários forneciam, para provar a capacidade eleitoral de locatários fictícios, pois uma das condições exigidas para votar era habitar em casa de preço não inferior àquele. Sugeria ainda outras medidas contra as falsificações. Tudo muito engenhoso e um pouco parecido com o que se fizera na Inglaterra em 1867. Mas, Saraiva, mais apaixonado pelo projeto do que o seu próprio autor, mostrou-se infenso a qualquer modificação.

Aliás, inteiramente dominado pela ideia da Reforma, Rui defendia o ministério apaixonadamente. E, quando a nomeação dos veadores provocou algumas críticas, logo apareceu, sob o pseudónimo de "Espectador", pelas colunas do "Jornal do Comércio", para enfrentar o cons. Pereira da Silva. (9)

e o *

Por esse tempo, ventilada na câmara a secularização dos cemitérios, Rui interveio nos debates desabusadamente. Nem o seu querido Rodolfo conseguiu acalmá-lo. Ainda estavam muito vivas as feridas causadas pelo "O Papa e o Concílio" e o discurso, que pronunciou sobre o assunto, cheio de frases cruéis

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contra o clero, causou escândalo, sem precedentes. De várias obras de escritores católicos, inclusive a "Teologia Moral Universal", do padre Letter, as "Pérolas de São Francisco", do padre Huguet, e os "Exercícios Espirituais", de Santo Inácio, retirara trechos' cuidadosamente escolhidos, que analisou impiedosamente. Principalmente a parte referente à confissão, referta de citações latinas, deixou o auditório estarrecido. Parecia incrível haver alguém capaz de dizer tais coisas. Quando se referiu às associações católicas, organizadas nos moldes jesuíticos, a atmosfera da Câmara tornou-se pesada. Se vários deputados apoiavam o orador, um profundo mal-estar dominava certa parte da assembleia. Imagine-se a indignação com que a corporação, católica na sua quase totalidade, teve de suportar frases como esta: "Esta distinção insuperável, dizia Rui, entre donzelas e casadas é característica: liga-se ao sentimento impuro como toda a moral vati-canista, que faz corar as mães diante das filhas, e às virgens insinua a ideia de uma missão desnaturai, reservada no celibato, alheia, e superior à maternidade. Como se esta não fosse a florescência sublime daquela (muito bem!). Como se a mãe não constituísse a expansão natural da virgem (muito bem!). Como so alguma filha, que não tenha perdido a alma sob a couraça negra de Loiola, pudesse convenecr-se nunca que o seio de nossas mães seja menos santo do que a casta fronte de nossas irmãs!" (apoiados; muito bem!) Roma não o perdoaria.

Esta azeda digressão sobre as campas dos mortos foi apenas um parêntesis. Os cemitérios continuaram nas mãos da Igreja e as atenções voltaram a convergir para a Reforma. Acreditava-se que a modificação do sistema eleitoral teria um efeito miraculoso. Coibidas as fraudes eleitorais, o parlamento representaria realmente a nação. As colheitas seriam abundantes. As pragas desapareceriam dos campos. Os desempregados ver-se-iam nomeados. E uma geral prosperidade se derramaria pelo país. Estes eram mais ou menos os resultados esperados da Reforma, onde cada qual punha o remédio e a esperança para os seus males. A Reforma devia ser uma espécie de panaceia universal.

A onda tornara-se invencível, e sobre o seu dorso Saraiva navegava feliz. O próprio Imperador era-lhe favorável. E assim, empurrada por tão fortes ventos, não tardou em converter-se em lei, a 9 de janeiro de 1881. Saraiva ganhara a partida.

Mais do que ele quem triunfava era Rui, cujas ideias, exce-tuada a questão do voto aos estrangeiros nas eleições municipais, haviam sido integralmente aprovadas pelo parlamento. Desapa-

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recia, assim, o escrutínio phuinominal, que os liberais tanto haviam combatido, ao mesmo tempo em que se declarava elegíveis os católicos, os libertos, e os naturalizados. Depois de mais de dez anos de lutas, Rui assistia à consagração da eleição direta.

Satisfeito com o triunfo das suas ideias, Rui escreveu a Saraiva congratulando-se pela vitória. Era também um modo de fazer-se lembrado: "Agora o partido liberal poderia cair de pé." (10) A resposta, amável, reconhecia-lhe os serviços prestados: "Os sentimentos que a vitória da reforma eleitoral inspirou-lhe o teve V. Ex. a bondade de manifestar-mc em carta de anteontem, hoje recebida, indicam bem a energia do seu patriotismo, e a elevação do seu caráter. Se o Gabinete de 28 de março não tivesse amigos e auxiliares de sua ordem, não teríamos podido realizar com tanta felicidade uma reforma que, como muito bem diz V. Ex., honra o partido liberal e mostra que êle é capaz de governar o país". (11)

Sim, os liberais podiam governar o país. Mas Saraiva, bastante sagaz para compreender quo os aplausos nunca tardam em se converter em críticas, julgou concluída a sua missão. D. Pedro II não aceitou, porém, a renúncia: ao autor da lei competia também presidir às primeiras eleições sob o novo sistema.

A vitória foi o desencanto. O parlamento encerrara as sessões, e Rui regressou à Bahia, com Maria Augusta. A tranquilidade permitia-lhe ver, agora, uma porção de coisas que não pudera perceber durante a luta. Sobretudo, sentir como era precária a sua situação financeira. Custara-lhe bem caro esse ano passado na Corte, e podia compreender quanto necessitava recompor as finanças. As suas responsabilidades ficavam sempre maiores. A prole aumentara com o nascimento de uma viva menina, que se chamou Francisca, e, assim, já três crianças alegravam o lar do idealista tão duramente batido pela vida. "Preciso de um ano de advocacia, escreveu êle a Jacobina, a fim de ver se reparo algumas avarias deste casco tão arrombado pelos sacrifícios que a política impôs". (12) E não desejava sequer que se transformasse em realidade a notícia propalada da sua nomeação para presidente da Província de Pernambuco.

Mas, os proventos da advocacia foram lentos. E, como malograra a fundação de um banco hipotecário imaginado por Jacobina, teve de restringir bastante os seus sonhos de fortuna. Pensava traduzir as "Lições de Coisas", de Calkins. Ideia tam-l«'in frustrada, mas que o ocupou por algum tempo.

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Assim êle descreveu esse período a Jacobina: "Acrescente a isso as obrigações de redator do "Diário", que pesam principalmente sobre mim, e me constrangem e escrever quase todo o dia, os deveres de minha profissão de advogado e as labutações do alistamento eleitoral, de cujos trabalhos o centro aqui somos eu e Rodolfo, e veja se não é quase um milagre que o tempo e a saúde cheguem para tanto. Depois, o foro este ano tem sido miserável, e apesar de termos causas, algumas das quais prometem resultado, ainda não começou a pingar para o nosso escritório. Junte tudo isso e calcule o que não deve ter sido aqui a vida deste seu pobre amigo." (13)

O exagero era evidente. Apesar de não ter conseguido des-vencilhar-se dos compromissos herdados de João Barbosa, melhorara sensivelmente a sua posição nestes últimos quatro anos: auxiliado por Maria Augusta, começava a escalar o abismo. Mas, quando poderia vencê-lo completamente? Tantas vezes tivera de recomeçar, que devia sempre contar com obstáculos inesperados no seu caminho.

Aliás, nesse ano, ao comemorar-se o decenário da morte de Castro Alves, seu colega na academia e companheiro de "república", Rui obteve justo triunfo literário com a conferência, que intitulou "Elogio do poela". O estilo aprimorara-se e já era bem diferente do prefácio do "O 1'apa e o Concílio", muitas vezes difícil e deselegante. Inspirado pelo assunto, falando do amigo tão cedo desaparecido, Rui fê/.-lhe, comovido, o maior elogio até então ouvido sobre o autor das "Espumas Flutuantes", cuja glória, a esse tempo, ainda se discutia e até se negava. Evocando o poeta "semelhante aos deuses pela voz", lembrara-se de como o vira em meio dos triunfos alcançados em São Paulo: "Eu o fitava como grimpa de longínquos Alpes, deleitando-me em contemplar-lhe na ampla fronte o despontar do sol". (14) Foi imenso o êxito da conferência.

Rodolfo, então no Rio, associou-se ao triunfo de Rui: "Bravo por teu discurso ao Castro Alves: estamos todos entusiasmados com êle! Ando-o mostrando a todo mundo: ontem dei-o a ler ao Machado de Assis que me devolveu hoje e bem entusiasmado". (15) Assim, aos aplausos da Província juntavam-se os de Machado de Assis, já então dos críticos mais autorizados do país. Quase um Papa da literatura brasileira.

Mas, dissolvida a Câmara, a fim de que a nação experimentasse sem demora os benefícios da lei ambicionada, os obstáculos começaram a aparecer. Apesar dos esforços de Dantas, Rui não

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conseguiu reunir em torno da sua candidatura a unanimidade dos liberais e pequena facção dissidente resolveu apresentar o nome de um tal José Álvares do Amaral. A injustiça, pois não se explicava a má vontade de referência a um correligionário de tantos serviços ao partido, a injustiça magoou-o e quis desistir da candidatura. Dantas obstou-o, porém, de maneira categórica: "Não podes deixar de ser; ninguém tem o direito de te preterir, nem tu de renunciar". Contudo, a divergência no seio do partido era mau prenúncio, principalmente quando devia competir com forte candidato conservador, o respeitável médico Freire de Carvalho. E não era só. Luiz António, como sempre, espreitava-o. Das colunas do "O Monitor", animado por cólera sagrada, êle investia contra o sobrinho. "O ano passado, comunicou o conselheiro Albino a Jacobina, o Otaviano censurava o sobrinho por ter escrito contra o tio coisas inconvenientes. . . Agora é o tio que atassalha o sobrinho." (16) Jacobina à mulher: "Rui vive na sua mortificação eleitoral, e o tio Luiz António manda-o insultar por todas as maneiras. Hei de mandar uns jornais a teu pai para êle ver como são amáveis aqui na grande imprensa, e ver como é o tal parente". (17)

Nada entretanto foi mais explorado pelos adversários de Rui do que ter assinado como testemunha de fato a que não assistira. Realmente, a pedido de Rodolfo, acedera em subscrever como testemunha num documento cuja feitura não presenciara e isso foi logo provado pelo confronto das datas e certidões da polícia, mostrando encontrar-se êle, na ocasião, ausente da Bahia. Simples imprudência, pois não havia qualquer prejudicado, mas a imputação de falsário (era a expressão usada) nas vésperas do pleito, e a necessidade de justificar-se, não constituíam elementos favoráveis. (18)

A princípio, no começo do ano, parecera segura a vitória de Rui, que assim escrevia a Jacobina: "Segundo todas as probabilidades, pois, a minha eleição pode^se ter por certa. Hoje, creia-me, se alguma coisa me alvoroça ao pensar nela é a esperança da boa companhia sua e dos seus e a ideia de viver alguns meses uma vida menos vegetativa e mesquinha que a desta aldeia grande. Quanto ao mais, quanto à política, bem poucas são hoje as ilusões que me restam, e, se me pusessem no olho da rua, não teria mais saudades que o moído Sancho, quando se despedia da sua Barataria, dizendo como eu posso também dizer: "Desnudo nasci, desnudo me hallo, ni pierdo ni gafio". (19)

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A verdade, entretanto, é que ao sentir o perigo êle se desdobrou em febril atividade para evitar a derrota. Pelo próprio feitio era-lho impossível assistir algum revés com a indiferença fantasiada na carta a Jacobina. Esteve, aliás, bem próximo de experimentá-lo nessa ocasião.

Em agosto, ainda cheio de esperanças nos resultados da Reforma, Rui marcou a sua posição, como candidato, num manifesto ao eleitorado. Referia-se ao mandato como "o mais árduo e grave compromisso que um cidadão pode contrair para com o seu país", lembrava os projetos de Peei e Gladstone, na Inglaterra, e, já vencida a etapa da eleição direta, acenava com outras reformas no campo da instrução, das finanças, do trabalho livre, e da justiça. No âmago, entretanto, o que estava era a Reforma, e, desvanecido, recordava o papel que lhe coubera na realização de Saraiva:

"Sobre essa reforma, dizia, que tem de restituir ao povo o governo de si mesmo, vai se pronunciar o imenso tribunal do eleitorado, que indubitavelmente a coroará. E, se, nesta ocasião, de alguma coisa é lícito a um candidato, humilde como eu, o enso-berbecer-se, nada mais digno de inspirar esse sentimento, do que o ter experimentado a felicidade, que me coube, de apoiar o gabinete que concebeu essa reforma, de pertencer à câmara que fêz, c de colaborar particularmente entre os seus mais íntimos, ativos e devotados cooperadores". E, como se apelasse para o julgamento do futuro, acrescentava:

"As injúrias, natural é que estejam, e sempre estiveram, e em toda a parte hão de estar, na razão direta da grandeza da obra consumada, na razão direta da vitória da moralidade sobre o abuso, da liberdade sobre a reação. Mas as injúrias são efémeras: não hão de pesar nem na vossa decisão, nem na justiça do tempo, que, para as reformas políticas, não se demora". (20) Para êle o pleito equivalia a um julgamento.

E, havendo-se dirigido a Saraiva sobre a eleição, não poderia deixar de experimentar certa decepção ao receber a resposta, muito seca, tão fria quanto o seu autor. "Recebi a carta, dizia Saraiva, que teve a delicadeza de escrever-me a propósito de sua eleição. Meu apoio não aumentará as suas probabilidades de vitória; pois sua causa está em boas mãos. Se, porém, de meus conselhos e de meus desejos, lhe puder vir alguma vantagem, deve contar com isso'. E (21) assinava, cheio de cerimónia: "De V. Ex. Amigo e colega J. A. Saraiva." Como era diferente do ve-

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lho Dantas, expansivo e amável, esse homem álgido, medido, distante.

Em todo o país, animados os partidos pela promessa de Saraiva, que anunciara não consentir em qualquer fraude, o pleito foi dos mais renhidos. Saraiva mantivera absoluta imparcialidade e o conselheiro Pedro Luiz e o barão Homem de Melo, ambos ministros, não lograram eleger-se. Nabuco também viu-se excluído da Câmara. Era o preço das eleições livres.

Na Bahia, onde Rui se incompatibilizara com o Presidente da Província, o visconde de Paranaguá, aquele que o acolhera tão gentilmente em 1876, ao apurar-se o resultado do segundo distrito da Capital, — a circunscrição de Rui, — verifieou-se não ter qualquer dos candidatos obtido a maioria necessária para vencer. Era a consequência da cisão dos liberais. Freire alcançara 404 votos e Rui 378. "Estou desapontado com o resultado de sua eleição", (22) escreveu a Rui o cónego Teodolindo, o velho amigo de João Barbosa. E, certamente, não estaria mais desapontado do que o próprio Rui. Um segundo escrutínio, nos primeiros dias de dezembro, decidiria.

O intervalo foi trabalhoso para os concorrentes. Toda aquela indiferença, que Rui transmitira a Jacobina, se transformou depressa num afã incontido de vitória. E apesar do constrangimento que isso deveria representar para o tímido, visitou os votantes pessoalmente, solicitando-lhes o apoio. Verdadeira peregrinação pelas casas dos eleitores.

Tamanho foi o interesse despertado pela competição, que poucos deixaram de ir depositar a sua cédula. Até um eleitor, euja mulher falecera na véspera, compareceu e, como se tratava de um liberal, não escapou às censuras dos conservadores. Por fim, terminada a contagem, escassa maioria de vinte votos assegurou o triunfo de Rui: 444 contra 424. Ah! Sancho não se despedira da sua Barataria.

Alguns dias depois, o "Olbers" conduziu o vencedor para a Corte. Rui deixava a "aldeia grande".

NOTAS AO CAPITULO IX

(1) Cf. entrevista de Rui à "Noite" (Rio), de 22 de fevereiro de 1919. (2) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 11 de junho de 1881,

in Arq. C. R. B. (3) Machado de Assis, "A Semana", ed. de Mário de Alencar, p. 41.

Artigo datado de 27 de novembro de 1892. (4) Afonso Celso, obr. cit. p. 86.

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(5) Cf. artigo de Rui Barbosa, no "Correio da Manhã", de 21 de dezembro de 1901.

(6) Idem, idem. (7) In Arq. C. R. B. Acreditamos oportuno esclarecer aqui a posição

de Rui em face da lei da eleição direta, assunto às vezes debatido. A adoção desse sistema era dos mais antigos ideais políticos de Rui. Em 186!) figurava no programa do "Radical Paulistano", do qual era redator, c, em 1874, seria o tema da conferência que em 2 de agosto dêssc ano proferiu no teatro S. João, na Bahia (V. Rui Barbosa. Discursos e Conferências, Porto 1907, p . 11). Antes, em 1872 ou 1873, conforme nota acima citada, escrevera sobre a matéria no "Diário da Bahia". Quanto à parte que leve na elaboração da lei podem ser consultados o discurso, que pronunciou, em 7 de junho de 1885, em homenagem ao ministério Dantas, bem como o discurso na Câmara dos Deputados em 6 de março de 1882 (Anais da Câmara, sessão de 1881, vol. II, p. 148), e a conferência de Cachoeira, em 21-12-1919. Em 10 de dezembro de 1901, no 'Correio da Manhã', publicou o barão Homem de Melo, membro do gabinete Saraiva, um artigo dizendo ter sido o projeto Saraiva comunicado a Rui pelo cons. Dantas, e que aquele, "sem lhe fazer alteração, deu-lhe na forma esse cunho purista que êle imprime em todos os trabalhos deste género, que lhe passam pelas m ã o s . . . " Rui, pelo "Correio da Manhã" de 21 de dezembro de 1901, reproduzindo literalmente o manuscrito recebido do cons. Saraiva, deu ao barão Homem do Melo a seguinte resposta, que acreditamos do maior valor histórico: "Saraiva e o projeto eleitoral". Ocupando-se com este assunto na primeira coluna do Correio da Manhã, escreveu hoje o Barão Homem de Melo estas palavras: "Aceitando a incumbência de organizar gabinete, o conselheiro Saraiva, que na legislatura de 1855 já tinha sido um dos estrénuos piopuguadoies da lei dos círculos do Marquês de Paraná, formulou na Pojuea o seu projeto de reforma, decretando a eleição direta censitária por lei ordinária, consagrando aquele princípio bem como a incompatibilidade absoluta da magistratura, a extensão dos direitos políticos aos acató-licos, a incompatibilidade dos membros do parlamento para quaisquer cargos que não fossem de missão diplomática ou de presidente de província, a incompatibilidade dos ministros para eleição senatorial enquanto exercessem este cargo. Este projeto foi comunicado da Bahia ao conselheiro Dantas e ao dr. Rui Barbosa, o qual, sem lhe fazer alteração, deu-lhe na forma esse cunho purista; que êle imprime em todos os trabalhos deste género, que lhe passam pelas mãos".

Peço licença, para dizer que, nas últimas linhas, por mim grifadas, mui longe está de ser exato este testemunho. Não o contrariaria, (tamanha é a reverência que me inspira o nome do conselheiro Saraiva), se já uma vez, ocupando-me, n'A Imprensa, com esse episódio, eu não houvesse dito que o projeto submetido por aquele eminente estadista à coroa era trabalho meu, para o qual êle concorrera somente com as bases principais, formuladas em ligeiras notas. Tendo eu, porém, dado publicamente esse depoimento, e sendo éle a rigorosa expressão dos fatos, não me seria lícito deixá-lo passar por falso, autorizando com a minha mudez a versão, que agora o desmente. Chamado a ocupar, no gabinete, ao 1.° de janeiro, a pasta do Império, só dos fatos posteriores à sua organização, ou dos que o precederam nesta capital, pode ter sido testemunho o barão Homem de Melo. Dos que antes disso ocorreram na Bahia para o Rio, não podia

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s. ex. ter conhecimento senão de oitiva. Passaram entre o conselheiro Saraiva, o conselheiro Dantas e mim. Dos três resto eu, que bem constrangido me acharia, para depor no caso. Felizmente, porém, nas minhas mãos deixou o próprio conselheiro Saraiva, sob uma forma inalterável, o original autêntico da sua contribuição.

Recebido o telegrama do Imperador, telegrafou para logo o conselheiro Saraiva ao seu amigo Dantas, chamando-o à Pojuea. Ali conferenciaram, regressando o conselheiro Dantas com a incumbência, que me comunicou, e com que me honrava o novo organizador ministerial, de elaborar eu o seu projeto programa — Trazia-me as bases, que me entregou, escritas pelo conselheiro Saraiva. Mas para tão grave tarefa apenas me deixava o lapso de dois dias. Recusei, resisti; mas tive de eeder à pressão de uma autoridade, a que se acostumara a minha obediência, e à fascinação de uma ideia, que arrebatava o meu entusiasmo. l''oi uma das mais severas provas, a que me submeteu essa amizade e a sua temerária confiança nas minhas forças. Encerrei-me por quarenta e oito horas, às quais tomei o mínimo de tempo reclamado pela fome e pelo sono. O trabalho que desse esforço resultou, revia toda a legislação concernente ao assunto, extraindo, substituindo, modificando, completando, inovando, o direito existente. Tive a satisfação de ver que foi aprovado em todas as suas partes, menos quanto ao voto que eu dava ao estrangeiro nas eleições municipais,

Não é verdade, portanto, que o egrégio brasileiro formulasse na Pojuea o seu projeto, e que eu não lhe fizesse alteração, limitando-me a dar-lhe a pureza de linguagem. Entre os meus papéis velhos se acha o que o conselheiro Saraiva formulou na Pojuea, e que fica, em minha casa, à disposição de quem o queira ver por seus olhos. Está lançado pela mão do conselheiro Saraiva, cuja letra, bem conhecida, tem um caráter de singularidade inimitável. Epigrafou-o êle mesmo com o título: "Bases para o projeto de reforma eleitoral". Dei-me agora ao trabalho de copiar de meu punho cuidadosamente esse precioso documento histórico, que ofereço aos leitores no desalinho das suas incorreções nativas. Ver-se-á que não passam de rápidas notas, extremamente incompletas e quase informes, sem outra pretensão que a de firmarem embrionariamente algumas ideias capitais.

Sinto que a defesa da minha veracidade me obrigasse a esta retifi-cação. Bem sei que os serviços políticos, neste país, se escrevem na areia. Pouco caso faço, pois, daqueles que por ventura haja prestado. Os melhores são muitas vezes os mais obscuros, os que se consumam sem a menor esperança de notoriedade, e servem ordinariamente de pedestal ao nome alheio. O do conselheiro Saraiva, porém, não há mister de tais empréstimos. Na reforma eleitoral a sua glória me parece de uma evidência inobumbrável. Nenhum dos contingentes ,que o auxiliaram, lhe desbota o merecimento. Êle concebeu, ousou, e fêz. São essas as maiores virtudes do homem de estado: a iniciativa, a independência e a vontade. Ninguém as teve, entre nós, em mais elevado grau. "Rui Barbosa", 19 de dezembro.

O depoimento de Rui foi integralmente confirmado por Sátiro Dias, que lhe escreveu a seguinte carta (In Arq. C. R. B.): — "Rio, 22 de dezembro de 1901, Prezado e ilustre amigo Rui:

Li no Correio da Manhã de ontem a sua retificação ao que escreveu o honrado Sr. Barão Homem de Melo a propósito do projeto eleitoral do Cons. Saraiva, e acudo a prestar o meu testemunho pessoal à perfeita veracidade dessa retificação.

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Não cslão felizmente mortos todos quantos poderiam depor no caso: resto também cu, além de V., que realmente o faria constrangido, se não houvesse conservado entre seus papéis o precioso documento traçado do próprio punho daquele preclaro estadista baiano.

Quando o Cons. Dantas o recebeu da Pojuca, estava de cama, como V. se recordará; c mandando-me chamar à sua casa, deu-me a mim e ao nosso saudoso amigo Rodolfo Dantas a incumbência de o levarmos a V. em sua residência, na Barra.

O Dantas leu para ouvirmos esse documento, e o Rodolfo e eu o lemos também depois, em viagem para aquele arrabalde, onde V. nos recebeu no seu gabinete de trabalho, ao rés do chão.

Ai lho entreguei eu, e guardo bem viva não só a reminiscência do caráter da letra do Saraiva, de singularidade inimitável, como a imagem do próprio trabalho, lançado em tiras de papel curto, e agora dado por V. à publicidade em cópia tão fiel, que me parece ter à vista o próprio original.

Andávamos então, nós os moços daquele tempo, muito entusiasmados com a organização do novo ministério e com o seu programa; e foi com verdadeiro alvoroço da alma que eu tive nas mãos por algum tempo essas bases do grande projeto eleitoral, que V. efetivamente elaborou em 48 horas, o que foi objeto no parlamento do memorável debate, do qual saiu a reforma da eleição direta.

listas coisas não esquecem a ninguém; e pois, se este meu depoimento tiver alguma valia, eu lho entrego nestas linhas escritas por muito gosto c amor da verdade. Sempre seu velho amigo e grande admirador. Satyro Dias". Nas Obras Completas, vol. VII, tomo I, estão os fac-símiles do esboço do Saraiva o do projeto de Rui Barbosa.

(8) Carta de Rui ao cons. Dantas, em 17 de maio de 1880, in Arq. C - R - B - i i * / • T

(9) Somente agora, por uma nota encontrada pelo dr. Américo Jacobina Lacombe, ilustre diretor da "Casa de Rui Barbosa", no arquivo de Rui Barbosa, foi identificado como sendo da autoria de Rui o artigo publicado no "Jornal do Comércio" de 6 de maio de 1880 (A Pedidos) sob o pseudónimo de "Espectador", intitulado "O Cruzeiro e a nomeação de veadores". Traz a data de 3 de maio de 1880.

(10) Cf. carta de Rui ao cons. Saraiva, em 20 de dezembro de 1880, in Arq. C. R. B.

(11) Cf. carta do cons. Saraiva a Rui, s. d., in Arq. C. R. B. (12) Cf. carta de Rui a António Jacobina, em 28 de janeiro de 1881,

in "Mocidade e Exílio", p . 117. (13) Idem, idem, carta de 13 de abril de 1881, in "Mocidade e

Exílio", p . 121. (14) Rui Barbosa, "Elogio do Poeta". (15) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 15 de julho de 1881,

in Arq. C. R. B. (16) In "Mocidade e Exílio", p . 132. (17) Idem, p. 132. (18) Para maiores informações sobre a polémica, que Um, pelo

"Diário da Bahia", manteve com o "O Monitor", podem ser consultados os artigos de Luiz Viana Filho publicados no "O Jornal", em setembro de 1946, "Uma polemica de Rui", e o trabalho do mesmo autor Rui & Nabuco (Rio 1949), pgs. 194 a 230.

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(19) Cf. carta de Rui de 13 de abril cie 1881, e já referida na nota 13. (20) Circular cie Rui ao eleitorado do 2.° distrito, datada de 10 de

agosto de 1881. (21) Cf. carta do cons. Saraiva a Hui, em 23 de outubro de 1881,

in Arq. C. R. B. (22) Cf. carta do cónego Manuel Teodolindo Ferreira a Rui, em 1.°

de novembro (não menciona o ano), in Arq. C. IV IV

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X — O S E U PRÓPRIO R E T R A T O

Débil como pareço, lenho aguentado e vencido trabalhos, morais e materiais, que organizações robustíssimas nunca experimentaram nem seriam capazes de vencer.

Rui. (carta a Maria Augusta)

MANSÃO sucumbiu sob as colunas do Templo. Saraiva fizera ^ a Reforma: a Reforma esmagara-o.

Dois ministros batidos nas eleições e vários deputados ministeriais derrotados bastaram para que, a 21 de janeiro de 1882, antes mesmo de reunidas as Câmaras, Saraiva houvesse transmitido o governo a outro liberal, Martinho Campos. Este, tendo passado a vida inteira a criticar todos os gabinetes, via chegar a sua voz do ocupar os bancos ministeriais, para ouvir as mesmas acusações, que dirigia aos seus antecessores. Maldade do destino o dos homens. Mas, choio do bom humor, pronto para receber com sobranceria os ataques, ôle chamava ao ministério, onde figuravam jovens de menos de trinta anos, como Rodolfo e Afonso Pena, "o meu colégio". A escolha de Rodolfo para ministro do Império causara viva alegria a Rui. Ainda não se vira ministro tão moço. Aos vinte e sete anos, vestia o fardão ambicionado. Lembrava Pitt na Inglaterra. E Dona Francisca Jacobina escreveu ao marido: "Rui está encantado! Coitado! Apesar de saber que tem de carregar com todo o trabalho! Enfim, êle lá sabe de si".

Realmente, apesar da certeza de arcar com boa parte do trabalho de Rodolfo, estava radiante. Era mesmo um céu aberto ver o amigo ocupando uma pasta de ministro. E, sem demora, Rui começou a arquitetar planos de ação. Seria a oportunidade para realizar algumas ideias sobre instrução pública e que, incutidas por João Barbosa, (1) estavam incorporadas aos seus ideais de adolescência.

Tarefa penosa, mas que enfrentou com decisão. Imaginava qualquer coisa de fora do comum e semelhante às transformações

0 SEU PRÓPRIO RETRATO 119

efetuadas em países de cultura muito mais difundida. Com sofreguidão e entusiasmo êle pôs mãos às obras. Coletou os elementos necessários e pouco tempo depois apresentava à Câmara um vasto projeto sobre a "Reforma do ensino secundário e superior", (2) onde muitas vezes a erudição o fizera planar num mundo diferente daquele em que vivia. A justificação ora longa e brilhante e as opiniões defendidas firmavam-so em inúmeros autores e exemplos colhidos em livros estrangeiros. A impressão causada pelo trabalho foi ao mesmo tempo de deslumbramento o ceticismo. Maravilhava a cultura do autor. Mas, em geral, oonsidorava-se inadaptável ao país aquela reforma cuidadosa o complexa. Ele, como é óbvio, pensava de maneira bem diversa: com Rodolfo no ministério, tendo carta branca para fazer o que bem entendesse, haveria de pôr em prática aquele sistema moderno. Por sinal, ninguém mais entusiasmado com o trabalho do amigo, a quem logo escreveu:

"Meu caro Rui.

"Cerca de uma hora da noite concluí a leitura do teu parecer, e ainda sob a impressão profundíssima daquelas páginas imortais não me tenho em mim que não venha abraçar-te, manifestando por ti e por tua obra toda a inoomparável admiração de que me sinto dominado.

"Seja qual fôr o êxito da nossa empresa, o teu parecer dei-xar-nos-á de pé ante o mundo, e tu haverás construído para esta fase da civilização brasileira um monumento que há de deixá-la bem com o século!

"Beija-te e abraça-te teu

Rodolfo."

O próprio Imperador interessara-se pelo parecer extraordinário, e Rodolfo comunicava a Rui: "Logo que tiveres uma boa prova do parecer manda-ma, para que eu a envie ao Imperador que está doido por ler-te". (3) E, como era natural, isso lison-geava o erudito.

Agora, tudo seria fácil para Rui. Voltara a cogitar da edição das "Lições de Coisas" numa grande tiragem oficial e esperava fartos lucros da publicação. Rodolfo também o incumbira de escrever a parte da instrução pública do relatório, que deveria

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120 A VIDA DE RUI BARBOSA

apresentar como ministro, e tudo marchava num mar de rosas. Nunca se vira alguém mais contente por ter um amigo no gabinete!

E uma correspondência íntima cheia de afeto, testemunhava a perfeita identidade dos dois amigos. Rodolfo a Rui: "Manda a pasta com os papéis. Não vou hoje à Câmara. Quando de lá saíres vem para cá. Saudades a Cota e beijos a Dedélia. Teu do C . . . " (4) Ou então: "Meu Rui. Se já tiveres concluído o discurso, manda-mo pelo portador. Teu Rodolfo". (5) E, cheio de zelo, vigilante, Rodolfo não se esquecia sequer de moderar o temperamento impetuoso de admirável companheiro: "Estou ansioso por ouvir-te: na forma sê o mais moderado e delicado que te fôr possível". (6) ^

Infelizmente, o gabinete não teria vida longa. "Rui. O portador vai buscar o capítulo do relatório. Teu do coração, Rodolfo". (7) Este bilhete trazia a data de 6 de junho de 1882. Menos de um mês depois, o ministério caiu, inesperadamente, por um voto de desconfiança da Câmara.

Rui ficou desolado. Iam por água abaixo os seus planos grandiosos de reforma da instrução e estava como o construtor que não tivesse tido senão o tempo preciso para reunir o material necessário à sua obra. A tradução também não seria publicada ainda desta vez.

O próprio Rodolfo, surpreendido pelo revés, não tivera tempo de atendê-lo como desejava nas suas pretensões. Aliás, delicado mas exigente na amizade, Rui não se mostrou satisfeito, segundo é possível inferir desta carta que lhe escrevera Rodolfo: "Quanto à tua tradução e petições que me deste, devo dizer-te que nunca me tendo até hoje esquecido de coisa que te interesse, ou que me houvesses recomendado, tive a respeito, na antevéspera de saúdo Ministério, uma conferência com o Imperador, o qual marcou-me o dia de sábado, às 5 horas da tarde, para ir a São Cristóvão, a fim de restituir-me o livro (tradução) que êle acha deve ter uma edição ainda maior do que aquela que eu próprio queria, pelo que acrescentou-me que se incumbiria de falar ao novo ministro a fim de que este tudo fizesse. Esta, a razão p o r q u e eu próprio não fiz tudo. Do que se passar na minha conferência de sábado com o Imperador, dar-te-ei conta fiel e exata". (8) ^

Leão Veloso, antigo colega de Rui no "Diário da Bahia , substitui Rodolfo no novo ministério. João Moura ocupou a pasta da Justiça. Mas, a chefia do gabinete coube ao visconde de Para-

O SEU 1'RÓPHIO RETRATO 121

naguá, com quem Rui se incompatibilizara por ocasião das últimas eleições. Talvez por isto, a tradução permaneceu inédita.

Poucas situações poderiam ser mais desagradáveis a Rui do que ver Paranaguá dirigindo o ministério. Embora seu desafeto, tratava-se dum liberal. Resultado: perdia os favores, mas não o podia atacar. Que devia fazer? O melhor foi eonsiderar-se como político meio em férias e retirar-se para um neriodo de estudos mais intensos. Alguns meses de retraimento, dando mesmo a impressão de certa indiferença pelos acontecimentos políticos, não fariam mal. E era elegante — lembrava os parlamentares britânicos. Assim, salvo a continuação de alguns trabalhos sobre a instrução, Rui reduziu ao mínimo possível a atividade na Câmara. Em setembro, porém, apresentou o parecer sobre a Reforma do Ensino Primário, trabalho mais minucioso, extenso e erudito do que o que fizera sobre os outros dois graus do ensino. Talvez melhor. (9) Pouco amigo de suportar por muito tempo o esquecimento, deve ter-lhe feito bem saber que falavam dele, da sua cultura e da sua inteligência.

Daí por diante o programa de retraimento que se impusera foi rigorosamente observado. A vida de Rui tornou-se então a de um pacato pai de família burguês. Maria Augusta ia aos banhos de mar com os filhos e o casal recebia apenas um número restrito de íntimos. Nas datas de aniversários havia pequenos jantares, bebia-se champanha, trocavam-se brindes e falava-se do teatro. Às vezes, por não haver piano na casa de Rui, as reuniões terminavam na residência de Jacobina, onde Dona Francisca Jacobina cantava árias clássicas. (10) Realizavam-se jogos de salão e os cavalheiros improvisavam versos, charadas e anagramas. Tudo muito íntimo, e isso agradava a Rui, que se conservava de bom humor.

Uma existência que diriam exemplar, se não fosse a fama de ateu perseguindo-o perigosamente. Até as damas do Paço, que cercavam a princesa Izabel, não o julgavam com maior indulgência. A condessa de Barrai, apresentada a um dos filhos de Dantas, logo exclamara quase escandalizada: "Ah! os filhos do senhor Dantas são muito irreligiosos, muito irreligiosos!" (11) E quando se dizia "os filhos do senhor Dantas", Rui estava incluído. Eram inseparáveis.

Felizmente, não durou muito o ministério de Paranaguá. De-samparara-o a fortuna política e em menos de um ano fora substituído pelo conselheiro Lafayette Pereira, jurista conceituado. Lafayette tinha sido dos signatários do manifesto republicano

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122 A VIDA DE RUI BARBOA

de 1870 e a escolha provocara risos discretos. Entretanto, bastante cético para não acreditar muito em formas de governo, poderia apegar-se a qualquer delas por amor-próprio, nunca por uma profunda convicção. Mas de qualquer modo, não deixava de ser estranho vê-lo agora primeiro ministro de Sua Majestade.

Apesar da satisfação proporcionada pela descida de Paranaguá do poder, várias vezes, por esse tempo, Maria Augusta surpreendeu Rui com lágrimas nos olhos. Por que? O motivo era quase infantil: Rodolfo ia casar-se. Sob a couraça do lutador batia um coração sensível, capaz de grandes afetos, e êle vira no enlace a perda do amigo. Ideia dolorosa e que o fez sofrer enormemente. Havia mais de dez anos que estavam unidos por um puro sentimento fraternal e sem jaca. E durante todo esse tempo haviam tido os mesmos ideais, as mesmas lutas, e os mesmos desenganos.

Não fazia muito que, num livro, Rui pusera essa dedicatória sentimental: "Loin, infiniment loin d'être "un joli petit souvenir", le pauvre livre, mon Rodolfe, ne s'excuse pas que comme un pâle et lointain souvenir d'une amitié fraternelle". (12)

Poderiam continuar como tinham sido até então? A imaginação de Rui fantasiava uma separação iminente e irremediável, para sempre. O casamento... a mulher . . . os filhos... Não. Rodolfo, absorvido por esses novos enlevos, não permaneceria tal qual o desejava aquele amigo exclusivista, que se concebia relegado para um segundo plano, esquecido o abandonado. Era intolerável.

A princípio, não percebera, ou não quisera acreditar, naquela união que o amor, com o vagar das obras perfeitas, ia tecendo entre Rodolfo e a formosa Alice São Clemente, tão bela na frescura das dezoito primaveras emolduradas pelas longas tranças, sob as quais se destacava o nítido perfil grego. Filha do conde de S. Clemente, neta do barão de Nova Friburgo e do barão de Quaraim, descendia da melhor nobreza do país. E, à nobreza, aliava a riqueza. Imensas extensões de terras, na Província do Rio de Janeiro, representavam o domínio dos Nova Friburgo.

Toda a sociedade elegante da Corte comentou os amores do jovem político, que, antes dos trinta anos, já ocupara uma pasta de ministro. As moças não compreendiam por que se opunha o conde de S. Clemente às preferências da filha por aquele homem belo e inteligente. Antes, ela fora noiva de um Nioac, mas isso não passara de episódio sem importância sentimental na alma adolescente da venturosa herdeira, que amava Rodolfo e não atendeu à vontade paterna. Rui teve de habituar-se e conformar-se com

O SEU PRÓPRIO RETRATO 123

o que ia acontecer. E, receoso de perder o amigo, tomou-se ainda mais delicado e terno na amizade.

Nesse ano, quando Rodolfo festejou o seu natalício, Rui man-dou-lhe um livro de Tennyson. Acabara simpatizando com Alice e o presente destinava-se ao par amoroso, que o matrimónio uniria para sempre, duas semanas depois. E uma carta, verdadeira filigrana de sentimento e de suavidade, acompanhou os versos do poeta. Nela, como esnobismo, havia longo trecho em inglês.

Itui u Rodolfo:

"Meu Uodolfo. Recebe o meu abraço, o de tua comadre e ON boijON (le tua afilhadinha, neste dia que, sabes, e do culto mais ftmtlvo puni esta casa.

"Gludltoiw, meu Rodolfo, cliuinoii a Tennyson o poeta por flXtwlAiidtt th» mulher: o que melhor a sondou, conheceu, e pintou, IIIIN NIIIIN 1'OI'IIIIIN, IION seus iiioviíiinilos, nas suas funções, e na sua capacidade. |A eiitcindcs, pois, o motivo por que te venho apresentar, entre as tuas alegrias de hoje, nessa bagatela que aí te envio, mu mimosinlio na arte da livraria, mas modesto como a condição do teu pobre amigo. Dediquei-te em algumas palavras que ousei escrever na língua do mavioso cantor de Godiva, esse idioma que tem gorgeios e trinos como os ninhos pela madrugada, alvoroçados como corações noivos. Mas, se não aceitas a consonância, e queres o meu segredo em pratos limpos para a malícia dos curiosos, aí tens o que te disse ao teu ouvido só, e com prazer te repito:

"RODOLFO"

The flowers and jewels of celestial poetry that enrich and perfume the leaves of this litle book are worth passing by the liands of the beloved angel, whose espirit and beauty will open for thee, dear brother of my heart, an infinite heaven of charm, glory and immaculate happiness.

"May its lecture contribute with a blossom, a fragrance, a pcarl, a dream, a caress, a breath of breeze, the lulling melody of a kiss, the mild confidences of a bride's longing regard under the veel of enchanting eyelids, some a gentle whisper, a touch of graee, the smile of a virtue, a bean of sun, a ray of a moonlight, <>r a drop of dew for the blessings of thy interior paradise, the delieious endearments of thy home, or the splendid scenery of

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124 A VIDA DE RUI BARBOSA

thy future, — and thy birthday this year shall remain as an ever-green date of the sweetest remembrance in the soul of thy most Irae friend, Rui". (*)

Para o "mais fiel amigo" de Rodolfo a carta significava veladamente uma despedida. Embora êle e Alice já fossem bons amigos, e estivesse resignado, tinha a convicção de que no mundo dos seus afetos acontecia alguma coisa de grave.

O suntuoso palácio do barão de Nova Friburgo abriu-se em 27 de outubro para receber os convidados ao casamento de Rodolfo e Alice. Toda a alta sociedade da Corte compareceu. A festa foi encantadora. E verdadeira multidão, composta do que havia de mais nobre e importante na época, encheu os amplos salões, para assistir à união de Rodolfo, tão mimado pela fortuna, com a mais rica herdeira do seu tempo. As quadrilhas, dançadas por aquela "jeunesse dorée", tão cheia de sonhos e de esperanças quanto o par por cuja felicidade eram todos os votos naquela noite, tiveram uma graça singular. E tudo teria sido magnífico se o conde, um tanto teimoso, não houvesse feito esperar os convivas. Dizia-se que até o iiltimo instante opusera-se ao casamento da filha.

• a « Depois da queda de Paranaguá, Rui voltou ao debate polí

tico. Passara aquele "ministério impagável", e no seu lugar estava o de Lafayette. Ninguém, porém, mais do que este necessitava de quem o defendesse, pois as suas anteriores atitudes republicanas eram um refrão, repetido todas as manhãs pelos adversários. "Não há parvajola por aí, dizia o próprio Rui, que se não divirta com o republicanismo do sr. Lafayette". Mas, estava disposto a defendê-lo e justificá-lo.

Ao próprio Imperador atribuía-se que, ao comparecer Lafaiete ao Paço envergando o seu fardão de ministro, o recebera com esta frase dúbia e maldosa: — "Fica-lhe muito bem". Seria pouco provável, pois a austeridade de Sua Majestade jamais estimara

(•) Desse trecho, Rui deixou a seguinte tradução: "As flores e Jóias de celestial poesia que se entesolram a rescendem nas folhas deste livrinho, sao dignas de passar pelas mãos do amado anjo, cujo espírito e beleza v&o abrir para ti, lrmao querido do meu coração, um Infinito céu de encantos, glória e felicidade Imaculada. Possa a leitura dele contribuir com o botão de um fruto, uma fragrância, uma pérola, um sonho, uma carícia, um sopro de brisa, a melodia de um beijo, as meigas confidências de um anelante olhar de noiva por entre o véu de umas pálpebras encantadas, o murmúrio de um segredo, um toque de graça, o sorriso de uma virtude, um dardejar de sol, um ralo de luar ou um aljôfar de orvalho para as bênçãos do teu paraíso Intimo, as deliciosas seduções do teu lar, ou a esplêndida perspectiva do teu futuro, — e o teu aniversário este ano ficará sendo uma data viçosa para sempre, nas recordações suavíssimas da alma do teu mais fiel amigo, o teu Rui".

O SEU PRÓPRIO RETRATO 125

cultivar as frases de espírito, mas a anedota circulava e todos achavam graça no republicano converso, que outrora, — diziam

comparara a farda de ministro à libré dos criados. Nada disso seria, porém, suficiente para embaraçar a dialé-

tica de Rui, inteiramente identificado com Lafayette e disposto a provar a sem razão dos que censuravam o primeiro ministro. E, escondido sob o pseudónimo de "Salisbury" - élc nunca deixava os ingleses — Rui publicou uma série de artigos intitulados "Féria política", (13) onde se propunha a justificar a atitude do ex-re-publicano, aceitando a direção do país.

Não será preciso dizer que usaria de alguns exemplos impor tiulos ila Inglaterra, que nunca lhe faltavam. Parecia guardá-los paru u» ocasiões oportunas. Quem não se lembraria de Charles Dllke, doclainndo-so republicano ein Bristol após haver atacado H lilta olvll (111 Hiiinha Vitória? Isso acontecera em 1871 e valera HO MU autor iiinu chuvu do apodos. Mas, os anos haviam pas-NU(1(>, «, proNonteinonto, Slr Cliailes Dilke participava do gabinete de Clndstono, era conselheiro da Rainha e "president of the local govornment Hoard." O paralelo foi impressionante. Os próprios adversários de Lafaiete perderam parte do entusiasmo nos ataques. I1', era natural: pois se tal sucedera na Inglaterra. Na Inglaterra, que ditava normas de procedimento ao parlamentarismo brasileiro...

O êxito alcançado pelos artigos foi total. Os correligionários do primeiro ministro respiravam menos inquietos e todos dese-javam ler esse diabólico "Salisbury". O jornalista que editava os artigos participou então a Rui: — "O sucesso das Férias é pas-moso". (14)

Guardara-se, porém, o maior segredo em torno do nome do autor, que para todos os efeitos continuava incógnito. Certo dia, um jornalista, que se incumbira de responder a "Salisbury", acon-selhou-o a consultar a opinião do deputado Rui Barbosa. Rui não se deu por achado. E no dia seguinte, declarando nada ter com as opiniões de tal "deputado grulhador, heresiarca impenitente, liberal apaixonado, impetuoso, intransigente, esquentadiço, cabeçudo nas opiniões como no físico, com o seu "quê" de caturra nos jeitos de partidos como no corpo", (15) "Salisbury" pintou assim o seu próprio retrato. Talvez, mais caricatura. Entretanto, o perfil pouco tinha do Rui tal como êle se imaginava. Refletia apenas a maneira por que sabia geralmente julgado, e, sob este aspecto, aproximava-se bastante da verdade. Certamente, êle nunca fora apreciado com indulgência. Admiravam-lhe o talento, mas, salvo

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126 A VIDA DE RUI BARBOSA

pequeno grupo de afeiçoados, os próprios colegas consideravam-no pretensioso, irritante, violento demais com os adversários. Alguns iriam até mais longe. Por que? Por que o julgariam com tanta severidade, como se fosse um aventureiro? Êle próprio não o saberia. Um dia escreveu: "Que é a Esfinge? Esfinge é qualquer de nós para si mesmo". (16) Devia falar com pleno conhecimento de causa.

Desde o colégio do doutor Abílio, jamais conseguira obter juízo mais benévolo a seu respeito, e isso concorrera para acentuar as causas, que motivaram pela vida a fora esses pensamentos sobre o seu caráter. Acabara por estabelecer-se verdadeiro círculo vicioso: mais se sentia ferido pelo que lhe parecia clamorosa injustiça, mais reagia agravando a incompreensão. E a alma sensível do tímido, fundamente vincada pelo sofrimento, refugiava-se, irritante e amarga, sob dura máscara, onde quase todos apenas conseguiam ver o orgulho, a ambição e a intolerância. Ali! como seria diferente se tivesse sido julgado com amenidade. Mas, isto era impossível. Rui, durante toda a vida, raramente teria oportunidade de descer aquela máscara. Ela estaria sempre afivelada á sua alma. Para que? Para agredir? Não. Apenas para defender-se contra aquele mundo hostil.

NOTAS AO CAPITULO X

(1) V. Primitivo Moacir, "O Ensino Normal na Reforma Rui Barbosa", no "Jornal do Comércio" de 8 de junho de 194J.

(2) Sobre o Parecer do Ensino Secundário c Superior constituem valiosos trabalhos o prefácio do dr. Thiers Martins Moreira ao Tomo I do vol. IX das Obras Completas de Rui Barbosa, e a Conferência do prof. Lourenço Filho. "À margem dos pareceres de Rui sobre o ensino", in "Conferência", II, p. 71 .

(3) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 23 de abril de 1882, in Arq. C. R. B. Também a carta anteriormente citada, s/d, se encontra no Arq. da C. R. B.

(4) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, ín Arq. C. R. B. (5) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 17 de março de 1882,

in Arq. C. R. B. (6) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 3 de março de 1882, in

Arq. C. R. B. (7) In Arq. C. R. B. (8) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 6 de junho (não menciona

o ano), in Arq. C. R. B. (9) Sobre o Parecer do Ensino Primário convém ler o prefácio do

dr. Américo Jacobina Lacombe ao Tomo I, do vol. X das Obras Completas de Rui Barbosa, e no qual há informações muito completas sobre a matéria.

O SEU PRÓPRIO RETRATO 127

(10) V. o periódico "O K. C. T.", n.° 6 de 1913. Artigo "Rui Barbosa poeta". Revista de propriedade de Alberto Jacobina & Cia.

(11) Mário Lima Barbosa, obr. cit., p. 54. (12) Dedicatória que traz a data de 3 de outubro de 1883, in Arq.

C. R. B. (13) Artigos reunidos sob o título "Traços pura a história da oposição

em 1883 — Féria Política — Artigos de Salisbury". Rio, Tipografia Nacional, 1884.

(14) Cf. carta de Gustavo Macedo a Uni, em 28 de dezembro de 1883, in Arq. C. R. B.

(15) "Féria Política", p. 21 . (16) In "Jornal do Brasil", de 9 de julho de 1893.

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X I — E S C R A V I D Ã O E L I B E R D A D E

p A C E a face daquele mundo hostil e injusto, Rui permanecia -* em atitude também injusta e hostil. Raramente diante deste ou daquele amigo mais íntimo, levantava a máscara, deixando ver o coração angustiado. Parecia clamar por uma reparação. Momento fugaz, porém. O tímido não tardava em arriar a viseira, escondendo-se medroso e aflito.

No seu encalço, farejando-lhe todos os movimentos, como se fossem a matilha implacável, estavam sempre os seus inimigos, os invejosos e os despeitados. Estes não lhe davam trégua, e isso o obrigava, muitas vezes, a justificar-se. Os mais benévolos limi-tavam-se a insinuar maldosamente que a sua situação era próspera. Informação desagradável para quem ainda estava carregado de dívidas o forçado a pedir prorrogações para os seus compromissos. A um dos seus companheiros de juventude, Francisco Gesteira, o que ficara na Bahia, Rui em abril de 1884, escrevia, dando conta das suas torturas. "Supões que fui a Minas, e que fora a São Paulo por consideráveis interesses pecuniários. Quem me dera, meu Chico! A São Paulo fui unicamente por instantes conselhos médicos, a bem da saúde de Maria Augusta. A Minas fui para acompanhar a distribuição de uma revista, que, se a vendermos, nos dará 5 contos de réis, a repartir em partes iguais por mim, Rodolfo e B. Pimentel. Que achas destas casas da índia? A verdade, meu caro amigo, é que vivo aqui de prumo na mão, e lutando com as maiores dificuldades para ocorrer às necessidades quotidianas da minha subsistência. Invejosos e inimigos espalham o contrário, para me fazer mal. Mas a realidade é que tenho boas perspectivas do futuro, mas o presente ainda me vai correndo cheio de dias espinhosíssimos. Quando, portanto, ouvires correr esses boatos, defende o teu amigo ausente contra a male-volência que os gera".

Na verdade, espicaçados por essas notícias da prosperidade de Rui, os seus credores movimentavam-se sôfregos. "Ainda agora, continuava a carta, recebo de um cão daí (João da Silva Bahia) uma intimação (não judicial) para lhe pagar uma ridícula quantia

ESCRAVIDÃO E UBERDADE 129

(132$000), que êle, na insolência da sua carta, afirma não lhe ter ainda embolsado "por não querer!" Aí lhe envio, para que mandes atirar a esse rafeiro (mediante recibo), essa grande soma, que talvez o livre de falir, mas que cu não tinha agora na minha gaveta, para o satisfazer." (1) Quanto à realidade era diferente das aparências! Aos trinta e cinco anos, quando outros, até aqueles que não haviam nascido na abastança, começavam a acumular para a velhice, Rui não dispunha sequer de pequena importância como aquela.

Somente em novembro Gesteira mandou-llie as "três grandes e últimas letras resgatadas". E dizia: "Parabéns, mil parabéns! É de todo o meu coração que o felicito, que muito folgo em ver enfim estancado tanto sangue derramado de sua algibeira, todos os anos, quase todos os meses, para alimentar estabelecimentos bancários!" Rui suara sangue.

A viagem a São Paulo, em janeiro, havia sido divertida e útil. Rui e Maria Augusta, atravessando os imensos cafezais, tinham ido para as fazendas dos filhos do conselheiro Albino, ambos casados na família do barão de Ataliba Nogueira. A estada coincidira com o batizado de dois netos do patriarca dos Barbosas de Oliveira, e a fazenda "Santa Genebra" estivera em festa, após a cerimónia religiosa realizada na matriz da Conceição.

Nesse dia Rui fêz distribuir algum dinheiro entre os escravos. Agradava-lhe sentir aquela nova civilização, tão diversa da que conhecera no norte do país, e que se levantava à sombra dos cafeeiros. Até as frutas eram outras. Por toda a região abundavam rubros morangos, próprios daquele clima temperado e ameno E um afã de progresso, a que se misturava forte confiança na riqueza, parecia marcar as populações fascinadas pelo café. Pouco mais de um mês durou o passeio. Maria Augusta cobrara saúde, e isso seria o bastante para que o marido achasse a viagem maravilhosa. (2)

Quando Rui regressou ao Rio, havia um fato novo e importante. Deixara a casa da Rua do Resende, onde residira algum tempo, e viera morar na praia do Flamengo. (3) O largo horizonte do mar lembrava-lhe a Bahia, onde se habituara a contemplar as águas azuis e profundas, quase sempre quietas, e que os pequenos saveiros, ligando a capital às cidades próximas do recôncavo, cortavam com as quilhas ligeiras.

Estava embevecido com aquele "home", mas o seu encanto maior era o jardim. Aos poucos, com a paciência e o gosto de um colecionador, Rui foi enchendo-o de roseiras. As primeiras

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130 A VIDA DE RUI BARBOSA

horas da manhã êle as consumia nessa ocupação nova, tão suave e tão bela, entre o perfume das flores, cada uma diferente da outra, e que colhia carinhosamente para levá-las à sua adorada Maria Augusta, esquecido dos sofrimentos durante esses instantes passados na intimidade feliz da natureza.

A compra de roseiras tornou-se para êle uma despesa normal. E no seu "caixa" pontualmente, consignava o preço pago pelos exemplares raros com que enriquecia a coleçâo. (4) Aquela casa era magnífica. Dava-lhe a impressão de ter caminhado mais um passo na v ida . . . O azul do m a r . . . o perfume das rosas. . . Mas, como tudo seria triste se não fosse Maria Augusta, enchendo-a com a sua alegria de viver.

Por esse tempo, talvez para compensar a saída de Rodolfo do ministério, e que tivera como consequência não poderem efe-tuar a adoção daquelas "ideias novas" avançadas, em matéria de instrução, os dois amigos se associaram a outros devotos da educação, c fundaram a "Liga do Ensino". Rui era o presidente. (5) E, a fim de divulgarem métodos pedagógicos modernos, que ambicionavam ver disseminados no país, logo publicaram a "Revista da Liga do Ensino", e imaginavam criar uma "Escola Modelo", onde se fizesse a "demonstração e realização dos melhores métcxlos de ensino", li ainda uma vez, ante aqueles homens dispostos a inovarem, o espírito conservador do país não se sentiu tranquilo. Que desejariam tão inquietos reformadores? Assusta-va-o, principalmente, ouvir falar em escolas leigas, novidade que soava como uma espécie de heresia revolucionária. Por isso mesmo, ao solicitar de Rui que fizesse o artigo de apresentação da Revista o advertira: "Se me permites, convém que traces nas linhas que escreveres com a clareza e moderação de que sabes usar, os fins e os intuitos da Liga, que muita gente inda não compreendeu e ignora." (6)

Certamente, Rui ainda haveria de sofrer muito pelas suas ideias "revolucionárias". Não o haviam chamado até de comunista?

Em março, a fim de acompanhar aquela causa que tanto preocupava a inveja, Rui teve de viajar. (7) Agora eram os seus deveres de advogado que o levaram a Ouro Preto, a antiga cidade da região das minas, tão característica nas suas construções do período colonial. Em fortes alimárias, galgou as altas montanhas, outrora tão prósperas e já decadentes e abandonadas. Verdadeiro contraste com o que vira no interior de São Paulo. Depois daquela visão do futuro, deparava-se-lhe uma paisagem do passado.

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Viagem penosa e incómoda através daquelas estradas íngremes, vencendo as alturas, revela quanto deveriam ser realmente más as suas condições económicas. Contudo, as suas esperanças eram extraordinárias e as de Maria Augusta ainda maiores. Eles haveriam de vencer. A fortuna, que Rui perseguia com tanta tenacidade, acabaria ficando ao seu alcance. Por que não seria assim? Mas, enquanto tardava, ambos se viam obrigados a gastar por conta desse futuro, que não sabiam bem se estava distante ou próximo, mas no qual acreditavam cegamente.

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Em recompensa aos serviços à instrução pública, Lafayette propôs ao Imperador que fosse dado a Rui o título de conselheiro. D. Pedro II acedeu ao desejo do primeiro ministro, que assim retribuía com uma honraria o apoio valioso do correligionário. Depois dos artigos de "Salisbury", Rui se disfarçava sob o pseudónimo de "Swift", para defender o gabinete das acusações feitas à participação de oficiais do exército no assassínio de um panfletário, que, ameaçado, se entregara à proteção da polícia.

Mas, antes de assinado o decreto concedendo a graça imperial, Lafaiete, vendo crescer na Câmara a oposição ao ministério, apresentou ao Imperador a demissão ooletiva do gabinete.

Eram interessantes aquelas mudanças de governo. Principalmente para os frequentadores das galerias constituiam espetáculo sempre visto com satisfação. "Era um regalo a câmara cheia, agitada, febril, esperando o novo gabinete. Moças nas tribunas, algum diplomata, meia dúzia de senadores. De repente, levan-tava-se um sussurro, todos os olhos se voltavam para a porta central, aparecia o ministério com o chefe à frente, cumprimentos à direita e à esquerda. Sentados todos, erguia-se um dos membros do gabinete anterior e expunha as razões da retirada; o presidente do conselho erguia-se depois, narrava a história da subida, e definia o programa. Um deputado achava contradições e obscuridades nas explicações, e julgava o programa insuficiente. Réplica, tréplica, agitação; um dia cheio". (8)

Mais uma vez a nação ia assistir à substituição do ministério. E, entre esse deitar e esse nascer de sol, o mundo político movi-mentava-se curioso, ávido de saber a preferência do monarca.

Saraiva fora chamado ao palácio de São Cristóvão, mas recusara assumir o poder. Depois o Imperador convocara, separadamente, o visconde de Sinimbu, Afonso Celso e o conselheiro Dantas, submetendo-os, conforme o seu hábito, a minuciosos

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interrogatórios. Que pretendiam fazer? Qual o programa? Como agiriam? Tudo desejava saber.

Quem venceria essa disputa? Quando o conselheiro Dantas expusera ao Imperador as suas ideias sobre os escravos, este o advertira: "Pois bem, senhor Dantas, mas quando o senhor correr eu o puxo pela aba da casaca." (9) A expectativa durou alguns dias. Somente a 4 de junho de 1884, já altas horas da noite, Lafaiete procurou Dantas, para comunicar-lhe que seria o primeiro ministro.

Enfim, Dantas ia ser o chefe. Aquele político, que o ministro argentino Vicente Quesada vira como "o mais ambicioso, provavelmente o mais impaciente", e em quem notava a falta de firmeza de ideias para ser um chefe, deteria agora o poder. E Rui? Que seria feito dele? Lembrar-se-ia o velho Dantas, a quem o ligava uma afeição filial, da sua dedicação ao partido? E Rodolfo? Não compreenderiam ambos que estimaria servir corno ministro daquele gabinete? Rui acreditava nos amigos. Contudo, Maria Augusta — ela jamais confiara muito nos Dantas — não pensava assim. Como ficaria alegre se visse o marido contemplado com uma pasta!

No dia seguinte começaram a correr pela câmara as listas prováveis para a composição do ministério. Rui figurava em muitas delas. Simples palpites, soprando a sua ambição. Contudo, até a noite, Dantas nada dissera a Rui e este rcsolveu-se a ir visitá-lo.

Surpresa. Mal Rui entrou na casa, onde há tantos anos era dos mais íntimos e dos mais assíduos, Dantas, interrompendo os amigos que o cercavam, recebeu-o dizendo-lhe com vivacidade: — "Estás ministro, se quiseres". A emoção não permitiu que Rui pronunciasse qualquer palavra, e o futuro primeiro ministro prosseguiu, narrando a entrevista com D. Pedro II: "O nome de Rui fora o primeiro lembrado a Sua Majestade, que o acolhera com satisfação. Apenas uma insignificante divergência quanto à pasta que deveria ocupar. O Imperador desejava vê-lo ministro do Império, para realizar as suas ideias sobre a instrução, mas Dantas preferia confiar-lhe a Agricultura, a fim de executar a emancipação dos escravos sexagenários". Como era fácil ser ministro.

Mas, como se pusesse uma restrição no que havia dito, Dantas baixou a voz e perguntou a Rui: — "Tens a reeleição segura?" — "Ninguém pode responder a esta pergunta como V. Ex. mesmo, chefe do partido liberal, que me tem elegido", retrucou Rui. Um dos presentes lembrou então o nome de Francisco Sodré, irmão

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de um genro de Dantas, entre aqueles de reeleição certa. E um s*ilêncio geral esmagou o ambiente, até que Dantas acudiu: — "Vamos refletir".

Em política, refletir é uma das maneiras de recuar. No dia seguinte o ministério estava organizado, e o nome de Rui não figurava entre os escolhidos. Por que? Afastada a hipótese dum veto do Imperador, versão que Rui contestou formalmente, a responsabilidade de exclusão recaía inteiramente sobre Dantas. (10) Contudo, nunca foi possível apurar-se com segurança as razões, que o induziram a essa resolução depois de haver convidado Rui. Apenas, entre os papéis de Jacobina, depois que faleceu, encon-trou-se esta nota lacónica sobre o ministério de 84: "Dantas reconhecendo o talento de Rui, e dizendo-o incapaz para o governo". O certo é que o malogro magoou-o extraordinariamente. Muitos anos depois, quando a êle se referiu, Rui justificou a lembrança guardada de todas as minúcias do fato, dizendo que "naquele grave lanço da minha vida, cuja solenidade e influência no resto dela não podiam deixar de mas ter gravado na memória, nítida, funda e tenazmente". O seu amigo António Carneiro da Rocha detinha a pasta da Agricultura, e Francisco Sodré a da Justiça. Teria qualquer deles mais direito do que êle? Pelo menos por deferência, Rui esperou alguma explicação por parte de Dantas, mas; nada lhe foi dito. Apenas Amália Dantas, talvez para a confortar da decepção, confiara a Maria Augusta que as dívidas de Rui constituíam um empecilho para que fosse ministro. Ela não acreditou no motivo e o sangue corou-lhe as faces. No íntimo, Maria Augusta estava certa de que o marido era explorado pelos Dantas.

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A posição de Rui, na Câmara, tornara-se quase humilhante. Os deputados sabiam do convite, e faziam conjecturas sobre as razões daquele epílogo inesperado.

Não faltava sequer quem murmurasse que a exclusão partira do Imperador. No caso Rui era o único que não podia falar. Os colegas também sabiam quanto Dantas o auxiliara nos primeiros passos, e seriam os primeiros a apontarem-no como ingrato e ambicioso, se tomasse alguma atitude menos prudente.

Além disso o programa do ministério ajustava-se perfeitamente às suas convicções sobre a emancipação dos escravos, que Dantas resumira nesta frase: — "Neste assunto, nem retroceder, nem parar, nem precipitar". (11) Cinco dias antes, Rui libertara i <n;i última escrava, uma daquelas herdadas de Maria Adélia. (12)

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A i d rega mitigaria os desenganos. Rui voltou à Câmara como se nada houvesse acontecido, e Dantas confiara-lhe até a missão de ser o lider parlamentar do gabinete.

Em torno do ministério agremiava-se a falange abolicionista. Na imprensa, nos comícios populares, nas conferências políticas, sentia-se uma atmosfera eletrizada, e a mocidade das academias emprestava à campanha o calor do seu entusiasmo. E acima de todos, como a figura de um eleito dos deuses, onde se reunissem a beleza, o talento, e a nobreza das atitudes, destacava-se Joaquim Nabuco. Num país onde os titulares, em geral, provinham de origens modestas, ele representava a terceira geração de um nome ilustre. Voltara em maio da Europa. E, apesar da dispepsia nervosa, que o abatia, atirara-se à luta impetuosamente.

Dantas cercara-se de um grupo de jornalistas, que todas as manhãs, saiam em defesa das ideias emancipadoras. Escondiam-se sob pseudónimos, quase todos tomados de personalidades inglesas, e isso levava o cons. Martinho Campos, liberal, mas escravagista, a chamá-los "os ingleses do senhor Dantas", designação pela qual todo o puís os conhecia.

Aos conservadores irritavam aqueles golpes vibrados com pontualidade, o partindo de adversários ágeis e misteriosos. Eram os guerrilheiros do exercito abolicionista e mantinham o maior segredo sobre o nome; verdadeiro de cada qual. Até que um dia, não podendo mais suportar os ataques constantes, um deputado conservador os chamou na Câmara, de escritores assalariados pelo governo. Foi o suficiente para que saíssem em campo aberto, des-cobrindo-se orgulhosamente. Clarkson, Garrison, John Buli e Grey, eram respectivamente, Gusmão Lobo, Nabuco, Sancho Pimentel, e Rui. Este também se assinava "Lincoln". E continuaram a escrever com a mesma irritante pontualidade.

Em 15 de julho, Rodolfo Dantas apresentou à Câmara o pro-jeto do governo sobre a emancipação dos sexagenários. Rui, segundo signatário, fora o seu autor. O recinto, as galerias, os corredores, tudo estava repleto. Moreira de Barros, o presidente da Câmara, movia-se inquieto na cadeira presidencial. E, mal acabou a leitura do projeto, abandonou o seu lugar e desceu para as bancadas, renunciando a presidência em sinal de protesto contra a política do governo. Assim, em torno da renúncia travou-se o primeiro combate parlamentar entre abolicionistas e escravocratas. E, como se não tivesse guardado fundos ressentimentos pela exclusão inexplicável, Rui defendeu o ministério, cuja queda foi evitada pela precária maioria de três votos. Viveria até se-

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tembro. Antes disso, porém, em 4 de agosto, Rui apresentou o seu famoso parecer sobre o projeto da emancipação dos escravos.

Ficaria, porém, confusa a situação política. E duas semanas mais tarde, sem surpresa, Dantas viu-se derrotado na Câmara. A abolição, deixando de ser um caso partidário, esfacelara a união das velhas agremiações. Dos cinquenta e nove deputados que votaram contra o ministério, dezessete eram liberais. Souza Carvalho, por exemplo, embora liberal, dizia ser o projeto "a naturalização do comunismo", "o suicídio da nação". (12-A) E dentre os cinquenta e dois que o haviam apoiado eontavam-se quatro conservadores. Assim, para não deixar o poder, restou a Dantas apenas um remédio: pedir ao Imperador a dissolução da Câmara. D. Pedro II, apesar do voto contrário do Conselho de Estado, concordou: mais do que Dantas, êle estava interessado em buscar alguma porta de saída para o problema servil.

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A luta deslocou-se do parlamento para a nação. Outubro chegara, trazendo os primeiros dias quentes, e, aos poucos, os deputados abandonavam a capital. Nabuco estivera em São Paulo, e preparava-se para ir a Pernambuco, mas Rui preferiu permanecer na Corte, aguardando o resultado das eleições. Apresentara em agosto o seu parecer sobre o projeto de emancipação, documento onde fazia o histórico da escravidão e preconizava o trabalho livre, terminando com estas palavras: "A escravidão é o opróbio da América... Nossa pátria sente o rubor desse opróbio, e não quer merecê-lo". Frase bonita e generosa, mas que o incompatibilizava com a sociedade agrícola, cuja economia repousava há três séculos sobre o braço escravo.

E Rui? Onde seria apresentada a candidatura daquele correligionário, que "valia uma Câmara", mas que não tinha eleitores? Não (Ara sem razão que Dantas lhe perguntara: — "Tens a reeleição segura?" Pensaram, então, em indicá-lo pela distante Província de Goiás, cujo presidente, António José Caiado, participou a Rui a disposição em que estavam os liberais daquela província. (13) Ideia absurda, pois nada justificava excluí-lo da representação da Bahia. Entretanto, lisonjeado, êle respondeu agradecendo, e aceitando: "A associação que estabeleceis entre o meu nome e a causa da emancipação dos escravos centuplica o valor da distinção." (14) Breve devaneio do sonhador. Dentre as próprias fileiras liberais, Sinimbu e Ouro Preto não eram simpáticos à ideia. (15) E, quando se anunciou que Rui também seria can-

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didato na Bahia, teve o nome substituído pelo de um António Félix. (16)

Enquanto esperava, fêz curto ensaio na direção do ' O Pais . Realmente, três dias após ter assumido a responsabilidade do jornal, êle se retirara, pois ao seu feitio absorvente não fora possível permanecer sem absoluta independência. Sobre o fato fize-ram-se vários comentários. Mas, a um dos companheiros de re-dação, Joaquim Serra, jornalista de renome, e que o quisera acompanhar nessa ocasião, escreveu explicando o sucedido e dispensando a solidariedade, que julgou desnecessária: "Deixei a folha, como disse e redisse ao comendador Reis, por sentir que não se me dava ali a autonomia precisa para que eu me achasse bem. Quanto a ideias não houve divergência entre mim e o proprietário que até o último momento me declarou estar de acordo com as opiniões que sustentei em meus três editoriais. Não se dando pois em relação a ti o mesmo embaraço que determinou a minha retirada, eu, se alguma parte ainda pudesse tomar em tudo isto seria para pedir, muito sinceramente, como teu amigo, que permaneças no teu posto, onde podes prestar excelentes^ serviços à nobre causa da abolição." E terminava com afeto: "Procedendo assim darias particular contentamento ao teu amigo de coração. Hui Barbosa'*. (17) Antes dele próprio, Rui colocava as ideias.

Era, porém, curioso que enquanto todos os políticos se movimentavam para disputar as eleições, Rui permanecesse na Corte, quase indiferente, desatento ao que lhe informara na Bahia outro candidato: "Não tenho tempo nem de coçar-me: a luta está medonha . . . "

Talvez estivesse, no momento, mais preocupado com a sua profissão. Depois duma longa calmaria, o vento começava a en-cher-lhe as velas e não desejaria deixar passar a oportunidade. Em seis meses mudara bastante a sua situação financeira. Conseguira causas bem remuneradas e eram flagrantes os sinais de melhoria. No lugar do advogado de "prumo na mão" e que lutava "com as maiores dificuldades para ocorrer às necessidades quotidianas", conforme escrevera em abril, surgia um advogado relativamente próspero. Frequentemente adquiria objetos em leilões, comprara um piano, e Maria Augusta podia ter a sua conta na casa de D. Luizinha Langgaard, modista muito em voga. Também aquela indiscreção de Amália Dantas não seria esquecida. De que lhe valeria ser deputado se não pudesse pagar as dívidas e ser ministro?

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Entretanto o resultado do pleito mostrava-se bastante duvidoso. Tendo como adversário o dr. Inocêncio Góis, político prestigioso e ligado a importantes famílias da Bahia, Rui não se podia sentir tranquilo. Principalmente, a campanha desenvolvia-se em torno de dois pontos particularmente perigosos: fé e escravidão. Inocêncio representava estes dois princípios. Rui significava o oposto: ateísmo e abolição. E os dois campos podiam ser marejados, tendo dum lado o clero e os proprietários de escravos, e de outro "os que nada tinham a perder". Poderia êle vencer com tais aliados?

Nessa ocasião Rui teve a agradável surpresa de um convite do Imperador. "Previno-te, escreveu-lhe Dantas, (salvo aviso em contrário) o Imperador deseja que vás, no dia 3 de novembro próximo, ao Paço de S. Cristóvão, às 11 horas do dia, porque quer conversar contigo sobre os teus trabalhos e pareceres de instrução pública". E, como se temesse ver recusado o convite, acrescentava: "Ê escusado di/.er-te que não deverás faltar, porque neste caso, um desejo é mais do que uma ordem". (18)

Na data aprazada êle compareceu ao Paço. Era a segunda vez que se avistava com o Imperador, a quem apenas conhecera ao agradecer pouco antes a mercê do título de conselheiro. D. Pedro II recebeu-o com a simplicidade habitual, e levou-o para um gabinete, no andar superior, de cujas janelas se via a alameda de árvores imponentes, que, da frontaria do palácio, ia ter ao grande portão exterior.

Esta cena, já nos últimos anos de vida, depois de ter tão impiedosamente combatido D. Pedro II, Rui assim a descreveu: "Ali, no meio do aposento, estava,, como que já de propósito arranjada para conversa íntima, uma singela mesinha, coberta com o seu pano, a que Sua Majestade me fêz sentar e então, deixando-me por instantes, volveu trazendo sobraçados os meus dois pareceres e projetos acerca da reforma dos três ensinos, que havia dois anos, dormiam, na Câmara dos deputados, o sono donde passaram ao mofo e traçaria dos arquivos". (19)

E, numa familiaridade, que dissipava temores, conversaram durante três horas. Era um dos habituais questionários de D. Pedro II, que, disse Rui mais tarde, se lhe afigurou "um coração aberto a excelentes sentimentos, um espírito acessível às ideias mais progressivas." (20) Os pareceres estavam anotados pela mão imperial, e o autor dos pareceres teve de responder, minuciosamente, às perguntas que lhe iam sendo feitas. Um prazer, certamente. Mas, na ocasião, apenas esta nota lhe ocorreu escrever no

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seu "diário": "Seis horas de tílburi, 7$200". (21) Era bem caro conversar-se com o Imperador.

Quanto à eleição, que estava próxima, Rui redigiu um breve manifesto, definindo com clareza a sua posição: "Formular um programa seria fácil, mas escusada solenidade. O meu está na minha linguagem e atitude parlamentar durante as duas últimas câmaras, de 1878 a 1884, no meu parecer acerca do projeto de 15 de julho, concernente ao problema supremo da transformação do trabalho, na minha adesão profunda ao gabinete de 6 de julho, cuja política emancipadora magnifica o nosso partido aos olhos do país e a nossa pátria aos do mundo." Voltava-se, assim, para o seu passado. E era justamente, pelo seu passado, que o apedrejavam.

A cada passo exploravam as suas atitudes anticlericais. Que importava mostrarem os seus amigos ter combatido a prisão dos bispos quando Inocêncio a apoiava? Nada. A convicção mais ou menos generalizada era tratar-se de perigoso inimigo da Igreja. Dos púlpitos os padres o acusavam de ser "um homem sem princípios e sem religião", e, de mão em mão, corria um folheto apresentando-o como o Anticristo. (22) As mulheres suplicavam aos maridos, para não votarem naquele ímpio candidato. E muitos acreditavam que nos seus sapatos estavam pregadas estampas de santos. Enquanto isso Inocêncio Góis acolitava missa numa igreja do distrito por onde se candidatara. Contraste evidente entre o herege e o católico.

Mas, além das ideias religiosas, estavam em jogo interesses imediatos dos proprietários de escravos. Espécie de calcanhar de Aquiles exposto ao julgamento daqueles eleitores ameaçados no seu património. E os votantes, quase todos pequenos agricultores burgueses, apaixonavam-se mais pelo cativeiro dos negros do que pelas doutrinas abstratas sobre o papado. Contudo, Rui estava disposto ao sacrifício. Aliás, nunca o temera. Se os votantes preferissem o seu rival, contrário "àquela desastrosa tentativa de organização social e económica", êle sentiria orgulho de cair com os ideais de Lincoln, que aprendera com o pai, cujas estantes viviam cheias de obras sobre a guerra de secessão.

Os dois candidatos poderiam ser comparados às duas faces de u'a moeda, tendo escrito de um lado Escravidão e no outro Liberdade. Ou melhor: Interesse e Ideal. Que lado escolheriam os eleitores?

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NOTAS AO CAPITULO XI

(1) Cf. carta de Rui a Francisco Gcstcira, em 19 de abril de 1884, o cujo original em mão por gentileza de D. Maria Cândida Gesteira, tia do destinatário.

(2) Para a recomposição dessa viagem de Rui a S. Paulo valemo-nos das notas do "Diário" de Rui, em 1884, in Arq. C. R. B.

(3) Rui mudou-se para o Flamengo, antigo n.° 14, em 11 de março de 1884, aí residindo dez anos, até transferir-sc para a aluai "Casa de Rui Barbosa."

(4) Cf. "Diário" de Rui, 1884. Pelos assentamentos que Rui deixou em "Diários" de anos posteriores, é possível verifiear-se o permanente interesse que teve pelas roseiras.

(5) Rui, na presidência da "Liga do Ensino", teve como colegas de diretoria Hilário de Gouveia, vice-presidente; Balduíno Coelho, 1.° secretário, Silva Maia, 2.° secretário; e Fernando Pinto, tesoureiro.

(6) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, s. d., in Arq. C. R. B. Também as cartas de 13 de março de 26 de abril, in Arquivo C. R. B., tratam d e assuntos referentes à "Liga do Ensino". Além do artigo de apresentação, no n.° de 31 de janeiro de 1884, é de Rui Barbosa, que o assina, o que se encontra no n.° de 30 de abril de 1884.

(7) Cf. "Diário" de Rui, de 1884. (8) Machado de Assis, "A Semana", ed. Garnier, p . 42. (9) Tobias Monteiro, obr. cit. p . 69. (10) Sobre a exclusão do ministério Dantas, além do depoimento de

líui, na Introdução à "Queda do Império", devem ser consultados os artigos do sr. Leão Veloso Filho, "Reminiscências", in "Correio da Manhã" de 24, 25, 26 e 27 de julho de 1914, e nos quais confirma o depoimento prestado ao sr. Tobias Monteiro, obr. cit., e que fora contestado pelo sr. J. P. Souza Dantas em artigo no "Jornal do Comércio" de 23 de julho de 1014. Também nos trabalhos já citados dos srs. Tobias Monteiro, Mário de Lima Barbosa, e em "Mocidade e Exílio", há valiosas informações sobre esse importante episódio da vida de Rui Barbosa. Leão Veloso aventa a hipótese de Dantas haver receado uma derrota de Rui na Capital da Bahia.

(11) Tobias Monteiro, obr. cit. p. 68. (12) In Arq. C. R. B. está o original do seguinte documento: "Pela

presente, por mim feita e assinada, liberto sem ónus de qualidade alguma a escrava Lia, crioula, natural da Bahia, que possuo por sucessão de meus pais, de quem era cria. Rio, 1 de junho de 1884. Rui Barbosa. (Firma reconhecida por João Evangelista de Negr. Saião Lobato).

(12-A) Sobre o projeto de emancipação dos escravos e o parecer sobre «Me apresentou Rui Barbosa à Câmara em 4 de agosto de 1884, deve ser consultado o prefácio de Astrojildo Pereira ao Volume XI, tomo I, das Obras Completas de Rui Barbosa (Rio, 1945).

(13) Cf. carta do diretório do partido liberal de Gpiás a Rui, em 23 de setembro de 1884.

(14) Cf. carta de Rui ao diretório do partido liberal de Goiás, em '.'..» de outubro de 1884, in Arq. C. R. B.

(15) Cf. carta de António José Caiado a Rui, em 6 de setembro de IHK-1, in Arq. C. R. B.

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(16) Cf. carta de José Acioli de Brito a Rui, em 23 de novembro de 1884, in Arq. C. R. B. Por essa carta verifica-se a participação que teve na candidatura de Rui, por Goiás, o dr. Leopoldo de Bulhões, mais tarde senador e Ministro da Fazenda.

(17) Cf. carta de Rui a Joaquim Serra, s. d., in Arq. C. R. B. Sobre a sua retirada da direção do "O País", que assumira a convite do proprietário, Conde de S. Salvador de Matozinhos, João José dos Reis Júnior, chegando a escrever os artigos dos dias 1, 2 e 3 de outubro de 1884, publicou Rui a seguinte nota do "Jornal do Comércio" de 8 de outubro de 1884: Cumpre-me atalhar por uma vez os boatos, que vão tendo certo eco na imprensa, acerca dos motivos que me determinaram a renunciar a direção do País. Ê absolutamente falso que a orientação dada por mim a esse jornal suscitasse divergência alguma entre o redator em chefe e o proprietário da folha. Este, até o último momento reiterada e vivamente me declarou sempre estar de pleno acordo em tudo quanto fiz e escrevi na essência e na forma, nas opiniões e na maneira de defendê-las. Julgo ter satisfeito o público, até onde podem chegar os direitos da curiosidade. Retirando-me por única e livre deliberação minha, contrariei, mau grado meu, o sr. proprietário da empresa que, para me demover dessa resolução fêz-me a imerecida honra de empenhar os esforços mais instantes, os maiores esforços possíveis.

Quanto à balela de que eu pretendesse imprimir côr partidária a essa gazeta, basta, para dissipá-la, atentar em que os dois sós cooperadores admitidos a redação, por proposta minha, os srs. J. Serra e Balduino Coelho, se o primeiro milita no partido liberal, o segundo pertence notoriamente ao conservador, lendo sido o oficial de gabinete do sr. cons. João Alfredo, com quem continuou u comungar nas mais íntimas relações de ideias e amizade. Rui Barbosa, Rio, 8 de outubro de 1884".

(18) Cf. carta do cons. Dantas n Rui, em 13 de outubro de 1884, in Arq. C. R. B.

(19) Rui Barbosa, Introdução à "Queda do Império", p. LXVII. (20) Idem, idem, p. LXVIII. (21) Cf. "Diário" de Rui, de 1884. (22) Entregamos à "Casa de Rui Barbosa", onde se encontra, o raro

folheto anónimo, e que traz por título: "Recomendação/da/candidatura/do /dr. Rui Barbosa/pelo 8.° distrito/por um sacerdote/Bahia 1884". Sobre as perseguições movidas pelo clero contra Rui, além dos jornais da época, deev ser consultado Xavier Marques, "Letras Académicas", (Rio, 1933).

Comentando a intervenção do clero, nessa ocasião, contra a candidatura de Rui, o "Diário da Bahia", em 5 de dezembro de 1884, publicava um editorial, onde se lê o seguinte: "O elemento clerical, descendo da posição em que devia sempre manter-se, interveio com toda a força na luta, lançando mão dos meios sinistros e tenebrosos que sói empregar, quando quer esmagar os adversários. As mais estranhas e horríveis calúnias foram espalhadas às mãos cheias contra o distinto baiano" (Rui)... "um homem sem princípios e sem religião como inimigo figadal da Igreja e seus ministros, como o desprezador de Deus e da Virgem, como o Anticristo, enfim". "As mães, as esposas, as filhas, prostavam-se de joelhos, e de mãos postas, suplicando aos filhos, maridos e aos pais, que não levassem à urna o nome do distintíssimo baiano."

Aliás, o próprio Rui, no agradecimento que dirigiu ao eleitorado do 8.° distrito, e assinado do Rio de Janeiro, 9 de março de 1855, faz alusão

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;i campanha do clero, escrevendo: "O meio de que se utilizaram os inimigos para malquistar-me com a população agrícola e crente do 8.° distrito consiste em figurarem o candidato liberal corno o Anticristo, e o projeto de 15 de julho como o extermínio da lavoura."

Sobre esse agradecimento, assim se externou Joaquim Serra em carta a Rui, de 18 de março de 1885 (In Arq. C. R. B.) - : "Que excelentes palavras aquelas que subscritaste menos ao Cotegipe que aos nossos liberais •cnsatos! Que bela saraiva de epigramas e verdades cruas! Dois artigos .nino aquele por mês, e estava dispensado de ter imprensa liberal."

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XII — DERROTAS

Não me faz inveja a vitória dos que vêm representar a reação do escravismo.

Rui. (março, 1885)

2 DE DEZEMBRO DE 1884. No Flamengo, enquanto Rui *~ vivia os momentos duma expectativa inquietante, ouvia-se o troar festivo dos canhões das fortalezas: era o natal do Imperador. Na véspera travara-se a batalha eleitoral, verdadeira luta entre abolicionistas e escravagistas, mas somente dois dias depois êle soube ter sido derrotado.

O velho Dantas e Rodolfo não tinham ânimo para serem os mensageiros da má notícia, mas, logo que a imprensa a divulgou, apressaram-sc em escrever ao amigo vencido cartas cheias de expressões de afeto. O ministério perdia um útil e leal colaborador. E a candidatura de Rui ficara estendida "no campo da honra, como o cadáver do sublime Aquiles", escrevera um contemporâneo. Muitos culpavam o partido pela derrota. Leão Veloso dizia ao conselheiro Moura: "Por que não atenderam às condições especiais daquele distrito?... Que crueldade!" (1) Realmente fora uma crueldade. Justamente durante um governo presidido pelo senador Dantas, Rui experimentava duas derrotas consecutivas. Em julho, fora preterido do ministério. Agora perdia a cadeira no Parlamento. Era pena. Haviam sido eleitos os primeiros deputados republicanos, e os debates prometiam ser interessantes. No horizonte surgiam sinais de decadência do velho regime, e, já um ano antes, o barão de Cotegipe, que estimava os vaticínios, felicitara jovem senador recém-empossado, di-zendo-lhe: "Ah! moço, afirmo-lhe que não morrerá senador do Império". (2)

Mas, passado o primeiro momento, Rui, diante das cartas dos Dantas, pareceu recobrar o ânimo, e respondeu-lhes emocionado: "Meu Rodolfo do coração. Quando li hoje de manhã as folhas, tive a surpresa natural, e alguns momentos de impressão desa-

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gradável. Logo depois, porém, vendo ao pé de mim Maria Augusta e meus filhos, juro-te que cheguei a um estado de serenidade perfeita e confiança tranquila. Lembrei-me di (aqui a emoção fê-lo reunir assim as palavras "de ti") e de teu grande Pai, e senti que não estava sem amigos. Dois amigos como tu e êle, e uma família amada bastam para encher a vida. Agora, lendo a tua carta e a dele, chorei, chorei muito, e ainda te escrevo chorando. Não me envergonho; porque não são lágrimas de fraqueza, mas de felicidade por ter comigo corações da tua têmpera e da dele. Asseguro-te que em nenhuma destas palavras há senão psicologia mais rigorosa do estado do meu espírito. Até logo. Abraça a teu Pai, e abraça-te tu também com o teu Rui". (3) A carta era sincera. Naquele momento de aflição talvez acreditasse bas-tarem-lhe amigos fiéis e uma família amacia, para lhe encherem a vida. Enganava, porém, a si próprio. A luta política seria sempre um elemento indispensável entre as suas razões de existir.

Rui escreveu também ao velho Dantas. No mesmo dia o chefe do gabinete foi ao palácio de S. Cristóvão. O Imperador estava surpreso com a derrota do jovem parlamentar, e perguntou a Dantas se "aquele moço tinha alguma nódoa na sua vida" — "Não", respondeu o ministro, e mostrou a Sua Majestade a carta recebida. Era um documento altivo. Afirmava ter recebido o golpe "sem o menor abalo", e prometia que a sua colaboração com o ministério "cresceria em gosto, atividade e energia". (4) Por mais que se sentisse abatido, a correção das atitudes de Rui era perfeita. Recalcava todos os sentimentos capazes de lhe torturarem o espírito, e apenas era possível perceber uma compostura impecável.

No íntimo, entretanto, êle estava decepcionado e amargurado. Mas, somente passados muitos anos, evocando a derrota sofrida, deixaria cair esta frase, que bem exprime o que lhe ia na alma nesse transe doloroso: "o meu nome era então a bandeira parlamentar do abolicionismo: era o nome do autor do parecer da Comissão, que acabava de recomendar ao parlamento a adoção do projeto Dantas. O governo fêz-me a honra de abandonar a minha candidatura à sua sorte, e tive a satisfação de ser derrotado." (5) E quando dizia o "governo", era como se mencionasse o nome do chefe do gabiente, o cons. Dantas.

O agradecimento dirigido ao eleitorado depois do pleito, embora reafirmasse a sua confiança na vitória das ideias pelas quais se sacrificara, falava no desejo de recolher-se a uma vida tranquila "na doce paz laboriosa da oficina." Rui estava disposto

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a buscar consolo no silêncio da biblioteca do estudioso, o dizia ler sabido criar nos seus "hábitos de trabalho um asilo impenetrável aos contratempos da luta política". Ainda uma vez se iludia. Como poderia ficar indiferente ao jogo dos partidos e das ideias, sobretudo agora quando o velho Dantas se defrontava com uma Câmara hostil? Antes de serem liberais ou conservadores, os deputados, neste momento, dividiam-se em abolicionistas e escravagistas.

Aliás, Rodolfo também não voltou à Câmara neste ano. Depois de ter alcançado, em plena mocidade, as posições que outros só atingiam na maturidade, renunciava inesperadamente à vida política. Como uma criança afortunada desprezando os seus brinquedos, Rodolfo trocara o palco pela plateia. A sua atitude, um tanto misteriosa, causou espanto; e Joaquim Nabuco imaginou-o a principal personagem de um romance político à maneira dos de Disraeli. (6)

Por detrás de Rodolfo movia-se a mulher, D. Alice Dantas. Ela detestava a política. Os amigos do marido sabiam disso, e oscroviam-lhe cartas assim: "Muitas recomendações a Alice a quem dirá que esta carta não leva uma só palavra de política". Muito mais, entretanto, irritavam-na os reveses. Por ocasião de um insucesso mandou a Rui êste bilhete: "Perdemos por 80 votos. Grande Bahia! Sempre a terra do sarapatel e da cadeirinha. Venham conversar. Sua comadre — Alice Dantas". (7) Se o mundo político soubesse dessas coisas não se admiraria tanto da defecção imprevista daquele jovem ameno, e no qual depositava tantas esperanças.

Antes de anunciar a sua resolução, Rodolfo a participara a Rui: " . . . A verdade, sim, é que mais do que nunca tenho-me lembrado de ti, e tudo devo dizer-te, porque mais do que nunca tenho sentido a tua falta, a do teu conforto, a da tua amizade fraternal e única. Parece-te impossível o que estás lendo, não é? A mim mesmo, porém, afigura-se-me isso tal, quando ao meu lado inspirava-me o anjo incomparável a que a sorte me uniu. Tudo não obstante, meu Rui, seja um estado mórbido ou que outra coisa que não sei explicar seja, a verdade é que sofro, e que em dissimular perante aqueles mesmos a quem mais quero, perante os meus mais íntimos amigos, perante os meus parentes, perante, finalmente, a criatura angélica e divinal que é hoje a minha companheira, o meu estado de espírito, consumo as energias todas de minha atividade moral e esgoto em esforços colossais o pouco de vontade que possuo. Só tu tens o direito de ler

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estas linhas. A ninguém portanto, aludas sequer ao objeto delas.. Desta política, devo dizer-te, é minha resolução firme, inabalável, hoje irremissivelmente assentada, afastar-me inteira, absoluta, irrevogavelmente. É também uma confissão que me eximo com o máximo critério e toda a discrição de fazer a quem quer que seja, mas que a ti não posso deixar de transmitir. Sem azáfama, nem estrépito, nem declaração de motivos, nem ressentimentos, nem pesares, nem saudades enfim, embora a cornueópia de favores com que a fortuna política me encheu, considero-mc de todo o ponto despedido de motu-próprio." (8)

Rui devia compreendê-lo. Pelo menos em parte. Haviam so nhado juntos com um mundo político diferente, igual ao do parlamento britânico tal qual ambos o imaginavam e isso os afastara da realidade, tornando quase insuportável o ambiente em que eram obrigados a lutar, submissos às deliberações partidárias, muitas vezes medíocres. Entendiam-se na criação desse mundo imaginário, e Rui escrevia ao amigo: "Meu Rodolfo. Escrevo-te apenas duas linhas "pour dire à ces ames absentes qu'on ne les oublie pas" (sans nom d'auteur). A ti e a D. Alice, por mim e Maria Augusta. Acrescento apenas uma palavra para te oferecer a obra (que acabo de receber da Europa) de John Morley: Life of B. Cobden. Se, em momentos em que velares o sono de tua esposa, tiveres tempo de ler, e de pensar em política, não na política miserável e odiosa de nossa terra, mas na grande política das grandes nações, o melhor alimento que eu conheça para os espíritos de têmpera, não poderás achar leitura superior à vida do célebre liberal inglês, nessa biografia qualificada, em toda a parte, como admirável". (9) Apesar disso Rui desejara prosseguir, mas fora vencido. E, embora saindo por portas diferentes, ambos estavam fora do Parlamento.

Depois dessa provação, Rui necessitava imensamente de repouso. Rodolfo partira para Nova Friburgo, e no seu "chalet" de estilo pompeiano, fugia do sufocante verão do Rio de Janeiro. Convidou Rui para subir para as montanhas, que lhe lembraria os dias felizes da lua de mel. Preparara-lhe mesmo um pequeno menage, e tivera o cuidado de arrumá-lo, provendo-o do necessário para uma estação de veraneio. Rui deveria levar apenas alguma roupa de cama e mesa, talheres, cálices e panelas. E acrescentava: "Tem estado delicioso o tempo. Seguramente Vs. acharão excelentes os dias que aqui passaremos juntos". (10)

Rui relutou em aceitar. No entanto, a insistência de Rodolfo foi peremptória: " . . . hás de vir, haja o que houver. Assim man-

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dam Cota, Alice, os meninos, e eu. E contra todos nós nada podes tu." (11) Afinal na véspera do Natal Rui deixou o Rio. No seu farnel não faltavam três dúzias de garrafas de vinho Bordeaux. (12)

"Friburgo, dizia Rui, é, para o homem político, a soledade". (13) Para êle seria também a recordação. Aí, como um pássaro fugitivo, recuperava o direito de ser livre. Longe da política, das paixões dos interesses imediatos, isolado "naquele recanto montesino", podia gozar plenamente os encantos de um lar venturoso. Maria Augusta era a companheira amorosa desses dias tranquilos e iluminados pelo sol ameno, que, nessa estação do ano, se derrama sobre as montanhas azuladas. E os filhos, como se adivinhassem a Vida naqueles sítios saudáveis, corriam alegres pelas alamedas floridas.

Nas estradas, ligando a cidade a povoados e fazendas próximas, amoreiras rasteiras atraíam as crianças com os seus frutos vermelhos. Altas árvores lembravam o Tempo. E de quando em quando ouvia-se o murmúrio de um regato, cujas águas, às vezes, se encachociravam, formando uma espuma alva e ténue sobre as pedras. Como tudo isto era belo! Por aí, ora a pé, ora numa 'charrette" puxada por um cavalo trotando lentamente, Rui e Maria Augusta passeavam cm busca de novas perspectivas e paisagens. Mas, se paravam para contemplar os vales férteis estendidos abaixo das serras, logo um ar frio e seco os envolvia, obri-gando-os a continuarem a marcha.

Diante desses quadros rápidos, onde cada ser c cada coisa parece respirar paz e felicidade, o homem triturado pelos desenganos sente um irreprimível desejo de participar dessa bem-aven-turança. Desejo vão, porém, se o seu destino é lutar e correr atrás de novos desenganos. Conflito entre a ânsia de encontrar um refúgio, e a ambição duma vitória que não se sabe bem qual será. Rui pedia então ao cocheiro que fustigasse o animal. O carro corria, e êle permanecia calado. Maria Augusta — ela o compreendia admiravelmente — não interrompia esse silêncio.

Dois meses durou o retiro nas montanhas. Alice e Rodolfo foram companheiros magníficos. Agora, porém, Rui sentia-se forte e tinha saudades do mar investindo contra o Flamengo. Voltaria à planície, para recomeçar a "sua luta". Era o seu destino, e não podia fugir.

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O primeiro choque das duas falanges, na Câmara, foi em abril. E, como se fosse mau presságio, no dia da votação, Dantas tombou da tribuna, vítima de uma síncope.

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Pensou-se que estava morto. Os companheiros acudiram-no, e quando o chefe recuperou os sentidos soube do resultado: a Câmara dividira-se ao meio — 50 contra 50. Não era, portanto, difícil prever a sorte do ministério. Mesmo dentro das fileiras liberais já se formavam os gupos dispostos a recolherem a herança de Dantas. Saraiva, o prudente Nestor dos liberais, tomara discreta atitude de retraimento, c parecia esperar a sua hora, enquanto os conservadores procuravam acentuar as divergências entre os adversários.

Alguns dias depois, por insignificante maioria de dois votos, a Câmara negou a Dantas a sua confiança. O bastante, porém, para que deixasse o poder. Os seus correligionários, aliás, haviam feito o possível para adiarem o desfecho esperado. "O Grande Cadáver é preciso que tenha funerais régios e um tanto prolongados", (14) escrevia um deles, Cusmão Lobo, a Rodolfo. Agora, entretanto, chegara o fim.

Saraiva acertara. Coube-lhc organizar o novo ministério. Contudo não contava uma forte maioria a que pudesse imprimir a sua orientação pessoal. Para viver necessitava transigir com os conservadores, e não aborrecer os poucos republicanos.

Um projeto governamental marcou a posição de Saraiva em face da sorte dos sexagenários. Elevava para 65 anos o limite de idade para a libertação, e propunha que, antes de ficarem livres, prestassem aos senhores três anos de serviço a título de indeni-zação. Dono de um engenho de açúcar, também proprietário de escravos, Saraiva não tinha qualquer entusiasmo pela alforria dos negros. O seu objetivo era, sobretudo, colocar o assunto num ponto morto, captando simpatias entre os escravagistas.

Contra isto insurgiram-se os abolicionistas. E o velho Dantas, que, perdida a batalha, fora recobrar forças em Friburgo, daí escreveu a Rui: "Nada te falarei da marcha das coisas; e por que? Deixemos que cada vez elas se definam melhor porque até agora não as entendo, ou entendo-as demais. . . te recomendo que por tua parte vás reunindo o que me possa servir para o debate no Senado, no qual terei de intervir sustentando as nossas ide ias . . . " (15)

A popularidade de Dantas crescia. José Bonifácio, aquele José Bonifácio de "loira fisionomia de Nazareno", chamou o gabinete de "ministério da camaradagem". Era o "ministério conta-tudo", e Saraiva cada vez mais vivia da condescendência dos antagonistas. Situação perigosa e que os conservadores exploravam perfeitamente. A alguém, que estranhara a sua atitude defen-

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dendo um governo liberal, segredara um deputado conservador: — "Os selvagens costumam engordar os seus prisioneiros antes de devorá-los". A imagem exprimia a verdade.

A primeira vítima dessa política foi Joaquim Nabuco. Embora eleito pela Província de Pernambuco, havia dúvidas quanto à Câmara reconhecer a sua vitória. Êle próprio fazia prognósticos, escrevendo a Rodolfo: "O melhor é tomar para base do cálculo os reconhecidos atuais e os poucos que podem vir a sê-lo antes de mim. São números quase iguais, vetando todos. Ninguém ficando em casa. Mas qualquer defecção na Dissidência salvaria a vitória". Na sua opinião contaria com 46 votos contra 49. E ajuntava num post-scriptum: "Que esplêndido que esteve o Grey hoje. O Rui e o Lobo são incomparáveis. Pobre João Alfredo! Visite o elogio que êle fêz do Andrew Johnson e a condenação de Lincoln! É escravista até nos Estados Unidos, um "Alabama" Brasileiro! E o Nestor conciliando Agamenon com Aquiles! Quem foi que disse isto, foi Pitt ou êle?" (16) Mas, uma semana após a ascensão de Saraiva, Nabuco foi excluído da Câmara por 48 votos contra 51. Os escravagistas venciam.

A vida entretanto é feita de compensações. Para contrabalançar tantos aborrecimentos, a situação financeira de Rui melhorava consideravelmente. Depois de tantos esforços desesperados começavam a chegar-lhe as primeiras recompensas da tenacidade com que enfrentara as horas de desgraça e de privação. O seu escritório de advogado enchia-se de clientes. A fama é assim: demora, mas, quando chega, vem aos borbotões. Agora já não lhe faltavam causas. Como um plantador, depois duma estação feliz, a sua colheita era farta. Em poucos meses conseguira pagar quase todas as dívidas, que durante anos haviam sido o fantasma da sua existência. Mais de dez contos foram entregues aos bancos. Até que enfim deixava de ser o "escravo dos credores".

Infelizmente, não era idêntica a situação de Rodolfo. Embora casado com a herdeira presuntiva de grande fortuna, via-se obrigado a recorrer a empréstimos. Nota no "caixa" de Rui: "1855. Novembro. Neste mês, a 20, venceu-se no Banco do Comércio uma letra de 4:000$000 em que figuro como devedor e Rodolfo como sacador e endossante. A importância dessa letra, porém, foi tomada exclusivamente para Rodolfo, que, por conveniência sua, me pediu lhe emprestasse o meu nome, para não aparecer o seu. Essa letra foi passada a seis meses, em 20 de maio de 1885, prometendo Rodolfo saldá-la integralmente no 1.° vencimento. E assim fêz". (17)

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Em um ano as coisas haviam mudado muito. Não tardaria muito para que, desvencilhando-se do fardo daquelas velhas dívidas, Rui lançasse no seu "caixa" esta nota alviçareira: "Remeti para a Bahia, pela casa Zenha à casa Belchior, uma ordem a favor de Francisco Aragão Gesteira, para saldo do meu débito com Salustiano Ferreira Souto: 2:732$000." (18) E, liquidando a dívida com o cons. Souto, Rui podia lembrar-se das horas de aflição em que o servira o amigo dedicado.

Enquanto isso, às voltas com vencimentos de letras, Rodolfo escrevia a Rui: "Tem este ano pesado-te a valer o teu compadre, isso não me constrange, pela consciência que, bem o sei, possues, de que eu sei devidamente avaliar o que para contigo me obriga." (19) O conceito era exato, e traduzia aquela amizade fraternal e perfeita. Mas, como ficaria Amália Dantas se soubesse que o filho batia às portas dos bancos? Ela que dissera a Maria Augusta serem as dívidas um empecilho para que Rui fosse ministro.

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Mesmo do seu "asilo impenetrável", Rui acompanhava a marcha dos acontecimentos. Agastava-o a transigência dos liberais. Deveria, porém, voltar-se contra Saraiva? Saraiva, a quem auxiliara por ocasião da eleição direta, e conhecera em casa de João Barbosa? Estas razões, entretanto, não o fizeram deter-se. Os homens tinham uma importância secundária. O essencial eram as ideias. Se Saraiva se antepunha ao que Rui julgava justo, o eu dever era combatê-lo.

Em junho, a Confederação Abolicionista festejou o primeiro aniversário da ascensão do ministério Dantas. Rui era o orador, e a oportunidade foi propícia para iniciar o ataque contra Saraiva. Fêz um paralelo entre as ideias sustentadas pelos projetos de Dantas e Saraiva, e crivou o último de ironias. A assistência riu, e isso magoou o chefe do gabinete, que não usava e nem suportava aquela arma sutil. O humor, para êle, era uma coisa torpe. Depois, Rui mostrou a união do ministério com os escravagistas: — "Quando o senhor Saraiva bosquejou, na Câmara dos Deputados, o projeto de 12 de maio, foi o senhor Andrade Figueira quem estendeu ao recém-nascido, nos braços do senhor Afonso Pena, a toalha branca da cerimónia (riso), invocando o espírito que murmura nas águas do Paraíba". (20) E ninguém ignorava serem os senhores Andrade Figueira e Afonso Pena partidários da escravidão.

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Assim, despejando setas envenenadas sobre o ministério, Rui prosseguiu pregando a abolição: "Há duas estradas para a reforma: tranquilizar o país, ou tranquilizar os fazendeiros. Escolhendo tranquilizar os fazendeiros, S. Ex. inquieta o pa í s . . . " (21) Nisto, incontestavelmente, resumia-se o debate se considerássemos os abolicionistas representando a nação. E Saraiva ficara com a gente da sua classe. Por enquanto o jogo lhe seria favorável.

Ainda nesse dia, ao cessarem ,os aplausos a Rui, Joaquim Na-buco (ele acabava de ser novamente eleito para o parlamento), de um dos camarotes do teatro, fêz o elogio do orador: "tendo feito da liberdade religiosa e da propagação do ensino o seu duplo apostolado, devia necessariamente dar como pórtico a essas grandes reformas a — Libertação dos escravizados" (aclamações imensas; a plateia agita-se em delírios de entusiasmo). (22) Estes aplausos assustavam os espíritos conservadores. E os proprietários de escravos tremiam apavorados diante desses moços, que nada tinham a perder.

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Afinal, em agosto, Saraiva conseguiu na Câmara a aprovação do seu projeto. O esforço consumira-lhe, porém, as reservas de autoridade sobre o seu grupo. Muitos liberais haviam votado contra o velho chefe encanecido, cujos olhos muito azuis, agora mais suaves e menos brilhantes, viram a rebelião levantar-se entre os seus comandados. Vencera apenas devido ao apoio dos conservadores. E, com a mesma astúcia com que esperara o poder das mãos do Imperador, êle o devolveu a Sua Majestade. For-mou-se, então, um governo conservador presidido pelo barão de Cotegipe, que aos setenta anos, mas ainda encantando o parlamento e os salões com a verve de um cético e as maneiras de um grão-senhor, coroava ágil e longa vida pública, recebendo de D. Pedro II a incumbência de dirigir a nação.

Como era frequente acontecer, a adversidade uniu novamente os liberais. No senado, José Bonifácio, Silveira Martins e Francisco Otaviano opuseram-se energicamente ao projeto Saraiva, mas sem poderem impedir que um mês depois o barão de Cotegipe o fizesse converter em lei. Para o mundo político, entretanto, mais importante do que a liberdade dos sexagenários foi a dissolução da Câmara. As eleições dariam o rumo ao país.

A ausência de Rui do parlamento nesse ano fora sensível para os seus correligionários. Dantas considerava-o "valendo por uma Câmara inteira", e, agora, esperava fazê-lo eleger. A tarefa era árdua. Instalados no poder, os conservadores pareciam dispostos

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a utilizar todos os meios ao seu alcance, para alcançarem uma vitória definitiva. Para isto, apesar da fiscalização do Imperador, que se esforçava por obter eleições verdadeiramente livres, removiam magistrados suspeitos de simpáticos aos liberais, e as autoridades policiais, com pequenas violências, faziam o resto, intimidando os votantes. Tal como agiam todos os governos, exceção de Saraiva, que tivera a sábia coragem do sacrifício, por ocasião da eleição direta.

Depois de um balanço sobre as probabilidades de triunfo dos liberais nos vários distritos da Bahia, o partido resolveu aceitar a sugestão de António Rodrigues Lima, ligado a importantes famílias liberais do 11.° distrito, e a antigo colega de Rui no "Ginásio Baiano". (23) Ainda uma vez os companheiros de infância, certamente atraídos pela lembrança daquele estudante suave, tímido, e excepcional, vinham em auxílio de Rui, que nada tinha a dar senão a bravura na defesa dos "princípios". Aí, além de Deocleciano Teixeira, Manuel Joaquim Rodrigues Lima, e a família de Marcolino de Moura, como os outros dois, contemporâneo de Rui, no colégio, poderia contar com o apoio do major António José Teixeira, do coronel Gangussu, e do barão de Caetité, chefes liberais do maior prestígio na região.

Assim, apesar do empenho dos conservadores, a eleição de Rui pareceu viável. Prisco Paraíso, ministro do gabinete Lafaiete, e que se pusera em campo a favor de Rui, escreveu a este cheio de animação: "Se o Rodrigues Lima fôr fiel, como espero, é V. deputado certíssimo." (24)

A Igreja, porém, não esquecera nem perdoara o tradutor do "O Papa e o Concílio". E, novamente, os padres se atiraram contra o "herege". Um deles chegara mesmo a afirmar que Rui dissera ser "Jesus Cristo filho dum soldado e duma mulher pública." (25) E, ao mesmo tempo em que espalhavam o folheto impresso em 1884, o "libelo sórdido", como o chamara Rui, fizeram descer dos púlpitos a maldição sobre os que votassem no candidato ímpio.

Como seria de esperar, a campanha teve efeitos desastrosos para o candidato liberal. Desenvolvida entre aqueles homens simples do campo, e visando pessoas, que jamais haviam visto, a sua eficiência era tremenda. Alguns não sabiam mesmo quem fosse Rui, e podiam ficar surpresos lendo a carta em que lhes solicitava o apoio falando-lhes em "liberdade de consciência" e "reforma do ensino público", (26) questões que ignoravam, e pelas quais não se interessavam. Desse modo, colocando a própria can

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didatura sôbrc base muito alta, tornava-a vulnerável aos ataques de quem prometesse aos eleitores, coisas mais concretas, como, por exemplo, modestas funções policiais.

Dir-se-ia que a má sorte perseguia o idealista. Como se não bastassem aqueles obstáculos semeados pelo clero, houvera cisão entre os liberais do distrito e o barão de Caitité e Joaquim Manuel Rodrigues Lima adoeceram gravemente. (27) Seria a derrota. E, preparando o espírito do amigo para o revés, Deocleciano escreveu a Rui: "Não estou totalmente sem esperanças." (28) Certamente, não precisava dizer mais: a derrota estava à vista.

Assim aconteceu. Em janeiro, Rui mais uma vez viu-se vencido. A Câmara eleita era compactamente conservadora, e tudo indicava que manejada pela habilidade do barão de Cotegipe asseguraria o poder aos conservadores por muito tempo.

Nessas ocasiões, quando se sentia esmagado por um insucesso, Rui procurava, tanto quanto possível, mostrar-se superior ao revés. Escreveu então, como já o fizera um ano antes, um agradecimento, espécie de manifesto aos que lhe haviam dado o voto. Atacava o chefe dos conservadores. E, como se desejasse esconder o próprio desapontamento, dizia enfaticamente: "Vencido, todavia, sinto-me sinceramente, tão dignificado, tão feliz, tão grato, quanto se me vira vencedor". (29) Mas, quem acreditaria sor alguém capaz de equiparar a derrota à vitória?

NOTAS AO CAPITULO XII

(1) Cf. carta de Leão Veloso a João Moura, in Arq. do Inst. Geog. e Hist. da Bahia.

(2) Cf. artigo de "R. S." no "O Imparcial" (Rio), ern 16 de março de 1913. Trata-se da posse do senador Inácio Martins.

(3) Cf. carta de Rui a Rodolfo Dantas, em 4 de dezembro de 1884, in Arq. C. R. B.

(4) Cf. Rui Barbosa, in Introdução à "Queda do Império", p . LXIV. (5) Cf. Rui Barbosa, discurso no Senado, em 8 de julho de 1903. (6) Cf. Joaquim Nabuco, "Escritos e discursos literários", (Rio, 1901)

p. 80. (7) Carta de D. Alice Dantas a Rui, s. d., in Arq. C. R. B. (8) Cf. carta "confidencialíssima" de Rodolfo Dantas a Rui, s. d., in

Arq. C. R. B. (9) Cf. de Rui a Rodolfo Dantas, s. d., in Arq. C. R. B. (10) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 13 de dezembro de

1884, in Arq. C. R. B. (11) Cf. "Diário" de Rui, 1884, in Arq. C. R. B. (12) Cf. Rui Barbosa, artigo "Palavras de um descrente", in "A Im

prensa", de 10 de março de 1900.

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(13) Cf. carta de Joaquim Serra a Rui, em 13 de fevereiro de 1885, in Arq. C. R. B.

(14) Cf. carta do cons. Dantas a Rui, de Friburgo, em 21 de maio de 1885, in Arq. C. R. B.

(15) Cf. carta de Joaquim Nabuco a Rodolfo Dantas, em 1 de abril de 1885 cm. pelo dr. Otávio de Souza Dantas.

(16) Cf. "Diário" de Rui, 1885, in Arq. C. R. B. (17) Cf. "Diário" de Rui, 1886, in Arq. G. H. D. (18) Cf. Rui Barbosa, "Discursos e Conferencias", p. 08. (19) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, de Kriburgo, cm 3 de janeiro

de 1886, in Arq. C. R. B. (20) Idem, idem, p. 103. (21) Cf. nota publicada in "Discursos c Conferencias", p. 104. Da

conferência proferida em homenagem ao ministério Danlas existe, além da edição da Tip. Central, outra da Tip. do "Diário de Notícias", 1885 (Bahia), e que foi feita por iniciativa de Augusto Guimarães, conforme se vê da carta deste a Rui, em 7 de agosto de 1885, c na qual diz o seguinte: "Meu caro Rui: Rodolfo escreveu-me logo depois da sua conlciência, que ia remeter-me exemplares em avulso para cu cncarrcgar-mc de distribuir. Como a ansiedade era geral, mandei reproduzir a eonlcrêiicia em folheto, de que lhe remeto 50 exemplares em uma caixinha, que vai pelo nacional, que é esperado hoje.

O Dr. Manuel Vitorino enearregou-se, a meu pedido, de fazer a introdução, que agradou muito. A distribuição tem sido gratuita; c só assim tomaria a liberdade de mandá-la reproduzir." (In Arq. C. R. B.)

A propósito da Conferência, escreveu também o barão Homem de Melo a seguinte carta a Rui:

"Irrompe-me um sentimento de admiração c de respeito pelo seu Discurso de 6 do corrente no Teatro Politcama, cm comemoração do aniversário do Gabinete Dantas.

A cólera sagrada do patriotismo armou-lhe a palavra, como o raio chamejante da verdade; e a causa da humanidade sentiu-se nobremente desfrontada pelas energias implacáveis de seu civismo em favor dos míseros cativos, os mártires resignados desta pátria, três vezes cruel para com eles!

Aqui no seio da escravaria, vim eu, único entre milhares de compatriotas nossos, levantar a tenda do trabalho livre. Este exemplo, eu terei a suprema ventura de legá-lo a meus descendentes.

E cada vez me convenço mais de que é um crime pensar em adiar a solução deste assunto, hoje a questão de vida ou de morte para a nossa terra.

De seu Discurso, hão-de por certo fazer edição em avulso. Peço-lhe, que me remeta então alguns exemplares do mesmo para

eu aqui os distribuir por Amigos meus, poucos que se elevam até este nível superior, em que, mercê de Deus, plainam nossos espíritos

Em Família tenho lido o seu Discurso, e sinto-me orgulhoso de que estas paredes, que nunca ouvirão o gemido do escravo, estremeçam ao eco de sua palavra inflamada por tão nobre causa." (In Arq. C. R. B.)

(22) Cf. Rui Barbosa, "Aos meus comprovincianos.. .", in "Diário da Bahia" de 4 de julho de 1888.

(23) Cf. carta de Prisco Paraíso a Rui, em 27 de setembro de 1885, in Arq. C. R. B.

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154 A VIDA DÊ RtJI BARBOSA

(24) Cf. carta de Teodoro Alexandre Carvalho a Rui, em 7 de janeiro de 1886, in Arq. C. R. B.

(25) V. Circular de Rui ao eleitorado do 11.° distrito, in "Diário da Bahia", dezembro de 1885.

(26) Cf. carta de Deocleciano Pires Teixeira a Rui, em 31 de dezembro de 1885, in Arq. C. R. B.

(27) Idem, idem. (28) Cf. Rui Barbosa, agradecimento ao undécimo distrito da Bahia,

datado de 6 de março de 1886. Esse agradecimento de Rui provocou uma resposta do candidato conservador, Pereira Franco, ao qual Rui replicou com extraordinária energia em novo manifesto ao 11.° distrito da Bahia, e datado de 22 de março de 1886 (Rio). Sobre essa eleição de Rui podem ser consultadas no Arq. C. R. B. as cartas de Joaquim Manuel Rodrigues Lima, em 1 de fevereiro de 1886, de António Rodrigues Lima, em 4 de fevereiro de 1886, de J. Spínola, em 30 de dezembro de 1885, e a de Deocleciano Pires Teixeira, em 22 de janeiro de 1886, a qual está acompanhada dum mapa demonstrativo do resultado do pleito.

Nessa eleição foram derrotados alguns dos liberais, que haviam votado contra Dantas. Os "dezessete trânsfugas", chamou-os Rui. A derrota desses liberais fêz que J. Serra, em 15 de fevereiro, escrevesse a Rui: "O meu consolo ora ver-te na Câmara, sendo procurador de todos nós. Resta-me o prazer de não ver eleitos nem Moreira de Barros, nem Sinimbuzinho, nem Valadares, nem Dória c nem A. de Siqueira. É alguma compensação." Carta que bem traduz o desentendimento causado entre os liberais pela questão da abolição.

XIII — A GRANDE EXPERIÊNCIA

Resolvi tentar a minha f/rande experiência, instaurando um jornal sem interesses nem partidos.

Itui.

PARTICULARMENTE interessante: embora tivesse procurado esquivar-se da incumbência, coubera a Rui, por instância de

Dantas, redigir o decreto de dissolução da Câmara em setembro de 84. Assim, escrevera êle próprio a sua exclusão definitiva do parlamento do Império. Ainda pensaria que o sofrimento conduz ao prazer?

Muitos anos haviam passado após aquelas leituras do Novo Testamento, feitas ao lado do inquieto João Barbosa e da suave Maria Adélia. Entretanto, apesar das suas dúvidas religiosas, os episódios das vidas estóicas dos santos permaneciam bem nítidos na alma de Rui. Parecia conservar as mesmas convicções daqueles lempos da infância, quando declamava em voz alta: "La vie en-lière de l'homme virtueux est, à proprement parler, un combat perpetuei contre le vice!" E que havia sido a sua existência senão o contínuo combate pelo que considerava o bem? Era verdade ler frequentemente assistido ao triunfo dos maus, ascendendo às posições elevadas por caminhos escusos, onde havia intrigas mesquinhas e inveja, enquanto a êle tocavam as derrotas. Procurava, então, atenuá-las chamando-as "o prémio dos que não aspiram senão ao serviço gratuito", mas nem por isso deixava de desejar a vitória, pois, no espírito contraditório, a um só tempo, existia ambição e renúncia. Coisas difíceis de conciliar. Contudo, fal-lava-lhe coragem para sacrificar qualquer delas e passaria a vida perseguindo ora uma, ora outra.

O ostracismo foi propício para uma fase de intenso trabalho. liui atirou-se aos livros com sofreguidão maior do que a habitual r leu tudo quanto lhe chegou ao alcance. Percorreu as obras de (lamilo Castelo Branco, embrenhou-se por obras de finanças e inlciessou-sc por trabalhos de equitação, medicina, e astrono-

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15G A VIDA DE RUI BARBOSA

mia. (1) Tudo satisfazia à sua curiosidade insaciável. E, como se fosse uma extravagância, dedicou-se também ao estudo do grego, tendo como professor o barão de Tautphoeus e por colegas Capistrano de Abreu, rapaz de pouco mais de trinta anos, que ambicionava apenas ser historiador, Macedo Soares, a quem Francisco Otaviano chamava "o nosso Saint-Beuve", e Raul Pompeia, o infeliz autor do Ateneu. Para um político vencido devia ser interessante traduzir a Ciropédia. (2)

Revivera também a ideia da publicação das "Lições de Coisas", abandonada anos atrás, e desta vez êle foi feliz, pois, editado o trabalho, a Província de São Paulo adquiriu quinhentos exemplares. (3) Aliás, compensando o desgosto político, a advocacia continuava de vento em popa e podia dar-se a alguns pequenos prazeres, que serviam para tornar a vida melhor do que nos magros anos de aperturas financeiras. Continuava a ir aos leilões, adquirindo louças, cristais e objetos ornamentais para a casa do Flamengo; assistia aos concertos do "Club Beethoven" e frequentava os teatros, cuja grande atração, por esse tempo (1886), foram as representações de Sarah Bernhardt, empolgando toda a sociedade. (4) O assunto interessava-o tanto que numa letra muito miúda, redonda, igual, traduzia longas crónicas do "The Athe-naeum" fazendo confrontos entre Eleonora Duse e a artista, que o Rio inteiro aplaudia. (5)

Já no fim de 1886, José Bonifácio, cuja voz ainda escoava pelo país, faleceu inesperadamente. Caíra como uma águia em pleno vôo e os liberais, emocionados com aquela morte súbita, fizeram realizar em São Paulo uma sessão cívica, em honra do correligionário desaparecido, e pediram a Rui para falar em nome do partido. (6)

Para quem perdera a tribuna do parlamento e não desejava o esquecimento, a ocasião era asada para explanar algumas ideias. Além disso, embora houvesse divergido durante o ministério chefiado pelo visconde de Sinimbu, Rui ainda admirava José Bonifácio com o mesmo entusiasmo dos anos da Academia e o discurso com que reverenciou a memória do morto é repleto de imagens e paralelos, que mostram quanto o impressionara aquela vida trepidante de sonhador e de homem de ação. "Todos os lugares que ocupou", disse Rui, de José Bonifácio, "rutilam ainda hoje da luz deixada por êle".

A oração foi, porém, alguma coisa mais do que um elogio. A vida do batalhador prestava-se para que o candidato vencido despejasse frases amargas sobre aquele mundo político onde ma-

A GRANDE EXPERIÊNCIA 157

lograra, e Rui, sem se desviar do assunto principal, não perdeu a vasa. Aqui, por exemplo: "Supõc-se ser a política a contradição do belo, como o tem sido, neste país, da verdade e do bem: uma uma espécie de divindade gaga, semilouca e míope, protetora do daltonismo e da surdez, inimiga da harmonia, do colorido e do bulício da vida, afeiçoada às almas som capacidade estética, sem instintos desinteressados, sem ondulações sonoras: uma combinação da esterilidade das estepes com a taciturnidade das paisagens de Java, onde as aves não cantam. Reformaria, se lhe permitissem, a criação, forrando de lã o espaço, e caiando a natureza de ocre. José Bonifácio era a antítese desse tipo. O ideal transbordava dele". O quadro traía o idealista amargurado. E ainda a propósito do homenageado, que combatera com veemência o projeto Saraiva sobre a emancipação dos sexagenários, Rui entregou-se ao seu tema predileto no momento: a abolição. Numa clara advertência à monarquia, êle resumiu nessa frase as suas aspirações: "Primeiro a abolição, nada sem a abolição, tudo pela abolição". Isto foi de grande efeito. O conselheiro Dantas, que presidia a sessão e a cada instante limpava os óculos azuis, sorriu satisfeito. A frase ficou. A impressa liberal a reproduziu, e os estudantes a repetiram comovidos, cada qual imaginando-se um futuro Lincoln.

Deve ser, no entanto, assinalada a previsão que faz sobre a possibilidade de José Bonifácio tornar-se republicano. Por que esse vaticínio sobre eventualidade impossível de realizar-se? Seria prévia justificação de sentimentos, que o orador sentia latentes no seu espírito? Mostrando as modificações do ambiente entre 1861, quando José Bonifácio estreara na Câmara, e a época em que morrera, Rui acentuara: "De então a esta parte vai o largo transcurso de uma geração: os caminhos e os sintomas estão longe de ser exatamente os mesmos. . . Estou certo, porém, de que a repercussão, mais ou menos extensa, fora inevitável, se a morte não lhe cortasse tão cedo o fio dos anos. Êle não alimentava prevenções fundamentais contra a república". Na época, a predição não foi notada. Entretanto, era expressiva. Sobre a maneira magnífica por que o conferencista se desincumbira da missão, o velho Dantas escreveu a Rodolfo: "O discurso do Rui foi mais que monumental! Excedeu a tudo quanto se devia esperar do lalento genial e da vasta e profunda ilustração daquele nosso ililclo amigo. Fiquei muito satisfeito e orgulhoso com esse incomparável triunfo, porque com razão considero Rui como parte de nossa família". (7) Rodolfo transmitiu a Rui a alegria paterna.

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158 A VIDA DE RUI BARBOSA

E daqueles aborrecimentos ocasionados pela preterição do ministério já não havia vestígio. Dois anos e meio durou o ministério chefiado pelo barão de Cotegipe. Nesse tempo Rui teve algumas decepções, e Rodolfo, apesar de afastado da política, vivera existência amargurada.

Os planos de Rui sobre as suas obras haviam malogrado inteiramente. Os seus livros não se vendiam e o público preferia os romances do visconde de Taunay. (8) Rodolfo, premido por necessidades financeiras, fora morar em Nova Friburgo, e as suas cartas revelavam quanto lhe era penoso abandonar os seus hábitos de homem de sociedade: "Deixa agora falar-te um pouco de mim, meu Rui, para dizer-te simplesmente, mas só a ti, que também eu não ando lá muito bom, embora disfarce-me a todos numa máscara de muito contentamento. A minha estada aqui, em verdadeiro exílio, de todos os meus hábitos, e daqueles com quem sempre vivi e mais caros me são, hás de perceber que, no fundo, importa num grande sacrifício. Tu, e só tu, sabes toda a minha vida, e refletindo verás que verdadeiramente o que está significando a minha ausência é a necessidade de por ordem e a urgência de equilibrar a minha situação, esperando que as circunstâncias me coloquem em posição de ser para nós todos o que desde já eu quereria poder ser." (9)

Todavia, nem por isso desapareciam as suas esperanças, e ainda animava o amigo — "Esta nossa situação há de cessar". (10) Há quanto tempo ambos acreditavam nesse milagre? Enfim, ainda era o melhor para poderem enfrentar a adversidade.

Enquanto isso, Rui prosseguia na luta pela abolição. Várias vezes, após a exclusão do parlamento, aparecera em público, (11) conquistando aplausos cada vez maiores. Agora, era a sua causa. Dele e de muitos outros idealistas, para os quais nada se sobrepunha à libertação dos escravos. Tudo servia de motivo para agitarem a ideia generosa. Assim, ao transcorrer o primeiro aniversário da apresentação do malogrado projeto de Dantas em favor dos sexagenários, um banquete assinalou a efeméride. (12) E, ao passo que os oradores, entre os quais estava Rui, imprecavam contra a nódoa da escravidão, outros convivas, em homenagem à data festiva, distribuíam cartas de alforria aos seus cativos.

Essa atividade foi, porém, interrompida em setembro de 1887 por grave enfermidade de Rui. Rodolfo estava ausente. Viajara para a Europa, onde assistira às festas do jubileu de Leão XIII. (13) E, ciente da moléstia do amigo, escreveu-lhe cheio de apreensão e de ternura: "Estás de todo bom, já, meu

A GRANDE EXPERIÊNCIA 159

Rui? Não te sei dizer da ansiedade em que ando a espera de notícias definitivas de teu restabelecimento. E é dominado deste sentimento que me estou hoje lembrando de ti e que te venho abraçar, por mim, por Alice e por minhas filhinhas, no dia do teu aniversário! Careço dizer-te o que me vai no íntimo à lembrança desta data? Frases não exprimiriam mais entre nós a força dos sentimentos que reciprocamente nos elevemos: nós sabemos o que esses são dum para o outro, e é com tudo quanto eles de mais intenso têm que de tão longe abraço ao meu Rui neste dia." (14) Quantas vezes haviam os amigos se inquietado diante daquele organismo, desde a infância de aparência tão débil? Felizmente, não tardou a cobrar forças. E, cheio de fé, continuaria a pregar.

Em março de 1888, Cotegipe demitiu-se. Exonerara-se durante a ausência do Imperador, que viajara enfermo para a Europa. Demissão por pretexto fútil, e que deixava entrever, atrás da Princesa Izabcl, o seu marido, o impopular Gaston de Orleans, que os anos vividos no Brasil não impediam de continuar conhecido por um epíteto bastante perigoso para a dinastia: "o francês". Contrariando a praxe, a Regente não pedira ao barão a indicação do seu sucessor: ela mesma escolhera o conselheiro João Alfredo, o "lider taciturno", e de quem, para assinalar não ser capaz de sacrificar uma vitória por uma convicção, dizia o deputado Ferreira Viana "ser homem que para tudo tinha saída". Não agia, porém, movido por ambição pessoal. Convicto de ser o seu primeiro dever assegurar o poder para o seu partido, João Alfredo não considerava as ideias obstáculos intransponíveis.

Nesse ano, em abril, Rui foi à Bahia, onde os abolicionistas o receberam com extraordinárias manifestações: (15) exprimiam a solidariedade ao companheiro duas vezes vencido nos comícios eleitorais, e o calor daquelas aclamações deve ter servido para acalentar a alma esmagada do lutador. Afinal, nem tudo fora perdido: a semente germinava. Poderia, porém, adivinhar que o sol já estava perto do horizonte? O certo é que ao próprio barão de Cotegipe, sempre tão perspicaz, não passaram despercebidos os vaticínios de Rui ao dizer que estavam ante "uma idade que acaba e uma era nova que começa." (16)

De fato, durante o governo de Cotegipe, graves coisas haviam acontecido. Uma série de pequenos incidentes entre ministros e oficiais do exército tomara vulto e originara sérias divergências entre o gabinete e prestigiosos chefes militares, que os liberais atiçavam habilmente contra os adversários, num jogo de

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consequências imprevisíveis e funestas para o regime. Rui, a pedido de Dantas, escrevera uma espécie de ultimatum ao ministério, e o visconde de Pelotas, que o assinava com outro general. Deodoro da Fonseca, defendeu-o perante o senado. (17)

Cotegipe capitulara ante as imposições da tropa, e a impressão geral fora de estar encerrada a questão. Poucos pensavam como Andrada Figueira: "É somente agora que vai começar a guerra." Apreciação justa, e que o deputado Afonso Celso Júnior, filho do visconde de Ouro Preto, secundara: "Apoiado. A questão militar — assim era chamado o dissídio — está, quando muito, adiada; morta não". (18) Realmente, depois de um breve intervalo, a pedra continuaria a rolar . . .

Enquanto o ministério discutia com os militares, o ideal abolicionista fizera grandes avanços. A própria família imperial, apesar da advertência do perspicaz barão de Cotegipe que via na abolição o caminho para a república, era-lhe favorável.

Agora, os republicanos, que se haviam destacado do partido liberal, para formarem a falange do barrete frígio, encontravam-se, sob a mesma bandeira abolicionista, com antigos companheiros. Aliança perigosa para a monarquia. Rui, por exemplo, aproxi-mava-se novamente de Saldanha Marinho, que, embora encanecido, ainda sonhava com a Revolução. E, ao lado deste, semelhante a um agrupamento em torno de um patriarca, estavam os mais novos, como Quintino Bocaiuva, diretor do "O País", e "três republicam de conviction et três arisloerate de tempérament". (19) Era "a mão de ferro sob a luva de pelica", diziam os amigos de Quintino. O conceito agradava-lhe e sobre a sua mesa de trabalho, para segurar os papéis, jazia uma luva de bronze.

Também era interessante observar-se como a Princesa e os republicanos marchavam juntos para a abolição. Ela estava certa de encontrar aí a salvação da Coroa, enquanto eles acreditavam ser o túmulo da monarquia. Espécie de jogo de ricochete: todos atiravam no mesmo alvo, mas, no fundo, tinham objetivos diferentes.

Desse modo a libertação dos escravos tornou-se rapidamente uma ideia triunfante. O próprio primeiro ministro João Alfredo, aquele que escandalizara Nabuco por atacar Lincoln, fizera-se partidário da emancipação. Curvara-se à vontade da Princesa e apresentou o projeto decretando a abolição total dos escravos.

No parlamento o projeto avançou depressa. Apenas algumas Cassandras vaticinaram o perigo a que se expunha o trono. Mas, poucos dias depois, o conselheiro Dantas pôde congratular-se com

A GRANDE EXPERIÊNCIA 161

os seus companheiros de jornada: — "Chegamos ao termo da viagem empreendida, e mais felizes do que Moisés, não só vemos, como pisamos a Terra Prometida". (20) Sim, a abolição estava feita. Em dois meses o país mudava completamente a sua economia. Transformação radical e profunda. "Se estivesse presente, diria o Imperador ao regressar, as coisas se passariam de outro modo". Parecia adivinhar que o golpe fora rápido demais.

A Princesa, porém, estava satisfeita. A sua sensibilidade feminina, magoada pelas antipatias que rondavam o seu querido Gas-ton, desejava resgatar por qualquer preço aquelas injustiças. Estava ávida de popularidade e os aplausos davam-lhe uma sensação de segurança.

A abolição foi promulgada em 13 de maio de 1888. Nesse dia — belo dia de sol — os chefes do movimento apresentaram-se na Rua do Ouvidor e nas sacadas dos jornais, para receberem as aclamações do triunfo. (21) Rui, porém, não apareceu. A vitória, uma vez conquistada, parecia já não o encantar. Satisfazia-se, talvez, com a consciência de ter cumprido o seu dever. Pensamento erróneo, para quem ambicionava o poder. Refletia, porém, o conflito íntimo do seu espírito.

o o o

Talvez imaginasse que o passado era o passado. E a êle que interessava senão o futuro? Por isso mesmo, enquanto alguns recolhiam as palmas do triunfo, nada lhe pareceu melhor do que escrever palavras de advertência aos que teimavam em não compreender que os tempos já eram outros. Agora, êle desejava as consequências da abolição, e publicou um artigo - "A lição da hora" - dizendo em tom meio profético: "A mim me parece que mais vale simpatizar com o futuro, sondá-lo, e dirigi-lo, do que deixá-lo fazer-se à nossa revelia, para aceitá-lo imposto, capitulando". (22) E, convicto de que pela "brecha" da libertação dos escravos entraria a democracia, acrescentava: "Que os nossos estadistas não tirem mais os olhos daquele ponto do céu, se não quiserem que os colha o imprevisto." Contudo, como sempre, não seria ouvido. Por que escutar o visionário? E o "imprevisto" avançaria a passos largos.

Por mais que a vitória do abolicionismo o tivesse alegrado, a política ainda não deixara de ser para Rui aquela "combinação de esterilidade das estepes com a taciturnidade das paisagens de Java", quando alguém, nesse ano, lhe pediu para prefaciar uma tradução das "As Viagens de Gulliver".

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"As Viagens de Gulliver". (23) Belo tema para quem se acreditava acorrentado pelos pigmeus, como o herói da amarga fantasia. E Rui se entregou satisfeito ao trabalho. Das suas velhas leituras inglesas, era uma das que mais lhe haviam ferido a imaginação. O implacável humorista irlandês, misto de ternura e de ódio, tanto o havia impressionado que chegara a adotá-lo como um dos seus pseudónimos. Lera-lhe as obras e conhecia as críticas lacerantes suscitadas pela forte personalidade do deão de S. Patrick. E tanto refletira sobre Swift, que a personagem, por um lento trabalho da imaginação, acabara deformando-se diante dos seus olhos.

Por isso, escrevendo o prefácio, o Swift que via agitar-se e sofrer à sua frente aparecia bem diverso daquele traçado por Taine e Paul de Saint Victor. O seu desejo era reabilitá-lo, opondo o "seu" Swift, aquele que sentia e admirava, ao Swift esboçado pelos dois críticos franceses. Descobrira até entre êle — o Rui que pensava ou desejava ser — e o mordaz criador de Liliput alguns pontos de semelhança. Ideia fascinante. Devia, portanto, investir contra a "caricatura caluniosa" de Taine, e contra o "espasmo de cólera literária" de Saint Victor.

Mas, o Swift, que lhe ia saindo da pena apaixonada, era tão irreal quanto os outros. Um Swift onde frequentemente parecia encontrar-se o contemplar-se deslumbrado. Como o sardónico deão, êle também era negado, incompreendido, acusado de orgulhoso o, às vezes, Rui dava a impressão de escrever a sua autobiografia: "Alheado dos encargos de governo pela sua profissão eclesiástica, arredado das altas dignidades eclesiásticas pela independência de sua pena, Swift devia sentir profundamente a amargura do contraste entre o seu merecimento e a sua situação, entre a sua consciência e a ordem exterior do mundo, entre as suas aspirações e a realidade que o cercava". Como isto devia estar próximo do que Rui também sentia! E, como se explicasse a própria misantropia, justificava o autor do "Diário a Estela": "Vivendo em uma das idades mais frívolas, desalmadas e céticas da história de seu país, a sua misantropia era o horror à sua época e aos vícios de seu tempo".

Além disso, descobrira na alma do panfletário os "sentimentos de homem de Estado". Inflamava-o a queda de Marlborough devida "ao génio de um só homem, em quinze meses de esforços". E, enquanto esculpia o perfil do lutador, podia sonhar com esse modelo solitário, superior aos partidos, e desferindo golpes olímpicos com a sua pena, para abater ministérios e mudar os destinos

A GRANDE EXPERIÊNCIA 163

da Inglaterra. Êle também desejaria ser assim. Mas, para isso, deveria inicialmente desistir de conquistar o poder, e este o seduzia. Consequência da sua alma contraditória. Swift e Marlborough não haviam trilhado o mesmo caminho, e por isso tinham atingido planaltos diferentes. Rui ficava indeciso. Como seria doloroso se não conseguisse alcançar ambos. O Poder e a Glória: um triunfo completo. .

Ainda nesse ano, um fato inesperado arrastaria Rui a nova aventura eleitoral. Falecera Pereira Franco, o candidato conservador que o derrotara no último pleito, e o velho Dantas logo se pôs em campo, disposto a quebrar lanças em favor do amigo espezinhado por sucessivas derrotas. (24) Não teria ele direito à reparação? Entretanto, embora a afirmativa parecesse esteiada nos melhores fundamentos morais e políticos, o partido, na Bahia, logo se dividiu. Muitos eram favoráveis a candidatura de Aristides Spínola, que angariava a simpatia dos chefes do distrito eleitoral, inclusive os que haviam apoiado Rui, em 86. A primeira batalha verificou-se dentro do próprio diretório do partido, onde o cons. Almeida Couto, aparentado com Brasília Silva a antiga namorada de Rui, chefiou a ala simpática a Spínola. (25) Lem-brar-se-ia daqueles amores malogrados? E de tal modo se opusera a Rui que Jerónimo Sodré escreveu a este perguntando-lhe: "Tiveste, por ventura, algum desaguisado em qualquer tempo com o Couto?" (26)

Afinal, no diretório, Dantas venceu a partida. Era, porem, a cisão dos liberais: Rui teria de enfrentar, nas urnas, um correligionário. E alguns já divisavam por detrás dos dissidentes a sombra de outros chefes liberais dispostos a arrebatarem ao velho Dantas a supremacia alcançada na Bahia. (27)

De qualquer modo a divergência seria fatal a Rui. Ele próprio não tinha dúvidas sobre o novo revés. Entretanto, por ter ido à Bahia, cm agosto, cuidar de assuntos forenses, muitos o acreditavam iludido. D. Francisca Jacobina informou, porem, ao marido: "Tu pensas que o Rui foi tratar da eleição? Nao e isso que me diz Maria Augusta, que me afiança que êle julga a eleição perdida . . . " (28) Realmente, as urnas confirmaram a melancólica previsão. Novamente êle estava batido. E, mais do que êle o derrotado era o próprio Dantas, que via hastear-se entre as 'suas hostes a bandeira da insurreição. Prisco Paraíso a Marcolino Dantas: "Que época é esta em que precisamos nós de um grande general como o Rui, para as batalhas que se aproximam, e, tendo êle todo o acolhimento do nosso chefe político, prati-

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cam-se desobediências desta ordem?" (29) Sim, o sintoma era grave. Contudo, a maioria do partido não parecia inquieta ou insatisfeita pela ausência do "grande general". Quem sabe se não acreditaria poder vencer as batalhas com simples sargentos?

o o *

Por esse tempo, dirigindo um modesto jornal — o "Diário de Notícias" — surgia nas rodas de jornalistas da Corte, um moço inteligente e possuído de forte decisão de vencer. Fazia-se sobretudo notado pela elegância das suas roupas. Na lapela, nunca lhe faltava uma flor, e empunhava com donaire leve bengala encas-tonada de ouro. Chamava-se António Azeredo. Era republicano, e cursara a Escola Militar, mas reconhecera ainda em tempo que a profissão de advogado convinha mais às suas ambições. Êle e Rui ficaram íntimos, nascendo entre ambos a maior confiança. Rui, profundamente erudito, e por isso mesmo sobressaltado por dúvidas, apreciava aquela inteligência espontânea, que amava mais os salões e as damas do que os livros. Sem o perceberem, os dois amigos se completavam. Um conhecia os livros. O outro conhecia os homens.

Azeredo convidou Rui para assumir a direção do jornal. Ideia sedutora para quem estava fora do parlamento e acreditava ter muita coisa para dizer à nação. Rui, entretanto, mostrou-se indeciso. Mas, ainda uma vez, Maria Augusta animou o tímido. Rui impôs, então, as condições: seria o único a mandar, e o jornal ficaria acima dos partidos, inteiramente livre de compromissos. Isso foi aceito com uma pequena restrição: Azeredo conservava o direito de criar uma "coluna republicana", onde escrevessem os propagandistas do novo credo. Diante desse pacto, ambos tinham grandes planos e sentiam-se cada vez mais unidos.

Rui embora sem mencionar o nome de Azeredo, comunicou ao velho Dantas o oferecimento. A resposta: "Tua catra de anteontem muito me alegrou. Quem quer que seja o amigo que compreende quanto conviria proporcionar-te uma tribuna efe onde pudesses dizer o que pensas ao país, merece meus louvores". (30)

Possivelmente, detendo o jornal — a arma que ainda lhe faltava para um combate mais amplo — Rui ia realizar um dos seus ideais. De fato, "o público logo sentiu a qualidade da voz que lhe falava, o fôlego do comentarista político, a pujança do escritor com sua excepcional capacidade de fazer ressoar nas consciências os problemas do tempo e os fatos do dia." (31) Seria a sua "grande experiência", diria êle próprio. Acumulara derrota

A GRANDE EXPERIÊNCIA 165

sobre derrota, mas, finalmente, poderia atirar-se com ferocidade sobre os acampamentos inimigos, para implacável ajuste de contas. E talvez se lembrasse de João Barbosa.

NOTAS AO CAPITULO XIII

(1) Pelo "Diário" de Rui, de 1886, é possível verificar-sc (através da compra de livros) os vários assuntos pelos quais então se interessou.

(2) Há no Arq. C. R. B. duas cartas de Capistrano de Abreu sòbrc as aulas de grego com o prof. barão de Tautplioeus. Numa delas, sem data, diz o grande historiador: "A aula de grego é nas 2as., 4as., e 6as., à Rua Sete de Setembro 72. Hoje há. A gramática admitida c a de Burnouf; a lição o alfabeto." Na outra refere-se aos colegas c á Ciropédia

(3) Após os contratempos a que já nos referimos, a publicação das "Lições de Coisas" foi levada avante graças a Balduíno Coelho, companheiro de Rui na "Liga do Ensino" (Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, cm 16-12-84, in Arq. C. R. B.), concluindo-s ca impressão em 1886. Sobre o aparecimento da tradução há, em carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 9 de maio (não traz o ano), a seguinte informação: "Tenho folgado muito com o caloroso acolhimento unânime pela imprensa às tuas "Lições de Coisas." A compra dos 500 exemplares pela província de São Paulo foi feita durante a presidência do cons. João Alfredo, e possivelmente por influência de Balduíno Coelho, que era então o secretário do cons. João Alfredo. Sobre os antecedentes e circunstâncias relativas à publicação das Lições de Coisas é indispensável a leitura do prefácio do prof. Lourenço Filho ao vol. XIII, tomo I, das Obras Completas de Rui Barbosa (Rio, 1950).

(4) Cf. "Diário" de Rui, 1886. (5) Está no Arq. C. R. B. o autógrafo da tradução do artigo do The

Athenaeum, London - n.° 3.004, Saturday, may, 23, 1885, p. 673-674, sobre Eleonora Duse.

(6) Sobre a famosa conferência de Rui, fazendo o elogio de José Bonifácio e proferida em São Paulo em 8 de dezembro de 1886, existe no Arq. C. R. B. a seguinte carta, de 27 de novembro, 1886: "Rui". Se não tivéssemos plena e merecida confiança na sua conhecida competência para orador oficial na sessão a José Bonifácio, essa confiança se imporia pelo grande papel que V. desempenhou como auxiliar do Glorioso Gabinete 6 de Junho; ponha portanto a modéstia de parte, porque esperamos que as luzes de sua inteligência e ilustração hão de abafar as luzes em excesso que nos pede para a leitura de seu trabalho.

"As providências estão dadas para estas, as outras só dependem de sua vontade. Seu do C. Clímaco".

Trata-se de Clímaco Ananias Barbosa de Oliveira tido, na Bahia, como filho natural de João Barbosa. Realmente, no Arquivo da "Casa de Rui Barbosa" há uma carta de Clímaco a Rui, em 26 de maio de 1894, capítulo XIII (Buenos Aires), na qual se declara seu "irmão natural", e outra dum filho de Clímaco, Lício Barbosa, (12 de novembro de 1888), na qual se dirige a Rui tratando-o de "Meu tio e am.° Dr. Rui". Este, aliás, no artigo de 5-5-1889, no "Diário de Notícias", referindo-se ao pai, fala nos "seus dois únicos filhos, eu e minha irmã".

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(7) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 19 de dezembro de 1886, in Arei. C. R. B.

(8) Cf. carta do Rodolfo Dantas a Rui, em 19 de dezembro de 1886, in Arq. C. R. B.

(9) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, cm 24 de novembro de 1886, in Ani. C. R. B.

(10) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 19 de dezembro de 1886. (11) Depois de perdida a cadeira no parlamento, Rui proferira as

conferências de 2 de agosto de 1885, de 7 de novembro de 1885, de 6 de fevereiro de 1887, de 28 de agosto de 1887.

(12) Cf. notícia no "Jornal do Comércio" de 16 de julho de 1885. (13) Cf. carta do cons. Dantas a Rui, em 27 de janeiro de 1888,

in Arq. C. R. B. (14) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, em 5 de novembro de 1887

(Paris), Arq. C. R. B. (15) Respondendo à manifestação promovida pehv Sociedade Liber

tadora Baiana e outras associações abolicionistas, Rui falou no Teatro S. João (Bahia), em 29 de abril de 1888, sendo o discurso publicado no "Diário da Bahia", de 1.° de maio de 1888. Rui foi então saudado por Virgílio de Lemos. Hospedou-se no Hotel Paris, e regressou ao Rio, no dia 1.° de maio, no vapor "Aliança".

(16) V. Afonso Celso, obr. cit, p. 239. (17) O manifesto de Pelotas e Deodoro - "Ao parlamento e à nação"

- foi publicado polo "O País", em 14 de maio de 1887. No Arq. C. R. B. existe cópia do punho de Constâncio Alves, c que Rui reviu. Este, no discurso de 22 de agosto de 1887, no Teatro Politeama, diz ter assistido à sessão do Senado em que lYlolas defendeu o manifesto. V. Hélio Vianna, prefácio ao vol. XIV, tomo 1, das Obras Completas do Rui Barbosa.

(18) Cf. Anfrísio Fialho, "História da Fundação da República no Brasil", (Rio 1891), p. 89.

(19) Cf. Machado de Assis, "O velho Senado", em "Páginas recolhidas", p. 161.

(20) Discurso do cons. Dantas, no Senado, em 13 de maio de 1889. (21) Cf. Machado de Assis, "A Semana". (22) Rui Barbosa, "A lição da hora", artigo publicado na "Gazeta da

Tarde" (Rio), em 19 de maio de 1888. (23) "As Viagens de Gulliver", Rio, 1888, trad. de Carlos Jansen, e

prefácio de Rui Barbosa. Sobre o assunto publicou o sr. Eugênio Gomes, na "Revista Brasileira", outubro de 1944, o artigo "Rui e Swift".

(24) Há, no Arq. C. R. B. cópia de vários telegramas então passados pelo cons. Dantas em favor da candidatura de Rui Barbosa, e nos quais considera "ponto de honra" do partido a adoção daquela candidatura.

(25) No diretório do Partido Liberal Baiano votaram a favor de Rui, Manuel Vitorino, Augusto Guimarães, António Euzébio, e Jerónimo Sodré. Carneiro da Rocha opinou que não fosse indicado candidato. Almeida Couto e Ildefonso votaram pela indicação de A. Spínola.

(26) Cf. carta de Jerónimo Sodré a Rui, em 14 de junho de 1888, in Arq. C. R. B.

(27) Nessa eleição, Rui não contou mais com o apoio de vários dos elementos que o haviam amparado em janeiro de 1886, no 11.° distrito,

A GRANDE EXPERIÊNCIA 167

e entre os quais devem ser mencionados os irmãos Rodrigues Lima, Deo-cleciano Pires Teixeira, e o padre Tobias Coutinho, havendo os dois últimos publicado na "Gazeta da Bahia" de 17 de junho de 1888 um manifesto em favor da candidatura de A. Spínola, de quem era cunhado Deocleciano Teixeira. A esse manifesto respondeu Rui, pelo "Diário da Bahia" de 4 de julho de 1888, numa publicação dirigida "Aos meus comprovincianos e em particular ao independente eleitorado do 11.° distrito." Tem a data de 22 de j u n h o de 1888 (Rio). Nela, justificando a sua candidatura, refere-se Rui a "alguns trabalhos parlamentares, que me roubaram talvez o melhor da minha vida; lida sem tréguas na imprensa e na tribuna popular pelos princípios mais caros à nossa escola, sempre ao serviço dela nos postos mais responsáveis, arriscados, e laboriosos. Sabem-no os adversários, ainda quando amigos o esqueçam." A mencionada publicação não figura nos Catálogos de Batista Pereira e Fernando Nery.

Entre os que trabalharam contra Rui também estava César Zama, que a esse tempo já devia estar afastado do cons. Dantas, segundo se depreende da correspondência deste e de Rui, possivelmente por causa da eleição senatorial da Bahia, nesse ano, à qual Zama concorreu como candidato avulso. A propósito, em carta de 29 de janeiro de 1888 ao cons. Dantas, dizia Rui: "Tenho seguido as brilhanturas do Zama. Há-de ser eternamente o mesmo ambicioso sem caráter nem senso comum". É, aliás, resposta à carta que, em 27 de janeiro desse ano, dirigira a Rui o cons. Dantas, e na qual censura a atitude de Zama. Também Sancho Pimentel, em carta de 1.° de fevereiro de 1888, dava a Rui informes sobre a posição de Zama, e dizia: "O Zama estava um verdadeiro possesso". (Correspondência, in Arq. C. R. B.)

(28) In "Mocidade e Exílio", (ed. de 1940), 1953. Deve, entretanto, ser contado que a princípio Rui teve grandes esperanças na eleição, conforme se infere das cartas de 4 de maio, 14 de junho, e 25 de junho de 1888 escritas a Tónico (cons. Carneiro da Rocha) e publicadas no vol. "Correspondência Intima", págs. 333 a 343.

(29) Carta de Prisco Paraíso a Marcolino Moura, em 20 de julho de 1888, in Arq. C. R. B.

(30) Cf. carta do cons. Dantas a Rui, em 2 de março de 1889, in Arq. C. R. B.

(31) Hermes Lima, prefácio ao vol. XVI, tomo I, das Obras Completas de Rui Barbosa, p. XVIII

(31-A) São dessa época as notas autobiográficas de Rui Barbosa, recentemente encontradas na Casa de Rui Barbosa:

Nascido em 5 de novembro de 1849, do casamento entre o Dr. João José Barbosa de Oliveira e D. Maria Adélia Barbosa de Oliveira, tem, desse casamento, uma irmã, D. Brites Barbosa.

Nasceu na cap. da Bahia, freguesia da Sé. Cursou quase todos os preparatórios no Ginásio Baiano. Matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife em março de 1865,

transferindo-se em 1867 para a de S. Paulo, onde fêz os três últimos anos do curso.

Nessa capital colaborou com Joaquim Nabuco e outros no periódico "A Independência", e redigiu, com Luiz Gama, Américo de Campos e Bernardino Pamplona, "O Radical Paulistano", em 1869.

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168 A VIDA DE RUI BARBOSA

No seu quarto ano (1869), sendo membro e orador da loj. Maçon — AMÉRICA, à qual se deve a iniciação das escolas noturnas no Brasil, fez adotar, contra o voto e a oposição tenaz do Dr. António Carlos de Andrada Machado e Silva, seu lente de direito comercial, um projeto, para os membros já iniciados e que de futuro se iniciassem, pelo qual esses maçons libertavam o ventre de suas escravas. Isso dois anos antes da lei

de 1871. Começou a advogar, na Bahia, em 1871. Estreou na tribuna do júri com uma causa célebre, como advogado

de uma pobre menor desonrada pelo rico negociante português António Tavares da Silva Godinho, cuja condenação obteve.

Em 1872 entrou na redação do "Diário da Bahia", onde permaneceu com Belarmino Barreto, Leão Veloso, Rodolfo Dantas, até 1881. (Com alguns intervalos). Pelos fins de 1877 assumiu a redação em chefe dessa folha.

Ocupou pela primeira vez a tribuna popular em sua província no grande meeting de 2 de agosto de 1874 sobre a eleição direta.

Em 21 de julho de 1876 pronunciou, no vale dos Beneditinos, na Corte, em 1876, uma grande conferência acerca de questão religiosa, que "O Globo" solicitou para publicar, e publicou na sua íntegra.

Nesse ano, em 23 de novembro, casou com D. Maria Augusta Viana Bandeira, filha de Alfredo Bandeira e D. Maria Luiza Viana Bandeira, da Bahia.

Nesse ano, ainda, publicou, na Corte, a obra "O PAPA E O Concílio", por lanus. Versão c inlrodução de Rui Barbosa. A introdução conta 285 páginas, discute lodos os pontos do problema da liberdade de consciência, casamento civil, a grande naturalização dos cemitérios, do registro civil, etc.

Dessa obra disse; o "Diário do Rio de Janeiro", órgão do governo conservador, e portanto, insuspeitíssimo, que a introdução do tradutor excedia em importância a obra alemã traduzida. Ora, a obra traduzida foi o livro que mais celebridade teve, na Europa, na questão religiosa, atri-buindo-se então à pena do grande teólogo Doellingcr.

Subindo o partido liberal em 1878, foi eleito deputado à assembleia provincial da Bahia durante uma legislatura, e deputado geral nas duas primeiras eleições daquela situação.

Depois foi derrotado duas vezes, sob o ministério Dantas e sob o ministério Cotegipe, pelos 8 e 11 distrito de sua província, sendo eleito em seu lugar os Drs. Inocêncio Góis e Franco Filho.

Em janeiro de 1878, chamado ao governo o Sr. Saraiva, foi incumbido de redigir o projeto da reforma eleitoral, que aquele estadista apresentou ao Imperador e depois ao parlamento, assim como, em 1884, foi encarregado pelo ministério Dantas de elaborar o projeto de abolição do elemento servil.

Foi o orador do decenário de Castro Alves, na Bahia, em 1881, do centenário do Marquês de Pombal, na Corte, em 1882, e da sessão cívica em homenagem de José Bonifácio, em S. Paulo em 1886.

Esses três discursos correm impressos em avulsos. Foi convidado para redator em chefe do "País", na Corte, quando se

teve de fundar essa folha. Inaugurou-a: mas deixou-a três dias depois, resistindo às mais fortes instâncias do proprietário desse Jornal.

Era presidente do Conservatório Dramático na Bahia, quando se agitou a questão dos "Lazaristas", sustentando então polémica em defesa da peça, cuja representação autorizou.

A GRANDE EXPERIÊNCIA 1 6 9

Além dos escritos e discursos já mencionados, conta, entre outros os seguintes:

Parecer e projeto em nome da comissão de instrução pública da câmara dos deputados sobre a reforma do ensino primário (Rio, 1883).

Parecer e projeto sobre a reforma do ensino secundário e superior (Rio, 1882).

Parecer em nome das comissões de orçamento e justiça civil sobre o projeto de emancipação dos escravos (Rio, 1884).

Desses três pareceres diz o "Annuaire de Lcgislation Etrangòre", publicado, em Paris, pela Société de Lcgislation Comparéc que são os mais consideráveis trabalhos apresentados até hoje nas Câmaras brasileiras.

— Primeiras Lições de Coisas de Calldns. Versão e adaptação de Rui Barbosa. (Rio, 1886).

— Vários discursos parlamentares impressos em avulso. — Discurso sobre o ensino artístico, proferido no Liceu de Artes c.

Ofícios da Corte. — Crime contra a propriedade industrial. Bahia, 1874. — Defesa do guarda-niór — Bahia, 1877. — Conferência Abolicionista na Corte cm 7 de junho de 1885. Bahia,

1885. — Conferência Abolicionista em 2 de agosto de 1885 — Corte, 1885. — Féria política. Artigos por Salishury. Rio de Janeiro, 1884. — Uma escaramuça Conservadora cm 1883 — Artigos por Swift — Rio,

1884. Em 1884 — sob o Ministério Dantas, na luta pelo projeto abolicionista,

escreveu quase diariamente, no "Jornal do Comércio", sob os pseudónimos de Grey e Lincoln.

Fundou em 1885, na Corte, a Liga do Ensino no Brasil na Corte. A Fundação das Estações Agronómicas no Brasil, posta em prática em 1886, pelo ministro A. Prado, é ideia sua, aventada no seu projeto de reorganização do ensino secundário e superior.

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X I V — E N C R U Z I L H A D A

O VELHO Dantas, sempre malicioso e amável, estava em Petrópolis quando soube ter Rui assumido a direção do "Diá

rio de Notícias". A arma, posta nas mãos daquele homem, chegando à matu

ridade quase vencido, parecia-lhe bastante perigosa. E logo lhe escreveu. "Tenho lido desde 7 até ontem o Diário de Notícias com um cuidado, com um interesse e até com um receio só comparável ao do Pai que sabe que um filho vai dar um passo dos mais difíceis e delicados pelas circunstâncias que o cercam!

"É certo que pelo conhecimento perfeitíssimo que tenho de ti, sei que és talhado para todas as mais arriscadas empresas e cometimentos dependentes do talento, do estudo e do caráter; mas neste meio em que vivemos nem sempre basta tudo isso que tens inexcedlvclmente". (1) Advertência lisonjeira e triste. Já na velhice, cheio de experiência, Dantas não considerava suficientes aquelas qualidades para a vitória de Rui. Que mais seria preciso? A carta não dizia. Mas, o seu silêncio marcava possivelmente a distância entre visionários e utilitários.

No mundo, porém, nada se reforma sem os visionários. E tudo quanto Rui queria era reformar. Após longo período de provações, ardia na ânsia de destruir, para subverter e renovar. A ordem antiga parecia-lhe enfadonha e insuportável. E aquelas palavras, passando por êle como água sobre vidro, apenas o faziam compreender quanto começava a separar-se do velho amigo, que, vinte anos antes, o acolhera paternalmente.

O público, depois de assistir, durante meio século, ao revezamento dos dois partidos no poder, estava cansado da comédia política. Entretanto, agradava-lhe o programa sincero e audacioso do jornalista, que desejava ser apenas "um eco do sentimento público" e voltava-se contra as duas tradicionais agremiações do Império, para apontar-lhes os erros e os egoísmos mesquinhos. Rui clamava pela reorganização dos partidos "por ideias e para ideias". E a sua ideia era a federação. Incapaz de compreender a vida sem a luta por algum ideal, o espírito inquieto, vencida a

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etapa da abolição, voltara-se para o exemplo vindo da América do Norte, que desejava ver implantado no Brasil. De fato, em relação aos seus ideais políticos, êle se assemelhava a esses maridos fiéis à mulher, mas que, se enviuvam, logo começam outro amor. Para Rui, o triunfo das campanhas em que se empenhava equivalia à viuvez. Empolgado pela Reforma fora indiferente à liberdade dos escravos. Todavia, vitorioso o sistema direto, logo se voltara apaixonado para a emancipação, que o absorvera inteiramente. Agora, decretada a abolição, atirava-se aos braços do federalismo.

Provavelmente, a êle, que exaltara Tavares Rastos e estava em dia com o direito norte-americano, não era novo aquele pensamento federativo. Mas, somente agora, decidira-se a fazer dele a sua bandeira. Considerava-o, sem demora, necessidade inadiável para o país. Aí encontraria a monarquia a sua própria salvação. E os liberais, a fim de subsistirem, deveriam transformar-se no "Partido Federal". O jornalista evidentemente inflamara-se.

Dantas tinha razão: a arma mostrava-se perigosa. Como se já fosse um chefe, Rui desfraldava a sua própria bandeira e a ela se apegava inabalàvelmente. Quem teria forças para o obrigar a descê-la? Contudo, tolerante, Dantas não se importou muito com a rebeldia do amigo.

Não tardou que o jornal ficasse próspero. Rui estava satisfeito e os seus companheiros — um pequeno círculo de íntimos — exultavam com a sua crescente popularidade. Um destes escreveu a Jacobina: "Deus permita que o Rui desta vez conheça o que é, o que vale, e o que pode, e deixe-se de dormir ao som do cântico das sereias". (2) E êle gostava desses elogios.

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Em fevereiro, como um ator retirando-se da cena antes de terminar o seu papel, o barão de Cotegipe entregou a alma a Deus. Isso enfraqueceu os conservadores, já gastos pela abolição, e os liberais ficaram mais próximos do poder.

Mas, como pretenderem o governo sem um programa rejuvenescido? Nos últimos dez anos duas grandes reformas — a eleição direta e a abolição — haviam surgida das suas fileiras, e eles se julgavam os arautos da evolução pacífica do país. E, principalmente quando no horizonte se levantava o espectro da llepública, algumas inovações pareciam imprescindíveis. Um largo sopro renovador deveria varrer a nação. Que restava, en-

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172 A VIDA DE RUI BARBOSA

tretanto, para refomar? A vitalidade dos senadores? O poder moderador do Rei? A secularização do ensino? A forma centralizada da administração? Sobre o assunto as opiniões eram as mais variadas, e alguns, no íntimo, não desejavam reformar coisa alguma.

É que o Tempo não passara impunemente sobre a cabeça daqueles liberais de mais de cinquenta anos. Embranquecera-lhes os cabelos e fizera muitos deles tão prudentes e impermeáveis às modificações, que nada senão o nome os distinguia de um conservador. Saraiva tornara-se a "ave de vôo curto e pouso certo", como diziam para traduzir a sua aversão a qualquer aventura de êxito duvidoso. Sinimbu, ferido pelo beribéri, tinha os movimentos tão tardos quanto o seu desejo de agitar o país. Ouro Preto convertera o seu ímpeto na confiança demasiada na força do poder. E Dantas, ansioso pela reconquista da posição perdida dentro do partido, não estimava ter os movimentos embaraçados pelo peso de alguma ortodoxia. Apenas os moços, menos previdentes e desarticulados entre si, sonhavam com um programa onde se inscrevessem profundas transformações. Destes, alguns tinham confiado em Joaquim Nabuco, em cuja ação emancipa-dora haviam antevisto o líder das correntes avançadas do país. Mas, feita a abolição, ele perdera o impulso, e muitos já se voltavam para Rui.

Para conciliar tantas opiniões antagónicas, os liberais resolveram reunir-se num congresso que traçaria as normas de ação, e que se instalou em 1.° de maio de 1889. Sinimbu dirigia os trabalhos e no recinto estavam as figuras mais destacadas do partido. Não faltava sequer o cons. Francisco Otaviano, a quem os amigos auxiliavam, indicando-lhe o lugar onde devia sentar. Ficara cego. Aquele cético sutil estava agora obrigado ao retiro na sua casa de Cosme Velho, onde, ajudado pela mulher, outrora tão bela e querida dos salões, recebia amigos fiéis, falando-lhes de coisas do espírito, arte, filosofia, ou recordações pessoais, a que dava o colorido do seu humor. (3) A doença não lhe roubara o riso, nem o interesse pelos negócios públicos.

Conseguiria Rui, no entanto, impor as suas ideias ao partido? Nesse mesmo dia, eleito para a comissão, que deveria compor o programa, êle compreendeu estar vencido. A indicação fora um hábil meio para prender o correligionário inquieto, e a partida não lhe seria favorável. Deveria, porém, jogá-la até o fim. A retirada poderia magoar o velho Dantas, e êle não desejava isso. Preparou, então, enérgico voto divergindo dos compa-

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nheiros de comissão. Era favorável à federação, à eleição dos presidentes das Províncias, à secularização do ensino, e à eleição dos senadores sem a escola imperial. Pouco faltava para a República.

Na imprensa, Rui prosseguia na campanha a favor da federação. Associara-a ao seu forte culto pela liberdade, o mesmo que o tornara anticlerical, e a intransigência era a marca da sua ação vibrante. A sua tese: "A monarquia e a república são meios: a liberdade é o fim". E acrescentava: "Se a monarquia não quiser as reformas radicais, o partido liberal rcsolver-se-á em partido republicano: eis a solução liberal". Por fim, repetia a fórmula ado-tada em 1869, por ocasião da batalha da eleição dircta: — "reforma ou revolução!!". Vinte anos atrás fora uma simples frase. Hoje, constituía ameaça perigosa, pois os liberais não se sentiam com forças para desencadearem e dominarem a tempestade.

Realmente, a alternativa era forte demais. E Dantas, como um paciente pastor cercando a ovelha desgarrada, dirigiu-se a Rui, censurando-lhe gentilmente a aspereza das expressões. Trabalho inútil, pois ninguém conteria a ovelha dentro do rebanho. Rui retrucou em carta polida, mas firme:

"Não sou nem posso ser órgão do partido liberal. Da república disto apenas uma linha. Já disse a V. Ex. que só a sua amizade me tem detido. Mas não posso prescindir, enquanto estiver na imprensa, da faculdade mais completa de referir-me a esse partido e aos seus chefes, exprimindo toda a minha opinião, que é a que eu acho em toda gente em roda de mim, faltando apenas quem tenha a isenção de dizê-lo. Acredito mesmo que desse modo serei mais útil ao partido liberal do que o seu órgão oficial, com o qual, aliás, está em divergência uma soma imensa de correligionários nossos". E concluía: "O programa do Diário é dizer o que pensa, sem rebuços nem tática. Para mim êle não valerá mais nada, no dia em que poupar a coroa ou qualquer partido, antes que êle e ela se reabilitem na opinião pública". (4) — Dantas não deveria mais iludir-se: aquele amigo, — "o filho" — que vira crescer na intimidade do seu lar, não tardaria em afas-tar-.se dele. Eles não pertenciam à mesma época.

Os homens voltam aos seus primeiros amores. Vencido dentro do seu partido, Rui caminhava insensivelmente para a República. Na academia estivera bem próximo de ingressar nas suas fileiras. Agora, depois de tantos anos, com o coração transbordando de decepções e desenganos, sentia vago desejo de refugiar-se naqueles primeiros ideais da mocidade. Vacilava, porém. Medo?

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174 A VIDA DE RUI BARBOSA

Remorso? Não. Faltava-Ihe apenas coragem para separar-se do velho Dantas. Enquanto fosse possível, adiaria esse desfecho melancólico.

Somente no fim do mês efetuou-se a votação do programa a sor adotado pelos liberais. Não houve surpresas, mas dezoito votos apoiaram as ideias radicais de Rui. (5) E, excetuando o de Dantas, que o acompanhara, declarando submeter-se à decisão da maioria, os outros eram quase todos de liberais ainda jovens, e inclinados à República.

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Aquele florido mês de maio de 1889 marcou a agonia do ministério João Alfredo. As câmaras estavam abertas, e muitos deputados conservadores, de volta das Províncias, compreendiam que o chefe do governo, realizando num impulso a abolição, servira à Princesa, mas desgostara a opinião conservadora do país.

Sentiam-se por isso menos seguros, e lançavam a culpa sobre o primeiro ministro. Em algumas Províncias o trabalho desor-ganizara-se. Os engenhos de açúcar moíam dificilmente, e os campos estavam quase desertos. E por toda a parte, enquanto os antigos escravos emigravam, procurando as cidades, a crise alas-trava-se assustadora.

Nos corredores do parlamento, com certa emoção, deputados lembravam a resistência do barão de Cotegipe aos desejos abolicionistas da Princesa Regente. Recordava-sc a cena em que D. Tzabel, feita a emancipação, perguntara ao estadista vencido: — "Então, senhor barão, ganhei ou não a partida"? — "perfeitamente, Princesa, retrucada Cotegipe com o seu discreto sorriso de cavalheiro. Mas Vossa Alteza perdeu o t rono . . . " Exagero, talvez. O certo, porém, era estar a nação inquieta e insatisfeita.

Ninguém, entretanto, diante daquela agonia do ministério, estava mais triste do que a Princesa Izabel. Doía-lhe separar-se daquele ministro que tanto a compreendera, acolhendo com simpatia e tolerância a sua vaidade feminina de governar. Como se mostrara diferente dos outros, que ainda a tratavam como a criança, que haviam visto brincar nos jardins de S. Cristóvão. Durante a Regência a correspondência entre ela e o seu ministro fora frequente e sincera. Às vezes simples bilhetes, lembrando negócios do Estado, ou os seus interesses religiosos. De certa feita pedira a João Alfredo para inaugurar nas escolas o crucifixo e o retrato do "Papai". (6) Também o seu querido Gaston, sempre julgado com tanta severidade, correspondia-se com o primeiro ministro, e o estimava. Mas, sobretudo, com que habilidade êle

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lhe entregara o decreto da libertação dos escravos, fazendo-a merecer a Rosa de Ouro, enviada por Leão XIII. Tudo isso ela devia a João Alfredo, mas não o podia amparar.

Quem, entre os conservadores, deveria arrecadar a herança perigosa? Três dos seus líderes foram consultados por D. Pedro II. Um deles, o visconde do Cruzeiro, opinara por um ministério de conciliação, idêntico ao do visconde do Paraná, em 1853, e no qual, ao lado dos seus correligionários, figurariam alguns liberais. Lembrara-se mesmo de Rui e Joaquim Nabuco. Seria uma espécie de união sagrada em torno da monarquia ameaçada pelos ventos republicanos. Tudo, porém, não passou de planos, pois os três líderes convidados pelo Imperador recusaram-se a assumir as responsabilidades do governo.

Chegara a vez dos liberais. De Azeredo, que se encontrava em Petrópolis quando o senador Corrêa recusara organizar um ministério conservador, Rui recebera dias antes este telegrama: "Corrêa apresentou razões ao Imperador que o obrigavam a voltar sem solução. Pela manhã o Imperador estava na estação, onde discutiram com calor, podendo eu ouvir algumas palavras como federação Saraiva". (7) Boas notícias. Tocaria a Saraiva, ainda uma vez, formar o gabinete, para realizar a federação como havia feito a Reforma?

Realmente, apesar de convalescente e com repetidos acessos de tosse, Saraiva foi convocado pelo Imperador. A entrevista com D. Pedro II, que também estava enfermo e permaneceu estirado numa longa cadeira, as pernas fracas envoltas em cobertores de lã, correu sem incidentes. Mas, a acolhida da Princesa ao líder liberal foi quase hostil. (8) Ela não parecia satisfeita com a substituição de João Alfredo por aquele frio e seco cons. Saraiva, e isso bastou para que êle declinasse do convite, sugerindo o nome de um correligionário, o visconde de Ouro Preto.

Nessa ocasião, Ouro Preto fora um fruto maduro: o Imperador sacudira a árvore liberal, e êle cairá para chefiar o governo. Há homens a quem o êxito dá a impressão de terem nascido para governar. Só o revés pode modificá-los. Ouro Preto, de certo modo, era assim. Tinha pouco mais de cinquenta anos, mas a mesma energia da mocidade, quando surgira na Câmara impetuosamente, cheio de garbo e de entusiasmo. Estreava com felicidade. E "não houve quem duvidasse de que entrava em cena um homem de ação, vontade e capacidade", afirmou um jornalista, que assistira ao seu batismo no parlamento. (9) Depois, durante a guerra do Paraguai, desempenhara o cargo de ministro

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176 A VIDA DE RUI BARBOSA

da Marinha. Mais tarde fora ministro das Finanças. E, em todos esses postos, revclara-se um desses espíritos enérgicos e sempre dispostos a vencer os obstáculos. As suas ordens eram autoritárias e definitivas.

Não era fácil organizar-se um ministério. O primeiro ministro precisava atender a muitas coisas sutis, das quais dependia a sua estabilidade. Devia consultar os outros chefes do partido, pesar as correntes formadas entre os parlamentares, conhecer a posição de cada qual, e conformar-se um pouco com as simpatias do Paço. Tarefa delicada. Mas, de qualquer modo, Rui, afastado do parlamento, veria formar-se mais um gabinete liberal sem a sua participação, pois a praxe era os ministros serem escolhidos entre os deputados e senadores. Assistiria à ascensão de outros companheiros, e, como um jogador posto à margem da equipe principal, teria de esperar a sua oportunidade.

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Com pesar, Dantas compreendia o gradativo afastamento de Rui da monarquia. Muitas vezes êle o aconselhara a continuar fiel ao velho credo, c, talvez para o interessar na sorte do regime, cuja decadência temia, ao ser consultado por Ouro Preto sobre a composição do ministério, não vacilou em indicá-lo como o seu candidato para ocupar uma das pastas. No mesmo dia Dantas escreveu a Rui, perguntando se aceitava. Sim ou não? Como teria sido fácil responder alguns anos atrás! Agora, porém, era diferente. Desfraldara a bandeira da federação e tornara-se o seu líder. Poderia participar de um gabinete que não a incluísse no seu programa? Temia ser considerado um traidor, renunciando as suas convicções pelo interesse de ser ministro.

Numa longa carta dirigida ao cons. Dantas, êle definiu a sua posição. Era um documento altivo, e, contrariando os seus hábitos nas relações com o velho Dantas, assinara-se — "Rui Barbosa". Deixara, porventura, de ser simplesmente "Rui"? Êle próprio notou o tom cerimonioso. E, retificando, riscou o "Barbosa", (10) Sinal de que desejava continuar o mesmo. Três motivos justificaram a recusa ao convite: não renegar à federação; ser um ministro extraparlamentar, o que poderia causar embaraços ao governo; não se sentir com forças para desempenhar o cargo como o compreendia. (11) De fato, apenas a primeira razão era verdadeira.

De posse da carta, Dantas, ainda inconformado com a negativa, respondeu: "Fico com as ponderações contidas na tua carta,

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e mais tarde te procurarei no escritório. Até aí peço-te que não deixes transpirar o sim ou o não, em qualquer sentido. Sabes que quando trato de ti ou te dou um conselho, faço-o como de Pai para filho." (12) Foi vão o esforço de Dantas. O "filho" permanecia inabalável, e estava surdo a todos os argumentos.

Entretanto, muitos julgavam aquilo impossível. Como recusava alguém ser ministro? O próprio visconde de Ouro Preto insistiu para que acedesse em participar do gabinete. Equivalia a colocá-lo diante duma encruzilhada. Que caminho deveria tomar? Rui, porém, não se deixou tentar, e reiterou a recusa: "Não posso ser membro de um ministério que não tome por primeira reforma a federação". Assim êle decidia do seu próprio destino. Quase sempre, na sua vida, as coisas aconteciam sem que soubesse o porquê. Mas, agora, chegara a vez de dirigi-la com as próprias mãos, e tinha escolhido o rumo mais áspero. Também o mais digno. Dantas, aliás, compreendera os motivos da recusa. E, ao sabê-la definitiva, dissera a Rui: - "Outra coisa não era de esperar do seu caráter". (13)

Justamente na ocasião em que embarcava para Petrópolis, a fim de levar ao Imperador a lista dos ministros, Ouro Preto recebeu a reiteração da excusa de Rui. E não conteve uma exclamação: "Que loucura de homem!.. . Mete os pés no futuro". Nesse julgamento êle não estava só. Outros também pensavam que Rui "praticava a loucura de fechar o caminho que levava à Presidência do Conselho". Apenas Maria Augusta, meiga e conformada, achava que êle tinha razão.

Os amigos de Ouro Preto poderiam perdoar aquela atitude, mas molestara-os a publicação do convite, coisa que consideravam contrária à ética política. E a "Tribuna Liberal", depois de censurar a divulgação de um documento particular, citava uma frase de Macaulay: "quem desejar que a sua opinião sempre triunfe deve viver isolado, assim como quem pretender andar na linha reta deve caminhar em campos completamente desertos". (14) Aqueles "campos completamente desertos" valiam por uma exclusão. Depois disso, Rui e Ouro Preto ficaram bastante separados. E era curioso: as circunstâncias faziam que Rui se incompatibilizasse com o primeiro chefe de gabinete que o convidava para ser ministro.

O ministério foi, afinal, organizado. O barão de Loreto, cuja mulher era íntima amiga da Princesa, ocupou a pasta do Império. O barão de Maracaju, muito chegado às rodas do Paço, estava na Guerra. José Francisco Diana, que se celebrizara na academia

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recitando versos de Camões, (15) dirigia a política externa. Ouro Preto, com a cabeça cheia de planos financeiros, guardara para si o ministério da Fazenda. Generalizara-se a convicção de ter a Princesa Izabel influído na escolha dos ministros e isso, ferindo suscetibilidades, criava antipatias para o governo.

Logo que se tornou conhecida a composição, Rui assim resumiu as suas impressões: "Os novos ministros da Guerra e do Império não representam nada neste país, senão a Corte Imperial". (16) Portanto, o primeiro-ministro já não podia ter qualquer dúvida: o inimigo era valente, e êle o teria de enfrentar. Aliás, para isso não lhe faltava ânimo.

Foi agitada a sessão em que o ministério se apresentou ao parlamento. O deputado padre João Manuel recebeu-o com um "Viva! à república", e isso causou sensação, pois pela primeira vez tal acontecia. Houve aplausos, mas Ouro Preto replicou inconti-nenti — "Viva a república não! Não e não; pois é sob a monarquia que temos obtido a liberdade que outros países nos invejam". Aclamações ainda maiores apoiaram as palavras do ministro. Mas, o sintoma era bem grave.

A Câmara, conservadora e hostil àquele governo liberal, ouviu com desagrado o programa de Ouro Preto. E, no curso dos acalorados debates cjue se seguiram, Nabuco explicou os motivos pelos quais divergiu de Rui: "A bandeira federal, disse Nabuco, passou das minhas mãos para as do senhor Rui Barbosa. Pela atitude que julguei dever tomar depois de 13 de maio, perdi a confiança de elementos de opinião que sempre me escutaram. Infelizmente, o sr. Rui Barbosa, que está representando o papel de Evaristo, (o jornalista que provocara a abdicação de D. Pedro I) é no fundo republicano, e eu sou monarquista". (17) Confissão de um homem sentindo-se abandonado. Realmente as águas começavam a mudar de direção, mas Nabuco não acompanharia a corrente.

E, excluída a federação do programa do ministério, Rui antevia a República: "Os acontecimento, escreveu no Diário de Notícias, precipitam-se para a república, com mais pressa do que desempenhavam para a abolição. A federação era o preservativo. Retardando-a, o gabinete atual está destinado a ser provavelmente o eliminador do terceiro reinado, o derradeiro ministério da monarquia". Adivinhava? Certamente, bem poucos acreditavam nessas profecias.

o o o

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Com o ministério, e um tanto inesperadamente, surgira no cenário político uma discutida figura: o general Floriano Peixoto. Nomeado ajudante general do exército por Ouro Preto, atingia o mais alto posto da tropa cercado pela estima dos companheiros, depois de bela carreira militar, tendo cumprido o seu dever no Paraguai. Promovido em 1883 por um irmão do visconde, que nessa ocasião ocupava a pasta da Guerra, era natural que Ouro Preto confiasse no seu reconhecimento.

A aparência de Floriano era a de um indiferente. Muitos, vendo-o deixar apagar-se o cigarro constantemente, o consideravam até um preguiçoso. Um cético, diziam. E pacientemente, êle subira degrau por degrau os postos da sua carreira. Realmente, nada o exaltava. Entretanto, não era nada disso. Tinha grandes ambições e, com justiça, somente poderia ser comparado a um vulcão coberto de neve. Sob a aparência glacial crepitava um mundo de lavas, mas ninguém divisaria a fumaça capaz de denunciar aquela fogueira interior.

Ouro Preto depositava nele confiança absoluta. Para salvar a monarquia enfrentando as agitações militares e haveriam de dominar juntos os soldados inquietos, consolidando as instituições do país. Este era o grande sonho de Ouro Preto. Mas, quem poderia saber que, desde 1871, Floriano figurava nas listas secretas dos republicanos? (18).

Alguns dias após a posse do novo governo, os amigos de Rui, ainda sob a impressão daquela nobre e altiva recusa, deliberaram expressar-lhe a sua simpatia, e adquiriram um broche de brilhantes, para o oferecerem a Maria Augusta. Nele havia apenas uma inscrição - "7 de junho" - justamente o dia em que, diante da encruzilhada, êle escolhera o seu destino.

Os salões da praia do Flamengo abriram-se festivamente. Para cada qual Maria Augusta teve uma palavra amável, ou cativou com um pequeno obséquio. Nos intervalos das valsas, para distrair as pessoas mais idosas, e que não dançavam, executou-se um programa de números variados, que ela organizara. O senhor Cernichiaro, um artista então em moda no Rio de Janeiro, agradou imensamente. A senhora Jacobina, com muita graça, recitou "La chanson de Mr. Marlborough". E, por último, Belinha Jacobina encantara os ouvintes tocando árias em violino, e declamando "Le naufrage", de Copée. (19) Magníficas essas exibições de arte. Nessas ocasiões, Rui ficava embevecido pela mulher. Ela parecia tão leve na sua elegância sóbria, que ninguém suspeitava da próxima vinda de um herdeiro.

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Ao agradecer aquela homenagem a Maria Augusta êle o fêz com muita ternura, chamando-a de companheira que "sorrindo, o auxiliava nas horas de trabalho, e com êle repartia as suas dores nas horas de amargura". (20) Frase justa. Nem sempre a existência lhes fora fácil. Às vezes chegara mesmo a ser bem amarga. E ela, dedicada e confiante, nunca tivera um gesto de impaciência ou de mau humor. Pelo contrário, nesses momentos, conformada aos temporais da vida, mais o encorajava, envolvendo-o em suave bondade, que lhe aplacava os ímpetos e os desânimos. Ah! se êle vencesse algum dia! Então, poucos se lembrariam de la . . . Quase sempre, a humanidade é injusta com as mulheres.

NOTAS AO CAPITULO XIV

(1) Cf. carta do cons. Dantas a Rui, em 13 de março de 1889, in Arq. C. R. B.

(2) Cf. carta de César Marques a António Jacobina, em 12 de abril de 1889, in Arq. C. R. B. Realmente, o êxito do "Diário de Notícias" sob a direção de Rui foi extraordinário. "O Novidades" assim se externava: "Tendo passado por várias fases estava aquela folha ("Diário de Noticias") prestes a exalar o último suspiro. . . Um belo dia aparece no cabeçalho estas palavras: redator-chefe Rui Barbosa, e a pobre morta ressuscitou".

(3) Cf. Machado de Assis, "A Semana", ed. Garnier, p . 256. (4) Cf. carta de Rui ao cons. Dantas, em 2 de maio de 1889, in Arq.

C. R. B. (5) Apoiaram o voto de Rui os seguintes liberais: Gavião Peixoto,

Dantas, Souza Queiroz, Ferreira Braga, José Pompeu, Monte, Barros Pimentel, Lima Freire, Leopoldo Bulhões, Mata Machado, Cesário Alvim, Custódio Martins, Muniz Freire, Manuel Vitorino, Elpídio de Mesquita, César Zama e Spínola.

(6) Cf. correspondência da Princesa Izabel e João Alfredo, in Arq. do Instituto Geog. e Hist. Brasileiro.

(7) Cf. telegrama de Azeredo a Rui, em 1.° de junho de 1889, in Arq. C. R. B.

(8) Cf. artigo de "R. S.", no "O Imparcial" de 16 de março de 1913. (9) Cf. Salvador de Mendonça, in "O Imparcial" de 12 de agosto

de 1913. (10) Está no Arq. C. R. B. a cópia em autógrafo de Rui. (11) Cf. carta de Rui ao cons. Dantas publicada no "Diário de No

tícias" de 9 de junho de 1889. (12) Cf. carta do cons. Dantas a Rui em 7 de junho de 1889, in

Arq. C. R. B. (13) Os episódios ligados ao convite de Ouro Preto narrou-os Rui na

Introdução à "Queda do Império", p. LXVIII e segts. V. também "O Tempo", In Memoriam; e João Mangabeira, obr. cit. p . 36 e segts. Rui, na "Introdução", não refere o nome de Azeredo, que foi o portador da carta entregue a Ouro Preto no momento em que embarcava para Petrópolis, limitando-se a dizer: "por um amigo meu daqueles tempos, de que

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já não resta n a d a . . . " Ver também os artigos de Rui, no "Diário de Notícias", em 9 e 10 de junho de 1889.

(14) In a "Tribuna Liberal", de 11 de junho de 1889. (15) Cf. Almeida Nogueira, "Tradições e Reminiscências", S. Paulo,

1908. (16) In "Diário de Notícias" de 8 de junho de 1889. (17) Cf. discurso de Joaquim Nabuco, na Câmara dos Deputados, em

11 de junho de 1889. (18) Cf. Salvador Mendonça, in "O Imparcial" de 7 de junho de 1913. (19) Cf. "Diário de Notícias" de 14 de junho de 1889. (20) Idem, idem.

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XV — O IMPERADOR

0 espírito do Imperador já não era o mesmo que dantes, nem o alcance de sua visão, nem o vigor moral, nem o domínio sobre a corte e os partidos.

Rui.

p M julho do ano seguinte (1890), grandes festas deveriam *-"' assinalar em todo o país o jubileu do reinado de D. Pedro II. Meio século detendo o cetro real! E como passara depressa! Somente pelas cruzes colocadas à margem do caminho seria possível avaliar a extensão percorrida. Daquela geração de estadistas, que o haviam ajudado, ainda criança, a tomar a Coroa levada por um golpe parlamentar, estavam todos desaparecidos. Outros tinham-nos substituído. Homens que vira ingressar na vida política cheios de entusiasmo e de energia, c que também já estavam alquebrados c velhos. Poucos os que haviam conhecido o país sob a direção de outro guia.

Nesses cinquenta anos o próprio Rei mudara muito. O tempo, que fizera do menino de 1840 o ancião precocemente envelhecido, de longas e alvas barbas patriarcais caidas sobre a sobrecasaca preta, também lhe modificara a alma. Apenas a tristeza de órfão se conservava a mesma. Aos poucos, o jovem e voluntarioso monarca, que repreendia as irmãs e dava ordens incisivas, substituía o autoritarismo por uma polida noção de dever. O seu insípido dever de reinar.

Sem gosto pelos esportes, avesso às estroinices em que o Pai se havia celebrizado, acabara suportando a coroa como fardo pesado e monótono. E para suavizar o encargo, nem sempre podendo viajar, procurava refúgio no modesto palácio de verão, em Petrópolis, entre os seus livros e as suas árvores.

Em S. Cristóvão, semanalmente, reunia um grupo de literatos, e isto lhe proporcionava prazer bem maior do que as audiências com os ministros. Com admirável tato, permitia completa liberdade de ideias aos seus amigos intelectuais e não se incomo-

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dava sequer com as convicções que pudessem ter. Certa vez perguntara a um jornalista de ideias republicanas que conversava com o cons. Francisco Otaviano: "Por que não aparece? Não o tenho visto há muito tempo. Já o mandei convidar para as nossas palestras literárias. Apareça". Houve certo mal estar, e D. Pedro II continuou: — "Sim, tenho-o lido. O que o senhor escreve não o incompatibiliza com as nossas palestras. Senhor Otaviano, leve-o consigo para a semana". (1)

De outra feita, devendo prover-se uma cátedra, que fora submetida a concurso, dissera um ministro a Sua Majestade, refe-rindo-se ao candidato classificado em primeiro lugar: — "Não, Senhor, esse não pode ser nomeado por ser republicano e ateu". — "Que temos nós com isso? retruca o Imperador. Não vejo por que um republicano ou um ateu não possa ser professor de direito ou preencher mesmo qualquer outro cargo". (2) No fim da vida, embebido de leituras filosóficas, e um tanto vaidoso da própria tolerância, o Imperador compreendia ter cada qual o direito de pensar livremente.

Mas, apesar disso, quantas injustiças não havia sofrido em silêncio! Todos os cidadãos do Império gozavam do direito de censurá-lo, mas êle não tinha o direito de defender-se. As indicações senatoriais principalmente, haviam sido fonte perene de dissabores. Forçado a escolher numa lista de três nomes, isto lhe custara inimizades. Cada vez que nomeava um membro da Câmara Alta, os dois preteridos em regra, tornavam-se seus desafe-tos. O cons. Salustiano Souto, por exemplo, falecido dois anos antes, levara para o túmulo a mágoa de não ter merecido a preferência imperial nas listas tríplices em que havia figurado.

Agora, ainda outra vez, a nomeação de um senador pela Bahia, fora motivo para sérios aborrecimentos. Saraiva viajara para a Europa, e deslumbrava-o a Praça de S. Marcos, rodeada de arcadas e lojas donde os pombos desciam, pousando nos transeuntes. "Estou na rainha do Adriático, escreveu ao cons. João Moura. Com efeito Veneza é uma singularidade. Não há coisa igual no mundo. Viver no mar e em terra é coisa que se não compreende bem senão aqui". (3) O espetáculo não o fizera, porém, esquecer a política. Tendo recomendado a Ouro Preto, antes de partir, a escolha de João de Moura para o Senado, irrita-ra-se ao saber que o preferido fora o cons. Carneiro da Rocha, amigo de Dantas. O próprio visconde mandara-lhe a notícia desagradável: "Para satisfazer a recomendação que fêz-me V. Ex. ao embarcar-se, no cais do Largo do Paço empreguei todos os

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esforços ao meu alcance: só me restava um alvitre — declarar o ministério em crise". (4) Saraiva, no entanto não acreditou no que lhe dizia Ouro Preto. Veterano na intriga política, parecia-lhe absurdo que o Imperador não acedesse às ponderações do primeiro ministro em tal assunto, em algumas frases escritas ao candidato preterido, exprimiu o surdo rancor nascido do incidente.

Saraiva ao cons. João Moura: "No meu último e penúltimo ministério nunca o Imperador escolheu Senador sem ouvir, antes do Conselho de Estado, a minha opinião, mesmo na lista do Pará em que vieram três adversários do gabinete, e em cuja escolha não tinha o ministério o menor interesse... Não conserve o menor rancor contra o Imperador e nem mesmo contra a nossa infeliz Princesa, tão explorada já pelos criados do Paço. Os empenhos da Senhora Condessa de Barrai, se foram reais, de nada serviriam se a Coroa e o partido liberal fossem servidos por ministros dignos de representarem no poder a nobreza do partido liberal". (5) Ajustaria as contas com Ouro Preto, a quem responsabilizava pelo sucedido. E, em outra carta a João Moura, Saraiva explicou categoricamente as suas convicções:

"É certo que a causa primária foi o Celso (Ouro Preto) porque nem a Princesa, por pedido da Barrai, nem Dantas, e nem mesmo o Carlos Afonso (irmão de Ouro Preto) e o homem dos Ilhéus seriam capazes de obter a escolha do Carneiro da Rocha se não encontrassem no Celso o mais aperfeiçoado instrumento da perfídia... O Imperador fêz e fará o que o Celso quiser: 1.°) Porque crê que o Celso é capaz de prestar grandes serviços à Filha. 2.°) Porque o partido conservador está atualmente incapaz de assumir o poder. 3.°) Porque seria ferir profundamente o partido liberal apeá-lo do poder pela infração do seu grande princípio — a responsabilidade ministerial nos atos do poder moderador". (6) E lastimando sentir-se já sem forças para enfrentar, como desejava, o seu companheiro de partido, Saraiva preconizava a adoção das ideias federalistas de Rui: "Se eu tivesse menos dez anos de idade eu me tornaria o chefe liberal dissidente... a reforma — Rui — simplesmente, dará com todos esses cálculos inconfessáveis por terra e libertará a nossa Princesa da facção Dantas" que "no Rio, tem convencido a imprensa neutra de que eu não leio, e o meu amigo não tem talento". (7)

A correspondência fixava toda a decepção de Saraiva. Embora ausente, êle percebia a sombra do velho Dantas, ansioso para retomar a posição perdida dentro do partido.

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Havia nove anos que as relações entre ambos tinham começado a arrefecer. A princípio simples desinteligências políticas. Mas, agora, já nada restava da velha amizade dos tempos do noviciado partidário. (8) E, ferido na sua vaidade — jamais poderia perdoar aquelas referências maldosas à sua cultura — imaginara um golpe de mestre para se vingar: aceitaria o programa de Rui, atirando talvez Dantas contra o mais íntimo dos seus colaboradores. Dividiria para reinar. Plano astucioso e que pensava executar com felicidade.

Assim, Saraiva, que não votara no congresso do partido, tor-nava-se aliado de Rui. (9)

o • o

Contudo, por enquanto, Rui estava só. Passara depressa o entusiasmo despertado pela recusa da pasta de ministro, e os amigos começavam a escassear. Apenas dois ou três, entre os quais se contava Azeredo, ainda lho frequentavam a casa com assiduidade. E do próprio cons. Dantas, que apoiara o ministério, já imaginava separar-se como Robert Peei, abandonando o pai para defender a emancipação católica.

Os correligionários (êle continuava a declarar-se liberal) (10) também se mostraram infensos à atitude que assumira. Na Bahia, Dantas não conseguira evitar que o excluíssem da lista dos candidatos à Câmara dos Deputados. Dissera-se ser uma imposição de Ouro Preto. E o "Diário da Bahia" interpelou Rui com acri-mônia: "Acha S. Ex. que um partido que apoia um gabinete pode apresentar candidato um cidadão que se acha em radical e desabrida oposição ao mesmo gabinete?". (11) Tornava-se evidente não haver mais lugar para êle entre os liberais: o partido rene-gava-o.

O repúdio dos velhos companheiros feriu-o profundamente. Afinal, embora houvesse levantado a bandeira da federação, e atacasse Ouro Preto, não via motivo para serem esquecidos tão depressa os árduos e longos serviços prestados ao partido. O golpe era doloroso, e êle não o esqueceria. E não foi senão ao lembrar-se dessa amarga vicissitude que escreveu estas palavras encontradas entre os rascunhos dum discurso, que não chegou a proferir: "Eu sei, eu experimentei o que é aferrarmo-nos a uma afeição criada na carreira pública, ligarmo-nos a ela com os estremecimentos de uma pobre folha presa aos extremos de um ramo batido pelos ventos, passarmos assim dez, vinte anos de carinho, de devoção, de extremos, e um dia sentirmos contrair-se, e abandonar-nos o braço da árvore ressequida, onde deixamos o

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melhor de nosso viço, a seiva e a fragrância dos anos verdes. Esses sentimentos são exóticos na política humana, uma estepe morta e amortalhada no egoísmo. Nas cabeças calcinadas pelas questões de Estado, não há lugar para estas (ilegível) do coração, origem obscura dos grandes heroísmos do dever. Que tem que ver com a amizade a política que se chama orgulho, a política que se chama vaidade? Não: a amizade não tem que fazer aqui; não falemos nela". (12)

Talvez para amenizar a proscrição, alguns amigos lembra-ram-se de fazê-lo candidato pela Corte. Não aceitou, nem recusou. Mas, derrotado no fim de agosto, Rui redobrou o vigor da campanha; e, como os liberais em 1869, hasteou a flâmula subversiva: "a federação, ou a revolução".

Sentindo-se abandonado na arena, Rui percebera jogar cartada decisiva. Se perdesse seria olhado com desprezo, e não passaria dum aventureiro infeliz, vítima da sua insensatez. Quem se lembraria ter desistido de ser ministro para permanecer fiel aos seus sentimentos federalistas? E, como uma fera acuada no covil, atacando para sobreviver, muitas vezes foram cruéis os golpes desfechados pelo "Diário de Notícias". A princípio tentara manter-se numa posição de equilíbrio, equidistante dos partidos, mas isso demorou pouco. A recusa de Ouro Preto em adotar as ideias federalistas havia ferido o amor próprio de Rui e, ao lado das divergências doutrinárias, surgira um profundo dissídio pessoal. Sistematicamente — tendo a espinha atravessada na garganta — êle criticava a ação do primeiro-ministro. Opunha-se aos planos financeiros e censurava-lhe as medidas de repressão à propaganda republicana. E, em nome das suas convicções, agre-dia-o por tudo e por nada. Vaticinava a queda da monarquia e fizera-se o profeta de grandes desgraças.

Ouro Preto ficou de mau humor. Animado pela confiança na sua própria força, trepidante de entusiasmo para reanimar o organismo enfraquecido das instituições, julgava intolerável aquela oposição metódica, partida de quem convidara para o ministério. Traçara um vasto plano de auxílios à lavoura e antevira a nação próspera e calma, movendo-se sob as suas ordens enérgicas. Um empréstimo de cem mil contos socorreria a nobreza rural arruinada pela abolição da escravatura. Vultosas obras públicas completariam o panorama da nação em marcha. E, como num conto de fadas, voltaria a riqueza, a fé na monarquia, a paz. Um sonho. Não, Ouro Preto jamais poderia compreender as razões daquele antagonista inesperado, que trocara o poder pela

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oposição, e perturbava-lhe a obra grandiosa. Para êle, Rui afigu-liivii-sc apenas um demagogo de mau caráter.

Depois de algum tempo, não podendo mais conter-se diante daqueles artigos causticantes, que impopularizavam o regime, o ministro proibiu a entrada do "Diário de Notícias" na Escola Mi-lilar. Gesto precipitado e que serviu para azedar os ânimos. Foi mesmo contraproducente. Excomungados pelo governo, os exemplares do jornal, que "abria á república um caminho cada vez mais largo", passaram a ser disputados pelo público com avidez. A circulação cresceu. E, já consciente do valor da arma de que dispunha, empenhado numa luta de vida e morte, Rui aumentou grandemente o vigor dos ataques.

Gomo acabaria a batalha? O visconde talvez suportasse o im-

SUoAvtil adversário para salvar a monarquia. Kra a sua ambição. ul, porém, do coração tranquilo, dizendo se "sinceramente mo-

lllirqillNtn", dmtrulrla o trono pura esmagar Ouro Preto em nome (In Fodpriieun. Contudo, isso parecia impossível: a fortaleza afigurava se Inexpugnável.

O tempo não lindou de mostrar os pontos fracos do ministério. Percebia se que o plano de amparo aos fazendeiros não tinha a exatidão anunciada. Beneficiaria os credores — os bancos e comissários cie café e açúcar — mas, pouco melhorara a sorte dos proprietários. Contudo, muito mais grave era reproduzirem-se os incidentes militares. Depois duma pausa, haviam voltado ao eailaz.

O general Deodoro, que João Alfredo afastara da Corte con-liando-lhe importante missão em Mato Grosso, exibia novamente <> seu porte marcial na Rua do Ouvidor. Confabulava com os colegas à porta da Alfaiataria Rabelo, seu ponto predileto. E em lòrno dele, aos poucos, agremiavam-se jovens oficiais e a mocidade da Escola Militar, quase toda ela imbuída de ideias republicanas e fascinada por um professor sectário de Augusto Comte, o tenente coronel Benjamim Constant. Entretanto, pelo seu próprio temperamento, Ouro Preto seria incapaz de acreditar no pe-rigo e muito menos de contorná-lo.

Por esse tempo a Vida Fluminense publicou curiosa "char-j'e" sobre os acontecimentos. Cautelosos, Rui e Quintino Bocaiuva acendiam o estopim de uma grande bomba — onde se via escrito "Questão Militar" — e Ouro Preto, representado por um morcego, esvoaçava espavorido. Apenas a primeira parte era verdadeira: o ministro poderia irritar-se, mas jamais chegaria a

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temer as consequências dos mal-entendidos com a tropa. Ele confiava.

Que aconteceria, porém, se a bomba explodisse? Talvez destruísse o Império, como desejava Quintino. Quanto a Rui, embora não pensasse ir tão longe, não evitaria a deflagração. O a -!he indiferente.

"Nunca me importei da sombra imperial. Da família reinante nunca me acerquei. Não tive jamais um momento de contacto com a princesa, ou seu consorte. Nem uma só vez compareci, em qualquer tempo, a solenidades, cerimónias ou recepções do paço. Ainda quando contemplado nas grandes comissões parlamentares, que o protocolo da câmara dos deputados incumbia de levar ao Imperador atos daquela casa, não acompanhava os meus colegas". (13) Estas palavras de Rui explicam o seu pouco caso pela sorte da dinastia. Sem remorsos, êle a sacrificaria em holocausto às suas paixões doutrinárias.

Realmente, foi o que sucedeu. Ouro Preto identificara-se de tal modo com a monarquia, que se tornara impossível abatê-lo sem atingir as próprias instituições. E, logicamente, Rui e os republicanos acabaram confluindo para um mesmo objetivo imediato: lançar os militares contra o governo. A aliança seria fatal à Coroa.

e • o

Em 13 de novembro, o ministro da justiça recebeu do general Floriano Peixoto a seguinte informação: "A esta hora deve V. Ex. ter conhecimento de que tramam algo por aí além; não dê importância tanta quanta seria precisa, confie na lealdade dos chefes, que já estão alertas". (14)

Isso não era tranquilizador. Na verdade, avançara consideravelmente a conspiração. Espicaçados pelos constantes incidentes com o governo, os militares haviam deliberado conseguir uma solução a qualquer preço, e Deodoro acedera em ser o chefe do movimento. A princípio relutara: "Eu queria acompanhar o caixão do Imperador, que está velho e a quem respeito muito", (15) dissera aos colegas. Afinal, deixara-se vencer e concordara em conferenciar com os civis simpáticos ao movimento. Rui foi convocado. Por que? Não dizia, reiteradamente, permanecer monarquista? Sim, mas o fato é que ninguém mais do que êle, com os seus artigos empolgantes e lógicos, havia preparado a opinião para a eventualidade iminente. Sob a pressão da sua dialética irretorquível, ouvira-se o estalar do arcabouço das instituições impermeáveis ao federalismo, e, se quisesse, não lhe podiam re-

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c usar um grande quinhão na vitória. Era singular — o monarquista destruirá a monarquia. Rui aceitou. (16) A Coroa não o escutara <• devia correr à sua sorte. Se vencessem, êle seria o ministro da Fazenda.

Durante vinte anos os republicanos haviam pregado sem se-icm ouvidos. Ainda no dia 9, o baile oferecido pelo governo aos oficiais da esquadra chilena fundeada no Rio, fora tão suntuoso naquele desfilar interminável de cavalheiros ostentando pomposas condecorações e de grandes damas exibindo jóias magníficas, que II monarquia parecia um sonho sem fim.

liastara, entretanto, que os militares resolvessem marchar paru (juo u revolução se precipitasse com incrível rapidez. Quatro diftl depoi» de ter recebido de Deodoro a autorização para arti-(AlUr 01 oompunlieiro.s, Renjnmini Constnnt declarou estar tudo pfOtlta AptJliiui mais uma palavra o n nação atAnita assistiria à quadft liltnoionn do regime.

Ouro PrAto, porém, estava confiante. E ainda na tarde de 14 do novembro, puni exprimir ao eons. Dantas, numa imagem viva, H solidez do regime, dissera-lhe cheio de otimismo: — "O Deodoro, meu Dantas, mando prendê-lo e fuzila-se." (17) Estava u beira do abismo, e não o pressentia.

Na madrugada de 15 de novembro, Deodoro à frente, a tropa revoltada apareceu pelas ruas da capital do Império. Tudo tão inesperado! Ainda na véspera D. Pedro II viera de Petrópolis para assistir a um concurso e voltara tranquilamente para o seu icmanso entre as verdes e frescas montanhas. O Império agonizava. Nenhuma resistência foi possível. Ouro Preto portara-se bravamente, mas as suas ordens ficaram sem eco. Floriano Peixoto, em quem tanto confiara, aderira aos revolucionários. E, ao amanhecer, o ministério estava preso. Era o fim.

O Império morrera. Acabara calmamente, como vivera. Nesse dia, estando o senado reunido em sessão preparatória, o visconde Lima Duarte, ante a gravidade dos acontecimentos, propôs um voto de solidariedade ao regime monárquico. E, o presidente, Paulino de Souza, respondeu-lhe imperturbável: "O senado está cm sessão preparatória... Mantendo hoje, como sempre, a estrita legalidade constitucional, e observando o Regimento, como me cumpre, não posso consentir debate que não seja restrito à constituição desta Câmara". (18) Resposta burlesca, talvez. Contudo, exprimia o sentimento de uma época: a legalidade.

Pela cidade apenas uma voz levantou-se para saudar o Rei justo e bom, que durante meio século servira dedicadamente ao

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seu país. "Viva Sua Majestade o Imperadorl" (19) exclamara na Rua do Ouvidor o barão de Tautphoeus, aquele professor de grego, emigrado político da Alemanha de 1848. Mas, ninguém correspondeu.

Na Europa e na América do Norte, surpreendeu a deposição de Pedro II, que tinham visto quando percorria cidades e museus como um simples burguês e de quem se contava que visitara Vítor Hugo e Longfellow. Gladstone, o grande chefe liberal inglês, falando em Manchester pouco depois, a êle se referiu. "Aqui nesta independente associação britânica deixai-me prestar testemunho aos seus méritos: tive a honra de apreciar algumas de suas qualidades pessoais, das quais ousarei dizer duas coisas: não há na Inglaterra, nem em Manchester, no mais suntuoso palácio do mundo, como na mais humilde choupana, não há homem mais ávido do que foi o Imperador do Brasil em adquirir todos os conhecimentos de útil aplicação; e nenhum monarca foi mais dedicado à fidelidade de seu povo". (20)

Do Flamengo, Rui assistiu à partida do Imperador para o exílio. Mansamente, o "Alagoas" singrava as águas da Guanabara. Levava para sempre o Soberano. Mereceria um fim tão melancólico? Nessa ocasião, um amigo, Carlos Aguiar, que estava ao lado de Rui, notou-lhe os olhos cheios de lágrimas. -"Que é isso, seu Rui? Você também, você que mandou o homem embora . . . " (21) Afinal era uma injustiça, e êle sabia quanto elas faziam sofrer.

O Imperador recebeu, porém, o golpe com serenidade. A Ouro Preto, que chegara exilado a Lisboa, disse conformado: -"Em suma estou satisfeito. É a minha carta de alforria. Posso agora ir aonde quero". Libertara-se daquele enfadonho dever de reinar. Tinha, porém, saudades do Brasil.

NOTAS AO CAPÍTULO XV

(1) Salvador Mendonça, "Coisas do meu tempo", in "O Imparcial", de 1913. _ . ,

(2) Gil Vidal (Leão Veloso Filho). Reminiscências , m Correio da Manhã" de 25 de junho de 1914.

(3) Cf. carta de J. A. Saraiva ao cons. João Moura, em 26 de setembro de 1889, in Arq. Geog. Hist. da Bahia.

(4) Cf. carta de Ouro Preto ao cons. Saraiva, em 2 de setembro de 1889, in Arq. Inst. Geog. Hist. da Bahia.

(5) Cf. carta de J. A. Saraiva ao cons. João Moura, em 2 de setembro de 1889, idem.

O I M P E R A D O R 1 9 1

(6) Cf. carta de J. A. Saraiva ao cons. João Moura, em 5 de sete*1"510

de 1889, idem. (7) Idem, idem, idem. (8) Cf. J. P. Souza Dantas, "Reminiscências", in "Jornal do Comé I C ' °

de 23 de julho de 1914. (9) Saraiva não tomou parte na deliberação do Congresso L ibera " e

1889. Entretanto, segundo afirmou em discurso por ocasião da apr^ s e n " tacão do gabinete Ouro Preto, ao ler os trabalhos do congresso liberal, ttfr~s?~ ia inclinado para o voto em separado de Rui, o que declarou ao pr^P 1 ] 0

Imperador ao ser chamado por este, antes de Ouro Preto. Este, oi>v '"° por Tobias Monteiro ("Pesquisas e Depoimentos", p . 127 e segts.) afi<"mPu

que Saraiva não falou ao Imperador sobre a federação, o que lhe foi " ' t 0

pelo próprio D. Pedro II, que, aliás, não era infenso à federação. Qi>an*° a posição de D. Pedro II, eis o que declarou Rui, no discurso prof^1™0

na Liga de Defesa Nacional, em 14 de dezembro de 1920: "Em **|89 êle (D. Pedro II) queria, aceitava, e considerava oportuna a feder*1030-

São históricas as suas declarações neste sentido". Existe, aliás, no - ^ l " C. II. li. unia carta de Saraiva ao dr. Bandeira, que não sabemos <J u e m

seja, c na qual diz o velho estadista: "Koi uma recordação boa a que5 m e

f(V. -- do i\uc lhe disse cm relação ao Celso quando passei para a Eu Í O P a #

E com eleito. Se cie olhasse para o País, c o quisesse agradar, sei11 s e

importar com os medos da República, que absorviam a vida do Rei í 1 3 " 0 ' nos últimos tempos, não teria punido o Exército e teríamos feito a fedeJ^Ç^0

republicana, depois da qual, se a República viesse nos encontraria fu^0*0" nando e vivendo regularmente sem necessidade de ditadura". (26 àé ° e~ zembro (?) de 1889). Rui também foi de opinião que teria sido mell>or a

república vir depois da federação. (V. "Ditadura e República" (Rio, 1^32), p. 222 e "Obras Completas", vol. XIX, t. 1, p . 265). Sobre Saraiva e a

federação há interessantes informes no Livro do Centenário da Câmara " o s

Deputados, vol. II, p. 240. Rui no manifesto à Nação (1892) refere-s íe a o

"egoísmo do sr. Saraiva" imputando-lhe a culpa de não haver ace» t o a

sucessão de João Alfredo, para a federação. Também nos artigos de ^ e 10 de junho de 1889, no Diário de Notícias, Rui fixa a posição de S a ? a i v a

em face da ideia federalista. (10) São reiteradas as declarações de Rui nesse sentido. No exe

pipiar do vol. II da "Década Republicana", que se encontra na biblioteca " a

Casa de Rui Barbosa, colocou êle a seguinte nota, comentando uma P a s " sagem de Carlos Laet: "Simples liberal, não republicano, no "DiáriP ^ e

Notícias". (11) In "Diário da Bahia" de 31 de julho de 1889. No dia 2 ^ d e

julho desse ano, foi publicada a chapa com a exclusão de Rui. Em < c a r t a

de 24 de junho desse ano, (in Arq. C. R. B.), Dantas comunicou a R u i :

"Deve dizer-te que já escrevi ao Couto e mais (inclusive o Vitorino) d i z e n t * ° em carta a todos o que pensava a teu respeito e a de tua cândida 1 1 ™' considerando-a um dever do partido".

(12) O trecho citado faz parle das notas existentes no Arq. C. R*- B-> do punho de Rui, e às quais encimou com a seguinte explicação: "frotas para o discurso sustentando a reorganização do Banco da República e m

novembro de 1892 — Deixou de pronunciar-se em consequência do v o t o

<lo senado que, em sessão de 11 desse mês, rejeitou a prorrogação ^ ° (Nmgresso, adotada na mesma data pela Câmara". A fórmula: "a f e d e r a 3 0

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1 9 2 A VIDA DE RUI BARBOSA

ou a revolução", cnunciou-a Rui no artigo de 31-8-1889, no Diário de Notícias.

(13) In Introdução à "Queda do Império", p. XXXVI. (14) Tobias Monteiro, obr. cit. p . 226. (15) Idem, p. 274. (16) Como e sabido, somente no dia 11 de novembro entrou Rui na

conspiração republicana, a convite de Benjamim Constant (V. "Cartas de Inglaterra", p . 88, 2 . a edição), participando nesse dia da única conferência, que teve com Deodoro antes de 15 de novembro. Anos mais tarde, havendo A Tribuna" publicado um telegrama (8 de abril de 1907), dizendo que

o dr, J. J. Seabra declarara ter Rui assinado, antes da proclamação da República, e juntamente com "altas personagens", uma ata em que se combinara o assassinato de homens públicos, Rui, no mesmo dia, escreveu a Quintino Bocaiuva, recorrendo ao seu testemunho. Este, em carta da mesma data, confirmou a assertiva de Rui contra a "odiosa calúnia". Ê dessa carta (in Arq. C. R. B.) o seguinte trecho: "Meu caro Rui. Da reunião na casa do falecido Marechal Deodoro, antes do dia 15 de Novembro e à qual assistimos com ilustres e saudosos companheiros, não se lavrou nenhuma ata. Posso confirmá-lo. Creio também poder afirmar que o meu amigo não assistiu a qualquer outra reunião antes dessa. Eu sim, tomei parte em muitas outras reuniões mas delas também não se lavrou ata alguma. Quando à maquinação de homem público — maquinação a qual, segundo o telegrama, aderiram altas personagens, posso assegurar que disso não tive conliecimento nem notícia. Devo ainda acrescentar que se a proclamação da República, para a qual talvez concorri e pela qual trabalhei durante a maior e a melhor parte da minha vida, dependesse da aposição da minha assinatura em documento tão abominável e indigno, ainda a esta hora etaríamos no rcginu; monárquico". Sobre a participação de Rui na revolução, ver "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p. 264.

(17) J. P. Souza Dantas, obr. cit., in "Jornal do Comércio" de 23 de julho de 1914.

(18) Sessão do Senado em 16 de novembro de 1889. (19) Salvador Mendonça, in "O Imparcial" de 3 de abril de 1913.

Na Câmara, César Zama teve atitude igual, dando um viva ao Imperador. (20) Cf. "Diário de Notícias" de 9 de janeiro de 1890. (21) Cf. Batista Pereira, in prefácio à 2 . a edição das "Cartas dt;

Inglaterra", p . 95.

X V I — O U R O E P A P E L

Se teve falhas, não esqueçamos que os grandes homens se constituem tanto dos seus defeitos quanto das suas virtude».

Rui . (Swift)

POUCOS se julgaram obrigados a partilhar do destino da monarquia. Dir-se-ia ter desaparecido inteiramente qualquer

noçiío de dignidade. Saraiva, a quem se atribuiu o desejo de ser o Tliiers da república, inquirido por um jornalista, respondeu com simplicidade: "A república e um fato consumado. Devemos adorá-la e servi-la lealmente". (1) Esquecera-se depressa de Pedro II.

Também o dr. Abílio, que não desprezara o título de Barão de Macaúbas, já famoso como educador, enviou a sua solidariedade: "Ao cidadão Rui Barbosa, (tratavam-se assim os revolucionários franceses) saúda o dr. Abílio C. Borges, e, se bem lamente a queda do Imperador, de quem sempre foi amigo, e a quem eleve graças tanto mais valiosas quanto foram espontâneas, pois nunca as pediu, nem a êle nem aos seus ministros, aplaude a grande revolução, na qual coube grande parte ao mais distinto de todos os seus discípulos". (2)

Era triste ver-se o Império tombar assim, entre a indiferença dos seus antigos servidores. Agora, quase todos se mostravam mais preocupados "com os negócios da bolsa do que com a família imperial". (3) Falava-se muito na organização de companhias e em emissões bancárias. E o Largo de S. Francisco, próximo à bolsa, ficava repleto de "coupés" e "vitórias" pertencentes à nobreza ávida de lucros fáceis.

Principalmente para os que não haviam aderido, o espetáculo confrangia. Leão Veloso, por exemplo, preferira retirar-se para São Paulo, onde se fêz lavrador de café. Fim incolor para quem sonhara com triunfos políticos. Antes de partir, êle escreveu a Rui: "Ninguém melhor sabe das minhas circunstâncias do que você. Tive alguns bens de fortuna herdados e hoje estou paupérrimo, porque, dedicado à vida política, não pude conservar o que

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194 A VIDA DE RUI BARBOSA

herdei, c muito menos fazer fortuna. Com 62 anos de idade, deles consumi quarenta no serviço do Estado; e hoje estou reduzido à dura necessidade de encetar outra profissão para viver o meu resto de vida". (4) Nabuco também permaneceu fiel ao regime extinto. Contavam-se, porém, os resignados a velarem o cadáver.

Quanto a Rui, a vitória custara-lhe um grande revés sentimental, pois separara-o do seu querido Rodolfo. Como foi isto possível? Divergências políticas? Nada disto: simplesmente ciúme, o que equivale a dizer amizade. Foi Rodolfo quem teve a iniciativa do quase rompimento. Nunca houvera segredos entre ambos, mesmo os mais íntimos e, ferira-lhe mortalmente a sensibilidade não lhe ter Rui participado a gestação do movimento revolucionário. Realmente, Rui nada lhe dissera sobre a sua resolução de jogar a cartada republicana, e, assim, por um motivo aparentemente frívolo, interrompeu-se aquela mútua confiança, que os unia desde a adolescência. As cartas de Rodolfo perderam então o tom fraternal. Agora, com sobriedade, êle as dirigia ao seu "caro conselheiro Rui', e subscrevia-se respeitosamente: "do vosso muito grato Rodolfo". (5) Separação dolorosa e quase inexplicável, mas infelizmente, verdadeira. Nunca mais eles voltariam a ser o que tinham sido um para o outro desde a mocidade: o confidente.

• o o

Deslumbrado pela perspectiva da ação, convicto de ter chegado a sua oportunidade, Rui não achou muito tempo para cuidar da amizade partida. Agora, todas as suas energias se concentravam num desejo impaciente de reformas. Nunca fora reputado um técnico em finanças, mas o brilho do seu combate às concepções financeiras de Ouro Preto o haviam indicado para o cargo. Nada o embaraçaria: nem parlamento, nem primeiro-ministro, nem Rei.

No governo que se formara, composto mais ou menos de idealistas bisonhos, alguns bastante diferentes entre si, e quase todos surpresos com a missão que lhe tocara, Rui seria um senhor absoluto na sua pasta. Campos Sales, rninistro da Justiça, loquaz, vaidoso e hábil, apenas dizia o que lhe convinha. Aristides Lobo, ministro do Interior, calado e modesto, mostrava-se ortodoxo e intransigente. O almirante Vandenkolk, responsável pela Marinha, homem bom, mas de pouco juízo, tinha ciúmes do exército. "Acho que o marechal (Deodoro), escrevia êle a Rui, envolve-se demasiado na minha administração da marinha e começo a con-

I I LI

O U R O E P A P E L 1 9 5

trariar-me deveras. . . É preciso que êle se convença de que a nossa classe difere muito da do exército: não temos tarimbei-ros". (6)

Coisas sem maior importância, pois Deodoro mantinha sobre todos a autoridade de vencedor. Tomara o governo num impulso e também num impulso o abandonaria. Quase sempre deixava-se levar pelo coração. Contava-se que o Imperador, ao receber a ordem de banimento, perguntara: — "Deodoro também está metido nisso?" — "Está, sim, Senhor. É êle o chefe do governo". E o monarca replicara incontinenti: — "Estão todos malucos". (7)

Em dezembro, cheio de desgosto por saber a posição de Rui no governo republicano, o conselheiro Albino fechou os olhos para sempre. Havia alguns anos que estava cego, e, muitas vezes, naqueles dias de crepúsculo, externara o desejo de avistar-se com o parente para lhe dizer algumas coisas, que a morte sepultaria no peito do velho patriarca fiel à monarquia. (8) Ah! se o visse, ainda uma vez lho teria repetido: "Seu Rui, talento não é ju ízo. . . "

Rui começava, porém, a tomar rumo. De preferência as suas vistas voltavam-se para a América do Norte. Hamilton ou Jef-ferson? Hamilton, certamente. (9) Seria maravilhoso alterar todo o mecanismo financeiro do país, tendo como paradigma aquele modelo ilustre, que sacudira e transformara a antiga colónia inglesa. De que serviriam as suas leituras, se não as pudesse converter em realizações práticas? Quando se falava nessas coisas, êle se mostrava impaciente.

Nessa ocasião, eis como Rui foi descrito por um jornalista estrangeiro: "Pequeno, nervoso, irritável e autoritário, o sr. Rui Barbosa é um filho da Bahia: nascido sob o sol vertical do Equador, as suas paixões são duma vivacidade extraordinária, seu estilo tem uma amplidão imensa. Vendo-se essa cabeça enorme sobre esse corpo franzino, os olhos ardentes e os gestos exaltados, parece que esse homem esteja permanentemente agitado, e sua cabeça a pique de arrebentar". (10) Na realidade, seduzido pela árdua mas atraente tarefa, estava inflamado.

No começo, preocupara-o a queda do câmbio, substituindo a "febre da véspera pelo desalento e o terror". Seria perigoso para a jovem república. Algum tempo depois temia a "esterilidade de uma administração de expediente" e cogitava de grandes empreendimentos. E, falando com frequência em "governo revolucionário" afirmava que a "ditadura devia servir-se da indefinida extensão dos seus poderes e da ausência das formas parlamentares,

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196 A VIDA DE RUI BARBOSA

para dar à vida nacional impulso heróico". (11) O modelador sentia entre as mãos o barro dúctil a que daria forma. Era tentador.

Contudo, antes das finanças, houve reformas mais urgentes. A separação da Igreja e do Estado, por exemplo. Questão delicada. Como receberia a população, católica na sua quase totalidade, tal iniciativa? Certamente, o apaixonado autor do prefácio ao "O Papa e o Concílio" iria atirar-se com furor sobre os seus antigos adversários. Com espanto, viram-no, porém, tomar uma atitude moderada e tolerante.

Ignoravam ter o escritor anticlerical confabulado com o seu professor do "Ginásio Baiano", o bispo D. António de Macedo Costa, que lhe dissera com finura: "Não seja a França de Gam-betta e Clemenceau o modelo do Brasil, mas a grande União Americana". Êle concordara. E, como bons amigos, juntos discutiram e modificaram o projeto do ministro Demétrio Ribeiro, fogoso positivista de vinte e seis anos. O ministro, pensava Rui, não devia conservar as intransigências do jornalista. E a separação fêz-se tranquilamente. (12) Rui acalmava assim um inimigo, mas ganhava outro: o positivismo.

Daí por diante as relações de Rui e D. António não foram mais toldadas por motivos religiosos. Compreederam-se. O mi nistro visitava o bispo doente. E este, quando se sentia melhor, vinha ver o discípulo ilustre. "Eu estou melhorando, e já posso descer à cidade. Marque-me uma hora, de manhã ou de noite, em que possamos falar. Eu preciso muito comunicar a V. Ex. algumas ideias sobre o casamento civil. Esta medida, se não fôi feita com muita moderação e prudência, vai causar maior abalo ao país do que a liberdade dos cultos. Peço que me ouça". (13) Enfim, o diabo não era tão feio quanto o pintavam. Aquele herege, que a Igreja desejara exterminar, fazia-se no governo o intermediário das suas pretensões.

Depois chegou a vez das finanças. Desde que assumira o ministério, Rui trabalhava infatigavelmente. Auxiliava-o um diligente secretário, Tobias Monteiro, rapaz de menos de trinta anos, e cuja ambição era moderada pelo humor. Azeredo também o ajudava. Não nascera, porém, para os pormenores dum gabinete e preferia continuar como o ponto de contacto entre o ministro recluso e o mundo político, função que desempenhava perfeitamente bem. Vasto plano arquitetava-se na imaginação fértil de Rui. Tornaria irreconhecível a velha máquina herdada de

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Ouro Preto. O Império fora a prudência. A República seria a audácia.

Rui, porém, nada comunicou aos colegas sobre as suas ideias. Limitou-se a consultar Deodoro. E os ministros ficaram atónitos (mando na manhã de 18 de janeiro de 1890 viram nos jornais os decretos da véspera dando vida às concepções financeiras do ministro da Fazenda. Eles nada sabiaml Grandes emissões — 450 mil contos — excitariam a economia nacional. Abandonava-se o lastro ouro desejado por Ouro Preto, e, a exemplo do que se fizera nos Estados Unidos, elas seriam garantidas por apólices do governo. Também fora alterado o regime das sociedades anónimas. E novas disposições vigoravam sobre o crédito móvel. Uma reviravolta completa. Tal como sonhara o seu autor: espetacular.

No ministério, o mal-cstar foi geral. Os seus membros sen-tiam-se diminuídos pela surpresa e pediam alguma explicação. "Desde o primeiro dia, escreveu para Paris o jornalista Max Le-derk, o senhor Rui Barbosa ocupou no governo uma situação preponderante; tomou-a por si mesmo, e a opinião pública não achou que estivesse errado. Êle é, certamente, cheio de talento, ardor pelo trabalho, e de boas intenções... Seus colegas não tardaram de perceber que êle não tinha senão um objetivo: absorvê-los ou aniquilá-los". (14)

Aliás, o ambiente foi-lhes favorável. O país, embora católico, suportara tranquilamente a separação da Igreja do Estado, e a adoção do casamento civil. Agora, porém, o formigueiro as-sanhava-se. Nos círculos comerciais e financeiros, levantou-se verdadeiro clamor contra as inesperadas transformações. Era uma loucura, disseram. O próprio Jacobina divergiu da orientação de Rui: "Do que li hoje, vejo que o primo não quer voltar atrás do seu passo sobre bancos. Desde que está colocada a questão neste terreno os seus amigos que não concordam devem calar-se; entretanto, um que sempre o tem acompanhado toma a liberdade de lhe pedir que considere, que isto nos leva à separação ou des-membração do Brasil ou à guerra Civil". (15) Assim, de repente, por causa daquela reforma em que depositava tantas esperanças, Bui via desabar sobre si violenta tempestade.

Nada estava, porém, mais longe dele do que a ideia de recuar. Exonerar-se? Também não. "Dimitir-se por tais motivos, disse êle um dia, imolando essas reformas, seria cómodo, mas não patriótico. Um egoísta procederia assim. Um homem do Estado ou um patriota, não". E, convicto de estar certo, Rui não temeria arrostar o mar agitado.

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198 A VIDA DE RUI BARBOSA

A verdade era que o país tremia diante daquelas emissões, e Rui não se livraria mais da pecha de ter sido o inventor daquele pandemônio de papel. Como fora diferente o Império com as emissões restritas! No futuro, todos poderiam emitir largamente, mas a êle caberia sempre a culpa por haver introduzido o novo sistema. Dir-se-ia que o país, favorável ao ouro, se empenhava numa grande batalha contra o fantasma do papel. Assunto pouco conhecido, mas por todos discutido com veemência. Sintoma, portanto, perigoso. Quem com ferro fe re . . . Rui atormentara Ouro Preto com os seus artigos, (16) mas agora chegara a sua vez. Estava na berlinda, e a imprensa desancava-o. Era o diabo tro-car-se ouro por papel.

Entretanto, a situação tornou-se muito mais séria do que Rui esperava. Três ministros, Benjamim Constant, Demétrio Ribeiro e Aristides Lobo, manifestando a sua discordância dos pro-jetos financeiros, renunciaram e grave crise toldou os horizontes do governo. Rui não se assustou. Sabia perfeitamente ter empolgado Deodoro, que nele depositava confiança absoluta, e jogando com esse trunfo também apresentou a sua demissão. Gesto hábil, e que podia revelar desambição. Êle, porém, estava certo de que Deodoro não o abandonaria.

Realmente, reunindo o ministério para deliberar sobre o assunto, o chefe do governo, antes mesmo de Rui defender-se, declarou ser inalterável a reforma financeira. Se insistissem, êle deixaria o governo. O argumento, como é natural, foi decisivo. E quando, após o debate, Azeredo perguntou a Benjamim Constant quais as suas impressões, este lhe declarou sem meias palavras: "Diante da brilhante defesa do Rui, justificando sua reforma, e da pálida acusação do Demétrio, não pude deixar de aceitar o decreto de 17 e aplaudir o seu autor, cuja capacidade sempre apreciei. E logo acrescentou: "E você sabe, a única vez que fui à urna foi para dar-lhe o meu voto". (17) Era um bom homem esse Benjamim: nunca errava de má fé.

Rui não se enganara. Apesar de algumas modificações, passado o furacão, as suas ideias permaneciam de pé. "O dinheiro voltou a circular e a euforia aqueceu de novo o mundo dos negócios". E, para que nada faltasse à sua vitória, Demétrio Ribeiro, o seu mais encarniçado opositor, exonerara-se.

Transposta esta etapa, o ministro inebriou-se com a própria ação. Sentindo os movimentos livres, o teórico desfrutava magnífica sensação de euforia. Em fevereiro, — a serviço do cargo — viajou para São Paulo. Vinte anos haviam decorrido depois que

O U R O E P A P E L 199

o estudante enfermo e desalentado saíra da Academia. Agora, voltava triunfante. A caminhada custara muitos sacrifícios, mas ali estava cercado pelas atenções a que tem direito um ministro da Fazenda. Cumpridas as visitas protocolares, Rui quis passear a pé pela cidade. Iria rever a sua querida São Paulo, e êle próprio escolheu o trajeto. É Júlio de Mesquita quem nos conta: Rui "caminhava em silêncio, de vagar. Passou pelo largo de S. Francisco, lamentando que as portas da Academia estivessem fechadas. Deteve-se um momento na esquina da Rua senador Feijó. Depois, pela do Riachuelo, chegamos até ao princípio da calçada da Glória. Daí a Tabatinguera, Rua da Boa Morte e esplanada do Carmo. Em baixo a várzea do Tamanduateí e, ao longe, a linha azul da Cantareira". Aos poucos a imaginação ia-o transportando para o mundo distante onde pela primeira vez se sentira homem, e a emoção começou a dominá-lo. Rui continuava o mesmo — romântico e sensível. E "o agressivo paladino de tantas pelejas chorava, c não se envergonhava das lágrimas, que lhe desciam pelas faces ainda lisas". (18) O contraste entre o passado e o presente comovia-o.

Não se pense, porém, por esse episódio, que Rui permaneceu contemplativo. Longe disso, não sendo um veterano em assuntos financeiros, a tarefa exigia esforço hercúleo e êle trabalhava como um mouro. Muitas vezes para atender às múltiplas necessidades do serviço, estudando cada assunto profundamente, como era seu hábito, permanecia horas a fio trancado no gabinete, não recebendo sequer os amigos mais íntimos. Isso foi motivo para aborrecimentos. Em certa ocasião, Dantas, que dirigia o Banco do Brasil desde o tempo de Ouro Preto, não tendo podido conversar com o ministro, irritou-se. Como? Então o "filho" recusa-va-se a atendê-lo? Rui apressou-se cm escrever-lhe desculpando-se, mas o incidente deixou uma cicatriz: Dantas, disse-o êle próprio, ficara "desconfiado". (19)

Contudo, Rui não desejava de nenhum modo agravar os mal-entendidos com os Dantas. Constrangia-o divergir do velho amigo, e chegara mesmo a escrever-lhe com extrema delicadeza: "Sinto a maior dificuldade e o maior desgosto em não poder concordar com uma opinião de V. Ex. e satisfazer a um desejo seu, habituado como estou a respeitar as suas opiniões e os seus desejos". (20) O poder, acalmando-lhe o espírito inquieto e muitas vezes vencido, tornara-o transigente e cordato. Buscava ser benévolo com os estadistas do antigo regime, e não se esquivaria sequer a aceitar a indicação do cons. João Alfredo, para substi-

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200 A VIDA DE RUI BARBOSA

tuir o barão de Paranapiacaba no Banco do Brasil. (21) E, satisfazendo em parte as pretensões de Dantas, ao mesmo tempo que amainava o temporal desencadeado contra as reformas financeiras, resolveu permitir ao Banco do Brasil e ao Banco Nacional emitirem sobre cinquenta por cento de base ouro. O ministério não se mostrou, porém, favorável à concessão. Mas, que tinha o ministério com o que se passava na pasta da Fazenda? Simulando, talvez, indignação maior do que a real, Rui escreveu em 8 de março ao secretário de Deodoro, impondo uma decisão categórica:

"Nunca, portanto, careci mais da confiança absoluta dos meus companheiros e da mais plena liberdade de ação. Entretanto, parece-me que buscam retirar-me essa e outra. O meu amigo foi testemunha ontem dos embaraços que me levaram a uma medida salutar, que viria promover a favor da minha política financeira um excelente movimento de opinião na agricultura e no comércio, fortalecendo o governo e compensando-me um pouco das agressões vilãs que me perseguem. Querem, pois, ao que parece, reduzir-me à carniça, e entregar-me aos cães da mais ignóbil das conspirações.

"Nestas circunstancias cabe ao chefe do governo pronunciar a palavra decisiva. Preciso de saber se a pasta da Fazenda será governada ou não, por mim com a confiança dele, ou se estou condenado a ser dado em cspetáculo num poste de açoite, no meio da indiferença dos companheiros, convertidos em obstáculos e cheios de desconfiança contra o ministro das Finanças. O Banco Nacional já ousa levar os seus emissários até à presença do chefe do Estado e conta abalar-me a confiança dele. Para que eu prossiga, pois, é essencial saber eu definitivamente se o meu velho chefe, a quem pertence a minha dedicação e a minha vida, mantém para comigo o pacto de confiança absoluta e dá-me, na luta contra esse inimigo, autoridade ilimitada de que eu preciso a bem do governo, da república e da pátria". (22)

A carta, verdadeiro ultimatum, na realidade marcava flagrante recuo de Rui em relação à sua política financeira. Mas, como esperava, deu magníficos resultados, pois Deodoro apoiou-o integralmente.

Dantas mostrou-se satisfeito com as novas deliberações. E, sem desanimar, confiando no tempo e na sua capacidade de trabalho, Rui preparou-se para saltar outros obstáculos. Fazia-o, porém, com acentuada teatralidade. Por qualquer coisa lá estava êle entregando a Deodoro um pedido de demissão, e num ano

O U R O E P A P E L 201

esta cena repetiu-se sete vezes. Como sempre, os incidentes terminavam com uma declaração de confiança do chefe do Governo no seu ministro, e este continuava então a correr pelo terreno acidentado da sua pasta. Os auxiliares também se viam forçados a acompanhar-lhe o ritmo acelerado. Um deles, incumbido de copiar o projeto de Constituição, escrevera dezoito horas seguidas, e no fim sairá carregado pelos companheiros. O ministro era infatigável. Concebia novas fórmulas e combinações, e esperava chegar a uma conclusão feliz. Ilusão como qualquer outra. Na verdade, o torvelinho das finanças enlevava-o irremislvelmente.

o • •

Mus, além das finanças, muitas outras coisas consumiam o toinpo do ministro das Finanças. Que seria, nas mãos dos inexperientes republicanos, aquele mundo ainda informe, se não tivesse o seu Alias paru o suster com firmeza? Nos fins de maio, por exemplo, havendo Deodoro pretendido a adoção dum plano de saneamento para o Rio de Janeiro, séria crise assaltara o governo. E o ministério estivera às portas da exoneração coletiva. Poderiam, porém, demitir-se antes de concluído o projeto da Constituição republicana? Isso seria extraordinariamente perigoso, e os companheiros incumbiram Rui de tirar aquilo da cabeça do Presidente. Inicialmente, êle obteve de Deodoro um prazo de quinze dias, para redigir uma exposição sobre a inexequibilidade do projeto de saneamento. Pelo menos, ganhariam tempo. E, como não podiam perdê-lo, resolveram aproveitá-lo, revendo o trabalho apresentado pela comissão presidida por Saldanha Marinho, e incumbida de esboçar a futura Magna Carta da República.

Depois disso, pensavam, nada obstava a devolução das pastas de ministro a Deodoro. Mas, sobreviveria o ministério ao prazo concedido a Rui pelo chefe do governo? Por isso mesmo precisavam correr, e ninguém, senão Rui, em cuja casa passaram a realizar-se as reuniões do ministério com aquele objetivo, seria capaz de levar a bom termo a tarefa ingente. Ainda uma vez seria êle o relator, o redator, e, afinal, o verdadeiro autor da futura Constituição. Aliás, nem sempe haviam transcorrido tranquilamente os trabalhos da comissão dirigida por Saldanha Marinho. Nem mesmo a quietude de Petrópolis, onde se instalara, fugindo às inclemências do verão, lograra suavizar-lhe os debates. Três projetos, naturalmente mimados pela vaidade dos autores, entrechocavam-se a cada passo. E a Campos Sales não fora

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fácil convencer Américo Brasiliense, republicano cheio de serviços à causa comum, da conveniência de abrir mão das suas ideias parlamentares. (23)

Agora, porém, nas mãos de Rui, o projeto voava. Quem se poderia opor àquela torrente de erudição e de talento? E a 22 de junho, concluído o projeto, Deodoro, para comemorar o acontecimento, congregava num jantar os seus ministros. Estes, por sua vez, lhe ofereceram uma caneta de ouro, na qual uma bela safira completava o conjunto das pedras preciosas. E, satisfeito, êle a tomou para assinar o decreto, que determinava publicar-se o projeto de Constituição. (24) A paz voltara. Não se falou mais em saneamento. Há quantos anos Rodolfo dissera a Rui que êle seria sempre um demónio? Não, êle não seria um demónio. Mas, certamente, parecia invencível.

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Após algum tempo, Rui verificou que os planos idealizados não correspondiam aos seus desejos. Imaginara dar à economia nacional base estável e fecunda através das emissões, e estas excitavam ainda mais o espírito de jogo e de aventura surgido na última fase do Império.

Alastrava-se o delírio da bolsa. Na realidade, êle estava como o pai, que, tendo dado ao filho dinheiro para comprar alguma coisa útil, o encontrava numa roleta. Em sessenta anos de Império, o capital das sociedades organizadas na Corte ascendera a oitocentos mil contos. Em onze meses de república subira para um milhão e novecentos mil contos! E na sua quase totalidade eram fictícios os objetivos das sociedades agora organizadas. Contudo, o público continuava a adquirir títulos. Comprar e vender tal a lei suprema daquele mundo fantástico, onde todos ganhavam rapidamente fortunas extraordinárias. As mesmas ações passavam num só dia por várias mãos, e cada qual as transferia com lucros. Maravilhoso. Os homens ficavam excitados. Nos "Políticos", be-bia-se champanha profusamente. E uma ilusão de ventura der-ramava-se sobre a nova Canaã. A república fazia milagres.

Chamou-se a isso o "encilhamento". A sua grande figura, o conselheiro Francisco de Paula Mayrink, substituíra o conde de Figueiredo, o "as" dos banqueiros nos últimos tempos do Império. "Se necessário, disse alguém dele, se encarregaria de pôr toda a América em ações". (25) Ampliaria assim o sonho de Law, que apenas desejava transformar em títulos as duas margens do Mississipi.

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E depois?. . . Rui temia aquelas especulações. Sempre fora contrário ao jogo, mas, por ironia do destino, justamente sob a sua responsabilidade a especulação tomava proporções desconhecidas. Deveria, no entanto, confessar o malogro? A interrogação encerrava alguma coisa de dramático para a vaidade do financista. Como o comandante dum navio em perigo, mas preocupado em não assustar os passageiros, êle procurava remediar a situação sem alarmar o país. E, desesperadamente, mudando de rumo, In iscava uma solução capaz de paralisar a marcha vertiginosa para a realidade, a amarga realidade que revelaria a fragilidade daquelas fortunas.

A sua imaginação não se deixaria, porém, vencer facilmente. Sempre propenso a fazer jogo alto, Rui pensara aliviar os encar-

Í(OK do TONOUro adquirindo as doze estradas de forro inglesas no íruill, ft» quiii.s ora assegurada a garantia dum juro mínimo para

O capital uplirudo. José Carlos Rodrigues, homem esperto, hábil, eoloclonudor do livros raros, o que lauto se espantou ouvindo lord Hothsehlld lalar do Mrusil "com admirável conhecimento dos homens o das coisas", como ao saber que lord Salisbury se interessava por concessões brasileiras ao Cabo Submarino, foi enviado a Londres para tratar do assunto. No entanto, a propaganda monarquista criara na bolsa de Londres um ambiente desfavorável a I epública. Lord Rothschild tivera de intervir para evitar um protesto da Chamber of Commerce contra a nova lei das sociedades anónimas que Rui promulgara, e tornara-se "impossível obter auxílio pecuniário do público inglês" (26). Nessas condições a operação, que envolvia um empréstimo de cerca de três milhões de esterlinos, malogrou. Contudo, Rui continuava. Ao mesmo tempo, com fertilidade, cuidava de introduzir impostos para aumentar as rendas do país e concebia meios para fomentar a industrialização, na qual, como Hamilton nos Estados Unidos, depositava grandes esperanças.

Novas tarifas, de caráter protecionista, constituíram o passo inicial para incentivar a multiplicação de fábricas, enquanto a cobrança de impostos de importação em ouro asseguraria o resgate das emissões. Quanto aos bancos, porém, fora profundamente alterada a orientação primitiva. Além das emissões sobre apólices, admitira outras com cinquenta por cento em base ouro. E, da liberdade bancária, tendera para o monopólio.

Essas variações, causaram-lhe grande mal. Ah, êle mudava?! Isso servia de pretexto para o acoimarem de inconstante e incongruente. E, como se tivesse certo orgulho nisso, Rui assumia

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corajosamente a responsabilidade das novas direções. "Na organização do regime das emissões entre nós, disse certa vez, tive ocasião de variar em dois sentidos". "Tenho-me por feliz em não ser um desses homens, a quem o tempo e a experiência nada ensinam". "Politicamente, eu me envergonharia antes de pertencei à turba de indivíduos, que não conhecem, na sua vida inteira, senão uma ideia só, com a qual nunca se puseram em contradição". "Governar é variar. Não há nada mais distante do absoluto, mais incompatível com êle, do que as necessidades práticas do governo. A maior escola dessa grande arte, a Inglaterra, é, ao mesmo tempo, o maior teatro de transmutações nas convicções dos homens de Estado. Robert Peei, o mais célebre reformador que ela produziu neste século, tem todas as suas glórias nas suas variações de opiniões". (27)

Defesa nobre, mas infeliz. Êle jamais evitaria que o tivessem como um espírito volúvel e versátil. Este juízo generalizou-se depressa. Embora fosse difícil interessar o povo numa reforma financeira, não custava mostrar-lhe que o câmbio descia vertiginosamente, que os géneros estavam mais caros, e convencê-lo ser o ministro da Fazenda o responsável. Rui nunca poderia desfazer tais impressões.

Assim, êle continuou a debater-se naquele misterioso e sensível emaranhado das finanças, onde a lógica falhava frequentemente e tudo era complexo e imprevisível. Às vezes os títulos baixavam em Londres apenas "por anunciar-se que o Príncipe Bismarck pediu a sua exoneração" ou por não declinar a greve dos mineiros ingleses. Como tudo isso era complexo! Dir-se-ia que o teórico fora enganado pelos acontecimentos. Realmente, não os pudera prever e, em grande parte, os seus maus êxitos provinham dum fato que inicialmente julgara ser-lhe favorável -o governo revolucionário. Rothschild, por exemplo, dissera a José Carlos Rodrigues que "o Governo não poderia levantar empréstimo algum antes de adotada a Constituição por uma Assembleia". (28) Londres encolhia-se desconfiada ante a República e negava-lhe o seu ouro. Rui, no entanto, prosseguia, lutando desesperadamente para vencer a corrente.

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Durante toda a gestão acidentada e discutida, Rui contou sempre com um fiel aliado: Deodoro. "O general só conta contigo — escrevia-lhe um amigo que obtivera do general Jacques Ourique estas informações — e em ti deposita a maior confian-

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ca; não está satisfeito com alguns dos teus colegas, e disse que (juerem o atraiçoar Quintino, Campos Sales, Benjamim Constant e Alvim". (29) Aliás, ninguém sabia disso melhor do que êle. Chegara mesmo a abusar dessa convicção e, para fortalecer-se, várias vezes apresentara o seu pedido de demissão ao chefe do governo. A resposta, no entanto, fora, invariavelmente, a mesma: Deodoro acabava concordando com o seu ministro e recusava-se a conceder-lhe a exoneração. Admirava-o sinceramente.

Um dia pensou até em entregar-lhc a direção do país. Irri tavam-no os obstáculos naturais a um dirigente, e desejou voltai para junto dos seus camaradas de armas. "Praticamente, para mim, é-me impossível o alto cargo de que fui investido — chefe do governo provisório — porquanto nem tenho a paciência de Job, nem desejo os martírios de Jesus Cristo". (30) Palavras. Seria capaz de enormes sacrifícios. Apenas habituara-se a dar ordens como militar e as sutilezas da política chocavam-se com o seu temperamento. Com muito bom senso, Rui recusou-se, no entanto, a receber o poder, que não teria forças para manter, e Deodoro ficou.

Isto se passara em 6 de maio. Uma semana depois, talvez para retribuir àquela prova de confiança, Rui desejou convidar Deodoro para padrinho do filho nascido em janeiro, o Joãozinho, "um republicano aprumado e prematuro, mas fortezinho e sadio". A carta tinha marcado tom sentimental: "Persuadidos de que não recusareis esta parte de afeição na nossa felicidade doméstica, eu e Maria Augusta vimos por-vos nos braços o filho que nos nasceu no berço da República, esperando que o glorioso chefe da revolução libertadora se dignará levar estar florzinha da alvorada republicana às águas do batismo cristão, onde o espírito religioso de minha mulher vai buscar para o inocente a bênção das esperanças do céu". E acrescentava com orgulho: "Aquele que nunca se inclinou perante a Coroa imperial, seria incapaz de fazer da inocência de um anjo um mimo de cortesão ao chefe popular da democracia brasileira; mas sente-se soberbo em curvar-se às virtudes do grande patriota e pedir-lhe que bafeje com um ósculo do parentesco d'alma este botão do futuro, acariciado pelos nossos sonhos". (31) Estas frases artificiais não poderiam impressionar ninguém, mas revelavam o espírito suscetível e orgulhoso. Felizmente, porém, quando se tra-lava de ressalvar a sua altivez, Rui tornava-se extremamente cuidadoso e prudente. Que diriam, se o vissem entrar na igreja i-om Deodoro? A pergunta deve tê-lo atormentado, e logo se

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sentiu sem forças para arrostar a possível maledicência. E, voltando atrás, timidamente guardou a carta. Seria melhor assim.

Aliás, ainda continuava a figura de maior prestígio junto a Deodoro e essa influência foi por vezes muito benéfica. Assim, ao ser submetido à apreciação do chefe do governo o projeto de Constituição, do qual fora Rui o principal autor, Deodoro desejou ter poderes para dissolver o Congresso. Poderes iguais aos do Imperador, mas descabidos dentro do sistema ideado para a República nascente. Rui opôs-se categoricamente. Seria absurdo. Por fim, quando teve de ceder, o general advertiu: "Bem, concordo. Mas o senhor ainda sairá daquele congresso dissolvido por mim, como António Carlos da constituinte dissolvida pelo primeiro Imperador". Rui retrucou incontinenti: — "Confio muito no patriotismo de V. Ex. e peço licença para dizer-lhe que não me arreceio de que isso aconteça jamais". Ambos eram sinceros. Rui a bater-se pela construção dum regime semelhante ao da América do Norte. Deodoro sempre cioso das prerrogativas da sua autoridade. Em certa ocasião, Rui comunicara a Glicério: "Não consente (Deodoro) que se retire do Governo Provisório um homem, nem um átomo de poder. Até logo". (32) Mas, a bravura do soldado não custava a render-se aos argumentos do jurista.

Nesse tempo a política não correra tranquila, e no próprio governo houvera sérias dissensões. Depois de Demétrio Ribeiro, Aristides Lobo deixara o ministério, e tinham sido substituídos, respectivamente, por Francisco Glicério, político cheio de boas maneiras, e Cesário Alvim, liberal exaltado. Benjamim Constant passara para a pasta da Instrução e Floriano viera ocupar o ministério da Guerra. Aliás, com a entrada de Glicério, Rui ganhava, no gabinete, um amigo com o qual teve fundas afinidades. Entendiam-se. E, quando precisava dos seus conselhos, era com bom humor que Rui lhe escrevia: "Não me faltas hoje por coisa nenhuma. Quem tem carro não se teme da chuva. Põe a casa-quinha". (33) Mas, aquelas mudanças, dando à administração à aparência de instabilidade, prejudicavam sobremodo o trabalho do ministro da Fazenda. Como poderia alcançar boas finanças dentro duma política má? Havia muito que êle clamava pela constitucionalização do país. Mas, enquanto não vinha a legalidade, procurava viver do melhor modo possível naquele governo, heterogéneo "como todas as juntas revolucionárias". Contudo, estava bem longe de esgotar-se o seu "stock" de reformas, e talvez aguardasse um período mais calmo para efetuar outras, pois,

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apesar da saúde precária de Deodoro, não havia ainda qualquer indício de que o poder viesse a fugir-lhe das mãos.

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No dia em que a revolução completou o primeiro aniversário, instalou-se a Assembleia Constituinte.

A queda do Império, anulando a antiga hierarquia política do país, despertara novas e grandes ambições. Caidos os velhos ídolos, surgira uma plêiade de sôfregos bacharéis o militares, cada qual com mais pressa de chegar nos primeiros postos. Havai choques entre veteranos propagandistas republicanos e oportunistas dispostos a tomarem o melhor quinhão. E mesmo entre aqueles digladiavam-se positivistas, jacobinos e democratas puros, todos ansiosos pelo domínio espiritual da sua seita. No cenário apareciam nomes até então quase desconhecidos. Mas, conto se lAssem componentes dum exército sem comandante, e onde n diicção caberia nos mais audazes, todos se julgavam com direitos iguais.

A assembleia apresentava-se bastante diversa das câmaras da monarquia, e isso assustava os mais cautos. Que rumo tomaria aquela juventude inquieta? Desse contraste entre os dois regimes, Saraiva, de quem Rui se separara por questões políticas, tor-nou-se um símbolo expressivo. Cometera o grave erro de deixar-se eleger, e logo o cercara a irreverência geral. (34) Olhavam-no com desdém, como se fosse um intruso. Pouco depois, desiludido, renunciou o mandato. A república era o ambiente da nova geração, dos jacobinos de colete vermelho, dos democratas, que liam o "Federalista" como uma bíblia e dos positivistas para quem Augusto Comte se afigurava um semideus. Ali estavam Epitácio Pessoa, fluente orador, que chegara precedido de grande fama; Lauro Múller, tido como "a raposa de espada à cinta"; Barbosa Lima, um militar, que entendia mais de direito do que de estratégia; e Pinheiro Machado, aquele rapaz fugido da Escola Militar para combater nos campos do Paraguai. Pensavam dividir entre si as glórias da nova república, mas ainda não sabiam bem como isso iria acontecer. Não havia, porém, nenhuma dificuldade em fazer projetos.

Que papel desempenharia Rui nesse mundo, que ajudara a criar? Ou melhor, que êle criara quase sozinho, redigindo as suas grandes leis, elaborando o texto do projeto de Constituição, cuidando das suas finanças, e bisbilhotando, infatigavelmente, todas as minúcias, inclusive o comportamento dos diplomatas e

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as repercussões da marcha dos negócios públicos em Paris e Londres? (35) Sem dúvida os horizontes não se lhe anunciavam favoráveis. Mas, como se não houvesse tomado conhecimento do perigo, êle insistia em consertar o mundo.

Na Europa, Rui tivera no barão do Rio Branco um auxiliar dedicado. Por sinal eram recentes as suas relações, pois, embora se houvesse diplomado mais ou menos na mesma época, somente a publicação de um trabalho de Rio Branco em colaboração com Levasseur — "Le Brésil" — pouco antes da queda do Império, e que Rui, a pedido de Rodolfo, louvara sem restrições no "Diário de Notícias", fizera nascer recíproca simpatia. (36)

Aliás, no íntimo, Rio Branco era mais inclinado à monarquia do que à república. Mas, julgara-se no dever de servir à pátria e auxiliava inteligentemente o restabelecimnto da confiança dos mercados europeus nas jovens instituições. "A questão hoje, escrevia êle a Rui em dezembro, não é mais entre Monarquia e República, mas entre República e Anarquia. Que o novo regime consiga manter a ordem, assegurar, como o anterior, a integridade, a prosperidade e a glória do nosso grande e caro Brasil, e ao mesmo tempo consolidar as liberdades que nos legaram nossos

Eais, — e que não se encontram cm muitas das intituladas repú-licas hispano-americanas, — é o que sinceramente desejo." (37)

E, diligente e hábil, do seu consulado em Liverpool, Rio Branco sugeria as medidas necessárias à preservação do crédito e do bom nome do Brasil, enquanto o ministro da Fazenda, sem descanso, achava tempo para cuidar até de coisas estranhas ao seu ministério. Que deveria, por exemplo, responder a Latino Coelho, célebre escritor português, e que lhe pedia dinheiro para uma revolução republicana em Portugal. (38)

Nessa ocasião Rui lamentava não dispor de cinco minutos para conversar com Maria Augusta e os filhos, e isso, de certo modo, exprimia a verdade. (39) Contudo, esse afã, se lhe esboçou a glória, também lhe preparou a queda. Tornara-se, como o chamava Quintino, o "pára-raio do governo". (40)

Começava-se assim a temer aquele homem erudito e agitado. De Floriano, em quem já se apontava o sucessor eventual de Deodoro, contava-se que, não podendo comparecer com pontualidade às discussões sobre o projeto de Constituição, costumava dizer aos colegas: "O Rui me representa; voto sempre com êle se houver divergências. Mas, não pode haver. Êle pensa por todos nós". (41) Versão pouco tranquilizadora. Conseguiria êle manter junto a Floriano prestígio idêntico ao que desfrutava de

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Deodoro? E, em volta do ministro da Fazenda, a auréola de admiração empanava-se pela atmosfera de receio. Parecia grande demais, e não era sem prazer especial que alguns imaginavam aparar-lhe as asas.

Na Assembleia, onde compareceu raramente, Rui foi o defensor das ideias essenciais do projeto que elaborara. E, como andava nessa ocasião encharcado de finanças, nada lhe pareceu mais importante do que evitar a vitória dos ultrafederalistas, sequiosos por sacrificarem as rendas da União em benefício dos Estados, Hamilton, aliás, também tivera de sustentar combate igual.

Os discursos dessa época não despertaram, porém, nenhum entusiasmo, embora fossem tão bons como os outros, que pronunciou no parlamento imperial. Talvcv. reflexo dos rumores desairosos sobre a honestidade do orador e que já circulavam em grande escala. Deve-se, no entanto, reconhecer terem sido úteis, pois ainda poucos estavam bem a par do regime norte-americano transplantado para os trópicos. Por isso, admiravam-se vendo o antigo federalista opor-se aos exageros federativos, e Rui devia explicar: "Grassa por aí um apetite desordenado e doentio de federalismo, cuja expansão sem corretivo seria a perversão e a ruína da reforma federal. Eu era federalista antes de ser republicano. Não me fiz republicano, senão quando a evidência ir-refragável dos acontecimentos me convenceu de que a Monarquia se incrustara irresistivelmente na resistência à federação. Esse non possumus dos partidos monárquicos foi o seu erro fatal". (42) Como era seu hábito falava em tom profético, e concluía: "Porque, ou eu me engano de todo, ou me foi de todo inútil este ano cie Ditadura em que suponho ter atravessado cinquenta anos de experiência". E tinha razão. Como poderia subsistir a União sem uma justa distribuição das rendas públicas? Mas, eficazmente auxiliado pela nata dos congressistas, Rui conseguiu tornar vitoriosas as suas ponderações.

Nos fins de 1890, o ministério começou a mostrar os primeiros sinais graves de desagregação. A assembleia fora o ponto de apoio procurado pela maioria dos ministros, que, durante um ano, havia suportado submissos a vontade de Deodoro, e os incidentes entre o chefe do governo e os seus auxiliares imediatos tornaram-se cada vez mais frequentes. Agora, animados pelas intrigas parlamentares e sentindo-se fortes, eles começavam a in-surgir-se, e não tardou um rompimento definitivo.

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Tendo Deodoro pleiteado para um amigo a concessão do Porto das Torres com garantia de juros igual àqueles que Rui desejara extinguir adquirindo as estradas de ferro inglesas, o ministério, que havia concordado com muitas outras idênticas, re-cusou-se a atendê-lo. Por que? Tinham sido dadas tantas outras que o general não podia compreender como lhe recusavam tal direito.

Ambos os lados se mantiveram, porém, irredutíveis. Maliciosos comentários associavam ao caso uma suave imposição da famosa J. B., elegante senhora, de belos cabelos brancos, e a quem atribuíam este conceito: "tudo pode ser feito, contanto que se não perca a consideração". E Deodoro, dizia-se, ainda apreciava o sorriso das mulheres. O certo é que o Porto das Torres foi a gota dágua.

Em 17 de janeiro o gabinete reuniu-se para decidir o caso. Rui não pôde comparecer, mas escreveu explicando os motivos da sua solidaridade com os colegas: divergia de Deodoro. (43) É difícil julgar-se a atitude de um homem, que alega convicções para tomar alguma decisão. Contudo, não deixa de causar estranheza o caminho que Rui escolheu neste momento. Por que abandonava o militar, que tantas provas de confiança lhe havia dado cm horas difíceis? Por que preferia ficar com os "colegas", que, cm regra, lhe tinham proporcionado transes bem amargos? Julgaria, realmente, tão perigosas aquelas concessões a que fora contrário? Entretanto, acentuou Deodoro, o motivo invocado parecia não passar dum simples pretexto. Um capricho a que não se submeteria.

Três dias mais tarde, reunidos no antigo Paço Imperial de S. Cristóvão, os ministros resolveram enviar um pedido coletivo de demissão. Era o fim do primeiro ministério republicano. Acabava sem grandeza.

Rui apresentou então a Deodoro um Relatório resumindo as atividades da sua pasta. (44) Constitui atestado eloquente do esforço despendido nesses quinze meses de governo — prazo exíguo para poder realizar qualquer programa — e revela a extraordinária capacidade de trabalho do autor. Embora tivesse desviado a atenção para outros assuntos, as matérias referentes ao seu ministério haviam sido estudadas profundamente. Sobre cada problema financeiro as informações de que dispunha eram as mais amplas. Estava a par da legislação e das doutrinas preponderantes em todas as grandes nações, e conhecia as minúcias das reformas tentadas na Itália ou nos Estados Unidos. Certos capí-

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tulos representam verdadeiras monografias. E isso é espantoso quando se sabe que, ao assumir o ministério, não era um especialista em finanças. Devia ter-lhe custado trabalho sôbre-humano. Sacrifício vão, no entanto. Apesar de tudo, ignorando a luta titânica sustentada num ambiente agitado c incerto, pouco propício aos planos financeiros, a opinião geral proclamava o malogro do Ministro da Fazenda. O erudito — dizia-sc — falhara.

NOTAS AO CAPITULO XVI

(1) O telegrama mencionado foi enviado pelo cons. Saraiva a Ulisses Viana, redator do "Jornal do Recife", em 20 de novembro de 1889. Na "Gazeta de Notícias" de 9 de dezembro de 1889 foi publicada uma carta de Leão Veloso, cm nome do cons. Saraiva, e na qual respondendo a um inquérito sobre a República, confirma aquela declaração do ex-primeiro-minislrn.

(2) Cf. carta do barão Macaúbas a Rui, s. d., in Arq. C. R. B. (.1) Cl. Oliveira Limii, "Memorias", (Hio, 1937), p . 81 . (4) Cf. carta de Leão Veloso a Rui, em 4 de dezembro de 1889, in

Arq. C. R. B. (5) V. correspondência de Rodolfo Dantas a Rui, in Arq. C. R. B.

Ao regressar Rodolfo Dantas, da Europa, onde estivera dois anos, Rui publicou, no "Diário de Notícias", em 22-8-89, uma nota que mostra a confiança que teve em que se associasse "à revolução intelectual do País", o caminho que o levou à República.

(6) Cf. carta do almirante Wandenkolk a Rui, em 10 de janeiro de 1890, in Arq. C. R. B.

(7) Tobias Monteiro, obr. cit., p . 274. (8) V. "O Tempo", In Memoriam. (9) V. "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 160 e 330. Como se

sabe, a gestão de Rui Barbosa na pasta da Fazenda tem sido objeto de largos e apaixonados debates. Deles ressalta a visão do estadista, que, através de medidas financeiras, industrializou o país reformando-lhe a estrutura social. Sobre o assunto devem ser consultados: Aliomar Baleeiro, Rui, um estadista no ministério da Fazenda (Rio, 1952); San Tiago Dantas, Dois momentos de Rui Barbosa (Hio, 1949); Humberto Bastos, Rui Barbosa, ministro da independência económica do Brasil, (Rio, 1949); e Oscar Bormann, Rui Barbosa ministro da Fazenda, (Rio, 1948).

(10) Max Leclerc, "Lettres du Brasil", (Paris, 1890), p. 164. (11) V. Rui Barbosa. Relatório do Ministro da Fazenda. (12) Os entendimentos havidos entre o Bispo de Pará e o Ministro da

Fazenda do Governo Provisório foram fixados por aquele na carta que dirigiu a este em 22 de dezembro de 1889, e na qual ressalva a posição de ambos. Essa carta foi publicada por D. António de Macedo Costa, que para fazê-lo pediu autorização a Rui em carta de 11 de junho de 1890, e pode ser lida na "Revista de Cultura", n.° 63, p . 112. A publicação da Pastoral Coletiva de 19 de março de 1890 (V. "Revista de Cultura", n.° 64, e segts.) esclarece a atitude da Igreja em face do decreto. Rui, no discurso do Colégio Anchieta, (V. "Elogios e Orações" Rio, 1924, p . 311),

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assim definiu o seu pensamento sobre a liberdade de cultos: "Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o consórcio da Igreja com o Estado, mas nunca o fiz em nome da irreligião: sempre em nome da liberdade." Essa a atitude que Rui, com razão, reiteradas vezes se atribuiu. Em 1892 (V. "Diário da Bahia", de 11 de setembro de 1892), no manifesto aos "Eleitores baianos", êle assim se externava: "Para mim a independência dos cultos no seio do estado nunca foi mais que uma fórmula da tolerância cristã. Sob este aspecto é que busquei traduzi-la no dec. de 4 de janeiro, confiado à minha elaboração pela alma religiosa de Deodoro. Não confundo o espírito de religião, que se avigora sob a liberdade de cultos, e cujo papel histórico, nas civilizações mais adiantadas, parece exprimir uma lei necessária do desenvolvimento humano, com o fanatismo, ou a hipocrisia religiosa, incompatíveis com o Evangelho, com a filosofia do progresso, com os direitos

da ciência." Quanto à aproximação entre Rui e D. Macedo Cesta foi publicado, no

"Jornal do Comércio", em 1904, o depoimento de quem a teria promovido, mas se manteve incógnito, não assinando o artigo sobre a "A atuação de um grande Bispo e de um grande Estadista".

Em carta de 27 de novembro de 1889, D. Macedo Costa, depois dos seus primeiros entendimentos com Rui Barbosa, assim se dirigia a este: "Convém que a nossa conferênca de ontem fique por ora sob toda a reserva. Vou formular bases por escrito, encarando os múltiplos e delicados lados da questão. Consultarei meus venerandos colegas." (In Arq. C. R. B.)

Em carta de 20 de janeiro de 1890, D . Macedo se dirigiu a Rui pleiteando o casamento civil facultativo, (carta in Arq. C. R. B.)

(13) Cf. carta de D. António de Macedo Costa a Rui, em 9 do janeiro de 1890, in Arq. C. R. B.

(14) Max Leclcrc, obr. cit., p. 120. (15) Cf. carta de António jacobina a Rui, em 29 do janeiro de 1890,

in "Mocidade e Exílio", p . 159. (16) Devem ser consultados os artigos de Rui, no fim do Império,

e nos quais previu com admirável acuidade a deposição de Ouro Preto. (17) Cf. nota autografada de António Azeredo, s. d., e existente no

Arq. C. R. B. Nela historia Azevedo os pedidos de demissão de Rui. durante o Governo Provisório. Como é sabido, o decreto de 17 de janeiro de 1890 provocou grave crise no seio do Governo Provisório, havendo Rui solicitado três vezes exoneração: a primeira verbalmente a Deodoro, que lha negou assegurando que a demissão de Rui importaria na dele (V. "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 267); a segunda por carta de 27 de janeiro a Deodoro; e a terceira na seguinte carta dirigida, em 30 de janeiro de 1890, a Aristides Lobo: "Como vejo que continua pendente a crise ministerial, não obstante a resolução que, em minha presença, tomou ontem S. Ex. o sr. Marechal chefe do governo provisório, reitero o meu pedido de demissão, já inúmeras vezes feito, e, rogando-lhe o obséquio de ser o portador dele, espero que me fará a honra de representar-me na conferência de hoje." Rui, entretanto, compareceu à reunião ministerial de 30 de janeiro, havendo prevalecido o seu ponto de vista (V. Dunshee do Abranches, "Atas e Atos do Governo Provisório", p . 79). Rui, aliás, várias vezes se refere ao incidente, especialmente no "Relatório", p . 17, e no volume "Finanças e Política", dando sempre a maior importância à solidariedade que então teve do ministério. A uma carta do Fonseca Hermes, socro-

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i.'ino de Deodoro, de 5 de fevereiro de 1890, e na qual aquele o felicitava |x:lo triunfo obtido, pôs Rui esta nota: "Abraça-me pela vitória o Hermes", llá, aliás, outra carta, de 31 de janeiro, também de Fonseca Hermes, con-1,i itulando-se com Rui. (In Arq. C. R. B.) Sobre o episódio também é importante registrar que em 23 de janeiro de 1890, Deodoro assim se dirigia a Rui: "De posse da sua carta relativa ao Banco dos E. U. do llrasil o felicito pelo grande triunfo que obteve. O muito dedicado amigo <• oomp.° Deodoro da Fonseca".

(18) Cf. Júlio de Mesquita, "Rui Barbosa, reminiscências", in "Revista . 1 . Brasil", vol. 22, p . 199.

(19) Cf. carta de Rui Barbosa ao cons. Dantas, em 6 de fevereiro <!e 1890, (in Arq. C. R. B.), e na qual diz: "Em ambas as vê/.es, em que deixei de falar a V. Ex. foi por embaraço público, como o de ontem, em que, como é sabido por toda a imprensa, tivemos conferência ministerial do meio-dia às 5 /2 . Não sei, pois, que motivos poderia ter V. Ex. para desconfiar. Quer a V. Ex., quer ao presidente do Banco do Brasil, nunca dei razões para tal."

(20) Cf. carta de Rui ao cons. Dantas, em 28 de fevereiro de 1890, In Arq. C. \\. B.

(21) A nomeação do cons. João Alfredo foi proposta a Rui pelo cons. Dantas o Francisco «lo Paulo Mayrink em carta ' reservadíssima" de 30 de abril de 1890, e a revelia de João Alfredo, Rui chegou a mandar lavrar o decreto de nomeação, <]ue se encontra in Arq. C. R. B., mas João Alfredo não aceitou. Em artigo publicado no "O Pa í s ' de 30 de setembro de 1892, e no qual respondia a uma crítica do "Jornal do Comércio", dizia a Rui: "Na administração respeitei as posições adquiridas, acolhendo sem desconfianças os servidores do Império".

(22) Cf. carta de Rui a Hermes, em 8 de março de 1890, copia in Arq C. R. B.

Ainda sobre o mesmo assunto enviou Rui ao dr. Fonseca Hermes a seguinte carta, em 12 de março de 1890: "Para certeza da verdade e segurança futura do meu nome, necessito que certas circunstâncias do incidente terminal da questão bancária fiquem autenticadas pelo vosso testemunho leal e incorruptível.

Eu enunciarei sucessivamente cada uma dessas circunstâncias, esperando que ao pé destas as confirmeis, se fôr exato a minha exposição.

(l.°) Na vossa visita, em companhia do dr. Cesário Alvim, à minha casa, na manhã de domingo, 9 do corrente, declaraste-me não terdes em mira senão intuitos "de amizade" para comigo e asseverastes-me ser absolutamente inverídica a notícia, publicada pela Gazeta nessa data, de uma embaixada daquele meu colega, por parte do marechal, para resolver sobre a questão bancária.

(2.°) Na conversa, que então se travou entre nós a tal respeito, nem vós nem êle me impusestes, ou sequer me ditastes solução alguma para o assunto.

(3.°) Pelo contrário, me declarastes que o marechal deixava essa solução ao meu juízo, que continuava a confiar sem reservas em mim, fazendo comigo questão de q. eu não deixasse de ser ministro.

(4.°) No decurso dessa palestra, disse-vos eu: "A solução do incidente já está rascunhada por mim, que até já a reduzi a escrito." E, tirando da algibeira uma nota, mostrei-vos a vós ambos, redigida já em forma de

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214 A VIDA DE RUI BARBOSA

artigos, a ideia da emissão no duplo sobre o valor de vinte mil contos ao B. do Brasil e ao B. Nacional.

(5.°) Em seguida, no mesmo ato, mandando vir papel do decreto, vos vos incumbistes de copiar o meu rascunho, transcrevendo-o literalmente, já em forma oficial, e levando-o, nesse mesmo dia, ao marechal, que o adotou, e assinou, comunicando-me vós pelo telefone estar êle mt.° contente.

(6.°) Tendo uma proposta, na noite desse dia, pelo dr. Matto Machado, em nome do Sr. Mayrink, a redução do capital do B. dos Estados Unidos do Brasil a cinquenta mil contos, redigi novo decreto, acrescentando ao artigo concernente à emissão dos dois outros bancos, que elevei então a. cinquenta mil contos cada um, novo artigo consagrado a redução da emissão sem estabelecimentos, e precedendo de considerandos o ato assim aumentado e transformado.

(7.°) No dia seguinte (10), pela manhã, com surpresa vossa, fui eu em pessoa levar a vossa casa o novo decreto, pedindo-vos o favor de submetê-lo à assinatura do general, substituindo por êle o primeiro, e de levá-lo, ao meio-dia, ao Tesouro, onde eu queria lê-lo, a 1 h. da tarde, aos presidentes dos três bancos.

(8.°) Comparecendo ali à hora aprazada, com o segundo decreto e o primeiro, ambos firmados pelo general, inutilizamos o primeiro; e então pela primeira vez, sem que em tal ideia se tivesse tocado até então, surpreendi-vos com o pensamento, que pouco antes me acudira, de estender ao B. do Brasil o contrato de resgate do papel-moeda. Redigi ali mesmo a minuta. Vós vos propusestes a copiá-la em forma de decreto. Remetemo-la, ato contínuo, pelo Sr. António Azeredo, ao marechal, de cujas mãos voltou logo assinada, entrando eu então para o gabinete imediato, onde os presidentes dos três bancos me aguardavam.

Peço-vos atesteis aqui mesmo se esta é, ou não, a expressão escrupulosamente veraz da realidade. Vosso am.° e coll.a mt.° obr.° Rui Barbosa .

(23) O anteprojeto da comissão presidida por Saldanha Marinho foi apresentado ao governo em 29 de maio de 1890, e resultou de três pro-jetos: um de Américo Brasiliense, outro de Magalhães Castro, e o terceiro de Santos Werneck e Rangel Pestana. Quanto à elaboração do projeto definitivo de autoria de Rui, são vários os depoimentos existentes. Contudo devem ser consultados os três artigos publicados na "A Noticia (Rio, em 12 15 e 22 de outubro de 1894), e sob o título comum de Como se tez a Constituição da República." Nenhum está assinado. Informa-nos, entretanto, o sr. Américo Jacobina Lacombe, que o primeiro é de Campos Sales, e o segundo de Tobias Monteiro, que defendeu Rui, então exilado, e de quem o sr. Lacombe recebeu a informação sobre a autoria dos mencionados artigos. O terceiro artigo traz as iniciais "P. S." Rui Barbosa, em artigo publicado na "A Imprensa", 29 de setembro de 1900, sob o título "Páginas do Governo Provisório", refere-se à elaboração do projeto de Constituição. Sobre a veracidade da narrativa, pediu Rui o depoimento de F. Glicério, que assim respondeu: "Rio, 3 de outubro de 1900. Caro e Exmo. Amigo Dr. Rui Barbosa. Respondo a vossa carta datada de ontem. Nos artigos editados pela Imprensa sob o título "Páginas do Governo Provisório", os fatos vêm narrados com perfeita fidelidade, segundo a memória e os apontamentos que deles conservo.

O escrito firmado com a vossa assinatura debaixo da epígrafe Um requerimento", refere não menos fielmente o incidente havido na ocasião

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em que se lavraram os decretos da nomeação dos novos ministros; pois, efetivamente, graças a vossa advertência, pude em tempo concorrer para que se corrigisse o equívoco, que se dera então, da troca do nome do Sr. Campos Sales pelo do Sr. Rangel Pestana, para a pasta da justiça no Governo Provisório.

Somente peço licença para fazer a retifieação seguinte: a vossa aprovação à lista dos ministros foi dada depois quo ela fora combinada na manhã de 11 de novembro de 1889, na casa n.° 37 da Rua Senador Vergueiro, onde eu, Aristides Lobo e o Sr. Quintino Bocaiuva nos reuníramos para esse e outros fins indicados na noite anterior na residência do Marechal Deodoro. O assunto desta resposta nada tem do reservado. Saudações. Vosso Am.° Afs.° Francisco Glicério."

(24) In "A Notícia" de 15 de outubro de 1894, artigo citado. (25) Max Leclerc, obr. cit. (26) In Arq. C. R. B. está, com data de 2 de setembro de 1890,

o relatório apresentado a Rui pelo cons. José Carlos Rodrigues. Sobre o assunto existem também outras cartas dôsto a Rui, e que completam as informações sobro a missão de quo fora incumbido.

(27) In "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p. 30 e segts. Rui explica os unitivos que o levaram a variar nas questões do lastro das emissões e da pluralidade de bancos emissores.

(28) V. documentos já citados de José Carlos Rodrigues, in Arq. C. R. B. (29) Cf. carta de Carlos Aguiar a Rui, em 11 de abril de 1890, in Arq.

C. R. B. ' i (30) Cf. carta de Deodoro a Rui, em 6 de maio de 1890, in Arq.

C. R. B. Rui, in "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 277, narra o episódio da renúncia do Chefe do Governo Provisório, o qual na ocasião revelara apenas à mulher e a Tobias Monteiro.

Rui fora nomeado vice-presidente da República em 31 de dezembro de 1889 e se exonerou em 17 de agosto de 1890, quando foi substituído por Floriano Peixoto, escrevendo a Deodoro a seguinte carta: "Quando V. Ex. a me deu a insigne honra de nomear-me 1.° vice-chefe do Estado, procurei declinar dessa imensa distinção, tão superior ao meu merecimento.

Cedi, porém, às suas ordens, compreendendo o pensamento político, que nelas se encerrava, de rebater a increpação de exclusivismo militar, irrogada à Revolução pelos seus inimigos. Agora que está satisfeita, nesta parte, a intenção de V. Ex.a , cumpre-me, obedecendo à minha consciência, voltando à minha deliberação primitiva, renunciar a uma dignidade, que presentemente não me cabe.

Espero que V. Ex. a , reconhecendo os motivos superiores, que me inspiram, atender-me-á neste pedido, expressão dos interesses do país e da lealdade, com que me esforço por servir a causa da República."

(31) Está in Arq. C. R. B. o autógrafo com a data de 13 de maio de 1890. Há quem acredite que a carta chegou a ser entregue a Deodoro, pois, na correspondência de Deodoro para Rui existem cartas em que aquele se assina ou trata o último com a abreviatura "comp.", que seria a abreviação da palavra "compadre". Entretanto, como tal expressão aparece em cartas anteriores a 13 de maio de 1890, parece-nos ser uma abreviatura de "companheiro", e não de compadre".

(32) O próprio Rui, na conferência proferida em Santos, em 23 de dezembro de 1909, menciona a frase de Deodoro. Quanto à resposta de Uni está no artigo da "A Notícia", de 15 de outubro de 1894. Relativamente

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216 A VIDA DE RUI BARBOSA

à ação que Rui exerceu junto a Deodoro consulte-se o discurso do sr. João Mangabeira, na Câmara dos Deputados, em 19 de maio de 1923, _e no qual também está narrada a ação de Rui na elaboração da Constituição de 1891. V. também Silvio Romero Filho, in O Imparcial de 18 de fevereiro de 1913, e Rui Barbosa, "Obras Completas ,, vol. XIX t i p . 265 e segts. Aliás, numa frase resumiu Rui a sua posição junto a Dfodoro. "Servi-o resistindo, resisti-lhe esclarecendo-o, e nunca o vi esclarecido^^deixar de capitular." (V. João Mangabeira, "Rui, o Estadista da f ^ T n ' Rio, 1943, p . 60.) Quanto à carta de Rui a Francisco Gliceno é de 20 de novembro de 1890, in Arq. C. R. B.

(33) Cf. carta de Rui a Francisco Glicéno, em 28 de junho de 1890, in Arq. C. R. B. . ,

(34) Saraiva não quis fazer parte das chapas então apresentadas na Bahia. É o que informa o telegrama de João Sequeira Cavalcante, chefe de Polícia da Bahia, a Rui, em 10 de julho de 1890: Chapa senatorial, Saraiva consultado não aceitou mas deseja ser eleito fora dela. Ouvidos amigos fica seu lugar em branco apresentando-se Rui e Virgílio (Damásio) somente."

(35) V. as cartas do barão de Penedo a Rui, em 23 de novembro e 1.° e 14 de dezembro de 1889, in Arq. C. R. B. Sobretudo na última estranha Rui se envolver em matéria não pertinente ao ministério da^ Fazenda.

(36) O primeiro pedido de Rodolfo Dantas a Rui para "em bons termos noticiar, reconhecendo os méritos e serviços literários de Paranhos" é de 7 de junho de 1890 (Vichy). Depois, em 24 de julho de 1889, em P. S., Rodolfo Dantas insistia: "Não esqueça a nota do livro de Levasseur e Paranhos, estimaria muito poder dirigi-la a este último pelo vapor do fim do mês." Em 3 de setembro de 89, enviando um exemplar do "Brésil", tornou ao assunto. Rui, afinal, escreveu longo artigo no "Diário de Notícias", em 14 de outubro de 1889, e do qual Rio Branco mandou imprimir uma "plaquete" (ed. de 100 exemj^lares, conforme carta u Rui em 28 de dezembro de 1889). Depois, proclamada a República, escreveu Rio Branco o Post-face, de que nos deu notícia na seguinte carta: "Liverpool, 12 de fevereiro de 1890. Exm.° Sr. Dr. Rui Barbosa. Hoje recebi do nosso amigo Rodolfo Dantas um telegrama relativo ao Post-face que eu pretendia intercalar nos exemplares ainda não distribuídos ou vendidos do Brésil. O telegrama diz: — Aprovado. Entendi, portanto, que a prova fora submetida a V. Ex.° e aprovada, e hoje mesmo telegrafei à tipografia Lahure para que fizesse imediatamente a tiragem e a intercalação nos exemplares disponíveis. Junto aqui a última prova depois de alguns pequenos retoques do Sr. Levasseur, que estava querendo fazer grandes alterações como V. Ex. a teria visto pela carta que dele recebi e logo mandei ao Rodolfo.

O Post-face era necessário para dar notícia exata dos últimos acontecimentos políticos e habilitar o leitor do Brésil a conhecer as principais reformas decretadas e as modificações que devem ser feitas no capítulo — Governo e Administração.

Espero poder remeter por esta ou pela seguinte mala os exemplares do Brésil destinados a V. Ex.a , ao Rodolfo, ao Barão Homem de Melo e ao Gusmão Lobo. A demora tem sido do encadernador.

Nos dois retalhos juntos V. Ex. a poderá ver que tenho desmentido sempre que posso as falsas notícias que de Nova York, Hamburgo, Lisboa e Paris têm sido espalhadas com o fim de produzir a baixa dos nossos

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fundos. Sei que há aqui pela Europa quem escreva ou telegrafe para os nossos jornais dando notícias de imaginárias conspirações, ou de organização de um partido restaurador. Tudo isso é invenção dos que se querem recomendar para empresas ou comissões do governo. Se um partido restaurador pudesse ser organizado, o seu campo de ação seria o Brasil e não a Europa. V. Ex. a pode estar certo de que todos os brasileiros que têm alguma coisa a perder e todos os estrangeiros que mantêm relações de comércio com o Brasil ou que empregaram os seus capitais em títulos da nossa dívida o em empresas brasileiras, desejam sinceramente que todas as notícias do Brasil sejam tranquilizadoras e mostrem sempre que o governo caminha com prudência e que o país vai atravessando no meio da maior calma este difícil período de transformação. Eles nada têm n ganhar com o descrédito do Brasil: têm tudo a perder com isto. Mandei o mês passado no Rodolfo uma página do Times para que êle visse quo apesar do abalo qne a inesperada notícia da nossa Revolução produziu nos mercados de Londres e Paris, e apesar dos manejos que os especuladores têm posto em prática no intuito de comprar a vil preço os fundos brasileiros, estes não têm cotação inferior aos da República Argentina, que emprega todos os meios ao seu alcance para ganhar a confiança da Europa.

Nesta quadra, sobretudo, seria da maior conveniência telegrafar o governo à Legação em Londres ou em Paris, para que elas transmitissem aos jornais, todas as notícias que pudessem mostrar os progressos que vamos realizando. O governo argentino procede assim, noticiando logo pelo telégrafo a inauguração de qualquer secção de caminho de ferro, o crescimento das rendas públicas, a entrada de imigrantes, etc.

Estou escrevendo a V. Ex. a com uma dificuldade, debaixo de um acesso febril. Peço-lhe que disponha do pequeno préstimo deste De V. Ex. a Mio. a. to ven.or obr.°, Rio Branco".

(37) Cf. carta de Rio Branco a Rui, em 26 de dezembro de 1889, in Arq. C. R. B.

(38) Cf. carta de Latino Coelho a Rui Barbosa, em 20 de fevereiro de 1890, e anexa à do Diretório do Partido Republicano Português a Rui, em 23 de fevereiro de 1890. Ambas in Arq. C. R. B.

(39) Cf. Rui Barbosa, Relatório, 1891. (40) In "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 21. (41) Cf. Batista Pereira, prefácio à 2 . a ed. das "Cartas de Inglaterra",

p. 56. (42) Cf. Rui Barbosa, discurso na Assembleia Constituinte, em 16 de

dezembro de 1890. Sobre o assunto consulte-se Américo Jacobina Lacombe, Rui Barbosa e a primeira Constituição da República (Rio, 1949); e Pedro Calmon, prefácio ao vol. XVII, tomo I, das Obras Completas de Rui Barbosa.

(43) A reunião do ministério fora inicialmente marcada para 16 de janeiro, conforme se verifica da carta de Fonseca Hermes a Rui, em 16 de janeiro de 1891, e na qual lhe diz que o generalíssimo fazia questão da presença de Rui naquele dia "às 7 horas da tarde, no palácio, para uma conferência ministerial". Isso é confirmado pela carta de Carlos Aguiar a Rui, em 17 de janeiro de 1891, e na qual informa: " . . . o motivo da conferência ministerial, era para resolver-se a questão da eleição dos Estados, do cheque (?) ao Alvim, e da substituição do Benjamim. O General transferiu a conferência porque quer a tua presença, entendo que deves i r . . Rui, no entanto, escreveu a Deodoro, exeusando-se de comparecer por mo-

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218 A VIDA DE RUI BARBOSA

tivo de saúde, e emitiu o seu parecer contrário "À concessão reclamada para o Porto das Torres", conforme carta de 17 de janeiro de 1891, e publicada in "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 272. Não se conformou, porém, Deodoro com a excusa, e Rui, no mesmo dia, às 5 horas da tarde, escreveu-lhe nova carta, que é a seguinte: "Generalíssimo. Uma carta do Dr. Fonseca Hermes que acabo de receber, declara-me que V. Ex. a "faz questão da minha presença" numa conferência de hoje.

V. Ex. a bem sabe que nunca me recusei a serviços e sacrifícios. Mas acho-me em tal estado de incómodo, com dores que me agoniam, e dificilmente me deixam falar, — que me vejo obrigado a insistir na minha recusa, que se funda em motivo superior à minha vontade.

Sinto todos os dias, cada vez mais, que a minha saúde, gravemente prejudicada pelo excessivo trabalho destes quatorze meses, necessita de um repouso, do qual depende até minha vida, e que mais uma vez suplico a V. Ex. a Sempre, com o mais profundo respeito, de V. Ex. a am.° m.to obr.°".

Além dessa vez, e das três outras a que já fizemos referência na nota "17", Rui em mais seis ocasiões solicitou a Deodoro a sua exoneração do ministério: 1) em carta de 8 de março de 1890 dirigida a Fonseca Hermes, secretário de Deodoro (Rui, naturalmente por equívoco, dá a data de 6 de março, in "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 268); 2) em 14 de maio, na reunião do ministério, devido à deposição de Francisco Silva Tavares, no Rio Grande do Sul, em 13 de maio de 1890; 3) em 5 de agosto de 1890, conforme carta, que esteve em mão de Francisco Glicério, e motivada por um incidente pessoal no gabinete; 4) em 15 de agosto de 1890, por carta dirigida a Deodoro; 5) cm carta de 11 de novembro de 1890, por carta a Deodoro, devido a uma concessão a Carneiro Brandão; 6) em 16 de dezembro do 1890, por carta dirigida por Tobias Monteiro, em nome de Rui, ao Tte. Coronel Lobo Botelho, f, celebro caso da Quinta do Caju. (Sobre esses episódios pode sor consultado o depoimento do Rui, in "Obras Completas", vol. XIX, pgs. 208 a 272 o 303.)

(44) Rui várias vezos teve de vir a campo para defender a sua administração à frente do Ministério da Fazenda. São cinco, poréin, os documentos fundamentais em que explanou e justificou a orientação traçada, e sobre cujo acerto já não pairam mais dúvidas, tantos os depoimentos cm favor das medidas preconizadas pelo ministro da Fazenda do Governo Provisório (V. João Mangabeira, '"Rui, o estadista da República", p . 47 e segts. e discurso na Câmara dos Deputados, em 19 de maio de 1923): 1) discursos de 3 de novembro de 1891, e 12 e 13 de janeiro de 1892; 2) "Relatório do Ministro da Fazenda", Rio, 1891; 3) discurso de Campinas, em 19 de dezembro de 1909; 4) Manifestação à Nação, artigos publicados entre 20 de janeiro e 1.° de fevereiro de 1892; 5) "Liquidação Final", artigos publicados na "A Imprensa" entre 24 de setembro de 1900 e 12 de outubro do mesmo ano.

XVII — FAUSTO E MEFISTÓFELES

Eu não me atrevo a dizer, algumas vezes, a verdade, senão porque percebo que estou fora do -meu tempo.

f~\ GOVERNO proporcionara a Rui amargas decepções. Co-^ - ^ meçara pensando ter alcançado a oportunidade para realizar as ambições do seu espírito inquieto e sonhador, e só encontrava ódio e incompreensão.

Durante um ano, a acreditar nas críticas que o lapidavam, fizera o papel de um equilibrista sobre a corda bamba das finanças. Mas, apesar do infortúnio, os adversários continuavam a apedrejá-lo impiedosamente. A circulação em ouro fora o orgulho do Império. Pessoas lembravam-se do tempo em que, sob a alegação de serem muito pesadas, recusavam receber moedas com a efígie do Imperador, e achavam detestáveis aquelas inovações financeiras, cuja responsabilidade imputavam ao ex-ministro da Fazenda.

Muito pior eram as acusações à sua honestidade. Atribuiam-Ihe vima fortuna de vários mil contos ganhos em especulações inconfessáveis, falavam de banqueiros de Londres e Frankfort (1) lendo à sua ordem somas fabulosas e não faltavam pessoas ingénuas e de boa fé para acreditarem.

A baronesa de Alenquer, por exemplo, aparentada com Maria Augusta, assim resumia as suas impressões escrevendo ao filho: "o general das finanças, quando esteve na Baía, não havia uma loja que lhe fiasse uma gravata de 2$000; hoje tem palacete, dinheiro na Europa, mandado guardar por lá, para o que der c vier." (2) E em outra carta: "o tal das finanças, que nos tem derrotado, dizem que está podre de rico; que a mulher é quem tem os melhores brilhantes do Rio, e não sei quantas baixelas de p ra ta . . . " (3) A baronesa nada entendia de finanças, e nem sequer morava no Rio. Mas, não ouvia ela dizerem todos a mesma coisa? Sobretudo a nobreza, arruinada pela abolição, vingava-se encampando estas versões desairosas sobre a fantástica prosperi-

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220 A VIDA DE RUI BARBOSA

dade de Rui. Enfim, a desonestidade passara em julgado. O país inteiro repetia-a em coro, e seria bem difícil convencê-lo do contrário. Ao ser Rui eleito, por esse tempo, presidente duma companhia de seguros, onde trabalhava com Jacobina, o barão Coraldo de Rezende, parente de Jacobina, logo avisara a este: ". . . desde já previno que o nome do Presidente é muito antipático. O Rui teve a habilidade de sair talvez pobre do Ministério, mas com a fama de possuir muitos contos! e para muita gente — hoje — o nome dele à testa de uma empresa pesteia-al" (4)

Por longos anos, como nódoa indelével sobre a sua integridade, estas opiniões o acompanharam insistentemente. Tudo bem diferente do que imaginara. Raramente vinha-lhe uma palavra de conforto, como a que então lhe mandou Estanislau Zeballos, ao apresentar-lhe o novo ministro da Argentina no Brasil, Augustin Arrago. "Un hombre notable como ud. tendrá, sin duda, placer ti\ cultivar las relaciones dei sr. Arrago, quien a su vez ha de sentirse satisfecho de la amistad de una de las primeras ilustra-ciones dei Brasil y de América. He seguido ud. con el más vivo interes CJI la árdua y patriótica tarea dei Ministério de Hacienda y ho deplorado como americano y como amigo sincero dei Brasil su separaeion de] Gobierno. He reunido sus trabajos de Hacienda, que sin vacilar colifico de sábios y por los qualcs felicito a ud. de un modo sincero y cordial". (5) Era grato receber cartas assim. Mas, que importava, se no Brasil mostravam-se tão severos os juízos a respeito dele? Sem dúvida, o governo fora para Rui um desastre irreparável.

Também perdera a amizade dos Dantas. Ambos ainda estavam magoados, e o velho Dantas viajara para Europa, em busca de médicos e ares, que lhe melhorassem o coração abalado. Em Paris, jantara com o Imperador. Achara-o fisicamente alquebrado, mas perfeitamente lúcido, e escreveu ao conselheiro João Alfredo: "Nunca deixa perceber o mínimo ressentimento contra ninguém!" (6) O oposto de Rui, a quem a queda tornara suscetível e irritável, parecendo desconfiar até dos amigos mais íntimos. Azeredo, por exemplo, via-se forçado a justificar-se: "Faça, porém, o juízo que quiser de mim, mas pelo amor de Deus, não me acredite ingrato nem desleal". (7)

Embora ciente das acusações lançadas sobre si, Rui não tinha ânimo para defender-se. Ele, que sempre fora tão ágil e pronto em replicar aos adversários, permanecia silencioso. A provação, muito rude, abatera-o profundamente. Se falasse, quem o ouviria

FAUSTO E MEFISTÓFELES 221

com boa vontade? E, exausto, explicava a própria mudez, declarando não desejar o sacrifício de Sisifo. (8)

Nenhuma dessas razões, no entanto, o teria feito calar-se, se não se sentisse doente. Trabalhara infatigavelmente na organização da nova República, e a saúde não suportara esse esforço demasiado. Desequilibrara-se-lhe o sistema nervoso. Examinado nessa ocasião por um médico famoso, êsle atestou estar Rui "sofrendo de neurastenia de forma cerebral, determinada pelo contínuo e exagerado trabalho intelectual, a que se; tem dedicado nestes últimos tempos", e aconselhou "um tratamento enérgico e metódico, não só terapêutico, como principalmente higiénico, tendo por base o maior repouso possível da inteligência, a par de um desenvolvimento gradual e progressivo da atividade física". (9) Como sempre acontecia após essas fases de intenso labor mental, êle precisava descansar. E, não podendo deixar a Capital devido às suas obrigações de advogado, tudo se conciliou com a mudança para a Tijuca. Afastar-se-ia do mar, do Flamengo. Um intervalo breve. Breve trégua em meio da peleja incessante e injusta.

o o o

Nove meses durou o silêncio. Prometeu parecia resignado ao suplício.

Nessas ocasiões, como um caramujo intimidado recolhendo-se à concha protetora, Rui refugiava-se na sua vida interior. "A injustiça, dizia, não abalará meu ânimo, habituado a procurar dentro de mim mesmo esta força de que tem vivido e de que há de continuar a viver". E a calúnia e a injúria continuaram a devorar-lhe a honra. Por quanto tempo suportaria, conformado, o castigo?

Outro ministério fora organizado, e o barão de Lucena, antigo monarquista, fizera-se o braço direito de Deodoro. Escolha desastrada e que irritara os republicanos. Alencar Araripe, agora responsável pelas finanças, ensaiava modificações ao plano de Rui. Emitia-se ainda mais, sem lastro, sem ouro, e sem resgate. Extin-guira-se também o imposto de importação em ouro, e o câmbio cairá de 22 para 16. Mas, para o público, Rui ainda continuava o grande culpado.

Em novembro, êle extravasou. Era-lhe impossível permanecer indiferente ao seu próprio julgamento. E, no dia 3, perante o senado, começou a defender-se. Justificava-se com exemplos ocorridos na Inglaterra, na Itália, na França, nos Estados Unidos, e

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222 A VIDA DE RUI BARBOSA

isso levou um historiador a dizer que "traçava no papel um Brasil formidável, uma espécie de repetição dos Estados Unidos, cortado de estradas de ferro, em pleno triunfo da máquina. . ." (10) Sobre os ombros de Ouro Preto, Rui jogava, com justiça, uma boa parte dos seus malogros:

"O edifício levantado na véspera pelo meu antecessor, declarou, caía pois de si mesmo em ruínas pela inconsistência dos seus alicerces. A revolução, por este lado, foi uma circunstância providencial para os autores da grande fantasmagoria, que, graças a esse fato, puderam ver rebentar em mãos alheias a explosão preparada pelos seus erros". (11)

Mas, o ponto nevrálgico era o jogo. Por que o permitira o Governo Provisório? indagavam os seus adversários. Rui respon-deu-lhes, confessando ter receado estancá-lo de um golpe. Não fizera como Alencar Araripe, que matara tanto o jogo como as iniciativas úteis, promulgando drástica reforma da lei sobre sociedades anónimas. "As loucuras de uma crise de especulação não se cortam cirurgicamente, com a violência e o terror: sanam-sc, digamos assim, pelos meios fisiológicos, a poder de higiene, com tolerância e firmeza, reprimindo as demasias, sem intervir nas fontes espontâneas do movimento e da vida. Não pensava assim o meu sucessor: o processo hipocrático de S. Ex. consistiu em curar o doido, cortando-lhe a cabeça (risos gerais da assistência). As transações foram de um momento para outro fulminadas de paralisia. A praça retraiu-se. A desconfiança e o pavor cerraram, em espasmo irredutível, os canais da circulação comercial (apoiados), sucedendo a uma exageração de atividade, que devia reprimir-se pouco a pouco, a algidez, a adinamia, o colapso orgânico, contra o qual não há mais tónicos, nem revulsivos, que possam operar a reação". (12)

Assim, durante quatro horas, Rui defendeu-se desesperadamente, aparando a cada instante os golpes dos inimigos, que o fustigavam com apartes. Algumas vezes o presidente teve de intervir, para que deixassem o orador continuar, mas, enquanto o Regimento lhe permitiu, êle se conservou na tribuna. Afinal, quando teve de parar, sendo impossível esconder o sol, todos lhe reconheciam o talento e a cultura. Poucos, porém, estariam ainda dispostos a absolvê-lo.

Contudo, no dia seguinte não lhe foi possível continuar a defesa. Nessa mesma noite Deodoro dissolveu o Congresso e, ainda uma vez, modificava-se subitamente a fisionomia política do Brasil. Bem que êle avisara a Rui: — "o senhor ainda sairá

\

FAUSTO E MEFISTÓFELES 223

daquele congresso dissolvido por mim, como António Carlos da Constituinte dissolvida pelo primeiro Imperador". Cumpria-se assim a previsão.

Não se poderia dizer que o acontecimento fosse surpreendente. Desde a eleição para Presidente da República, realizada no dia seguinte ao da promulgação da Constituição, em 24 de fevereiro, era manifesta a luta entre Deodoro e o Parlamento. Começavam a esquecer o proclamador da República, e este apenas conseguira 129 votos contra 97 dados a Prudente de Morais, o soturno presidente da Constituinte, enquanto Floriano, candidato à vice-presidencia, alcançara 153. Números expressivos. Mas, ainda mais significativa fora a acolhida dispensada aos dois eleitos no momento de prestarem o compromisso. Num contraste chocante com os aplausos calorosos e prolongados dispensados a Floriano, Deodoro atravessara a sala do Congresso entre palmas escassas. (13) De nada lhe valera o gesto de galanteria, atirando um beijo para a tribuna reservada às senhoras.

Daí por diante as divergências, haviam-se agravado constantemente, e tornara-se impossível coexistirem os dois poderes.

Mas, durante a confusão estabelecida pela luta política, uma pessoa pelo menos compreendera com nitidez e perspicácia apro-ximar-se a sua hora — Floriano. Êle sempre fora assim: não corria, nem parava; mas, conquistado um degrau, logo ambicionava galgar o seguinte. Que lhe restava depois de eleito vice-presidente da República?

Fiel ao seu temperamento, Floriano agira com prudência. Conservara coberta a retirada e muitas vezes preferira influir apenas por discreta omissão. Discreta e expressiva. Assim, sob o pretexto de necessitar de repouso, retirara-se durante algum tempo para uma cidade do interior, Barbacena, donde acompanhou com argúcia os acontecimentos, sem aprovar ou negar o papel, que os inimigos de Deodoro esperavam fazê-lo representar. "Bem vedes, meu ilustre amigo, escreveu êle a Rui, como tudo isto vai mal! E é chegada a ocasião de unirem-se os patriotas para salvação desta república". (14) E pouco depois: "Quanto ao meu regresso à Capital Federal nada posso assegurar, porquanto as escaras dos braços e as outras ainda não estão cicatrizadas. Deveis compreender a minha contrariedade em não poder ir trabalhar ao lado dos bons amigos". (15) Frases sibilinas, vagas. Nenhuma alusão direta a Deodoro. O bastante, entretanto, para não ser esquecido, e manter acesas as brasas, que, vagarosamente, destruíam o governo.

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224 A VIDA DE RUI BARBOSA

A dissolução do congresso foi uma espécie de toque de reunir. Ou os adversários de Deodoro conseguiam opor a força à força, ou estariam esmagados. Floriano também sabia disso. Com rapidez, êle se pôs em contato com os chefes militares, sondou a opinião dos quartéis, e balanceou os elementos de que poderia dispor, para enfrentar a situação. Afinal, concluiu que a partida lhe seria favorável. A alguém que lhe falara em derramamento de sangue, respondera calmamente: — "Não, vamos ver se fazemos isso sem cadáver". (16) E a 23 de novembro, tendo-o como chefe, irrompia a revolução, para restabelecer o congresso dissolvido.

Não houve luta. Deodoro, cuja saúde, abalada por sucessivas crises cardíacas, era cada vez mais precária, preferiu renunciar a resistir. E nesse mesmo dia, na qualidade de vice-presidente da República, Floriano tomou o poder. A lei estava salva.

Rui ficou satisfeito. Aquela fácil vitória da legalidade pare-ceu-lhe de bom augúrio, e apressou-se em telegrafar ao governador da Bahia, anunciando-lhe o triunfo da legalidade. "O governo de Floriano, dizia, restaurando a legalidade vem fortalecer a República, abalada pelo golpe de estado, e reanimar a confiança. É digno de apoio de patriotas como V. Ex., cuja conservação no Governo da Bahia é indispensável". (17)

Foi curioso o período que se seguiu à vitória de Floriano. Excetuado o do Pará, todos os governadores haviam apoiado o golpe de Estado de Deodoro, e agora, animadas pelo exemplo do centro, as oposições locais julgavam o momento asado para assai tarem o poder.

Também na Bahia um motim ameaçava aquele governador a quem Rui telegrafara com entusiasmo. Que diria Floriano! Iria desampará-lo? Azeredo foi de opinião que Rui o procurasse: "a tua presença em casa do Floriano, creio, será salvadora, porque estou convencido que êle não quer nem consente em deposições". (18) Conselho sensato. E no mesmo dia Rui pôde comunicar aos amigos aflitos: "Recebi telegrama agora e corri ao Floriano. Êle manda dizer que confiem. Não esmoreçam. Mantenham a todo o transe a posição legal. Seguirão daqui recursos. Legalidade será restaurada." (19) Aliás, não era de esperar outra coisa. Não tinham sido sempre tão bons amigos?

O entendimento durou pouco, no entanto. Entre prometer e fazer havia grande distância, e Floriano não deu qualquer demonstração de ter pensado seriamente em cumprir o que dissera. Por que? Não estimaria contar entre os seus adeptos com aquele

FAUSTO E MEFISTÓFELES 225

homem ilustre? Isso era certo. Contudo parecia desejar primeiro experimentar-lhe a capacidade de submissão. Reservara-lhe o papel de Fausto — êle seria Mefistófeles. Assim, se quisesse continuar aquecido pelo Poder, Rui deveria vender-lhe a alma e despojar-se da sua consciência de liberal e de jurista, para assistir silencioso ao sacrifício da Lei.

Verificou-se então o inevitável. Nessas ocasiões, sempre que o destino lhe confiava a escolha do caminho a seguir, Rui jamais decidia como um ambicioso insofrido. A timidez, o orgulho, <> próprio instinto da glória, davam-lhe uma coragem singular para não trair as suas convicções. Sem vacilar, êle se recusou a participar da comédia que ia ser representada. Marcharia conscientemente para o ostracismo, e orgulhava-se da sua via-crucis: "Podendo ter sido o sucessor de Floriano Peixoto, escreveu Rui, a quem transmiti voluntariamente, no Governo Provisório, a vice-chefia do Estado, se me dispusesse a cultivar a estima que não cessou de me dar provas àquele tempo, optei pela luta com a sua ditadura, pelo exílio e pela perseguição." (20) Não fora inutilmente que anotara um dia esta frase de Sócrates num diálogo com Glaucon: "Será a oposição a arte de chegar ao poder pelo caminho mais curto e menos reto?" (21) Êle sabia que não. Mas, talvez não o imaginasse tão extenso e tão áspero quanto iria ser.

• • •

Enfim, o congresso funcionava e Rui recomeçou a defesa bruscamente interrompida pelo golpe de Estado. Abandonara definitivamente o silêncio. E em dois discursos sucessivos, em 12 e 13 de janeiro de 1892, a nação ouviu-o expor as razões do combatido ministro da Fazenda.

As suas palavras estavam cheias de amargura e desilusão. Às vezes, com evidente propósito de tirar partido das circunstâncias, acentuava a própria desventura. Que desejaria senão o esquecimento? "Num país sem opinião pública, dizia, nem partidos políticos, onde, portanto, o poder se vê entregue, quase sem resistência, ao génio das paixões do mal, um homem de alguma educação política não pode ambicionar posições, que acariciariam a vaidade dos fátuos, mas não satisfazem à consciência dos esclarecidos. E aqui está porque quantas posições me couberam, as mais altas do país, deixei-as cair todas, uma a uma, sucessivamente, com a satisfação deliciosamente saboreada de um espírito que enveredou, sem saudades, pelo caminho da paz e do olvido,

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226 A VIDA DE RUI BARBOSA

prémio esquisito e divino das vidas consumidas ou abreviadas no serviço da pátria". (22)

E, como se nada mais esperasse da justiça dos seus contemporâneos, o "acusado" assim concluiu a defesa:

"O tempo há de passar sobre essas misérias, e lavá-las, como o oceano lava o lixo das praias, a orla sempre alvejante do seu azul. (Nessa ocasião os "bravos" interromperam-no por um instante). "Há-de afastar-se a ressaca enlameada; mas ainda após ficará ressoando o grito do nosso protesto e do nosso desafio, que endereço à justiça dos meus concidadãos, abrindo-lhes todas as páginas da minha vida ínt ima. . ." (Novos aplausos) " . . . desafio, protesto, grito da consciência revoltada, que eu poderia traduzir nestas palavras de Cavour, em 1852, ao parlamento italiano: "Desde que entrei na carreira política aprendi a suportar as injúrias, as calúnias, as insinuações malignas: desprezei-as no começo, quando vinham das praças, e tinham por intérpretes ignóbeis jornais; hoje não as desprezo menos, quando se levantam dos bancos dos negociantes e dos salões dourados" (Bravos. Palmas gerais nas galerias e no recinto. O orador é abraçado pelo presidente do senado, pelos senadores presentes e mais circunstantes). (23)

Conipreendiam-no? Talvez. A verdade é que aquele final patético impressionara profundamente. O ator dominara o auditório, e a invocação a Cavour foi devidamente apreciada. Contra os seus hábitos, o austero Prudente de Morais descera da presidência para abraçar o orador. Sem dúvida, Rui podia sentir-se satisfeito consigo: começavam a esquecer o ministro.

Contudo, mostrou-se com lucidez suficiente para perceber que não lhe bastavam aquelas aclamações do senado para enfrentar com autoridade o adversário poderoso e hábil. E uma semana depois, por mais que a resolução parecesse temerária, renunciou a cadeira no parlamento: ao povo caberia julgá-lo em última instância. Após aqueles nove meses de mudez, tornara-se diferente a sua tática, e longo manifesto marcou a atitude cavalheiresca.

Com abnegação e grandeza, devolvia aos eleitores o mandato, que outros teriam guardado com avareza: o tímido orgulhoso jamais conservaria um lugar em que não se sentisse perfeitamente à vontade. Na verdade, o manifesto era o final da defesa do homem martirizado pela calúnia, e êle, assim o definiria: "esse documento onde escrevi a história do meu papel na Revolução no governo provisório, no congresso, de que me despedia, era, a um tempo, o ato da minha renuncia e a justificação do meu pas-

FAUSTO E MEFISTÓFELES 2 2 7

sado." (24) Sim, era tudo isso, e mais alguma coisa — um ato de extraordinária coragem. Que elementos poderia ter, numa hora tão incerta, para confiar no julgamento a que se submetia voluntariamente? Com razão êle poderia dizer mais tarde: "rompendo com todas as conveniências, cu queimara os meus navios." (25)

E, atirando-se evidentemente contra Floriano, terminava o manifesto com uma frase, que logo serviu de legenda para os partidários da "legalidade": — "com a lei, pela lei e dentro na lei; porque fora da lei não há salvação". Rui estava bem longe de aspirar ao esquecimento.

NOTAS AO CAPÍTULO XVII

(1) V. prefácio de Bastista Pereira à 2 . a ed. das "Cartas de Inglaterra". (2) Carta da baronesa de Alenquer ao filho, em 24 de janeiro de

1891, original em poder do autor. (3) Idem de 17 de março de 1891. (4) In "Mocidade e Exílio", p . 163. (5) Carta de Estanislau Zebalos a Rui, em 9 de junho de 1891, rn

Arquivo C. R. B. . , c n l (6) Carta do cons. Dantas a João Alfredo, em 3 de maio de í a a i ,

in Arquivo do Inst. Histórico Brasileiro. . (7) Carta de António Azeredo a Rui, em 24 de julho de 1891, m

Arq. C. R. B. . „ _ (8) Cf. Rui Barbosa, "Finanças e Politica , p . 13». (9) Atestado do dr. João Paulo de Carvalho, em 20 de julho de 1891,

in Arq. C. R. B. „ . .n (10) José Maria Belo, "História da Republica p. 140 (11) Rui Barbosa, discurso no senado em 3 de novembro de 1891. (12) Idem, idem. „„ ,. . ^ i» VKA 13 V. José Maria dos Santos, "Politica Geral p . 254

(14) Cf. carta de Floriano Peixoto a Rui, cm 9 do abril de 1891, in Arq. C. R. B. , , . , , „ ,

(15) Idem, idem, em 18 de junho de 1X91. (16) V "O País" de 28 de junho de 1925. (17) Cf. telegrama de Rui Barbosa a José Gonçalves. (18) Cf. carta de A. Azeredo a Rui, em 27 de novembro de 1891,

in Arq. C. R. B. , . . _ (19) Cf. telegrama de Rui a Luiz Viana, copia in Arq. C. K. B. (20) Rui Barbosa, discurso no senado em 13 de outubro de 1896

(resposta a César Zama), in "Esfola da Calúnia", p . 133. (21) Papéis de Rui Barbosa in Arq. C. R. B. (22) Rui Barbosa, "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 22. (23) Rui Barbosa, discurso no senado em 13 de janeiro de 1892, in

"Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 171. (24) Rui Barbosa, "Aos srs. eleitores baianos", in "Diário da Bahia"

de 11 de setembro de 1892. (25) Idem.

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226 A VIDA DE RUI BARBOSA

premio esquisito e divino das vidas consumidas ou abreviadas no serviço da pátria". (22)

E, como se nada mais esperasse da justiça dos seus contemporâneos, o "acusado" assim concluiu a defesa:

"O tempo há de passar sobre essas misérias, e lavá-las, como o oceano lava o lixo das praias, a orla sempre alvejante do seu azul. (Nessa ocasião os "bravos" interromperam-no por um instante). "Há-de afastar-se a ressaca enlameada; mas ainda após ficará ressoando o grito do nosso protesto e do nosso desafio, que endereço à justiça dos meus concidadãos, abrindo-lhes todas as páginas da minha vida ínt ima. . ." (Novos aplausos) " . . .desafio, protesto, grito da consciência revoltada, que eu poderia traduzir nestas palavras de Cavour, em 1852, ao parlamento italiano: "Desde que entrei na carreira política aprendi a suportar as injúrias, as calúnias, as insinuações malignas: desprezei-as no começo, quando vinham das praças, e tinham por intérpretes ignóbeis jornais; hoje não as desprezo menos, quando se levantam dos bancos dos negociantes e dos salões dourados" (Bravos. Palmas gerais nas galerias e no recinto. O orador é abraçado pelo presidente do senado, pelos senadores presentes e mais circunstantes). (23)

Coiri|)reendiain-no? Talvez. A verdade ó que aquele final patético impressionara profundamente. O ator dominara o auditório, e a invocação a Cavour foi devidamente apreciada. Contra os seus hábitos, o austero Prudente de Morais descera da presidência para abraçar o orador. Sem dúvida, Rui podia sentir-se satisfeito consigo: começavam a esquecer o ministro.

Contudo, mostrou-se com lucidez suficiente para perceber que não lhe bastavam aquelas aclamações do senado para enfrentar com autoridade o adversário poderoso e hábil. E uma semana depois, por mais que a resolução parecesse temerária, renunciou a cadeira no parlamento: ao povo caberia julgá-lo em última instância. Após aqueles nove meses de mudez, tornara-se diferente a sua tática, e longo manifesto marcou a atitude cavalheiresca.

Com abnegação e grandeza, devolvia aos eleitores o mandato, que outros teriam guardado com avareza: o tímido orgulhoso jamais conservaria um lugar em que não se sentisse perfeitamente à vontade. Na verdade, o manifesto era o final da defesa do homem martirizado pela calúnia, e ele, assim o definiria: "esse documento onde escrevi a história do meu papel na Revolução no governo provisório, no congresso, de que me despedia, era, a um tempo, o ato da minha renuncia e a justificação do meu pas-

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sado." (24) Sim, era tudo isso, e mais alguma coisa — um ato de extraordinária coragem. Que elementos poderia ter, numa hora tão incerta, para confiar no julgamento a que se submetia voluntariamente? Com razão êle poderia dizer mais tarde: "rompendo com todas as conveniências, eu queimara os meus navios." (25)

E, atirando-se evidentemente contra Floriano, terminava o manifesto com uma frase, que logo serviu de legenda para os partidários da "legalidade": — "com a lei, pela lei e dentro na lei; porque fora da lei não há salvação". Rui estava bem longe de aspirar ao esquecimento.

NOTAS AO CAPITULO XVII

(1) V. prefácio de Bastista Pereira a 2 . a ed. das "Cartas de Inglaterra". (2) Carta da baronesa de Alenquer ao filho, em 24 de janeiro de

1891, original em poder do autor. (3) Idem de 17 de março de 1891. (4) In "Mocidade c Exílio", p. 163. (5) Carta de Estanislau Zcbalos a Rui, em 9 de junho de 1891, in

Arquivo C. R. B. (6) Carta do cons. Dantas a João Alfredo, em 3 de maio de 1891,

in Arquivo do Inst. Histórico Brasileiro. . (7) Carta de António Azeredo a Rui, em 24 de julho de 1891, in

Arq. C. R. B. „ „ (8) Cf. Rui Barbosa, "Finanças e Politica , p . 138. (9) Atestado do dr. João Paulo de Carvalho, em 20 de julho de 1891,

in Arq. C. R. B. „ . (10) José Maria Belo, "Historia da Republica p . 140. (11) Rui Barbosa, discurso no senado em 3 de novembro de 1891. (12) Idem, idem. e . (13) V. José Maria dos Santos, Politica Geral p . 254 (14) Cf. carta de Floriano Peixoto a Rui, cm 9 de abril de 1891, in (15) Idem, idem, em 18 de junho de 1891. (16) V. "O País" de 28 de junho de 1925. (17) Cf. telegrama de Rui Barbosa a José Gonçalves. (18) Cf. carta de A. Azeredo a Rui, em 27 de novembro de 1891,

in Arq. C. R. B. , . . * ^ n n (19) Cf. telegrama de Rui a Luiz Viana, copia in Arq. C. K. B. (20) Rui Barbosa, discurso no senado em 13 de outubro de 1896

(resposta a César Zama), in "Esfola da Calúnia", p . 133. (21) Papéis de Rui Barbosa in Arq. C. R. B. (22) Rui Barbosa, "Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 22. (23) Rui Barbosa, discurso no senado em 13 de janeiro de 1892, in

"Obras Completas", vol. XIX, t. I, p . 171. (24) Rui Barbosa, "Aos srs. eleitores baianos", in "Diário da Bahia"

de 11 de setembro de 1892. (25) Idem.

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XVIII — A L U T A C O N T R A A V I O L Ê N C I A

Pugnar pelo oprimido, quando o estimamos, é trivial e fácil; expormo-nos pela sua liberdade, sem o prezarmos, unicamente por horror à opressão, é extraordinário.

Rui.

FRESTA vez o enfermo não era êle. Em fevereiro de 1892, jus-*-^ tamente quando a população do Rio estava aflita pelo recrudescimento da febre amarela, Maria Augusta adoeceu, e os módicos lhe aconselharam uma estação de águas.

Rui apressou a viagem. Bastava tratar-se da saúde da mulher para ficar inquieto e cheio de cuidados. Em meio às intempéries da existência atribulada, encontrara no matrimónio doçura e segurança, c os anos haviam multiplicado um desvelo recíproco e terno. Dele se contavam pequenos episódios de ciúme. Mais cuidado do que ciúme. Certa feita, num baile no palacete do barão de Nova Friburgo, retirara-se inesperadamente por não ter Maria Augusta podido recusar-se a dançar com um dos convidados. Pura imaginação. Mas, várias vezes, já pronta para ir ao teatro, ela viu o marido fingir inopinadas dores de cabeça, maneira delicada de dizer-lhe que julgara demasiado o decote ou justo o talhe do vestido. E não faltava quem achasse delicioso comentar coisas assim.

Felizmente a doença não era grave e as águas proporcionaram esplêndido resultado. A princípio Rui aborreceu-se com a monotonia do descanso, longe dos seus livros e dos poucos amigos, mas isso não tardou em ser desfeito com a chegada de Azeredo, que acompanhado da mulher, a boa e simples D. Sinhá, viera fazer-lhe companhia. (1) No Rio ficara Tobias Monteiro, cuja correspondência, impregnada de verve e de perspicácia, constituía fonte abundante de informações. Assim, por exemplo, se referia à onda de difamação reinante naquela época: "vivemos numa sociedade de invejosos e de homens de má fé: precisamos andar pu-

A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA 229

xando os bolsos para fora, mostrando que não furtamos nada; quando aparecemos com uma roupa nova sujeitamo-nos ao inquérito dos que sabem o número dos nossos paletós; quem tiver um carro precisa escrever, em vez do número da praça, a história de sua posse, à moda dos mendigos, que narram nas taboletas, aos transeuntes, a justificação da sua miséria e do seu pedido". (2) E quem mais do que Rui sentira as dentadas da maledicência? Tobias, aliás, não ignorava isso. Notava-o ainda desalentado e recorria a Maria Augusta, para que reanimasse o marido. "Sinto (jue preciso pedir à boa e santa D. Cota, cuja amizade prezo como uma consolação fraternal, que também leia o que escrevi e que lhe dê com as audácias de sua coragem um pouco de conforto, que ela lhe sabe emprestar nessa vida". Apreciação verdadeira. Ela sempre fora o arrimo do tímido, que ora se inflamava, ora se deixava abater, mas em cuja vitória jamais cessara de acreditar confiante.

Agora, Tobias Monteiro voltara a insistir na aquisição dum jornal, donde Rui voltaria a falar à nação. A ideia não era nova. Entretanto, dominado pelo desalento, Rui já a havia abandonado inteiramente.

Em 1891, a fim de combater a República, Rodolfo retomara a atividade política, fundando o "Jornal do Brasil", que, segundo Nabuco, era alguma coisa semelhante ao "Journal des Débats", pertencendo à "classe dos jornais que preferem a seriedade à sensação, os assuntos às personagens, e cujo ideal seria serem dia por dia páginas definitivas da história." (3) Entre os redatores figuravam Sancho Pimentel e Gusmão Lobo, e alguns dos colaboradores chamavam-se Schimper, Gorceix, Laveleye e Leroy-Beaulieu. Com tal programa as finanças do jornal não tardaram a desmoronar-se, e Rodolfo de desiludir-se. A ocasião, portanto, argumentava judiciosamente Tobias, era azada para que Rui obtivesse a tribuna, cuja posse seria o complemento indispensável para prosseguir na luta política.

No momento, porém, ainda sangravam as feridas abertas no embate político, e nada mais longe da imaginação de Rui do (jue esse retorno ao cenário, onde tanto sofrera. Amargurado pelas injustiças apenas ambicionava tranquilidade, e assim respondia às propostas de Tobias: "Estou cansado da injustiça e da calúnia, que não cessam de reproduzir-se (ainda hoje se reproduzem) sob formas cada vez mais desfaçatadas e ignóbeis contra mim. A imprensa, atualmente, poderá servir para moços como

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230 A VIDA DE RUI BARBOSA

o sr., que têm merecimento, que ainda não perderam a esperança, e que necessitam de criar o nome, para que a natureza os dotou. Eu, o nome que fiz, com sacrifício de parte considerável dos meus dias, serve hoje apenas de alvo indefeso à maestria envenenadora dos que se querem recomendar à gratidão dos patriotas: a esperança foi-se-me; e o merecimento, se o tive, já deu o seu cacho". (4) E, cheio de melancolia e desengano, concluía como se se sentisse arrasado: "Agora careço tão somente de obscuridade e esquecimento, para viver o meu resto de vida. Preciso de paz, paz e paz, como um morto precisa de seu túmulo." (5) Depois de haver clamado pela reparação, essas palavras cheias de dor exprimiam a intensidade do drama do homem esmagado pela injustiça.

Apesar disso, Tobias não desanimou. Parecia saber que, afinal, Maria Augusta daria ao marido desiludido o alento preciso para o reanimar, transformando-o inteiramente. De fato, quatro dias após aquela carta angustiosa mudara completamente o tom da correspondência. Rui a Tobias: "Maria Augusta, a revolucionária, que já deu comigo no Diário de Notícias, insiste em que eu me aventure a estoutra circunavegação, mais perigosa do que a primeira. E está dito: subordino o meu ceticismo às inspirações crentes dela, com as quais nunca me dei mal. Acho que ela se engana. Para o Diário entrei cu com um tesouro de confiança e de coragem. Hoje, sou uma espécie de destroço de naufrágio flutuando numa desilusão infinita. Nem sequer fisicamente já me acho o mesmo. E um homem nestas condições não pode arricar-se a empresas extraordinárias. Mas seja. . . Levarei mais este empurrão da onda, que me leva . . . não sei para onde. A minha boa amiga de tantos dias de provação vê aí o rumo abençoado; ela quer este sacrifício... vagarei com ela". (6)

Levado pela mão carinhosa de Maria Augusta, Rui dispu-nha-se a abandonar a paz com que tanto sonhara, e engolfar-se novamente na procela. "Levarei mais este empurrão da onda . . . " Mas, na realidade, não podia imaginar as tempestades com que teria de se defrontar dentro em pouco.

Assim, graças à insistência de Tobias, e rendido às inspirações da mulher, Rui ao regressar da estação de águas já era outro. O combatente ressuscitara.

Os acontecimentos se haviam desenrolado de maneira quase dramática, mas estava novamente certo de que lhe ia caber um grande papel. Sempre estimara que lhe atribuíssem a maior res-

A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA 2 3 1

ponsabilidade na derrocada do Império e desejava agora a tarefa de "republicanizar" a República, que tão depressa apresentava sintomas de corrução. Refratário às conquistas mesquinhas, êle sofria entretanto a angústia das grandes ambições, aquelas que na vida se confundem com o ideal.

A queda de Deodoro suscitara grave questão política: o preenchimento do cargo vago. Rui, numa longa carta, definira-se pela necessidade constitucional duma eleição imediata, para a escolha do novo Presidente. (7) Entretanto, apegando-se à interpretação que dera à Constituição, Floriano julgou cabor-lhe completar o quadriénio do renunciatário e isso dividiria o país em dois campos irreconciliáveis. Floriano não entregaria o poder conquistado pacientemente, fosse qual fosse a opinião dos juristas. A lei será êle.

"Não era esta a república dos meus sonhos", dissera então, desolado, o venerado Saldanha Marinho. Afirmativa sem consequência, pois Floriano começava a dominar quase discricionària-mento. O próprio Congresso, a fim de (pie o Presidente tivesse as mãos inteiramente livres para sufocar (malquer resistência à sua vontade, cerrara as portas precipitadamente. E, pior do que tudo isso, os que pleiteavam a realização das eleições viam-se apontados como perigosos inimigos da Pátria. Ideia brutal e perigosa, que os partidários de Floriano assoalhavam, pedindo o extermínio <los "traidores". Que restaria a Rui nesse mundo de violência, que imaginara tão diverso? A vaga, muito alta, certamente o afogaria se tentasse enfrentá-la.

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Em abril, pedindo a convocação das eleições, a fim de ser restabelecida a tranquilidade, treze generais publicaram um manifesto. Para Floriano a atitude equivaleu a um desafio. Acei-tou-o. K, imediatamente, reformou onze dos signatários, enquanto os outros dois viram-se transferidos para a reserva. (8) Medida violenta e radical. No entanto, não apaziguou o país. Os ânimos «\altaram-se e populares tentaram realizar um comício em frente :i casa de Deodoro, de cuja benigna ditadura pareciam saudosos. I'i)i o pretexto esperado por Floriano: decretou o estado de sítio. As prisões encheram-se. Senadores, deputados, generais, almirantes, todos que se opunham à permanência do ditador no poder, •cm distinção de categoria, esbarraram nos cárceres. E, antes de «sgotar-se o prazo da suspensão das garantias constitucionais, muitos deles embarcaram deportados para sítios longínquos. Po-

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deriam, porém, subsistir as prisões depois de cessado o estado de sítio? Influenciadas pelo sistema constitucional vigente ao tempo da monarquia, inteiramente diverso do que adotara a República, as opiniões dividiam-se. O essencial, no entanto, seria saber-se quem teria a coragem de protestar contra o ato de Floriano, o senhor todo-poderoso.

Neste momento apareceu Rui. "O mundo político e parlamentar estava todo em pânico, escreveu um historiador. Ele foi naquele instante o único homem que, realmente, não teve medo. ' (9) E com uma bravura sem par, trazendo como insígnias únicas o seu título de advogado, requereu ao Supremo Tribunal uma ordem de habeas-corpus em favor dos desterrados, alguns dos quais seus desafetos. Não o preocupavam, porém, as pessoas: tinha um objetivo mais alto — a Lei.

Possivelmente, tudo não passaria de sacrifício inútil. No fim, diriam ter apenas lutado por despeito ou por ambição. Enganar-se-ia, no entanto, quem pensasse assim.

Embora pareça contraditório em relação a quem desejou as altas posições, Rui, talvez pelas circunstâncias, que lhe cercaram a existência desde o tempo em que viu a miséria trazida pelo ostracismo político instalar-se na casa paterna, teve sempre estranha predileção pelos heróis infelizes: a glória aureolando o martírio. Êle próprio poderá passar sem o poder, mas jamais suportará resignado a falta dos aplausos, onde acha amparo e estímulo. Espécie de vocação para o infortúnio glorioso, que vai encontrar agora, arrostando, entre aclamações, os perigos a que se expõe v oluntàriamente.

Realmente, nos discursos e nas páginas nascidas nesta fase, respira o vigor e a harmonia das coisas criadas pela natureza. Muitas vezes êle ainda será grande e obterá triunfos retumbantes, mas, em nenhum outro momento, aquele espírito complexo atingirá a intensidade desse instante supremo, que iluminou com um clarão incomparável.

Quando informaram ao frio e sagaz Floriano ser impossível negar o habeas-corpus devido à limpidez dos argumentos, êle comentou com fingido desgosto: "Esta notícia me contraria sobremodo. Não sei, amanhã, quem dará habeas-corpus aos ministros do Supremo Tribunal . . ." (10) Advertência sincera e que representou a espada de Dámocles erguida sobre os juízes. Quem, senão êle, tinha, de fato, o direito de decidir? Floriano pensava assim.

A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA 233

Contudo, o julgamento foi sensacional. O recinto do tribunal (Ticheu-se de diplomatas, magistrados e advogados ansiosos por ouvirem a palavra do homem franzino, que batia às portas da justiça, clamando em nome da lei. Propalara-se o assassínio de Rui, mas isto não o intimidou. E as suas primeiras palavras, ouvidas entre o profundo silêncio, que dominou até o fim, lembraram Esquilo nas Eumênides:

"Eu instituo este tribunal venerando, severo, incorruptível, guarda vigilante desta terra através do sono de todos, e o anúncio aos cidadãos, para que assim seja de hoje pelo futuro adiante". (11) Ê fácil imaginar o tom em que isto foi dito. Conseguirá, porém, Palias amainar as Fúrias? Não. Os juízes tomaram na devida conta aquele aviso de Floriano, e de nada valerá a exposição copiosa do advogado, demonstrando a legitimidade do que pretende, em face da jurisprudência norte-americana sobre dispositivos semelhantes aos que adotou a constituição da República. E, um a um, tendo "a impressão, escreve, de um naufrágio, contemplado a poucas braças da praia, sem esperança de salvamento", Rui assistiu cairem contra êle os votos dos julgadores. Apenas um dos ministros, Piza e Almeida, cuja opinião foi recebida entre aplausos, que os tímpanos do Presidente não conseguiram abafar facilmente, dcclarou-se favorável ao habeas-corpus. Terminada a sessão, sem palavras para agradecer ao voto daquela conciência, Rui pediu licença para beijar-lhe as mãos. Num emotivo, isto é natural. Mas revela a tensão nervosa de que estava possuído.

A decisão deu a Floriano o alento de um sopro de legalidade. /Vgora, encoberta a violência com a toga dos magistrados, poderá tomar ares de defensor da lei, e isso lhe agrada, pois tal posição, além de mais cómoda, tranquiliza a consciência de alguns partidários vacilantes. Apenas Rui não lhe dará tréguas: o pregador não se deve cansar, nem desanimar. Se não o ouviram hoje, poderão ouvi-lo amanhã. Se aqui não o querem escutar, mais adiante talvez encontre discípulos.

Foi penosa a vida dos deportados nos lugares para onde os enviara Floriano. De Tabatinga, na fronteira do Brasil com o Peru, Vandenkolk mandou a Rui esta dsecrição: "Estamos, como disse, condenados a morrer, porque já lutamos com a falta de víveres e batemos às portas da fome, e somente os obtivemos dirigindo formal reclamação ao comandante do forte e do destacamento, vendo-se êle próprio em sérios embaraços para atender-nos, porque o Governo não pôs à sua disposição nenhuma embarcação.

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Aqui temos uma pequena montaria (*), comprada por mim, expressamente para a pesca e sem este meio de locomoção fluvial ou sem a generosidade de um morador da vizinhança não poderíamos andar à procura de alimentação fresca e sã.

"Somos hoje 14 pessoas — entre degredados e famílias dos mesmos — não temos médico, nem medicamentos fornecidos pelo Governo e o mais cruel é que aos comandantes dos vapores que navegam por estas paragens é vedado, por circular do Governo do Amazonas, receber a bordo nenhum degredado qualquer que seja a autoridade que requisite, e qualquer que seja o seu estado de saúde.

"Está ou não patente a intenção do Governo? É ou não seu propósito que morramos à míngua de recursos neste deserto? Nenhum de nós pode adoecer: será a nossa sentença de morte. É mister que o País saiba com que desumanidade são tratados os presos políticos mandados para Tabatinga. Fale por nós, o amigo, com o seu grande talento". (12)

Nada havia, porém, a fazer de prático. Perdido o habeas-corpus, os desterrados ficavam à mercê de Floriano, que, aliás, julgando suficiente o castigo para não quererem experimentar novas aventuras revolucionárias sob o seu governo, anistiou-os poucos meses depois. Contudo, êle se enganava. Os prisioneiros tinham sofrido demais para poderem suportar conformados a ideia de o verem desfrutar tranquilamente o Poder, e voltaram prontos para outras conspirações, única esperança no país sem lei.

Rui também não se dera por vencido. Embora não conspirasse, êle se sentia infatigável enfrentando a violência com a lei. Dezoito artigos, cujo efeito foi extraordinário, constituiram a sua resposta à sentença contrária ao habeas-corpus. Em linguagem enérgica, mas comedida, como convinha ao dirigir-se aos juízes da mais alta Corte de Justiça, criticara de maneira lapidar, mostrando a sua inconsistência jurídica. Tudo tão lógico, tão claro e tão simples, graças àquele poder de persuasão característico dos seus trabalhos, que a injustiça avultava aos olhos dos leitores. Os mais cultos estarreciam ante a novidade da doutrina, pois, apesar da Constituição promulgada em 1891 haver-se inspirado na dos Estados Unidos, ainda poucos juristas brasileiros estavam familiarizados com os escritores e com a jurisprudência norte-americana. Caberia a Rui a tarefa de divulgá-los. Ao país, êle revela os trabalhos de Kent, Cooley, Story, Hare, Dicey e Marshall, despertando curiosidade sobre a influência que haviam exercido

(•) Canoa usada no Amazonas.

A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA 235

na formação do direito nos Estados Unidos. Punha-os em circulação para os seus compatriotas e confiava nas consequências dessa disseminação tenaz das ideias por que se batia. Seria a recompensa ao sacrifício e às canseiras do Apóstolo, que assim encerrava o último dos artigos:

"Os meus contraditores podem continuar a bater-se pelo governo, cliente que não deixa mal os seus advogados. O meu é a liberdade, nem sempre grata aos seus amigos. Dos prémios, que ri» dá, o único, que não falha, é a satisfação da consciência. Esse já tenho. Estou pago". (13) Floriano poderia rir-se dum adversário cnpu/. de contentar-se com tão modesta remuneração. O unido cavava, porém, sulcos profundos. Talvez bem mais pro-ftimloN do que seria de imaginar e, dentro de algum tempo, iiquAlc* iiutores norte-americanos, até enlão quase ignorados no liriuil, tiNtitrlittii em moda. Tão em moda como qualquer figurino do hirln. K menino os advogados mais modestos envergonhar-.so-no d(» nfto conlieror algumas sentenças de Marshall. "É fora de dúvida, escreve Hodiigo Otávio, que foram as atividades de Mui liarhosa, neste momento histórico, que fizeram a interpretação do direito constitucional brasileiro". (14) E a Floriano isso la/.ia maior mal do que uma revolução militar. Preparava a revolução das consciências.

Rui fez reunir num volume os documentos dessa campanha aparentemente perdida e nele se lia esta dedicatória: "À minha mulher, cuja simpatia corajosa e eficaz por todas as causas do coração, da liberdade e da honra, tem-me sido inspiração ou alento, nas boas ações da minha vida". (15)

1892 não foi, porém, apenas de reveses. Neste ano, em junho, a Hahia reelegeu Rui para a cadeira no parlamento. É curiosa e surpreendente essa vitória, embora Artur Rios, prestigioso político na Hahia, houvesse, em maio, comunicado a Rui: "Estás aclamado candidato do partido republicano à tua antiga cadeira no Senado. Julgo tua eleição segura. Creio que ab alto não é ela bem vista, mas isso não nos embaraça". (16) Na realidade, liomem de poucos amigos, muito fechado consigo mesmo, admira não o terem abandonado os correligionários, entregando-o à própria sorte. Sobretudo, sabendo-se que Floriano tentou impedir a eleição e que o ministro da Marinha, Custódio de Melo, muito ligado aos políticos baianos, se esforçou para a evitar, surpreende liavcrem ambos malogrado. Por que? Por que o ampararam os companheiros quando cairá das graças do Presidente? A verdade <• «pie apesar do temperamento retraído, a intransigência, a com-

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batividadc, o amor-próprio exagerado e o espírito absorvente lhe terem suscitado antipatias e reações, Rui sempre conseguiu empolgar os que dele se aproximaram. Fascinados por aquela inteligência extraordinária, poucos, depois de se terem dele acercado, alcançaram deixar-lhe a porta sem que êle próprio a fechasse. Isso o um não sei quê de altivez e carinho da Bahia para com os seus filhos na hora do infortúnio explicam a teimosia com que o elegeram, contrariando Floriano.

Ainda mais: Rui nem sequer se empenhara com ardor para obter o apoio dos políticos. Não fora mesmo assistir a eleição. E, somente depois de vitorioso, julgou dever dirigir-se aos eleitores, agradecendo-lhes os sufrágios. Fê-lo num manifesto (17) em que, além de marcar a própria posição, acentuava a significação do triunfo obtido, afirmando peremptório: "Meu futuro será o reflexo do meu passado". Sinal de que não pretendia mudar. E acrescentava: "O diploma, que me outorgais, é, portanto, a sanção plena, categórica, definitiva ,do meu procedimento desde 15 de novembro de 1889, especialmente desde 23 de novembro de 1891". Devia sentir-se satisfeito com o julgamento. E talvez por isso, não tardou cm ir rever a terra natal. Partiu em fevereiro de 1893. (18)

A viagem foi útil o retemperou o espírito do combatente. O berço orgulhava-se daquele filho genial, c Luiz António, sucumbido dois anos antes, não assistiu A glorificação do sobrinho, que detestava.

Havia quatro anos, que estivera pela última vez na Bahia. Pouco tempo, relativamente. Mas, como estavam cheias as suas páginas! A abolição, a república, a separação de Dantas, o ministério, a queda e a luta contra Floriano ou melhor a luta contra a violência. Muita coisa para que não houvesse cometido erros. Contudo, o saldo apresentava-se favorável e a prova disso era a simpatia que o cercava a cada passo. Apenas num ponto — que provocara críticas acerbas — parecia não sentir a conciência completamente tranquila: a separação do velho Dantas, que ali o iniciara na carreira política como a um filho. Por isso mesmo, no discurso de agradecimento à acolhida calorosa do "verde ninho murmuroso de eterna poesia", julgou oportuno aludir discretamente ao incidente doloroso: (19)

"O sonho da minha vida nunca foi dirigir, mas confiar e servir: confiar nos mais fortes, servir sob os mais capazes, mas servir com inteligência, numa religião que não me abastarde a crença, que me esclareça, que me eleve, e me fortifique. Dos meus

A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA 237

antigos chefes políticos não me apartei, senão quando, volvendo os olhos atrás, vi devorados vinte anos de minha vida por uma obediência condenada daí por diante à esterilidade para com a pátria e inconciliável daí em diante com a minha razão".

O discurso foi hábil combinação de carinho e indignação. Voltando ao velho lar, depois de conhecer o Capitólio e a rocha Tarpéia, o filho recordava-se dos dias felizes entre a mesma gente e sob o mesmo céu, e das suas lembranças destacava-se a imagem dos pais, que evocou transbordante de admiração e ternura:

"Espírito supremo daquele que me ensinou a sentir o direito, e querer a liberdade; daquele cuja presença íntima respira em mim nas horas do dever e do perigo; daquele a quem pertence, nas minhas ações, o merecimento da coerência e da sinceridade; emanação da honra da veracidade e da justiça, espírito severo de meu pa i . . . imagem da bondado o da pureza, que verteste em minha alma a felicidade do sofrer o do perdoar, que me educaste no espetáculo divino do sacrifício coroado pelo sacrifício, carícia do céu, na manhã dos meus dias, aceno do céu no horizonte da minha tarde, anjo da abnegação e da esperança, que me sorris no sorriso de meus filhos, espírito sideral de minha m ã e . . . se o bem desabotoa alguma vez à superfície agreste de minha vida, vós sois a mão do semeador, que o semeou. . ."

João Barbosa ainda vivia no filho. Desde quando deixara aquelas águas tranquilas em busca das aventuras e das vitórias do mar alto, Rui jamais o esqueceu. Continuou sempre a ser o ;^uia e o amigo, que o conduz e anima nas horas da aflição. Para onde o levará agora? Agora, quando tudo indica aproximar-se a tempestade?

Por último, no dia em que regressou ao Rio, Rui foi ao "Diário da Bahia". Era o fim da peregrinação. Dessa visita dá-nos notícia uma carta de Luiz Viana ao barão de Geremoabo: "Em-barcou-se ontem o Rui. Teve acompanhamento seleto e condigno. Os empregados do "Diário" fizeram-lhe uma saudação de despedida comoventíssima. Ele relembrou sua antiga tenda de trabalho, onde iniciou sua carreira jornalística, a primeira pedra do seu futuro e o último refúgio de suas consolações. O nosso Augusto (Guimarães) foi de lenço aos olhos. Eu também". (20) O lutador sabia fazer chorar.

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Em agosto de 1892, desenganado dos homens, Deodoro falecera e, cumprindo-se o que pedira, no seu enterro nada lembrara

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o militar. O cadáver fora vestido com trajo civil e a família dispensara as honras a que o morto tinha direito. Também D. Pedro II expirou no exílio, em dezembro de 1891, e, agora, a sua cabeça descansa sobre um punhado de terra do Brasil: foi a última vontade do Imperador. A morte levara o vencedor e o vencido.

Ao chegar ao Rio, de volta da Bahia, foi informado por Tobias Monteiro da possibilidade de concluir-se a compra do jornal.

Em maio, Rui assumiu a direção do "Jornal do Brasil." (21) O cruzado retomava a armadura. Após um interregno, durante o qual a ação se fizera sentir quase apenas nos tribunais, elaborando em fulgurantes arrazoados a futura orientação do direito público brasileiro, êle voltava ao jornalismo. O ofício sempre o seduzira. "Duas profissões, dirá mais tarde, tenho amado sobre todas: a imprensa e a advocacia. Numa e noutra me votei sempre à liberdade e ao direito". (22) E era o que ia fazer. Tarefa pouco suave naqueles dias incertos, mas que parece tê-lo encantado, pois, apesar dos anos e das amargas experiências, Rui ainda nada aprendera da arte de acomodar-se aos interesses.

Foi implacável o ataque que iniciou contra Floriano. Nessa ocasião, Francisco Glicério, seu companheiro de ministério no Governo Provisório, o por quem demonstrara sempre certo pendor, escreveu-llie aconselhando moderação: "Andas muito irritado na imprensa. Razões te sobram para isso, 6 bem certo. Mas, de outro lado, porque não tens um pouco mais de paciência? Olha, Rui: estou convencido de que estás politicamente no caminho errado. Este meu testemunho tem o valor da sinceridade, da lealdade de um amigo certo, o que é muito raro." (23) Um pouco mais de paciência... A frase deve tê-lo irritado. Dadas as relações entre Glicério e Floriano, a carta podia parecer a ponte para uma futura reconciliação, e Rui repudiou-a inteiramente. Que lhe importava o caminho "politicamente" certo? Há muito que se habituara a receber tais conselhos apaziguadores. A ouvi-los e desprezá-los. Não lhe dissera a mesma coisa o cons. Martinho Campos, quando chegara à Câmara, em 1879? Contudo, jamais lhes dera atenção; e a carta foi arquivada e esquecida. Teve mesmo efeito contraproducente, pois os artigos tor-naram-se ainda mais vibrantes e mordazes. Imbuído duma ideia, êle não descansava antes de vê-la vitoriosa. Assim acontecera com a eleição direta, a abolição, a separação entre a Igreja e o Estado, a federação. Agora deixara-se dominar pela "legalidade"

A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA 239

c nada senão o triunfo conseguiria apagar as altas labaredas do espirito incendiado. Vivia uma dessas fases de verdadeira obses-siio doutrinária e todas as suas energias tinham uma única finalidade — vencer. Êle era assim.

Entretanto, se passássemos do líder político para o pai de família, encontraríamos um homem como (malquer outro, sentimental, afetuoso, cheio de ternura para a mulher, c de cuidado com os filhos. Prova disso é a carta, que escreveu então, a um amigo da juventude, Frederico Hasselmann, confiando-lhe Alfredo, a fim de que o levasse para um colégio, na Europa. Não se sentira sequer com coragem para acompanhar o filho até à Bahia, onde estava Hasselmann, e dizia-o abrindo o coração: "Estava resolvido a ir com êle à Bahia. Mas, recuei. Confesso a minha debilidade: receei que me faltasse a coragem no caminho v que, nalgum deplorável acesso de fraqueza me arrependesse trazendo-o de novo comigo. Demais era prolongar em excesso a amargura do adeus que já me custa a suportar. Não estou habituado a estas separações. Tenho pouca força para elas e o sofrimento que me causam doe-me muito aflitivamente." (24) A carta, longa e minuciosa, reflete o zelo que pusera nas normas a serem seguidas na educação do filho.

"Minha aspiração, escreve a Hasselmann, é fazer do Ruizinho um homem independente e útil, isto é: dar-lhe uma educação séria, que lhe cultive o coração, que lhe discipline o caráter, que lhe robusteça o corpo e uma instrução sólida, prática, que o habilite a servir-se da sua inteligência como de um instrumento real de felicidade e progresso para si e para os seus semelhantes. Essa instrução deve fundar-se no conhecimento prático e familiar das línguas principais: o alemão, o inglês, o francês, o italiano, aprendidos mais no trato vivo das pessoas do que na convivência monótona dos livros, mais na conversação do que na leitura, mais na aplicação espontânea do uso do que no exercício estéril da memória. A par disso as ciências físicas e naturais (a que ligo a importância suprema) apreendidas ao vivo, e as matemáticas. O desenho, especialmente de aplicação, de arte industrial, deve completar esse conjunto. Se êle gostar de música será grande prazer para mim. . . Faço a maior questão do desenvolvimento físico, da educação atlética do corpo, de esgrima e do uso das armas." (25) Desse modo, êle que nove anos antes maravilhara o país com os seus pareceres sobre o ensino, tinha a oportunidade (!< traçar para o filho a orientação, que desejaria ver adotada

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geralmente. E, fiel às suas ideias, silenciava inteiramente quanto à parte religiosa.

Por este tempo Rui praticou grave imprudência. Estando h venda, na Rua S. Clemente, a casa de um tal John Roscoe Allen, negociante inglês, que desejava acabar os dias entre as névoas de Londres, alguns amigos mostraram a Rui a conveniência de adquiri-la. O preço era vantajoso — apenas cento e trinta contos de réis — e Maria Augusta desejava muito ter a "sua" casa. A sugestão, no entanto, não foi aceita. Além de não dispor de dinheiro, pessoas ponderadas consideravam a transação de mau efeito para a reputação do injuriado ministro da Fazenda, o que era exato.

Apesar disso, Maria Augusta não resistiu à tentação de percorrer a propriedade, ampla moradia construída no meio do século para o barão de Alagoas. Rodeava-a grande terreno com altas árvores e agradou à visitante mirar-se nas águas dum pequeno lago artificial à cuja borda, decorando-o, uma águia esmagava sob as garras a serpente vencida. Simbólico. Aquilo ficava bem na casa de Rui.

Maria Augusta estava encantada. Ela sempre sonhara com uma casa assim. E, à medida que passeava entre as alamedas, fantasiava projetos de remodelação.. . A vasta biblioteca, o salão de jantar, a sala de recepções, o extenso jardim onde o marido poderia entregar-se com largueza ao velho gosto pelas roseiras, a cocheira para os animais de t re la . . . Amável devaneio. Deveria perder-se a oportunidade pelo receio da maledicência de pessoas invejosas?

Não querendo tornar-se obstáculo à alegria da mulher, Rui acabou cedendo: Maria Augusta seria a dona daquela mansão. Andou rápido o negócio. Duas hipotecas garantiram empréstimos iguais ao preço da compra e alguns dias depois, pondo em tudo um pouco do seu bom gosto, Maria Augusta entregava-se ao prazer de dar ordens na "sua" casa. Ela própria sugeriu o plano das obras na residência senhorial e, frequentemente, ia ver a marcha dos trabalhos. Das copas das árvores, os pássaros saudavam a nova proprietária. Ela se sentia feliz. (25-A)

No entanto, como poucos sabiam as condições reais daquela transação inoportuna, choveram os comentários desfavoráveis.

D « 0

A nação caminhava rapidamente para dias sangrentos. Flo-riano, a quem fanáticos partidários atribuíam misteriosas virtudes

A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA 241

de mago e chamavam o "marechal de ferro", ganhara com a ascensão surpreendente e sutil a fama de maquiavélico. Habitualmente aparecia nas revistas ilustradas representado pela Esfinge. E os adversários, incapazes de o decifrarem, já não acreditavam senão na força para esmagar a Esfinge, que os atormentava.

Desde fevereiro, o Rio Grande do Sul agitara-se invadido pelas forças revolucionárias de Gumercindo Saraiva e Silveira Martins. Haviam sido batidas às margens do Inhanduí onde Pinheiro Machado revelara magníficas qualidades de caudilho, mas as escaramuças continuavam através duma ágil campanha de guerrilhas.

Bem mais grave, porém, era a crescente desinteligência entre a marinha e o exército, refletindo-se em surda hostilidade das forças navais contra o governo do marechal. Em abril, Custódio de Melo, partidário duma paz honrosa nas fronteiras meridionais do país, demitira-se do ministério. E em maio, Vandenkofk — o exilado de Tabatinga — fora ostensivamente eleito presidente do "Club Naval". Aliás, nessa ocasião, êle já não se encontrava no Rio. Pensando reunir-se aos rebeldes ganchos, partira incógnito para a Argentina.

Realmente, em junho, acompanhado por alguns conspiradores, Wandenkolk apossou-se duma pequena embarcação — "Júpiter" — e rumou para o porto da cidade do Rio Grande. Tentativa infeliz. Malogrado o desembarque, o almirante entregou-se prisioneiro, e, com êle, também foram detidos quantos se achavam a bordo do navio, muitos deles passageiros e tripulantes, que nada tinham com a aventura.

Seriam, porém, legais aquelas prisões de pessoas inteiramente alheias à rebelião? O fato deu motivo a que Rui encetasse mais um daqueles debates jurídicos em que já se celebrizara. Clama ne cesses.. . Havia mais de um ano que fora negado o habeas-corpus em favor dos deportados mas, durante todo esse tempo, rnantendo-se afastado das conspirações, êle não deixara um só instante de pregar o respeito à lei.

Muitas vezes as doutrinas por que se batia chegaram até a parecer absurdas, como aconteceu quando o viram iniciar uma ação para anular atos inconstitucionais do Executivo e do Congresso. "As razões do eminente advogado, conta Rodrigo Otávio, a larga erudição bebida no direito americano, o calor com que a causa foi defendida, foram recebidos com espanto nos meios jurídicos do país, tanto era contrário à tradição de nosso direito o fato extraordinário de se vir pedir ao poder judiciário a anu-

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lação de atos do poder executivo. Pois bem, o volume que contém esses arrazoados é presentemente o catecismo de nossa lei constitucional". Rui virara a velha jurisprudência de pernas para o ar.

Fêz-se logo o patrono de Wandenkolk e dos outros presos. Foi feliz, aliás. A voz insistente e corajosa começava a realizar aquilo que um ano antes parecia impossível — ouviam-na. E a 9 de agosto, com desagradável surpresa para o governo, o Supremo Tribunal concedeu o habeas-corpus, que impetrara em favor dos presos civis do "Júpiter". Nada ganhava com a vitória estrondosa além da "satisfação da conciência". Mas bastava para estar radiante.

No dia seguinte, quando na fortaleza de Santa Cruz se despediu dos companheiros postos em liberdade, Wandenkolk, a quem as prisões haviam enchido de remorso, pois fora o seu causador involuntário e imprudente, disse-lhes emocionado:

"Ide beijar as mãos do intimorato defensor dos oprimidos, e suplicai a Deus nas vossas orações pela felicidade dele, de sua carinhosa e virtuosa esposa e de seus filhos. Se não sabeis sua morada procurai-o onde houver um infeliz a proteger e a defender". (26) Realmente, desde que se negara a representar o papel de Fausto ao lado de Floriano, Rui permanecera em constante vigília na defesa de todos os perseguidos, fossem ou não seus amigos. E o país, embora aterrado pelas violências do governo, tinha a impressão de não estar completamente desamparado somente porque existia aquele advogado, que nada pedia aos seus clientes, senão o perigo de defendê-los. Sem dúvida, Rui encontrara, finalmente, a sua vocação — um glorioso infortúnio político, que parecia acariciar com volúpia. Custara imensos sacrifícios enfrentar o ditador de quem se separara voluntariamente, para não trair os seus "princípios". Mas, a verdade era que a nação já apontava em Rui o primeiro dos cidadãos.

A boa sorte bafejava os ideais de Rui. No senado, a derrota que impôs a Floriano ao sustentar a incompetência da justiça militar para julgar Wandenkolk foi sensacional. Quintino, partidário de Floriano, esteve entre os primeiros a se deixarem conquistar pelos argumentos de Rui. O exemplo encorajou outros. Vieram mais outros. E ao apurar-se o resultado da votação, 25 votos contra 23 (o que dá ideia do equilíbrio e do interesse da luta) manifestaram-se contrários à pretensão de Floriano. "Era a mais desastrosa das derrotas para o governo, que — conta o próprio Rui — por todos os modos, comprometera honra, poder e capricho, em subtrair aos tribunais ordinários o almirante Van-

A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA 243

ilrukolk, submetendo-o à severidade da magistratura Militar". Devia ser extraordinário o poder de persuasão da palavra que lu/ia lais milagres. Sem poder, sem armas, falando apenas em nome da lei, coisa um tanto irrisória naquele período, Rui batera Floriano no seu próprio reduto político. Este, porém, não o perdoaria. K, conforme sua tática habitual, esperaria o momento oportuno para a desforra.

O terror tomara o ambiente insuportável. Os ânimos mostra-vam-se exaltados e o incêndio irromperia à menor centelha. Uma simples fagulha seria o suficiente. E a 5 de setembro, quando se retirava à noite, com Tobias Monteiro, do "Jornal do Brasil", Rui viu acercar-se dele um oficial, Sebastião Bandeira, que o avisou iniciar-se daí a algumas horas a revolta da Marinha contra Floriano. Rui "mostrou-se surpreso, narra o oficial, com o meu comparecimento àquela hora, surpresa que aumentou de intensidade quando lhe fiz conhecer a minha missão, dizendo-lhe que ia, por mim e por parte dos companheiros embarcados da esquadra revoltada, buscá-lo para bordo, a fim de salvá-lo do perigo iminente, a que ficava exposto em terra, em consequência da atitude que assumira, defendendo os oprimidos contra a tirania, na imprensa, no senado, nos tribunais". (27) Rui não aceitou o oferecimento. Fora estranho à trama revolucionária e preferia permanecer em terra, próximo à boca do leão. Seria a prova de que não participara da conspiração. (28) Isto era verdadeiro. Mas quantas achas de lenha não atirara o jornalista na fogueira, que ameaçava Floriano? Tal qual como nas vésperas da República. Naquela ocasião o monarquista derrubara a monarquia. Agora, o homem da lei, para a salvar, concorrera para desencadear a luta armada.

Custódio de Melo, aquele ministro outrora tão empenhado em evitar a eleição de Rui e, agora, já privado das graças do ditador, chefiava a revolta. Arrependimento frequente nos que apoiam a violência, na ilusão de que ela não os atingirá. Rui, no entanto, nada tinha de que se arrepender: êle não mudara.

Quando amanheceu, no mastro do "Aquidaban" tremulava a bandeira branca da revolução. No Brasil, por algum tempo, a violência dominaria de lado a lado.

NOTAS AO CAPITULO XVIII

(1) Carta de A. Azeredo a Rui Barbosa, em 15 de março de 1892, in Arq. C. R. B.

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(2) Carta de Tobias Monteiro a Rui, em 9 de março de 1892, in Arq. C. R. B,

(3) Joaquim Nabuco, "Escritos e discursos literários" (Rio, 1901), p. 85. (4) Cf. carta de Rui Barbosa a Tobias Monteiro, cm 7 de março de

1892, cópia fotostática in Arq. C. R. B. (5) Idem, idem. idem. (6) Cf. carta de Rui Barbosa a Tobias Monteiro, em 11 de m a n o

de 1892, in Arq. C. R. B., onde existe cópia fotostática. (7) Carta de Rui Barbosa a Pardal Mallet, datada de Caxambu, em

15 de março de 1892 e publicada no "O Combate" de 19 de março de 1892. Sobre os debates sviscitados pela questão da permanência de Flo-riano Peixoto na Presidência da República como vice-Presidente em exercício, deve ser consultado o valioso prefácio de Levi Carneiro ao Vol. XIX, tomo III, das Obras Completas de Rui Barbosa.

(8) Dec. de 11 de abril de 1892. (9) José Maria dos Santos, "Política Geral do Brasil", p. 277. (10) Idem, idem, idem. (11) Rui Barbosa, discurso perante o Supremo Tribunal, em 23 de

abril de 1892. (12) Carta do almirante Wandenkolk a Rui Barbosa, em 9 de julho de

1892, in Arq. C. R. B. (13) Rui Barbosa, "O Estado de Sítio", Rio 1892, p. 250. Além dos

18 artigos citados, Rui publicou mais quatro, que se encontram às páginas 304 a 343 do vol. XIX, tomo III, das Obras Completas. Responderam a Rui pela imprensa o advogado Henrique Ferreira, no Jornal do Brasil; Aristides Lobo, no Fígaro; Felisbelo Freire, no Fígaro e in Jornal do Brasil; e Joaquim da Costa Barradas no Jornal do Brasil, entre 2 e 19 de junho. Vide a revista jurídica O Direito, vol. LIX.

(14) Rodrigo Otávio, "Minhas Memórias dos Outros" (Nova série), p. 334 (Rio, 1935).

(15) Por ocasião das festas do Jubileu de Rui Barbos;!, em 1918, Constâncio Alves, no discurso da Biblioteca Nacional, leu essa dedicatória, que foi saudada com palmas estrondosas.

(16) Carta de Artur Rios a Rui Barbosa, oin 12 de maio de 1892, in Arq. C. R. B.

(17) Manifesto de Rui "Aos srs. Eleitores baianos" publicado no "Diário da Bahia", de 11 de setembro de 1892.

(18) Foi nessa ocasião que proferiu, na Feira de Santana, ri conferência em favor das órfãs do Asilo de N. S. de Lourdes.

(19) É o discurso de Rui proferido no Teatro S. João (Bahia), em 7 de fevereiro de 1893, e conhecido como a oração da "Visita à terra natal".

(20) Carta de Luiz Viana ao barão de Geremoabo, e que nos foi gentilmente confiada pelo dr. João da Costa Pinto Dantas Júnior, atual detentor do arquivo daquele seu ascendente.

(21) 21 de maio de 1893. Sobre a atuação de Rui à frente do Jornal do Brasil veja-se Austregésilo de Ataide, prefácio ao vol. XX, tomo II, das Obras Completas de Rui Barbosa.

(22) Rui Barbosa, discurso de posse no Instituto dos Advogados, in "Novos Discursos e Conferências", p . 288.

(23) Carta de Francisco Glicério a Rui, em 13 de julho de 1893 in Arq. C. R. B.

A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA 2 4 5

(24) Carta de Rui Barbosa a Frederico Hasselmann, em 15 de maio <le 1893, in Arq. C. R. B.

(25) Idem, idem, idem. (25-A) V. Edgard Batista Pereira, A Casa de São Clemente. Rio, 1949. (26) Carta do almirante Wandenkolk, em 10 de agosto de 1893, datada

da fortaleza de Santa Cruz. In Arq. C. R. B. (27) Sebastião Bandeira, nota de 15 de abril de 1897, que Rui citou

na Conferência às Classes Armadas, está transcrita à pág. 115 da 2 . a ed. das "Cartas de Inglaterra". Veja-se também Murilo Ribeiro Lopes, Rui Barbosa e a Marinha, Rio 1953, pgs. 103 c 254, trabalho no qual se encontram valiosos informes sobre as relações de Rui com os revoltosos de 1893.

(28) Como é sabido, Rui reiteradamente afirmou não estar envolvido na Conspiração da qual resultou a revolta da esquadra. Para maior esclarecimento ver a carta de Rui a Alexandrino de Alencar em 8 de abril de 1907 e a resposta desta, in Arq. C. R. B.

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XIX — EXÍLIO

"O exílio, meu amigo, esteriliza o homem. O espírito do expatriado não goza nem se fecunda com o viajar. A nostalgia é uma enfermidade física, sensível, visível, palpável, que consome o corpo, e destrói a saúde. É o que tem acontecido comigo nesses quinze meses..." (Carta de Rui a Tobias Monteiro, nov. 1894).

T ONDRES. Estava-se em junho de 1894 e nos prados ainda -1-' se viam flores da primavera, quando Rui, acompanhado de Maria Augusta e dos filhos, chegou como emigrado político. Agora, pelo menos, sentia-se em segurança.

Desde que o almirante Custódio de Melo içara a bandeira branca no "Aquidaban" nove meses haviam passado, e durante esse tempo a existência de Rui correra atribulada. Logo na manhã seguinte à revolta tivera de buscar asilo na legação do Chile, onde o ministro, D. Ramon Máximo Lira, ardente liberal, que na sua pátria se opusera à ditadura de Balmaceda, o acolhera generosamente. (1) Entenderam-se bem. Mas, apesar dos cuidados do ministro para minorar a situação do refugiado, a reclusão atormentara a alma sensível de Rui.

Diariamente, burlando a vigilância da polícia e por intermédio de amigos dedicados, êle se correspondia com Maria Augusta, que se recolhera à casa de Jacobina. (2) O vendaval desfizera aquele lar feliz. Nas cartas, embora procurasse mos-trar-se forte, para confortar a família, Rui relava-se melancólico e afetuoso, "Sinto-me bem, estou forte, quase alegre. Não te entristeças, pois, não desanimes, nem chores. A estrela dos maus empalidece, e os seus dias devem estar contados". (3) Deturpação da verdade, para tranquilizar a esposa. Na realidade, estava abatido e angustiado. Sobretudo, considerava profundamente injusta a perseguição. E, nessa correspondência transbordante de amor, pois o isolamento tornara-o ainda mais apaixonado, nunca faltava lugar para duas reiteradas afirmações: a sua inocência na irrupção

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do movimento revolucionário, e a definitiva resolução de afas-tar-se da política. "Ser inocente, absolutamente inocente, como sou, e ver-me confundido com os culpados, ver-me privado do que me é mais caro neste mundo, dos maiores bens que êle encerra para mim, — minha mulher e meus filhos — eu, que não tenho trabalhado, senão para fazer bem a todos, que tenho vivido a defender os direitos alheios, que preguei constantemente a paz, a lei e a benevolência entre os brasileiros, — uma iniquidade que excede os limites da paciência humana, que esgota a resignação, e que me afasta para sempre da política". (4) Ou então: "Meu temperamento foi feito para a luta e para o perigo, não para a humilhação e para a fuga. Esta situação de asilado sem culpa que a explique, acabrunha-me. Creio que êstcs poucos dias me têm envelhecido dez anos." (5)

Contudo, ao fragor dos canhões da esquadra bombardeando a cidade, não seria possível ouvir protestos de inocência. A princípio, Rui pensara em poder deixar o asilo dentro de poucos dias, mas não tardou em desvanecer-se dessa ideia. Decretara-se o estado de sítio, e os "suspeitos" foram presos às centenas. Azeredo também votara a suspensão das garantias constitucionais e isso irritara Rui, que sobre o assunto assim escreveu a Maria Augusta: "Ainda te terá falado a mulher desse Azer., essa indigna criatura, que fêz-se à minha sombra como um réptil à de uma árvore benigna, para ir armar agora o meu inimigo com o instrumento da perseguição, cuja primeira vítima êle bem sabia que devia ser eu?" (6) Estas palavras causticantes traduziam o estado de espírito do seu autor. Estava sucumbido, e também cheio de ódio. Era amarga a cicuta, que lhe davam para beber.

Um sensato exame da situação mostrou, porém, não lhe restar outra solução além da de abandonar o país. A correspondência ficou, então, ainda mais triste. Oprimia-o a lembrança das filhas distantes, e se julgava no dever de explicar-lhes os motivos daquele drama, que o afastara do seu convívio: "Eu as abraço c acaricio com amor. Que elas aprendam em tudo isto a amar aquilo, por que seu pai sofre: a justiça e o bem dos nossos semelhantes". (7) Nada, no entanto, no seu quase desespero, poderia eomparar-se à separação de Maria Augusta. O tempo, longe de acalmar o amor, tornara-o ainda mais forte e, com imenso carinho, escrevia à mulher: "tu, meu anjo, minha alma, minha vida, podes crer que ainda outra mulher não foi mais seriamente amada por ninguém do que és tu pelo teu Rui". (8)

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248 A VIDA DE RUI BARBOSA

Alguns dias mais, e embarcou para a Argentina. Fuga cheia de peripécias. Disfarçado numa vestimenta semelhante à usada pelos exploradores ingleses dos trópicos, Rui, depois de passar uma noite inteira entre os sacos de trigo de um moinho próximo ao cais, conseguiu tomar um paquete inglês, o "Madalena", e rumar para Buenos Aires. (9) Ficava assim fora do alcance das guarras de Floriano.

A travessia a caminho do exílio foi penosa, e Rui assim a descreveu à mulher numa carta escrita ainda de bordo: "Minha adorada Maria Augusta. Decididamente, minha Cota, não se morre de dor, desde que eu não morri ainda. Mas morrerei, ou enloquece-rei, se isto continua, e eu não posso ir reunir-me contigo, ou tu comigo. Não sei, não sei como ainda vivo! Mas esta vida, que eu levo é atroz, é desesperadora: mata-me a fogo lento, sem um consolo. Quando Deus me acudirá? As lágrimas não me deixam escrever-te. Beijo o teu retrato, beijo o de João, lembro-me de nossas filhas e de Ruizinho, e o pranto me sufoca. E estou te escrevendo doente, de cama, num beliche de vapor, sofrendo de uma moléstia insuportável, que nunca padeci e que me aparece agora, em consequência da vida de prisioneiro, da imobilidade, da alimentação irregular, do uso continuo da roupa de pano, que me envolve, desde a triste noite cm que te deixei. E sozinho, minha Cota, porque não tenho quem me entenda, e com quem me desafogue! Quando Deus me valerá? Que fiz eu, para merecer isto? Que fiz senão trabalhar pelo bem de meus semelhantes, socorrer os perseguidos, defender os desamparados?" (10)

Constantemente, Rui era vítima de alucinações e terríveis pesadelos. A vida tornara-se insuportável e tinha a cabeça cheia de ideias tétricas: "se não fosse a esperança em Deus e o pensamento em ti, em nossos filhinhos, creio que já me teria suicidado". (11) O sofrimento havia, porém, reacendido o sentimento religioso e acrescentava: "Deus me perdoe esta ideia criminosa. Como se pode deixar de crer em Deus, minha Maria Augusta?" (12)

Nada, porém, o distraia. Nem sequer conseguia abrir um livro (13) e absorvia-o inteiramente o desejo de defender-se e voltar aos braços de Maria Augusta.

Numa carta dirigida a um jornal de Buenos Aires, — "La Nacion", — Rui narrou os acontecimentos que o haviam feito refugiar-se. (14) Lembrou os repetidos "habeas-corpus", em que dera ao seu país o exemplo da resistência pacífica e legal aos abusos do poder, e os ódios sobre êle desencadeados em virtude

E X Í L I O 249

dessa atitude. Não participara da revolta, dizia, ^ °, s ! " desejo era recolher-se à vida privada. "A minha intenção e a a n d o n a i ' definitivamente a carreira pública, em um mome** to e™ ^ e a s

suas contingências impõem aos homens sinceros, ^°K * eTals e

escola, a alternativa de renunciar à consciência à V 1 ' e_ a o s e

escapa ao descrédito público de cortesão do pocJ e r s e n a 0 P a r a

incorrer nas suspeitas oficiais de conjurador c o n t r a 1 s 1_

ções". (15) Feito isso cuidou de voltar ao Brasil. Plano ^ a l f o u ^ ^

fantástico e insensato e que mostrava como aindí1 n a of

c o n e c i a

Floriano. O cordeiro caminhava para a boca do 0 b í ? ' c ° e

que no mesmo navio em que fugira, incapaz de a ^ a r a s c o n s e " qúências dessa atitude temerária, Rui embarcou P a í a r e & r e s s a r -Cogitava dirigir-se para a Bahia, sua terra natal, <>"fe ,e e n c ° ^ -traria com a família, a fim de aguardarem aí, afasta s Z c e n ° da luta, o desenrolar dos acontecimentos. Pensai*160 ° v a o ' m a s

que começou a realizar. Floriano, logo posto a par de tudo pela polítf>a' P r e P a r ° u "S e

para recebê-lo. E ao general Galvão de Q u e i r a comandante do distrito militar da Bahia, o chefe de polícia t r ^ s ^ t i u ° ™ s

peremptórias sobre a prisão do imprudente v i ^ ) a . ' . ., hoje vapor "Madalena" levando Rui Barbosa. E s p ^ a l " ° V1f j 1 ^ Fazei-o prender e recolha prisão militar segura e ^e,A * / í f i \ X não atendendo reclamação de autoridade seja qu^ . . V\ ) . telegrama mostra quanto Rui se enganara ao adi*11 _.. P de Floriano deixá-lo em paz. Entretanto, ao ches5^r . ' ..•

riíi s© insistisse gos haviam-no avisado do perigo a que se expurv '. em prosseguir a viagem para a Bahia e êle se trai»5P , f "Aquidaban", capitânea da esquadra rebelde. F # r a ' , . lução possível para livrar-se da armadilha, que *? í -perturbado não pudera imaginar. Assim, empurra f , . P. guição, o homem que apenas desejava falar em no**16 , atirado aos braços da revolta quando apenas pen^ a r *^ de Maria Augusta. , . , .

Aí, durante alguns dias, convivendo com os *e ' êle aguardou a condução, que o deveria levar í*oV . . . " . Buenos Aires. Desta vez a viagem foi mais s u ^ v 6 ' „ . gusta e os filhos conseguiram embarcar na "GalíC1,.. p ^ rou-os fora da barra, onde, afinal, se juntou à faí^ ' . . .P , de Floriano. Em Buenos Aires, com outros exi lai , ' , sive Silveira Martins, com quem se reconciliara n . , . infortúnio comum, êle permaneceu seis meses. A l JX1 "

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250 A VIDA DE RUI BARBOSA

lhe era possível a atividade dos revolucionários, principalmente através de correspondências para o "New York Herald", procurando atrair, para a causa rebelde, a simpatia dos Estados Unidos. Custódio de Melo convidou-o então para representar na Europa o Governo Provisório, que se instalara em Santa Catarina, mas Rui não aceitou a incumbência. (17) Preferia assistir de mais perto à marcha sangrenta da luta.

Esse meio ano foi farto de emoções. Às vezes parecia que a revolução estava às portas da vitória, mas às esperanças seguiam-se logo as desilusões. Em dezembro, por exemplo, o almirante Saldanha da Gama, que se mantivera em posição de neutralidade desde o começo do movimento, aderira aos revoltosos. Saldanha, sem dúvida a maior figura da Armada, aliava às virtudes militares as maneiras de um gentleman, e pensou-se que o seu apoio decidiria a balança do triunfo. No entanto, a batalha continuara inalterável, pois tanto a êle como a Melo faltava o equilíbrio entre o arrojo e o tato político, condição necessária para vencer um adversário sagaz e hábil como Floriano.

E, mês após mês, Rui viu esgotarem-se os seus recursos financeiros, enquanto a situação permanecia indecisa. Das suas parcas economias, parte fora empregada em ações da "Companhia do Frontão", sociedade destinada a explorar um monopólio do jogo da péla, mas cujo negócio, prejudicado pela revolta, não dava dividendos. (18) Vencera-sc a hipoteca da casa de S. Clemente e pessoas amigas haviam pago os juros conseguindo a prorrogação dos prazos de amortização do débito. Bastava, portanto, impacientarem-se os credores para sobrevir completo desastre. (19)

Do Brasil apenas chegavam más notícias. Tobias, secretário de Rui, fora preso na Bahia. Um filho de Jacobina também estava detido pela polícia, e sobre todos os seus amigos e parentes pairava o terror e a incerteza. Cada um deles temia pelo dia seguinte, e a espionagem do governo não descansava. "Não posso escrever e dizer o que se passa por cá, informava-lhe um amigo: basta dizer que isto é um imenso deserto: quem tem olhos não vê, e quem tem boca não fala". (20) Apavorados pelos métodos drásticos e implacáveis usados por Floriano para vencer a partida, os homens ficavam cegos e mudos.

Em março, depois de uma ação monótona e ineficaz, a esquadra rebelde extenuou-se. Desperdiçara o tempo bombardeando a capital, cujas fortalezas respondiam com pontualidade ao canhoeio, e a população acabara-se acostumando ao duelo da

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artilharia. Luta indefinida do oceano contra a terra. Agora, porém, o mar sentia-se fatigado, e Floriano fortalecera-se. Pelo país circulavam lendas sobre a sua bravura fleumática, e êle surgia como um herói nacional, que salvara a República das tendências monarquistas dos rebeldes. Já era tarde demais para derrotá-lo.

Também as tropas federalistas não haviam alcançado êxitos definitivos. A princípio tinham conseguido avanços importantes, mas, quebrado o seu ímpeto do cerco da "Lapa", retrocediam vencidas. Tudo custara muito sangue, e de lado a lado houvera atrocidades incríveis. O governo fuzilara ilegalmente oficiais de marinha — alguns veteranos da guerra do Paraguai — aprisionados no Paraná e em Santa Catarina; e os reb eldes também ha-vim degolado prisioneiros. Jornalistas jacobinos incitavam o extermínio dos adversários. Um deles, Lopes Trovão, pregara abertamente a morte de Saldanha da Gama: "Vós vos chamais Luís Filipe (era o nome de Saldanha) e Maria Antonieta se chamava uma senhora da vossa preclara família. Também Maria Antonieta chamava-se a rainha infeliz de cujo colo de cisne não se merciou o aço temperado da guilhotina". Nos oorações dos homens enfurecidos não ficara lugar para a clemência e para a tolerância.

A partida estava, no entanto, perdida para os revolucionários. E, compreendendo ser inútil prosseguir na aventura, Saldanha e outros companheiros asilaram-se a bordo das corvetas portuguesas "Mindelo" e "Afonso Albuquerque", donde muitos ingiram no porto de Montevideo, enquanto Custódio de Melo foi entregar-se às autoridades do Uruguai. Era o epílogo da revolta.

Para Rui, desprovido de recursos, tornou-se impossível permanecer em Buenos Aires. E no fim de março, viajando na segunda classe do Liguria, êle rumou para Portugal. Ta decepcionado da República, e de Lisboa êle escreveu a Correia de Brito, um amigo que deixara na Argentina: "Autor principal da constituição republicana, serei, pelo exemplo da minha sorte, no estrangeiro, o argumento vivo da inaplicabidade dessa obra. Como desgraçadamente não sou rico, vejo-me na contingência de buscar meios de ganhar o pão em terra estranha, para uma família numerosa. Para isso vou começar vida nova, abrindo banca de advogado em Londres. Pouco espero dessa tentativa. Mas vou Mconselhado a ela por pessoas competentes. E depois que outro recurso me restaria? Considero definitivamente morta a revolução". (21) Até a esperança parecia desaparecer.

Ainda aí não encontraria tranquilidade. Poucos dias depois <lèle chegavam a Lisboa as corvetas, trazendo os restantes oficiais

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252 A VIDA DE RUI BARBOSA

brasileiros e o governo de D. Carlos mandou recolhê-los às fortalezas de Peniche e Sagres. Assim, o asilo transformava-se em prisão e Rui saiu a campo, defendendo os companheiros batidos. Bastou, porém, o aparecimento do primeiro artigo para que fosse proibido de continuar e ameaçado de expulsão como indesejável.

O fato apressou a ideia há muito acalentada: abrir em Londres um escritório de advogado. (22) E sem demora, transbordando de indignação, Rui deixou Lisboa, seguindo para Madri, onde chegou a 28 de junho. A 2 de julho êle estava em Paris. Apenas um curto estágio e logo atravessou a Mancha.

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Em Londres, após breve residência em Shepherd's Bush, bairro de gente pobre, a família Rui Barbosa foi instalar-se em Teddington, pequeno arrabalde à margem do Tamisa. Melancólico, Rui escreveu ao cunhado: "No desterro,, meu bom irmão, até o contentamento é triste." E continuava: "O fim da vida vem rapidamente sobre mim nesta noite desconsolada." Exagero?

Rui sempre sonhara com esse mundo anglo-saxão. De João Barbosa herdara essa paixão pela Inglaterra, cujos hábitos políticos tentara inutilmente introduzir no Brasil, e isso era, agora, motivo para irónicas alusões por parto dos correligionários de Floriano. Um destes, encontrando-se com Rui, dissera-lhe com indisfarçável prazer: "O senhor agora está entre sua gente: deve achar-se feliz." (23) Sim. De algum modo ver-se na capital do Império Britânico, atenuava o que êle próprio chamava "os tristes lazeres do desterro". Aquele espetáculo da ordem dentro da mais completa liberdade era maravilhoso. Reanimava-o. Mas, como se não se quisesse fascinar, permitindo reacender-se a flama do lutador, dizia serem "os últimos sopros do ideal num espírito desiludido onde morreu de todo a esperança". (24)

A verdade, porém, era estar embevecido. Pela primeira vez a realidade apresentava-se igual ao sonho, e aquela atmosfera de liberdade tonificava-lhe os nervos cansados. Muitas vezes Rui saía a passeio pelas cidades e lugarejos próximos de Teddington, e encantava-o contemplar a paisagem de relvados cuidadosamente tratados, floridos e sombreados pelo arvoredo frondoso. Aos seus olhos desdobravam-se ininterruptamente "cottages" de estilo moderno, e antigos castelos cheios de primores rústicos, lembrando todo o passado de uma raça forte de conquistadores, e cujo Jor-

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dão era o Tamisa com as suas canoas e boat-houses cobertas de tulipas.

Longas horas eram consumidas cm visitas a Hampton Wick, Strawberry Hill, Kingston, ou Richmond. E em cada um desses lugares so encontrava uma feliz prosperidade, tornando a vida alguma coisa digna do homem. Os jardins de Hampton Court parecem-lhe mais belos do que as Tulherias, mas ao antigo enamorado das flores nenhum espetáculo podia ser mais belo do que Kew Garden, onde se reuniam magníficos exemplares da flora do mundo inteiro. Flores e l iberdade. . . visão confortadora para um exilado.

Pensava, então, sinceramente, em abandonar a política, e escrevia a Tobias Monteiro: "Quero concentrar agora toda a minha atividade numa profissão, que me assegure a subsistência, e que me desvie do infecto fervedouro político: advocacia, comércio, publicação de obras jurídicas, ou o que quer que seja, de que eu possa viver licitamente". Prova de que os homens sempre se conhecem mal.

Teddington teve de ser abandonada. Aproximava-se o inverno, e Maria Augusta, esperando a chegada de um baby, necessitava de mais pronta assistência médica. (25) Mudaram-se por isso para Sinclair Gardens, onde, em 12 de novembro, nasceu a criança. Rui esperava um inglês, mas veio uma inglesinha, que, em honra à Rainha, tomou o nome de Maria Luiza Vitória. "Nasceu às 5,20 da tarde, escreveu êle. No Brasil seria dia. Aqui era noite cerrada". (26) Sobre o berço da recém-nascida, o pai evocava o sol quente da pátria distante. Contudo, o nascimento da filha pareceu-lhe de bom augúrio.

Realmente, três dias depois, terminado o período de governo de Floriano, Prudente de Morais, que havia sido eleito, assumiu no Brasil a presidência da República. Poucos acreditaram que a transmissão do poder se consumasse, e as versões mais desencontradas haviam circulado sobre a permanência do "marechal de ferro" no governo. Os amigos julgavam-no o homem indispensável, e os adversários, exagerando a sua cupidez de mando, afirmavam tratar-se apenas dum intervalo: passado algum tempo Floriano, provavelmente, retomaria as rédeas do poder. (27)

Estas apreensões impediram a paz. Saldanha, esquecendo dissensões surgidas por ocasião da revolta, aproximara-se novamente de Custódio de Melo, e tomara, na Argentina, a chefia dos rebeldes. Êle próprio informou a Rui, de quem se fizera amigo no exílio, o reinício das atividades: "A Revolução está mais do

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2M A VIDA DE RUI BARBOSA

((iie de pé. A invasão está feita e as operações recomeçadas. Três colunas já eslão operando na zona compreendida entre a fronteira oriental, o Ibieuí, Cacequi e Camacuã. Comandam essas colunas — Manoco Machado (chefe de primeira água), Zeca Tavares e Gaspar Barreto". E, cioso da sua dignidade, acrescentava: "Não estou reanimando a luta pelo amor obcecado da luta, ou por uma teimosia sem explicação. Tardei de entrar para ela; devo ser o último a deixar a estacada". (28) Saldanha não confiava, porém, na possibilidade de triunfo: apenas desejava uma paz honrosa. Assim, a revolução renascia fadada à derrota. Servia, no entanto, para encher os exilados de esperanças.

Ilusões passageiras: em pouco tempo o tédio dominava a existência de Rui. O inverno chegara com rigor quase desconhecido, e Londres cobriu-se de neve: os termómetros registravam 20 graus abaixo de zero e a água congelava-se nos encanamentos. De Viena e de Paris vinham notícias alarmantes sobre o frio intenso, e o whit frost estendia-se por toda a Europa. Espetáculo desconhecido para um homem dos trópicos. E Rui admirava-se vendo agulhas de gelo nas barbas dos transeuntes. (29)

Para compensar as deficiências da advocacia, êle se associara à organização de uma companhia destinada a explorar promissora mina de ouro na Austrália. O negócio, aliás, interessou-o bastante e a êle, reiteradamente, se referem as suas cartas dessa época. O intelectual parecia mesmo sentir certa vaidade por essas imprevistas atividades no mundo dos negócios. "Já vê, — escreveu, então, a propósito das minas, — que não dissipo o meu dinheiro, e que vou adquirindo um pouco do bom contágio inglês." Arquitetava lucros fabulosos. "O meu negócio das minas, informava a Jacobina, vai muito bem. A companhia, lançada no sábado, teve nesse mesmo dia ágio considerável sobre as suas ações. Espero tirar daí, se continuar bem, com que ressarcir as minhas despesas no estrangeiro durante estes dezoito meses, e os mais que ainda tenho de ficar." Aventura perigosa para quem não tinha hábitos de negócios. Realmente, a mina não passou de um sonho malogrado. (30) Alegrara-o, porém, ser admitido como membro vitalício do Imperial Institute, organização presidida pelo Príncipe de Gales. (31)

Nada, entretanto, fazia-o sofrer mais do que o isolamento. Nunca tivera muitos amigos, e, agora, estes eram em número cada vez menor. Receosos de incorrerem nas suspeitas do governo brasileiro, os compatriotas não o procuravam. Alguns fingiam mesmo não o conhecer. Certa ocasião encontrara-se com um an-

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tigo titular do Império, o barão do Rosário, e este, depois de cumprimentá-lo timidamente, retirara-se apressado, o que foi notado pelos circunstantes, e provocou riso. Rui, porém, não achou graça: doia ver-se repudiado como se fosse um criminoso. (32)

Contavam-se os que, como Eduardo Prado e o barão do Rio Branco, o haviam visitado nesse transe doloroso. Aliás, Eduardo Prado, milionário e escritor, em cuja casa em Paris se reuniam intelectuais e monarquistas exilados, fora dos mais violentos agressores de Rui após a queda do Império. Mas, impetuoso e sincero, acabara admirando aquele homem de convicções inabaláveis e que, como êle, sofria pelos seus ideais.

Quanto a Rio Branco, não esquecera o jornalista que lhe adivinhara e louvara os méritos extraordinários. Agora, depois de representar o Brasil junto ao Presidente Cleveland, árbitro escolhido para resolver a velha questão das Missões, divergência de limites entre o Brasil e a Argentina, tornara-se quase célebre. Por sinal a incumbência agradara-o sobremodo, e isso mesmo êle confessou a Rui. "Foi sem dúvida para mim uma boa oportunidade o ter podido terminar agora, nesta questão de limites, a obra empreendida por meu Pai, e que, parecendo definitivamente terminada em 1857, ficara sem efeito pela inconstância argentina". Guiara-o o seu destino. Tendo falecido repentinamente o ministro brasileiro em Washington, o encargo deveria caber ao general Dionísio Cerqueira, segundo plenipotenciário. Mas, aceitando a sugestão de Nabuco, por intermédio do conselheiro Dantas, Floriano preferira nomear Rio Branco (*).

Contudo, eram curtas as permanências desses amigos em Londres. Quase sempre, Rui estava só. A neve continuava a cai r . . . Foi terrível aquele Natal. Maria Augusta demorava a restabele-cer-se, e os dias repctiam-se monótonos, enquanto a imaginação de Rui ficava cheia de pensamentos desagradáveis. Carta a um amigo: "Eu para que sirvo mais? E que posso mais esperar da minha terra, senão a sepultura rasa, muito contente se sobre ela a calúnia der tréguas ao meu afrontado nome, e o esquecimento premiar a minha vida consumida de sacrifícios?" (33) Também os seus livros o preocupavam e escrevera a Jacobina: "O que eu desejaria saber particularmente, é como se houveram com os meus livros, e como atravessaram "essa prova". São amigos fiéis,

(*) Contrariando Oliveira Lima ("Memórias", pág. 184), que atribui a Nabuco, por intermédio do conselheiro Dantas, a indicação de Bio Branco para substituir o barão de Aguiar D'Andrada, o sr. Raul do Bio Branco ("Bemlnlscên-cias do Barão do Rio Branco", pg. 146), em trabalho posterior ao nosso, informa dever-se ao diplomata Souza Correia aquela indicação.

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aves rara. Tenho por eles sempre o mesmo interesse, ainda que já não sei que serviços hoje mais me possam prestar". (34)

A correspondência denotava tal desânimo, que os poucos amigos so mostravam inquietos. Francisco de Castro, seu médico no Rio, cuja nomeada como clínico era igual a do literato, escre-veu-lhe aconselhando-o a reagir. "Não quero vê-lo de ânimo abatido. Bem sabe que isso pode afetar-lhe a saúde, o que dará um regalo inestimável a meia dúzia de inimigos, jacobinos bravios, que são a escoria mais imunda e pútrida que há por aqui". (35) Isso era fácil de dizer. Mas, como reagir? Sofria horrivelmente e, às vezes, para disfarçar a melancolia, citava uma frase de Re-nan, que lhe fora lembrada por Tobias: — "há dias tristes, mas não há dias estéreis". Que recompensa, entretanto, poderia esperar daqueles dias dolorosos do exílio?

Enquanto isso, lentamente, o panorama do Brasil modifiea-va-se. Muitos, como Eduardo Prado, ainda temiam a reaparição do espectro de Floriano. "A linguagem dos jornais, escrevia de Paris ao Rui, convence-me de que o Floriano está na ilha d'Elba e no Itamarati (o palácio presidencial) o Prudente feito Luiz XVIII. A volta 6 certa. Só é questão de tempo". (36) Tanto eles se haviam deixado aterrar pelo ditador, que a sua sombra bastava para os assustar. Sim, de Floriano já não restava senão uma ténue sombra. O que os adversários não haviam conseguido em meses sucessivos de combate, a enfermidade fizera cm pouco tempo. Diziam-no atacado de ataxia locomotora e recolhera-se a uma cidade do interior.

Agora a moléstia animava os liberais e preocupava os jacobinos. Tobias Monteiro, solto após oito meses de prisão, punha Rui a par do que acontecia. "Tudo está tranquilo e o perigo maior está para resolver-se. Esperemos em Deus e na ossificação das artérias do monstro. Há de ter lido no jornal a notícia de que o major (Floriano) está doente de arteriosclerose, como estiveram Deodoro e Benjamim. Não é homem para muito tempo, mas é doente para muito sofrer. O diabo que não o desampare e Deus que nos ajude". (37) A frase podia parecer cruel. Mas, tendo semeado a dor para ganhar o seu jogo. Floriano não inspirava piedade aos que perseguira implacàvehnente. Pagavam-lhe na moeda em que haviam recebido.

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Embora tivesse desejado na adolescência ser um literato, Rui acabara fazendo da arte um instrumento a serviço de outros

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ideais. As suas frases podiam ser belas e harmoniosas, mas não tinham finalidade em si mesmas. Quando começava a escrever era indício de que o seu espírito se aprestava para algum embate. Nabuco também tivera idênticas ambições, e vira-as frustradas pelas imposições da vida. Conformara-se. "Os livros devem ser todos eles campanhas", dissera certa vez, mas lamentava q w o destino do amigo fosse igual ao dele.

Tendo recebido em Londres um convite para colaborar nn "Jornal do Comércio", Rui ficara inicialmente indeciso. (38) Desde que chegara não tivera ânimo para externar de público as suas impressões sobre o que ia ocorrendo no Brasil. Limitava-se a escassa correspondência com alguns íntimos, e um ou outro trabalho jurídico. O desencanto fora terrível, o ainda persistia disposto a abandonar a política.

O convite serviu, no entanto, para reavivar o plano de fazer um livro sobre a Inglaterra, que chamava a sua pátria espiritual, e no qual focalizasse, como lição aos seus compatriotas, os exemplos britânicos de respeito à lei e à liberdade. Era crescente o seu entusiasmo pela pátria de Shakespeare. E, para exprimi-lo, lembrava uma opinião de Thiers: "Durante a minha vida inteira tenho repetido, e continuarei a repetir: se, à maneira do escultor, que modela entre as mãos o barro plástico, eu pudesse afeiçoar a meu gosto o meu país, faria dele, não uma América, mas uma Inglaterra". Desse ponto de partida não foi difícil chegar à resolução de escrever alguns ensaios, que, reunidos num volume, representassem um pouco do livro apenas concebido. Essa ideia reanimou-o. Realizando-a, êle reentrava na cena.

Assim, de janeiro a junho, apareceram no "Jornal do Comer cio" cinco estudos de Rui: "O processo Dreyfus"; "As bases da fé"; "Lição do extremo-oriente"; "Duas glórias da humanidade"; e "O congresso e a justiça no regime federal". E deles o que ressu-ma é a alma do desencantado. "Tudo parecia acabado a esse homem de pouco mais de quarenta anos", dirá Lúcia Miguel Pereira (39).

Ao iniciar a publicação manifestara o desejo de evitar a política. Isto seria, porém, impossível e inacreditável: êle não retomaria a pena somente por sentir-se indignado pela condenação de um capitão francês, ou assustado pelo bombardeio de Wei-Hai-Wei. Realmente, no fundo, cada um dos ensaios encerrava lancinante confronto com a situação do Brasil. Que era Dreyfus, por exemplo? Apenas a vítima duma injustiça praticada em nome do conselho militar, que exigira um processo secreto, donde ema-

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258 A VIDA DE RUI BARBOSA

nara a sentença desumana. E êle? Não era fugitivo das execuções sumárias praticadas durante o período de Floriano? Não custava compreender a semelhança.

Quanto ao livro de Arthur Balfour (*), que lhe inspirara "As bases da fé", antes de ser o elogio da filosofia cristã, representava a valorização dos homens de inteligência e de cultura. Encan-tava-o essa associação do teólogo ao homem de governo, e que permitia a Mr. Balfour ser ministro ou administrador da Irlanda ao mesmo tempo que se entregava a cogitações religiosas. Mais ostensivas, porém, foram as conclusões tiradas da guerra entre a China e o Japão. De um golpe, a esquadra nipônica abrira o caminho para a vitória, e a Europa tremera, vendo levantar-se no oriente uma potência cuja força ignorava. E, como se fosse um perito em assuntos militares, Rui analisou os vários aspectos da campanha, tirando dela os ensinamentos, que suscitava. O seu objetivo era demonstrar a ineficiência de qualquer exército, na defesa de um país marítimo, se não dispusesse duma esquadra para defendê-lo. Surpreendia vê-lo citar estrategistas famosos e exemplos clássicos na arte da guerra, manejando-os com perícia na defesa da sua tese. A Revista Marítima Brasileira reproduziu o trabalho, fa/endo-o preceder de referências, que exprimiam essa surpresa.

Partindo das lições emanadas do conflito do extremo-oriente, Rui não tivera dificuldade em avisar o Brasil. Desorganizada a esquadra pela revolução, urgia recompô-la. Mas, como consegui-lo se, na maioria, os seus oficiais estavam expatriados ou excluídos das fileiras? A um só tempo, êle exalçava o papel da esquadra, que combatera Floriano, e pregava a necessidade de serem nela reintegrados os antigos oficiais rebeldes. Atitude hábil, e que despertou simpatias. Depois da luta a reconciliação. E isso equivalia a ferir no peito os sectários de Floriano, todos eles mais ou menos infensos às forças de mar, que ainda olhavam cheios de desconfianças.

Mas, onde mais se aguçou a mordacidade foi no ensaio, que intitulou "Duas glórias da humanidade". Essas duas glórias eram Francia, o déspota paraguaio, e Rosas, o ditador argentino. Membros da mesma família de caudilhos sul-americanos a que também pertencia Floriano, o seu estudo prestava-se a um desabafo. Tanto ao analisar uma como outra das personagens, não lhe faltaram oportunidades para estabelecer cruéis paralelos. Assim re-fere-se a Francia: — "Trajava no mato como um cavalheiro na sua

(*) The Foundations of Belief.

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sala. Não pertencia à classe dos tiranos desguelados. Não conhecia a familiaridade rasteira, que detesta a gravata como um grilhão, e desfruta nos chinelos o supremo conforto dos que a posição mais egrégia do país investiu no privilégio de serem impunemente mal educados". Ferino contraste com os hábitos de Floriano, que os próprios amigos retratavam de chinelos e sem gravata, recebendo nesses trajos as pessoas com quem desejava falar. Aliás, ao analisar o perfil de Rosas, não foi menos penetrante o estilete. Esboçando a antítese do ditador argentino, Rui, de fato, procurava fixar os traços de Floriano:

"Há um género de ambição inerte e retraída como certos répteis, que se enroscam na obscuridade, à espreita da ocasião que lhe passe ao alcance do bote. Os indivíduos dessa família moral, silenciosos, escorregadios e traiçoeiros, passam às vezes a maior parte da existência quase ignorados, ate que a oportunidade fatal os favoreça. Então o instinto originário lhos desperta as faculdades dormentes, a espinha desentorpecida colea-lhes sob as descargas de um fluído sutil, e vêem-se esses preguiçosos, esses flácidos, esses sonolentos desenvolver inesperadamente a distensi-bilidade, a flexibilidade e a tenacidade das serpentes constritoras". Haveria, no Brasil, quem não identificasse o modelo donde tirara a máscara?

Assim, jogando com temas alheios à política, Rui vingava-se e ingressava, vagarosamente, no debate partidário. Sinal de que novamente lhe renasciam as esperanças, afugentando as ideias de retirar-se da vida pública. Em breve, a paixão o dominaria inteiramente.

O último dos artigos foi inspirado pela decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, que acabara de declarar nula a lei do Congresso, sobro o imposto de renda. Era a mesma tese, que sustentara ao pleitear a anulação dos atos inconstitucionais do parlamento e do executivo, que privavam os seus clientes de vantagens asseguradas pela Constituição. Aliás, já lhe fora favorável a sentença de primeira instância e também venceria afinal. E, embrenhando-se pela jurisprudência americana, terreno em que se sentia seguro, Rui tirou do julgado todas as consequências favoráveis às suas concepções jurídicas. Imaginara dotar o Brasil com um regime idêntico ao da América do Norte, mas, da semente lançada em terra estranha, ao invés do esperado carvalho, brotara uma planta franzina e frágil, que procurava revigorar. Por que não se regeneraria o arbusto? Por que não seguiriam os tribunais brasileiros o exemplo dos Estados Unidos, tomando a

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260 A VIDA DE RUI BARBOSA

posição que lhes confiara a Constituição? Rui, um tanto decepcionado da República, que ajudara a fazer e de que se acreditava o autor principal, esforçava-se desesperadamente para conseguir salvar a sua obra.

Contudo, nessa ocasião já lhe havia chegado o eco das críticas provocadas pela ardente admiração demonstrada nas "Cartas" pela Inglaterra. E, antes de examinar o julgado da Suprema Corte, reafirmara-a, citando Emerson: "Na estabilidade da Inglaterra jaz a segurança do mundo moderno. Se a raça inglesa fosse tão mudável como a francesa, em que se poderia confiar? Mas à Inglaterra não faltará liberdade". Êle se sentia "soberbo de ser homem."

As "Cartas", lidas pelo público com avidez, constituíram magnífico cartão de visita, anunciando o próximo retorno do autor. Realmente, à medida que as nuvens desapareciam do horizonte, tornavam-se mais instantes os chamados dos amigos, aconselhan-do-o a voltar. Mesmo a Maria Augusta as amigas escreviam, informando ter passado o perigo. "Não vejo perigo em voltares, es-crevera-lhe uma delas, todos que se envolveram na revolução aqui estão de volta". Ela estava ansiosa para regressar. Concluídas as modificações, que traçara para a "sua" casa, esta aguardava-a, tal como a idealizara. O pesadelo não custaria a passar.

Em junho — fazia um ano que chegara a Londres — Ruí dispôs-se a abandonar o exílio. Agora a tristeza transformava-se no prazer proporcionado pela perspectiva de rever tudo aquilo de que o separara a tempestade. E quanto mais próxima ficava a partida, mais êle se via atraído pelo desejo de retomar as suas antigas armas e reiniciar o combate contra Floriano. Como Aquiles, ninguém senão êle as saberia manejar.

Mas ainda teve tempo para visitar a exposição da Royal Bo-tanical Society. José Carlos Rodrigues, agora diretor do "Jornal do Comércio", convidou-o para percorrerem os floridos mostruários: "Como sei que gostam de flores pedi bilhetes para a festa floral anual da Royal Botanical Society". (40) Rui despedia-se de Londres, para sempre. Apesar de tudo, êle a amara.

NOTAS AO CAPITULO XIX

(1) Rui, à véspera do movimento revolucionário, recolheu-se à casa do dr. Francisco de Castro, donde passou para a legação do Chile. V. Aloísio de Castro, "Discursos Literários , p. 46 (Rio, 1942) e Recordações de Rui Barbosa, Rio 1956, pg. 40.

(2) Cf. Américo J. Lacombe, "Mocidade e Exílio", p. 166.

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^

(3) Cf. carta de 8 de setembro de 1893, in "Mocidade e Exílio", p. 169.

(4) Cf. carta de 11 de setembro de 1893, idem, p. 177. (5) Idem, idem, p. 179. (6) Cf. carta de Rui a D. Maria Augusta, em 1.° de setembro de 1893. (7) Cf. carta de Rui em 8 de setembro de 1893, in "Mocidade e

Exílio", p. 170. (8) Cf. carta de 19 de setembro de 1893, de bordo do "Magdalena",

in "Mocidade e Exílio", p. 197. (9) Cf. Batista Pereira in "Cartas de Ingluterra", prefácio da 2.a

edição, p. 78. (10) Carta de 19 de setembro, de bordo do "Magdalena", in "Moci

dade e Exílio", p. 185. (11) Idem, idem, p. 188. (12) Idem, idem, idem. (13) Cf. carta de Rui a D. Maria Augusta, em 25 de setembro de

1893, in "Mocidade e Exílio", p. 211. (14) Carta datada de 19 de setembro, bordo do "Magdalena". Está

publicada no vol. "Ditadura e República", prefácio e notas de Fernando Nery, p. 5.

(15) Rui Barbosa, carta a "La Nacion" acima mencionada. (16) O original do telegrama de Floriano está no arquivo do Instituto

Geográfico e Histórico da Bahia. Mais tarde, em carta escrita a Rui de Pelotas, em 3 de setembro de 1895, asseverou o general Francisco Galvão que havia deliberado fazer Rui seguir para a Europa, caso o encontrasse no "Magdalena". Essa carta está reproduzida no livro do sr. Carlos Viana Randeira. "Lado a lado de Rui".

(17) Cf. carta de Custódio de Melo a Rui, de bordo do "Aquidaban", em 16 de novembro de 1893. Nela escrevia o chefe da revolução: "Com os elementos de que já dispõe a revolução no Rio Grande, em Sta. Catarina i- no mar, e com o concurso daquilo que Napoleão chamava o "nervo da Guerra", estou certo de que não está longe o nosso triunfo final. Neste particular, pensando devidamente, por um lado, o que me dissestes com relação à multiplicidade de órgãos da revolução no Rio da Prata, e, por outro lado, a conveniência de vos achardes colocado em um centro mais de nção, mais apropriado às vossas aptidões, eu vos pergunto se não aceitais o cargo do representante da revolução (do governo provisório) na Europa."

(18) Foi muito discutida, na época, a legalização do jogo do Frontão, também chamado da Péla. Sobre o assunto há interessante folheto com os pareceres dos juristas Lima Drumond, Ouro Preto, Barbalho, Batista Pereira, Lufaiete Pereira, Silva Costa, Bush Varela, Andrade Figueira, Eduardo liamos, Benedito Valadares, Sancho Pimentel, Melo Matos, Paula Ramos, \lcantara Machado, Leovigildo Filgueiras, Severino Prestes, Duarte de Aze-redo, Pedro Lessa, João Mendes, João Monteiro, Oliveira Escorei, Martins lúmor, Gaspar Drumond, Geminiano Brasil. (Jurisprudência — A legalidade do Jogo da Péla, S. Paulo, 1896) — Quanto aos interesses de Rui na Companhia de Frontão podem ser consultadas as cartas de Carlos Aguiar a Rui Barbosa, de quem foi íntimo amigo, em 15 de novembro e 1.° de .lezembro de 1893, in Arq. C. R. B. Também em carta de 24 de abril ilc 1894 se refere Aguiar ao Frontão.

(19) Na correspondência de Rui dessa época, e como se poderá ver • [.( nas pela leitura da que está publicada em "Mocidade e Exílio", é cons-

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262 A VIDA DE RUI BARBOSA

tante a preocupação com os assuntos ligados à sua situação financeira, o que mostra que não seria boa. Quanto à hipoteca da casa de S. Clemente vencera-se em 24 de outubro de 1893, tendo amigos de Rui obtido uma prorrogação mediante pagamento dos juros, conforme se lê em carta de Carlos de Aguiar a Rui, em 15 de novembro de 1893, ín Arq. C. R. B.

Muito expressivo também é o rascunho, autógrafo de Rui, duma carta de D. Maria Augusta, em 28 de novembro de 1893, ao irmão, Carlos Viana Bandeira, e que reproduzimos: "Meu caro irmão. Pelo seguinte vapor lhe escreverei sobre outros assuntos, respondendo às suas cartas, e ocupan-do-nos com aquilo que nos toca ao coração. Hoje, pela urgência das cir-custâncias, com o pouco de que disponho, apenas tratarei dos nossos interesses, cuja gestão lhe vamos confiar, dando-lhe as instruções, que lhe prometemos por telegrama de 24 do corrente.

V. encontrará, na caixinha entregue aos cuidados da prima, os nossos papéis de valor.

Eles constam de: (1.°) Uma quantia em dinhero, cuja soma temos registrada em nossas

notas, e que V. encontrará intacta. (2.°) Seis letras do Banco, a vencerem-se, todas na mesma data, em

um dos últimos dias deste mês, ou num dos primeiros de dezembro. Escuso dar-lhe a importância que sabemos e V. verificará. (3.°) Uma letra de dez contos, daquele nosso amigo, com quem V.

arranjou a transação, já vencida há muito tempo. (4.°) As letras do A., correspondentes à hipoteca. Passo agora a expor-Ihe rapidamente as nossas intenções em relação

a cada um desses objetos. (l.°) As letras do A. dê-as em remissão da nossa dívida para com êle

recebendo dele o último recibo, de resgate total do débito, nos termos da escritura. Este recibo será em duplicata, firmado por êle e sua mulher. Um dos exemplares V. o enviará a devida segurança. O outro guardará na caixinha, que tornará a dar a guardar à prima.

(2.°) Quanto à letra de dez contos, se não fôr cobrável agora, V. tomará nova letra ao devedor, incluindo nela os juros devidos, e, a encerrará igualmente no mesmo lugar.

(3.°) A soma em dinheiro, existente na caixinha, V. a entregará à prima, em cujas mãos esteve até agora a caixa, para os fins que exporemos em carta a ela, ou seu marido.

(4.°) As letras do Banco, V. receber-lhes-á o valor, e depositá-lo-á em um banco inglês, ainda que sem juros, em seu nome. (Parece-nos ser a colocação mais conveniente). Disso me dará V. um documento particular, ou duplicata, do qual deixará uma das vias na caixa, remetendo-me a outra pelo correio.

Se os bancos não receberem dinheiro, V. verá o melhor meio de guardar em segurança essa quantia, contanto que não fique no mesmo estabelecimento onde está, ou noutro sujeito aos mesmos perigos da atualidade. Em último caso, dê o dinheiro a guardar em espécie, encerrado numa caixinha, à mesma pessoa que tem guardado a outra até hoje.

Se até o dia do vencimento da prorrogação da hipoteca o M. não houver arranjado a substituição que me prometeu num banco, queremos que a hipoteca seja resgatada. Para esse fim se tirará a importância total dela da letra do Jucá, se êle a pagar. Se não, tire-a V. da que receber

E X Í L I O 263

das letras do Banco, antes de recolher a importância arrecadada ao estabelecimento, conforme acabo de recomendar-lhe".

(20) Cf. carta de Carlos Aguiar a Rui, em 1.° de dezembro de 1893, ín Arq. R. C. B.

(21) Apud Murilo Ribeiro Lopes, Rui Barbosa e a Marinha, pg. 154. Carta de Lisboa, em 21 de abril de 1894. Rui partiu de Buenos Aires em 20 de março de 1894 (V. Fernando Nery, "Rui Barbosa", p . 83), no vapor Liguria, tendo chegado no dia 8 de abril a Lisboa, onde os jornais "O Século" e o "Correio da Manhã" publicaram entrevistas do ex-ministro da Fazenda. Contudo, como tivessem saído adulteradas as declarações de Rui à imprensa, viu-se êle obrigado a retificá-las, o que f«V. cm cartas de 9 e 10 de abril de 1894 ao diretor do "Correio da Manhã", c que existem em cópia autêntica de Rui no Arq. C. R. B. Nelas são sobretudo interessantes os conceitos que emite sobre o militarismo no Brasil, e sobre o visconde de Ouro Preto, que diz não desejar "ferir, na adversidade tão dignamente suportada, com recriminações extemporâneas e estéreis."

O artigo de Rui em defesa dos revolucionários brasileiros foi publicado no "Correio da Manhã" sob o título "Justiça aos vencidos", em 1.° de maio de 1894.

Em Lisboa demorou-se Rui até 27 de junho de 1894, conforme se vê no caderno de apontamentos de Rui relativo a esse período, e que se encontra no Arq. da C. R. B. Em nota, do punho de Rui, contraria o que se lê na carta que escreveu a Jacobina, dizendo partir para Londres em 25 de junho. (V. "Mocidade e Exílio", carta de Rui a Jacobina em 25 de junho de 1894).

(22) Da malograda advocacia de Rui em Londres constitui curioso documento o autógrafo do anúncio que escreveu para publicar na imprensa (o que não podemos verificar se realmente fêz), e que existe no Arq. C. R. B. Eis o seu texto: "It is a notorious fact the total abscence of any Brazilian lawyer in the United Kingdom, although the English metropolis is by far the most important centre of Brazilian interests out of Brazil; and thence a permanent cause of delays, inconvenience and damages for the commercial public and the invertors in this country.

In view of this the undersigned has been advised to offer his services here as a professional man to whose may be concerned with interests, ques-tions or suits, before Brazilian officers, magistrates or legislators.

The undersigned is graduated in law by the two Brazilian Law Faculties of Pernambuco and St. Paulo (1866-70.). Moreover, besides his administration experience as Minister of Finance government (1889-91), he has had fifteen ycars of legislativo practice as a member (deputy and senator) do the legis lative assemblies of that country under the Empire and the Republic (1878-94), as the main author of the Brazilian constitution and to a large part of the Brazilian legislative acts in force concerning mercantile and financial matters, and he counts twenty theree years of law practice (1870-93) at the Brazilian bar, fifteen of them in Rio de Janeiro, having been frequently entrusted with the advocacy of the most notorious lawsuits.

Having not yet fixed an office in the City, he will receive thos who will honour him at his own residence, 7 Sinclair Gardens, W. Kensington, overy morning from 10 A.M. to 1 P.M. except Saturday and Sundays."

(23) Sobre a admiração de Rui pelos Estados Unidos veja-se a carta dirigida a J. Nabuco em 22 de julho de 1906. Cópia in Arq. C. R. B.

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2 6 4 A VIDA DE RUI BARBOSA

(24) Carla a António Jacobina, em 20 de agosto de 1894, in "Mocidade e Exílio", p. 241.

(25) Idem, idem, p . 246. Esta carta foi, em parte, publicada na «"•poça, no "Jornal do Comércio", e a isso se refere Rui em carta a Jacobina, cm 26 de dezembro de 1894. Homero Pires, "Correspondência", reproduz o trecho citado, mas sem o nome do destinatário.

(26) Cf. carta de Rui a Domingos Lacombe, em 3 de novembro de 1894, in "Mocidade e Exílio", p . 256.

(27) Há uma carta de Rui ao almirante Saldanha da Gama, em 20 tle agosto de 1894, e que constitui expressivo depoimento sobre a certeza em que estava da pouca duração do governo de Prudente de Morais. Nela, revelando informações que teria obtido, por interposta pessoa, dum estrangeiro (inglês que se encontrava em Londres a serviço de Floriano Peixoto), escreve: O Prudente e o M. Vitorino já têm fixados um e outro a duração do seu período presidencial. O primeiro está fadado a governar apenas um, e o segundo dois meses. Em trinta dias o paulista, e em sessenta o baiano ver-se-ão obrigados a abdicar pelas desordens, estudadas e maquinadas desde agora, com que o exército, a polícia, os jacobinos e os demais elementos apaniguados ao florianismo os forçarão a despejar o Itamaratí. Então Floriano terá de ser invocado como o homem indispensável, o específico contra a a n a r q u i a . . . " (Copia in Arq. C. R. B.).

(28) Cf. carta de Saldanha da Gama a Rui Barbosa, de novembro de 1894, in Arq. C. R. B. - A carta está assinada "Luiz Saldanha", mas Rui pôs abaixo a seguinte nota: "Esta carta é do almirante Luiz F . de Saldanha da Gama."

(29) Cf. carta de Rui a A. Jacobina, em 9 de fevereiro de 1895, in "Mocidade e Exílio".

(30) O fato de havermos considerado um malogro esse negócio das minas australianas suscitou severa crítica do sr. Homero Pires no artigo que escreveu no "Diário da Noticias" (Rio), cm 15 de novembro de 1942, sob o título "Histórias de Canhoto". (V. Luiz Viana Filho — "A verdade na biografia", p . 109). Entretanto, para melhor elucidação do assunto, poderá ser compulsado o extrato da conta corrente entre Rui Barbosa e António Ferreira Jacobina, entre 16 de janeiro e 31 de julho de 1895, in Arq. C. R. B., e pelo qual se verá que a conta está encerrada com um saldo devedor contra Rui de 60:583$740.

(31) Cf. carta de Rui a A. Jacobina, em 26 de dezembro de 1894, in "Mocidade e Exílio", p . 281.

(32) Cf. carta de Rui a A. Jacobina, em 30 de novembro de 1894, in "Mocidade e Exílio", p . 266.

(33) Cf. carta de Rui a Vitor E. de Sousa, em 24 de novembro de 1894, in "Correspondência", p . 97.

(34) Cf. carta de Rui a A. Jacobina, em 3 de setembro de 1894, in "Mocidade e Exílio", p. 252.

(35) Cf. carta de Francisco de Castro a Rui, em 30 de janeiro de 1895, in Arq. C. R. B.

(36) Cf. carta de Eduardo Prado a Rui Barbosa, em 14 de dezembro de 1894, in Arq. C. R. B.

(37) Carta de Tobias Monteiro a Rui, em 10 de março de 1895, in Arq. C. R. B.

(38) Conforme se vê da carta de Rui a Jacobina, em 30 de novembro de 1894, in "Mocidade e Exílio", p . 268, o convite para colaborar no

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"Jornal do Comércio" foi transmitido pelo sr. Powell, redator do "Financial News", e representante do "Jornal do Comércio" em Londres. Quanto a haver Rui ficado indeciso basta ler-se a carta de 26 de dezembro do mesmo ;mo, dirigida a Jacobina, e na qual diz expressamente: "Creio que não encetarei as cartas ao "Jornal do Comércio". E, em seguida, enumera os motivos da sua decisão (V. "Mocidade e Exílio", p. 282). Em outra carta, de !0 de janeiro de 1895: "Afinal, depois de infinitas irresoluções, escrevi para o "Jornal do Comércio. . . " Nessa mesma caria refere-se Rui à remuneração pelas cartas, acrescentando que seria "bem-vindo esse subsídio". De fato Rui recebeu 60 & (V. "Mocidade e Exílio", p. 344). Entretanto, existe no Arq. C. R. B., o seguinte autógrafo de Rui: "Trecho da m. a carta de 11 de junho de 1895, em resposta ao da carta de J. C. Rodrigues em 10 do mesmo mês: "graças pelo q. me diz a propósito do Jornal. Peço, porém, permissão, para observar que êle não tem débito nenhum para comigo. Quando, por intermédio do Powell, recebi o seu convite, que me franqueava a honra da colaboração naquela folha, não se me falou, nem eu cogitei em remuneração. Creia q. me acho, pois, mais que pago com o gosto de ser um dia operário de uma empresa, que eu considero quase como uma instituição nacional, e cujos perigos, nos últimos dias da ditadura, eu acompanhei com a ansiedade de quem tivesse empenhados ali os maiores interesses. E não quero privar-me desta satisfação, envolvendo-a cm considerações de outra ordem, qualquer q. sejam as minhas dificuldades."

Também em carta de 9 de maio de 1895, dirigida a A. Jacobina (V. "Mocidade e Exílio", p . 326) dizia Rui pretender "não aceitar nada" por considerar irrisória a retribuição de 5 ou 7 libras por carta. Nesse mesmo propósito, aliás, se mantinha ao escrever a A. Jacobina a carta de 23 de maio de 1895 (in "Mocidade e Exílio", p . 332), e junto à qual remetia a resposta a Afonso Celso Filho, e esperava fosse publicada na parte editorial, uma vez que o incidente era provocado pelas "Cartas de Inglaterra", cujo trabalho é gratuito.

Em carta de 6 de janeiro de 1895, Tobias Monteiro, em carta a Rui, dizia-se informado por J. C. Rodrigues que este o convidara "para colaborar no grande órgão, com uma retribuição combinada". (In Arq. C. R. B.)

(39) Lúcia Miguel Pereira, prefácio ao vol. XXIII, tomo I, das Obras Completas de Rui Barbosa.

(40) Cf. carta de 10 de junho de 1895, in Arq. C. R. B.

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XX — A SOMBRA DE UM MORTO

Vem de longe a praga difamatória; e não é contra mim especialmente que se dirige: é contra a Republica.

Rui.

T? UI voltara tal qual partira: o exílio, depois dos quarenta ** anos, pouco lhe ensinara. Paixão, orgulho, timidez, revolta, idealismo, eram qualidades que o sofrimento e a melancolia do desterro apenas haviam exaltado.

Com as "Cartas de Inglaterra" de permeio, evolvera do homem desejoso de abandonar a política para o cidadão disposto a retomar o seu posto de combate. Os amigos receberam-no com efusivas manifestações e um deles lhe escreveu então: "Não tenho flores, bem vê, para lhe atirar no caminho, que, sendo o de seu triunfo, é também o de seu sacrifício, porque este é o símbolo de sua vida inteira". (1) Conceito verdadeiro. Realmente, na existência de Rui, cada triunfo custara imensos sacrifícios.

Contudo, ao chegar, não encontrou mais o grande adversário: Floriano falecera pouco antes. Extinguira-se silenciosamente numa cidade do interior e dele apenas ficara a sombra, um espectro, que os seus exaltados partidários erigiam num símbolo de intransigência. Assim, transformado em bandeira dos jacobinos, Floriano, sempre tão realista e maleável à vitória, continuava a atormentar os seus inimigos.

Eram curiosos esses jacobinos. Às vezes cruéis, às vezes abnegados, não sabiam muito bem o que queriam. Tendo acreditado na infalibilidade de Floriano, sentiam-se desarvorados e mos-travam-se inclinados a demolir. Principalmente, odiavam os estrangeiros. Notícia publicada num dos seus jornais: "Morreu ontem de febre amarela o galego F. Abençoada febre amarela! A terra te seja leve com o Pão de Açúcar em cima". (2) A isso eles chamavam nacionalismo.

Aliás, o desaparecimento de Floriano não fora a única surpresa feita a Rui pela morte, durante a ausência. Também velhos

«

A SOMBRA DE UM MORTO 267

amigos e novos companheiros já não existiam. O cons. Dantas sucumbiu em fevereiro de 1894. Nunca mais o veria. E deve ser triste lembrar que aquele amigo a quem tanto deveu as primeiras oportunidades na vida pública, fechou os olhos zangado com "o filho". Agora é tarde demais para que se possam entender.

Saraiva, de quem se separara na República, faleceu na quietude do seu engenho de açúcar, na Bahia, uma semana antes de Rui chegar ao Rio. Tivera, talvez, a ilusão de poder ser o Thiers da República, mas, compreendendo quanto seria vão esperar um pouco de respeito daqueles jovens inquietos e irreverentes, fora aguardar a morte entre o cicio bucólico dos seus canaviais. Saldanha Marinho, em maio, também tombara. No fim já havia pouco do liberal, que surgira em 1860 e oito anos depois sacrificara a cadeira de senador, por não desejar conservar-se silencioso ante a queda de Zacarias. Continuara, porém, a admirar os que lutavam. Certa vez, tendo atacado Rui no Senado, logo lhe escrevera no dia seguinte, pedindo-lhe para não acreditar no que dissera: fora forçado pelas circunstâncias. Certamente, já estava cansado para recomeçar a jornada.

Agora, todos repousam no sono eterno. Outro que caiu foi Saldanha da Gama. Êle avisara a Rui: — "Uma vez que entrei para a luta, hei de ser o último a sair da estacada". (3) E morreu na estacada. Obrigado a escolher entre ser internado com as suas forças pelo governo da Argentina, ou ir enfrentar tropas legais muito superiores, preferira o último alvitre, indo acampar cm Campo Osório, pequena esplanada próxima à fronteira. Atacado, não deixara correr o cavalo e encontraram o seu cadáver horrivelmente mutilado. (4) Quando quase todos disputavam com avidez uma fatia do poder, julgara necessário dar este exemplo ile coragem e abnegação.

É triste ver esses claros nas fileiras em que se lutou. Outros amigos de Rui, embora vivos, não estão felizes. Rodolfo, por exemplo, a quem o tempo fizera esquecer as desavenças suscitadas por ocasião da República, tem a existência sempre toldada pela dúvida, que o domina desde que renunciou à política. Jamais conseguiu certificar-se de que devia ter feito o que fêz. Mas, principalmente, preocupa-o a saúde de Alice. Jacobina, tão meigo dedicado, também está doente. Há muito que contempla a própria decadência e, embora os amigos procurem animá-lo, não alimenta qualquer ilusão. Na verdade, dos afeiçoados a Rui, Azeredo (Rui já o perdoara) e Tobias talvez sejam dos poucos ipie parecem felizes.

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Rui deve, porém, recomeçar. Como o convalescente após grave enfermidade, terá de retomar aos poucos o curso da vida. Entretanto, dividido o país entre os jacobinos, que sonham com a volta do mundo perdido com a morte de Floriano, e os correligionários de Prudente de Morais, que almeja a paz, mas talvez precise fazer a guerra para a conseguir, não se sente inclinado para nenhuma destas facções, e permanecerá arredio dos partidos, solitário, mas vigilante.

Dos poucos amigos que compõem o seu mundo de afetos, nenhum teve dele por esse tempo a preferência do seu médico Francisco de Castro, aquele homem suave e de negra barbicha pontiaguda, alguns anos mais moço do que êle, e a quem os discípulos chamavam o "divino mestre". Tomara de certo modo o lugar de Rodolfo. Castro, sábio professor de medicina, poeta, filólogo, parecia evadir-se do seu acre ceticismo fazendo da própria vida uma obra de arte. Escrevera na adolescência:

"Sobre o mar agitado dos tormentos Um dia eu me perdi,

K embalde perguntei aos quatro ventos: — For que foi que nasci?"

E jamais conseguira responder à angustiosa interrogação... Entretanto, o lutador cheio efe fé deixara-se empolgar pelo cétíco. Rui, tão parco de entusiasmos pelos companheiros, fora seduzido pela inteligência vigorosa e amena do seu médico, um dos poucos amigos com quem pôde e tolerou conversar de igual para igual.

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A 30 de novembro de 1895, festejando a glória do autor das "Cartas" e o seu retorno à pátria, a redação do "Jornal do Comércio" ofereceu-lhe um banquete. Era a primeira vez que Rui falava em público após o exílio. Fê-lo de improviso. E tanto agradou o discurso, em que reafirmava os seus ideais de liberdade fiscalizada pela imprensa e assegurada pela justiça, que lhe pediram para, se possível, recompor a oração. Com espanto, deslumbrados por aquela memória privilegiada, ouviram-no reproduzi-la, palavra por palavra, sem faltar uma vírgula.

Um dos primeiros a felicitá-lo pelo bom êxito alcançado pelo discurso foi o ministro da Argentina, Garcia Meron. "Acabo de ler — mi distinguido senor e amigo — el admirable discurso que publica el Jornal do Comércio de hoy, y un impulso irresistible

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de simpatia y de admiración pone la pluma en mi mano para liacer llegar a V. E. mis respetuosos homenages. Es pieza magistral, es el digno complemento de la Petición de Habeas-Corpus, y de la Oración pronunciada por V. E. ante cl Supremo Tribunal l iderai el 23 de abril de 1892. — He vuelto a recorer essas paginas de beleza insuperable, y me encuentro aun palpitante y comovido, con el corazon tremulo y el cérebro vibrante, envuelto i-ii el circulo magico de su eloquência arrebatadora, baríando en los lulgores y los destellos de su pensamiento genial. Hace bien ai alma esta commocion profunda, que impede a haver llegar hasta V. E. el ico de una palabra sin autoridad y sin prestigio peio en la cual palpita la passion generosa de un corazon leal! No conosco, en d vasto cenário de América, ninguna personalidad literária digna de rivalizar con V. E.; y me place considerado assi, como la mas pura gloria intelectual de nuestro continente, como un pensador de que todos podemos enorgullecernos, porque su ación y su palabra, su propaganda de periodista y su predica parlamentaria, MIS brillantes campanas de tribuno y sus árduos trabajos de legislador y de jurisconsulto, todos los tesoros de su espiritu grandioso, y todas las virtudes de su caracter elevado, — han estado siempre subordinadas à la defensa dei derecho, dei bien, de la moral y de la libertad". (5) Referindo-se a um oposicionista ao governo junto ao qual estava acreditado, a linguagem do diplomata era um tanto exaltada. Nada tinha de protocolar. Mas, sobretudo, era sincera e justa.

Contudo, no Brasil ainda se mostravam bastante divergentes is opiniões a respeito de Rui. Era mesmo curioso observar-se o paralelo feito por muitos entre êle e Floriano. A este, que lutara .ipegado ao poder, alguns consideravam um patriota abnegado, enquanto àquele que suportara o exílio pelas suas convicções, julgavam apenas um ambicioso despeitado e maléfico à tranquilidade pública. Essas coisas, no entanto, não o faziam retroceder.

Depressa, Rui se transformou numa espécie de advogado do povo. Há alguém preterido nos seus direitos? Rui será, certamente, o seu patrono. Assim, se o congresso decreta a anistia, pilgiirido impossíveis de revisão as penas e os processos dos apa-Míilcmente beneficiados pela medida, é êle quem bate às portas ilns tribunais, para se opor àquele caso de "teratologia jurídica", hiiam demitidos das suas funções os professores da Escola Politécnica? Rui irá defendê-los. Aposentou o governo alguns magistrados em disponibilidade? Rui aparece pleiteando a reinte-Kiueftn. V. os próprios monarquistas, cujo partido fora reorgani-

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zado em 1896, vendo-se ameaçados, não procuram outro advogado. Como os republicanos franceses do tempo de Luiz Felipe, confiando ao monarquista Berryer a sua defesa, eles se sentem seguros sob o patrocínio de Rui. (6)

Naturalmente, essas atitudes deviam ser incómodas ao governo. Severino Vieira, seu colega no senado, escreve a Luiz Viana, governador da Bahia: "O Rui a golpes de erudição e abusando da sua autoridade, prestigiada, aliás, pelo país inteiro, perante juízes que nada estudam e pouco raciocinam, tem causado ultimamente os maiores embaraços à administração do Prudente". Não demoraria, porém, a oportunidade para que o fizessem pagar bem caro esses aborrecimentos, pois estava a expirar o seu mandato de senador da Bahia.

Desde que voltara do exílio, o prestígio de Rui, como advogado, tornara-se extraordinário. O seu escritório estava sempre cheio de clientes ricos, que lhe pagavam regiamente, para o terem como patrono de vultosos interesses e isso lhe permitira um nível de vida cada vez mais alto. A casa de S. Clemente, onde Maria Augusta, como grande dama, recebe os seus convidados, surgira entre os falados salões da cidade, e sobre a residência do ex-Ministro da Fazenda circulam algumas lendas. Os mais curiosos afirmam que vinte e dois criados estão às ordens do casal e comentam a existência de faustosas baixelas de prata. Também se murmura que um pequeno trem é a condução usada por Maria Augusta para percorrer a mansão: e essas coisas são ditas de maneira tão categórica que, certo dia, um deputado, recentemente chegado da província, pediu licença a Rui para ver o trem maravilhoso e imaginário. (7)

Os seus adversários não aceitavam, porém, de bom grado que a prosperidade adviesse dos proventos auferidos na advocacia. Por que não a explicar reeditando as antigas acusações feitas ao ministro da Fazenda?

Realmente, ao aproximar-se a eleição, o deputado César Za-ma, aquele a quem despojara, na Bahia, da láurea de primeiro dos oradores entre os liberais, pronunciou, na Câmara, um discurso repleto de ferinas alusões à honestidade de Rui. (8) Esperava quase vinte e cinco anos e pensava ter encontrado a ocasião apropriada para o desforço. Não foi um ataque de frente: apenas se fizera o éco de malévolas insinuações.

Como seria de prever, o revide não tardou. Alguns dias depois, a 13 de outubro de 1896, no senado, que há muito não lhe ouvia a voz, Rui levantara-se para defender-se. Parecia calmo,

A SOM URA I)K UM MORTO 271

ii.i/.i.i nas mãos alguns documentos, e, quando começou a falar, lnj',1) se percebeu estar disposto a liquidar o assunto definitivamente. Discurso autobiográfico. E, narrando episódios essenciais de sua carreira, explicou a origem e a relativa modéstia da fabulosa fortuna, que lhe atribuiam.

Não era a primeira vez que o obrigavam a explicações dessa ualiircza, e, por isso mesmo, êle citou Cobden: "Todo aquele que tiver, como eu, vivido a vida política, há de ter experimentado a inutilidade absoluta de defender-se contra a calúnia; por-<|ii<\ se a esmagamos, ressurgirá no outro dia mais dilatada e vivaz do que nunca".

Nesse discurso, ferido no seu orgulho, o tímido pôs o melhor da sua arte. Certa vez, êle anotara esta frase de Rossi: "Jai t o u " jours eu du faible pour les hommes qui parlent lentement". (9) K lalando pausadamente, a "voz extensa e mordente" sempre igual nias acentuando as sílabas, como fazia ao querer trespassar o adversário com uma frase mais cáustica, Rui investiu contra Zama, cuja predileção pelo jogo era notória:

"Aos meus passos mais indiferentes, às intimidades mais recônditas da minha vida particular, aos móveis de minha casa, ao serviço do meu refeitório, ao trajar de minha família, às alfaias de; minha mulher, a tudo se estendeu a conta, o peso, a medida iníqua da crítica armada com os olhos da inveja, com a taca-cliices da malignidade, com as impudências da mentira. Até a minha biblioteca, lenta estratificação de vinte e cinco anos de amor às letras, entrou a ser contada, avaliada e apontada, como expressão da minha opulência". E em seguida: "Os pobres, ao que parece, não entesouram livros: compram baralhos, bebem, tunam e fumam na boémia, que é barata: e, se o acaso de algum chorrilho abençoado os leva à abastança, firmam honradamente o seu advento à burguesia endinheirada, abalançando-se ao luxo da propriedade de uma roleta."

Com volúpia e orgulho lembrara então a pobreza do berço e a desgraça que buscara tomando sobre os ombros a responsabilidade das dívidas paternas. Muitas outras vezes êle ainda recordará essa passagem heróica de sua vida. É mesmo curioso observar a insistência com que fere esta nota em várias ocasiões. Kntretanto, se acaricia com prazer o infortúnio voluntário, o calvário criado pelas própria mãos, parece detestar os sofrimentos, que não quis e não pôde evitar. Talvez por isso, durante toda a longa existência, êle que sempre gostou de falar de si, jamais |)inferiu qualquer palavra capaz de evocar os dias de desespero

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zado em 1896, vendo-se ameaçados, não procuram outro advogado. Como os republicanos franceses do tempo de Luiz Felipe, confiando ao monarquista Berryer a sua defesa, eles se sentem seguros sob o patrocínio de Rui. (6)

Naturalmente, essas atitudes deviam ser incómodas ao governo. Severino Vieira, seu colega no senado, escreve a Luiz Viana, governador da Bahia: "O Rui a golpes de erudição e abusando da sua autoridade, prestigiada, aliás, pelo país inteiro, perante juízes que nada estudam e pouco raciocinam, tem causado ultimamente os maiores embaraços à administração do Prudente". Não demoraria, porém, a oportunidade para que o fizessem pagar bem caro esses aborrecimentos, pois estava a expirar o seu mandato de senador da Bahia.

Desde que voltara do exílio, o prestígio de Rui, como advogado, tornara-se extraordinário. O seu escritório estava sempre cheio de clientes ricos, que lhe pagavam regiamente, para o terem como patrono de vultosos interesses e isso lhe permitira um nível de vida cada vez mais alto. A casa de S. Clemente, onde Maria Augusta, como grande dama, recebe os seus convidados, surgira entre os falados salões da cidade, e sobre a residência do ex-Ministro da Fazenda circulam algumas lendas. Os mais curiosos afirmam que vinte e dois criados estão às ordens do casal e comentam a existência de faustosas baixelas de prata. Também se murmura que um pequeno trem é a condução usada por Maria Augusta para percorrer a mansão: e essas coisas são ditas de maneira tão categórica que, certo dia, um deputado, recentemente chegado da província, pediu licença a Rui para ver o trem maravilhoso e imaginário. (7)

Os seus adversários não aceitavam, porém, de bom grado que a prosperidade adviesse dos proventos auferidos na advocacia. Por que não a explicar reeditando as antigas acusações feitas ao ministro da Fazenda?

Realmente, ao aproximar-se a eleição, o deputado César Za-ma, aquele a quem despojara, na Bahia, da láurea de primeiro dos oradores entre os liberais, pronunciou, na Câmara, um discurso repleto de ferinas alusões à honestidade de Rui. (8) Esperava quase vinte e cinco anos e pensava ter encontrado a ocasião apropriada para o desforço. Não foi um ataque de frente: apenas se fizera o éco de malévolas insinuações.

Como seria de prever, o revide não tardou. Alguns dias depois, a 13 de outubro de 1896, no senado, que há muito não lhe ouvia a voz, Rui levantara-se para defender-se. Parecia calmo,

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trazia nas mãos alguns documentos, e, quando começou a falar, logo se percebeu estar disposto a liquidar o assunto definitivamente. Discurso autobiográfico. E, narrando episódios essenciais de sua carreira, explicou a origem e a relativa modéstia da fabulosa fortuna, que lhe atribuíam.

Não era a primeira vez que o obrigavam a explicações dessa natureza, e, por isso mesmo, êle citou Cobden: "Todo aquele que tiver, como eu, vivido a vida política, há de ter experimentado a inutilidade absoluta de defender-se contra a calúnia; porque, se a esmagamos, ressurgirá no outro dia mais dilatada e vivaz do que nunca".

Nesse discurso, ferido no seu orgulho, o tímido pôs o melhor da sua arte. Certa vez, êle anotara esta frase de Rossi: "J'ai tou-jours eu du faible pour les hommes qui parlent lentement". (9) E falando pausadamente, a "voz extensa e mordente" sempre igual mas acentuando as sílabas, como fazia ao querer trespassar o adversário com uma frase mais cáustica, Rui investiu contra Zama, cuja predileção pelo jogo era notória:

"Aos meus passos mais indiferentes, às intimidades mais recônditas da minha vida particular, aos móveis de minha casa, ao serviço do meu refeitório, ao trajar de minha família, às alfaias de minha mulher, a tudo se estendeu a conta, o peso, a medida iníqua da crítica armada com os olhos da inveja, com a taca-chices da malignidade, com as impudências da mentira. Até a minha biblioteca, lenta estratificação de vinte e cinco anos de amor às letras, entrou a ser contada, avaliada e apontada, como expressão da minha opulência". E em seguida: "Os pobres, ao que parece, não entesouram livros: compram baralhos, bebem, tunam e fumam na boémia, que é barata: e, se o acaso de algum chorrilho abençoado os leva à abastança, firmam honradamente o seu advento à burguesia endinheirada, abalançando-se ao luxo da propriedade de uma roleta."

Com volúpia e orgulho lembrara então a pobreza do berço e a desgraça que buscara tomando sobre os ombros a responsabilidade das dívidas paternas. Muitas outras vezes êle ainda recordará essa passagem heróica de sua vida. É mesmo curioso observar a insistência com que fere esta nota em várias ocasiões. Kntretanto, se acaricia com prazer o infortúnio voluntário, o calvário criado pelas própria mãos, parece detestar os sofrimentos, que não quis e não pôde evitar. Talvez por isso, durante toda a longa existência, êle que sempre gostou de falar de si, jamais proferiu qualquer palavra capaz de evocar os dias de desespero

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nascidos da enfermidade, que o atormentara na adolescência. Frequentemente se referirá a Londres, voltando-se para as tristezas do exílio que poderia ter impedido. No entanto, de Paris, que visitou numa idade em que isso constituía o sonho de todos os rapazes, jamais falará: seria sugerir a doença, a infelicidade involuntária.

Embora a defesa tivesse causado o efeito desejado, isso não preocupou aos adversários de Rui. Apoiados por Prudente de Morais e estimulados por Glicério, que desempenhava na Câmara as funções de líder do governo, estavam certos de excluí-lo da lista dos candidatos oficiais, o que equivaleria à derrota. (10) Assim, a luta contra o incómodo advogado transferiu-se da cena aberta para os bastidores, terreno que lhe era pouco favorável. Severino Vieira ao governador Luiz Viana: "Ser-nos-á lícito sacrificar o ponto de vista político para oferecermos em sacrifício do Rui uma cadeira de senador? — a êle que mostra não ligar a menor importância a essa cadeira?"

Entretanto, apesar de amigo e correligionário de Prudente. Luiz Viana, de quem dependia, no momento, a eleição, mostrou-se infenso à exclusão, respondendo a Severino:

"Discordo inteiramente dos que pensam que a exclusão do Rui é uma necessidade. A verdade é esta — não temos ainda partidos organizados, pelo que diante de nós não há combatentes arregimentados; e assim constituímos tim exército "para o que der e vier", mas sem termos ainda quem combater. Ninguém, portanto, tem o direito de combatê-lo, por considerá-lo em campo oposto. O que é inegável é que é bom republicano, e será de má política estar a descontentar os que se esforçam e crêem nas instituições republicanas. O Rui é um baiano, um brasileiro tão eminente que, sem grave responsabilidade, não poderíamos assumir o compromisso de excluí-lo da representação do país.

"Esta exclusão seria o resultado de ódios, que, confesso, não esposo. A Bahia não ficaria bem, e desceria aos olhos de todos se o expelisse, digo repudiasse.

"Seria o caso de irmos ao seu encontro, fazendo agora o que fizemos em outro tempo com José Bonifácio.

"Receiam o Rui? Êle nos faria mais mal fora do Parlamento. Não se lembra do que se deu por ocasião da exclusão acintosa dele do ministério Ouro Preto?

"O Rui é um combatente até ousado em favor do governo civil. Não está isto no programa do partido republicano federal? Não é esse, talvez, no momento, o nosso principal objetivo? A

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sua exclusão revelaria uma política sem orientação e sem ideal e seria o resultado do despeito e do ódio pessoais, caminho que não desejo enveredar o partido republicano da Bahia. Dizem-me daí que o Prudente não vê com bons olhos esse candidato. Não creio. Concorrer êle para destruir os elementos propugnadores do governo civil seria trabalhar para destruir a si mesmo; além disso o Rui exprime outra corrente de ideias — a da paz. Porventura o governo Prudente arrepende-se do que fêz no Rio Grande do Sul? Não creio, repito, meu amigo.

Deixe que o despeito cegue outros, não a nós, que estamos servindo à República por amor dela e não especulamos com ela. Quando passarem os ódios e arrefecerem as paixões, nos darão razão. Você sabe quanto o almirante Custódio fêz para excluirmos o Rui na eleição passada. Resistimos a tudo, mas afinal êle mesmo nos fêz justiça. Talvez aconteça o mesmo com os que hoje nos increpam por sustentarmos de novo essa candidatura.

"Eu não me sentiria bem no governo da Bahia se concorrêssemos para a exclusão do Rui, porque se me afiguraria nosso Estado humilhado sob a pressão de uma política de ódios estranha a ela. Além disso, o partido, em sua grande maioria, e o Estado em sua quase totalidade pronunciam-se em favor dessa candidatura, e eu bendigo isso porque sinto-o já completamente republicano". (11)

Carta decisiva: Rui foi reeleito. Como da vez anterior, numa atitude que se não sabe se levar à conta de orgulho ou indiferença, não solicitara um voto, mas noventa mil eleitores sufragaram-lhe o nome, enquanto Zama, seu competidor, não obteve mais de dez mil. E, ainda tal qual fizera em 1893, viajou para a Bahia, a fim de agradecer a recondução ao parlamento.

Nessa ocasião, um estudante, Afrânio Peixoto, pedira-lhe um autógrafo, e Rui escrevera: "Que vale um autógrafo? Que vestígio deixa no ar a folha levada pelo vento? Só o que escreveu nas almas não morrerá porque as pegadas do bem, que o lembram, passarão de geração em geração, sempre abençoadas e reconhecidas". (12) Era o seu programa.

Não tardou, porém, que se desvanecesse de poder realizá-lo. Sobre o país, revivida pelos jacobinos, pairava a sombra de Flo-riano, enquanto a nação se sentia insegura. Originada do malogro dos ataques do exército contra Canudos, lugar onde se haviam reunido no interior da Bahia, alguns milhares de fanáticos, uma onda de terror e de ódio derramara-se sobre o Rio. Gentil de Castro, diretor dum jornal de Ouro Preto, fora barbaramente

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assassinado. (13) O visconde de Ouro Preto somente por acaso conseguira escapar à fúria dos vingadores da República, e Rui também se vira envolvido pela sanha dos jacobinos, que imaginavam Canudos o toque de rebate dos restauradores da dinastia bra-gantina no Brasil. A situação culminara em novembro com o assassínio do ministro da Guerra, general Machado Bittencourt, que se interpusera entre o criminoso e o Presidente da República.

Rui deixara-se então dominar pelo desalento. Há muito, aliás, que a desilusão lhe toldara o espírito. Desencantado dos homens, o velho anticlerical voltava-se para Deus. E, envolvido por esses sentimentos, escrevera ao cunhado, Carlos Bandeira, que lhe acenava com a possibilidade de tornar ao jornalismo: "Quando eu fui jornalista, dizia Rui, acreditava na opinião, nos homens, nas ideias. Hoje quase que só creio em Deus; e este não sei por que caminhos agora nos quer conduzir-nos, nem tenho a presunção de que me tome para ser o instrumento, ainda que dos mais humildes, no melhorar a condição de nossa terra. Depois, já não tenho na saúde e alegria de minha mulher aquela fonte de energia interior e sossego doméstico, em que esteve sempre o segredo principal da minha valentia na luta." (14)

E, enquanto o país ainda continuava conturbado pelas consequências das sucessivas rebeliões. Rui, profundamente decepcionado da vida política, buscava um pouco de paz nas páginas do Evangelho. É o que nos informa esta carta, escrita de Fri-burgo, em 1898, a um irmão de Jacobina, que falecera pouco mais de um ano antes: "Felizmente a fé em Deus se me vai ascendendo, à medida que se me apaga a confiança nos homens. No meio de tantos desconfortos e iniquidades tenho-me entregado estes dias exclusivamente à leitura do Evangelho, a eterna consolação dos malferidos nos grandes naufrágios. Uma excelente edição, que eu trouxera comigo, do livro divino, permitiu-me este recurso reanimador, graças ao qual me sinto, em certos momentos, como que ressuscitar, capaz de ainda servir para alguma coisa aos meus semelhantes." (15)

Contudo, embora frequentes, nunca eram longos esses períodos de depressão. E mal os horizontes se desanuviaram com a proximidade da posse de Campos Sales, eleito para substituir Prudente de Morais, Rui reapareceu no jornalismo, que chamara "essa janela de minha alma, por onde me acostumei durante tanto tempo, a conversar, todas as manhãs, para a rua com os meus compatriotas". (16) Em outubro, graças aos esforços de Carlos Bandeira, "por largo tempo gerente da folha, e seu grande in-

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centivador", saiu o primeiro número da "A Imprensa": após longa caminhada a pé, o cavaleiro retomava o ginete. (17)

Assim êle entendia a missão, que lhe ia caber: "Cada jornalista é, para o comum do povo, ao mesmo tempo, um mestre de primeiras letras e um catedrático de democracia em ação, um advogado e um censor, um familiar e um magistrado". (18) Pela terceira vez, sob a sua responsabilidade, Rui tentava o jornalismo. Mais ou menos por esse tempo um grupo de intelectuais fundara a Academia Brasileira de Letras, e Rui fora um dos eleitos. É expressivo que para patrono tenha escolhido Evaristo da Veiga, o famoso jornalista da época da Regência e que precipitara a abdicação de D. Pedro I. Possivelmente, na ocasião, a atividade de homem de imprensa voltara a ser o seu fraco.

Campos Sales empossou-se em novembro. Popularizara-se depressa a figura do Presidente e, agora, as casas de modas para homens anunciavam chapéus "à Campos Sales". Realmente, aqueles chapéus de abas largas e quebradas na frente eram características da individualidade do novo chefe da nação, que chegava ao poder cercado pelas esperanças do país já fatigado daquela interminável sequência de motins e revoluções, que havia quase dez anos o intranqúilizavam e extenuavam.

Entre Rui e Campos Sales, apesar de estremecidas as suas relações após o Governo Provisório, havia um largo ponto de contacto: Tobias Monteiro secretariava o Presidente, que escreveu a Rui: "A sua Imprensa é o meu café de todas as manhãs e às vezes café um tanto amargo; mas em todo caso sempre benéfico". Carta gentil, onde repontava a antiga camaradagem, e que terminava convidando-o para um encontro. A resposta: "Tenho acanhamento em lhe marcar hora, porque receio embaraçá-lo no emprego das suas. As minhas estão ao seu dispor do meio-dia em diante, e, em caso de urgência, mesmo antes disso. É só indicar, pois, a que mais lhe convém e aí estarei". (19)

Qualquer outro ficaria satisfeito com aquela linguagem simples do Presidente, que nenhum motivo grave separava de Rui. Pareceu que se iriam entender. Entretanto, devido às suscetibili-dades de Rui, que na ocasião advogava vultosos interesses dum tal Davi Saxe numa causa contra o governo, as coisas tomaram outro rumo.

Não diriam visar a sua aproximação de Campos Sales a solução favorável desses interesses? Bastou passar-lhe tal suspeita pela imaginação para que Rui se recusasse terminantemente a comparecer à entrevista solicitada. Tobias Monteiro ainda insis-

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tiu. Maria Augusta também não viu motivos para estes exageros. Tudo inútil — Rui mudara definitivamente de opinião. (20) Durante mais de dois anos, "A Imprensa" continuou o café bem amargo de Campos Sales. E ainda mais: rompera definitivamente com Tobias.

e o «

Afastado dos conselhos do governo, Rui permaneceu o que sempre havia sido: um decurião da liberdade e da lei.

Certo dia, bastou que a polícia maltratasse uma pobre mulher, que viera a falecer devido à violência, para que êle logo surgisse verberando o crime em artigos vibrantes e apaixonados. A vítima não deixara parentes nem amigos. Mas, será por isso o atentado menos torpe? Em sucessivos e enérgicos editoriais, Rui analisou o fato, clamando pela punição dos culpados. Não terão as meretrizes direito à proteção que a lei assegura a todos? E, premido pela pena inflamada do jornalista, o governo viu-se forçado a demitir o responsável. (21) Era singular esse homem, que por todos os modos se opunha à violência. Não fora sem razão que um dia deixara escapar esta frase: "A injustiça, por ínfima que seja a criatura vitimada, revolta-me, transmuda-me, incendeia-mc, roubando-me a tranquilidade e a estima pela vida".

Infelizmente, porém, a saúde não ajudava. Ao seu médico, frequentemente, Rui queixa-se de "extenuação nervosa". É que, apesar da idade, continua um trabalhador infatigável. Estuda cada vez mais e na biblioteca vêem-se sempre os últimos livros sobre direito, finanças e política. Conserva a antiga predileção pela vida britânica e nas estantes encontram-se biografias de Peei e Gladstone. Lá também estão as divas de Palmerston, Pitt, Lytton e Chattam. Gosta de "D. Quixote" e muitas vezes os íntimos sur-preendem-no rindo de algumas aventuras do escudeiro Sancho Pança. (22)

A biblioteca cresce constantemente. À tarde, quando volta do trabalho, é certo chegar sobraçando algum pacote de livros, para dizer a Maria Augusta: — "É uma verdadeira mania". Ela acha natural: - "É tua ferramenta". (23) No dia seguinte êle trará novos volumes. As estantes invadem novos cómodos, mas isso não impede que do seu gabinete de trabalho, onde se vê um grande medalhão representando Gambetta, saiba o lugar de cada livro. Em certa ocasião, como lhe propusessem a organização de um catálogo, êle se opôs: "Já necessitei acaso de algum livro que

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não o fosse buscar no seu lugar? Quando precisar de catálogo não precisarei mais de livros". (24)

Esse trabalho ininterrupto está, porém, acima das suas forças e cada ano é obrigado a conceder alguns meses de repouso ao organismo. De preferência vai para Friburgo onde também está o seu querido Rodolfo, a quem a viuvez tornou ainda mais melancólico. Alice falecera em São Paulo, em 1896. Desaparecidos os antigos ressentimentos, restabelecera-se a velha amizade, embora não possa ter mais a perfeição de outros tempos. A correspondência voltou, porém, a ser afetuosa. Carta de Rodolfo: "Meu Rui. Acabo de ler a Imprensa. Bravo a ti, bravo por teu artigo, bravo também por tua carta ao Andrade Figueira, tão grande como o artigo nas poucas linhas de que ela se compõe, e se é possível, ainda mais admirável". (25)

O motivo destas palavras entusiásticas fora a prisão do cons. Andrade Figueira, detido e agredido pela polícia, sob o pretexto duma conspiração monárquica. Rui, nessa ocasião, estava em Friburgo e o médico exigira abster-se "durante um mês, de trabalhos mentais, sobretudo jornalísticos". (26) O velho monarquista não era seu amigo. Pelo contrário. No Império, digladiaram-se tenazmente. (27) Contudo, ante a violência, Rui não pudera permanecer indiferente e logo saíra a campo, protestando. Que lhe importava o nome da vítima? Jamais êle parece ter perdido de vista estas suas próprias palavras: "Quando as leis cessam de proteger os nossos adversários, virtualmente, cessam de proteger-nos".

Mais de dez anos já haviam passado após as lutas do Ministério da Fazenda. Tempo suficiente para que as feridas estivessem cicatrizadas. Contudo, o calvário não terminara. E, em fevereiro de 1901, sob o pseudónimo de Hermano Fontes, Dunshee de Abranches, no jornal "O Dia", iniciou a publicação das "Atas e atos do Governo Provisório". (28) Em resumo, era a história oficial do começo da República contada por um desafeto de Rui. E este, ainda uma vez, teria de repetir o trabalho de Sisifo. Parece mesmo que imaginou escrever uma resposta completa, tal o cuidado, às vezes a veemência, com que anotou cada uma das atas então editadas, e cuja veracidade contestou formalmente. A Quintino Bocaiuva, defendendo-o, escreveu uma carta, chamando de artimanha póstuma um discurso atribuído a Campos Sales. (29) E dois artigos publicados na "A Imprensa" (30) assinalaram, de público, a sua atitude em face do que considerava tangido pelo "dedo de C. Sales". (31) De qualquer modo, a julgar pelas notas, que pôs à

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278 A VIDA DE RUI BARBOSA

margem da publicação das "Atas", que ora chama de "romance", ora de "borracheira", ora de "invenção póstuma", deve tê-lo magoado fundamente a maliciosa evocação daqueles dias distantes, que, embora gloriosos, haviam sido também de sofrimento. (32) Por isso mesmo, escrevendo a Quintino Bocaiuva, dizia: "ou a versão impressa é uma falsificação do original, ou o original falsificava a realidade, e nós fomos vítimas, nesses documentos, que não líamos, e as mais das vezes não assinávamos, da deslealdade do secretário, por quem éramos sacrificados". (33) E, impotente, talvez desesperado, por vezes cheio de desprezo, Rui via uma versão oficial tecer a história deturpando a verdade. E novamente voltavam a sangrar os golpes recebidos por ocasião do Governo Provisório.

* e *

"A Imprensa" não teve vida longa. (34) Cerrou as portas em abril de 1901 e a este fato talvez deva a língua portuguesa um dos seus maiores livros. O ano lhe seria aziago. Rodolfo, em setembro, sucumbiu em Paris. E, pouco mais de um mês depois, Francisco de Castro, em circunstâncias quase inexplicáveis, fora encontrar "a paz do coração na paz do túmulo". Em dois meses, Rui via partir para sempre os amigos a quem mais quisera e nenhum outro lhes tomaria o lugar.

Incapaz de suportar por muito tempo relativa obscuridade, Rui, inesperadamente, encontraria a ocasião para aparecer ruidosamente. Designado pelo senado, que, certamente, vira nisso uma incumbência sem caráter político, para examinar o projeto do Código Civil, vindo da Câmara já revisto pelo seu antigo mestre de francês, Carneiro Ribeiro, das grandes sumidades do país em matéria de linguagem, Rui dedicou-se ao assunto de corpo e alma.

E em março de 1902, com surpresa mais ou menos geral, pois se supunha serem suficientes apenas alguns retoques, apresentou ao Senado o seu "Parecer", contendo mais de mil emendas no texto preconizado por Carneiro Ribeiro. Começaria assim uma das mais empolgantes polémicas travadas no Brasil. Em setembro, num pequeno opúsculo, que intitulou "Ligeiras Observações", Carneiro respondeu-lhe. Fê-lo de maneira polida, embora sem demonstrar receio do antagonista. Mais defesa do que ataque. Contudo, foi o bastante para que o tímido se sentisse ferido. Para êle tornara-se indispensável destroçar o contendor, que se atrevera a contraditar-lhe as opiniões. E, como se con-

A SOMBRA DE UM MORTO 279

centrasse no trabalho toda amargura do homem tantas vezes malogrado nas suas ambições políticas, o autor do "Parecer" escreveu a "Réplica", entregue ao Senado em dezembro. Sem modéstia, dirigindo-se ao seu antigo professor do "Ginásio Baiano", reproduziu na publicação estas palavras de Castilho: "Tanto é fácil aos discípulos sobrepujar algumas vezes os mestres que os precederam".

Isto foi notado, aliás. Resposta azeda. Mas, pela elegância da frase, a erudição dos exemplos, a própria paixão, que imprimira ao debate, constituía alguma coisa de monumental. A verdade era que o país estava maravilhado. Habituara-se a admirar o jurista, aplaudir o orador, e entusiasmar-se com o jornalista, mas espantava-se diante desse aspecto inédito daquela inteligência privilegiada, cujos profundos conhecimentos da língua eram ignorados. Aqueles temas áridos de filologia, manejados pela pena do escritor, tornavam-se atraentes e, entre as classes mais ou menos cultas, foram bem poucos os que não acompanharam a contenda com interesse. "A Réplica realiza esta maravilha — uma discussão de gramático, que nos apaixona, que nos faz vibrar". (35) O conceito pertence a José Maria Belo e é perfeitamente exato. Realmente, o assunto tanto interessara o país, por mais que pareça estranho tratando-se duma polémica sobre colocação de pronomes e sutis segredos de linguagem, que, depois da "Réplica", se passou a escrever melhor. Aquelas páginas cheias de paixão e também de amargura haviam feito mais pela corre-ção da linguagem do que os anos vividos nas escolas pela maioria dos leitores. Sobretudo, Rui fora tão claro, tão abundante, tão lógico, que o público não esperou sequer pela tréplica de Carneiro para atribuir ao autor da "Réplica" uma vitória integral. Triunfo espetacular do dialcta, que deslumbrara ao aparecer sobraçando aquelas gramáticas e aqueles clássicos tão familiares a João Barbosa e ao inditoso Francisco de Castro.

Politicamente, porém, êle continuava a remar contra a maré. Às vezes, os aplausos dão-lhe a impressão de ter sido compreendido. Nas ruas, populares descobrem-se à sua passagem, e em toda a parte é geral o respeito, que o cerca. Contudo, esta glória é bem diversa da que lhe poderia proporcionar o poder. Agora, Campos Sales está prestes a concluir o seu período de governo e isso significa terem passado mais quatro anos. O seu sucessor será Rodrigues Alves, em quem se reúnem qualidades difíceis de serem encontradas no mesmo homem: cultura, energia, habilidade. As caricaturas glosam-lhe o rosto seco, a barbicha rala e desarru-

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280 A VIDA DE RUI BARBOSA

mada, e a típica luneta montada sobre o nariz. Aos seus amigos intriga nunca o terem visto cortejar uma saia, embora enviuvasse aos trinta anos. Foi colega de Rui na academia e diplomaram-se juntos. Sinal de que aquela geração saída das faculdades por volta de 1870 começa a chegar aos primeiros postos. Rui, malgrado o travo deixado pelo Governo Provisório, também almeja atingi-los. Mas, conseguirá algum dia tornar realidade essa ambição, que sempre sacrificou aos ideais do doutrinador? É difícil conciliar os destinos de Swift a Marlborough.

NOTAS AO CAPITULO XX

(1) Cf. carta de Torquato Bahia a Rui, em 22 de julho de 1895, in Arq. C. R. B. — Torquato Bahia, amigo de Rui desde os tempos da mocidade, foi jornalista, e filólogo, tendo vivido sempre na Bahia, onde faleceu. Aloísio de Castro, in "Discursos Médicos", p. 154 (Rio, 1940), escreveu bela pagina sobre o regresso de Rui.

(2) Cf. "A Imprensa", em 17 de outubro de 1898. (3) Cf. carta de Saldanha da Gama a Rui, em 15 de dezembro de

1894, in Arq. C. R. B. A carta de Saldanha Marinho a Rui, e acima referida, é de 26 de agosto de 1891.

(4) Cf. Jornal do Comércio, de 8 de julho de 1895. (5) Cf. carta de Garcia Murou a Rui, em 3 de dezembro de 1895, in

Arq. C. R. H. A carta é dalada do Petrópolis, e nela, à margem, pôs Rui esta nota: "Resp. em 4 de dez. 95".

(0) Dessa época são, entre outros, os seguintes trabalhos de Rui: "Anistia Inversa", "Aposentadoria forçada dos magistrados em disponibilidade". "A inconstitucionalidade do decreto n. 1941, de 17 de janeiro de 1895", e a "Ação de manutenção" dos professores da Escola Politécnica. Veja-se a carta de Eduardo Prado a Rui em 31 de outubro de 1896, in "Ditadura e República", p . 231. Sobre as relações entre Rui e Eduardo Prado deve consultar-se o trabalho do Dr. Hélio Viana, "Rui Barbosa e Eduardo Prado" in "Revista Brasileira", julho de 1943.

(7) Cf. Luiz Edmundo, in "O Rio de Janeiro do meu tempo", vol. I, p. 334, e Batista Pereira, prefácio às "Cartas de Inglaterra", 2 . a edição.

(8) César Zama, em 14 de outubro de 1896, falou na Câmara dos Deputados, respondendo a Rui Barbosa.

(9) In Arq. C. R. B., papéis avulsos. (10) Em discurso de 8 de julho de 1903, no Senado, Rui assim se refe

riu ao episódio: "O Presidente da República interveio, diretamente, pessoalmente, junto ao Governador do Estado para que a minha candidatura sofresse todas as desvantagens das hostilidades oficiais; o Chefe do Partido Republicano Federal fêz pesar na balança a sua formidável espada. Eu tive a honra de ler a cópia da carta de S. Ex. e a resposta a essa carta foi publicada nos jornais do país".

(11) Cf. carta de Luiz Viana a Severino Vieira, em 12 de outubro de 1896.

A SOMBRA DE UM MORTO 281

(12) Devemos à gentileza de Afrânio Peixoto a revelação do fato, de que foi testemunha.

(13) Para maiores informes sobre o assassinato de Gentil de Castro, pode ser consultado o opúsculo de Afonso Celso, "O Assassinato do Coronel Gentil José de Castro" (Paris, 1897). Prendeu-se o crime à agitação nascida da rebelião de Canudos, e a ela se refere Rui na conferência proferida na Bahia, em 24 de maio de 1897.

(14) Cf. carta de Rui ao seu cunhado, Carlos Bandeira, em 10 de janeiro de 1897, in Arq. C. R. B.

(15) Cf. carta de Rui ao dr. José Eustáquio Jacobina, em 2 de abril de 1898, in "Mocidade e Exílio", p . 350.

(16) In Discurso no Jornal do Comércio, em 30 de novembro de 1895. (17) Sobre "A Imprensa" deve ser consultado o valioso prefácio do

sr. Américo Jacobina Lacombe ao tomo I do vol. XXV das "Obras Completas" de Rui Barbosa.

(18) In "A Imprensa", número inicial, de 5 de outubro de 1898, no artigo intitulado "Projetos e esperanças".

(19) No tomo II do vol. XXV das "Obras Completas", do Rui Barbosa, está publicada, no apêndice III, a correspondência trocada entre Rui e Campos Sales.

(20) Cf. "O Tempo", In memoriam, artigo intitulado "O feitio de Rui Barbosa".

(21) Sobre o episódio de Ida Maria, escreveu Rui, na "A Imprensa", os artigos "Estado Selvagem", "Sólon, Carlos Magno e Enéas". "Por onde rebenta a corda", e "O Siso à toleima", respectivamente nos dias 20, 21, 22 e 24 de dezembro de 1900.

(22) In "O Tempo", "In Memoriam, Rui Barbosa e os livros". (23) Cf. Homero Pires, "Rui Barbosa e os livros", 4 . a ed. p . 14. (24) Idem, idem, p . 35. Prova, aliás, do que dizia, é essa carta, de

Rui, de Friburgo, ao cunhado, Carlos Bandeira: "Carlito manda-me estes dois livros: Arte de Amar (OVÍDIO). Está no meu quarto de vestir, estante preta do canto onde se põem os vasos, 3 .B prateleira, contando de cima. LITTRÉ: Medicine e médecins — Está na minha biblioteca, estante preta e estreita, que fica junto à porta da escada do segundo andar, parte envidraçada, l . a prateleira contando de baixo. O volume acha-se deitado".

(25) Cf. carta de Rodolfo Dantas a Rui, s. d., in Arq. C. R. B. -A carta referc-se ao artigo de Rui Barbosa — "Um Homem" — publicado na A Imprensa, cm 13 de março de 1900. Da véspera é a carta de Rui a Andrade Figueira publicada no volume "Colunas de Fogo", p . 161. In Novos Discursos e Conferências", p . 209, está o discurso que Rui, em nome dos advogados, proferiu por ocasião da manifestação destes a Andrade Figueira, na prisão.

(26) Cf. carta de Francisco de Castro a Rui, em 7 de outubro de 1899, in Arq. C. R. B. — Rui queixava-se de "estenuação nervosa".

(27) Andrade Figueira, escravagista, em discurso de 31 de julho de 1885, na Câmara dos Deputados, atirou algumas farpas contra Rui. Este revidou na conferência de 2 de agosto de 1885, no Teatro Politeama.

(28) As "Atas e atos do Governo Provisório" foram publicados inicialmente no "O Dia", sob o pseudónimo de Hermano Fontes, e existem colet ionados no Arq. C. R. B. com as anotações autografas de Rui Barbosa.

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282 A VIDA DE RUI BARBOSA

(29) É a seguinte a íntegra da carta de Rui a Quintino Bocaiuva: "S. Domingos, 14 de março, 1901. Meu caro Quintino. Naturalmente há de ter acompanhado a publicação das atas do governo provisório, que se diz feita sobre cópias fornecidas pelo chefe do Estado. Não lha terá, pois, escapado a de hoje. O discurso ali atribuído ao C. Sales é prova mais cabal de que a versão impressa é uma falsificação do original, ou o original falsificava a realidade, e nós vítimas, nesses documentos, que não líamos, e as mais das vezes não assinávamos, da deslealdade do secretário, por que éramos sacrificados. Tal discurso, asseguro-lhe, e o Glicório também lhe poderá dizer, nunca se proferiu, nunca o ouvimos. Dá-se ali ao ministro da justiça uma atitude, que êle nunca teve com o Deodoro. E a sua linguagem, quanto às Missões, é uma artimanha póstuma, destinada a incutir pelo arranjo da frase, que o procedimento do ministro do exterior nesse negócio não envolvia a solidariedade geral do governo.

Ora cumpre dizer a verdade ainda em prejuízo nosso. Eu com esta nada ganho. Mas importa dizê-la. Nesse assunto a solidariedade do governo foi absoluta. Só não tiveram parte nela, até certo ponto, o Cesário e o Glicério, porque ainda não eram ministros, quando se resolveu a viagem do ministro do exterior ao Rio da Prata.

É incrível e lastimoso o que se está passando. Seu am.° obr.° Rui Barbosa". E acrescenta abaixo: "Esta minha carta não tem reserva alguma".

Ainda a propósito da mesma "Ata" convém reproduzir esta nota que Rui lhe pôs à margem: Este discurso é uma invenção póstuma. Nunca o sr. C. Sales, o mais dócil dos membros daquele Governo ao Deodoro, teria com êle essa linguagem".

(30) Artigos publicados na "A Imprensa" em 3 de março de 1901. (31) Cl. nota de Uni á "Ata" da sessão de 1.5 de fevereiro de 1890. (32) As expressões de Hui ciladas eslão nas notas às "Atas" publi

cadas nos dias 23 de fevereiro, 10 de março, e 14 de março de 1901. (33) Cf. carta a Quintino Bocaiuva, em M de março de 1901, e acima

reproduzida. (34) Em consequência das demoradas negociações realizadas entre

Edmundo Bittencourt e os dirigentes d'A Imprensa, uma assembleia realizada em 15 de maio aprovou o acordo com os portadores das debênlures, tendo estes, em reunião de 15 de julho, ratificado o acordo. Nesse mesmo dia, das ruínas d'A Imprensa surgiu o Correio da Manhã, que, sob a dire-ção de Edmundo Bittencourt, logo se tornaria um dos mais vigorosos jornais do país.

(35) José Maria Belo, "Rui Barbosa", (Rio, 1918), p. 60. Sobre A Réplica veja-se o prefácio do padre Magne ao vol. XXIX, tomo II, das Obras completas de Rui Barbosa . E também M. S. Mendes de Morais, Repertório da Réplica de Rui Barbosa (Rio, 1950); e Américo de Moura, Rui e a Réplica, Rio 1949.

XXI — O CAMINHO DO PODER

"As aspirações caminham para o ideal; as ambições para. o interesse. As primeiras moralizam e sublimam, o homem. As segundas o corrompem e degradam".

Rui .

T TM suntuoso baile oferecido pelo parlamento assinalou a ^-s ascensão de Rodrigues Alves. Nos primeiros anos, haviam sido mediocres as festas da República. Mas, agora, após algum tempo de traquejo, a sociedade surgida com o novo regime adquiria hábitos de bom tom. Exibia-se o que havia de mais elegante. Belas damas, arrastando longos vestidos simpaticamente decotados, ornavam os salões do Cassino Fluminense. Chamara atenção a formosura da senhora Marieta Neto, e tudo fora magnífico. Lembrava o Império.

Campos Sales e Rodrigues Alves, tendo ao braço, respectivamente, a senhora Hevia Riquelma, embaixatriz do Chile, e a senhora Pinheiro Machado, esposa do vice-presidente do Senado, deram início ao baile, dançando uma quadrilha marcada à moda do "vieux regime", coisa que a gente moça, mais propensa ãs quadrilhas "à americana", considerava uma velharia.

No ministério que se formara havia vários amigos de Rui. O barão do Rio Branco, ainda na Europa, viria ocupar a pasta do Exterior. Ao deputado Seabra, um dos exilados durante o governo de Floriano, tocara a Justiça. Leopoldo de Bulhões responderia pelas Finanças. Chegara assim a oportunidade de êle renunciar àquelas funções de decurião, que tanto o haviam incompatibilizado com o mundo político.

* «t «

Havia já alguns anos, Rui começara a aproximar-se de Pinheiro Machado, para cujas mãos, desde a derrocada de Glicério, no Governo de Prudente de Morais, se deslocava o bastão de li-

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284 A VIDA DE RUI BARBOSA

der do parlamento. Vindo dos pampas gaúchos com a República, Pinheiro, graças às suas qualidades de comando, destacara-se progressivamente no cenário político. Agora, era mais do que um líder: tornara-se um chefe. A eleição de Rodrigues Alves consolidara as posições conquistadas, e nenhum outro político dispunha do prestígio daquele campeador valente e perspicaz, a quem o instinto desvendava os segredos da vitória.

Assim como se afeiçoara a Azeredo, Rui admirava aquele homem inculto e inteligente, e de hábitos tão diversos dos seus. Mesmo antes de uni-los os vínculos partidários, sensibilizaram-no as maneiras atenciosas de Pinheiro, contrastando com as de antigos companheiros, esquecidos da velha camaradagem. Aliás, de modo geral, o vice-presidente do Senado era profundamente diferente dos que compunham o seu exército de correligionários. Entre aqueles homens de aparência austera e gestos medidos, não abandonara o feitio trazido da região onde nascera. Admiravam-se vendo-o puxar com naturalidade o punhal de tauxia de ouro e marfim, ou o revólver com faustosas incrustações de madrepérola. Sentiam-se, porém, seguros sob a direção daquele "con-dottiere", de tez bronzeada pelo sol, e em cujas diversões predi-letas surgia sempre o espírito do aventureiro, para quem constituía prazer enfrentar os perigos. Uma das suas paixões eram os cavalos de corrida. Nas suas estribarias contavam-se laureados animais, que aplaudia com entusiasmo nas disputas dos grandes prémios. Criticavam-no por isso. E certo dia, como alguém lhe oferecesse bela parelha de cavalos, um desafeto comentara com maldade: "presente incomparável para um cigano". (1)

Algum tempo depois, entre Rui e Pinheiro reinava a maior intimidade. Muitas vezes, indo visitá-lo pela manhã, a fim de concertarem planos para os debates no parlamento, Pinheiro, conduzido ao quarto de vestir, examinava as coleções de gravatas, não se furtando ao prazer de levar alguma, que lhe agradasse. Rui achava deliciosa a sem-cerimônia desse homem de aspecto varonil, cujo semblante de linhas fortes se destacava sob a negra cabeleira em caracóis.

Referindo-se a Pinheiro, nessa ocasião, Rui fazia-o nestes termos: "Tão feliz nas lides e nos problemas da paz, como nas dificuldades e conflitos da guerra, êle triunfa sempre, com a mesma facilidade e a mesma segurança, com a mesma intrepidez e a mesma arte, com a mesma estrela e o mesmo fulgor, nos campos de batalha ou na arena dos parlamentos". (2) Para dizer tais coisas, devia estar realmente fascinado.

0 CAMINHO DO PODER 285

Maria Augusta também ficara satisfeita com esta nova amizade do marido. Pinheiro desvanecia-a elogiando-lhe as recepções. Ao contrário da maioria das mulheres, ela se orgulhava das suas belas convidadas, e mostrava-se contente vendo desfilarem nos seus salões Bebé Lima Castro, Joaninha Castro, as irmãs Laura Pimentel e Alice Ortigão, ou Germana Barbosa, a quem chamavam a "Marquezinha". Quando desejava referir-se a essas senhoras elegantes, Pinheiro perguntava-lhe pelo seu "Regimento". (3) Linguagem um tanto grotesca, mas que a encantava. Era cada vez maior o prestígio social de Maria Augusta. Nos salões, ela dominava. E muitos, vendo-a, altaneira e bela, ao lado do marido tímido, enganavam-se, acreditando na influência dela sobre as deliberações políticas de Rui. (4)

Para os políticos, a residência de Pinheiro, conhecida pelo uome de pequena elevação — o morro da Graça — de cujo cimo dominava a cidade, seria uma espécie de clube, onde se reuniam confortavelmente, para comentarem os acontecimentos do dia, ou jogarem partidas de bilhar. Das paredes adornadas com panóplias, pendiam peles e despojos de animais bravios, lembrando o caçador. E todos se sentiam gratos àquela hospitalidade farta e generosa, que lhes proporcionava horas agradáveis.

Tanto em S. Clemente como no morro da Graça, Azeredo era dos mais assíduos. Proprietário de um jornal — "A Tribuna" — e senador, avançara bastante. E, não tendo perdido tempo em leituras, aprendera muitas coisas, que Rui ainda ignorava. Frequentemente, os três encontravam-se para almoçar juntos, e con-sideravam-se perfeitamente identificados. Azeredo enviava a Rui amáveis bilhetes, e neles, muitas vezes, via-se o timbre do "Club dos Diários", centro elegante de reuniões, onde o "poker" constituía a diversão predilcta.

Convidara-o até para integrar a redação da "A Tribuna". Repetiriam a associação do "Diário de Notícias". Rui, no entanto, respondeu com amargura: "os motivos físicos e morais que neste momento me separam do jornalismo são irresistíveis". Recusava-se a abrir a "janela" donde se acostumara a falar todas as manhãs aos seus compatriotas.

Sob a influência desses dois companheiros, Rui mudara sensivelmente.

Êle próprio assim viria a referir-se à transformação: "Con-lia todos os governos anteriores vivi sempre de tenda armada em campanha. Clamavam então os ortodoxos que eu malfazia à República, que eu a desamava e combalia... Afinal, não porque o

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temesse, mas porque me doia a taxa de egoísmo, de cálculo malicioso em evitar as responsabilidades na colaboração republicana, e reservar-me as glórias fáceis da censura, me dispus a tentar a experiência, a sair daquela posição criticada e crítica". (5) Tomara férias daquelas funções de censor, começando o adaptar-se à realidade. E o fazia certo de escolher o caminho "menos fácil, menos simpático, menos brilhante", "trocando a popularidade pela responsabilidade". (6) Sacrificava os aplausos. Mas, conforme diria, esperava "auxiliar um pouco a obra dos governos com o apoio desta minha têmpera, da minha educação jurídica e liberal, tão longamente posta ao serviço das oposições". (7)

Era admirável como percebia a própria mutação. Por esse tempo, embora ressalvando os "princípios", escreveu a Pinheiro: "Os anos me envelheceram na experiência dos costumes e de homens políticos desencantando-me de ilusões estéreis, dobrando-me às transações necessárias". Expressão um tanto estranha na boca do velho lutador, mas que traduzia a vitória da Vontade sobre o Sentimento, e à qual Pinheiro respondeu, talvez com malícia: "Que de ensinamentos encerra esse vosso sábio conceito". (8) Aliás, mudara muito mais do que seria possível imaginar. \'], como se estivesse satisfeito com a nova atitude e desejoso de espalhar aos quatro ventos a sua deliberação, foi com certa surpresa que o ouviram proclamar numa saudação a Rodrigues Alves: — "O meu apoio é como a minha oposição: sem rodeios". (9) Rui era incapaz do meio termo das posições dúbias.

Ao assumir o novo posto, Rio Branco trouxera vasto programa. No ministério o seu batismo foi a questão de limites entre

o Brasil e a Bolívia, disputa grandemente agravada por choques armados entre civis dos dois países e pelas concessões dadas pela Bolívia ao "Bolivian Syndicate", organização de capitais anglo-americanos. A qualquer instante poderiam surgir sérios dissabores. E Rio Branco, pouco propenso ao arbitramento, iniciara, sem demora, negociações diretas entre os dois governos.

Jamais êle deixara de ser reconhecido a Rui, que também lhe lembrava Rodolfo, prematuramente falecido em Paris, e de quem fora amigo desde a mocidade. E, desejando dar-lhe demonstração de apreço, convidou-o para formar com êle e Assiz Brasil a representação brasileira incumbida de solver o assunto delicado.

O CAMINHO DO PODER 287

No entanto, o curso das negociações revelou a impossibilidade de harmonizarem-se os três representantes em torno duma solução. Após longos debates conseguira-se determinar as pretensões territoriais das nações divergentes. A Bolívia estaria propensa a ceder ao Brasil, sob certas condições, a região do Acre, mas desejava receber em troca a margem esquerda do rio Madeira. Rio Branco e Assis Brasil consideraram a fórmula viável. Mas, Rui, embora julgando-a "um bom negócio", discordou sob a alegação de que o país não toleraria aquela cessão territorial.

Separava-os assim um dissídio intransponível. Ainda se corresponderam em busca de acordo capaz de

restabelecer o entendimento. Nenhum se mostrava satisfeito ante a perspectiva do rompimento e as cartas continham recíprocas amabilidades. "Basta-me não estar de acordo com a opinião de V. Ex., escrevia Rui a Rio Branco, para desconfiar da minha". (10) Mas sentia-se sem ânimo para adotar aqueles pontos de vista, que acreditava desgostarem a nação.

No fundo, o motivo principal da divergência girava em torno do arbitramento, que o diplomata receava, preferindo um desfecho imediato, mas cujas consequências não atemorizavam o jurista. Hoje é impossível dizer com quem estaria a razão mas deve-se acreditar que ambos fossem sinceros.

Azeredo e Pinheiro também intervieram, tentando uma conciliação. Juntamente com Rui e Rio Branco, reuniram-se num almoço no "Club dos Diários" a fim de discutir o assunto, mas tudo foi inútil. O obstáculo era realmente invencível. O próprio ministro foi a S. Clemente, tanto almejava evitar a separação. Mas no dia seguinte (17 de outubro) Rui escreveu-lhe exoneran-do-se. Insistia no arbitramento e terminava com muita cordialidade: "Asseguro a V. Excia., cujos passos não hostilizarei, cedo simplesmente à minha consciência, desejando, entretanto, que as minhas preocupações falhem de todo, e que o país, aplaudindo a solução, coroe mais uma vez o nome abençoado e glorioso do ministro que a promove". (11)

Rio Branco respondeu a Rui. Cortês na forma, lisonjeira em certos trechos, a carta continha algumas expressões mordazes. Aceitando a demissão solicitada, o ministro, com sutileza, imputava a Rui não ter deliberado por si mesmo e referia-se às "previsões próprias e de amigos seus". Mas, logo atenuava: "O que valho hoje no conceito dos nossos concidadãos devo-o principalmente a V. Ex. que, com o grande prestígio do seu nome, tanto encareceu os meus serviços no estrangeiro. Não foi para diminuir as minhas

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responsabilidades que pedi a V. Ex. a sua valiosa colaborarão no Acre: foi com o único pensamento de lhe dar um pequeno testemunho da minha gratidão". (12)

E, como desejasse fixar logo a sua opinião sobre os inconvenientes do arbitramento e a sem-razão das críticas feitas à inde-nização a ser paga à Bolívia, acrescentava:

"Sei bem que os sacrifícios pecuniários que a nação terá que fazer se o tratado for aprovado pelo congresso serão grandes, mas também são muito grandes as dificuldades que vamos remover e urge removê-las para que possamos quanto antes conter as invasões peruanas na zona em litígio. Se comprássemos dois grandes encouraçados gastaríamos improdutivamente tanto quanto vamos gastar com esta aquisição de um vastíssimo e rico território, já provado por milhares de brasileiros que assim libertaremos do domínio estrangeiro.

"Pelo arbitramento no terreno do tratado de 1867, começaríamos abandonando e sacrificando os brasileiros que de boa fé se estabeleceram ao Sul do paralelo de 10° 20', por onde corre a principal parte do rio Acre, e é minha convicção que mesmo os que vivem entre esse paralelo e a linha oblíqua Javari-Beni ficariam sacrificados. Não creio que um Árbitro nos pudesse dar ganho de causa depois de 36 anos de inteligência contrária à que só começou a ser dada pelo Governo do Brasil em princípios deste ano. O nosso amigo senador Azeredo lembrou há dias ao Presidente da República que os Estados Unidos da América pagaram à Espanha quatro milhões de libras pelas Filipinas, cuja superfície e população são muito mais consideráveis que as do Acre. É certo, mas deve-se ter em conta que esse preço foi imposto ao vencido pelo vencedor, o qual, para poder ditar a sua vontade, despendeu antes, com a guerra, somas avultadíssimas. É porque entendo que o arbitramento seria a derrota que eu prefiro o acordo direto, embora oneroso". (13)

Infelizmente, as divergências agravaram-se. Ao aceder na demissão, Rio Branco prometera concedê-la oficialmente, e agradecer os serviços prestados pelo demissionário. Entretanto, o tempo passara e nada fora feito. Qualquer outro poderia tolerar ou desculpar a demora, mas Rui, na véspera do Natal, censurou-a da tribuna do senado.

Atitude indelicada e que aborreceu Rio Branco. Contudo, escreveu a Rui justificando-se:

"Com esta explicação, dizia, espero que V. Excia. me perdoe e, — apesar da guerra de boatos e intrigas que anda acesa contra

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mim, — continue a acreditar no mui sincero afeto de quem tanto lhe deve e há-de ser sempre, — haja o que houver. — De V. Excia., admirador e muito delicado amigo e criado — Rio Branco". E juntava numa nota: "Escrevo tarde e muito fatigado. Rogo a V. Excia. desculpe a letra e o desarranjo desta carta". (14) Rio Branco, no entanto, chegava tarde.

A princípio parecera que o incidente terminaria sem maiores consequências. Apenas dois amigos com opiniões opostas, e cada um tomando o rumo que lhe parecia melhor. Agora, porém, Rui, irritado, já não desconfiava da própria opinião. E em janeiro êle publicou a "Exposição de motivos do plenipotenciário vencido . Esperava captar a opinião, atirando-a contra Rio Branco. Enganara-se, porém. A popularidade deste tomava-se cada vez maior, e a nação ficara satisfeita com as bases do acordo firmado com a Bolívia. A seta errara o alvo. Foi melhor assim. Vencedor na escaramuça, Rio Branco não guardou ressentimentos, e deixou somente uma nuvem, e não convinha exagerá-la. Ainda poderiam voltar a ser bons amigos.

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Ao contrário do que sempre acontecia, Rui conduzira os debates sobre o caso sem hostilizar o governo. Indício de que realmente mudara bastante.

Aliás, essa transformação não era a única. Bem maior fora a verificada em relação aos seus sentimentos religiosos. Após uma evolução lenta, nada restava do anticlerical de 1876. Principalmente o sofrimento concorrera para essa reconciliação com os ensinamentos de Maria Adélia. Tantas vezes batido pela vida, desiludido dos seus semelhantes, necessitara apegar-se a alguma coisa, que lhe mantivesse o ânimo para continuar a luta. E que consolo melhor do que a religião poderia encontrar? Desde o exílio seria possível observar os primeiros sintomas dessa transformação; e agora, como se já fosse completa, sobre a cabeceira da cama do antigo adversário da Igreja via-se um retrato de Leão XIII, com a bênção Apostólica concedida a Rui e Maria Augusta. Daí por diante nada obstara fosse sempre maior a sua aproximação do catolicismo. (15)

Em novembro de 1904, periclitara a estabilidade do governo de Rodrigues Alves. Associando-se aos protestos populares em torno da vacinação obrigatória contra a varíola, revoltara-se a Escola Militar. Salvara-o, porém, além do acaso, e atitude pronta do comandante da Vila Militar, o coronel Hermes da Fonseca.

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sobrinho de Deodoro, e a quem o destino abria assim o caminho para uma carreira vitoriosa.

Nessa ocasião, Rui publicou na "A Tribuna" uma carta, censurando a polícia, que pretendia imputar aos monarquistas a insurreição. Pregava a generosidade para com os vencidos e as suas palavras estavam embebidas em conceitos cristãos. "Não sei se incorro em ridículos trazendo por estas alturas o nome de Deus. Se incorrer, paciência. Não me arrependo, e persisto". Elas revelam coragem. Por esse tempo tornara-se moda, nos círculos dos homens de letras, cada qual orgulhar-se das suas convicções materialistas. A religião era alguma coisa reservada para os pobres de espírito, e que Darwin desmoralizara completamente com as leis sobre a evolução das espécies. Rui sabia disso, e acrescentara: "E eu, embora zombe de mim a flor dos intelectuais, sinto-me bem, aqui, de me ver confundido com o vulgo". (16) Sem dúvida, parecia outro homem.

Maior espanto ainda causaria saber-se ter confiado a padres jesuítas a educação do filho mais moço, o João. Nos seus passeios por Friburgo, muitas vezes chegara até ao "Colégio Anchieta", internato isolado entre as altas montanhas da região, onde poderia evocar os dias vividos cm Olinda, no mosteiro dos Beneditinos. Observara a disciplina, os métodos de ensino, e acreditara ter encontrado um "regime capa/, de formar o espírito e o coração" do filho, que completara os seus doze anos. Confiara-o assim aos irmãos de hábito de Santo Inácio, que em outros tempos tanto combatera.

Nascido quando Rui já passara dos quarenta anos, o menino fora criado entre os mimos, e o pai nele depositava sinceras esperanças. Achava-o sensível, e inclinado às artes, sobretudo à pintura e à música. Restaria apenas desenvolver-lhe as faculdades de observação e investigação, coisas que o pai considerava essenciais.

Profundamente interessado na educação do filho, Rui frequentemente se correspondia com o diretor do colégio, o padre Yabar, chamando-lhe a atenção para este ou aquele ponto. Em certa ocasião privara-se até do veraneio em Petrópolis, a fim de proporcionar-lhe uma vida mais caseira. Mas participara desolado ao padre: — "Nem chácara, nem livros, nem família conseguiram prendê-lo nunca". (17)

Por fim, Rui acabara amigo dos jesuítas. Nas suas visitas ao filho, chegara a hospedar-se no colégio, cercado pelo carinho dos padres. Cativaram-no estas manifestações de afeto, e durante

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longas horas, imerso naquele silêncio, que lhe era sempre tão caro, conversara com o Padre Galanti, deixando-se prender inteiramente. Quanto fora injusto na mocidade! devia pensar. Contudo, resgatara generosamente a dívida. Convidado, em 1903, para ser o paraninfo dos rapazes que nesse ano recebiam o diploma no "Colégio Anchieta", penitenciara-se sinceramente.

Foi belo o discurso que pronunciou. Dirigindo-se aos adolescentes, que se preparavam para partir, as suas palavras constituíram, ao mesmo tempo, lição de humildade e de fé:

"Demóstenes se ensoberbecia de ter a Platão por ouvinte, prezando em mais tamanha honra que a de senhorear por auditório o mundo inteiro. Para mim a de me entreter convosco sobreexcede em gozo a todos os momentos de vão orgulho e inútil embriaguez, que a tribuna me possa ter dado.

"Todas as coisas, algumas bem santas, em que ela foi o meu campo de batalha, não valem mais que a do vosso destino. Com a diferença que ali espargia eu ao vento os meus rebates de atalaia, as minhas vozes de guerreador, ou os meus vaticínios de profeta (que tudo me imaginava na vaidade da minha ambição e na impotência do meu nada); ao passo que hoje, aqui, serei apenas a mão chã do semeador, semeando algumas sementes de bem no torrão virgem do seio que me abris". Antes de prosseguir, Rui resumiu a sua própria existência: "Estremeceu a pátria, viveu no trabalho, e não perdeu o ideal!". Calorosos aplausos. Quantos poderiam dizer a mesma coisa e serem acreditados?

O oração dirigida à mocidade estava referta de conceitos. Ao referir-se à pátria, por exemplo, êle assim a definiu: "A pátria não é ninguém, são todos; o cada qual tem no seio dela o mesmo direito à ideia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema, nem um monopólio, nem uma forma de governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade. Os que a servem são os que não invejam, os que não conspiram, os que não sublevam, os que não desalentam, os que não emudecem, os que não se acobardam, mas resistem, mas ensinam, mas esforçam, mas pacificam, mas discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o entusiasmo. Porque todos os sentimentos grandes são benignos, e residem originariamente no amor". A linguagem tornara-se simples e fácil. Para quem tanto pregara inutilmente aos homens, talvez enchesse de esperanças falar àquelas almas em formação.

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"Sede, meus caros amiguinhos, tais quais o verdor florescente de vossos anos o exige: afervorados, entusiastas, intrépidos, cheios das aspirações do futuro e inimigos dos abusos do presente. Mas não vos reputeis o sal da terra. Habituai-vos a obedecer, para aprender a mandar. Costumai-vos a ouvir, para alcançar a entender. Afazei-vos a esperar, para lograr concluir. Não delireis nos vossos triunfos". Ah! se os seus jovens ouvintes pudessem bem guardar esses conselhos dados com o coração aberto. Talvez fosse impossível. Entretanto, o pregador não se devia cansar, e o seu dever era continuar. Agora que tanto mudara, inclinando-se "às transações necessárias", encontrara essa nova maneira de realizar o seu "clama ne cesses".

Onde, porém, soara mais alto a voz do penitente, fora ao proclamar o primado da fé sobre a ciência: "Adoecer um pouco menos, viver um pouco mais — será o desideratum, que absorve as preocupações eternas da nossa espécie?" perguntara aos seus jovens ouvintes. Certamente, se o escutassem agora, os antigos companheiros não o reconheciam.

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Siin, ele mudara muito, li, como era natural, a vida também mudara para file. Iam bem longe os tempos cm que lutara como "um vulcão solitário", enfrentando os governos entre árduos sacrifícios. Dessa transformação, depois que trocara o Sonho pela Realidade, a primeira recompensa foi a eleição, em 1906, para vice-presidente do senado. Se ainda vivesse, o bom cons.0 Albino não precisaria mais adverti-lo: "Seu Rui, talento não é juízo". Não, embora um pouco tarde, êle, que sempre fora para os políticos como um aluno estudioso mas de mau comportamento, estava agora ajuizado. Pinheiro e Azeredo estavam contentes com o correligionário.

Tudo bem diferente dos dias dolorosos do exílio. Jamais Rui os esquecia, comprazendo-se em contemplar as cicatrizes deixadas pelo sofrimento. Fazia confrontos, e escrevia à filha, Maria Luiza: "Faz hoje doze (anos) que, nos dias tristes do nosso exílio, Deus nos mandava o teu nascimento como uma alegria do céu. Depois Êle nos restitui à nossa terra, à nossa liberdade, ao nosso trabalho, à nossa família, tanta coisa que nós desejávamos, c que só Êle sabe se merecíamos. Tu vieste ao mundo como um anjo precursor, para nós, de todas essas bênçãos. Deus te cubra das suas, permitindo que cresças em bondade, em amor aos teus seme-

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lhantes, em devoção aos teus deveres, para que a tua vida inteira lembre sempre a teus pais, a teus amigos, a teus mestres, a todos que te conhecerem, o contentamento trazido pela tua vinda ao nosso coração no dia em que nasceste, há doze anos, na imensa Londres, onde vivíamos sozinhos e aflitos". (18) A tempestade passara. Fundeado nas águas calmas do porto, o navegante recordava com emoção as altas vagas vencidas.

Muitas outras coisas também haviam mudado. Graças às severas economias realizadas por Campos Sales, Rodrigues Alves pudera fazer um governo de grandes empreendimentos. Em quatro anos, o Rio de Janeiro transformara-se, parecendo outra cidade. O prefeito Pereira Passos rasgara amplas avenidas, e Osvaldo Cruz extinguira a febre amarela. Pelas ruas asfaltadas circulavam os primeiros automóveis, e à noite, a iluminação clétrica deslumbrava a população. Breve viriam os bondes elétricos. A capital civilizava-se.

Foi difícil a sucessão de Rodrigues Alves. "A Coligação", agrupamento político organizado por Pinheiro para se opor à candidatura de Bernardino de Campos, esteve a pique de soçobrar. Na Bahia, haviam-se lembrado de Rui para Presidente da República e o próprio governador José Marcelino escrevera o artigo publicado na imprensa lançando a candidatura do coesta-duano. (18-A) Entretanto, a um grupo de intelectuais que se dispunha a apoiá-la, Rui, com dolorosa ironia, êle que já era a primeira cerebração do país, assim agradeceu a solidariedade: "Nossa terra fará justiça à minha incompetência. E isso me tranquiliza". (19) De certo modo adivinhava as objeções que o seu nome suscitaria no mundo político. Temiam aquele intransigente diante dos princípios, e seriam vãos os esforços de Pinheiro para consolidar a candidatura de Rui. Mesmo na Bahia houvera empecilhos à ascensão do grande filho. Severino Vieira, chefe do partido, escrevera de Paris a José Marcelino: "O nosso Rui, se tivesse elementos, devia ser sustentado por nós, embora a minha convicção de que êle não seria a mais acertada escolha. Rui se impõe à admiração de todos pelo seu talento e erudição; porém, não é, nunca foi, e não poderá mais ser um estadista." A velha desafeição sobrevivia. E algum tempo depois, mais categórico, Severino insistiu: "Procure desembaraçar-se do Rui", aconselhou a José Marcelino.

Como se desdobraria essa partida política? Pinheiro, em primeiro plano, punha a derrota de Bernardino de Campos. E Rui, como é tão freqiiente nas lides partidárias, acima da própria

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vitória colocava o afastamento de Campos Sales. Chegara a irritar-se à simples notícia de que Pinheiro, num discurso, louvara a "moralidade administrativa" (20) do antecessor de Rodrigues Alves. Nessas condições era natural que o triunfo coubesse a um nome alheio à controvérsia, e Rui não custou a compreender ainda não ter chegado a sua vez. Então, cheio de bom senso, embora as frases fossem por vezes demasiadamente fortes, rascunhou uma carta para o governador da Bahia, José Marcelino, externando todo o seu pensamento. Dela remetera apenas alguns trechos ao destinatário, mas isso em nada diminui o valor do documento. Eis, entre outras coisas, o que dizia:

"Tenho com o país imensos compromissos. Não aceitaria o governo senão para governar com eles. Ora, que confiança podia eu ter nas minhas forças e na situação atual do Brasil, para nutrir a esperança de corresponder a tamanhas responsabilidades?

"Nunca, entretanto, com elas me inquietei, ao ver-me candidato; porque sempre tive por certo que a política havia de sufocar a minha candidatura. Sob o antigo regime não passei de deputado. Sob o atual, mal me toleram senador. Nem um nem outro me puderam subtrair a honra de representar a Bahia. Ter, porém, nas mãos o único instrumento eficaz para o bem nesta terra, isto é, o exercício do governo, isso não admitiriam as influências, que entre nós criam as situações, e distribuem o poder". (21)

Nesse tom, Rui mostrava perceber a inviabilidade da sua candidatura. Pinheiro também pensava do mesmo modo. E essa concordância preparava o caminho para o triunfo da "Coligação".

Nessa disputa coube a vitória a Afonso Pena, político vindo das fileiras liberais do Império. Como Rodrigues Alves, diplo-mara-se no mesmo ano em que Rui, e, embora tivessem divergido na monarquia, mantinham relações cordiais. Este o apoiou lealmente. Eleito, Pena agradecer-lhe-ia: "Sendo esta a l.a carta que escrevo ao velho amigo depois da eleição presidencial, não posso deixar de relembrar-lhe o que mais de uma vez lhe tenho dito sobre o valor inestimável que ligo ao apoio que prestou à minha candidatura. Não tanto para significar-lhe que o meu reconhecimento é profundo, mas para fazer-lhe sentir quanto espero de seu concurso para desempenho da enorme responsabilidade que vai pesar sobre mim." Iam longe os dias de oposição. Representava também o triunfo de Pinheiro, que jogara corajosamente, tornando-se assim uma espécie de Condestável da República.

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O CAMINHO DO PODER 295

Algum tempo depois de Afonso Pena ter assumido o governo, começou-se a cogitar da representação do Brasil à Segunda Conferência da Paz, que nesse ano (1907), se reunira em Haia.

Antes, Rui recusara ser um dos representantes do Brasil na 3. a Conferência Pan-Americana, reunida no Rio de Janeiro, em 1906. (22) Aceitara, porém, ser o orador do Congresso numa homenagem a Elihu Root. E sobre isso escreve a Nabuco: "Estou velho, doente, e, enquanto ainda se me não apagasse de todo "o fogo sagrado", isto é, o entusiasmo o a esperança, já não assumo iniciativas, nem me exponho a temeridade. Os anos e o atrito das coisas hostis, cujo quinhão me tem sido acerbo e quotidiano, desenvolveram em mim uma desconfiança, que não consigo vencer, senão quando algum dever irresistível me impõe obediência cega. Foi principalmente por isso (aqui em segredo lhe confesso) que me escusei da Conferência Pan-Americana. Nesta disposição de espírito, a homenagem por V. imagina aos Estados Unidos na pessoa do sr. Root seria uma cena grande em demasia para a minha timidez". (23) Sim, a sua timidez.. . Possivelmente, Rui não sabia quanto era verdadeiro o que dizia.

Agora, para a missão de Haia, Rio Branco, que continuava dirigindo a política externa, convidara Nabuco. Mas, por sugestão do "Correio da Manhã", o nome geralmente indicado era o de Rui, e o "Barão" (assim chamavam habitualmente Rio Branco), sopitando a mágoa deixada durante as negociações com a Bolívia, não contrariou aquele sentimento mais ou menos unânime do país. Enviaria dois representantes: Rui e Nabuco. Pensamento impossível de realizar. Como coexistirem dois Césares em Roma? Nabuco declinou do convite. Sem Rui, seria êle o embaixador.

Rui demorou muito em responder. Nas fases em que dominava nele o homem de ação não conhecia a dúvida, mas, quando se tornava contemplativo, a imaginação se lhe povoava de prós e contras. Agora, êle vivia um destes períodos e mostrava-se vacilante e cheio de pressentimentos.

Na realidade, não sabia como decidir. Ora pensava em aceitar, ora mostrava-se disposto a recuar. De uma vez, tendo um jornal informado que êle declinara do convite, apressara-se a telegrafar a Rio Branco: "Nenhum fundamento tem Vária Jornal hoje a meu respeito. A ninguém autorizei manifestar nem manifestei resolução que ali me atribuem." (24) De outra feita, por causa duma intriga visando separá-lo de Rio Branco, logo escre-eera a este dizendo não aceitar o convite. Afinal, depois de mês e meio de indecisões, Rui estava em Petrópolis quando resolveu

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entregar à senhora Azeredo, a quem o marido incumbira dessa missão devido às suas relações com Maria Augusta, a carta acedendo em representar o Brasil.

Nesse momento, vinda da rua, ouviu-se a triste melodia duma ária da "Tosca" e a Rui isso pareceu de mau agouro. (25)

NOTAS AO CAPITULO XXI

(1) Sobre Pinheiro Machado buscamos algumas informações nos seguintes trabalhos: Eduardo Ramos, "Prosas de Cassandra", p . 20-22; Hermes da Fonseca, "Pinheiro Machado", p . 148-152; Salvador de Mendonça, in "O Imparcial", de 7 de fevereiro de 1913; Sertório de Castro, "A República que a Revolução destruiu", p . 216; e Oliveira Lima, "Memórias", p . 96.

(2) Brinde de Rui a Pinheiro Machado num banquete a 7 de maio de 1907, in "Novos discursos e conferências", p . 223.

(3) Informações que devemos a nímia gentileza da exma. sra. viuva Rui Barbosa.

(4) Realmente, foi muito comum afirmar-se que D. Maria Augusta linha decisiva influência sobre as deliberações de Rui. A verdade, porém, é que embora houvesse contribuído poderosamente para determinadas resoluções, que apesar de se refletirem na vida publica, diziam sobretudo respeito à existência particular de Rui, este jamais deixou de tomar inteiramente só os rumos, que lhe marcam a existência. Prova, porém, de quanto se acreditou nessa influência de D. Maria Augusta é o bilhete abaixo transcrito, e no qual Lcovigildo Filgueiras, deputado pela Bahia, onde foi professor de Direito, se dirigia ao irmão de D. Maria Augusta solicitando a intervenção desta (Mn favor da sua candidatura ao Governo da Bahia. O insucesso de Filgueiras, aliás amigo de Rui nessa ocasião, revela a ineficiência do meio que escolhera. Dizia êle: "Carlos. Confidência só para o seu uso. Não creio que a simples intervenção do nosso Ruizinho junto ao pai consiga deste impor ao José Marcelino a adoção de minha candidatura a governador do Estado e rebater a ideia da preferência de outro qualquer político baiano para seu sucessor.

Julgo indispensável a insistência de D. Cota e até a presença desta no ato da conferência entre o José Marcelino e o Rui para animá-lo a resistir a qualquer ponderação daquele a favor da candidatura Tosta e fazê-lo declarar peremptoriamente que só continuará no posto de plenipotenciário da política baiana no seio do Bloco e como representante da Bahia no Senado até o último dia do governo dele José Marcelino, salvo se o sucessor deste for eu, por ser o único da representação baiana do Congresso a quem dispensar a mesma confiança que tem nele José Marcelino, pois confiança numa pessoa não é coisa que se adquira por informações ou seguranças de terceiros, mesmo de um terceiro em quem se tenha imediata, mas intransferível confiança.

O problema, pois, para ser resolvido de acordo com o sentir de Rui, precisa de ser deslocado: é D . Gota quem tem em mão a chave desse problema. Ela é que deve entregá-la, isto é, passar da mão dela para a de Rui esta chave no momento decisivo da conferência com a cláusula da irrevogabilidade "sine qua non". Aí está".

O CAMINHO DO PODER 297

Antes, tinha sido Leovigildo Filgueiras o causador de um dos mais duros desgostos que Rui sofrera. Em 26 de novembro de 1905, publicava "O País" uma carta de Filgueiras a José Marcelino, em 26 de setembro de 1905, e na qual transmitia a este a minuta do seguinte telegrama que lhe teria Rui solicitado dirigir a José Marcelino: "Escreva Rui já pedindo empregar seu valimento impedir acinte Bahia eleição Seabra senador pelo governo Alagoas, que assegurou adesão leal coligação e, portanto, não tem direito contrariar interesses políticos qualquer outro Estado coligado contra atual Governo". Conforme se vê, era imputar a Rui atitude menos digna, sobretudo menos corajosa, uma vez que teria buscado atirar sobre o Governador da Bahia a responsabilidade da atitude assumida contra a eleição do dr. J. J. Seabra como representante de Alagoas no Senado.

E, no mesmo dia, Rui assim se dirigia a Leovigildo Filgueiras: "Não recebendo, nem costumando ler O País, só há pouco, no Senado, por notícia que me deu o senador Azeredo, vi o número de hoje, e nele a publicação de uma carta sua, onde me surpreende, ainda mais que o abuso da subtra-ção e divulgação desse escrito particular, a novidade c estranheza do episódio, em que ali figura o meu nome. Esse episódio não encerra a menor realidade.

Primeiramente, em setembro de 1905 cu nenhuma notícia tinha da candidatura Seabra por Alagoas. Ela só chegou ao meu conhecimento este ano, por abril, ou maio.

Depois, quem quer que me conheça, verá que eu não era capaz de sugerir o artifício, em que me vejo metido naquela história, de um telegrama aqui minutado por mim a V., para, a pedido seu, me ser enviado pelo José Marcelino, da Bahia. Coisas destas não são compatíveis com o meu caráter, o meu temperamento, os meus hábitos, que sempre foram mui outros. Eu não lhe minutei telegrama algum, nem lhe aconselhei, fosse como fosse, naquele sentido. Era incapaz de fazê-lo, e não o fiz. Protesto e reclamo contra semelhante imputação.

De quantos desgostos ultimamente por mim tem passado, este é o mais duro de sofrer. Não posso conformar-me a me ver exposto pela imaginação de um amigo a um papel, que, se fosse verdadeiro, me humilharia e envergonharia aos meus próprios olhos. Rui Barbosa".

(5) Rui Barbosa, discurso no Senado, cm 5 de agosto de 1905, Anais do Senado, vol. II de 1905, p . 81 .

(6) In "Novos Discursos e Conferências", p. 248. (7) Idem, idem. (8) Cf. carta de Pinheiro Machado a Rui, cm 15 de outubro de 1905,

em resposta à de Rui, que é de 13 de outubro do mesmo ano. Rui respondeu em 1 de outubro, resolvendo aquiescer à solicitação de Pinheiro para permanecer na "Coligação", de que pretendera desligar-se por causa do discurso de Joaquim Murtinho, saudando Afonso Pena, no banquete a este oferecido em 12 de outubro de 1905, quando leu o seu programa de governo. De todas essas cartas existe o original ou cópia autentica no Arq. C. R. B.

(9) Rui Barbosa, brinde a Rodrigues Alves, em 22 de abril de 1903, in "Novos Discursos e Conferências", p . 213. Rodrigues Alves agradeceu a Rui, que respondeu com a seguinte carta: "Petrópolis, 24 de abril, 1903. Dr. Rodrigues Alves. Acabo de receber a atenção do seu bilhete. Nada tem que me agradecer. O meu brinde é a expressão sincera da Justiça que se lhe

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deve e de num dever, como homem público, de dizer o que sinto. Peço a Deus que o ajude a confiar em si mesmo, e ouvir as inspirações do seu próprio espirito; porque nesse caso, há de acertar quase sempre, mantendo, aproveitando e aumentando a grande força moral, de que dispõe. Releve estas palavras leais ao velho colega e amigo Rui Barbosa".

(10) Cf. carta de Rui a Rio Branco em 23 de setembro de 1903, cópia in Arq. C. R. B.

(11) Existe o original no arquivo do Itamarati. (12) Cf. carta de Rio Branco a Rui, em 20 de outubro de 1903, in

A. G. de Araújo Jorge, "Introdução às obras do Barão do Rio Branco", (Rio, 1945), p. 145. Essa carta tem sido publicada várias vezes com incor-reções. Nela Rio Branco se refere aos artigos de Rui, na "A Imprensa", em 2 e 4 de dezembro de 1900, ambos lisonjeiros para Rio Branco. São os artigos "Rio Branco e a Suiça", e "Gratidão".

(13) Idem, idem, idem. (14) Cf. carta de Rio Branco a Rui, em 25 de dezembro de 1903,

in Arq. C. R. B. (15) Rui herdara do Pai a malquerença por Pio IX, e daí, talvez, a

explicação para as atitudes anticlericais que tomou na mocidade. Com a Igreja reconciliar-se-ia, porém, através do caminho aberto por Leão XIII, de quem, no Senado, em 21 de julho de 1903, diria o seguinte: "Não é somente o Sumo Pontífice da Igreja Romana que acaba de desaparecer, mas o grande pacificador, o espírito liberal, a alma simpática às grandes questões sociais, o árbitro oracular entre tantas dissidências, que têm dividido ultimamente as maiores nações do globo; é uma cabeça, aureolada ao mesmo tempo pela religião, pelas letras, pela política, pela humanidade o dardejando os raios da sua coroa luminosa por toda a extenção do orbe civilizado."

(16) Cf. carta de Hui a "A Tribuna", cm IH de novembro de 1904. (17) Sobre o assunto deve ser consultada a correspondência trocada

entre Rui e o padre Yabar, S. J., e que se encontra no Arq. C R. B. (18) Cf. carta de Rui em 12 de novembro de 1906, à filha Maria Luiza,

hoje senhora José Guerra, e a cuja gentileza devemos a cópia do original. (18-A) Maria Mercedes Lopes de Souza, Rui Barbosa e José Mar

celino (Rio, 1950), pg. 51. Artigo publicado no jornal "A Bahia" em 13 de março de 1905.

(19) Cf. telegramas de Rui ao prof. Virgílio de Lemos, em 21 de julho de 1905. Cópia in Arq. C. R. B.

(20) Cf. carta de Rui a A. Azeredo, em 19 de abril de 1905, in Arq. C. R. B.

(21) No Arq. da C. R. B. existe o autógrafo da minuta da carta de Rui, em 23 de julho de 1905, ao Governador da Bahia, José Marcelino. Trata-se dum documento da maior importância para explicar a posição de Rui nos sucessos, que antecederam a escolha do candidato à sucessão de Rodrigues Alves, e por isso o publicamos na íntegra, assinalando os trechos que se encontram riscados, e que portanto, presume-se tenham sido supres-sos no original enviado ao destinatário. Eis a carta: "Rio, 23 de julho, 1905. Meu caro Dr. José Marcelino. Desde que aí se levantou, por iniciativa especialmente sua, a minha candidatura, não lhe escrevi, até hoje, uma palavra. Aguardava o resultado final dessa tentativa generosa, para levar os meus agradecimentos à Bahia e ao seu ilustre governador. A espon-

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taneidade da iniciativa e a unanimidade com que a opinião baiana a recebera, me comoveram inefàvelmente. Mas nunca esperei sucesso favorável. E (porque não dizê-lo?) não a esperei nunca. Tenho com o país imensos compromissos. Não aceitaria o governo, senão para governar com eles. Ora que confiança podia eu ter nas minhas forças e na situação atual do Brasil, para nutrir a esperança de corresponder a tamanhas responsabilidades?

Nunca, entret.0 com elas me inquietei, ao ver-me candidato; porq. sempre tive por certo q. a política havia de sufocar a minha candidatura. Sob o antigo regime não passei de deputado. Sob o atual, mal me toleram senador. Nem um nem outro me puderam subtrair a honra de representar a Bahia. Ter, porém, nas mãos o único instrumento eficaz p . n o bem nesta terra, isto é, o exercício do governo, isso não admitiriam as influências, q. entre nós criam as situações, e distribuem o poder.

— Embora, porém, contasse com o malogro da minha candidatura, (vendo-a) Q posta, como foi, em condições sem exemplo entre nós, (< declarando-se __, a Bahia resolvida a levá-la às urnas, custasse o q. custasse), cu nem a Q podia ter rejeitado, nem poderia depois renunciá-la. (Obra exclusiva da M Bahia, esta m. impusera, e só esta desse encargo m. podia exonerar). H Mas verificada q. fosse a sua impossibilidade total de vencer, desde PH q. se descobrisse uma fórmula capaz de nos assegurar a vitória contra

a imposição oficial, cumpria q. não hesitássemos em abraçá-la. O ponto de vista patriótico, realmente, não era eleger-me a mim, senão matar a candidatura oficial inadmissível. Primeiro porque oficial; segundo porq. encarnada em um mau nome; terceiro porq. arriscada a nos levar à desordem e à revolução. Até que se viesse a dar com essa fórmula, porém, convinha manter a minha candidatura como meio de preservar ilesas as forças baianas para a solução final.

Assim pensava eu, e assim me exprimia, respondendo aos q. me sondavam sobre transações possíveis, quando o dr. Filgueiras me comunicou a sua carta de 6 do corrente a êle endereçada. O pensamento ali contido vem a ser, em substância, q., "pondo de parte preferências pessoais, por mais respeitáveis q. sejam", nos congregássemos numa combinação capaz de nos assegurar o apoio mineiro. Ora esta fórmula se traduz, necessariamente, na de adotar a Bahia uma candidatura de Minas. De outra sorte não haveria aliança q. esse estado entrasse.

Senhor dessa opinião do meu bom amigo, o dr. Pinheiro Machado, a quem o nosso am.° dr. Filgueiras a expôs, me procurou ontem, convidando-me a entrar no caminho, q. a sua carta nos indicava.

Dado pelo dr. Pinh.° Machado este passo, a minha resposta não podia ser senão a com que o acolhi. "Desde q. os próprios iniciadores da minha candidatura (disse eu), por motivos de ordem superior, como os a que cederam, no levantá-la, tendem atualmente a promover outra, não me resta senão subscrever, e agradecer. A minha candidatura, pois, cessou virtualmente de existir. Trate o senhor, port.°, de agenciar a combinação, q. a carta do dr. J.é Marcelino alvitra, tentando a candidatura mineira, q. reunir o apoio geral de Minas".

Respondi anuindo. Não podia fazer outra coisa. De modo q. o dr. I'inh.° Mach. abriu imediatamente as diligências naquele sentido.

(Eis, em suma, como findou e no que veio a cifrar a nossa entrevista.) Por maior clareza e ressalva, entretanto, do meu procedimento, dirijo àquele IIII-II amigo, em data de hoje, a carta de q. aqui incluo cópia fiel.

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300 A VIDA DE RUI BARBOSA

Tal a situação rcsultte. da sua missiva, q. assim julgo estar satisfeita. Aguardo, por conseguinte, o momento oportuno, para sair a lume a minha desistência, o no entanto, lhe irei comunicando as transações q. ad referendum aqui se esboçarem. Simples receptor e transmissor, me limitarei a relatá-las p .* aí onde tem ser examinadas e decididas.

Urge, entre.0 , q. o nosso am.° dr. Filgueiras volva, p . a ser, nestas negociações, o plenipotenciário baiano. Não me cabe a mim esse papel. Nunca intervim na manipulação de candidaturas presidenciais. Como fazê-lo agora, quando mais do q. nunca, a política republicana continua a ser um simples jogo de nomes próprios? Depois, eu seria havido por suspeito. As objeções, q. articulasse no curso das negociações entaboladas, passariam como embebidas no despeito da minha malograda candidatura.

Qualquer acordo, pois, q. se me proponha, enviá-lo-ei, como transmissor fiel, para aí onde tem de ser aceito, ou rejeitado.

Ainda mal convalescido, escrevo-lhe mt.° a custo, o mais q. posso. Receba, meu caro Dr. José Marcelino, com um apertado abraço a

expressão do afeto, com que lhe quer, de coração, o am.° obrigm.0 Rui Barbosa".

De fato, prevaleceu a escolha dum candidato que tivesse o apoio unânime de Minas. Em 2 de julho de 1905, Pinheiro, escrevendo a Rui, assim externava a sua concordância com aquele critério: "Tenciono pro-curar-lhe à noite e então examinaremos as reflexões que julgar oportuno fazcr-me cm relação ao projetado acordo sobre candidatura à futura eleição presidencial; entretanto posso adiantar-lhe desde já que eu também entendo necessário, que Minas nos ofereça segurança de sua coesão eleitoral em torno do candidato que aceitarmos, para realizar-se as desistências. Até logo. Saudades do Colega e imi.° grato".

Surgiu assim a candidatura Afonso Pena, para a qual Rui concorrera valiosamente. Entretanto, publicado que a Bahia a adotara por indicação dele, Rui escreveu esta nota, para o "Correio da Manhã", e cujo original se encontra no Arq. da C. R. B.: "Sr. Redator. O Correio da Manhã de hoje, em um telegrama de Belo Horizonte, anuncia aos seus leitores que a Bahia adotou a candidatura do ilustre sr. Afonso Pena por indicação minha e a Tribuna desta tarde confirma essa notícia, declarando que aquela candidatura ficou assentada após o meu consentimento.

Essas duas versões, na essência contestes, me obrigam, muito malgrado meu, a uma retificação, para a qual venho solicitar desta folha a honra de um lugar nas suas colunas, por ser este, dos dois jornais, o que, diariamente, mais cedo sai a lume.

As circunstâncias, de que me vou ocupar, aguardavam ensejo adequado na explicação e no agradecimento, que era meu intuito dirigir aos meus conterrâneos oportunamente. Este incidente, porém, me força a antecipar os esclarecimentos, que a delicadeza do caso torna inadiáveis.

Manifestando-se, como se manifestou, da parte daqueles a quem coubera a iniciativa da lembrança na escolha do meu nome para a eleição presidencial, um movimento em rumo contrário e aconselhando eles, em documento escrito, como indicação que o patriotismo nos impunha, uma aliança com a política de Minas, o que importava necessariamente na adoção de um candidato mineiro, claro está que, na minha situação, qualquer espírito desinteressado, isento e digno não podia, nem por um momento

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mais, considerar subsistente uma candidatura, a que os seus próprios autores não enxergavam salvamento possível, e os seus amigos já preferiam solução diversa.

Outra não podia ser, pois, a minha atitude, quando me procurado por terceiro, interessado na luta da eleição presidencial a quem essa modificação nos sentimentos da Bahia aproveitava, c fora autorizadamente comunicada. Nada tinha eu que resignar, ou renunciar. A minha candidatura ainda estava nas mãos da Bahia. Bastava que ela as fechasse. Meu pape! era agradecer, como agradeci, por carta, a quem tocava, e remover-me do caminho, declarando-me aqui, ao negociador que as negociações por êle feitas não se haveriam como tais, enquanto não aprovadas na Bahia, e comunicando, por outro lado, para a Bahia que, nas negociações entaboladas por sua conta, o meu préstimo seria meramente o de receptor e transmissor dos resultados obtidos.

Eis o meu procedimento, nas circunstâncias de que se trata. Dele se vê, por uma parte, que me não presumi com autoridade, para fazer indicação nenhuma, e, por outra, que o assentimento dado não é meu, senão daqueles que têm qualidade na Bahia, para por ela falar.

Esse assentimento, porém, agora simplesmente se presume, unia vez que a combinação alvitrada espera ainda a aprovação de Minas, e só então será submetida à da Bahia, onde aliás é de ver não encontre no rnundo político senão simpatia um nome de tamanho prestígio como o do ilustre mineiro, em torno de quem se reúne rigorosa a coligação oposicionista. Rui Barbosa."

(22) Rio Branco em carta dirigida a Rui em 8 de maio de 1906 comunicou-lhe o desejo de falar-lhe, em nome do Presidente Rodrigues Alves, sobre o 3.° Congresso Internacional Americano. Rui respondeu em 10 de maio do mesmo ano. E, afinal, em carta de 25 de maio, recusou, nos seguintes termos, o convite recebido: "Exm.° sr. Barão do Rio Branco. Quando, em nome do Presidente, V. Exa. me fêz a honra de me convidar, com palavras tão lisonjeiras, para um dos lugares de representação do Brasil na 3 . a Conferência Pan-Americana, para logo acrescentou esperar que eu, se me não sentia disposto a aceitar imediatamente, me reservasse espaço para considerar no assunto.

Anui de boa mente â sua gentileza, que me não seria lícito recusar, tanto mais quanto era muito do meu desejo aceder ao empenho de V. Exa., manifestado com expressão de tão benévolo apreço; e é justamente essa minha inclinação a que me tem detido na resposta.

Mas, convindo no que V. Exa. me propunha, logo lhe toquei nos embaraços, que me opunha o mau estado de minha saúde neste momento. Contra eles não pôde, com efeito, a vontade, que eu tinha, de aquiescer. Enfraquecido por excesso de trabalho e submetido, justamente agora, em razão disso, a um tratamento, que demanda, sobretudo, certo repouso relativo, obrigando-me, talvez, até, a me aliviar de tarefas já encetadas, não me é dado assumir novos encargos, de tamanha delicadeza e responsabilidade como o com que V. Exa., imerecidamente, se serve de querer distinguir-me.

Pesaroso, assim, de não me ser possível obedecer a V. Exa., só me consola a certeza de não faltarem no país cidadãos, que, com outro brilho, respondam às exigências dessa missão, a cuja altura me não sinto, e, aproveitando a oportunidade, para reiterar os meus agradecimentos, conto me

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302 A VIDA DE RUI BARBOSA

releve a escusa, muito sincera, acreditando na elevada e afetuosa estima, com que me considero sempre de V. Exa. admirador, am.° e cr.° obrd.° (as.) Rui Barbosa".

(23) Cf. carta de Rui a Joaquim Nabuco, em 22 de julho de 1906, cópia in Arq. C. R. B.

(24) Em 13 de março de 1907, publicava o Jornal do Comércio, na sua seção "Várias Notícias" a seguinte nota: "Ouvimos dizer que o Sr. Senador Rui Barbosa declinou o convite que lhe fêz o Sr. Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores, para fazer parte da comissão que tem de representar o nosso país na Conferência de Haia". E Rui, ao lê-la, logo se apressou em telegrafar a Rio Branco: "Petrópolis, 13 de março, — 10 hs. manhã. Barão Rio Branco. Rio. Nenhum fundamento tem Vária Jornal hoje meu respeito. A ninguém autorizei manifestar nem manifestei resolução que ali me atribuem.

Ao contrário, inclinado sempre aceitar, tenho hesitado somente ante algumas dificuldades que me são pessoais, mas talvez não invencíveis, e apenas neste sentido conversado amigos. Afetuosos cumprimentos".

Posteriormente, como houvesse o dr. J. J. Seabra, ex-ministro de Rodrigues Alves, feito uma declaração informando que Rui se empenhara junto ao Presidente, em 1903, no sentido do afastamento de Rio. Branco do Ministério das Relações Exteriores, Rui, em 23 de março, escreveu a este em termos que revelavam o seu receio de servir sob a direção dum ministro com o qual não mantivesse recíproca e absoluta confiança. Rio Branco, porém, com muita habilidade, em carta de 24 de março, desfez as nuvens, colocando a questão num ponto muito alto e patriótico. Isso permitiu a Rui, cm 31 do março, escrever-lhe, aceitando a representação do Brasil em Maia, nos seguintes termos: Exílio. Sr. Barão do Rio Branco. Os termos de sua valiosa caria de 24 rebatendo, assim nos fundamentos como na conclusão, a minha de véspera, c o espaço de ms. de mês decorrido sobre o assunto na espectativa de solução final me não permitem continuar a dilatar a resposta do convite, que em 26 de fevereiro, me deu V. Exa. a honra de vir fazer pessoalmente, da parte do Presidente da República, para a representação do Brasil na conferência de Haia.

Hesitei longamente, e não acabava de relutar para temer que me falte de todo a competência para essa missão, de natureza tão especial e tão extraordinariamente elevada; para acreditar que em outros brasileiros assentaria com muito mais merecimento a escolha; para entender, enfim, que a incumbência melhor estaria, confiada só aos talentos e dotes singulares do sr. J. Nabuco.

Tendo, porém, V. Exa., na sua visita, invocado o meu patriotismo em termos instantes, lembrado haver-me eu já escusado ao convite para a Conferência Pan-Americana, e exprimindo a esperança de que, "desta vez", não tornasse a recusar os meus serviços, vi-me tolhido no arbítrio de fazer logo o que o sentimento da minha insuficiência e o receio da minha fraqueza me ditariam.

Inclinado a anuir, pelo desejo de ser útil ao país, mas impressionado com a solenidade do caso e retido por dificuldades da reflexão, ou das circunstâncias, a confiança de aceitar, ou a energia de resistir.

Mas, para meu mal, recorrendo a todos aqueles cuja opinião me era dado ouvir, entre quantos me podiam acudir com socorro e conselho não

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encontrei uma só voz, que me aprovasse a recusa. Busquei sondar nos limites do meu alcance, o juízo dos nossos conterrâneos sobre o que me cumpria, e vim a saber que até desafeiçoados me tinham por obrigado a aquiescer. Comunicadas, por um amigo comum, ao sr. Presidente da República as minhas vacilações, tive ciência de que êle as repelia como inadmissíveis.

Não encontrando, assim, com que me defender, receoso de que a negativa me pudesse vir a ser lançada à conta de egoísmo e desamor da nossa terra, a que tanto quero e estremeço Ião vivamente, cedo a essa pressão, contra a qual não tenho onde me firme, bem que desconfiado sempre das minhas forças.

Digne-se V. Exa., pois, de transmitir ao Presidente da República o meu sentimento, dependente, está claro, para se tornar definitivo (depois da nomeação), de que o senado me conceda licença de accilA-la, nos termos da Constituição, art.° 23, § 2.°.

Investido então nessa dignidade, para a qual tão longe estou de me haver qualificado, espero me valerá Deus, para que os meus esforços remedeiem nalguma coisa a estreiteza dos meus meios, ajudando-me a servir o cargo, sob as instruções de V. Exa., ao menos sem deslustre da pátria e arrependimento do governo, a cuja estima devo esta honra. Cada vez mais, com sincero e particular afeto, de V. Exa. amigo admiror. e cro. mto. obro. Rui Barbosa".

Entre os seus auxiliares, e como membros da delegação brasileira, Rui desejou levar o Almirante Jaceguai, e o historiador Oliveira Lima, conforme se vê da carta que escreveu ao barão do Rio Branco, em 18 de maio de 1907, e da que recebeu de Oliveira Lima, datada de 23 de julho de 1907. Da primeira existe a cópia, e da segunda o original no Arq. C. R. B. Sobre as relações entre Rui e Rio Branco nessa ocasião deve ser consultada a conferência do dr. Hildebrando Accioly, "O Barão do Rio Branco e a 2 . a

Conferência de Haia" (vol. 187 da Rev. Inst. Histórico Brasileiro) na qual fixa a data de 27 de fevereiro para o convite de Rio Branco a Rui.

(25) Cf. Rui Barbosa, "Esfola da Calúnia", in "Correio da Manhã" de 26 de fevereiro de 1914. Sobre as circunstâncias e vacilações, que antecederam a aquiescência de Rui, proferiu Luiz Viana Filho, na Academia Brasileira de Letras, uma conferência sobre "A escolha de Rui para Haia", que está publicada no n.° 139 do Digesto Económico. (Jan-Fev. 1958).

Para maiores esclarecimentos sobre a participação de Rui na Conferência de Haia deve ser consultado o minucioso trabalho das sras. Virgínia Cortes de Lacerda e Regina Monteiro Leal, Rui Barbosa em Haia. (Rio 1957). Ver também Pereira Rebel, Rui em Haia, in Conferências, IV, Lau-delino Freire, Rui. (Rio 1958) e a conferência do ministro Pena Marinho, A atuação de Rui Barbosa em Haia, Rio 1957.

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XXII — HAIA

Vi todas as nações do mundo reunidas, e aprendi a não me envergonhar da minha.

Rui.

IDEIA segunda vez atendendo à sugestão do Czar da Rússia, *• reuniram-se em Haia os países do mundo civilizado. Na realidade pomposo cortejo de ministros, juristas e diplomatas, onde, salvo pequenas modificações, se votarão as matérias acertadas pelas chancelarias das Grandes Potências. Nenhum dos embaixadores, que desfrutam a amável hospitalidade da jovem rainha Guilhermina, pensa de outro modo. Uns falariam mais do que outros, mas, ao cair do pano, todos se curvarão à vontade das oito pujantes organizações militares ali representadas. Fácil, portanto, de compreender que não seria agradável a posição do embaixador do Brasil, fraco e quase ignorado país sul-americano.

Ainda mais: tinha-se como certo que a delegação brasileira não constituiria "mais que um reflexo da grande República norte -americana". O depoimento é de Rui, e esta circunstância deve ter sido decisiva na atitude que assumiu. Que reação não provocaria no grande tímido imaginar que os seus colegas o viam apenas como caudatário dos Estados Unidos?

Aliás, ainda inexperiente, ele não possuía qualquer prática de congressos internacionais. Felizmente, o primeiro a reconhecer esse "handicap" contrário ao representante do Brasil, foi Rio Branco. Não tendo podido enviar Nabuco, tão afeito aos torneios diplomáticos, pediu-lhe que fosse à Europa dizer aos seus amigos da "carrière" quem era Rui. (1) Prepararia a plateia para receber o grande artista. Ao contrário do que se poderia supor, Nabuco não guardava qualquer mágoa por lhe ter Rui arrebatado involuntariamente a honraria. E, muito cioso da correção das suas atitudes, dedicou-se com abnegação à tarefa. Com o conde Pro-zor, delegado da Rússia e D'Estournelles de Constant, um dos representantes da França, êle conversou sobre o embaixador do

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seu país. (2) A outros escreveu, pondo-os a par do valor do amigo com quem não quisera dividir os encargos da embaixada.

Em Paris, através de curiosas "notas confidenciais", Nabuco transmitiu a Rui pequenos retratos dos colegas, e que serviriam para orientá-lo naquele mundo desconhecido.

Sobre um dos delegados de Portugal: "O barão de Selir (sobre quem se fêz à tort o epigrama íl ne sait lire ni écrire) é muito relacionado entre a velha aristocracia holandesa, esteve no Rio, é irmão do meu amigo o Visconde d'Alte, meu colega em Washington, coleciona porcelanas brancas e é um grande sports-man, no sentido de apostador em corridas. Talvez fosse o melhor auxiliar seu no que respeita à própria Holanda e ao corpo Diplomático da Haia". Exatidão e humor reuniam-se no perfil. E referindo-se ao representante de Cuba:

"O Quesada é o melhor informante que V. possa ter do que se passar na esfera hispano-americana. Ainda que êle seja muito amigo do Saenz Pena, de quem foi secretário, V. pode fiar-se nele, certo de que se o chamar a si êle será um bom aliado do Brasil entre a Hispano-América... Êle é muito entusiasta, mas vê claro e com muita penetração. Madame Quesada é muito simpática e merece que sua Senhora faça amizade com e l a . . . O Quesada explicará o valor de cada Delegado hispano-americano". Colega de ofício dos diplomatas agora reunidos em Haia, Nabuco sabia de cada qual as particularidades, que lhes marcavam o temperamento: "O Esteva, primeiro delegado do México, é muito polido, mas frio e muito sensível e exigente em questões de forma. Êle foi meu colega em Roma e é meu amigo. O de La Barra é muito atencioso e agradável. Ele tem grande admiração por você".

Mesmo os achaques não lhe são desconhecidos. De Fusinato, ilustre jurista, e um dos delegados da Itália, Nabuco informa a Rui: "O Fusinato é muito meu amigo. . . Êle esteve ultimamente bem doente de uma dispepsia nervosa. V. cultive a amizade dele, que será o seu melhor guia entre a diplomacia europeia. Êle é muito amável e quererá agradar-lhe por esse instinto político que faz da Italiana a raça mais civilizada do mundo".

Ainda há outras coisas que Nabuco julga útil dizer a Rui. Mas, poderá fazê-lo sem ferir-lhe a exagerada suscetíbilidade? Como, por exemplo, advertir-lhe que pronuncie um nome assim e não assim? Nabuco o faz, porém, com habilidade. "Já apresentei o Rodrigo Otávio ao d'Estournelles (êle pronuncia como

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306 A VIDA DE RUI BARBOSA

eu dêsturnelles, não dé) e êle prometeu-me fazer tudo pelo Brasil". Certamente, isto foi exagero.

Aliás, não foi o único, que o seu zelo o levou a cometer. Também sobre o comportamento de um embaixador considerou de bom alvitre confiar a Rui uma pequena "nota", espécie de bilhete sem endereço certo:

"A posição de embaixador é um pouco atada por etiquetas e ceromonial, em geral eles esperam que se vá a eles, mas eu nunca vi exemplo mais notável de que os homens de Estado se devem emancipar das exigências e imposições das etiquetas e tradições aceitas sempre que queiram fazer boa diplomacia do que a missão do Conde Witte aos Estados Unidos por ocasião do tratado de Portsmouth. Êle começou por dirigir um apelo à imprensa americana, que pôs toda esta, se não ao lado da Rússia, em uma expectativa simpática que contrastava com a guerra que lhe fizeram durante o tempo do Conde Cassini, o sobrevivente da antiga diplomacia de fórmulas e maneiras. De repente êle conquistou para o seu país a boa vontade geral. V. não é um diplomata de carreira, está numa missão em que o estadista, o político, não tem que considerar protocolos nem formulários, e por isso pode libertar-se de qiiantas regras tolas e anacrónicas ainda prendem o nosso ofício, mim tempo em que a opinião é a força das forças em política". (3)

Sem dúvida, preferindo pecar por excesso a sujeitar-se a uma censura por alguma falha, Nabuco levava muito longe os seus encargos. Contudo, era sincero e de coração desejava o bom êxito do amigo, seu antigo companheiro do "Ateneu Paulistano". Assim terminavam as "Notas Confidenciais". "Deixo estas notas de um velho colega da Academia que deseja a maior felicidade para você na sua missão. J. N."

A 15 de junho de 1907, no Palácio Binenhof, instalou-se a Segunda Conferência da Paz. O local é sugestivo. A "Sala dos Cavaleiros", com as suas abóbadas ogivais, os imensos tapetes flamantes, descendo pelas paredes, a lareira monumental, e os magníficos vitrais góticos, evoca séculos da história da Holanda. À sua tradição juntam-se os nomes do Duque d'Alba e de Guilherme de Orange. E aí, aos oitenta anos, foi decapitado João Barnave. Agora, presididos por Nelidow, embaixador da Rússia, velho empertigado e de olhar voluntarioso, ali estão alguns dos vultos destacados da humanidade.

Na véspera, Rui chegara de Paris, onde ficara Maria Augusta, e Rio Branco não se esquecera sequer de providenciar sô-

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bre a hospedagem do embaixador. No Palace Hotel, em She-veningen, radiosa praia de banhos separada de Haia por opulenta floresta de faias sanguíneas e carvalhos tortuosos, estavam os seus aposentos. Satisfeito, Rui escrevera ao cunhado: "Shevenin-gen, praia célebre de banhos, onde me acho, dista da capital meia hora de carro ou 15 a 20 minutos de tramway elétrico. Os aposentos, que me mandou preparar o barão, são quase principescos. Basta dizer-te que a Alemanha ocupa, no mesmo hotel, do outro lado, um apartamento igual, e que a l'1 rança o tem inferior no terceiro andar, ao passo que eu me acho no primeiro". (4) E, no dia seguinte, a Maria Augusta: "Hão de ficar encantadas dos nossos alojamentos. Hoje não temos chuva, e gozamos de algum sol; mar bravio, tempo frio e vento sempre. . . Sinto-me cada vez mais pequenino e incapaz, diante da ocasião e da tarefa. Deus se compadeça de m i m . . . " Contudo, no trajeto de viagem, da janela do trem, êle contemplou e admirou o panorama, escrevendo à mulher: "Has de te divertir muito na tua viagem para aqui. Se vieres observando a paisagem, as povoações, as cidades, muito te deleitarás. Tudo é lindo e novo para nós". (5)

Na verdade, tudo é novo para êle entre aqueles sutis embaixadores, onde não passa dum estreante. Naquele ambiente, onde quase todos são velhos camaradas de encontros anteriores, Rui é bem pouco conhecido. E, pior do que tudo, a timidez e a falta de comunicabilidade não lhe permitem fazer amizades com rapidez, e isso aumenta as dificuldades da missão.

No dia seguinte ao da inauguração da Conferência, os socialistas também realizaram em Haia o seu congresso. Enfurecera-os a dissolução da Duma e a reunião representa um protesto contra a "Segunda Conferência da Paz", que chamam desdenhosamente "a comédia da paz". Mas, que importa ao Czar saber o que pensam aqueles "perniciosos agitadores"?

* * *

À medida que conhecia os seus colegas, Rui parecia sentir-se aterrado. Logo ao se iniciarem os trabalhos, escreveu ao padre Yabar: "Sempre que puder, implore para mim o auxílio de Deus, que tanto necessito nos trabalhos da minha vida e, principalmente, agora, entre as dificuldades desta missão, que me parece fui mui temerário, incompetente como sou, em aceitar". (6) Embora a carta não exprima o juízo que fazia de si próprio, bem podia considerar-se inseguro naquele cenário grandioso. A Alemanha

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308 A VIDA DE RUI BARBOSA

está representada pelo gigantesco barão Marshall von Bieberstein, o "elefas germanicus", como o chamou um jornalista. A Inglaterra mandou o minúsculo Right Honorable Sir Edward Fry. A Rússia, além de Nelidow, enviou o autoritário Frederico de Mar-tens, com a sua gota e a sua muleta. Em nome dos Estados Unidos falam Mr. Choate e Mr. Brown Scott, calvo precoce, e que Nabuco dizia ter "a ambição ainda por satisfazer". Leon Bour-geois, expansivo e alegre, loquaz como bom latino, e D'Estour~ nelles de Constant são os principais representantes da França. Quase todos estão saturados de congressos internacionais e um suave ceticismo substituiu as ilusões porventura existentes na mocidade. Entre eles, Rui terá a ingénua originalidade de acreditar e ainda nisso a situação não lhe será favorável.

Os princípios foram penosos. Embora houvesse cabido a Rui a Presidência de Honra da l . a Comissão das quatro em que se dividira a assembleia, isto não passava duma distinção conferida a quem trouxera credenciais de embaixador, coisa que havia sido conservada no maior segredo por êle e Rio Branco. (7) E depois? Como se conduziria naquele "torneio de habilidades e sutilezas", aquele homem esquivo? Os próprios companheiros de Rui temiam o resultado.

Para êle, no entanto, o melhor caminho é sempre trabalhar. Às cinco horas da manhã começa a faina, que se prolonga até depois da meia-noite. Comparece pontualmente as sessões da l . a

e 4.a Comissão; examina e estuda as matérias das outras duas, dando instruções completas aos delegados; redige longos telegramas cifrados para Rio Branco; mantém entrevistas; assiste a banquetes; e à noite volta a preparar os debates para o dia seguinte. É extenuante. Às vezes, premido entre o trabalho e o horário das reuniões, é Maria Augusta que lhe calça os sapatos, enquanto escreve as últimas notas dum discurso.

Absorvente, êle tomava para si todas as tarefas. Desconhecia completamente a divisão dos encargos. "O outro delegado plenipotenciário do Brasil (Eduardo Lisboa) junto de quem eu servi, conta Rodrigo Otávio, não proferiu uma palavra em todo o tempo dos trabalhos". (8) Rui mostrava-se infatigável.

É verdade que acontece haver momentos agradáveis. A visita dos delegados à jovem e gorducha Rainha Guilhermina, por exemplo, foi um espetáculo deslumbrante. Um a um, apresentados por Nelidow, eles lhe beijaram a mão. Todos ostentam os seus fardões vistosos, ou trazem pregadas às casacas rutilantes condecorações. Há apenas uma exceção; a representação do Brasil.

O CAMINHO DO PODER 309

Naquele cenário pomposo destaca-se a simplicidade das suas casacas pretas, e isso provoca comentários. "Voilà! Cest beau!" (9) À noite, nesse mesmo dia, o Grão Mestre de Cerimonias, barão Pallant Neerynew, fêz as apresentações à Rainha-mãe.

Mas, essas ocasiões são raras e não mitigam o trabalho insano, que nunca falta na Conferência. São inúmeros os assuntos. Captura e contrabando de guerra, bloqueio, inviolabilidade da propriedade privada no mar, deveres dos neutros em terra, eis algumas das matérias em debate. O número de sensação, no entanto, é a arbitragem obrigatória e a criação do Tribunal Permanente de Arbitragem. Aí é que as Grandes Potências faião o seu jogo.

Como um intermezzo, Drago, argentino, apresentou a tese contrária ao uso da força para os Estados cobrarem as suas dívidas. Ideia simpática, e que Rui e Rio Branco teriam vontade de apoiar. É uma réplica às medidas militares tomadas pela Inglaterra, a Alemanha e a Itália contra a Venezuela. Mas os Estados Unidos são contrários, e Afonso Pena, de nenhum modo, deseja desgostar os seus amigos de Washington.

Rio Branco a Rui: "Pensa o Presidente que seria impolítico contrariássemos o governo americano na questão da cobrança de dívidas, e nos separássemos de quase toda a Hispano-América, convindo que êle saiba confidencialmente que só para lhe ser agradável o Brasil o acompanhará até onde fôr possível nesse terreno". _(10) Rui pronunciou, então, um hábil discurso, justificando o voto contrário à proposição argentina: o Brasil não desejava assustar os seus credores. Isso irritou alguns jornais argentinos, mas "La Nacion" disse ter sido um notável discurso. (11)

Durante quase um mês o esforço de Rui moslrou-se contraproducente. Era enfadonho aquele embaixador que tudo sabia 0 falava longamente. Que tinha êle de intervir em todos os debates, opinando e contrariando a vontade das Grandes Potências?

"— Que diabo tem o Brasil, Estado sem importância que não se sabe bem onde fica, com estas coisas de guerra e armamento? 1 )epois de haverem dito o que pensam as Grandes Potências, cujo pensamento e cuja vontade dominam o mundo, e, em última análise, eram os Estados que tinham interesse real e efetivo no que se pretendia, que diabo tinha esse brasileirinho de vir dizer tam-liérn o que êle pensa e quer?" (12)

Quando se tratou de organizar o Tribunal de Presas, tendo sido injustamente preterida a América Latina, Rui esbravejou e uao foi menor a fúria de Rio Branco. Cuba ficava abaixo da

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Sérvia e da Suíça, que não possuíam marinha, e o Brasil viu-se colocado em plano inferior a Portugal, România e Bélgica. Parecia incrível, mas os Estados Unidos haviam concordado, e isso ainda aumentou a irritação de Rio Branco. (13) Contudo, era necessário esperar.

Por esse tempo Rui começou a entreter relações com William Stead, jornalista inglês, correspondente de jornais de Londres e diretor do "Courrier de la Conference", revista destinada a apreciar os acontecimentos do conclave. Amizade valiosa, pois ninguém mais do que Rui precisava na ocasião de comentários favoráveis na imprensa das grandes capitais. O serviço valia bem algumas libras: o Brasil não as regateou. (14) Poderá a Fama encontrar melhor escudeiro do que a Imprensa? Rio Branco era da mesma opinião: "Tive grande prazer com a notícia do caminho da sua boa amizade com Stead". (15)

Nada, no entanto, fazia prever que melhorasse a situação de Rui. Os seus extensos discursos aborreciam cada vez mais, e todos estavam acordes quanto à impossibilidade de suportar-se aquele "dr. Barbosa". Quando começava a falar parecia ter soado a hora do recreio num colégio: a conversa generalizava-se e ninguém mais lhe ouvia a voz. (16) Um dia (12 de julho), acabara de ler um discurso sobre presas marítimas quando Martens, que presidia a sessão o o ouvira de mau humor, declarou em tom de censura: "O memorial do nobre embaixador do Brasil constará dos processos verbais das nossas sessões; devo, porém, observar-lhe que a política não é da alçada da Conferência". (17) A assembleia aplaudiu: afinal, era preciso fazer calar aquele erudito loquaz.

Chegara para Rui o instante decisivo. Instintivamente, êle se pôs de pé. Pálido, com visível emoção, pediu a palavra: as águas há muito represadas iam romper o dique. "As forças, a coragem, diria depois, a resolução me vieram não sei de onde, vi-me de pé, com a palavra nos lábios". (18) Com veemência atirou-se contra Martens. Aos poucos a voz se foi elevando. Tornou-se clara e vibrante. As conversas pararam e a assistência principiou a ouvi-lo. (19) Rodrigo Otávio, um dos secretários da delegação brasileira, assim descreve a cena: "Martens, ao lado de Rui, mantinha a cara amarrada e mostrava, de princípio, manifesto nervosismo. E Rui, pequeno, humilde, com voz sumida, que depois se elevou e se tornou clara, começou a proferir esse discurso que foi, por certo, a peça oratória mais notável que a Conferência ouviu e lhe proporcionou o seu momento

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de maior brilho intelectual". (20) Era extraordinário que, falando de improviso em francês, se exprimisse com tanta facilidade.

Que dizia? Mostrava como, na verdade, tudo quanto ali se fazia nada mais era do que política.

"A política no significado mais vulgar da palavra, essa, ninguém o contesta, nos é defesa em absoluto. Não temos nada que entender, nos problemas intestinos dos Estados, os seus problemas internacionais, com as diferenças que indispõem entre si as nações, com os litígios de amor próprio, de ambição ou de honra, com as pretensões, de influência, equilíbrio ou predomínio, com as questões, em suma, que levem ao conflito e a guerra. Eis a política proibida.

"Mas na outra, na grande acepção do termo, a mais elevada, e nem por isso a menos prática, nessa acepção que olha aos supremos interesses das nações uma a respeito das outras, consideradas nessa acepção a política, acaso nA-la poderiam tolher? Não, senhores". (21)

Desarmado e surpreso ante a argumentação incisiva, o auditório escutou-o até o fim em meio dum silêncio significativo. Não-houve palmas, no entanto, e Martens encerrou a sessão sem aludir ao incidente. Mas, fora profunda a impressão causada pela réplica enérgica e inesperada. No bem provido bufete, que a Rainha proporcionava aos seus hóspedes ilustres, Martens apro-ximou-se de Rui. Conversaram alguns minutos. Simples mal-en-tendido, do qual não deviam ficar vestígios, dissera o embaixador russo. Por fim abraçaram-se, e esse gesto cordato do autoritário Martens valeu por uma sagração. (22) Pacientemente, muitas vezes vencendo até o ridículo, Rui galgara o Olimpo, para sentar-se agora entre os deuses poderosos da Conferência. Brown Scott dissera a Drago: — "Eis o Novo Mundo que se faz ouvir pelo Velho". (23)

No dia seguinte, satisfeito oom aquele triunfo, que tivera alguma coisa de espetacular, Rui telegrafou para a família: "Deus. tem-me protegido sempre aqui". (24)

o o o

Em 30 de julho, na velha estrada entre Haia e Sheveningen, lançou-se a primeira pedra do Palácio da Paz, doação do milionário Carnegie, Nelidow pronunciou o discurso e uma grande orquestra tocou a Aleluia de Haendel. Mas a Rui o que mais en-

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cantou foram os cantos corais, fazendo ressoar entre as faias uma (spcrança de paz. (25)

Também chegara a época dos banquetes. Depois de se observarem reciprocamente, como se cada qual procurasse avaliar a força dos antagonistas, os delegados trocavam amabilidades. Era o aspecto mundano da conferência. Em torno de lautas mesas floridas faziam-se elogios gentis. Com agrado, Rui ouve o belga Beernardt, que tanto se aparece com Thiers, dizer-lhe polidamente: "Si j'etais bresilien je serais enchanté de votre posi-tion". Contudo é fatigante essa intensa vida social e Rui queixa-se a Rio Branco: "É terrível o peso agora dos banquetes quase quotidianos". (26) Mas, "noblesse oblige". Êle também deve retribuir e para tal conta com uma auxiliar de primeira ordem: Maria Augusta. A embaixatriz também tem o seu papel e ela o executa maravilhosamente.

O primeiro banquete que Rui ofereceu foi à delegação dos Estados Unidos. Um milionário poderá cometer algumas falhas, pois ninguém reparará; mas, um pobre será logo criticado. Rui sabe disso e põe o maior cuidado em todas as minúcias da festa. De Londres mandou vir flores custosas. Outras chegaram de Paris. E os convidados não se cansaram de admirar o aspecto deslumbrante dos imensos salões do Palace Hotel. Esteve delicioso o faisão "à Fontaineblcau" sorvido com trufas e perdizes. (27) Foi notado e elogiado. Contudo, também ninguém ficou mais contente do que Rui que telegrafou a Rio Branco: "Foi indescritível o efeito ontem do nosso jantar . . . Estimei termos mostrado não estarmos aquém dos europeus em matéria de gosto". (28) Os jornais também louvaram: "A decoração era de gosto singular e magnífico. Os convidados viam-se transportados a uma espécie de deslumbramento semitropical, lembrando os esplendores do paraíso brasileiro" (Courrier de la Conference). (29) Eram dispendiosos esses obséquios pomposos: o jantar custou quase seis mil florins. Mas Rio Branco não compreende uma boa diplomacia sem fartas verbas.

Às vezes os horizontes turvavam-se com pequenos dramas ou simples comédias. Certa vez, Mr. Renault, um dos delegados da França, surpreendera-se por ter Rui chamado Mr. Choate de "respectable" e não de "honorable". Nabuco comentou o fato. "É incrível, mas é assim!" De modo que se melindra um velho chamando-o de respeitável, de venerando! "Êle devia lembrar-se, disse-me Mr. Root (Elihu Root) a quem contei a anedota, que na Roma antiga (suponho queria dizer na Idade Média) o primeiro

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grau era honorabilis, o segundo, acima, respectabilis, o terceiro illustrissimus". (30) Mais serio, entretanto, fora o protesto que as pequenas nações pediram a Rui que fizesse contra o fato de Brown Scott haver omitido num relatório algumas palavras dum texto aprovado em votação. Rui resolvera, porém, o caso sem escândalo e Brown Scott, que o procurara "vivamente inquieto", agradecera-lhe com os olhos rasos dágua dizendo-lhe: — "La bonne foi est toujours la bonne foi!" (31)

Já agora o tempo conseguira dissipar as prevenções iniciais contra Rui, que, pacientemente, como era do seu feitio, captara algumas simpatias. Leon Bourgeois tornou-se seu amigo e D'Es-toumelles de Constant trata-o com afeição. (32) Muitas vezes, enquanto Maria Augusta, no automóvel, espera o marido, que ela sabe precisar do seu carinho depois daqueles debates agitados, DTSstournelles vem fazer-lhe companhia. Martens mostra-se atencioso. O incidente passou e êle escreve a Rui: "Je compte sur votre bienveillant e puissant appui à 1'avenir". (33) Nabuco, que não gosta de Martens, por atribuir-lhe o malogro sofrido na questão de limites com a Guiana Inglesa em que representou o Brasil, escreveu a Rui: "Hoje recebo uma carta do Prozor em que me diz que você acabou por se impor à Conferência e que não se medem mais os seus discursos pelo comprimento, mas pelo peso — et on voit ce qu'ils pèsent". (34) Começaram a fazer justiça àquele embaixador meticuloso e inquieto.

Agora, êle já tem as suas relações. Com simplicidade a baronesa de Guillaume, esposa do representante belga, se dirige a Rui, tratando-o de "Mon cher Ambassadeur". E, para lhe pedir selos do Brasil, ela o faz de maneira invencível: Me permettez vous de vous adresser une requête? Je sais par experience que vous êtes le plus aimable des hommes et que vous ne refusez, rien à une dame". (35) Essas coisas devem fazê-la compreender quanto é sutil a diplomacia.

É nesse ambiente, que tem início o grande ato da Conferência — a organização do Tribunal Permanente de Arbitragem. Martens já conversou com Marshall e estão de acordo. Choate mostra-se satisfeito com o lugar reservado aos Estados Unidos c a assembleia irá ratificar um princípio sobre o qual nenhum ilêles tem qualquer dúvida: as grandes potências governam o mundo. Seria absurdo pensar de outro modo.

Rui sustentará, porém, uma tese oposta: todas as nações são iguais. Rio Branco já sondou outras chancelarias americanas e sabe que não ficará só. Aliás, êle fêz o possível para evitar a di-

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vergência com os Estados Unidos. Mas, infelizmente, Roosevelt estava longe da Capital e Elihu Root veraneava em Clinton. (36) Com desgosto êle telegrafou a Rui: "Agora que não podemos ocultar a nossa divergência com a delegação americana cumpre-nos tomar aí francamente a defesa do nosso direito e o das demais nações americanas. Estamos certos de que o há de fazer com firmeza e moderação e brilho atraindo para o nosso país as simpatias dos povos fracos e o respeito dos fortes". (37)

Assim, ao entrar em discussão o Tribunal de Arbitragem, Rui desfraldou a bandeira da igualdade dos Estados. Verdadeira revolução. Como poderá tolerar qualquer das grandes Potências ali presentes a sua equiparação ao Haiti? O telégrafo transmitiu a notícia para os quatro cantos do mundo e em Londres e Nova York alguns jornais comentaram-na com indignação.

"A América do Sul, diz o "Times", pode orgulhar-se de ter juristas distintos como o dr. Barbosa, orador de palavra fácil e eloquente. Pedir, porém, uma representação, no Tribunal Permanente de Arbitragem, igual à das grandes potências, é exagerar. O zelo que o protesto do sr. Rui Barbosa despertou em certos Delegados sul-americanos, é infundado, pois, provém de países cujos tribunais muitas vezes se mostraram incapazes de garantir justiça aos estrangeiros". O "New York Herald" também criticou acerbamente a proposta c, alguns dias depois, o seu representante, Aubrey Stanhope, escreveu a Rui:

"À vista dos ataques que estão sendo feitos contra vós como perturbador da Conferência e causando o seu malogro, penso que talvez desejeis dizer alguma coisa para ser publicada". (38) Rui respondeu secamente: cumpria o seu dever e nada tinha a dizer. No Brasil, a opinião acompanhava com vivo interesse o desenrolar da luta. Rio Branco, incansável e minucioso, redige longas notícias para os jornais, e êle próprio costuma ir ao "Jornal do Comércio" examinar o serviço telegráfico a fim de evitar em tempo alguma inconveniência. (39) É a primeira vez que o país participa duma reunião internacional daquele porte e em todas as classes há o pressentimento de se estar passando alguma coisa de importante. Azeredo a Rui: "No que mais se fala atualmente no Rio de Janeiro, é na Conferência de Haia, e no chefe da delegação brasileira, havendo um aplauso uníssono pelo brilhantismo com que êle nos representa aí, dando nome ao nosso país tão mal visto no estrangeiro". (40)

O dissídio foi profundo. Tendo como base a igualdade dos Estados, Rui apresentou uma proposta para a organização do

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Tribunal, onde todos os países terão assento, ficando, porém, ao alvedrio das partes litigantes submeterem as suas questões ao plenário do Tribunal ou apenas à apreciação de juízes por elas escolhidos. Poderiam as grandes nações tolerar uma coisa assim? Era irritante essa intromissão do Brasil.

Contudo, Martens, já escarmentado, mostrou-se flexível. Confidencialmente, êle escreveu a Rui: "Diz-se que a noite é boa conselheira. Talvez esta noite me tenha trazido um bom conselho. Decidi-me a mudar ou melhorar o meu projelo.. . Não sei o que dirá Mr. Choate. . ." Martens também ouvira Marshall. E, embora este lhe parecesse favorável, acrescentava cauteloso: "mas as aparências enganam frequentemente." (41)

Afinal, para apaziguar, Brown Scott formulou um projeto conciliatório. (42) Rui, no entanto, manteve-sc: intransigente. (43) E, aos que consideravam a igualdade ofensiva às grandes potências, por colocar os seus árbitros em paridade aos de qualquer país insignificante, êle respondeu:

"Se o argumento fosse verdadeiro poderia transformar-se numa arma de dois gumes contra os nossos antagonistas, tornando impossível a criação em que os autores do projeto americano sonham a perfeição da arbitragem internacional. Pois, se os grandes Estados não se fiam na imparcialidade dos pequenos, por sua vez estes poderiam invocar razões para não confiarem na imparcialidade dos grandes".

Além disso, o embaixador do Brasil suscitava grave questão prejudicial: pela natureza do assunto, a Comissão que o estudava era incompetente. Fora uma bomba. Os argumentos eram irre-torquíveis e D'Estournelles avisou-o de que Marshall, embora furioso, estava disposto a ceder. (44)

E acrescentara: "Cest une révolution faite par vous. On vous fait des concessions comme à Bourgeois." (45)

Para contornar o impasse, Nelidow nomeou então uma comissão de sete membros para examinar a matéria. São os sete sábios da Conferência, como ficaram conhecidos: Marshall, Nelidow, Choate, Bourgeois, Kapos-Mére, Tornielli e Rui. Agora seria fácil obter para o Brasil uma posição igual à das grandes potências. Seria, porém, mesquinho, e Rio Branco, embora con-liando a Rui a orientação a ser tomada, é de opinião que nada deve ser aceito fora da igualdade dos Estados.

Não custou, aliás, que os "sete sábios", aos quais, por propos-l.i de Rui, viera reunir-se Sir Fry, chegassem às seguintes con-i liisões: primeiro: eliminação do projeto de Brown Scott; segun-

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do: ser inviolável a igualdade dos Estados; terceiro: ser condenável o sistema de rotação dos juízes. Marshall estava, porém, indignado e resolvera deixar Haia, em férias. Bourgeois também o imitou e seguiu para Paris. Que resta a fazer, se falhou o grande número da Conferência, aquele em que as potências tinham o maior interesse? O mais zangado era Mr. Choate, que Rui considerava "sempre desastrado". A imprensa de Nova Yorlc censurava o governo americano pela má sorte da delegação e êle tomara o peão na unha. Comprazia-se em ferir Rui com algumas ironias. Quando, por exemplo, se discutiu a composição do Tribunal de Presas, êle, falando em inglês, perguntara a Rui quantos navios o Brasil já havia apresado. Interrogação insolente e mordaz, pois o Brasil jamais apresara qualquer embarcação. Rui, porém, também em inglês, replicou incontinenti: se a ironia tivesse valor, o argumento serviria para excluir inteiramente, do Tribunal de Presas, não só o Brasil mas também a América Latina, e grande parte da Europa. (46) Aliás, na votação o Brasil ficou completamente isolado. Trinta e sete nações manifestaram-se favoráveis ao Tribunal, e Rui foi a única voz divergente.

Depois de frustro o Tribunal de Arbitragem, nos moldes em que o desejava Marshall, as sessões tornaram-se monótonas. As Comissões haviam concluído vários projetos, mas, para as Grandes Potências, nada podia compensar a derrota sofrida devido àquela ideia de igualdade trazida por aquele incómodo convidado. Falhara o grande número e isso equivalia ao próprio malô-f;ro da Conferência, malogro que atribuíam a Rui. Agora os de-egados aguardavam apenas as sessões plenárias, a fim de se re

tirarem. Nada mais aconteceria de interessante. Para evitar um desfecho melancólico, Sir Edward Fry apre

sentou uma declaração sobre o Tribunal de Arbitragem. Era o melhor que se podia fazer. A Conferência encareceria a necessidade do Tribunal, "deixando de lado as disposições relativas à nomeação dos juízes e rotação a estabelecer entre eles". Os Estados Unidos estavam de acordo com esta fórmula e Rui telegrafou a Rio Branco, mostrando-se cordato: "Não tenho amor próprio em assuntos desta natureza, e desejo que o governo aja livremente, atendendo só à conveniência nacional." (47)

No dia seguinte Rui aceitou a proposta de Sir Fry. Depois da vitória, a harmonia. Com eloquência êle justificou a atitude assumida na Conferência, e prolongados aplausos (isto era raro) seguiram-se às suas últimas palavras. O triunfo fora completo. Êle mesmo, sem modéstia, deu notícia a Rio Branco: "Foi o meu

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trabalho mais importante e meu melhor dia nesta Conferência. Expliquei nossa posição durante ela e defendi a nossa atitude sobre a Corte Permanente e a Corte de Presas. Respondi às acusações de que pretendemos sujeitar os grandes Estados ao julgamento dos pequenos, e defendi estes da imputação de terem causado o naufrágio da Conferência... Historiei e acentuei a sua importância no papel internacional e a evidência das consequências fatais se insistir-se no erro de convencer aos Estados de ser a força militar o único critério de distinção entre as nações". E em seguida: "Dizem que nenhum discurso foi aqui ainda ouvido com tanta atenção. As manifestações recebidas foram gerais e extraordinárias". (48)

Era exato. A oração empolgara. Além da beleza da forma, tivera uma estranha singularidade: fora sincero. O Courrier de la Conference: "Em seguida veio o discurso do dr. Barbosa, no qual o primeiro delegado do Brasil sobrepujou a si próprio. Êle falou entre um silêncio geral e diante dum auditório que lhe era hostil. Mas falou, como um homem que exprimia a indignação de todo um continente, com uma cólera contínua e um entusiasmo patriótico. Foi um discurso como a Conferência ainda não havia ouvido, pois, conforme declarou ontem um dos delegados, o traço característico de todas as conferências é que os seus membros jamais ousam dizer de público o que pensam realmente. O dr. Barbosa disse livremente o que pensava, num discurso magnífico, e quando êle retomou o seu lugar, o Ridderzaal vibrou de aplausos, que não têm precedentes, pela duração e intensidade". (49) Stead também telegrafou a Rui: "Bravo! Bravo! Bravo! a thou-sand congratulations finis coronat opus". (50)

Em Londres, a "Tribune" também lhe reconheceu a vitória: "No princípio o barão Marshall von Bieberstein era o homem da conferência. Mas, a sua estrela declinou enquanto a de Mr. Barbosa atingia o meridiano. O seu discurso de ontem provocou a maior e mais expressiva ovação no Ridderzaal". (51) O próprio Nelidow não esconde a sua admiração: "A América do Sul foi para mim uma revelação." (South America has been a revelation to me, dissera êle). (52)

Certamente, Rui deve estar contente. Alegria passageira, aliás, pois o seu temperamento nunca lhe permite uma satisfação duradoura. Vinte e quatro horas depois de ter enviado a Rio Branco aquelas palavras transbordantes de júbilo, êle telegrafa à família: "Doente, desanimado, desgostoso, penso seriamente, agora, retirar-me de tudo". (53) Infelizmente, Rui anda sempre

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nos extremos. E como não recebesse do ministro do Exterior as felicitações, que esperava pelo bom êxito, logo perguntara a Azeredo: "Estará doente o homem que contra os seus hábitos de delicadeza e largueza de telegramas não teve uma palavra de aprovação, depois de conhecido há quatro dias o texto do meu último discurso, incomparavelmente mais aplaudido e de mais efeito aqui para a situação do país?" (54) Azeredo tranqúilizou-o. A confiança do governo brasileiro era completa, c todo o país se sentia orgulhoso da maneira feliz por que o representara o seu embaixador. Poderia dizer mais — o Brasil delirava.

No dia 18 de outubro, com o discurso de estilo, Nelidow encerrou a Conferência. Rui, porém, ainda permaneceu em Haia alguns dias. Ficou só. Desejosa de ver Bruxelas, Maria Augusta partiu antes dele, e o casal não passará junto o dia 23, quando ela festejava o seu aniversário. Mas, nesse dia, logo pela manhã, Rui mandou-lhe um afetuoso telegrama: "Mil abraços e beijos com todas as bênçãos do céu à minha mulherzinha adorada, meu primeiro pensamento desta manhã". (55)

o o o

O regresso. Nada podia envaidecer mais um povo ainda jovem do que saber que os planos de hegemonia das velhas e fortes nações haviam sido frustrados pela ação do seu embaixador.

No estrangeiro, levada pelos diplomatas, que voltavam de Haia, a notícia do triunfo também repercutiu. A Universidade de Yale convidou Rui para proferir uma série de conferências. Fau-chille, o célebre internacionalista, pediu-lhe um artigo sobre "O princípio da igualdade dos Estados e a Segunda Conferência da Paz". (56) De Washington, Nabuco mandou-lhe lisonjeiras impressões: "Ontem a irmã do Presidente disse à minha mulher que lhe haviam falado dos jantares do Embaixador do Brasil na Haia como tendo sido os mais bonitos de todos, e que ela havia dito que também o eram aqu i . . . Também a Buchanan f alou-me de Madame Rui Barbosa com admiração e encanto. Enfim foi um sucesso em toda linha". E adiante: "O ministro da Dinamarca dizia-me uma vez: Cétait três interessant d'entendre Mr. Rui Barbosa. O encarregado da Holanda disse ao Amaral que na conferência houve três homens: você, o barão von Marshall, e o Bourgeois. O Quesada explicou bem o seu papel ao Root e veio cheio de admiração e wonder. Assim todos". (57) Os comentários representavam a ante-sala da glória.

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Em dezembro, depois de receber em Paris as homenagens da colónia brasileira, que lhe ofereceu um bronze representando a Glória coroando o Génio, Rui partiu para o Brasil. Maria Augusta torcera um pé numa queda, e êle não pôde aceitar o convite do Rei D. Carlos de Portugal, para visitar Lisboa. (58) Nabuco também insistira para que fosse à Itália tomar "um grande banho de arte". "Não me consolarei se não fôr ao menos por um dia a Roma. Creia que seria um dia único em sua vida'. (59) Nada disso, no entanto, fora possível. Rui voltava para S. Clemente, para junto das suas roseiras.

Na realidade, tornava para os dissabores e as lutas da política, que se agitara consideravelmente durante a sua ausência. Fervia já a sucessão presidencial e Azeredo informara-lhe: "O Pinheiro ficou muito contente com a tua carta, dizendo-me que estamos ligados para todo o sempre". (60) Pinheiro também lhe escrevera: "Não há dia e instante que eu não sinta a falta de seus conselhos e o amparo de sua boa amizade, nos diversos incidentes desta vida política tão prenhe de agruras, na qual um coração amigo e leal, servido por uma inteligência superior, ilumina o nosso caminho e nos erige a vontade para superar as emboscadas e traições". E terminava: "Aceite um abraço fraterno, e muitas saudades do seu amigo grato". (61)

Mas, ao receber na Bahia um telegrama de Pinheiro, contestando a notícia transmitida justamente no dia em que Rui aportava â terra natal e informando ter sido oferecida a João Pinheiro, a candidatura à presidência da República é que tivera a primeira impressão exata do que ocorria. "Tal embuste, dizia Pinheiro, é fruto da perversidade de ignóbeis adversários... Em guarda, pois". (62)

No Rio, fizeram-se preparativos para uma retumbante recepção. O governo, o congresso, os Estados, a imprensa, todos, espontaneamente, se associavam às festas projetadas. Os jornais, em grandes títulos, chamavam Rui o Águia de Haia, e a designação era geralmente repetida com orgulho. Mesmo os adversários sentiam-se sem ânimo para oporem qualquer restrição.

Quando desembarcou no cais Pharoux imensa multidão, ali postada, apesar do sol, prorrompeu em aclamações. De bordo do "Araguaia", que inúmeras embarcações embandeiradas haviam escoltado desde a entrada da barra, trouxera-o a mesma galeota, que, um século antes, servira a D. João VI, o rei português fugido à aproximação dos soldados de Napoleão. Rio Bran-

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co abraçou-o. Nesse instante a ovação chegou ao auge. A custo a polícia conteve os manifestantes. Senhoras atiravam flores, e com dificuldade organizou-se o préstito, que rumou para o Palácio do Catete.

Em todo o percurso reproduziram-se os aplausos. Dos postes de iluminação, circundados por verdes grinaldas, em espiral, pendiam bandeiras e flâmulas. De espaço a espaço apareciam dísticos entusiásticos, e mais de quarenta bandas de música tocaram marchas e hinos patrióticos. No Palácio do Catete, Afonso Pena esperou^o na porta principal. Novas e incessantes aclamações. Por duas vezes tiveram de chegar à sacada, para agradecer. As aclamações pareciam ratificar o telegrama que dirigira ao Presidente ao encerrar-se a Conferência: "Esforcei-me por honrar nossa pátria, e creio que a deixei aumentada em consideração no estrangeiro". (63)

Rui chegara ao pináculo da glória.

NOTAS AO CAPÍTULO XXII

(1) Nabuco chegou a Paris em 9 de junho de 1907, segundo se vê da cnrta do Rodrigo Otávio a Rui Barbosa, em 10 de junho do mesmo ano, in Arq. C. R. B. Rui, em carta de 19 de junho de 1907, ao barão do Rio Branco, a primeira que lhe escreveu de Haia, também se refere às atividades de Nabuco nessa ocasião. Durante alguns anos estivera interrompida a amizade que desde a Academia ligava Rui a Nabuco. Reconci-liaram-se, porém, por ocasião da nomeação de Nabuco para advogar a causa brasileira no litígio da Guiana Inglesa, tendo Rui escrito, na "A Imprensa", em 13 de março de 1899, o artigo "A Missão Nabuco". No dia seguinte Nabuco, por carta, (in Arq. C. R. B.) agradeceu. E dizia: "É-me grato depois de tanto tempo de separação ter que lhe agradecer o seu artigo de ontem, repassado da velha camaradagem que nos ligou desde a adolescência, quando fazíamos parte do mesmo bando liberal da Academia".

(2) Cf. carta de Rui a Rio Branco, em 19 de junho de 1907, in Arq. C. R. B.

(3) Esta informação de Nabuco, e as demais anteriormente citadas no presente capítulo, fazem parte das "Notas Confidenciais" entregues por Nabuco a Rui, e que se encontram in Arq. C. R. B. Têm a data de 13 de junho de 1907.

(4) Cf. carta de Rui a Carlos Bandeira, em 16 de junho de 1907, in Arq. C. R. B.

(5) Cf. carta de Rui a D. Maria Augusta, em 17 de junho de 1907, cópia in Arq. C. R. B.

(6) Cf. carta de Rui ao Padre Yabar, em 17 de junho de 1907, in Arq. C. R. B.

(7) Cf. carta de Rui a Rio Branco, em 19 de junho de 1907.

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(8) Cf. Rodrigo Otávio, "Minhas Memórias dos Outros", (Nova série), p. 206.

(9) Idem, idem p . 225. (10) Cf. telegrama n.° 8 de 18 de junho, de Rio Branco a Rui. Era

a resposta ao que, no mesmo dia, passara Rui a Rio Branco, nos seguintes termos: "Tese Drago talvez das primeiras questões suscitadas. Necessito urgência saber definitivo pensamento governo' . Aliás, já em 11 de junho, Rui informara a Rio Branco: "Nabuco falou-me ontem fórmula Drago modificada. De Haia onde estarei dia 13 examinando terreno telegrafei V. Exa. sobre assunto".

Os telegramas citados no presente capítulo, seja por número, seja por data, encontram-se no Arq. C. R. B. Os de autoria de Rui estão nos "manifolds" (copiadores) utilizados durante a missão a Haia.

Os de Rio Branco existem em original. Muitos, como é natural, são cifrados, mas já se encontram traduzidos graças à iniciativa do dr. Luiz Camilo de Oliveira Neto quando diretor da "Casa de Rui Barbosa".

(11) Cf. telegrama n.° 45, de Rio Branco a Rui, e carta de Azeredo a Rui, em 30 de julho de 1907, in Arq. C. R. B.

(12) Cf. Rodrigo Otávio, obr. cit., p . 301. (13) Cf. telegrama n.° 80, de Rio Branco a Rui. (14) V. doe. n.° 43 da pasta "Despesas em Haia", in Arq. C. R. B. (15) Cf. telegrama n.° 39, de Rio Branco a Rui. (16) Cf. Rodrigo Otávio, obr. cit., p . 302. (17) "Atas e discursos de Rui Barbosa", p . 56, tradução de Artur

Bomilcar, Rio, 1917. (18) Cf. Rui Barbosa, discurso em 31 de outubro de 1907, em Paris,

agradecendo a manifestação da colónia brasileira. (19) Cf. Rodrigo Otávio, obr. cit. p . 306; e Batista Pereira, "Figuras

do Império", p . 255 (S. Paulo, 1931). (20) Rodrigo Otávio, obr. cit., p . 306. (21) Rui Barbosa, Atas e Discursos, p . 56; e Rodrigo Otávio, obr.

cit., p . 305. Ao "Times", de Londres, em 16 de julho de 1907, enviou Rui a seguinte retificação sobre a notícia do incidente com Martens: "1) that I have not said one word of censure to russian cmployment of auxiliary cruisiers in russo japanese war; 2) that I have not at ali been called order by Mr. Martens; 3) that I have not answered him in terms stated by your correspondent but only mantenicd my evident right to make brief general remarks of international law and general polities on the subject discussed without blaming at ali any governments or nations".

(22) Cf. Rodrigo Otávio, obr. cit., p . 309; e Batista Pereira, obr. cit., p . 256.

(23) Cf. Batista Pereira, obr. c i t , p . 254. (24) Telegrama de Rui, no dia 13 de julho de 1907. Ê destinado a

"Maria", endereço telegráfico da família Rui Barbosa, no Rio, naquela ocasião. Dias depois, Rui solicitou a Rio Branco responder-lhe nos seguintes termos: "Sentimos muito saúde Vossência e tenha levado a pedir dispensa continuar aí. Efeito partida seria deplorável todos atribuiriam alguma séria divergência com governo. Depois tantos brilhantes trabalhos ninguém compreenderia Vossência deixasse assinar ata final Acordos resoluções". (V. telegrama de 26 de julho). Rui acedeu, então, em permanecer, e no dia

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322 A VIDA DE RUI BARBOSA

seguinte (V. telegrama n.° 44, de 27 de julho), Rio Branco dizia: "É grande a nossa satisfação pela certeza Vossência continuará aí até assinatura Ata Final". Também Pinheiro Machado e Azeredo telegrafaram conjuntamente a Rui dizendo-lhe ser completa a confiança do Governo. Aliás, não foi essa a nuvem única a toldar as alegrias do embaixador. Em 16 de agosto, telegrafava êle a Rio Branco: "Censuras mencionadas telegrama Vossência só me fazem lamentar mais uma vez aceitasse missão para a qual sempre proclamei minha incompetência e não haver insistido ultimamente minha exoneração".

(25) Cf. telegrama de Rui a Rio Branco, em 30 de julho de 1907. (26) A frase de Beernardt, Rui a transmitiu a Rio Branco por tele

grama de 4 de setembro de 1907. Quanto à fadiga produzida pelos banquetes poder-se-á ver o telegrama passado a Rio Branco em 2 de agosto de 1907.

(27) Está in Arq. C. R. B. a coleção da cardápios dos banquetes oferecidos pelo Brasil, em Haia.

(28) Cf. telegrama de Rui a Rio Branco, em 9 de agosto de 1907. (29) "Courrier de la Conference", n.° de 10 de agosto de 1907. Sobre

a representação do Brasil na Conferência da Paz, de 1907 veja-se "O Brasil em Haia", de William Stead, trad. de Artur Bomilcar, Rio 1925.

(30) Cf. carta de J. Nabuco a Rui, em 20 de janeiro de 1908, de Washington, in C. R. B.

(31) Cf. carta de Rui a Rio Branco, em 16 de janeiro de 1908, cópia in Arq. C. R. 11. ft a resposta à carta de Rio Branco, em 12 de janeiro de 1908, convidando Rui para saudar a Marinha dos Estados Unidos, o que foi recusado.

(32) Cl telegrama de Rui a Rio Branco em 2 de outubro de 1907. (33) Cf. carta de Marlens a Rui, em 9 de agosto de 1907, in Arq.

C. R. B., o telegrama de Rui a Rio Branco, na mesma data. (34) Cf. carta de Joaquim Nabuco a Rui, em 26 de agosto de 1907,

datada de Langenschawalbach. (35) Cf. carta da baronesa de Guillaume a Rui Barbosa, in Arq.

C. R. B. — Não tem data, trazendo apenas a referência "Mercredi". (36) Cf. o telegrama de Rio Branco a Rui em 18 de agosto, e o de

n.° 154. (37) Cf. telegrama de Rio Branco a Rui, em 18 de agosto de 1907. (38) Cf. carta de Aubrey Stanhope a Rui, em 28 de agosto de 1907,

in Arq. C. R. B., e o "Times", de 31 de agosto de 1907. (39) No telegrama n.° 42, diz Rio Branco a Rui: "entendi dever assumir

pessoalmente aqui (o trabalho) de correspondente oficioso dando ao público notícias baseadas nas comunicações fidedignas de Vossência que eu desenvolvia como verá logo puder percorrer serviço telegráfico Jornal do Comércio".

(40) Cf. carta de Azeredo a Rui, em 15 de agosto de 1907, in Arq. C. R. B.

(41) Cf. carta de Martens a Rui, em 9 de agosto de 1907, in Arq. C. R. B.

(42) É o projeto de 24 de agosto de 1907. Rui Barbosa, de acordo com a orientação do governo do Brasil, falou no dia 27 de agosto a favor dum Tribunal de juízes remunerados.

H A I A 323

(43) Sobre a posição do Brasil, v. Brown Scott, "The Hague Peaee Conferences of 1899 and 1907", vol. I, p . 439-460. Na pág. 169 refere-se o autor à personalidade de Rui Barbosa.

(44) Cf. telegrama de Rui a Rio Branco, em 5 de setembro de 1907. (45) Idem. (46) "Atas e Discursos", p . 193. (47) Cf telegrama de Rui a Rio Branco, em 8 de outubro de 1907. (48) Discurso de Rui, em 9 de outubro de 1907, e do mesmo dia

é o telegrama a Rio Branco. (49) Cf. "Courrier de la Conference", n.° de 10 de outubro de 1907. (50) Cf. telegrama de Rui a Rio Branco, em 9 de outubro de 1907. (51) "Tribune", de Londres, n.° de 11 de outubro de 1907. (52) "The Review of Reviews" — Brazil at the Hague. (53) Telegrama de Rui dirigido à família, em 10 de outubro de 1907. (54) Cf. telegrama de Rui a Azeredo, em 15 de outubro de 1907. (55) O telegrama, in Arq. C. R. B., traz a indicação de 6,30 horas. (56) Em carta de 17 de fevereiro de 1908, Rio Branco transmitiu a

Rui a cópia da carta dirigida por Elihu Root a Joaquim Nabuco, embaixador do Brasil em Washington, lamentando não ter Rui podido aceitar o convite da Universidade de Yale. A carta de Paul Fauchille a Rui é datada de Sceaux, 16 de novembro de 1907. Ambas se encontram in Arq. C. R. B.

(57) Cf. carta de Joaquim Nabuco a Rui, em 11 de abril de 1908, in Arq. C. R. B.

(58) Cf. telegrama de Rui ao embaixador Camelo Lampreia, em 10 de dezembro de 1907.

(59) Cf. carta de Joaquim Nabuco a Rui, em 22 de outubro de 1907, in Arq. C. R. B.

(60) Cf. carta de Azeredo a Rui, em 15 de julho de 1907, in Arq. C. R. B.

(61) Carta de Pinheiro Machado a Rui, em 9 de julho de 1907, in Arq. C. R. B.

(62) Cf. telegrama de Pinheiro Machado a Rui, em 28 de dezembro d e 1907. Para melhor conhecimento da situação política nessa ocasião, constitui valioso subsídio a correspondência de Azeredo para Rui, especialmente cartas de 13 de outubro e 6 de novembro de 1907, in Arei. C. R. B.

(63) Cf. telegrama de Bui dirigido ao Presidente Afonso Pena, em 17 de outubro de 1907.

Em várias oportunidades referiu-se Rui Barbosa à Conferência de Haia. Podem, porém, ser ressaltados os seguintes trabalhos em que trata do assunto: 1) Discurso em Paris, em 31 de outubro de 1907, agradecendo a manifestação da colónia brasileira; 2) discurso proferido na Bahia, em 29 de dezembro de 1907, agradecendo a manifestação popular com que foi recebido ao retornar de Haia. 3) discurso no senado, em 21 de outubro de 1908, e no qual responde ao ministro argentino, Estánislau Zebalos; 4) Esfola da Calúnia, cap. XXXI, in Correio da Manhã de 26 de fevereiro de 1914; 5) discurso em Juiz de Fora, por ocasião da campanha presidencial de 1910.

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XXIII — SOB OS MUROS DE TRÓIA

Contra esta catástrofe que nos ameaça, "o mártir da Convenção" correrá, «« Deus quiser, a via dolorosa, não de rastos, com a cruz às costas, mas em todo o antigo ardor...

Rui.

1VÍÃO se podia conceber vitória mais completa. Após o re-^ gresso da Conferência da Paz, tendo a Fama e a Glória

como servas submissas, Rui estava no apogeu. Era a opinião geral.

Triunfo simpático. Conquistado com tenacidade, através de longos anos de esforços corajosos, conseguira em grande parte acalmar a inveja c o despeito que tanto o haviam inquietado nos começos. Rui distanciara-se de tal modo dos contemporâneos, que nenhum poderia pretender competir com êle no terreno da inteligência e da cultura, e poucos não se sentima orgulhosos do renome alcançado, em Haia, pelo embaixador.

Tendo recusado o convite de Rio Branco para ser o orador no banquete oferecido pelo governo aos oficiais da esquadra nor-te-americana, então de passagem pelo Rio, Rui foi veranear em Petrópolis. Julgara extemporânea demonstração de força aqueles vasos de guerra singrando as águas do continente, e o próprio Rio Branco não pensava de modo muito diferente. Contudo, em Petrópolis, não encontrou o repouso desejado. A política in-tricara-se grandemente, e em torno do presidente da Câmara, Carlos Peixoto, deputado ainda moço, e de quem diria Afrânio Peixoto não ter conhecido "ninguém mais inteligente", começavam a articular-se jovens políticos dispostos a arrebatar de Pinheiro Machado a posição de Condestável. Era o "jardim da infância", dissera um deputado, e daí por diante ninguém conhecera por outro nome aquele agrupamento de "jovens turcos", cujo chefe, autoritário e culto, imaginava fazer de João Pinheiro, presidente de Minas Gerais, o sucessor de Afonso Pena. Isso contrariava Pinheiro Machado, que começou a mobilizar as suas

SOB OS MUROS DE TRÓIA 325

hostes. Rui continuava-lhe fiel, e tanto Azeredo como Quintino permaneciam satisfeitos com o Chefe.

O grande choque estava previsto para quando se abrisse o parlamento, mas Rui temia-lhe as consequências. Receava uma "situação revolucionária". "Com a nossa experiência, escreveu a Pinheiro, com a minha, tão acerba, do mal das revoluções, é uma extremidade, que tenho feito de mim comigo mesmo o voto de evitar por todos os modos". (1)

Mas, não era só. Depois de excursionar pelo Rio Grande do Sul, donde lhe trouxera como lembrança um pequeno chicote, Pinheiro voltara preocupado com a situação do Rio da Prata e Rui não considerava menos grave a política exterior do Brasil. Ainda com a imaginação ferida pela queda de Porto Artur, por mais que isso pareça estranho, ambos não julgava oportuno acen-der-se uma fogueira na política interna do país. Consideravam sensato apaziguar os ânimos.

Ainda em janeiro, Afonso Pena também partiu para Petrópolis e isso facilitou a trégua. Na quietude da antiga cidade imperial, a Saint-Cloud brasileira, renasceu entre Rui e Pena a estima, que os unira nos anos distantes da Academia. Juntos, deram longos passeios matinais, acompanhando o rio, que serpeava pela cidade. Às vezes, se desejavam afastar-se mais, tomavam um tílburi, e, enquanto o animal trotava pela estrada, podiam entremear graves assuntos com recordações da mocidade. Tornava-se agradável lembrar entre aquela paisagem acolhedora os dias da vida de estudantes, evocando figuras de colegas. Quantos já haviam desaparecidol

Afonso Pena gostava daquela companhia. No princípio ainda se mantivera cerimonioso, mas isso foi desfeito pelo tempo, como se vê pela correspondência, que nessa época dirigiu a Rui. Em janeiro: "Prezado colega e amigo dr. Rui Barbosa". Em fevereiro: "Meu caro Rui Barbosa". Em março: "Meu caro Rui". (2) Em três meses a intimidade fizera progressos. No entanto, como era peculiar ao seu temperamento, embora se lhe abrissem as portas, Rui mantinha-se esquivo e Pena mandava-lhe bilhetes afe-tuosos: "Quer aproveitar a manhã para passear? Se quiser, podemos sair às 8 horas, antes ou depois, como fôr do seu agrado". E no dia seguinte: "Se quiser aproveitar a bela manhã para passear, venha para sairmos juntos". (3) Linguagem simples e des-vanecedora.

A aproximação deu bons resultados. Rui a Pinheiro Machado: "Convidado esta manhã pelo presidente a fazermos jun-

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326 A VIDA DE RUI BARBOSA

tos um passeio, estive com êle em palestra das 7,30 às 10 horas, e a impressão que trouxe não é desanimadora. O Azeredo irá conversá-lo esta noite. Estamos procurando ver se chegamos com êle a uma combinação, que desarme a intriga, despindo o caso Carlos Peixoto da significação que adquiriu, e dando-nos satisfação cabal". (4)

Com esse objetivo sucederam-se as conferências entre o Presidente e os ases políticos desavindos. Várias vezes Pinheiro Machado subiu a Petrópolis para conversar com Pena. Mas, se acontecia realizar-se à noite o encontro, D. Maroquinhas Pena, a mulher do Presidente, conhecendo os hábitos de noctívago de Pinheiro, capaz de entrar pela madrugada esquecido do tempo, mandava os criados adiantarem os relógios do palácio Rio Negro a fim de poupar o marido daquelas vigílias. Pinheiro, muito sagaz, falava longamente, tirando ao interlocutor a impressão de estar sendo observado. Contraste evidente com Pena, pouco loquaz, de ar fatigado e preferindo esperar silencioso o momento oportuno para dizer o que queria.

Carlos Peixoto também fora convocado pelo Presidente. Era necessário harmonizar. Mas, quando já se chegara a uma fórmula conciliatória, um jornalista simpático a Pinheiro Machado referiu-.su a Carlos Peixoto, chamando-o de "trêfego agitador, infiel aos seus amigos e desvairado por uma impetuosa ambição de comando". (5) A expressão foi comentada pela imprensa. Pena irritou-se e o acordo pareceu impossível. Pinheiro, no entanto, necessitava da trégua e escreveu a Rui, imputando aos jornalistas o que acontecera: "Estão exercendo a sua profissão, defendem o pão. Nós é que não devemos nos deixar explorar por esses velhacos". (6) A intervenção chegou com oportunidade e o acordo se recompôs. O próprio Rui escreveu a nota para ser publicada nos jornais, anunciando a extinção das divergências. Pena modi-ficou-a em alguns pontos. E a 10 de março, tudo se resolvera satisfatoriamente. (7) Era, porém, um armistício e não uma paz. Cada contendor esperava que o tempo lhe fosse favorável, principalmente Pinheiro, que já tendo ganho algumas partidas julgava poder vencer muitas outras. A batalha estava apenas adiada.

* # o

Nesse ano (1908) realizaram-se as núpcias da filha mais velha de Rui, Maria Adélia, com Batista Pereira, rapaz que se iniciava na diplomacia. (8) Servira com a delegação brasileira em

SOB OS MUROS DE TRÓIA 327

Haia e aí começara o idílio. O noivo, boémio por temperamento, transbordava de inteligência e de verve. Falava muito, mas a conversa era agradável, espirituosa, e Rui ficou embevecido por aquele genro loquaz, e talentoso.

Antes, Alfredo casara-se com a bela Marina Braga e Chi-quita consorciara-se com o senhor Raul Airosa. Aos poucos começavam a chegar os netos, enchendo a casa de S. Clemente com a alegria das suas lágrimas e do seu riso. Rui estava avô. Um avô terno e bondoso, que apenas se zangava quando os netos tentavam desarrumar-lhe a biblioteca. Aliás, mesmo com os filhos, sempre se mostrara desvelado, e bastaria alguém querer tocar em qualquer deles para logo se deparar com as garras do tigre. (9) Isso chegara até a suscitar certas críticas. Mais ou menos por essa época, um deputado, Augusto de Freitas, pusera em dúvida algumas afirmações políticas de Alfredo. Rui enfurecera-se. Escreveu então a defesa do filho, que não chegou a divulgar, mas que se encontrou entre os seus papéis, depois da morte.

"Meu filho, dizia, não é um orador, nem homem de letras. Mas, os homens de letras e os oradores não são muitos. O que numa e noutra coisa por aí há em quantidade, é o género falso, a impostura, ou a casquinha. Nem o mundo vive só de oradores e homens de letras. Mas meu filho sabe pensar e dizer, refletir e deliberar. Exprime o que sente, o que concebe e o que quer com clareza, exatidão e bom senso. Nunca se lembrou de ser tribuno ou jornalista. Mas, nem sempre os jornalistas e os tribunos são os indivíduos mais úteis a um país. Se lhe faltam, porém, os dotes das profissões mais brilhantes, não lhe minguam as qualidades reais, sólidas e sérias das outras menos lustras, mas não menos necessárias e praticamente de mais fruto para o bem comum. Vadiou em estudante. Mas, dos estudantes vadios acontece, não raro, saírem, depois, os espíritos de melhor conselho e, até, as inteligências de melhor quilate. Fraco no estudo, nunca, porém, os seus mestres lhe negaram inteligência e capacidade. Passando aqui pelos melhores colégios, e educando-se quase quatro anos na Europa, formou-se depois na Escola Naval, e ultimamente cursou uma das nossas faculdades jurídicas, onde bacharelou em direito. Através dessas provas iniciais, onde se começa a revelar o talento e o caráter, não abriu caminho de louros, mas deixou um sulco de estima, uma reputação de juízo e honestidade".

Nessa obra-prima de dialética, cheia de alusões ao contendor, estampava-se o coração do pai. E concluía:

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328 A VIDA DE RUI BARBOSA

"Embora, pois, nem águia seja, nem génio, meu filho não desaira o nome de seu pai que também está muito longe de uma e outra coisa. Muito pelo contrário, é um filho de que seu pai se preza. Porque, aos olhos de seu pai, o valor dos homens está não tanto nas primazias da inteligência, quanto nas prendas dal-ma. Meu filho é limpo, é cortês, é moderado. Não tem vícios, nem hipocrisias, nem presunção. Não mente, não trai, nem bajula. Tem brio e dignidade, altivez e honra, independência e coragem. Pode cair em ignorância e cometer erros. Mas não cai em baixezas, nem comete vilanias. Não será uma bela inteligência. Mas é um caráter honesto, um excelente pai de família e um cidadão sem manchas na sua vida. Êle me ouviu sempre que o "Até mente!" é a maior das injúrias com que se pode ofender um homem depois de já injuriado". (10)

Muitos poderiam divergir dos conceitos. Mas é justo reconhecer quanto há neles de humano: como pai, Rui revelava-se igual aos outros homens.

• • o

Politicamente, 1908 transcorreu mais ou menos numa aparência de tranquilidade. A cidade divertia-se percorrendo os pavilhões da exposição comemorativa do centenário da abertura dos portos brasileiros no comércio internacional e os visitantes viam satisfeitos aquelas amostras do progresso do país. Em cem anos, o Brasil avançara consideravelmente.

Um imprevisto desviou, porém, o curso dos acontecimentos: João Pinheiro, o mais forte dos candidatos à sucessão de Pena, sucumbira em Belo Horizonte e isso alterava todos os planos do mundo político. O destino desequilibrava a balança e o jogo deveria recomeçar.

Quanto a Rui, fora eleito presidente da Academia Brasileira de Letras, em substituição a Machado de Assis, falecido nesse ano. (11) No Senado êle replica com energia às maldosas insinuações de Zebalos, ex-chanceler argentino, que tentara empanar o brilho da representação brasileira (poderia dizer-se de Rui) em Haia. Zebalos tinha a consciência de que sem Rio Branco seria êle o primeiro na diplomacia do continente, e cometera uma leviandade para ferir o rival. Aliás, Rio Branco também não simpatizava com o seu colega platino, que tivera como adversário no caso das "Missões", e escrevera a Rui satisfeito com a resposta: "Esse homem que foi sempre um tanto desequilibrado está decididamente louco, e como tal vai ficando geralmente conhecido

SOB OS MUROS DE TRÓIA 329

entre os seus próprios compatriotas". (12) Juízo apaixonado. Generoso com os que o ajudavam a vencer, Rio Branco não poupava os que se lhe atravessassem no caminho.

Ainda como um eco de Haia, Afonso Pena, a 15 de novembro, entregou a Rui, solenemente, presente o corpo diplomático, a medalha comemorativa, que mandara gravar. Numa das faces, circundada por um ramo de louro, via-se a efígie do embaixador. Na outra, esta inscrição: "O governo dos Estados Unidos do Brasil em nome da Nação ao senador Rui Barbosa, embaixador extraordinário e plenipotenciário do Brasil na segunda Conferência Internacional da Paz. Haia, 15 de junho — 18 de outubro, 1907". (13)

E fora tal o entusiasmo do Presidente ao exaltar a atuação do homenageado que, após a cerimónia, Pinheiro Machado, a quem essa perspectiva parecera ter sido simpática, dissera a Azeredo, na presença de Rui: — "O Pena acaba de contrair solenemente com o Rui o compromisso de que será êle o seu sucessor". (14) Não tardaria, porém, em verificar quanto se enganava. Morto João Pinheiro, as preferências de Pena se haviam voltado para o seu ministro da Fazenda, o elegante Davi Campista, alma de senhor feudal desgarrada num mundo democrático. (15) Cético, Campista tinha o mau hábito de generalizar o conceito desfavorável que se fizera da honestidade dos homens. Ambicioso, jul-gava-se com o direito de dominá-los, e essas coisas tornavam-no geralmente mal visto. Os desafetos vingavam-se fazendo circular notícias sobre a sua origem judaica.

Rui foi um dos primeiros a se oporem abertamente contra Campista. "Eu quisera abster-me, escreveu em dezembro a Pena, de me pronunciar sobre o nome indicado. Mas não posso. Seria fraqueza.. . Moço de talento e futuro, não tem evidentemente para o cargo supremo do Estado, experiência, madureza, autoridade". (16) A sinceridade não aborreceu o destinatário, que, dois dias depois, respondeu: — "Não tenho o espírito em estado de desenvolver longas considerações sobre o assunto da sua carta, e espero que venha a palácio para conversarmos a respeito". (17) Assim, tudo parecia marchar bem, quando o destino tomou a si interpor-se entre os dois amigos. Realmente, nesse mesmo dia faleceu um cunhado de Pena, o visconde de Carandaí, e Rui julgou melhor adiar o encontro. O motivo era respeitável; mas, devendo seguir para Petrópolis nos primeiros dias de janeiro, Pena, a 30 de dezembro, insistiu no chamado. (18) Rui, porém, estava

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330 A VIDA DE RUI BARBOSA

adoentado e respondeu, prometendo atendê-lo logo que se restabelecesse. A demora seria fatal.

Nesse comenos, consequência de alguma indiscrição, um jornal se referiu à correspondência trocada entre Rui e o Presidente e isso bastou para que aquele logo se abespinhasse, enchendo-se de desconfianças. E, levado pela suscetibilidade à flor da pele, mergulhou num mundo de fantasmas criados pela imaginação, re-cusando-se a atender ao convite. Separava-os uma razão fútil e o mal-entendido teria graves repercussões. Aliás, Rui, mais tarde, penitenciou-se daqueles excessos de amor-próprio, nele tão frequentes: "Hoje sinto arrependimento, escreveu, de haver cedido, no começo de janeiro, àquele receio. Errei, talvez.

Se eu lhe houvesse falado, teria vindo a penetrar circunstâncias, e que só agora me constam". (19) Era tarde, no entanto. Muito tarde.

Em maio a situação tornara-se confusa e inadiável. Malograra a candidatura de Davi Campista e Rio Branco, cujo nome Rui sugerira, fora afastado por uma escusa manobra de Pinheiro. Aliás, Rio Branco se julgava velho e abatido. (20) Tinha 64 anos, considcrava-se próximo do fim, e era quase impossível encontrar alguém capa/, de conciliar os ânimos divergentes.

Parecia ter chegado o momento de Pinheiro Machado. Muitas vê/es êle havia deixado entrever a Rui a possibilidade de fa-zê-lo o seu candidato e ainda mais claros tinham sido os acenos de Azeredo. Conseguiriam, agora, sem prejuízo, realizar essas vagas promessas, que talvez desejassem sinceramente transformar em realidade? O Condestável soubera esperar e, aumentando o desentendimento entre os adversários, poderia vencer o jogo no instante final. A praça estava cercada.

Mas, como conquistar Tróia? Depois de terem agido em harmonia durante tanto tempo, Pinheiro, Azeredo e Rui não estavam de acordo. Como Agamêmnon, Ulisses e Aquiles sob os muros da cidade lendária, eles divergiam. Rui preferia a luta em campo aberto, para tomarem a praça de assalto. Para isto só êle poderia ser o general. Azeredo, pelo contrário, queria triunfar pela astúcia. Era mais cómodo e mais certo. Pinheiro pensava como Azeredo e ambos já imaginavam desbaratar o inimigo, introduzindo na cidadela a candidatura do marechal Hermes da Fonseca, verdadeiro cavalo de Tróia destinado a aterrar os políticos aflitos. (21) Depois de se haver destacado no comando da Vila Militar, por ocasião da revolta contra Rodrigues Alves, Hermes vira-se escolhido por Afonso Pena para ser o ministro da Guerra. Re-

SOB OS MUROS DE TRÓIA 331

formara profundamente o exército; fora, por convite do Kaiser, assistir às manobras alemãs em Potsdam e conseguira impôr-se entre os companheiros como um chefe de grandes qualidades. Agora requestavam-no para uma aventura política.

Até à última hora Rui alimentou a esperança, se não de ser o candidato, pelo menos de evitar aquela solução militar, que o enchia de horror. A 6 de maio acabaram, porém, as ilusões. Nesse dia, preparava êle, entre os sofrimentos duma das suas habituais enxaquecas, o discurso com que, no dia seguinte, deveria saudar Anatole France, quando Pinheiro Machado o procurou. E, como não o pudesse avistar, Pinheiro informou a um dos filhos de Rui: "Bem. Não faz mal, porque se êle estivesse bom, naturalmente ficaria com dores de cabeça, depois do que eu lhe ia dizer". (22)

A oração a Anatole France, na Academia de Letras, modelo de bom gosto e de agudeza na análise da obra do escritor francês, encerra, aliás, alguns trechos que demonstram o estado de espírito em que foi escrita. A propósito da "La Rotisserie de la Reine Pedauque", por exemplo, é com amargura que deixa cair este comentário, reflexo do sofrimento do orador: — "O fim é triste, como o de todas as coisas humanas!" E, falando da política, nos trabalhos de France, diz com azedume: — "Da política, todo o mal que dela se disser, jamais dará a medida da realidade. Eu sou um dos seus convictos detratores". Certamente, naquela hora, êle abria o coração: estava decepcionado.

Aliás, sobre esse discurso, onde Rui, em francês castiço, se referira à ironia disseminada por toda a obra do escritor, "a ironia doce e benevolente, que nos torna a vida agradável", e à "piedade que, chorando, nô-la torna sagrada", Jcan Jacques Brous-son, secretário de France, diria mais tarde, com evidente inexa-tidão, que, aos louros e às rosas, êle mistura algumas urtigas, louvando a pureza do estilo e criticando a impureza do fundo. (23) Não, Rui, nesse momento, sofria o suficiente para não se insurgir contra a mordacidade do autor de "Thais", que, ao agrade-cer-lhe as palavras lisonjeiras, afirmara sem constrangimento: — "Je vous assure, c'est une merveille".

* # »

Pinheiro Machado precipitava os acontecimentos. Aconselhado pela intuição, êle avançava a toque de caixa; e, vinte e quatro horas após a saudação de Rui a France, reuniu-se com

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quatro correligionários para escolherem o candidato. Azeredo e Glicério opinaram pelo nome de Rui e os outros dois preferiram o marechal Hermes, que se demitira do ministério. (24) Caberia assim a Pinheiro o voto de Minerva. Sentia tão simples.. . apenas uma palavra e Rui estaria indicado. Contudo, já entrevendo a vitória ao lado do ministro da Guerra e também não desejando representar o papel de algoz, julgou conveniente ouvir-se o senador Rosa e Silva, notoriamente conhecido como pouco simpático a Rui. O gato bricava com o rato. Realmente, mal lhe solicitaram o voto, Rosa e Silva não vacilou: — "Com o Rui nem para o céu!" (25) Pinheiro lavou as mãos: Hermes ganhava. E, diante daquela solução militar, os políticos, na sua maioria, julgaram útil aceitá-lo como quem toma um remédio de mau gosto. Alguns fizeram caretas. Poucos tiveram a coragem de recusá-lo. Significava a derrota espetacular do Presidente e de Rui.

Embora essas coisas não lhe modificassem a decisão contrária à candidatura militar, Rui deve ter vivido então alguns instantes dramáticos. Amigo de Hermes, este, inicialmente, solici-tara-lhe o apoio a fim de aquiescer na indicação. Prova evidente de apreço e que significava a certeza de que, no governo, o marechal desejaria continuar o mesmo. E, assim como acontecera por ocasião de Ouro Preto e Floriano, Rui devia escolher entre os seus "princípios" e os favores do Poder. Entretanto, suscetí-vel de grandes ambições, êle jamais se deixaria seduzir por vantagens mesquinhas. Preferiria a desgraça com honra. E a Azeredo e Glicério êle escreveu uma carta que ficaria famosa. (26) Pessoalmente, dizia, o candidato não lhe era antipático. Conhecera-o, ainda jovem oficial, ao lado de Deodoro, como "tipo de virtudes não comuns" e jamais tivera motivos para duvidar da sua "provada afeição e inquebrantável firmeza". Também não considerava a farda empecilho para alguém aspirar a suprema magistratura, mas nas circunstâncias do momento julgava a indicação o início dum período de militarismo, contra o qual se opunha categoricamente. Voltaria à posição de solitário em que quase sempre vivera na República.

A carta representou um toque de reunir. A maioria política acompanhara Pinheiro — o Chefe. No entanto, a opinião pública, as elites intelectuais e algumas forças partidárias ponderáveis aplaudiam a atitude de Rui — o Mestre. Entre estes dois poios giraria o dissídio. (27)

A morte rondava o episódio. Afonso Pena, cujo ânimo estava abalado pelo falecimento de um filho, não suportou o choque

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daquele desfecho contrário aos seus desejos. E a 14 de junho, após breve enfermidade, sucumbiu; não pudera sobreviver à derrota. Traumatismo moral, disseram os médicos. (28)

Pinheiro Machado jogava com sorte. Desaparecido Afonso Pena, único adversário, que detinha uma soma de poder capaz de perturbar-lhe os planos, ascendia à Presidência da República o seu correligionário Nilo Peçanha. A vitória consolidava-se.

O falecimento do Presidente constituiu terrível imprevisto para os que não haviam acompanhado o marechal. Nesse caso estavam os partidos dominantes em São Paulo e na Ilábia, isolados naquele transe. De antemão sabiam-se vencidos no pleito, mas ainda assim deveriam apresentar um candidato. Quem, no entanto, se sujeitaria a caminhar conscientemente para a derrota? (29) Algum político inexpressivo? Seria o ridículo e isso os apavorava. Agora, perder era o menos: o pior estava em se verem expostos ao escárnio.

Lembraram-se de Rui. Só êle, com o prestígio do seu nome, poderia galvanizar a situação, evitando um fim de opereta. Nas ruas, os estudantes já promoviam manifestações ruidosas ao autor da carta e o ambiente começava a eletrizar-se ante a perspectiva de ser êle o candidato da oposição, circunstância sempre favorável, no Brasil, entre as classes médias. Rui impôs, porém, uma condição, que foi logo aceita: Albuquerque Lins, presidente de São Paulo, seria o candidato à vice-presidência.

Quando, em agosto, a Convenção Nacional das forças políticas dissidentes proclamaram-no candidato, candidato à derrota e aos sacrifícios, que voltariam a encher-lhe a existência, Azeredo enviou-lhe uma carta cheia de remorso e procurava justificar-se perante o amigo a quem abandonara. Declarava não ter tido outra ambição, nos últimos quatro anos, senão vê-lo na suprema magistratura do país. Esforçara-se para realizá-la. Mas, sem coragem para enfrentar a hipótese dum malogro, deixara-se arrastar para o campo adverso. "Não me foi possível conseguir, dizia, o meu maior desejo, e no meio da campanha, quando me vi emaranhado nas teias da política, urdidas por mim também, era-me impossível sair delas, deixando-me prender por um sentimento nobre de gratidão e lealdade". Aliás, não era a primeira vez, que, obrigado a escolher entre a amizade e a vitoria, Azeredo decidira-se por esta. Fora assim por ocasião de Floriano, mas Rui o perdoara. Êle nunca sabia detestar aquele espírito ameno, sedutor, mas incapaz de resistir ao fascínio do triunfo. Ainda

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uma vez, quando passasse a tormenta, Azeredo esperava encontrar a tolerância no coração do velho amigo, e, meio patético, concluía a carta dolorosa:

"Sigamos, pois, o nosso destino, mas que as nossas embarcações singrem serenas as águas desse mar revolto, até porto seguro, sem se chocarem nessa longa travessia, em que o meu coração oprimido por uma dor intensa, sente a quebra dessa solidariedade política, que devia ser indefectível, mas que a fatalidade cruel veio estremecer, sem, entretanto, diminuir uma partícula sequer da minha amizade, do meu afeto desinteressado e da minha dedicação nunca excedida. Tenho fé que a Providência nos fará encontrar mais adiante e muito breve, unindo-nos pelos mesmos ideais, para nunca mais nos separarmos".

E, possivelmente voltado para a velha amizade, Azeredo terminava cheio de afeto: "Creia-me, meu caro Rui, o mais sincero e o mais dedicado dos seus amigos." (30)

No fundo, era sincero e parecia reconhecer a própria fraqueza. Mas, que fazer, se nascera assim?

Sempre sensível a estas manifestações de afeto, Rui respondeu emocionado e sarcástico ao mesmo tempo. Também para êle a separação era triste: "Só lhe direi, meu caro amigo, que as suas ilusões avaliam muito superficialmente a enormidade do caso hoje entre nós interposto. A candidatura militar, desastradamente armada para salvar as posições de alguns chefes políticos, encerra em si a desgraça irremediável do Brasil". E, como se desejasse fixar nitidamente um contraste entre ambos, acrescentava:

"A probabilidade do êxito não me preocupa quando ouço o rebate da minha consciência. A própria vida não é nada, em se tratando, como agora, da honra e do dever. A reação armada, que a inconsciência do governo atual está desenvolvendo na pasta da Guerra, nos traça o preâmbulo do que está por vir. Mas não nos amedronta. Vocês têm a máquina oficial. Nós temos por nós a nação . . . " "Aí fico eu todo nestas linhas, meu amigo. Elas reviverão aos olhos do seu espírito uma dessas horas de emoção e verdade, em que você, na confidência dessa intimidade atalhada agora pelo Demónio da Política, escutava calado as expansões do seu velho amigo no seu elemento predileto: os princípios, as preocupações morais, os cuidados do futuro, bagagem de que se apascentam os nossos oradores, mas com que se não embaraçam os nossos estadistas". A carta terminava num tom amargo de ironia e desilusão:

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"Estarei eu sendo vítima de uma alucinação? Será você quem acerte? Deus o queira e tenha misericórdia de nós. Dela muito necessita o seu velho e desenganado amigo Rui Barbosa". (31)

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Seria impossível descrever o entusiasmo com que o país acorreu ao toque de rebate. De todas as partes, mesmo das mais longínquas, chegavam expressivas demonstrações de solidariedade ao candidato civil. Era contagioso. Os partidários do marechal, salvo os militares e os políticos, sentiam-se acabrunhados e era furtivamente, como se praticassem alguma ação má, que manifestavam as suas opiniões. "Todo o país, dividido como numa guerra civil, notou um contemporâneo, vibrava de entusiasmos ardentes e de ódios ferozes".

Depressa, Rui viu-se cercado duma plêiade brilhante de discípulos, quase todos jovens políticos, talentosos, e que preferiam o "beau-geste" à certeza da vitória. Abriam assim à sombra do Mestre, o caminho para a notoriedade. Pedro Moacir, João Man-gabeira, Cincinato Braga, Evaristo de Morais, Galeão Carvalhal, Antunes Maciel, seriam alguns dos cirineus dispostos a auxilia-rem-no a carregar a cruz.

De Roma, o famoso criminalista Enrico Ferri, escreveu a Rui: "Não somente pela grande estima pessoal que tenho por vós, mas sobretudo pelo futuro do Brasil, desejo de todo o coração a vossa eleição. Na evolução social do Brasil vossa presidência seria a personificação dum período de progresso civil e a realização dum programa económico e moral digno de aprovação por qualquer um que, como eu, ame vosso país e vaticine-lhe o mais fecundo desenvolvimento". (32) Outro amigo lhe mandou uma carta, narrando uma opinião emitida em Cannes, durante o exílio, por D. Pedro II. A Ferreira Viana e outros monarquistas dissera o velho Rei deposto: "Nas trevas que caíram sobre o Brasil a única luz que alumia no fundo da nave é o talento de Rui Barbosa".

Esse conceito lisonjeiro deu-lhe um instante de satisfação. Era nobre da parte do Imperador, a quem tanto agredira, esse juízo favorável. E, como se a endereçasse à posteridade, Rui meteu a carta num envelope, onde escreveu com o próprio punho: "O Imperador e Rui Barbosa. Conversa de D. Pedro II com Ferreira Viana e outros monarquistas sobre o papel de Rui Barbosa na República". (33)

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Que podia êle esperar, sobretudo agora que marchava para um novo sacrifício, senão o juízo da posteridade? Desde que se proclamara a República, as eleições haviam sido apenas um mito. Banido o Imperador, que de certo modo coibia as ambições imoderadas, destruídos os velhos partidos, agora substituídos por transitórios agrupamentos, agitado o país pelas revoluções, aos eleitores ficara quase apenas a função de sancionarem as combinações acertadas pelas maiorias políticas eventuais. Apenas um ou outro deputado conseguia eleger-se em oposição. Principalmente após a administração de Campos Sales, que incentivara a chamada "política dos governadores", cuja fórmula se resumia num apoio recíproco entre o Presidente da República e os Governadores dos Estados da federação, havia desaparecido completamente o pensamento de se organizarem partidos estáveis. Vivia-se dentro de verdadeiro círculo vicioso, que funcionava com exatidão, esmagando qualquer veleidade de rebeldia contra aquelas forças conjugadas. Prestigiados pelo Presidente os Governadores elegiam deputados da sua confiança incumbidos de apoiarem, no parlamento, a vontade do chefe da nação.

Era esta máquina inexorável, que Rui se propunha enfrentar. Meio romântico, parecendo pouco preocupado com os resultados imediatos, contentava-se, talvez, em pregar e ensinar. Abriria as primeiras veredas para a democratização da República. Como, senão educando o povo nessas campanhas, interessan-do-o pela sorte do país, fazondo-o participar dos negócios do Estado, seria possível atingir ao nível, onde pairavam a Inglaterra e os Estados Unidos?

Com o mesmo ardor de outros tempos, êle iniciou a propaganda. No Rio, em São Paulo, na Bahia, a palavra do orador inflamou as multidões, que reconheciam o seu velho herói. O verbo era o mesmo do Apóstolo do habeas-corpus. E bastava a simples notícia da passagem do trem que o conduzia para que as estações se apinhassem de pessoas ávidas por animarem o candidato com os seus aplausos. Aplausos calorosos e espontâneos, que ao mesmo tempo consagravam o passado do lutador e volta-vam-se, esperançosos para o futuro.

Quando visitou São Paulo, a Faculdade de Direito, sob as arcadas seculares, inaugurou as lápidas comemorativas da passagem por ali de três dos seus grandes filhos: Nabuco, Rio Branco e Rui. No discurso, Rui começara lembrando os tempos da Academia, o passado de lutas de que se orgulhava, e as palavras estavam repassadas de doçura. O fim, entretanto, fora demasiada-

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mente amargo. Gostava das previsões trágicas, talvez reflexo do espírito desenganado, e assim concluirá:

"Ouvi bem, meus amigos, meus irmãos, meus filhos: não há, para nós, outra alternativa. Ou justiça; isto é: paz, honra, prosperidade. Ou ditadura; isto é: corrupção; guerra; miséria, fratricídio; desmembramento, retalhamento; eliminação, absorção pelo estrangeiro. A Europa e a América do Norte nos fitam. Não declamo; formulo, prognostico, vejo". O quadro era extraordinariamente triste.

Em seguida viajou para a Bahia, que escolhera para tribuna donde leria o seu programa. As festas excepcionais foram, no entanto, toldadas e interrompidas por uma notícia dolorosa: Nabuco falecera em Washington. Pobre Nabuco: morrera longe da pátria. Não fazia muito, já antevendo o fim, escrevera a Rui: "Completam-se dez anos de ausência do país e da vida mais artificial que podia ter tido. Estou cansado e não quisera acabar assim". (34) A morte chegara, porém, antes que pudesse voltar.

Quanto às ideias que realizaria no governo, Rui não tivera grandes novidades para anunciar. "O meu programa, dissera, está na minha vida". Realmente, nas etapas da longa trajetória, encontrara ocasião para versar quase todos os problemas da administração e não carecia emitir conceitos oportunistas para captar simpatias. Bastava-lhe reafirmar a decisão de executar aqueles ideais por que sempre combatera. Mais de uma vez sofrera pelas suas convicções e nada poderia prometer de melhor do que prosseguir, no governo, trilhando a mesma estrada por onde caminhava denodadamente há quarenta anos. No entanto, pelo menos num ponto era possível notar que mudara: nas suas simpatias pelo protecionismo. Êle que no ministério se mostrara tão favorável às ideias protecionistas como meio de amparar as indústrias, inclinava-se agora para o livre câmbio. Tinha, porém, a coragem de proclamá-lo.

Infelizmente, o largo debate aberto em torno das candidaturas presidenciais deslocou-se para terreno pernicioso: a luta entre os dois adversários transformava-se num dissídio entre civis e militares. A verdade é que Rui desejara evitar esse rumo. Prova-o a carta em que discordou da indicação de Hermes, homem honesto, de ótimas qualidades pessoais, no íntimo contrário à violência, mas cujo coração se revelava incapaz de resistir aos amigos. Nela Rui reconhecera lealmente não ser a farda empecilho para que alguém pretendesse dirigir a nação. Mas no curso da campanha, os espíritos haviam-se exaltado de tal maneira, que

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se tornara impossível impedir aquela direção maléfica. Um equívoco. Os militares, naturalmente interessados pela sorte do camarada, viam nas estrondosas manifestações a Rui uma afronta aos quartéis, e os civis, mais fracos, vingavam-se desencadeando tremenda onda de ridículo sobre o candidato militar. Circulavam anedotas e caricaturas contra Hermes e tudo isso tornara a atmosfera sombria. Por fim, de tanto se repetir que o combate se travava entre militarismo e civilismo, acabara sendo realidade. Equívoco maléfico e de consequências muito mais graves do que seria possível prever no momento. Rui, que defendera as classes armadas nos últimos anos do Império e fizera a República ao lado de Deodoro e Benjamim Constant, passava a ser visto pelo exército como um inimigo da farda.

Contudo, principalmente nas grandes cidades, Rui era incomparavelmente mais popular do que Hermes. Por toda a parte as aclamações vitoriavam o artista e o estadista. A nação sentia-se enlevada pela palavra do orador, onde a beleza das imagens se associava à nobreza dos conceitos e Haia ainda não havia sido esquecida. Encantou-a, por exemplo, ler trechos como este: "Enquanto Deus nos dê um resto de alento não há que desesperar da sorte do bem. A injustiça pode irritar-se; porque é precária. A verdade não se impacienta; porque é eterna. Quando praticamos uma ação boa, não sabemos se 6 para hoje ou para quando. O caso é que os seus frutos podem ser tardios, mas são certos. Uns plantam a semente da couve para o prato de amanhã, outros a semente do carvalho para o abrigo ao futuro. Aqueles cavam para si mesmos. Estes lavram para o seu país, para a felicidade dos seus descendentes, para o benefício do género humano". (35) O tempo tornara-o sentencioso. Duramente batido pela experiência, mas ainda conservando a flama inesgotável do Apóstolo, Rui co-locava-se num plano muito acima do seu tempo. Parecia falar para o futuro, e a nação mostrava compreender o seu sacrifício, ani-mando-o com o delírio das suas manifestações. Quantas vezes a multidão entusiasmada puxou-lhe o carro? Apenas, a maioria política, à qual não convinha permitir aquele regime de lei e de liberdade, fingia não entender e proclamava aquilo uma utopia. Os reformadores são sempre apontados como utopistas e Rui não podia fugir à regra.

Contudo, o entusiasmo tornara-se contagioso. Jamais tendo assistido a um choque político daquelas proporções, o país ficara em ebulição. Ninguém permanecera indiferente. E, nos seis meses que durou a campanha, Rui "experimentou o afago de

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uma popularidade sem precedentes". Podia sentir-se satisfeito: o Apóstolo acordara o país com o seu verbo.

Afinal, chegou o dia da eleição. Nos grandes centros, a preferência era indiscutível. Muitos votantes antes de depositarem a cédula, anunciavam o nome de Rui. Estrugiam palmas. Andrade Figueira, o velho político conservador do Império, já alquebrado pela idade, esperara de pé durante seis horas para votar em Rui. (36) Outro eleitor, acometido de uma síncope, recusa-ra-se a sair antes de colocar na urna a cédula com o nome do candidato civil, e dissera depois: "Vou tranquilo. Cumpri o meu dever de brasileiro". (37) Esses episódios proporcionavam uma ilusão de triunfo.

Simples ilusão. Atrás das grandes cidades estava o eleitorado do interior, em maior número, e dócil aos manejos das forças políticas, que apoiavam o marechal Hermes. Quando se apurou o resultado a verdade é que bem ou mal Rui fora derrotado. Fim da comédia. E a plateia retirava-se aborrecida.

No verão seguinte, cavalgando o "Falliòres", belo ginete, que lhe oferecera o presidente da França, o marechal Hermes da Fonseca passeava pelas alamedas de Petrópolis. Era êle o Presidente.

NOTAS AO CAPÍTULO XXIII

(1) Cf. carta de Rui a Pinheiro Machado, em 20 de fevereiro de 1908, in Arq. C. R. B. )

(2) Cf. correspondência de Afonso Pena para Rui, in Arq. C. R. B. (3) Cf. cartões de Afonso Pena para Rui, em 20 de março de 1908,

in Arq. C. R. B. (4) Carta de Rui a Pinheiro Machado, s. d., cópia in Arq. C. R. B. (5) Artigo publicado na "A Tribuna", de 29 de fevereiro de 1908,

atribuído ao jornalista Eduardo Salamonde, e que, entre outras coisas, dizia: "Deve-se, aliás, acreditar que do encontro de ideias entre dois espíritos ponderados como o sr. Afonso Pena e o general Pinheiro Machado, não podia resultar senão uma conciliação honrosa." Era a exclusão de Carlos Peixoto.

(6) Cf. carta de Pinheiro Machado a Rui, em 2 de março de 1908, in Arq. C. R. B.

(7) Existe no Arq. C. R. B. o original da nota, autógrafo de Rui, com emendas de Afonso Pena. Foi publicado no "Jornal do Comércio" de 10 de março de 1908.

(8) Um dos paraninfos do casamento, por parte da noiva, foi o barão do Rio Branco, o que prova as boas relações que então mantinha com Rui. O convite foi feito através da seguinte carta, de 12 de junho de 1908 (V. arquivo do Itamarati): Cativa a V. Exa. pelos sinais de interesse e benevolência com que acolheu a notícia do meu noivado, assim como pelo afeto

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e carinho com que tem favorecido o meu noivo, o Dr. António Batista Pereira, ouso, animada pelo aplauso dele e, especialmente, pelo do meu pai, solicitar do nosso caro amigo, o Sr. Barão do Rio Branco, a honra de ser, pela minha parte, a testemunha civil no meu casamento que tencionamos realizar a 14 ou 16 de julho vindouro.

Confio que V. Exa., bondoso para com a minha pretensão, não deixará de aceder aos nossos desejos, concorrendo com a boa estrela da sua presença para a boa estreia das esperanças daquela que com a maior admiração e simpatia se subscreve de V. Exa., amiga obr.a Maria Adélia Rui Barbosa".

(9) Rui sempre demonstrou extremo desvelo pelos filhos. É, aliás, o que bem esclarece a publicação dos dois documentos abaixo, o primeiro uma carta a José Veríssimo, em 6 de janeiro de 1897, e o outro um telegrama ao general Camará, ministro da Guerra, em 20 de setembro de 1908, c dos quais se conserva a cópia no Arq. C. R. B. "Exm.° am.° Sr. José Veríssimo. Sou obrigado a me queixar a V. Exa. de um fato ocorrido ontem no serviço dos exames. Meu filho, educado na Europa, conhecendo o francês, que ali falou por muitos anos, melhor do que a sua própria língua, em que aliás teve aprovação plena, e elogiado, pela excelência do seu falar "parisiense", na própria banca de exame, por um dos examinadores, foi ontem, contudo, reprovado nesse preparatório. Recebi o fato com menor pesar do que surpresa e incredulidade. Dizem-me que entra aí a vil política e o intento de ferir no filho o nome do pai. Não quero crê-lo; porque não sei atribuir a educadores da mocidade móveis tão infames. Mas não acho para o absurdo explicação confessável. Pai severíssimo, habituado a não poupar as faltas de meus filhos, e julgá-los com o maior rigor, não posso, quando a injustiça é evidente, deixar de revoltar-me contra ela com a mesma intensidade de sentimento, com que me tenho levantado contra tantas, que não me magoam no sangue, ou no interesse. A sorte de meu filho vai talvez chamar de novo a minlm atenção c o meu estudo para as coisas do ensino, de cuja reforma me tinham desanimado os vícios, cada vez mais graves, que as degeneram não obstante a ação altamente salutar dos espíritos superiores como o de V. Exa.

Rogo-lhe, pois, que sindique deste abuso, converse com o meu filho no próprio idioma, em que êle foi reprovado, examine-o, e, se lhe parecer que me queixo com razão, faça o que couber na sua autoridade, para atenuar o meu desgosto. Será o mais sensível obséquio a este seu am.°, confr. e admirador Rui Barbosa".

"Exmo. Snr. Marechal Camará, Ministro da Guerra. Meu filho João Rui Barbosa, tendo marchado ontem madrugada como voluntário no seu batalhão, caiu, cerca das 4 horas da tarde, entre D. Clara e Campinho, sem sentidos, sendo metido por soldados numa carroça, donde, tendo caído os burros, foi deixado ainda desmaiado no chão e daí conduzido por um empregado do telegrafo para a estação D. Clara, chegando aqui às 6 horas e passando a noite de cama. Creio seu organismo não comportava como estreia no exercício militar tão longa marcha. Sou obrigado a fazê-lo examinar por médicos para me declararem se poderá continuar. No entanto, rogo V. Exa. providenciar para que não se dê algum equívoco sobre o procedimento dele, que ontem mesmo, antes de vir para casa, esteve no quartel general, onde lhe disseram que podia fazê-lo. Saudações cordiais Rui Barbosa".

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(10) O original se encontra atualinenle na "Casa de Rui Barbosa", por doação do sr. França Filho, a quem devemos a gentileza da cópia que serviu à ed. deste trabalho. Rui pretendia responder ao discurso de Augusto Freitas, na Camará dos Deputados, em 30 de maio de 1908. Motivara os ataques a Alfredo Ruí, a informação deste ao l'ai, sobre fatos relacionados com o reconhecimento, pela Assembleia Legislativa da Bahia, do sucessor de José Marcelino, e da qual resultou a decisão de Rui, que, sob o ponto de vista jurídico, em que se colocava, considerou como pontos fundamentais a verificação de número legal de deputados, para a votação da reforma do "Regimento", e a impossibilidade material dos deputados ingressarem no recinto da Camará. Sobre o primeiro ponto, informou Alfredo Hui ao Pai a existência do "quorum" legal, havendo Rui, em 31 de março de 1908, enviado ao filho, então na Bahia, o telegrama, que assim terminava: "Tendo eu absoluta certeza tua veracidade teu último telegrama veio sossegar-me con-vencendo-me que indicação concernente à reforma do Regimento foi votada havendo na casa maioria legal. Por outro lado o telegrama da oposição dirigido ao Presidente da República e publicado hoje certifica só se queixar ela de haver sido negado ingresso a pessoas que a acompanhavam, confessando, portanto, que aos congressistas não se tolheu entrada. Donde se conclui que não foi desrespeitado o habeas-corpus. Estes eram os dois pontos jurídicos decisivos."

Conhecida a opinião de Rui, cujo parecer fora solicitado pelas facções í-m luta, começou êle a ser atacado pelos correligionários de Severino Vieira. Endereçou, então, ao cónego Cupertino de Lacerda, primeiro signatário dum telegrama assinado por mais 31 congressistas, a seguinte resposta, em 31 de março de 1908: "Não seria a primeira vez que a minha fraca autoridade jurídica invocada como oracular, passasse a ser nula, desde que a opinião dada não corresponde à esperança das partes." E ao jornal "A Bahia", em 5 de abril de 1908: "Repilo por injuriosos os louvores que me são dados entre enxovalhos ao nome de meu filho."

Como é sabido, o episódio motivou os mais acres ataques contra Rui. Daí as transcrições feitas, esclarecendo as justas razões que o orientaram na posição assumida, e às quais acresceremos este telegrama: "Redação da "A Bahia" (Bahia). O voto que aí acaba fulminar meu parecer antes de conhecido caracteriza violência paixões locais. Esse parecer fruto longos dias paciente estudo, onde aprofundo questão imparcialmente, ora dando ora negando razão ao governo, é em minha consciência e honra expressão fiel verdade jurídica. Injuriado agora increpação sacrificar meu passado a conveniências políticas momento perdoo acerbo gratuito ultraje. Mas sou obrigado declinar honra futuro mandato senador Bahia. Habituado não ser cor-tezão de ninguém minha independência repele o cativeiro de vida pública condenam sem ouvir, a trinta cinco anos serviços país e devoção liberdade não preservam da suspeita de a trair. Juro cumpri meu dever como homem e jurisconsulto, opinando segundo minha convicção solidamente fundamentada, e apelo dos que não me leram para os que me lerem. — Rui Barbosa."

(11) Rui, em 5 de outubro de 1908, escreveu a Euclides da Cunha, declinando da eleição, o que motivou a seguinte carta de Rio Branco a Batista Pereira, na mesma data: "Caro amigo e Senhor Dr. Batista Pereira. Euclides

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da Cunha veio hoje consternado mostrar-me a carta que recebeu do Conselheiro Rui Barbosa e a minuta da resposta que lhe dirigiu. Aparecem-me depois Mário de Alencar e Rodrigo Otávio.

Fiquei também muito penalizado com o incidente e, não podendo ir pessoalmente a S. Clemente, porque tenho estado muito ocupado e agora à noite não posso faltar à sessão do Instituto Histórico, escrevo a correr estas linhas.

Segundo notas que acabo de receber, a frequência de académicos em dias de eleição foi sempre menor do que na sessão de sábado último. À eleição de 3 de outubro compareceram 15 e recebeu-se em telegrama o voto do Conde Afonso Celso que reside em Petrópolis. O Conselheiro Rui Barbosa foi eleito por unanimidade de votos, reunindo 16. Contávamos com o voto seguro de Olavo Bilac que queria comparecer mas não pôde chegar a tempo. Também teriam certamente votado no Conselheiro Rui Barbosa se tivessem recebido aviso a tempo de que a eleição era no dia 3 os académicos Heraclito Graça, Alcindo Guanabara e Jaceguai. Seriam 20 votos, maioria absoluta de 39, incluindo Rui Barbosa. Mas a maioria absoluta exigida é a dos presentes que residam no Rio.

Para a eleição de membro da Academia marca-se um largo prazo a fim de que votem por conta ou telegrama os académicos residentes nos Estados ou no estrangeiro, mas não assim para a eleição de membros da Diretoria. O artigo 6.°, parágrafo 2.° do Regimento interno diz:

"Nos casos de vaga, ausência, ou impedimento demorado de algum dos membros da Diretoria, o Presidente proverá à substituição, cabendo essa atribuição à Academia se o caso ocorrer com o Presidente".

O artigo 17, parágrafo 1.° determina : "As eleições serão feitas por escrutínio secreto e maioria de votos, de

vendo nelas tomar parte a maioria absoluta dos membros da Academia residentes no Rio de Janeiro".

No Rio de Janeiro e Petrópolis apenas residem: Rodrigo Otávio, Lúcio de Mendonça (enfermo, impedido de compa

recer), Salvador de Mendonça, José Veríssimo, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Guimarães Passos, Afonso Celso, Rui Barbosa, Euclides da Cunha, Mário de Alencar, Inglês de Sousa, Rio Branco, Artur de Azevedo, Raimundo Correia, Silva Ramos, Souza Bandeira, Graça Aranha, João Ribeiro, Coelho Neto, Alcindo Guanabara, Jaceguai, Bevilacqua, Silvio Romero, Heraclito Graça, Alencar Araripe e Carlos de Laet. Ao todo 26. Sublinhei os nomes dos que tomaram parte no voto. Não incluindo Rui Barbosa, 25.

Os 16 votos representam a maioria, e, como mostrei, facilmente seriam pelo menos, 20 os votos. Estão no estrangeiro: Nabuco, Domício da Gama, Oliveira Lima, Magalhães Azeredo, Aluízio Azevedo, Medeiros e Albuquerque, Afonso Arinos e Artur Orlando; e no Estado de Minas Gerais, Filinto de Almeida e Augusto de Lima. Esses, pelo Regimento interno, não poderiam votar.

Machado de Assis foi eleito pela primeira vez Presidente a 4 de janeiro de 1897 por 13 votos, estando presentes 14; pela segunda vez a 7 de dezembro de 1897, por 10 votos, e pela terceira vez e última em Novembro de 1907, por 10. A sossão inaugural da Academia, em 20 de Julho de 1907, só compareceram 17 académicos.

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Rogo-lhe, pois, o favor de ver, em representação minha, se consegue que o nosso Conselheiro e amigo nos faça o favor de modificar a resolução anunciada. Afetuosamente seu Rio Branco".

Por fim, Rui acedeu, enviando a Euclides da Cunha, ainda no dia 5 de outubro, o seguinte telegrama: "Não há remédio senão render-me. Estou à disposição da Academia."

Rui permaneceu na presidência, até 8 de maio de 1919, quando se considerou desligado da Academia, à qual somente voltou por ocasião da celebração do cinquentenário de Castro Alves, em 6 de julho de 1021. Ao dr. Miguel Couto assim participou o seu afastamento: "Rio, 26 de maio de 1919. — Meu caro amigo Dr. Miguel Couto. — Tcndo-me vislo obrigado, por considerações de que dei conta à Academa, numa caria a que ela não deu a devida publicidade, tendo-me visto obrigado, repito, por essas considerações, invencíveis ante a minha consciência, a desligar-me dessa associação, tive o desprazer grandíssimo de me achar privado, assim, da honra, tão cara ao meu coração, de receber ali o meu querido c ilustre amigo. Ninguém, pode estar certo, o sentirá mais do que eu senti, sinto o sentirei. — Mas é do meu fadário que os desgostos, na minha vida, sempre venham em chorrilho, e só por exceção rara me aconteça cumprir-se-me um desejo. — Dada esta explicação ao meu bom amigo, peço-lhe me permita devolver-lhe, com esta, os papéis, que me confiara para o discurso. — Queira apresentar à Exm. a senhora as homenagens e aceitar as expressões de afeto do seu admi-íador e amigo obrigadíssimo — Rui Barbosa".

Do interesse que teve pela vida da Academia, podemos inferir pela seguinte carta, de 21 de julho de 1912: "Meu caro col.° Dr. Vicente de Carvalho. Não me leve a mal o apelo, que, como presidente da Academia de Letras, lhe dirijo. Na próxima eleição, em que se tem de provar à vaga do B. do Rio Branco, a questão se vai estabelecer entre os nomes de Ramiz Galvão e Lauro Miiller.

Este, evidentemente, não seria candidato, se não fosse ministro, contando, como tal, com as fraquezas da época e com os votos coactos de oito ou dez diplomatas ou parentes de diplomatas nossos, que nessa corporação têm assento. Aquele se recomenda por excelentes serviços às letras, e só não pertence à Academia desde a sua fundação, porque não quis. Sendo assim que se põe o litígio, a vitória da candidatura ministerial seria, a meu ver, um triste sintoma do tempo e golpe na reputação da Academia.

Não sei como pensará o meu eminente confrade e amigo. Mas, se me acha razão, rogo-lhe não parta para a Europa, sem me enviar, escrito, o seu voto, que poderá decidir do pleito.

Nesse caso, aceite desde já os agradecimentos do seu am.° e col.a obr.° Rui Barbosa".

Também interessante, do ponto de vista das relações de Rui com a Academia Brasileira de Letras, é esta carta em que se associam os nomes de Rui, Rio Branco, e Machado de Assis: "3 de outubro de 1898. Exm.° Sr. Dr. Rui Barbosa. Tendo recebido a carta de V. Ex. a de 1 do corrente, relativa ao seu não comparecimento à sessão da Academia Brasileira de Letras, para a eleição de um membro que preencha a vaga deixada pelo Conselheiro Pereira da Silva, dei conhecimento dela aos académicos reunidos.

Segundo V. Ex. a previa o voto por carta não podia ser admitido, mas as palavras que V. Ex.a , nessa hopótese, escreveu afirmando a sua home-

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344 A VIDA DE RUI BARBOSA

nagem ao merecimento do Barão do Rio Branco, foram devidamente apreciadas pela assembleia e vão ser comunicadas àquele eminente brasileiro, que se desvanecerá de as ter merecido de tão alto espírito. Como V. Ex. a

saberá a esta hora, o Barão do Rio Branco foi eleito por unanimidade. Sou, com a maior consideração e apreço, De V. Ex. a ad.or at.° e obr.°

—Machado de Assis". (12) Cf. carta de Rio Branco a Rui, em 25 de outubro de 1908. (13) Afonso Pena, em 14 de novembro de 1908, escreveu a Rui con-

vidando-o para a solenidade da entrega da medalha: "Meu caro Rui Barbosa. Desejo entregar-lhe amanhã, depois da recepção, a medalha que o Governo mandou cunhar para ser oferecida ao meu Amigo, em homenagem aos inestimáveis serviços que prestou à Pátria na Conferência da Paz de Haia. Poderá comparecer. Receba muitos abraços do Col.B Am.° velho Afonso Pena".

O discurso de Rui, após a solenidade, está publicado in "Novos discursos e conferências", p . 245.

No Arq. C. R. B. existe o autógrafo de Rui, abaixo transcrito, resumo do discurso que teria pronunciado em resposta a um brinde de Afonso Pena, possivelmente em jantar por este oferecido em honra do embaixador do Brasil em Haia.

"O sr. Rui Barbosa não tem expressões, com que agradecer ao seu eminente amigo o ilustre sr. dr. Afonso Pena a alta distinção da honra que lhe faz com esta rara demonstração de apreço, e bem assim as suas palavras, tão singularmente generosas.

Ditas do alto da autoridade moral, inerente à sua pessoa e da sua elevada situação aluai na magistratura suprema da nação, a mais subida recompensa não poderia aspirar, da parte do Governo que representou, o embaixador do Brasil em Haia.

Se êle tanto relutou em se encarregar dessa tarefa, é que não acreditava nas suas forças, para corresponder a confiança tamanha como com que então o honrava o presidente da república. A declaração, senão ainda lhe excedeu a espectativa, lhe compensa amplamente, as inquietações, com que, no decurso daquela tarefa, o afligiu o vivíssimo sentimento da sua grave responsabilidade.

Entretanto, insistindo num testemunho cuja reiteração lhe é muito grata, notara, mais uma vez, que a esses resultados, na importância dos quais tanto se compraz o povo brasileiro, não poderia ter chegado o seu representante na Segunda Conferência da Paz, se não fosse a comunhão e a permuta contínua de sentimentos, em que lhe foi dado estar sempre, no desempenho de tão árdua missão, com o ilustre ministro das relações exteriores, cujos serviços ao país o tornam hoje um homem necessário na sua pasta, e com o chefe do Esatdo, cujo apoio nunca lhe faltou.

O sr. Rui Barbosa considera com prazer na atração, que tem aproximado a sua vida à do seu ilustre amigo o dr. Afonso Pena. Começaram ambos, para o serviço do país, nos bancos de um ano jurídico hoje famoso pelo número de homens notáveis que tem dado à nação, e, depois de frequentes contactos, com alguns raros desvios, num e noutro regímen, acabaram juntando-se, é de esperar que difiaitivamente, num momento tão sério e solene para os dois antigos condiscípulos, um exercendo o governo da

SOB OS MUROS DE TRÓIA 345

república, o outro incumbido por êle de representar, na assembleia universal das nações, a civilização, a honra e as aspirações do Brasil.

Retribuindo, sob estas impressões, o brinde com que o presidente da república o acaba de honrar, faz votos o sr. Rui Barbosa para que essas bênçãos, de que s. exa. falava, recaiam abundantes sobre êle, o seu lar, a sua família, o seu futuro, de que tanto deve esperar o país."

(14) Cf. Rui Barbosa, discurso "As Classes Conservadoras", em 8 de março de 1919.

(15) V. discurso de Tavares de Lira, no Senado, em 19 de junho de 1914 e Carvalho Brito, "O civilismo em Minas", (Rio, 19-19), pg. 18.

(16) Cf. carta de Rui a Afonso Pena, em 18 de dezembro de 1908. Em 10 de dezembro, como desdobramento das cartas que em 2 e 3 do mesmo mês dirigira, respectivamente, a Pinheiro Machado e Batista Pereira (V. "Correspondência", p . 188 a 190), escreveu Rui a Pinheiro declarando-lhe não ser candidato à Presidente da República, c apontando os perigos que surgiriam para o país com a continuação dos mesmos rumos políticos. Três dias depois (J. Mangabeira, "Rui o estadista da República", p . 19) informava Azeredo a Rui que Afonso Pena escrevera ao cunhado, senador Feliciano Pena, pedindo-lhe dizer a Rui que precisava falar-lhe. Retrucou Rui a Azeredo, em missiva de 15 de dezembro, dizendo-lhe que "recado contra recado" podia informar que somente atenderia a chamado direto do Presidente, conforme sempre fora hábito deste. Daí o chamado direto de Afonso Pena a que Rui respondeu com a carta de 18 de dezembro acima mencionada.

(17) Cf. carta de Afonso Pena a Rui, em 20 de dezembro de 1908, in Arq. C. R. B. Afonso Pena, em 20 de maio, escreveu a Rui: "O general Pinheiro Machado procurou-me segunda-feira e expondo os fatos políticos que se desenrolaram a propósito da sucessão presidencial, me disse que o marechal lembrara o nome do barão do Rio Branco, acrescentando que alguns políticos, cujos nomes declinou (general Glicério, e Drs. Lauro Múller e Francisco Sales) não aceitavam a indicação. . . Não me cabia porém aceitar ou recusar a sua candidatura mesmo porque o general Pinheiro Machado não me fazia uma consulta e sim me punha no fato dos acontecimentos, conforme declaração que me fêz." Ao que Rui respondeu no dia seguinte: "ficou assentado formalmente entre mim e o senador Pinheiro Machado, que ele com V. conversaria a este respeito (candidatura Rio Branco), solicitando o seu assentimento. Dias depois se me comunicou havê-lo V. recusado. Como imaginar eu que esta não fosse a expressão da verdade?" Maria Mercedes Lopes de Souza, obr. cit. pgs. 211 e 212.

(18) Carta in Arq. C. R. B. (19) Cf. artigo de Rui sob o título "Um conselho desatendido", em 15

de junho de 1909, João Mangabeira, ("Rui, o estadista da República", p . 122) é de opinião que a recusa de Rui foi motivada pelo orgulho, "o seu defeito capital".

(20) Cf. carta de Rio Branco a Rui, em 22 de maio de 1909, in Arq. C. R. B.

(21) V. discurso de Pinheiro Machado, no Senado, em 14 de junho de 1914.

(22) Idem. (23) Jean Jacques Brousson. "Itinéraire de Paris à Buenos Aires", p. 194.

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346 A VIDA DE RUI BARBOSA

(24) São os sr. Lauro Miiller e Francisco Sales. (25) V. discurso de Rui, no Senado, em 13 de novembro de 1914. (26) Carta de 19 de maio de 1909, que motivou outra de Afonso

Pena a Rui, no dia seguinte, retificando a parte referente à candidatura de Rio Branco. No dia 21 de maio dirigiu Rui ao senador Francisco Sales a seguinte carta, recusando participar da convenção destinada a escolher o candidato: "Respondendo ao convite, que V. Exa. anteontem dirigiu, por intermédio, à representação baiana, para tomar parte na reunião política de amanhã, onde se intenta deliberar por forma definitiva sobre a seleção dos candidatos à presidência e vice-presidência da República, venho satisfazer à delegação que, a tal respeito, me foi confiada.

Com erceção de três votos, que respeitamos, dois na câmara e um no senado, estou autorizado a declarar que a represantação da Bahia, nas duas câmaras, bem como os representantes da opinião política ora dominante naquele Estado professam completa solidariedade com as ideias expendidas na minha carta de 19 do corrente, publicada em toda a nossa imprensa, acerca desse assunto, e por este motivo se abstêm de comparecerem. Cordiais cumprimentos."

(27) Como consequência dos acontecimentos políticos, Rui, no dia 22 de maio, renunciou a vica-presidência do senado, que unanimemente a recusou, por proposta de Pinheiro Machado, que então exaltou as "extraordinárias qualidades de coração e de espírito" de Rui.

(28) Rui, em 18 de junho de 1909, escreveu a Miguel Calmom e Davi Campista, ambos ministros de A. Pena, pedindo declararem se não era verdade haverem os médicos atribuído o falecimento do Presidente da República a "traumatismo moral", conforme afirmara ao fazer, no Senado, o necrológio de A. Pena. Ambos responderam afirmativamente.

(29) Rui, em carta do 12 do agosto de 1909, dirigiu um apelo a Rodrigues Alves, então em Guaralinguetá, para que aceitasse a candidatura, e assim concluía: "O seu passado o obriga a não recusar este sacrifício ao país, num pleito em que o prestígio do seu nome seria mais um grande penhor da vitória da boa causa. Eleito já uma vez por um partido, sê-lo-ia V. Ex . a agora pela nação, em cuja companhia não se sabe qual maior honra seja, se a de vencer, ou ser vencido." Rodrigues Alves recusou por carta de 13 de agosto in Arq. C. R. B. Sobre a evolução dos acontecimentos, após a morte de A. Pena, é interessante esta carta de Rui: "Exm.° Am.° Dr. Bernardino de Campos. Conversando, no dia da morte do Dr. Afonso Pena, à noite, no palácio do Catete, com o Dr. Nilo Peçanha, me assegurou este, em termos solenes, que o seu governo, cingindo-se aos problemas de admiração, se absteria rigorosamente de intervir na luta política ora agitada sobre a questão das candidaturas presidenciais, e guardaria a tal respeito a mais estrita neutralidade.

Bem impressionado com estas declarações, pareceu-me, entretanto, logo depois, que com elas não estava de harmonia a escolha, por S. Exa. feita, de três signatários do manifesto da convenção de maio, para as três pastas civis desocupadas.

Mas, no dia 17 de junho fui procurado em casa pelo Dr. Leoni Ramos, chefe de polícia do novo governo, o qual, em nome e por incumbência do Dr. Nilo Peçanha, me vinha "dirigir um apelo", para que eu o ajudasse com a minha intervenção, que êle reputava eficaz, junto ao ilustre gover-

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nador e aos chefes políticos de S. Paulo, em reforço do empenho, que fazia o presidente da república, pela entrada, no seu ministério, de um secretário paulista. Escusei-me a princípio, alegando a fraqueza do meu valimento e o meu desejo de não ingerir no assunto. Mas, insistindo o Dr. Leoni Ramos em que eu "prestasse esse serviço" ao meu amigo e à delicada situação do país, acabei por lhe dizer que refletiria, e procederia como a reflexão me aconselhasse.

Refletindo, com efeito, considerei que, a não serem sinceros os protestos de neutralidade tão reiterados pela nova administração, não se conceberia o seu apelo ao homem mais comprometido na resistência à candidatura Hermes e ao Estado que nessa resistência mais sobressaia, a fim de trazer do próprio seio do governo desse Estado um membro ao gabinete do sucessor do conselheiro Pena.

Dadas tais circunstâncias, eu não podia ver nesse convite senão uma garantia da prometida neutralidade; e, sendo assim, me parecia que o não podíamos rejeitar, sem levarmos a uma exageração inútil o espírito combatente. Isso tanto mais quanto aberta nos ficara a porta, por onde entrássemos, para sairmos, sem descer, nem incoerência, em se quebrando essa imparcialidade, que nos asseguravam, no pleito da sucessão presidencial.

Cedendo a estas razões, foi que enderecei ao Dr. Albuquerque Lins os meus dois telegramas de 17 e 18 de junho, que V. Ex.° e o Dr. Galeão Carvalhal me afirmaram haver cooperado decisivamente para a aquiescência dos nossos amigos de S. Paulo aos desejos do Dr. Nilo Peçanha.

Com surpresa, porém, acabo de ver, lendo, no Jornal desta manhã, a sua Gazetilha, que ao almoço oferecido ontem pelos chefes do hermismo ao Dr. Rodolfo Miranda e ao Dr. Vilaboim, como membros, e um deles presidente, da Junta hermista em S. Paulo, compareceram ocupando os lugares centrais, o ministro da fazenda e o da viação. Dando conta do que ali passou, consigna essa notícia, evidentemente de autenticidade oficial, haver o orador eleito, ao traduzir a expressão dessa homenagem, declarado que ela traduzia de um modo franco e sincero o aplauso à atitude assumida, no Estado de S. Paulo, em relação à questão das candidaturas presidenciais, pelos dois eméritos cidadãos a que saudara.

Ante um espírito como o de V. Ex. a não preciso de fazer a estas palavras, subscritas pelo governo ahial na pessoa dos ministros presentes, o comentário político inevitável. Sou. porém, obrigado a dizer, em desempenho da minha responsabilidade, tão envolvida no caso, que, depois delas, julgo abertamente retiradas as garantias da neutralidade, que nos davam, e cortada ao Estado de S. Paulo a entrada, em que assentira, para o novo governo.

Nesse Estado, V. Ex. a e os nossos amigos resolverão o melhor. Mas eu faltaria ao meu dever, se lhes não desse lealmente a minha opinião, que estas circunstâncias não podiam deixar de mudar inteiramente. Com a mais elevada estima e consideração De V. Ex. a Am.0 af.so e mt.° obr.:" Cópia in Arq. C. R. B.

(30) Cf. carta de Azaredo a Rui, datada de agosto, in Arq. C. R. B. (31) Cf. carta de 30 de agosto de 1909. Não custou, no entanto, que a luta política se transformasse numa

desavença pessoal. Azeredo imputara a Rui a autoria de alguns conceitos pouco amáveis publicados pelo "Diário de Notícias", jornal que fazia a

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propaganda da candidatura de Rui. E este, que se encontrava numa estação de águas, retrucou, em 15 de abril de 1910, com aspereza: "Encaro o seu telegrama como uma provocação. Faz muito bem em completar sua obra. Sabe melhor do que ninguém que nunca tive nem tenho a mínima intervenção no "Diário de Notícias", conforme repetidas declarações deste. Veja a diferença de procedimentos; nunca lhe pedi conta dos ultrajes com que "A Tribuna" e o "O Malho", órgãos pessoalmente seus, de sua propriedade e direção e meio de subsistência sua, me têm afrontado há meses, limitando-me a cortar nossas relações que se tornaram impossíveis."

(32) Carta de 15 de fevereiro de 1910, in Arq. C. R. B. (33) Cf. carta de Getúlio das Neves a Rui Barbosa, in Arq. C. R. B. (34) Cf. carta de J. Nabuco a Rui em 4 de fevereiro de 1909, in

Arq. C. R. B. (35) In Anais do Congresso Nacional, "Apuração da eleição do Pre

sidente", vol. II, p. 18, Rio, 1911. (36) Cf. Batista Pereira, prefácio à 2.a ad. das "Cartas de Inglaterra". (37) Cf. "A Gazeta de Notícias", de 2 de março de 1910.

«

XXIV — A GUERRA

Quatro anos há que nesta guerra quase exclusivamente se absorvem todos os meus cuidados.

Itm.

( ' O M O sempre acontecia após um revés, renovou-se na vida de ^ * Rui o ciclo, que já devia ser familiar: a fadiga — a desilusão — e, depois, a volta ao combate.

Em dezembro, convalescente, partira para Campinas: — na solidão de Rio das Pedras, a Fazenda que pertencera ao cons. Albino, cicatrizariam os ferimentos. Tinha, porém, a alma amargurada, e pensava ser tempo de encerrar a carreira política, vol-tando-se para aquelas antigas ambições de tranquilidade. Carta ao cunhado: "Tenho-me matado por meu país, e a coroa da minha carreira é a perseguição... Que espero eu mais?" Ganharia o pão como simples advogado, — profissão em que se tornara o primeiro no país — cuidaria dos livros e, nas horas vagas, trataria das roseiras. A paz dum refúgio, onde, aquecido pelo carinho de Maria Augusta, viveria os últimos dias dum solitário desiludido. A ideia era romântica e seduzia-o nessas horas de abatimento.

A uma das filhas êle escreveu nessa ocasião: "Convcnei-me da minha inutilidade à pátria, e todo o meu sonho, hoje, é eon-centrar-me na felicidade íntima dos meus, devotando aos filhos e aos netos o que, até agora, tão estèrilmente busquei dedicar ao bem dos meus concidadãos." (1) Palavras de quem se sentia traído pela vida. Agora, nada mais além dum fim suave. Mil vezes investira contra a violência e as injustiças. Esforço vão. Diante da cabeça sempre renascente da Medusa tinham sido breves os triunfos e estava cheio de tédio. "Já nie cansa esse inútil trabalho de Sisifo", (2) comunicara Rui a um amigo. E sofria, representando com tão mau êxito o papel que o destino lhe reservara. Mas, como se o coração ainda se voltasse para o futuro, telegrafara resignado ao genro, Batista Pereira, que acabava de

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ÍÍ50 A VIDA DE RUI BARBOSA

ser demitido: — "O mal é a véspera do bem". (3) Nisso mostrava-se incorrigível.

Entretanto, tudo quanto disse ou escreveu por esse tempo demonstra quanto era sincero o desejo de retdrar-se da vida pública. Ao empossar-se, alguns meses depois, em maio de 1911, como membro do Instituto dos Advogados, as suas palavras não haviam perdido o tom de desencanto. E como sempre — velho enamorado da dôr, encontrando nos seus momentos de desespero, ferido por algum ataque ou alguma desilusão, os temas prediletos ao seu espírito, — o artista escreveu uma das suas páginas mais emocionantes. Ao recolher as velas laceradas pelos temporais, êle assim resumira os resultados na jornada ingrata: "Os frutos da minha vida são escassos e tristes, bem que os seus ideais tenham sido grandes e belos. Muito é o bem que tenho aspirado, mas colhido muito pouco". Confissão triste para quem na mocidade se fizera ao mar atraído por sonhos generosos. No crepúsculo da vida, o navegante tornava decepcionado e vencido.

Pensava até em renunciar a cadeira de senador, afastando-se definitivamente da vida política. E dizia, no manifesto que chegou a escrever: "Para mim, na atualidade, só existiam duas alternativas: o da lida infatigável na oposição, ou o da reforma por invalidez.

A minha saúde não me consente a primeira. Tenho que me conformar, pois, à segunda, submetendo-me à vontade de Deus, cujos caminhos só Ele conhece. O posto que agora não me é dado ocupar com a devida atividade, toca a outros, que se sintam válidos, para o desempenhar.

Devolvo à Bahia, com a última expressão do meu reconhecimento, o meu mandato de senador, e recolho-me, para o resto dos meus dias, à vida particular.

Deus tenha em sua misericórdia a sorte de nossa Pátria, que é a de meus filhos." (4)

Como sempre, e em vão, depois das procelas, o lutador sonhava com o repouso, a tranquilidade, a paz.

* 6 O

Aquela ambição de paz não se poderia, no entanto, realizar. Na primeira oportunidade, Rui reapareceu na trincheira.

A campanha presidencial deixara fermentos e, mal se iniciara a administração do marechal Hermes, o Rio tremera ante duas revoltas de marinheiros, contra os quais fora brutal a desforra do governo. Muitos deles, metidos em enxovias, onde apenas podiam ficar de pé, sucumbiram de fome e sede, enquanto outros

A GUERRA 351

loucos, lacerando-se com os dentes, haviam sido sufocados com sacos de cal despejados, para abafar-lhes os gritos de agonia. A cena lembrou a Rui o suplício de Ugolino, devorando os filhos na Torre de Gualandi. Os sobreviventes, embarcados no "Satélite", navio que ficaria tristemente célebre, seguiram deportados para o Amazonas, e no curso da viagem, sob o pretexto de articularem a bordo uma rebelião, vários foram fuzilados.

Tratava-se de miseráveis marinheiros, mas quando soube desses fatos, Rui vibrou indignado: não pactuaria com o crime pelo silêncio. Esqueceu então os propósitos de retirar-se da vida pública e voltou conscientemente ao seu papel de Sisiío. Em dias sucessivos, da tribuna do senado, exigiu a punição dos culpados numa linguagem de energia sem par. Choveram as cartas anónimas, ameaçando-o de morte, se insistisse no assunto. Nada, no entanto, o deteve. Despertada pelos discursos, a nação também reclamava o castigo dos culpados. E tanto cresceu o clamor que o governo se viu forçado a instaurar um inquérito, para averiguar quais os responsáveis. Providencia anódina, mas representou a vitória contra os que pensavam sepultar o crime no esquecimento.

Depois desse primeiro passo, tendo voltado à luta com armas e bagagens, Rui seria durante todo o período do governo de Hermes, o centro da oposição mais vigorosa e atroz suportada por um presidente da República. Nos discursos da propaganda êle predissera graves provações para o país caso Hermes ascendesse à presidência e via, agora, realizarem-se os vaticínios. Conven-cia-se assim de ter sido o homem a quem não haviam querido escutar, mas que tudo previra. "Meu pai, afirmou certa vez, foi assim uma espécie de que eu tenho sido, um homem que viveu a protestar sem ser atendido". (5) Por que não o haviam escutado? Realmente, Hermes não fora feliz na gestão dos negócios públicos. Sem ânimo para resistir aos amigos, fraco quando devia ser enérgico, impetuoso quando necessitaria contemporizar, os seus erros provinham em grande parte da generosidade do coração ou dos impulsos do temperamento. Encarnava o tipo do bom homem, simples, simpático, e chegando a um posto para o qual não tinha vocação. A crise financeira atingira a tal ponto que não dispondo o Tesouro de recursos para pagar em Londres um "coupon" da dívida externa do país, os amigos do governo, querendo poupá-lo a essa vergonha, cotizaram-se para satisfazerem o compromisso.

Politicamente, para atender aos correligionários, Hermes consentira na deposição violenta dos Governadores de alguns Estados. Atitude irritante e que o impopularizou totalmente. Na

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Bahia, onde os partidários de Rui detinham o governo, a capital fora bombardeada e o governador Araújo Pinto vira-se forçado a renunciar. (6) Era a extinção dos últimos vestígios de legalidade. E Rio Branco já doente, chocado com o fato que atirava o Brasil entre o inquieto caudilhismo sul-americano, falecera pouco depois (10 de fevereiro de 1912). Nas ruas comentara-se o desgosto do Barão. E, quatro meses mais tarde, Quintino, tido como o patriarca da República, também sucumbiu. Pinheiro Machado ficava sozinho na arena.

Do morro da Graça, como Senhor absoluto a cuja vontade se dobravam o Presidente e a maioria do parlamento, Pinheiro dirigia virtualmente o país. Era sabida a ascendência que conseguira sobre Hermes e contra êle se voltavam não só os ódios furiosos dos adversários como o rancor surdo e generalizado do homem da rua, que não simpatizava com aquele Condestável de aspecto altaneiro, o largo chapéu chile, o colete de listas e a bengala, que raramente deixava de ter entre as mãos.

Todas essas coisas concorriam para que recrudescesse a impiedosa campanha de ridículo movida contra o Presidente. Tendo enviuvado, êle contraíra novas núpcias com a senhora Nair de Teffé, filha do barão de Teffé, e o sarcasmo fartara-se em todas as intimidades do marechal, da maneira mais cruel e deplorável.

Em três anos de oposição, embora se contassem algumas defecções, a popularidade de Rui tornara-se ainda maior. (7) Às suas fileiras tinham vindo reunir-se ainda elementos expressivos pela inteligência e entre estes Pandiá Calógeras, político sem vocação, mas pensador de primeira ordem. "Não é o passado que nos une, escrevera a Rui. É a aspiração de dias melhores para a nossa terra. É o esforço por conquistá-lo". (8) Outro que se destacara no combate fora o jornalista Macedo Soares, diretor do "O Imparcial", e cuja intrepidez o Mestre admirava profundamente. E, para se oporem ao "Partido Republicano Conservador", a agremiação fundada por Pinheiro, organizaram, sob a direção de Rui, o "Partido Liberal". (9)

Mas, tomara tal vulto o sentimento nacional contra o partido dominante que os próprios correligionários de Pinheiro chegaram a cogitar do nome de Rui para ser o sucessor de Hermes. Ideia impossível. Entretanto, com muita equanimidade, esquecido dos agravos sofridos, o Presidente não se opôs à solução, caso a achassem necessária para acalmar a nação inquieta. "Quando se deu a confusão política de 1913, contou, seis anos depois, no Senado, o então ministro Rivadávia Correia, motivada pela indi-

A G U E R R A 353

cação do futuro presidente da República, formando-se então a célebre coligação dos elementos opostos ao Partido Republicano Conservador, um dia, no Catete, em minha presença, o Presidente Hermes, com a maior simplicidade e naturalidade, espontaneamente, disse ao eminente chefe do Partido Conservador, general Pinheiro Machado, que se para resolver o caso político que estava agitando a nação, Pinheiro Machado entendia que o nome do sr. Rui Barbosa oferecia uma solução, não hesitasse em o adotar, que a êle marechal, isso nada afetava, pois colocava, como sempre o fizera, os interesses superiores do país acima dos seus próprios".

A atitude era nobre. Entretanto, depois de se anunciar que seria adotada por todos os partidos, a candidatura de Rui teve por si apenas os liberais, que o indicaram para enfrentar o escolhido pelo Partido Conservador, Venceslau Braz, homem de hábitos pacatos, moderado, e que nos últimos anos tivera a habilidade de omitir-se. Não tinha grandes amigos, nem grandes inimigos e, por isso, dava a todos esperanças iguais.

Não chegou, porém, a verificar-se a refrega, que todos esperavam grandiosa. Em dezembro, já prontas as conferências de propaganda que deveria pronunciar, Rui desistiu de ser candidato. (10) Contentava-se em ter sido o oráculo, que previra com tanta antecedência quanto acontecera. E no manifesto que então dirigiu ao país, juntamente com Alfredo Elis, candidato dos oposicionistas à vice-presidência, dizia, talvez satisfeito por ver realizados os vaticínios: "Vejam agora os nossos concidadãos se êle (Rui) mentia, se delirava, se exagerava, predizendo, como o fez com tanta insistência, tanta cópia de motivos e tanta confiança, que o governo Hermes seria uma catástrofe para o Brasil, a sua ruína e o seu total perdimento. A perdição e a ruína aí estão consumadas". Em seguida, depois de descrever em cores negras a situação do país, acrescentava, como se quisesse acentuar a desforra do vidente, que não haviam acreditado: "Mas o objeto da campanha eleitoral já não existe. Agora o que se disputaria, não era um governo, mas o espólio de uma casa roubada. O que há, é uma falência, económica e financeira, política e institucional, por liquidar. Essa missão não se requesta".

Depois disso Rui seguira para espairecer entre a paisagem exuberante do Rio das Pedras. (11) Foram felizes as longas horas de contemplação e a alma do romântico parecia renascer. Nessa ocasião, tendo ido assistir numa cidade próxima, Campinas, à chegada das andorinhas, que à hora do por do sol vinham em grandes bandos e de todos os pontos do horizonte abrigar-se numa

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velha casa abandonada, escreveu uma das páginas mais delicadas da sua vida.

Teriam sido, porém, melhores esses dias de vilegiatura se a tranquilidade não o fizesse lembrar-se que envelhecia. Junto a um amigo, Júlio de Mesquita, que o fora visitar, permanecera longo tempo silencioso. O olhar perdia-se no horizonte marcado pela aglomeração de pequenas colinas cobertas de matas, e onde, de espaço a espaço, se destacava o róseo das copas florescentes das palmeiras. Em que pensaria o grande homem? Afinal, quando despertou dessa abstração, disse emocionado: "Era em um lugar tranquilo e risonho como este que eu queria que Deus me fechasse os olhos para sempre". (12) A frase traía o velho enamorado da solidão, cada vez mais necessária ao seu temperamento sensível.

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Naquele dramático fim de 1914, quando a humanidade começava a assistir a uma das suas grandes guerras, os exércitos alemães às portas de Paris, Venceslau Braz assumiu o poder tranquilamente.

Duas semanas depois, em 28 de novembro, rendendo o seu tributo ao denodado batalhador, que durante quatro anos se opusera tenazmente! contra o governo impopular de Hermes, o povo acorrera em massa a uma formidável manifestação a Rui, na Avenida Central. Satisfeito, êle que raramente escrevia qualquer palavra no "Diário", anotou nesse dia: "Realizou-se hoje a grande manifestação popular a mim. Mais de 100.000 (cem mil) pessoas".

No entanto, não se tendo atravessado no caminho de Venceslau, era natural que, além dessas simpatias populares, esperasse também, principalmente para os seus amigos, uma atitude benevolente por parte do governo. Por que não chegaria a oportunidade para tirar de Pinheiro Machado a chefia política, que havia mais de dez anos a detinha vigorosamente?

Em maio, quando começou o reconhecimento dos novos deputados e senadores, verificaram-se as primeiras escaramuças parlamentares entre os correligionários de Rui e Pinheiro. Afigu-rava-se chegada a hora de decidir a partida, mas, talvez desejoso de fortalecer-se com o dissídio, Venceslau não mostrou vontade de ser a pedra de qualquer funda. Fingindo certa indiferença pelo resultado na disputa, limitava-se a responder aos que lhe falavam sobre o assunto com frases vagas, gostando de referir-se ao "respeito à vontade eleitoral", velha fórmula já desacreditada.

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Afinal, quando não se pôde mais conter, Rui escreveu ao filho, Alfredo, pedindo para conversar com o líder do governo na Câmara, o deputado António Carlos, que certamente transmitiria ao Presidente as apreensões contidas na carta. "O mistério, dizia Rui, em que continua a embrulhar-se a política do governo atual na constituição da câmara dos deputados, agora iminente, inquieta seriamente os espíritos". Êle temia Pinheiro e prosseguia em tom profético e ameaçador:

"Ora, o capitão do navio desarvorado, que luta contra as ondas roto e quase perdido, se pensa deveras no salvamento, não há de repudiar o concurso dos que avisaram da tormenta os maus pilotos e se bateram contra a rapinagem da tripulação embriagada no saque, para negociar a paz e o rumo com os malfeitores de bordo, com os piratas de casa, com os pilhantes da equipagem, que, depois de esvaziarem o cofre da nau, e passarem a mão em tudo, desde as enxárcias até os pregos da quilha, entregaram o resto da presa esburgada, à rataria dos porões, para devorar as cavernas do barco desconjuntado, e descoser-lhe a dentes as tábuas mal seguras, abrindo-lhe o costado à entrada livre dos borbotões dagua da marota.

"Esta pintura, meu filho, não é uma alucinação retórica: é a imagem da realidade que se nos desenharia para amanhã, se, verificados os rumos a que a camarilha do sr. Pinheiro Machado tem dado curso, obtivesse êle a manipulação do futuro congresso à sua feição e semelhança. Aí está donde vem o desassossego aos que desejam ao sr. Venceslau Braz quatro anos de bonança e popularidade, em vez de quatro anos de um naufrágio prolongado". (13)

Se chegou a conhecer esses painéis sombrios, Venceslau não lhes parece ter dado grande importância. Limitou-se a uma justiça de Salomão. Dividira as forças e permanecia o juiz a quem caberia resolver sempre em última instância. Com isso desagradava a ambos os contendores, mas não precisava temer qualquer deles.

Não foi longa, porém, essa situação de incerteza. Em setembro de 1916, quando ia visitar um amigo, Pinheiro caiu mortalmente apunhalado no "hall" do Hotel dos Estrangeiros. Ao receber a notícia, Rui não conteve as lágrimas, que lhe correram pelas faces. (13-A) Havia já algum tempo que os companheiros de Pinheiro receavam esse fim trágico e êle próprio lhes dissera certa vez que, se contra êle se levantasse um braço assassino, não cobriria a cabeça com a toga, como César. (14) Infelizmente, o pressentimento realizara-se.

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Rui lastimou sinceramente a sorte do adversário, contra o qual, principalmente no último ano do governo de Hermes, despejara, vingadoramente, setas embebidas de ironia. Recorrendo a fábulas e apólogos, lanceteara-o mordazmente e algumas vezes, chamado nominalmente ao debate, Pinheiro tivera de defender-se. Era o que menos estimava. No Senado, quando um após o outro se levantavam os dois contendores para tocarem os floretes, o contraste era flagrante. Pinheiro, de porte varonil, o gesto imponente e tranquilo, a farta cabeleira em caracol atirada para trás, parecia um domador. Rui, com o seu perfil de prognata, que as faces encovadas tornavam ainda mais salientes, os movimentos tímidos, pequeno, tinha por si apenas o olhar faiscante e a voz profunda e enérgica. Mas, quando as armas se tocavam, cabia a Rui a iniciativa dos ataques, enquanto Pinheiro preferia ficar em guarda, jamais respondendo os golpes recebidos sem antes evocar com certo carinho a amizade, que os unira em outros tempos, e cuja lembrança dizia conservar entre as suas melhores recordações. Mas, ao senado, a habilidade do Chefe infundia maior confiança do que a eloqúênica do Mestre.

Agora, aquele antagonista, que desejara abater, mas que talvez ainda admirasse nos seus arroubos cavalheirescos, já não existia. Mais diante dele talvez se levantasse a sombra daquele homem, que tanto o fascinara "com o seu sorriso habitual de desafio, pregueado no seu semblante seco e moreno de múmia mexicana, sob as pálpebras semicenadas de seus olhos de expressão amodorrada e sanguínea." (15) A senhora Pinheiro Machado, a D. Nhanhan, como Rui e Maria Augusta a tratavam no tempc da intimidade, êle, depois de apresentar as suas condolências, fez a mulher telegrafar. O telegrama, evidentemente redigido por êle, exprimia o que teria vontade de dizer-lhe, era terno e mostrava não haver desaparecido a antiga simpatia: "De todo o coração lhe dou os meus sentimentos pelo terrível golpe que acaba de feri-la tão cruelmente. Deus lhe dê coragem para suportar tamanha agonia com a resignação de quem não nos desampara nas maiores aflições." Apesar disso Rui recebeu muitas cartas ameaçadoras, imputando a,os seus inflamados discursos contra Pinheiro certa responsabilidade no que sucedera. Não se pode afirmar que aqueles retratos, onde o Condestável aparecia como o Gênio-do-Mal, único responsável pelas desgraças, que atormentavam o país, não tivessem concorrido para estimular o assassino. Mas a verdade é que essa ideia foi terrível para Rui e fê-lo sofrer.

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A morte de Pinheiro, substituído na vice-presidência do senado por Azeredo, podia abrir caminho para uma rápida vitória. Rui, no entanto, parece não ter tido coragem para recolher os despojos tintos de sangue. Tsso não seria digno de Aquiles e repugnou-lhe o triunfo obtido graças à desdita do adversário.

Durante quase dois anos o senado não lhe ouviu a voz. Dir-se-ia que o combate, para êle, perdera o encanto. Era-lhe, no entanto, impossível viver sem alguma luta. A refrega fazia-lhe bem. E, à medida que se foi alheando dos acontecimentos internos do país, Rui deixou-se empolgar pela guerra entre a Alemanha e os Aliados. Desde o primeiro instante da conflagração, em agosto de 1914, tinham vibrado as suas velhas simpatias pela Inglaterra. Aceitara a presidência da "Liga pelos Aliados" e no mesmo mês em que os exércitos do Kaiser violaram a neutralidade da Bélgica, convertera em libras todas as suas economias, 3.400 esterlinos.

Algum tempo depois a simpatia transformou-se em violenta revolta contra a substituição do espírito jurídico pela Kulturkampf. Ao idealista, que sonhara em Haia com um mundo governado pelo Direito, isso horrorizava. Em julho de 1915, respondendo a uma carta do príncipe D. Luiz de Orleans, neto de D. Pedro II, e que servia sob a bandeira britânica, escrevera entusiasmado:

"Creia Vossa Alteza que se alguma coisa ainda me eleva o ânimo esmorecido com as misérias de nossa política interna, é o espetáculo dessa luta de gigantes, dessas maravilhas de abnegação e energia moral, esse patriotismo de Titães, que parece terem acabado, realmente, de roubar o fogo do céu, para alimentar o da liberdade humana, ameaçada pelas potências tenebrosas da mais horrível das barbarias". (16) Torturava-o a perspectiva de assistir à ruína da civilização jurídica, que sempre o inspirara e de que fora um dos mais eloqiientes pregadores. E, como um artista defendendo a sua própria obra, não podia compreender a existência de homens impassíveis ante o aproximar da noite.

Mas, que podia fazer? Que eco teriam as palavras de um homem sem qualquer parcela de poder? Quase em silêncio, Rui continuou a acompanhar o drama. Esperava a oportunidade para também carregar a sua pedra. E, embora demorasse um pouco, a oportunidade chegou: em julho de 1916, festejando a Argentina o centenário da sua independência, o Brasil escolheu-o para seu embaixador nas festas comemorativas.

Em Buenos Aires, o embaixador ficou no seu elemento. Uma alta tribuna. Um grande auditório. E êle, o tímido, o homem

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calado da intimidade, a falar interminavelmente. Quando tinha essas coisas ao alcance, sentia-se forte, e por isso mesmo feliz.

Tudo estaria, porém, muito aquém da sua ambição, se, como um embaixador qualquer, deixasse as roseiras de S. Clemente, para ir à Argentina dizer algumas palavras protocolares e amáveis, que logo se esquecem. Êle tinha um plano bem mais grandioso. No programa das homenagens que lhe deviam ser tributadas figurava uma recepção na Faculdade de Direito de Buenos Aires, e Rui preparou uma conferência, que seria sensacional. Sensacional, como êle gostava.

Realmente, a 16 de julho, em seguida ao banquete que o presidente La Plaza lhe oferecera nesse dia, Rui, no grande salão da Faculdade, sentado entre o chanceler Murature e o vice-pre-sidente da Faculdade, Benito Vilanueva, recebeu das mãos do decano Adolfo Orma o título de membro honorário, conferido pela Congregação. "É privilégio dos grandes mestres, estarem sempre presentes, com as suas ideias, nas deliberações dos corpos científicos", dissera o decano ao entregar-lhe o diploma. E os aplausos da assistência ratificaram as suas palavras.

Veio, então, a hora aguardada havia quase dois anos. O momento de entrar cm cena, e que acariciara com volúpia. Como um verdadeiro ator, plenamente convencido do seu papel, Rui nada esquecera para o maior êxito da oração. Conservara o maior sigilo em torno do tema da conferência c íizera-a traduzir para o espanhol, a fim de que nada sofresse o efeito imediato sobre o auditório.

Foi hábil o seu começo. Lembrando o exílio na Argentina, Rui invocava Alberdi: "Yo dejé mi país en busca de la libertad de atacar la política de su gobiemo, quando ese gobierno casti-gaba el ejercicio de toda libertad como crimen de traicion a la pátria". E durante três horas e meia, com a abundância que lhe era peculiar, as ideias revezando-se com as imagens, o orador desenvolveu a sua tese contraria à conservação da neutralidade em face da luta em que se digladiavam duas civilizações antípodas. Ao Ceda jus armis germânico, opunha o Cedant arma togae em que se formara o seu espírito de jurista. Também lembrou Haia: jamais poderia olvidar as esperanças acalentadas sob as ogivas de Bidenhof. Mas nestes trechos está o âmago das ideias, que então sustentou:

"Desde que a violência pisa aos pés arrogantemente o código escrito, cruzar os braços é servi-la. Os tribunais, a opinião pública, a consciência não são neutras entre a lei e o cr ime. . . A neutra-

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lidade inerte e surda-muda cedeu a vez à neutralidade vigilante e judicativa. Renunciando a essas funções, tão benignas, tão salutares, tão conciliadoras, a neutralidade atual cometeria o mais lamentável dos erros; imolaria ao egoísmo de uma comodidade passageira, de uma tranquilidade momentânea e aparente, o futuro de toda a espécie humana, os interesses permanentes de todos os Estados."

O discurso teve enorme repercussão. Enquanto falava, Rui pudera observar a simpatia com que o escutavam o chanceler Murature e o Núncio Apostólico, "cujos aplausos, disse mais tarde, não cessaram de me animar". O próprio Zebalos, com quem tivera outrora algumas turras, não se esquivou de escrever palavras de admiração:

"Nos seus escritos, nos seus discursos, na sua conversação, Rui Barbosa surpreende pela variedade e expressões assombrosas das suas leituras: tudo êle sabe e tudo diz incsgotàvelmente e com imagens inesperadas; e como a sua erudição não é apenas variada, mas também profunda, merece o título de sábio."

A oração, no entanto, ecoou bem mais longe. Na França, Clemenceau definiu-a numa frase lapidar: "não pode haver neutralidade entre o direito e o crime". E da Europa cidadãos nor-te-americanos telegrafam ao presidente Wilson, ainda vacilante por esse tempo, concitando-o a seguir o caminho indicado em Buenos Aires. Enfim, tudo correra às maravilhas. Tal qual êle imaginara.

Agora o reverso da medalha: Rui esperava regressar ao Brasil cercado por uma auréola unânime de aprovação, mas isso não aconteceu. Interpelado pela Alemanha, o Brasil desculpara-se alegando não ter qualquer responsabilidade nas palavras que Rui proferira como simples jurista. Era exato e por isso mesmo não cabiam as satisfações pedidas. Aliás, Rui fora o primeiro a declará-lo ao agradecer à Faculdade de Buenos Aires: "Não é o embaixador do Brasil, cuja missão, além do mais, está concluída, que recebestes e elegestes membro honorário do vosso corpo docente: é, unicamente, o jurista". Contudo, o chanceler Lauro Muller, de descendência alemã, pouco afeiçoado a Rui e ainda menos aos Aliados, fizera as agências telegráficas ligadas à chancelaria espalharem a notícia pelo mundo. Sobre o embaixador ficava a marca do arranhão, e isto o atormentou. A Macedo Soares êle escreveria algum tempo depois: "Nunca entre os mais duros trabalhos da minha vida política, tão farta de experiências amargas, sofri tão dolorosamente". (17)

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Seria, porém, necessário desconhecê-lo para não prever o que aconteceria. Êle, que nunca deixava passar esses motivos para marcar com o sofrimento ou a injustiça os discursos do Apóstolo, não mais abandonaria o campo. E, como se lhe tivessem atirado uma luva, aceitou o desafio. Estava furioso e a imaginação do grande tímido começou a trabalhar. Concebia-se humilhado, espe-sinhado, e a reação surgia violenta, aos borbotões. Agora é que iria começar.

Nesse ínterim, como se quisessem trazer algum conforto ao amigo, que padecia pela causa comum, intelectuais franceses pediram a Rui para visitar os campos de batalha. "Uma vez mais, dizia a mensagem que lhe dirigiam, fostes o interprete ardente, o defensor fiel desses princípios de dignidade, de justiça, e de direito, pelo triunfo dos quais o nosso povo trabalha, sofre e combate. . . Permiti, pois, que vos peçamos para suspender os vossos trabalhos e virdes, durante algumas semanas, associar-vos à vida de nosso país e de nossas armas." Subscrevia o convite a flor do pensamento francês. Entre outros, Henri Bergson, Paul Descharnel, Emile Boutroux, Antonin Dubost, Gabriel Hannotaux, Etienne Lamy, René Doumic, Liard, e Henri Robert. (18) A lembrança sensibili/.ou-o, e Rui já se podia imaginar percorrendo as trincheiras ao lado de Clemenceau. A Águia ao lado do Tigre. Era impossível esquivar-se a esta prova cativante de estima. "Não posso recusar à França, respondeu, exceto em caso de moléstia". (19) Parecia adivinhar. Realmente, a saúde, que nunca lhe fora boa, impediu-o de transportar-se para o cenário da guerra.

Continuaria, entretanto, a lutar do outro lado do Atlântico. Ferido, a sua palavra adquiria vigor crescente. Ante qualquer oportunidade ei-lo a clamar contra "os hunos", destacando-se como o grande lider do movimento contrário à neutralidade. Não descansará antes de alcançar o objetivo. E à opinião pública emocionada êle divulga a obra de Tanneberg, "Gross Deutschland", onde aparecia um mapa da América do Sul em 1950, considerando germanizada nessa época a parte meridional do Brasil. A indignação contra o livro foi profunda. E seria impossível esconder que o povo, na sua grande maioria, dava sinais de estar fascinado pelo verbo candente do jurista.

Naturalmente, ainda havia uma parte do país, que receava a guerra. Mas, torpedeado em abril de 1917 o vapor brasileiro "Paraná", o governo viu-se forçado a interromper as relações diplomáticas com a Alemanha. E Lauro Múller, cuja política de neutralidade malograra, teve de exonerar-se, sendo substituído por

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Nilo Peçanha, agora em plena harmonia com Rui. Contudo, sempre sonhador, Rui já tinha as vistas lançadas para mais longe e começava a antever o mundo liberal e justo, que surgirá do incêndio. Agradecendo a manifestação que lhe foi feita para celebrar o rompimento volta-se para o amanhã. "Deus não desencadeou a conflagração para consumir o género humano, mas para o salvar. Da grande calamidade vai emergir a grande renovação . . . Cairão os governos do arbítrio e surgirão os governos da lei. Ontem a Rússia (o governo democrático de Kerenski acabara de tomar o poder). Amanhã a Alemanha. Depois outros." Indiferente às recompensas imediatas, considerando a vida alguma coisa de profundamente moral, Rui, mais ou menos por esse tempo, repetia o versículo: "Todo o bem que fizerdes do Senhor receberás". E continuava a brandir a espada do Apóstolo.

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Em maio de 1917, circulando rumores de que Venceslau convidaria Rui para chefiar uma embaixada especial aos Estados Unidos, "O Malho", revista humorística muito em voga, publicou um desenho representando uma farmácia onde os frascos, trazendo a indicação de "uso externo", lembravam as vitoriosas embaixadas de Rui, que, de fisionomia aborrecida, recusava a missão, dizendo: "Aqui dentro nada me dão que preste!. . . Já estou farto disso!" Venceslau procurava, porém, convencê-lo e argumentava: "Tenha paciência. Faça mais esse sacrifício de grande medicamento... para uso externo!"

Caricatura verdadeira. Dolorosamente verdadeira. Receosos de que viesse a ser o sucessor de Venceslau, havia já algum tempo que os adversários de Rui faziam correr a notícia da sua incapacidade para governar a nação. Reconheciam-lhe o talento extraordinário, a erudição rara, os êxitos magníficos alcançados ao representar o país no estrangeiro, mas concluíam proclamando a sua ineficiência como administrador. Seria um perigo, diziam, confiar-se a sorte do Brasil àquele visionário erudito: como certos medicamentos, êle apenas servia para "uso externo". Achava-se graça nessas coisas ditas em tom de pilhéria. Mas, ao fim de algum tempo, surtindo o efeito desejado, já havia quem não percebesse a malícia e julgasse tratar-se duma verdade.

O fato é que nas rodas políticas, onde Rui fora sempre mais admirado e temido do que estimado, cuidava-se ainda uma vez de preteri-lo. Era a desforra daqueles homens utilitários e para

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quem a vida seria melhor e mais cómoda sem a existência daquele censor severo, que lhes atrapalhava os planos. "Apenas um homem, escreveu José Veríssimo, que dele divergira por ocasião da Réplica, — justiça que um dia lhe fará a história — com inteira consciência de si e inaudita coragem, assumiu o aborrecido papel de desmancha-prazeres". Agora, o candidato à presidência da República seria Rodrigues Alves. Pela segunda vez atingirá o primeiro posto. Aliás, encontrando-se na Europa com um jornalista pouco depois de ter deixado o poder, em 1906, Rodrigues Alves dissera-lhe não desejar suportar outra vez os encargos de Presidente. O jornalista rira incrédulo, e êle acrescentara: "Não me admira. Disse a mesma coisa aos meus filhos e eles também não acreditaram". (20) Mas onze anos haviam passado e a frase estava esquecida.

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Em outubro, afundado outro navio brasileiro, a situação chegou ao auge. Era a guerra. E no mesmo dia em que o governo deliberou iniciar as hostilidades, Nilo Peçanha comunicou a Rui a decisão:

"Tendo sido torpedeado mais um navio brasileiro (o Macau) nas proximidades da costa espanhola, por submarino alemão, e ficando prisioneiro o seu comandante o Presidente, em mensagem que dirige hoje ao Congresso, "constata o estado de guerra que nos impõe a Alemanha e pede autorização para a prática de represálias de franca beligerância, notadamente a ocupação do navio de guerra do Império ancorado no porto da Bahia — prisão e internamento militar das equipagens dos navios mercantes de que nos utilizamos". A carta concluía de modo lisonjeiro:

"Por estar muito gripado não posso ir pessoalmente levar-lhe esta comunicação e congratular-me com o grande amigo, por ter o Brasil completado a evolução de sua política externa, diante da guerra, consagrando por fim o seu apostolado". (21)

"O seu apostolado.. ." Não; também alguma coisa mais: a sua vitória. Velho apaixonado da Inglaterra, da sua civilização libera] e assentada sobre o Direito, Rui estava radiante vendo tremular entre as Aliadas a bandeira do Brasil. Fora êle o pioneiro, embora a atitude lhe tivesse proporcionado horas de sofrimento. "A política hoje adotada, disse, falando ao senado nessa ocasião, é a de que eu tive neste país, e dizem que neste continente, a primeira iniciativa. Custou-me então as mais rudes amarguras e as agressões mais indignas, que jamais curtiu a minha

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larga experiência da cegueira e das maldades humanas". (22) Mas, afinal, haviam-no escutado.

NOTAS AO CAPITULO XXIV

(1) Cf. carta de Rui à filha, senhora Batista Pereira, de Campinas, em 28 de dezembro de 1910.

(2) Cf. carta de Rui, em 13 de janeiro de 1910, endereçada a um Senador, e publicada in "Correspondência", p . 227.

(3) Cf. telegrama de Rui a Batista Pereira, em 22 de dezembro de 1910.

(4) Autógrafo in Arq. C. R. B. É pouco conhecido esse manifesto, datado de 2 de julho de 1911, e que não chegou a ser publicado.

(5) In "O Tempo", In Memoriam. (6) Sobre a sucessão de José Marcelino é abundante a correspon

dência existente no Arq. C. R. B. Contudo, são especialmente valiosas as cartas que escreveu a José Marcelino em 14 de março <• 18 de outubro de 1911. Quanto ao bombardeio da Bahia será muito útil a consulta dos telegramas que Rui dirigiu, em janeiro e fevereiro de 1912, aos srs. Severino Vieira, José Marcelino, Aurélio Viana, Leôncio Galvão, e João Mangabeira, dos quais existem cópias no Arq. C. R. B. João Mangabeira, no "Rui, o estadista da República", p . 161 a 182, estuda minuciosamente a posição de Rui, no episódio.

(7) No "Diário" de Rui, de 1914, há várias anotações interessantes. Dentre elas está a do dia 9 de maio, sobre o habeas-corpus requerido na véspera em favor da imprensa, e na qual escreveu o seguinte: "Perdi-o, tendo tido apenas o voto do Pedro Lessa e Sebastião Lacerda. O resto do Tribunal acobardou-se."

(8) Carta de Pandiá Calógeras a Rui, em 11 de julho de 1912, in Arq. C. R. B.

(9) Realizou-se a convenção do Partido Liberal nos dias 26 e 27 de julho de 1913, ficando assim constituída a comissão dirctora: Barbosa Lima, Oliveira Lima, Alfredo Elis, Galeão Carvalhal, Mona Barreto, Pinto da Rocha. Os estatutos foram aprovados cm 30 de agosto de 1913, em sessão no Parque Fluminense.

(10) Foram reunidas as conferencias de Rui, no volume "Ruínas de um governo."

(11) Chegou Rui a Campinas em 12 de maio, pernoitando em casa do sr. Euclides Vieira. Em 13 de maio chegou à fazenda Rio das Pedras, onde, no dia 15, Júlio de Mesquita almoçou com Rui. Não pôde, porém, Rui demorar-se tanto quanto desejava, pois em 1 de julho já embarcava em Santos, de regresso para o Rio, devido à decretação do estado de sítio. No "Diário", no dia 16 de junho, escreveu Rui: "Senado. Depois de pronunciar um discurso no expediente sobre o caso Macedo Soares, rompi em seguida o debate sobre o estado de sítio, combatendo-o, num discurso que ocupou toda a sessão (até 5%) ficando para continuar no dia seguinte." E , em nota ao dia 17; "Continuei, no Senado, o meu discurso de ontem, ocupando a sessão toda (1 e Vi até 5 e % da tarde). Terminei por não me permitir o regimento falar mais de dois dias."

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(12) Cf. Júlio de Mesquita, "Rui Barbosa, reminiscências", in "Revista do Brasil", vol. 22.

(13) Cf. carta de Rui ao filho, Alfredo Barbosa, em 30 de março de 1915, cópia in Arq. C. R. B.

(13-A) Cf. António Joaquim da Costa, "Rui Barbosa na intimidade", pg. 28.

(14) Cf. discurso de Urbano dos Santos, no Senado, em 9 de setembro de 1915.

(15) Cf. Eduardo Ramos, "Prosas de Cassandra", p . 20. (16) Cf. carta de Rui a D. Luiz, em 19 de julho de 1915, cópia in

Arq. C. R. B. (17) Carta de Rui a J. E. de Macedo Soares, em 11 de abril de 1917.

in "Correspondência", p . 349. (18) O convite dirigido a Rui trazia as seguintes assinaturas: "Antonin

Dubost, Président du Sénat, Paul Descharnel, de 1'Académie Française, Paul Appel, Président de la Chambre des Deputes, de 1'Académie des Sciences, Maurice Barres, de 1'Académie Française, Mgr. Baudrillart, Directeur de 1'Institut Catholique, Henri Bergson, de 1'Académie Française et de 1'Académie des Sciences Morales et Politiques, León Bonnat, de 1'Institut, Bou-troux, de 1'Académie Française et de 1'Académie des Sciences Morales et Politiques, d'Anthouard, Ancien Ministre au Brésil, René Doumis, de 1'Académie Française, Directeur de la Révue des Deux-Mondes, Jean Dupuy, Sénateur, Président du Syndicat de la Presse, Charles Guemier, Député, Président du Comité d'Action Parlamentaire en Amérique Latine, Gabriel Hannotaux, de rAcadémie Française, Président du Comité France-Amérique, Liard, Vice-Recteur de 1'Université do Paris, Etiennc Lamy, Secrétaire perpetuei de 1'Académie Françaisc, Ernest Lnvis.se, de 1'Académie Française, Directeur de Ia Révue de Paris, Adrien Mithouard, Président du Conseil Municipal de Paris, Stephen Pichon, Sénateur, Ancien Ministre au Brésil, Louis Renault, Ministre Plénipotcntiaire, ex-Délégué au Congros de La-Haye, Henri Robert Batonnier de 1'Ordre des Avocats de Paris."

Ao convite, Rui após a seguinte nota, do próprio punho: "Entregou-me esta cópia do telegrama o ministro francês, pedindo-me para isso audiência no dia 2 de agosto de 1916, e visitando-me, no prazo dado, em 3 desse mês, às 11 horas de manhã.

Respondi-lhe verbalmente, aceitando, com a ressalva do caso de moléstia, e no dia 5 dirigi ao senador Antonin Dubost o telegrama, de que junto cópia aqui." (In Arq. C. R. B.)

(19) E a seguinte a cópia do original existente in Arq. C. R. B.: "Sénateur Antonin Dubost — Paris — Peux pas réfuser la France mon humble lémoignage. Serais heureux vous obéir excepté cas maladie. — Rui Barbosa."

(20) Episódio referido pelo jornalista sr. Medeiros e Albuquerque. Quanto à candidatura de Rodrigues Alves, Rui, coerente com os seus pontos de vista anteriores sobre a maneira de ser escolhido o candidato, vetou-a em carta de 3 de junho de 1917, aos srs. Urbano dos Santos e António Carlos.

(21) Cf. carta de Nilo Peçanha a Rui, s.d., in Arq. C. R. B. (22) Rui Barbosa, discurso no Senado, em 25 de outubro do 1917.

X X V — GLÓRIAS E L U T A S

T) UI tinha agora sessenta e oito anos. Havia cinquenta que A *• em agosto de 1868, saudando José Bonifácio, pronunciara o primeiro discurso político, mas ainda conservava crepitantes as paixões da mocidade.

Eram, no entanto, evidentes os indícios de decadência física. O busto curvo inclinou-se mais para a frente e êle parece ainda mais baixo. As faces murchas e flácidas encheram-se de sulcos profundos e as dores de cabeça repetem-se com frequência. Agora, quando volta à noite de alguma representação deve contentar-se com um pouco de chá. Passara o tempo do chocolate aquecido pela bem-amada. Maria Augusta tomou-se então maternal. Com ternura, ela fiscaliza a vida do marido e está sempre pronta para fechar alguma janela, a fim de protegê-lo contra um golpe de ar ou aj'eitar-lhe a almofada para que fique numa posição mais cómoda. E, aos que reparam nesses cuidados, julgando-os talvez exagerados, explica com simplicidade: — "Rui, só há um". E ela receia perdê-lo.

Contudo, como foi sempre sóbrio, em quase nada se alteraram os hábitos de Rui nos últimos anos. Pela manhã, após algumas horas de estudo, a sua distração predileta é cuidar das roseiras, que ocupam grande área no jardim. À tarde costuma entregar-se ao seu divertimento preferido: o cinema. Julga-o instrutivo. Cons-trange-o, porém, teimarem em não lhe cobrarem as entradas. Num deles há mesmo uma cadeira, que lhe está sempre reservada gratuitamente e isso enche de orgulho o proprietário. Raramente vai ao Senado. Depois percorre as livrarias e está pronto para reencetar a faina na biblioteca. Aliás, conta Afrânio Peixoto ter ouvido de um dos íntimos de Rui a confidência que este fizera: "gostava de convivência da palestra, das festas, da música, da dança, do teatro, do não-fazer-nada da sociedade... mas, ai dele! tinha sua disciplina, seus deveres, a lei de sua vida, que era preciso cumprir". A curiosidade permanecia insaciável. Lia tudo, até pequenos romances policiais ou revistas infantis, onde encontrava histórias para os netos, que o acompanhavam nos passeios

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pelo parque de S. Clemente ou trepavam nos joelhos fracos do avô. Fosse verdadeiro aquilo que escrevera a Rodolfo, dizendo bastar-lhe uma família amada e alguns amigos dedicados para lhe encherem a vida, e teria encontrado a felicidade. A frase, porém, nada tinha de real. Durante toda a existência queimou-o a paixão pela luta. E hoje, apesar da idade e dos reveses, êle ainda continua pronto para enfrentar o mundo hostil, tendo a viseira sobre o rosto. Isso, no entanto, não impede que alguns ainda julguem pouco o que êle faz, infatigavelmente, na sua luta pelo direito e pela liberdade. Êle conhece essas censuras malévolas. E, talvez por isso, elaborando, nessa época, o esquema para um discurso deixado entre os seus papéis, escreveu essas palavras meio irónicas, meio dolorosas: "Se eu fosse obrigado a vir à tribuna contra todos os abusos, um lustro de governo republicano teria dado comigo na cova. — Imagine-se trinta anos dessa bela vida. — Não sou realejo de aldeia nem fonógrafo de repetição." No momento, porém, nada supera as alegrias do jubileu, que se aproxima.

A grande data, que recordava o desabrochar da crisálida, não passou despercebida. Lembrada por um amigo, Constâncio Alves, logo outros acorreram para festejar o jubileu literário de Rui. Isso, no entanto, que desvaneceria qualquer outro, fê-lo ficar de mau humor. Jubileu literário? Por que? Tendo feito da arte apenas um instrumento para as campanhas do Apóstolo, para estas é que desejava a consagração dos contemporâneos. Aquela, a glória literária, de bom grado êle a entregaria à posteridade. Como Voltaire e Vitor Hugo, as hosanas, que estimaria ouvir, deveriam dirigir-se ao lutador e não ao artista. E, escrevendo ao poeta Alberto de Oliveira, que tomara a iniciativa de ser o jubileu literário comemorado pela Academia de Letras, Rui declinou da homenagem. Embora não o declarasse francamente, considerava-a aquém da sua vida de sacrifícios. "Nada mais contestável, pois, dizia êle, do que a minha valia em letras . . . A valia moral, esta sim, é a que eu busquei sempre, e por ela é que sempre me esforcei, advogando sempre causas justas, sustentando sempre ideias nobres, opondo-me às instituições más, aos governos maus, à má política, colocando sempre os meus deveres acima dos meus interesses, servindo à minha pátria, no interior e no estrangeiro, com exemplos que a não envergonham. Mas em fazer o que se deve nenhum mérito pode haver; e quando o houvesse, não tocava às academias julgá-lo ou premiá-lo". (1) Esse final dizia tudo.

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Realmente, nesse meio século a ação veemente do homem úblico sobrepunha-se à obra do literato. E, como não custava

satisfazer-lhe a vontade, a festa transformou-se num jubileu cívico. Em agosto celebrou-se com pompa o magnífico aniversário. A nação inteira, representada pelo que havia de mais expressivo, o governo, o parlamento, os tribunais, as academias literárias, associaram-se às homenagens tributadas ao Apóstolo, símbolo das aspirações morais da nacionalidade, cuja voz, para exaltar o batalhador infatigável, se levantara num coro uníssono de louvores. Na hora em que se aproximava o ocaso, o Brasil glorificava o sol em declínio.

Também no estrangeiro repercutia o jubileu. Paul Claudel, em nome da França, entregou a Rui a Cruz de Grande Oficial da Legião de Honra. "Os exércitos do Direito e da Honra, dissera o diplomata, neste momento alinhados diante do inimigo, vos saúdam e vos abrem as suas fileiras". A Bélgica agraciara-o com o Grande Cordão da Ordem da Coroa e Sir Arthur Peei, ministro da Inglaterra, transmitiu-lhe as congratulações do Império Britânico. A Itália atribuira-lhe uma das suas mais expressivas comendas. A Sorbonne, o Instituto de França, e a Academia das Ciências de Lisboa, que lhe conferiu a mais alta distinção — a Cruz de Ouro — representaram os aplausos do mundo intelectual. Pela imprensa estrangeira falara "La Nacion" de Buenos Aires: "Rui Barbosa assiste à sua própria glorificação nacional. Não foi nunca primeiro ministro, nem governador de Província, nem Presidente da República. Contudo é a mais alta representação intelectual e moral do Brasil neste momento". (2) Após tantos anos de sofrimento, já velho, o menino pálido e torturado do colégio do dr. Abílio recebia os prémios duma vida exemplar. E como acontecera outrora, tomava-os com emoção ingénua. A Glória fo-ra-lhe mais fiel do que o Poder, que sempre desejara em vão.

No dia 12 efetuou-se a grande solenidade do jubileu: a inauguração do busto de Rui na Biblioteca Nacional. Na véspera, no Campo de São Cristóvão, celebrara-se a missa campal em que o país agradecera ao Senhor ter-lhe dado e conservado aquele filho ilustre. "Bendita seja, Senhor, a mão, que tantas graças em mim tem derramado", dissera êle no discurso, que pronunciou. E, sem esquecer Maria Augusta, logo acrescentara: "Mais de quarenta (anos) me permitistes de união com uma companheira, que tem sido a vida de minha vida, a alma de minha alma, a flor sempre viva da vossa bondade no meu lar". Certamente, ela fora a melhor dádiva que lhe coubera na terra e a confissão exprimia o

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reconhecimento a quem tanto o compreendera, talvez a única pessoa a quem a alma do tímido tivera a coragem de mostrar-sç tal qual era.

Na Biblioteca, ao agradecer à saudação de Constâncio Alves, Rui rememorou a própria existência, lembrando episódios de "uma vida inteira de ação, peleja ou apostolado" e onde as letras apenas figuravam incidentemente "como a beleza aparente que reflete a beleza interior". E, demasiadamente consciente da sua grandeza, êle dissera depois de lançar o olhar sobre aquele passado de tormenta e de fidelidade às convicções: — "Bem-aventu-rados os que a si mesmos se estatuaram em atos memoráveis.. ." Era o seu caso.

Três dias duraram as festas do jubileu. No último, justamente aquele que assinalava o grande aniversário, realizou-se a imponente manifestação popular, final da apoteose. Do Monroe ao Teatro S. Pedro, tendo ao lado Azeredo, já encanecido mas ainda conservando a flor na lapela, Rui atravessou entre alas de povo. Parecia dia, tal a intensidade dos fogos de bengala. Milhares e milhares de lenços e chapéus agitavam-se vitoriando o herói. Tinha sido necessário meio século de amarguras e desilusões para que desfrutasse aquele instante fugaz de venturas, vendo os contemporâneos se anteciparem â posteridade em que sempre acreditara.

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Aos olhos de Rui esse quadro suave e justo foi pouco depois acrescido dum novo matiz: a Alemanha capitulara vencida. Em outubro a diplomacia germânica tentara negociar a paz e êle escrevera com bom humor: "A hiena fêz-se raposa e quer apanhar o queijo. Cuidado!" (3) Mas, em novembro, ao aproximar-sc o inverno, verificara-se a rendição incondicional.

Como sempre, uma vez obtido, o triunfo começava a desinteressá-lo e dissera no Senado, que o convidara para exprimir os sentimentos da corporação pela vitória. "O meu lugar é nos dias de adversidade, nos dias de luta, nos dias de receio. Al o meu espírito se eleva, dobram-se as minhas forças, e alguma coisa me impele a tomar um lugar obscuro mas constante, entre os soldados da boa razão e da justiça." (4) Pronunciadas na hora da vitória, estas palavras são surpreendentes e parecem adivinhar alguma tempestade.

Esta, aliás, não tardou. Embora não houvesse qualquer dúvida sobre a nomeação de Rui para representar o Brasil na Con-

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ferência da Paz, que se deveria reunir em Versalhes, os acontecimentos encaminharam-se de tal jeito, que tudo acabou de maneira bem diferente daquela imaginada a princípio. Venceslau, já no fim do governo, julgara não mais lhe competir a indicação; Rodrigues Alves, doente, não pudera assumir o governo, que fora esbarrar inesperadamente nas mãos do vice-presidente Delfim Moreira, também enfermo; e o novo ministro do Exterior Domí-cio da Gama, convencera-se de que só êle, pelas suas relações pessoais em Washington, poderia realizar em Versalhes a política conveniente ao Brasil. Isto mesmo foi insinuado pelos jornais ligados à chancelaria e Rui percebeu a pedra no sapato.

A nova era dolorosa. Ele já arquitetara os seus planos de ação na conferência, antevira, provavelmente, as vitórias e preli-bara o prazer das discussões ao lado de Wilson, Lloytl George e Clemenceau. Mesmo porque, embora fosse representar um país de modesta intervenção no conflito armado, não se consideraria com menor autoridade para debater qualquer assunto. Tanto assim que consultado por Nilo Peçanha, nesse tempo ainda ministro, sobre a sugestão dos Aliados para o restabelecimento da independência da Polónia, fizera retirar da resposta brasileira este trecho: "sem embargo da autoridade, que nos falta, para o julgamento das grandes questões políticas da Europa". (5) Para o internacionalista o mundo era pequeno. E, para o patriota, o Brasil, tal como acontecera em Haia, deveria tratar com as grandes potências de igual para igual.

Entretanto, diante da situação que se criara, tudo não passaria de um sonho: a embaixada tornara-se impossível. Realmente, quando Rodrigues Alves, ainda sem se empossar na presidência, formulou o esperado convite, Rui recusou a indicação. Numa carta, que fez divulgar em francês, explicou os motivos dessa atitude, mas não conseguiu impedir que o acusassem de cortejar o Presidente enfermo, razão por que, diziam, não desejava ausen-tar-se do país. A imputação parece injusta, mas circulou com insistência. Em Petrópolis, para onde seguira pouco após esses incidentes desagradáveis, várias vezes os íntimos, um tanto inquietos, surpreenderam-no silencioso e melancólico. "Não! eu não podia mesmo ir, dissera numa dessas ocasiões. Desejava muito ir; mas que fazer?" (6) Estava-se a menos de quatro meses das alegrias do jubileu e estas dissipavam-se sob densas nuvens de tristeza.

Contudo, nem sempre o bocado é de quem o faz. Com duas penadas cheias de veneno, Rui destroçara o ministro do Exterior,

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/ matando ainda no ninho aquele desejo de representar o Brasil eni Versalhes. A escolha recaiu então no senador Epitácio Pessoa, um homem pequeno, autoritário e feliz, que a Fortuna brindava com esta dádiva inesperada. /

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Em 16 de janeiro de 1919, sem ter podido assumir o governo, Rodrigues Alves faleceu. Quem poderia suceder-lhe? Os grandes jornais, logo secundados por Nilo Peçanha, lembraram o nome de Rui. Azeredo, reconciliado, também aceitou a sugestão: resgataria assim as fraquezas anteriores. E os correligionários de Rui, exultantes, teciam apressadamente o epílogo justo daquela carreira magnífica. Afinal, após longa espera, o Poder en-trava-lhe imprevistamente pela casa a dentro. Tudo agora se apresentava tão fácil, os obstáculos afastavam-se com tanta presteza e avolumavam-se de tal maneira as adesões, que êle próprio teve a ilusão de estar desembaraçado o caminho. Era curioso: durante muitos anos correra atrás do Poder sem o conseguir alcançar; agora este ia buscá-lo em Petrópolis. Ao seu médico, o ilustre dr. Luiz Barbosa, Rui escreveu, pedindo para ir esperá-lo em S. Clemente: "Trata-se da minha saúde, em cuja segurança não confio muito para a nova situação que as circunstâncias parece tenderem a impôr-mc. Sei a sua opinião, segundo a qual os meus incómodos são de caráter meramente hepáticos. Sei que os considera nada perigosos. . . Mas a presidência da República me abriria uma carreira de tais trabalhos, responsabilidades e emoções, que receio muito sejam demasiados para as minhas forças . . . É a esse respeito que quero ouvir a medicina, para esclarecer a minha consciência, e tomar uma resolução definitiva, agora que a minha candidatura, levantada por um movimento espontâneo da opinião, sem concurso meu, assume uma seriedade, que nunca esperei". (7)

A carta estava datada de 3 de fevereiro e revela um espírito inclinado a aceitar o encargo. Mas, quereria êle ser mesmo eleito? As palavras que nesse dia escreveu a Nilo Peçanha reafirmando os seus "princípios" e a convicção de ser necessário modificar-se a Constituição de 1891 depõem em sentido contrário, pois bem sabia quanto aqueles "princípios" inquietavam os políticos de cujo apoio precisaria para ascender à presidência. Como se amasse o infortúnio ou buscasse um pretexto para recusar o Poder sem o remorso de o haver desprezado francamente, Rui começava a levantar com as próprias mãos os obstáculos, que os amigos ti-

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nham removido. A atitude era demasiadamente consciente para ser tida como um erro. Tomada com pleno conhecimento de causa representava antes um suicídio honroso:

"Bem sei, dizia, que em política há outros caminhos, de que eu me poderia valer com segurança. A astúcia me indicaria não mexer com esta dificuldade, assenhorear-me do poder, e, com os seus recursos, eleger uma legislação amarrada ao compromisso de me dar a reforma constitucional. Mas uma reforma regeneradora não deve nascer, tortuosamente, de meios indignos da sua nobreza". (8) Nessas ocasiões o silêncio não era o seu forte. De-ve-se, porém, convir que revelava uma dignidade impecável.

Entretanto, Nilo procurou amainar as dificuldades provocadas pela carta e explicou com habilidade aqueles temidos princípios. (9) Tranquilizaria assim os que se mostravam inquietos ante as transformações aventadas. Rui manteve-se, no entanto, intransigente e voltou à carga. Não queria iludir ninguém e as agitações não assustavam o seu espírito reformista. E, deixando deslizar a imaginação, escreveu novamente a Nilo, reiterando os seus pontos de vista opostos aos que preconizavam o marasmo: "O doente ainda se mexe na cama. Logo ainda não expirou. Tem febre. Logo ainda lhe reage o organismo. Não é o coma. É a torrente circulatória, que lhe borbota do coração, que lhe circula mais rápida nos vasos esquentados, que se lhe queima o oxigénio nos pulmões ardentes. Demo-nos o parabém de que lhe lateje o pulso agitado. É a agitação da massa sanguínea, que se renova nas veias, a defesa do organismo, que se lhe repara". (10) A imagem podia ser bonita, mas foi desastrosa: afugentava os poderosos, que não desejavam saber do risco das modificações constitucionais.

Por que teimaria, agora, em afastar de si o Poder, que sempre desejara? Por quo o recusava quando o tinha ao alcance? Julgaria tarde demais ou considerava a vitória imprópria para figurar no monumento que construíra com exemplo de sacrifícios e derrotas? O certo é que parecia temer o Poder. À família, que estimaria vê-lo realizar aquele velho sonho político, dissera nessa ocasião: — "Não posso aceitar esta candidatura". — "Por que?" — "Não é no fim da vida que se vem procurar um homem para cargo destes, de tanto trabalho e responsabilidade". (11)

Ainda mais categórica foi a resposta com que desnorteou os líderes parlamentares, que o convidavam para uma reunião, onde se assentaria definitivamente a escolha. Simples formalidade, pois sabia-se de antemão que seria êle o indicado. Entretanto,

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depois de alegar motivo de saúde para justificar o seu não aparecimento, acrescentara de maneira um tanto áspera e em flagrante demonstração de que jogava fora a oportunidade: "Aliás, se o objeto dessa assembleia é discutir a fórmula de uma Convenção e de reunir em seu seio todas as correntes da opinião nacional, já bem conhecido é o meu parecer sobre o erro da ideia de tais convenções, que não poderão nunca, seja qual fôr o sistema adotado, realizar semelhante pretensão". (12) Era evidente que desprezava o Poder, pois, mesmo sem a quebra dos princípios, essas coisas poderiam ser ditas de modo mais suave.

A verdade é que a reposta ecoou nos meios políticos como uma bomba. Descoroçoava os simpáticos, irritava os indiferentes e servia de pretexto aos desafetos. Deviam, portanto, procurar um candidato mais amável. Os ventos mudavam.

Aquelas atitudes tempestuosas não significavam, porém, que Rui se houvesse desinteressado do assunto. Pelo contrário, de Petrópolis, acompanhava atento as infrutíferas combinações que se seguiam. Uns lebravam o veterano positivista Borges de Medeiros, governador do Rio Grande do Sul, outros sugeriam o noviço Altino Arantes, governador de São Paulo, e também falavam em Lauro Miiller. Nos fins de fevereiro, Nilo fêz Alfredo perguntar ao pai se acoitaria o nome diste último. A resposta foi uma explosão de amor-próprio ferido, que Rui assinalou mima carta quase ríspida a Nilo: "Imaginarem fazer candidato à presidência da república, com o meu concurso, um l>oche é uma dessas coisas que eu não julgaria ousassem irrogar-me os meus piores inimigos. Se V. Ex. me tem por um homem de honra, devia ter-me poupado o desgosto de receber um insulto por mão de um amigo. Bem sabe V. Ex. que eu não sou homem de transigir à custa de minha dignidade. Coloquem a incompetência no Catete. Mas colocarem com ela o bochismo — e com o meu voto! — só a loucura desta época o conceberia. Perdoe o calor destas palavras, ainda fracas para o caso, e que a indignação arranca a um homem de bem, magoado na sua honra". (13)

Por fim, ansiosos para porem termo às incertezas, os chefes políticos resolveram assentar a candidatura do senador Epitácio Pessoa, cuja permanência em Versalhes o fizera inteiramente alheio à disputa. Que diria o Apóstolo? Os seus próprios amigos já não desejam a luta, que consideravam inútil, e coube a Macedo Soares expor-lhe a situação. Cheio de cuidados mostrou-lhe a realidade. E a certa altura, querendo fazê-la mais negra do que

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era, afirmou que se Rui fosse candidato não teria três por cento da votação.

A frase serviu de estopim. Rui inflamara-se. E ao amigo, surpreso ante a reação, interpelou com vivacidade: "Não terei três por cento em São Paulo, em Minas, na Bahia?" E logo concluíra com decisão: "Às vezes, luta-se para perder". (14) Era o que êle queria. Certo da derrota, antevendo o infortúnio glorioso, que surgia à sua frente, Rui a êle se apegou inabalàvelmente. Seria o candidato em oposição a Epitácio. Levado pelas forças íntimas da sua natureza, o Apóstolo marchava com .sofreguidão ao encontro duma desgraça voluntária. Douravam-na os seus "princípios", os "princípios" pelos quais lutara e sofrera, mas que ainda o seduziam irresistivelmente. Depois de haver recusado teimosamente o Poder que lhe punham nas mãos, lutaria para obtê-lo no momento em que lho negavam. Com estranha volúpia iria pregar por uma causa perdida e sentia-se, se não satisfeito, pelo menos tranquilo.

Dispuseram-se então as forças para o embate. As de Rui não chegavam a constituir um exército: eram anónimas, pois, dos elementos partidários do país, poucos se haviam disposto a acompanhá-lo no sacrifício. E, porém, interessante saber-se que entre os seus correligionários figurava agora Rosa e Silva, aquele mesmo que dez anos atrás declarara não ir com êle "nem para o céu". O mundo dava voltas. E, animado pelas multidões, que o ovacionavam delirantes, Rui reencetou a mesma jornada de 1909. Bastava alguém pronunciar-lhe o nome em qualquer reunião para desabar uma tempestade de aplausos. Em São Paulo, por ocasião duma visita do ministro Domício da Gama, um orador tivera a lembrança de se referir ao nome de Rui e fora o suficiente para estrugirem as aclamações. Na Academia de Letras, Alfredo Pujol, ao empossar-se, também aludira ao Apóstolo e logo a assistência o interrompera com prolongada salva de palmas. Tor-nara-se indescritível a popularidade de Rui.

No Rio, assim como em São Paulo e em Minas, lugares que visitou apesar da idade, o povo comprimia-se para ouvir o verbo do seu favorito. Em Minas, êle respondera aos que lhe apontavam os setenta anos como um empecilho para ocupar a suprema magistratura do país. Magoara-o essa referência à velhice e lembrara os exemplos de Thiers, Clemeceau, Hindemburgo, Bismarck e Gladstone. "Volto-me eu para o coração, dissera, e não encontro diverso do que era há trinta anos. Ergo a cabeça, e não me treme, não a sinto mais vazia. Sondo o peito, e vejo que me re-

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ferve, como dantes, o entusiasmo, a coragem, a fé nas coisas santas, nas grandes, nas eternas". Na verdade, o espírito ainda continuava o mesmo da mocidade.

Não perdera sequer aquele tom profético, que tanto incomodava os adversários. Agora prevê a nação rebelando-se, mais dia menos dia, contra a corrupção dos costumes políticos, que tiraram ao país o direito de governar-se por si mesmo. Será a desordem, a anarquia, a reação desordenada contra os vícios duma época. É possível que êle não veja mais desencadear-se a avalanche revolucionária. "Mas, diz no curso da campanha, por um que se vai, milhares de outros aí se acham para embocar os clarins de alvorada. Não deixem expirar os sons . . . " Também a questão social, ainda quase ignorada no Brasil por esse tempo, constituiu o tema de um dos discursos da propaganda. Defendendo um sistema de leis "a cuja sombra o capital não tinha meios para abusar do trabalho", aventura as questões referentes à saúde, habitação e seguro dos operários e não se esquecera da situação das mulheres operárias, para as quais pedia amparo no período da gravidez, e dos menores, cuja idade e salário mínimos julgava caber à lei estipular. (15)

Mas, principalmente na Bahia foram emocionantes as manifestações. Havia dez anos que não revia a terra natal e a recepção excedeu todas as espectativas. Apertadas pela massa popular, senhoras viram-se acometidas de crises nervosas. O próprio Rui perdeu o chapéu. E quando a custo se conseguiu um pouco de calma ouviu-se a voz de Carneiro Ribeiro, a alva barba marcan-do-lhe a fisionomia serena, e que, esquecido dos ressentimentos provocados pela "Réplica", trazia ao seu glorioso discípulo do "Ginásio Baiano" os votos de boas-vindas.

Jamais se vira júbilo popular tão intenso. A vida comercial da cidade cessara quase inteiramente, e uma verdadeira alucinação coletiva dominava o ambiente. E entre aquelas aclamações Rui também se recordava da mocidade, cujas tristezas a distância e o tempo haviam apagado. Ficara apenas a lembrança das horas felizes. Quis visitar a casa onde passara o noivado, tão modesta e tão acolhedora. E, a um repórter, dissera abrindo o coração: "Como me recordei! Com que saudade. . . Ah! se a fortuna me concedesse ainda a graça de poder passar aqui uns dois meses, vendo velhos amigos, visitando lugares de que não lembro sem emoção!" (16) Rui tornava-se humano. Tão humano quanto sempre desejara ser.

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Apesar de dispor apenas de três meses para a propaganda, Rui agitou o país de norte a sul. Era intenso o interesse em torno do pleito e dia a dia aumentavam as hostes do general, que iniciara a campanha quase sem soldados. Poucos permaneceram indiferentes como o famoso historiador Capistrano de Abreu, aquele colega de Rui nas aulas de grego do barão de Tautphoeus, e que cheio de ceticismo, reduzira as suas ambições "a morrer sem escândalo". Por esse tempo, escrevendo ao historiador português Lúcio de Azevedo, Capistrano traçou este interessante perfil de Rui: "É simples, bem educado. Não gosta de conversa comprida. Disse-me um dos seus íntimos que só se expande à hora do jantar. Nunca fui à sua casa. Acorda muito cedo, às quatro horas. Às dez horas da noite adormece. Não fuma, não bebe; vive ou pelo menos procura viver dos rendimentos da vida, sem atacar o capital, disse uma vez. Por isso é mais forte do que há vinte anos atrás.

"Sua biblioteca anda por algumas dezenas de milhares de volumes. Em certas prateleiras há três carreiras de livros: dizem que é capaz de ir no escuro tirar o volume que deseja. Tem verdadeiro amor de bibliófilo aos livros. Durante o governo provisório emprestou-me um todo encapado, o que me obrigou a comprar tela inglesa para reencapá-lo. Hoje não empresta mais.

"Seu pai era inteligência superior, orador distinto, médico, se não estou enganado bilioso, brigador. Viveu, morreu pobre. Tinha grande conhecimento da língua, incutiu-o no filho. Ouvi que estudante, antes de lavar o rosto, por conselho dele, Rui lia algumas páginas de Camilo; deve ter concorrido para dar à sua inteligência uma feição prussiana, sempre mobilizada, prestes a partir em guerra ao primeiro toque de corneta". Assim, em períodos breves e incisivos, ora mordazes, ora justos, Capistrano debuxou o retrato. Eis o que dizia sobre o orador e o escritor:

"A sua força é igual na escrita e na oratória. Se os seus discursos proferidos agora na campanha presidencial forem reduzidos a folhetos hei de mandá-los. Já pronunciou dois, parece que fará mais três. Leva-os escritos: verá de que esforço é capaz em menos de dois meses.

"Seu vocabulário é limitado. Creio que terá compilado para uso próprio um vocabulário analógico, e, si o desse à luz, seria a mais útil de suas composições. Escreve às vezes uns artigos orquestrados que impressionam. Os neologismos em que às vezes incide parecem nascer com várias gerações. Ouvi-o falar bem duas vezes: uma numa conferência abolicionista, que durou mais

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de uma hora, outra, poucos minutos. Hoje não me abalo para ouvi-lo, não me agrada a voz.

"Cultura filosófica parece não possuir. Para êle a filosofia reduz-se à lógica e à dialética. Sua dialética é feroz. Nunca tinha ouvido falar no nome dele, quando ainda no Ceará li um artigo dele assinado. Continha poucas linhas, mas nunca mais pude esquecê-las. Disse-lho uma vez, e ficou lisonjeado: gosta de elogios, e recebe-os com modéstia". A conclusão: "Hoje ganha centenas de contos, e dizem que talvez nada venha a deixar. Tirando os livros e as roupas, que usa sempre da melhor, sem janotis-mo, é simples. O bom chefe de família, disse uma vez no senado, é o que gasta mais com a família que consigo". (17)

O julgamento, muito frio, às vezes benévolo, às vezes um tanto amargo, em certos pontos verdadeiro, não representava, porém, a maneira pela qual Rui era geralmente visto. Sobretudo, afastava-se dos panegíricos em que os amigos o apresentavam como um semideus e dos libelos em que os adversários o apontavam como um ambicioso.

As eleições confirmaram, no entanto, a extraordinária popularidade do Apóstolo, que trocara as comodidades duma vitória fácil pelas fadigas duma campanha perdida. O total fora-lhe desfavorável. Entretanto, vencera em todas as capitais, exceto Manaus e Paraíba, onde sem ter o apoio de qualquer dos partidos organizados perdera por poucos votos. Triunfara nas grandes cidades de São Paulo e da Bahia, era incontestável ter levado a melhor em todos os lugares bafejados por um traço de civilização. Arraigado aos seus "princípios" o general sem soldados mobilizara um formidável exército de consciências. "Às vezes luta-se para perder", dissera a Macedo Soares; e podia sentir-se orgulhoso do resultado. Que mais desejaria o pregador romântico além daquele exemplo de coragem dado ao país já no inverno da vida? Nobremente, êle reconheceu a vitória do antagonista: continuaria a carregar a cruz do seu destino.

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Nesse ano, em novembro, Rui voltou à Bahia. Não vinha, porém, como idealizara, para sentir os lugares da sua mocidade, mas, ainda uma vez, para combater.

Tendo apresentado o nome do juiz Paulo Fontes para competir com o candidato do partido dominante nas eleições para Governador do Estado, os correligionários de Rui na Bahia ha-viam-lhe solicitado o auxílio na propaganda. Tarefa penosa e que Maria Augusta não viu com bons olhos. Compreendera, po-

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rém, ser inútil insistir: o marido já falara no "seu dever", e quando isso acontecia ficava irredutível.

Teria sido fácil uma excusa. A saúde . . . a idade . . . as canseiras da viagem. Também haveria o pretexto da representação do Brasil na Liga das Nações, posto para o qual o convidara Epi-tácio Pessoa. (18) Não admitiu nada disso. Os amigos apenas exigiam dele enormes sacrifícios: era tentador. E, deixando os livros, as roseiras, o conforto de S. Clemente, Rui partiu para a Bahia. Aliás, esperava vencer. O governo local tornara-se incrivelmente impopular e o presidente Epitácio Pessoa prometera manter-se em atitude de neutralidade.

Desta vez a campanha era bem diferente da anterior. A pro-

[mganda devia estender-se ao interior do Estado, obrigando a ongas viagens, ora em pequenas embarcações, ora em péssimas

estradas de ferro, tudo extraordinariamente fatigante, sobretudo para um velho. No entanto, êle arrostou os percalços com galhardia. O que não fizera na juventude, para salvar a própria candidatura, realizava agora, na velhice, sem qualquer perspectiva de recompensa pessoal. E, com o ardor de quem iniciasse a carreira, Rui saiu pregando pelo sertão. Era admirável. Aos poucos, soprado pela sua palavra, o incêndio crescia. O povo ameaçava reivindicar, pelas armas, o direito do voto, que o governo lhe negava por todos os meios, e a revolução despontava no horizonte. Rui sentia-se, porém, exausto. Ao cunhado, que lhe mandara pedir um pequeno trabalho, respondera então de mau humor: "Trabalho continuamente. Devem poupar-me um pouco, pois até as máquinas rebentam". (19) E tinha razão. A aventura era demasiada para a sua idade.

Durante a excursão, Maria Augusta, que sempre o acompanhava nessas ocasiões, ficara na Bahia. Pela primeira vez, depois do exílio, separavam-se tão largo tempo e carinhosos telegramas marcavam o itinerário da peregrinação. Êle, satisfeito, descrevia à mulher as recepções. Ela, meiga, animava-o.

De Bonfim, Rui a Maria Augusta: "Imensa a concorrência à conferência feita ontem na Câmara Municipal das nove às onze horas da noite. Estou bem. As instâncias das senhoras obriga-ram-me transferir a partida para hoje à meia-noite, após o baile, para chegarmos na Bahia amanhã às cinco e meia da tarde. Tudo otimamente. O dia de hoje será consagrado a várias manifestações e festas. São cinco horas da manhã. Escrevo este telegrama ao som da música da alvorada nos coretos em frente à casa. Saudades e abraços para todos".

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378 A VIDA DE RUI BARROSA

No mesmo dia, Maria Augusta a Rui: "Contentíssima com a abençoada viagem. Acompanho com interesse o teu sacrifício amparado por tão santa causa. Comovida com as aclamações do povo sertanejo. Estamos bons, mas saudosíssimos pela tua ausência".

Assim, quando chegou o Natal, eles não estavam juntos para celebrarem a festa da cristandade. Isso jamais acontecera e Rui lembrou-o num discurso proferido nesse dia: "Não permita Deus que nunca mais nesta data eu me encontre longe dela; é a primeira vez que tal me acontece, e só me consola o sentimento de o fazer por uma causa em benefício da qual não devemos poupar sacrifícios". Realmente, êle não se eximira de nenhum: estava na Feira de Sant'Ana e cumpria o seu "dever".

Ainda nesse dia as senhoras da localidade promoveram expressiva manifestação a Maria Augusta. Foi a oportunidade para que Rui falasse dela com o carinho habitual. Num breve discurso, obra-prima de sentimentalismo e de ternura, contou com encantadora simplicidade os dias felizes, que encontrara ao lado da companheira dedicada: "Tudo que de mim se diz e têm dito meus amigos, é quase sempre injusto, por generoso e excessivo: o que daquela se diz, quase sempre é injusto por deficiência, ao menos a meu juízo, do meu coração, da minha consciência e do meu reconhecimento. Meu pai me deu o caráter, minha mãe me deu o coração, e minha mulher a Ancora do meu coração e do meu caráter. O que a ela devo é tanto que toda a minha vida a ela imolada seria apenas uma exígua parte da minha dívida." Exagero? Não. Ela o adivinhara nos dias angustiosos da mocidade. Acalmara-lhe o sofrimento do espírito torturado pelas constantes desventuras e confiara nele numa hora em que tudo lhe era adverso. Proporcionara-lhe a sensação de segurança e de força de que necessitava para vencer. Aplacara-lhe as cóleras e dissipara os desalentos. Ah! só êle sabia quanto mudara o seu destino depois que a encontrara. E, mais do que tudo, Maria Augusta de-ra-lhe felicidade. Os raros instantes de ventura duma vida amargurada pela ambição dos grandes ideais.

Ao regressar, Rui pôde verificar que a campanha lhe consumira todas as economias. Fora assim, em 1910, quando se vira obrigado a bater à porta de um banco. Agora, enviando a um filho modesto cheque de um conto e duzentos mil réis, dizia serem "os últimos restos do que eu tinha no banco". (20)

Contudo, devia dar-se por bem pago uma vez que a vitória se lhe afigurava inevitável. Mas, quando cresceram na Bahia as

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labaredas da revolução, o presidente Epitácio Pessoa, para salvar o partido dominante, resolveu decretar a intervenção militar no Estado. Foi a derrocada. Ainda uma vez o sacrifício não dava a Rui o esperado triunfo: a decepção era tremenda.

NOTAS AO CAPITULO XXV

(1) Cf. carta de Rui a Alberto de Oliveira, em 24 de julho de 1918, in "Correspondência", p. 361.

(2) Cf. "La Nacion", de 12 de agosto de 1918. (3) Rui Barbosa, artigo no "O Imparcial", em 14 de outubro de 1918,

" P a z . . . mas que paz". (4) Rui Barbosa, discurso no Senado, em 13 de novembro de 1918,

publicado no "O Imparcial" do dia seguinte. (5) Cf. carta de Rui a Nilo Peçanha, em 18 de agosto de 1918, cópia

in Arq. C. R. B. (6) In "O Tempo", In Memoriam. (7) Carta de Rui ao dr. Luiz Barbosa, em 3 de fevereiro de 1919,

cópia in Arq. C. R. B. (8) Cf. carta de Rui a Nilo Peçanha em 3 de fevereiro de 1919,

cópia in Arq. C. R. B. (9) Cf. entrevista de Nilo Peçanha, ao "Jornal do Brasil", em 4 de

fevereiro, 1919. (10) Cf. carta de Rui a Nilo Peçanha, em 5 de fevereiro de 1919,

cópia in Arq. C. R. B. (11) "O Tempo", O feitio de Rui Barbosa. In Memoriam. (12) Cf. telegrama de Rui Barbosa, em 7 de fevereiro de 1919, aos

convocadores da convenção do dia 8 de fevereiro. (13) Cf. carta de Rui Barbosa a Nilo Peçanha em 20 de fevereiro

de 1919, cópia in Arq. C. R. B. A carta é datada do Rio. Há outra, na mesma data e para o mesmo destinatário, datada de Petrópolis, conforme cópia in C. R. B., e na qual Rui se opõe à candidatura do dr. Altino Arantes.

(14) Cm. ao autor pelo Dr. João Mangabeira, que compara a campanha de Rui de 1919 à campanha da França de Napoleão, em 1814. V. o prefácio de José Maria Bello ao vol. XLVI, tomo I, das Obras Completas de Rui Barbosa.

(15) E extraordinária a compreensão que Rui então revelou dos problemas sociais. Sobre o assunto deve ser compulsado o parecer que, em 1892, emitiu sobre a construção de casas proletárias.

(16) V. "A Tarde" (Bahia), de 12 de abril de 1919. (17) "D. Casmurro", de 20 de janeiro de 1940. J. de Castro Nunes,

Alguns homens do meu tempo (Rio, 1958), pg. 6, também traça breve perfil de Rui.

(18) Sobre o convite de Epitácio Pessoa enviou Rui de Caxambu em 14 de outubro de 1919, esta carta ao dr. J. J. Palma: "Meu caro Palma: Procurando-me em casa, no Rio, aos 5 de Setembro passado, relatou-me o meu bom amigo a conferência, que, chamado por S. Ex. a o Sr. Presidente da República, tivera com êle, na véspera, a meu respeito.

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380 A VIDA DE RUI BARBOSA

Nessa conferência, em relação a cujo objeto lhe pediu êle segredo absoluto, que tenho guardado com rigor, o incumbiu o Dr. Epitácio Pessoa de me convidar para o cargo de representante do Brasil na Liga das Nações. Afirmou-lhe S. Exa. haver nisso obedecido, não só ao que lhe indicava o seu critério, mas ao sentimento geral da Nação, e, encarecendo a confiança, que eu lhe inspirava, se mostrou seguro de que o meu patriotismo não recusaria ao país um serviço, para que êle me designava.

Não fazendo tão alto juízo da minha idoneidade, e tomado, assim, de surpresa pelo honrosíssimo convite, pedi-lhe, meu caro Palma, que exprimisse a S. Exa. o meu reconhecimento, e lhe solicitasse a contemplação de aguardar a minha resposta, até que eu regressasse da estação de águas, para a qual, por conselho médico, estava em véspera de vir. Desse modo teria eu tempo de refletir, e consultar as minhas forças, não aceitando sem a devida reflexão um mandato, como esse, de relevância incomparável, que para mim tinha muitas seduções, mas ainda maiores receios me causaria pelas suas extraordinárias responsabilidades.

Houve S. Exa. por bem conceder-me esse termo de espera, que tenho aproveitado, já para me restaurar algum tanto na saúde abalada, já para meditar sobre as minhas possibilidades, quanto à honra que me oferece o Chefe da Nação, cativando-me, assim pela sua espontaneidade nesse ato, como pela generosidade nas expressões em que m'o comunicou.

Mas, como já lá vão quase quarenta dias de então a esta parte, e a minha estada aqui ameaça demorar-se por tempo não determinado, não me parecendo que me assista o direito de alongar indefinidamente esta especta-tiva, retendo nela, não sei até quando, o presidente da República, julguei-mc obrigado a por-lhe fim, dando logo a S. Exa., daqui mesmo, a solução do caso, com a minha resposta nesta carta.

Se me houvesse de levar tão-sóinente pelo medo às responsabilidades, que me vem crescendo com os anos, do mesmo inodo ainda há pouco, declinei da embaixada de Versalhes, declinaria agora desfoulra missão.

Como, porém, agora, não veja entre mim e o Presidente da República as hostilidades, que entre mim e o seu eminente antecessor maquinavam contra mim contra êle, não me sinto com liberdade, para me subtrair ao apelo, que, em nome da Nação, me dirige o seu digno Chefe, e a êle me curvo, apesar de sentir vivamente a minha insuficiência, esperando que Deus, para quem sempre me volto nas minhas dificuldades, não me negue o seu auxílio, para a suprir, neste serviço, talvez o derradeiro de minha vida, à minha partia.

Pode, pois, transmitir, ao Dr. Epitácio Pessoa, com a reiteração dos meus agradecimentos pelo elevado conceito com que me honra, a minha resposta, declarando-lhe que aceito, em princípio, o seu convite.

Em princípio, digo, para significar da maneira mais clara que nenhuma incompatibilidade ou dificuldade existe, nem entre mim e o governo de S. Exa., pelas quais se me obste à honra de o servir, nem entre mim c a natureza dessa missão, pelas quais se me embarace a incumbência de a desempenhar.

Digo, ainda, que em "princípio", atendendo a que só depois desse entendimento meu com o Ministro e o Presidente, ao qual S. Exa. mesmo aludiu na sua conversa com o meu amigo, poderei ver como se traduz essa plenitude na confiança, qvte o Chefe da Nação me assegura, poderei saber

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como se organizará essa nova representação nossa no estrangeiro, poderei conhecer, enfim, exatamente a situação do Brasil no conselho internacional, em que tenha de ser o seu delegado.

Creio ter, desta sorte, correspondido ao desejo do Presidente da República no tocante ao seu convite.

A minha lealdade, entretanto, me dita a conveniência de lhe requerer atenção para uma circunstância importante.

Não tenho remédio senão ir envolver-me agora numa luta, que daria tudo por evitar.

Não posso deixar de combater pela salvação do meu Estado no pleito eleitoral de 29 de dezembro. Não me assiste o direito de contribuir, pela minha abstenção, para que a Bahia se encharque ainda mais quatro anos na política inominável da bancarrota, dilapidação e anarquia em que está submergida.

Tive a esperança de que essa gravíssima questão se lograsse dirirnir eonciliatòriamente. Mas os nossos adversários mostraram os caninos à solução apaziguadora, opondo-lhe a fórmula vermelha da candidatura do seu caudilho, a que a Bahia se opõe inteira, moralmente unânime.

A campanha não se agoura bem; porque eleições estaduais ali não há: o governo lhes fecha materialmente as urnas. Mas um caso de vida ou morte nos constrange a travá-la, se bem que nela entremos sem sombra da mais leve garantia de legalidade. Ê nessas condições desesperadas que, arrastados por uma necessidade inexorável, empreendemos reivindicar a própria existência da Bahia, virtualmente extinta, se a próxima eleição a não salvar, dando-lhe um governo íntegro e capaz, um governo eleito por ela e dela digno.

A honra de ir ajudá-la nesse propósito, cumprindo assim um dever sagrado, não me seria lícito a mim renunciá-la a troco de outra qualquer, por mais egrégia que seja, se acaso uma não pudesse coexistir com a outra.

Eis, meu caro Palma, a minha resposta, de que lhe peço dê conhecimento ao Dr. Epitácio Pessoa, mostrando-lhe esta carta, e entregando-lhe dela cópia autêntica, se S. Exa. o quiser; com o que muito obrigará ao seu velho am.° Rui Barbosa". Cópia in Arq. C. R. B.

(19) Em telegrama, de 21 de novembro de 1919, dirigido a Rui, soli-citarar-lhe o cunhado, Carlos Bandeira, o artigo que deveria marcar o início da gestão de Rui à frente do "Jornal do Comércio", conforme fora acertado antes da viagem para a Bahia. Rui não enviou o artigo. E jamais chegou a assumir efetivamente a direção do "Jornal do Comércio". Sobre o episódio deve ser consultado o livro do sr. Carlos Vianna Bandeira. "Lado a lado de Rui", pgs. 136/142.

(20) Cf. carta de Rui ao filho, Alfredo Rui, em 5 de abril de 1920, in Arq. C. R. B., e cujo teor é o seguinte: "Petrópolis, 5 de abril, 1920. Meu filho: Peço-te que mandes chamar ao escritório o dr. Porto da Silveira, e lhe entregue o incluso cheque de Rs.: 1:200$000. Dize-lhe que sinto muito não lhe poder, neste momento, enviar tudo; porque estes são os últimos restos do que eu tinha no banco. O caso da Bahia, além das despesas grandíssimas que me deu, interrompeu-me a advocacia desde fevereiro do ano passado.

Ao mesmo tempo envio-te a minha caderneta, para me mandares apurar o saldo. Se ainda sobrar alguma coisa, enviarei ao dr. Porto o que faltar para que êle pague a sua conta. Teu pai do C. Rui".

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X X V I — O H O M E M E A M Á S C A R A

A vida não tem mais que duas portas: uma de entrar, pelo nascimento, outra de sair, pela morte.

Rui.

&k PRINCIPIO Rui quis reagir contra a derrota. Chegou até a publicar nos jornais longa série de artigos, reunidos de

pois num volume, — "O artigo 6.° da Constituição" - criticando a intervenção militar decretada por Epitácio, que revidou ao apresentar ao parlamento a mensagem de praxe por ocasião da abertura das Câmaras. O trabalho, Rui o encimara com estas palavras: "À geração dos bacharéis de 1870 em São Paulo homenagem da fidelidade guardada neste meio século, às tradições de fervor jurídico daquele tempo pelo obstinado estudante autor deste livro". (]) De bom grado elo teria escrito: "obstinado e desiludido".

Tendo passado o limiar da velhice, que atenua os sofrimentos mas torna maiores os desenganos, aquela alma açoitada pelos vendavais das grandes paixões, varrida pelas tempestades dos ideais por que lutara, triturada pela timidez, dividida entre o Homem e o Apóstolo, e, por isso mesmo, muitas vezes contraditória, já não poderia manter a mesma agressividade selvagem, que lhe marcara a existência. Será, porém, que compreendera ter chegado a hora de preparar-se para a morte? Cada dia a saúde torna-se-lhe mais precária. Agora, se vai pronunciar algum discurso mais extenso, deve tomar antes um pouco de óleo canforado. E, à medida que as forças fogem, o desalento lhes vai tomando o lugar. A um amigo, Macedo Soares, com quem percorre as estantes da biblioteca imensa, diz com "um sorriso triste": "ninguém neste país suspeita o que eu sei". (2) É verdade que de quando em quando ainda se procura iludir. Em maio (1920), por exemplo, adquiriu alguns milhares de francos "para a hipótese de possível ida à Europa este ano". (3) E Maria Augusta, embora percebendo a decadência gradativa do marido, sente-se sem coragem para fa-lar-lhe francamente da temeridade de tal viagem.

O HOMEM E A MÁSCARA 383

Não seria preciso. Em setembro, quando o rei Alberto da Bélgica visitou o Brasil, Rui estava em Palmira num hotel de convalescentes. Além da fraqueza, afligia-o ter sido preterido das solenidades oficiais da recepção. Chegou até a guardar os jornais, com ásperos comentários sobre o assunto, num envelope onde escrevera com amargura: "A vinda do Rei Alberto, Rui excluído intencionalmente das manifestações oficiais. Epitácio-Rui. Confrontos da imprensa e linguagem dela. Jornais, etc. Setembro". (4) Talvez devido ao tom em que os jornais se referiram ao caso, o rei manifestou o desejo de agradecer a Rui a atitude assumida por ocasião da guerra e, "ainda não restabelecido", o convalescente deixou a estação de repouso para atender ao convite real. Dessa visita, apenas nos legou estas parcas linhas no seu pobre caderno de notas: "Visitei hoje o rei dos belgas no Palácio Guanabara. Lá conheci o sr. Charles Saroléa, que me pediu certos livros meus". (5) A vaidade do autor fizera-o esquecer o rei.

Entretanto, ao combatente sempre cheio de fé e de entusiasmo, não faria mal esse fim de vida dominado pelas desilusões atrozes. Esmagado pelas decepções, êle se deixaria avassalar por uma onda de ternura, que se reflete em muitas das páginas que então compôs com aquele cuidado de artista, o artista que sempre fora, amigo das frases sonoras e das imagens perfeitas. Chegaria assim a um estado de quase completa serenidade, disposto a tudo perdoar. Prova-o a resposta a um jornalista, que a êle se dirigia em termos irreverentes, atacando-o por haver dado certo parecer jurídico. Em outros tempos Rui teria vomitado algumas frases de fogo sobre a insolência. Agora, inclinado à tolerância, paciente, replicara num telegrama de três palavras: "Deus lhe perdoe". (6) Mudara muito.

Foi por esse tempo que escreveu a "Oração aos moços", nome dado ao discurso aos bacharéis nesse ano diplomados pela Faculdade de Direito de São Paulo. (6-A) Haveria cinquenta que êle aí também recebera o seu grau e, lembrando o acontecimento, os novos juristas convidaram-no para ser o paraninfo. A saúde não lhe permitiria comparecer à solenidade, que se realizou em março de 1921. Já em dezembro, aliás, quisera ir a São Paulo e o ameno dr. Luiz Barbosa obstara-lhe dedicadamente os passos com uma carta onde lisonjeava a velha e ingénua mania de Rui de entender de medicina. Realmente, talvez devido às reminiscências de jovem enfermo, quando procurara na biblioteca paterna uma solução para o seu caso, ou por influência das conversas com Fran-

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384 A VIDA DE RUI BARBOSA

cisco de Castro, que lhe fornecia notas e livros para os artigos sobre temas médicos, Rui sempre gostara de mostrar as suas pre-dileções pelas leituras desse género. "Não me queira mal, escre-vera-lhe o clínico opondo-se à viagem, por esse ousado veto contra a resolução de quem, mesmo em assuntos médicos, doutrina com inexcedível sabedoria e autoridade". (7) E êle concordara com a carta amável.

Entretanto, ao aproximar-se o dia da colação de grau dos bacharelandos, Rui pensou em fazer-lhes uma surpresa aparecendo inesperadamente na velha Academia. Pura fantasia. Mas, a alguém que lhe lembrara a condição de enfermo, ainda retrucara: "Por isso, não. Quando saí da Academia os médicos diziam que eu estava perdido e, no entanto, foi precisamente nesses cinquenta anos decorridos que o meu organismo tem provado a sua resistência". (8) Acabara, porém, desistindo da ideia e o discurso, que escrevera na sua maior parte em Petrópolis, entre acessos febris, foi levado pelos estudantes Soares de Melo e Manuel Junqueira Filho, e lido pelo professor Reinaldo Porchat. Nele não havia palavras amargas. Dir-se-ia que o tempo purificara a ira de Aquiles. Rui, sempre tão azedo nas suas paixões, trocara as frases candentes por um tom paternal e cheio de equanimidade. Por que? Por que não empunharia a mesma espada de fogo quando tinha a alma lacerada pelas desilusões? A razão parece estar no fato de haver atribuído o malogro da sua incessante batalha não à humanidade, mas apenas ao ambiente em que vivera inconformado e indómito, lutando para convertê-lo aos princípios daquelas civilizações anglo-saxônias sonhadas na juventude. Pudera assim passar pelas derrotas sem se deixar dominar pelo ceticismo e, já no umbral da eternidade, abrindo o coração para falar às novas gerações, não se lhe apagara a flama do idealista. "Estou vos abrindo o livro da minha vida. Se me não quiserdes aceitar, dizia, como expressão fiel da realidade esta versão rigorosa de uma das suas páginas com que mais me consolo, recebei-a, ao menos, como ato de fé, ou como conselho de pai a filhos, se não como testamento de uma carreira, que poderá ser discrepado muitas vezes, do bem, mas sempre o evangelizou com entusiasmo, e o procurou com fervor". Aliás, êle próprio advertira: "A bênção do paraninfo não traz fel. Não lhe encontrareis no fundo nem rancor, nem azedume, nem despeito". E era verdade. ' ií71

Nesse exame de consciência, verdadeira confissão duma vida farta em vicissitudes, Rui voltara-se sem ódio para os seus inimi-

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gos e sem queixa para as suas desventuras: "Desde que o tempo começou, lento e lento, a me decantar o espírito do sedimento das paixões, com que o verdor dos anos e o amargor das lutas o enturbavam, entrando eu a considerar com filosofia nas leis da natureza humana, fui sentindo quanto ela necessita de contradição, como a lima dos sofrimentos a melhora, a que ponto o acerbo das provações a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. Então vim a perceber que a imensa dívida cada criatura da nossa espécie deve aos seus inimigos e desfortunas". Agora, próximo do fim, julgava com indulgência os espinhos postos no seu caminho. E, satisfeito e orgulhoso da própria ascensão, animando com o seu exemplo aqueles jovens no começo da jornada, recordara a distância vencida entre a planície onde principiara e a cumiada atingida por um esforço paciente e ininterrupto: "Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse generoso, ninguém se creia malfadado, por lhe minguarem de nascença haveres e qualidades. Em tudo isso não há surpresas, que se não possam esperar da tenacidade e santidade do trabalho". Em seguida, revelando os segredos daquela vida fecunda, explicara aos que se preparavam para tomar o archote, que não deteria por muito tempo: "Ao que devo, sim, o melhor dos frutos do meu trabalho, a relativa exabundância da sua fertilidade, a parte mais produtiva e durável da sua safra, é às minhas madrugadas. Menino ainda, assim entrei no colégio, alvitrei eu mesmo a conveniência desse costume, e daí avante o observei, sem cessar, toda a minha vida". Sem amargor, êle abrira a cornucópia dos conselhos, deixando-os cair envoltos na sinceridade de quem se via falando quase d'além-túmulo. Ao mesmo tempo satisfazia-o essa volta ao passado, que, de certo modo, representava uma evasão. E, olhando para a própria alma, não se esquecera de dizer aos seus jovens colegas: "Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade". Podia afirmá-lo tranquilamente: fora assim o tímido orgulhoso.

Não ficaria, porém, aí essa maré de confissões. Rui continuava doente e talvez pensasse ser preciso preparar-se para a morte. À beira da sepultura parecia tocado pela imperiosa necessidade de rever aquele passado, comprazendo-se em revolvê-lo e analisá-lo. Era verdade que frequentemente falara de si, mas somente agora fazia-o sem ser para atacar ou defender-se ainda inflamado ante alguma acusação.

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:!H<; A VIDA DK m u HAKHOSA

Assim, prefaciando os volumes em que um editor — sob o título de "Queda do Império" — reunira nesse ano artigos publicados no "Diário de Notícias" até maio d e 1889, encontrara a oportunidade para continuar aquele exame de consciência iniciado na "Oração aos moços". Como verá êle, agora, aqueles últimos anos do Império? A maior par te do trabalho, mostrando quanto o fato o fizera sofrer, era dedicada à sua exclusão, em 1884, do ministério do conselheiro Dantas . Talvez desejoso de que a poster idade não associasse a vontade imperial à desventura, q u e o proscrevera do gabinete, estendia-se em longas considerações demonstrando a nenhuma responsabilidade d e D. Pedro I I naquele incidente cruel. Aliás, êle t ambém se deixara contaminar pela onda de saudade, misto de remorso e de veneração, com que o país cercava a memória do Imperador. Ainda em dezembro, depois de estar a p ique de ser o orador na repatriação dos restos mortais do bom rei, dissera enternecido ante o decreto revogando o banimento da família imperial: "Os que fizeram a República federativa não têm reivindicações contra as cinzas do velho Imperador, cujas virtudes eram muito maiores do que os seus defeitos". (9) Talvez arrependido daquelas venenosas objurgató-rias contra o monarca, Rui queimava o seu incenso para redimir-se das injustiças praticadas.

Realmente, aquele espírito refractário às ambições mesquinhas, mas devorado pelos grandes ideais, foi muitas vezes áspero com os adversários e tratou-os sem generosidade. Entretanto, embora jamais tivesse conhecido a perfeita paz interior, ou talvez por isso mesmo, desejava partir sem ódio àqueles a quem feriu. Escrevera no prefácio: "Ainda hoje estou na persuasão de que , em geral, fui justo. Pelo menos sempre trabalhei pelo ser. Mas, onde quer que contra a vontade, me tenha sucedido a desgraça de pecar contra as maiores de todas as leis, as leis da justiça e da caridade bem entendidas, perdoem-me os agravados, como Deus espero m e perdoará. Não pequei de propósito: terei pecado por erro, ignorância, ocasião, falibilidade incurável dos juízos humanos". Mas, como se essa penitência não bastasse, logo acrescentara: "Devo confessar, e confesso que, verdadeiro sempre quanto aos fatos (ao menos até onde m e estava ao alcance) nem sempre no apreciar dos indivíduos consegui acertar".

Teria êle algum dia usado linguagem semelhante? Rui era o primeiro a saber que não. Mas, escrevendo este capítulo de memórias, q u e chamou de "espécie de auto-retrato de 1921 aca-reado com o de 1889", desejava imprimir-lhe o cunho da sinceri-

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dade. Isso o fêz lembrar-se das suas mudanças e a elas se referiu sem temor. Não para arrepender-se, mas para assiná-las. "Onde, porém — dizia — creio se perceberá diferença mais sensível, é nos sentimentos religiosos. Profunda e inalteravelmente cristãos foram eles sempre. Mas, quem ler o "Diário de Notícias", como quem leia "O Papa e o Concílio", ou o "Discurso da Maçonaria", verá quanto vai do homem de 1876 e 1889 ao de 1919 e 1921: o da oração do paraninfo no Colégio Anchieta, o da oração do jubileu na Missa Campal e o discurso paranínfico em São Paulo". (10) Como um lutador decadente deleitando-se na contemplação das batalhas que travou, Rui parecia sentir estranho prazer revivendo esse passado. Ah! se pudesse fazê-lo voltar. Agora, que tudo é desencanto, consola-o desenterrar aqueles episódios amortalhados pelo Tempo.

Chegara, no entanto, a tal estado de desprezo pela política, que havia um ano resolvera abandonar a cadeira no parlamento. Adiara, porém, a efetivação dessa ideia a fim de não prejudicar a eleição de alguns amigos na Bahia. Contudo, em março desse ano, desaparecido o motivo, enviara ao senado a sua renúncia: "Busquei servir ao meu país e ao meu Estado natal, enquanto estive no erro de supor que lhes podia ser útil. Mas, acabando, por fim, de ver que não tenho meio de conseguir nada a bem dos princípios, a que consagrei a minha vida, e que a lealdade a essas convicções me tornou um corpo estranho na política brasileira, renuncio ao lugar, que, em quase contínua luta, ocupo, neste regime, desde seu começo, deixando a vida política para me voltar a outros deveres". (11) Vinte e dois anos antes, comentando o gesto de Quintino, que também renunciara o assento no Senado Rui escrevera na "A Imprensa": "Quando a franqueza do indivíduo se sente desarmada ante a fatalidade dos destinos de seu tempo, uma atração invencível para a obscuridade, um enjoo mortal da luta, um sentimento esmagador do nosso nada se apodera das índoles mais nobres, dos caracteres mais fortes. Aquele que da sua existência consagrou à de seu país tão larga parte, e com tamanha dignidade, fêz o que podia; e, se, por fim, sem deixar o seu ideal, já se não sente capaz da antiga fé na harmonia entre êle e o presente, ninguém terá o direito de lhe pedir contas pelo último ato de sinceridade e energia, que pratica, ausen-tando-se da cena". (12) Falara de Quintino lembrando-se de si próprio. E agora confessaria: "Nem era senão um reflexo do que dentro no meu espírito sentia acerca de mim mesmo grande parte do que escrevi sobre o sr. Quintino Bocaiuva". (13)

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388 A VIDA DE RUI BARBOSA

Em todo o país a renúncia causara indescritível emoção. Parecia impossível compreender-se o parlamento sem o Apóstolo e os seus próprios adversários, pesando as consequências dessa atitude que cobria o regime de descrédito, solicitaram-lhe que permanecesse no posto. Em junho, sob o governo de seus adversários e com o apoio destes, a Bahia renovou-lhe o mandato. E, numa esplêndida unanimidade, o parlamento pediu a Rui para aceitar a reeleição. Resistir a essas instâncias para tornar à arena nunca fora o seu forte: ainda uma vez êle acederia em continuar. "Embora me veja tal qual sou, dissera respondendo a uma comissão da Câmara incumbida de demovê-lo daquela deliberação, cheio de fraquezas e misérias, das culpas e nadas, com que se tecem todas as nossas grandezas, meu coração, por mais que se tenha contraído às provações ingratas da vida, não endureceu, e guarda incólume, no seu fundo, como o de toda criatura humana, um canto de sensibilidade, não sei se em mim cada vez mais vibrátil, que se reabre e expande, como certas flores de longa existência, quando rorejadas pelo orvalho das simpatias dos nossos semelhantes". (14)

Requestado por aquele mundo político, que sempre lhe fora mais ou menos contrário, Rui talvez tivesse imaginado poder realizar no crepúsculo da vida os seus velhos ideais integrando o país num regime de lei e liberdade. "De carvões cobertos pela cinza da experiência, afirmara quatro anos antes, não é que se há de reanimar a lareira extinta". (15) Mas, agora, iluminava-o, um breve raio de esperança.

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Onde buscar, porém, o calor necessário para reacender "os carvões cobertos de cinza?" A pergunta poderia ser embaraçosa para qualquer outro menos para um homem de imaginação. Ao redigir o prefácio à "Queda do Império", Rui debruçara-se embevecido sobre aquele passado que, apesar de tudo, ainda o encantava irresistivelmente. Vira-se surgir abatendo o Império para realizar a República tal qual a idealizara em vão e compreendera ter sido esse o grande lanço da sua vida. Recompusera na memória aqueles episódios fascinantes e acabara desejando representá-los novamente. E, ante essa visão do passado, "a lareira extinta" voltara a crepitar. Entretanto, agora, como outrora, não lhe parecia possível realizar alguma coisa de verdadeiramente grandioso, grandioso como foram sempre os planos que concebeu, sem o auxílio do exército. Durante trinta anos êle pregara a "republi-

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canização da República" com a mesma fé com que se batera para "republicanizar o Império". Por fim, desiludia-se. Ah! se pudesse ainda encontrar a espada de Deodoro!

O devaneio seduziu^o muito mais do que seria de esperar. Nesse ano, após longa permanência na Europa, o marechal Hermes voltara ao Brasil. Os camaradas haviam-no elegido presidente do "Club Militar", a prestigiosa associação do exército e justamente nessa ocasião começava-se a cogitar da escolha do sucessor do presidente Epitácio Pessoa. Por que não seria Hermes a espada que Rui procurava? Por que não a empunharia êle com a mesma firmeza do tio Deodoro? Rui deixou seduzir-se pela hipótese, que satisfazia à sua velha alma reformista e também tranquilizava os seus temores quanto ao destino, naquele momento, da revolução, que se lhe afigurava inevitável, caso não se regenerassem a estrutura e os costumes políticos do país. Aliás, exprimiu esses receios, pouco depois, nessas palavras: "Ninguém hoje pode invocar a revolução como porto seguro de liberdade. Nesses surgidouros insidiosos ninguém sabe o que a espera. Massas disformes atalham o acesso a eles; formas estranhas e tenebrosas lhes cortam a entrada; surpresas terríveis, acidentes monstruosos, como esses que, de súbito, submergiram, na Europa, os três grandes impérios militares fundados no direito divino". (16) Era, portanto, evidente que olhando o mundo surgido após a Guerra, temia a sorte da civilização liberal de que fora um dos mais poderosos divulgadores e combatentes. Hermes seria, porém, a revolução branca como fora Deodoro em 1889.

E as antigas incompatibilidades da campanha civilista? Sempre pronto a esquecer essas questões pessoais quando se tratava de favorecer a vitória das suas ideias, Rui relegou-as a um segundo plano: não constituiriam obstáculos intransponíveis. A reconciliação com Hermes marchou então a passos largos. Visi-taram-se e entenderam-se. Em junho, quando se empossou na presidência do "Club Militar", sentados à mesa, que dirigiu a solenidade, ladeavam-no Azeredo e Rui. Este discursou, lembrando a "aproximação misteriosa" que nos últimos cinquenta anos fizera-o caminhar paralelamente ao exército e, sobretudo, recordou-se de Deodoro: "Esta noite, ao transpor-vos as portas, na irradiação de luz que as inunda, na claridade que delas se derrama em torno, pareceu-me ver menear-se para mim um gesto conhecido, antolhou-se-me que me acenava com agasalho aquela destra amiga, que tantas vezes se estreitou à minha, a mão do velho Deodoro, o meu grande chefe dos quinze meses do govêr-

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390 A VIDA DE RUI BARBOSA

no provisório". (17) Hermes também falara, referindo-se ao "excelso Rui", "cerebração privilegiada, glória de nossa terra e de nossa raça". (18) Era surpreendente e a atitude do campeão da jornada civilista foi motivo de críticas acerbas. Sem poderem perceber os fundamentos reais daquela resolução, que representava principalmente o homem desiludido fugindo para o passado, muitos o acusaram de versátil. Entretanto, inteiramente entregue à sua fantasia, o romântico via apenas a possibilidade de recompor aqueles dias inquietos e cheios de esperanças da alvorada republicana. Representaria novamente o seu papel de condutor da revolução, que profetizara.

Esquecidos das ofensas recíprocas, Rui e Hermes trocavam amabilidades. A Nilo, Hermes dissera ser Rui um bom candidato à presidência da República. E, por sua vez, Ruí escrevera a Nilo: "Comprometido há mais de vinte anos com a política da revisão constitucional que busquei traduzir na plataforma de 1910, não me é lícito dar o apoio e a aprovação de meu voto senão à candidatura presidencial ligada a essas ideias e que conte com as simpatias do elemento militar". (19) O verbo e a espada se dariam as mãos numa aliança invencível. E, numa prova flagrante de que agia e pensava tendo os olhos postos no programa da revolução chefiada por Deodoro, Rui continuava: "considero o concurso delas imprescindível neste momento, pois tenho a situação atua! do país como mais grave que a de 1889, e vejo nesse elemento a força única da estabilidade e da reorganização que resta ao povo na dissolução e na anarquia geral que nos arrasta". Com mais rigor, pois esta era a verdade, poder-se-ia dizer que o Rui de 1921 se mostrava igual ao de 1889.

Seria breve a ilusão. De tudo isso ficaria apenas o vaticínio, e, para Rui, mais um desengano. Enquanto êle e Hermes vacilavam sem saberem qual dos dois deveria ser o candidato, Nilo, oportunista, e julgando poder colher as uvas maduras, avantajou-se a ambos, aceitando a indicação do seu nome. Pensamento erróneo, pois êle não seria o presidente. Contudo, dividindo as forças oposicionistas do país, tornava impossível aquela volta ao passado que Rui acalentara, talvez como a última esperança.

» » »

5 de julho de 1922. Pela madrugada os habitantes do Rio de Janeiro foram despertados pelo estrondo de alguns tiros de canhão. Muitos, apesar da hora, pensaram tratar-se de detonações

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nas pedreiras próximas à cidade. Entretanto, os tiros partiam do forte de Copacabana e representavam o sinal da revolução, que Rui ora temera, ora desejara, mas, sem dúvida, previra com lucidez. A sua causa imediata fora a prisão do marechal Hermes, que da presidência do "Club Militar" enviara uma circular sediciosa aos camaradas da guarnição de Pernambuco, advertindo-os que "a política passava, mas o exército ficava". Tinha, porém, origens bem mais remotas.

Contudo, nos acontecimentos que se haviam seguido à indicação de Nilo como candidato dos oposicionistas à suprema magistratura do país, Rui, talvez vingando-se de quem impedira aquela volta ao passado, colocara-se ao lado do candidato oficial, Artur Bernardes, homem tão impopular quanto seria possível e que se comprometera fazer a reforma constitucional. O Apóstolo estava assim em campo oposto ao da revolução e ao povo isso parecia estranho e contraditório. Esquecia-se depressa o júbilo nacional demonstrado dez meses antes, em setembro de 1921, quando Rui fora eleito para a Corte Permanente de Justiça Internacional, obtendo trinta e oito votos enquanto o segundo votado, o famoso internacionalista André Weiss, apenas alcançara trinta". (20) Nessa ocasião o senador Félix Pacheco apresentara um projeto mandando conceder a Rui um prémio de cinco mil contos, mas êle recusara altivamente a recompensa pelos serviços e pela glória que proporcionara ao Brasil. (21) Mas, agora, no crepúsculo da vida, mal julgado e incompreendido, via-se confundido na crítica dos jornais simpáticos a Nilo com aqueles políticos pragmáticos, que combatera tão rudemente.

A revolução foi rápida e vigorosamente esmagada. Na aparência não passava duma aventura temerária, que custara o sacrifício de alguns bravos idealistas e durara menos de vinte e quatro horas. Na realidade seria profunda e duradoura a sua repercussão. No entanto, Rui apenas assistiria a esse prenúncio da revolução, que vaticinara naqueles painéis cheios de nuvens negras, muito mais verdadeiras do que supunham os ouvintes. De fato, embora apenas servisse para que muitos o tivessem como um mero visionário, essa capacidade de ver longe foi uma das curiosas e impressionantes características daquela inteligência poderosa. No exílio, impressionado pelo anarquismo e o niilismo então em voga na Europa, e que antevia "armando os déspotas", escrevera estas palavras proféticas: "Quando esse melancólico fenómeno anoitecer o mundo, os países ingleses serão talvez a única zona da civilização moderna, onde os princípios liberais

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não .se tciao apagado. E por aí é que há de alvorecer o dia futuro". (22) Na velhice êle não perdera o gosto pelos vaticínios e, contemplando a humanidade insatisfeita que se levantava dos escombros da Guerra, divisara com lucidez algumas verdades. Com nitidez, previra o aparecimento das massas na equação política e isso o fizera temer as rebeliões: "Enquanto as revoluções eram políticas tinham praias, que as circundavam, e lhes punham raias visíveis. Depois que se fizeram sociais (e sociais são hoje todas), todas beiram esse Mar Tenebroso, cujo torvo mistério assombra de ameaças as plagas do mundo contemporâneo". (23) E, ao Apóstolo, que passara a vida pregando a Liberdade, enchera sobretudo de pavor a visão do "Estado arquípotente", ameaçando "o Estado reto, limitado e justo". Mas, justamente por alcançar com a aguda inteligência paragens quase inacessíveis aos outros, não conseguia que lhe dessem grande crédito.

Em agosto, Rui adoeceu gravemente. (24) Um edema pulmonar complicado com sintomas de uremia. Mas, depois de vários dias entre a vida e a morte, o organismo reagiu milagrosamente. Ficaria, porém, a marca indelével da moléstia. Dois anos antes, falando de si próprio, êle se referia a estas "paragens da vida, onde quase nada resta ao homem, para o absorver, senão a consciência e a fé nas coisas eternas". (25) Agora, cada dia a frase tornava-se mais dolorosamente verdadeira. Os médicos proi-biram-lhe qualquer leitura e êle se sente fraco. O menor esforço fatiga-o. E na "lareira extinta" apenas é possível divisar as últimas fagulhas. Há, porém, algumas coisas que de quando em quando ainda parecem soprá-la reanimando-a por breves instantes: o amor a Maria Augusta, o gosto pelas encenações teatrais e a paixão pela liberdade. A esses três sentimentos seria fiel até à morte. Em setembro, Charles Hughes, o conhecido estadista nor-te-americano, que se encontrava no Rio, quis visitá-lo. Deve ter-se surpreendido vendo que, no leito de convalescente, Rui preparara um pequeno discurso em inglês, falando-lhe do "destino comum aos Estados Unidos" e ao Brasil. Também o presidente de Portuga], António José d'Almeida, que passara a existência como clínico humanitário, e viera assistir às comemorações do centenário da independência do Brasil, foi levar-lhe nessa ocasião a Grã-Cruz de S. Tiago, "a mais alta comenda de Portugal para os seus intelectuais", e Rui agradecera-lhe chamando-o "o médico dos pobres em visita ao pobre doente". O enfermo ainda não renunciara ao prazer das palavras manejadas com arte.

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Assim, as honrarias douravam os dias derradeiros do Apóstolo, dias outrora cheios de rápidos, e hoje vazios e lentos. Também, que pode aspirar além dessas demonstrações de simpatia e admiração se a debilidade lhe tolheu quase inteiramente os movimentos e do homem de ação apenas existe uma sombra vaga? Em novembro, solicitado por Artur Bernardes, que assumiria o governo dentro dalguns dias, para ocupar a pasta do Exterior, Rui teve de recusar, apesar de lhe ser assegurada a nomeação de um subsecretário da sua confiança. "Não me considero, neste momento, com forças para o desempenho desse cargo", respondera agradecido. (26) O convite chegara com o atraso de alguns anos.

Em janeiro, já melhor, Rui pôde subir para Petrópolis. (26-A) Pouco antes, Maria Augusta posara para o artista francês Gustave Brisgand, que dela pintou um imponente pastel em corpo inteiro. Ela envelhecera mais discretamente do que o marido e o artista surpreendera com felicidade os traços da antiga beleza agora mais plácidos sob os cabelos prateados. O olhar tornara-se menos ardente e a boca não tinha as linhas nítidas c bem talhadas da mocidade. Conservara, porém, aquele ar distinto e sóbrio, agora talvez mais doce. O trabalho inspirou a Rui uma carta, onde palpitava o eterno apaixonado pela mulher. E, ao pintor, escrevera sentimental: "É com prazer que vos peço aceitar a segurança da minha admiração pelo retrato de Mme. Rui Barbosa; é uma verdadeira obra-prima! a beleza, a harmonia viva do conjunto, a perfeição dos pormenores, a reprodução do original, a verdade que dele respira, fazem-no um trabalho digno por si só de assegurar o invejável renome de um artista de primeira ordem". (27) O tempo, que quase tudo destruirá, não pudera sequer arrefecer aquele amor.

Aos poucos, Rui retomava em Petrópolis os seus hábitos. Voltara a ler e também se insurgia contra a dieta imposta pelos médicos. E, tão fiel às flores quanto a Maria Augusta, fazia-lhe bem passear entre os crisântemos policromos, as hortênsias comprimidas nos canteiros em tufos maravilhosos ou as roseiras, suas velhas preferidas. Às vezes, aquecendo o corpo fraco sob o sol brando das montanhas, dava algumas voltas pela cidade. Caminhava devagar e silencioso. Que pensamentos esvoaçariam por aquele espírito marcado pelos sofrimentos da infância, os conflitos da juventude e os desenganos do verão da vida, agora que se aproximava do patamar da eternidade? Talvez evocasse algumas figuras tão caras e que já haviam mergulhado no mis-

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394 A VIDA DE RUI BARBOSA

tério da morte: o bom cons. Albino ataviado na sobrecasaca negra com as suas comendas, sempre interessado pelos parentes, mesmo os mortos, dos quais fizera extensa galeria de retratos a óleo no palacete da rua dos Inválidos; o cons. Souto, apresen-tando-o a Maria Augusta; Rodolfo, belo e amado pelas mulheres, mas mortificado pela dúvida; o velho Dantas, jovial, limpando os óculos azuis com aquele ar de bonomia; e, antes de todos, Maria Adélia e João Barbosa ouvindo-o ler as páginas do Novo Testamento. Essas recordações talvez o levassem a lembrar-se do mar, aquele mar azul-celeste, tranquilo e profundo, que descortinara das janelas do "Diário da Bahia" e que na terra natal salta, por toda a parte, à vista dos habitantes, convidando-os à meditação.

As melhoras, no entanto, não seriam duradouras. A 27 de fevereiro, sentindo-se indisposto, Rui não foi no jardim. Recebeu, porém, alguns amigos com os quais deveria conversar sobre a escolha do candidato ao governo da Bahia, fato que o interessava intensamente. A reunião correu agitada, pois Aurelino Leal, um dos que deveriam comparecer, preferira escrever uma carta, opinando que se entregasse a solução do caso ao arbítrio do presidente Artur Bernardes. Irritado com a sugestão, Rui proferiu perante os poucos amigos um inflamado discurso. João Manga-beira, que estava presente, teve a impressão que o "leão rugia". (28)

Nessa mesma noite apareceram os primeiros fenómenos alarmantes e o dr. Corrêa Lemos diagnosticou um começo de paralisia bulbar. No dia seguinte, agravados os padecimentos do doente, foi chamado o dr. Luiz Barbosa, que confirmou o prognóstico sombrio. A notícia espalhara-se célere. Mas, tantas vezes êle já estivera mal, que as esperanças não desapareciam de todo.

Rui, no entanto, compreendera ter chegado ao fim da jornada e ao médico declarara resignado: "Doutor, não há mais nada a fazer". (29) Pouco depois, um franciscano, frei Celso, ministrou a extrema-unção ao doente, que a progressiva paralisia já não permitia falar. O olhar tornara-se vago. Mas, por volta das seis horas da tarde, Maria Augusta tomou-lhe as mãos entre as dela e perguntou-lhe se a reconhecia e, quase imperceptivelmente, êle balbuciara: "Então. . . en tão . . . " Tinham sido para ela as últimas palavras do moribundo, que faleceu duas horas depois. l.° de março de 1923. Frei Celso recitara as orações dos agonizantes. E sobre o peito do morto um crucifixo de marfim velho confun-diu-se com as mãos pálidas e descarnadas do Apóstolo, que outrora se deixara impressionar por aqueles versos de Shakespeare:

0 HOMEM E A MÁSCARA 395

" We are such stuff As dream are made on, and our little life Is rounded with a sleep".

*> » * O sonho acabara. O dr. Baldissara modelou no cadáver a máscara que, hoje, se

vê encerrada numa pequena caixa de vidro no centro da sala na biblioteca de S. Clemente. Entretanto, como o trabalho foi executado dois dias depois da morte, quando o fácies já estava entumecido e deformado, pouco lembra aquela fisionomia esquálida, cavada e de linhas fortes. Por um estranho destino, até na morte a máscara permanecia diferente do homem.

Dezessete anos passaram. A casa de S. Clemente, tal qual existiu no tempo de Rui, foi transformada num museu, em cujas salas amplas e cheias de livros, os visitantes passam emocionados, evocando a memória daquele que "estremeceu a pátria, viveu no trabalho e não perdeu o ideal".

Maria Augusta ainda vive. A viuvez tem-lhe sido muitas vezes penosa. Alfredo morreu. Mas, apesar desses sofrimentos, ainda profundamente humana, ela guarda certo encanto pela vida e conserva a mesma simpatia acolhedora de outros tempos. Frequentemente, vai rever o antigo lar. Faz perguntas aos empregados e interessa-se pelas menores coisas da "sua" casa. Há apenas um lugar que não quis mais ver: o quarto de dormir, o "seu" quarto, onde a cama vazia, tendo à cabeceira um quadro de Leão XIII com a bênção apostólica, recorda o ninho desfeito. E durante longas horas, contemplativa, como uma sombra errante naquelas salas silenciosas, ela se deixa embalar pela lembrança daquele passado feliz, que não voltará nunca mais.

NOTAS AO CAPÍTULO XXVI

(1) Rui imaginou escrever um segundo volume do "O artigo 6.° da Constituição", conforme se verifica das notas reunidas, e existentes no Arquivo da "Casa de Rui Barbosa". Constituiria a tréplica ao sr. Epitácio Pessoa. Sobre o assunto é interessante a seguinte carta: "Petrópolis, 25 de fevereiro de 1920. Exmo. Sr. Senador Rui Barbosa. Por se terem prolongado ontem as minhas audiências até depois de 7 horas da noite, só agora posso responder à carta de V. Exa.

Sinto que os motivos expostos nessa carta sejam para V. Exa. de molde a inibi-lo de aceitar o convite que tive o prazer de lhe dirigir para representar o Brasil no Conselho Executivo da Liga das Nações. Comigo estou certo lamentarão todos os brasileiros que V. Exa. não possa pôr nessa

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delegação os seus excepcionais dotes de jurisconsulto, de estadista e de olítico ao serviço da nossa Pátria e das grandes causas que ali se vão ebater.

Peço licença a V. Exa., para não discutir aqui, por já me parecer ociosa cm vista da sua resolução, as razões de fato e de direito em que o governo federal, depois de esgotar junto aos dois partidos em luta na Bahia os mais persistentes esforços por uma conciliação, se fundou para isso na consciência de um dever insofismável, no parecer uniforme dos comentadores da Constituição, na jurisprudência dos tribunais, nos votos do Congresso, nos precedentes da administração e nas lições do direito comparado. Com o maior apreço, tenho a honra de subscrecer-me de V. exa. At.0 Col.° Cr.0

adm.or Epitácio Pessoa". Rui pagou ao Jornal do Comércio 3:200$000 pela publicação dos artigos que constituíram o volume O artigo 6.° da Constituição. No recibo, à margem, êle colocou esta nota: "Só agora, 8 de janeiro, à noite acabo de receber aqui esta carta, que, portanto, só poderá ser paga segunda-feira, 10 do corrente, no Rio. Petrópolis, 8 de janeiro, 1921. Ruy B." Cf. António Joaquim da Costa, Rui Barbosa na intimidade, pg. 74/75. (Rio, 1949).

(2) Cf. J. E. Macedo Soares, "Rui Barbosa, o homem a pé", in "Estado da Bahia" de 12 de dezembro de 1940.

(3) No seu "Diário", em 18 de maio de 1920, colocou Rui esta nota: "Sinal por um camarote Royal Mail, 1:400$".

(4) In Arq. C. R. B. (5) Nota de Rui, no "Diário", em 15 de outubro de 1920. (6) Trata-se duma carta do jornalista Edmundo Bittencourt, em 8 de

outubro de '930, e na qual exprobrava a Rui o apoio dado a uma campanha do jornalista João do Rio, em favor do poveiros. A resposta de Rui, acima referida, é de 9 de outubro. Original c cópia, respectivamente, in Arq. C. R. B.

(6-A) Sobre o histórico da Oração aos Moços devem ser lidos o prefácio de Edgard Batista Pereira à Nova Edição publicada em 1956 pela "Casa de Rui Barbosa" e a carta de Carlos Pinto Alves aí publicada em apenso. Depoimento do maior valor é a magnífica Explicação Prévia escrita pelo prof. José Soares de Melo para a monumental edição da Oração aos Moços realizada pela Reitoria da Universidade de S. Paulo (1949). Nessa edição incluem-se as cartas de Rui a José Soares de Mello em 17.6.1920 e a Alfredo Pujol em l l .XI . 1920 e 17.XI. 1920, estando reproduzidos em fac-simile o texto original, dactilografado, e contendo emendas do próprio punho do autor.

Na edição da "Casa de Rui Barbosa" acima mencionada está o fac-simile das 3.as provas da edição "Dionysos", que Rui Barbosa reviu nelas colocando esta nota: "Provas revistas em 16 de agosto. Peço toda atenção. Ainda há incorreções, até de linhas inteiras. R. B." No fim: "Últimas provas. Ag. 16, 921." E a fls. 5: "Não há precisão de mais provas. Pode-se levar ao prelo a composição revista, uma vez emendadas as três pequenas incorreções indicadas a fls. 10, 27 e 35. Recebi estas provas ontem de noite. Ag. 31, 921. R. B."

(7) Cf. carta do Dr. Luís Barbosa a Rui, em 8 de dezembro de 1920, in Arq. C. R. B. (8) In "O Tempo", In Memoriam.

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O HOMEM E A MÁSCARA 397

(9) Cf. discurso de Rui na Liga de Defesa Nacional, em 14 de dezembro de 1920.

(10) Sobre a evolução dos sentimentos religiosos de Rui Barbosa, além do que já temos dito no presente traballio, será muito útil u consulta dos seguintes trabalhos: 1) Padre António Ferreira, "Rui Barbosa cm face da religião", Bahia 1918; 2) Monsenhor dr. Fernando Rangel. "Oração fúnebre nas exéquias do Cons. Rui Barbosa", Rio, 1923; 3) Cartadc Joiio de Assis Lopes Martins ao dr. Américo Jacobina Lacombe, em 24 d<- outubro de 1941, in Arq. C. R. B. 4) Luís Viana Filho, Rui & Nabuco, ciip. II.

(11) Renúncia apresentada ao Senado. Tem a data de 10 de março de 1921.

(12) Rui Barbosa, in "A Imprensa", em 25 d enovcmbio de 1889. (13) Rui Barbosa, discurso no Senado, em 30 de julho do 1921. (14) Rui Barbosa, discurso em resposta à Comissão da Câmara dos

Deputados, em 16 de julho de 1921. (15) Rui Barbosa, discurso aos Atiradores Baianos, no Teatro Lírico,

em 18 de setembro de 1916. (16) Rui Barbosa, discurso no Senado, em 30 de julho de 1921. (17) Rui Barbosa, discurso no Club Militar, em 27 de junho de 1921. (18) Cf. o "Correio da Manhã", de 27 de junho de 1921. (19) Cf. carta de Rui a Nilo Peçanha, em 15 de julho de 1921, cópia

in Arq. C. R. B. (20) Sobre a sua eleição para a Corte Permanente de Justiça Interna

cional dirigiu Rui ao ministro Amaro Cavalcante as cartas de 13 de agosto, 17 de agosto e 12 de setembro de 1921 A segunda está publicada, in "Correspondência", p . 245. As outras duas são as seguintes: "Rio, 13 de agosto, 1921. Amaro: A consulta, que me veio fazer ontem, por parte do governo, perguntando-me se, eleito membro do Tribunal Permanente de Justiça Internacional, aceitaria eu o cargo, me impôs o dever de lhe dar resposta com a maior urgência a franqueza.

Considerando-se (de um lado) a minha condição de chefe de família numerosa, que se não pode esquivar às obrigações daí decorrentes, e que vive exclusivamente do rendimento de seu trabalho, sem propriedade alguma donde haja qualquer receita, assim como (por outro fado) a exiguissima remuneração, que se consigna aos juízes daquela grande corte, — claro está que, dados esses vencimentos, não poderia eu subsistir, com os meus, acudindo aos encargos inevitáveis da minha situação aqui e na Europa, em país (além do mais) de vida cara como a Holanda, sem contar mesmo as despesas (hoje enormes) de viagem e as de representação no estrangeiro.

A suprema eminência e as responsabilidades incalculáveis de semelhante magistratura são inconciliáveis com os cuidados e contingências de uma posição, em que o homem não tenha seguros, sequer, os meios de houver de representar com dignidade o seu país.

Não me seria dado, pois aquiescer à honra, que se cobita em me dar. É com o maior pesar que dela declino. Não tenho outro meio de corresponder à sua altura e grandeza. Seu amigo Rui Barbosa." "Rio, 12 de set., 1921. Amaro: Sempre supus que, com a minha segunda e última carta (17 de agosto), se houvesse por aceita a escusa, que eu duas vezes opusera à eleição eventual de juiz no novo tribunal internacional.

É o que resultava dos termos dessa carta, onde eu assim começava: "Ontem, ponderando bem, depois da sua visita, a matéria, sobre que havia-

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898 A VIDA DE RUI BARBOSA

mos conversado, me convenci definitivamente de que a minha resposta decli-natória à consulta do ministro do exterior não admite reconsideração".

O mesmo era evidente das expressões, com que eu concluía: "Assim, podemos ter por concluído o incidente".

Não me tornou V. a falar, nem me impugnou por escrito, de maneira alguma. O caso, pois, estava, para mim, concluído.

Mas agora, pelos jornais de hoje, vejo que se continua a falar na hipótese da minha escolha, como se eu, de antemão consultado, a não houvesse recebido com a declarada escusa, que as circunstâncias me exigiam.

Ora, meu ilustre amigo, a minha escusa subsiste: e agora se reforça com uma consideração ainda mais decisiva. Estou vendo que o tribunal se vai reunir brevemente, no outono, ou em entradas do inverno; e a minha saúde, presentemente, me não deixaria suportar o frio europeu, com os compromissos de cargo de tamanhas responsabilidades.

Ainda tem o governo tempo de providenciar mediante os nossos representantes no estrangeiro, atalhando assim, se nisso realmente cuidam, uma eleição, infinitamente honrosa, mas a que não me estaria nas mãos aceder.

Peço-lhe, pois, que, continuando a sua intervenção, solicitada pelo governo, me faça a mim, como a êle, o serviço deste último passo, aceitando pelo novo obséquio os agradecimentos de seu col.a e am.° Rui Barbosa".

Sobre o mesmo assunto ver "O Tempo", In Memoriam, artigo intitulado "Juiz da Corte Permanente de Justiça Internacional".

(21) Vejam-se as cartas de Rui ao sr. Félix Pacheco, em 28 e 31 de agosto de 1921, in "Correspondência", p . 426-428.

(22) Rui Barbosa, carta a A. Jacobina, em 20 de agosto de 1894, in "Mocidade e Exílio", p. 241.

(23) Rui Barbosa, disevirso no Senado, cm 39 de julho de 1921. (24) Rui adoeceu cm 11 de agosto, e somente no dia 14 apresentou

ligeiras melhoras. (25) Rui Barbosa, discurso, cm 30 de julho de 1921. (26) Cf. cópia existente in Arq. C. R. B. Tem a data de 1.° de

novembro de 1922. Encontram-se, aliás, no arquivo da "Casa de Rui Barbosa" outros rascunhos da resposta de Rui a Francisco Sá

(26-A) A propósito da casa de veraneio de Rui em Petrópolis, na rua Ipiranga, informa Naylor Bastos Villas-Boas. A Rui o que é de Rui, pg. 143, que, além dessa propriedade, possui Rui outra em Petrópolis, "que lhe resultou de hipoteca a êle feita por uma senhora em penosa situação, a qual lhe ficou a dever certos honorários de advogado em 1919". A informação não é exata. Conforme o depoimento que nos prestaram os srs. Carlos Viana Bandeira e A. Batista Pereira a dívida resultou não de honorários, mas de um empréstimo de dinheiro feito a pedido deste úlitmo. O que é confirmado pela escritura de dação in-solutum que faz D. Cecília Armand de Mello Franco ao cons. Rui Barbosa do prédio sito à Av. 7 de Abril, n.° 26. Escritura de 5 de Abril de 1921 no 15.° Ofício, tabelião T. Moreira. V. Arq. C. R. B. pasta relativa a D. Cecília Armand de Mello Franco.

(27) A carta, escrita em francês, foi publicada no "Jornal do Comércio", de 9 de janeiro de 1923.

(28) Devemos à gentileza do dr. João Mangabeira a informação. (29) Cf. Fernando Nery, "Rui Barbosa", p . 179.

NOTA E BIBLIOGRAFIA

O leitor talvez haja sentido a falta das habituais notas e referências ao pé de cada página e que, propositadamente, a fim de não o fatigar com frequentes interrupções, preferimos inserir no fim de cada capítulo, onde, ao par das fontes de que nos valemos, encontrará informes que julgamos de valor, sobre o assunto. Para aqueles que desejam conhecer a vida de Rui nos seus pormenores ou verificar quanto buscamos ser justos com os homens e fiéis aos fatos, consignamos aqui a bibliografia e documentos por nós consultados, e entre os quais se destacam, além das obras abaixo enumeradas, não só os múltiplos trabalhos do biografado, como é óbvio, mas também os jornais da época, os Anais da Assembleia Legislativa da Bahia, os Anais da Câmara dos Deputados do Império, da Constituinte de 1890-91, do Senado Federal, a coleção de manuscritos de Rui existente na Biblioteca Municipal de São Paulo, e os arquivos do Cons.° João Moura, no Instituto Histórico da Bahia, do cons.° João Alfredo, no Instituto Histórico Brasileiro, do barão do Rio Branco, no Itamarati, do cons.° Saldanha Marinho, no Arquivo Municipal do Rio de Janeiro, e, especialmente, o da "Casa de Rui Barbosa", gentilmente posto à nossa disposição pelo dr. Américo Jacobina Lacombe.

Também nos foram muito preciosas as informações prestadas pela Exma. Sra. Viúva Rui Barbosa, assim como aquelas com que nos distinguiram D. Amália Barbosa Lopes e D. Maria Cândida Gesteira, que nos confiaram suas lembranças de família, esclarecendo-nos sobre vários pontos da infância e da adolescência de Rui. Aliás, não menos valiosas foram as indicações recebidas dos srs. Afrânio Peixoto, Homero Pires, João Mangabeira, cónego Paiva Marques, Américo Jacobina Lacombe, Pedro de Almeida e Otávio de Souza Dantas. Seria, porém, injusto se não mencionássemos separadamente os nomes dos nossos amigos Aliomar Baleeiro, Álvaro França Filho e Álvaro Nascimento, dedicados colaboradores.

AFONSO CELSO: Oito Anos de Parlamento. Rio, 1901.

AFONSO RUI: Correspondência íntima de Rui Barbosa. Bahia, 1933.

AFRÂNIO PEIXOTO: Ramo de Louro, São Paulo, 1928.

ALMEIDA NOGUEIRA: Tradições e Reminiscências. São Paulo, 1908.

ALOÍSIO DE CASTRO: Discursos Médicos, Rio, 1940.

ALUIZIO NAPOLEÃO: O segundo Rio Branco, Rio, 1941.

ÁLVARO ALENCASTRO: Rui Literário e Político. Rio, 1929.

AMÉRICO BRASILIENSE: Os programas dos Partidos e o 2.° Império.

Page 216: Luis Vianna a Vida de Rui Barbosa

K)() A VIDA ])K KUI BARBOSA

AMIÍIIICO IACOUINA LACOMBE: Mocidade e Exílio de Rui Barbosa, Siío Paulo, 1934.

ANDHf') UKBOUÇAS: Diário. Rio, 1938.

ANTÓNIO CONSTANTINO: Espírito de Nacionalidade da fundação dos

cursos jurídicos da Faculdade de Direito de São Paulo. São Paulo, 1940.

BATISTA PEREIRA: Catálogo das Obras de Rui Barbosa. Rio, 1929.

BATISTA PEREIRA: Figuras do Império. São Paulo, 1934.

BATISTA PEREIRA: Ruí estudante. São Paulo, 1925.

BATISTA PEREIRA: Vultos e episódios do Brasil. São Paulo.

CAMPOS SALES: Da propaganda à Presidência. São Paulo, 1908.

CARLOS VIANNA BANDEIRA: Lado a lado de Rui.

CARNEIRO RIBEIRO: Ligeiras Observações. Bahia, 1902.

CAROLINA NABUCO: A vida de Joaquim Nabuco. São Paulo, 1928.

CLÓVIS BEVILÁQUA: História da Faculdade de Direito de Recife. Rio.

DUNSHEE DE ABRANCHES: Atos e atas do Governo Provisório. Rio, 1907.

EDUARDO RAMOS: Correspondência, notas e colóquios. Rio, 1914.

EDUARDO RAMOS: Prosas de Cassandra. Rio, 1918.

ELOI PONTES: A vida contraditória de Machado de Assis. Rio, 1939. FERNANDO NERI: Rui Barbosa. Rio, 1932.

FREDERICO DE S. (EDUARDO PRADO): Fastos da ditadura militar no Brasil. 1890.

GASTÃO PEREIRA DA SILVA: Rodrigues Alves e sua época. Rio.

HEITOR LIRA: História de D. Pedro II, 3 vols. São Paulo, 1938-1940.

HÉLIO VIANA: "Rui Barbosa e Eduardo Prado", in Revista Brasileira, julho 1943.

HERMES LIMA: Tobias Barreto. São Paulo, 1939.

HILDEBRANDO ACCIOLY: "O Barão do Rio Branco e a 2 . a Conferência de Haia", in Rev. Inst. Brasileiro, vol. 187.

HOMERO PIRES: Correspondência de Rui Barbosa. São Paulo, 1933.

J. F . NORMANO: Evolução Económica do Brasil. São Paulo, 1939.

J. J. BROUSSON: Itineraire de Paris a Buenos Aires. Paris, 1928.

JOAQUIM NABUCO: A minha formação. Rio, 1900.

JOAQUIM NABUCO: Escritos e discursos literários. Rio, 1901.

JOAQUIM NABUCO: Um estadista do Império, 3 vols. São Paulo, 19.36.

NOTA E BIBLIOGRAFIA 401

JOÃO MANGABEIRA: "Rui, o estadista da República". Rio, 1943.

JOSÉ MARIA BELO: História da República. São Paulo, 1940.

JOSÉ MARIA BELO: Rui Barbosa.

JOSÉ MARIA DOS SANTOS: A política geral do Brasil. Rio, 1926.

LEÃO TEIXEIRA FILHO: O centenário do visconde do Cruzeiro. Rio, 1931.

LUIZ DELGADO: Rui Barbosa. Rio, 1945.

LUIZ VIANA FILHO: A Sabinada. Rio, 1938.

MACHADO DE ASSIS: A Semana. Paris, edição prefaciada por Mário de Alencar.

MÁRIO DE LIMA BARBOSA: Rui Barbosa. Tours, 1916.

MAX FLEIUSS: História Administrativa do Brasil. São Paulo, 1925.

MEDEIROS E ALBUQUERQUE: Minha Vida, 2 vols. Rio, 1934.

MORENO BRANDÃO: Rui Barbosa. Rio, 1938.

MOTA FILHO: Uma grande vida. São Paulo, 1931

NAZARÉ MENEZES: Rui Barbosa, sua vida e sua obra. Rio, 1915.

OLIVEIRA LIMA: Memórias. Rio, 1937.

OURO PRETO: Advento da ditadura no Brasil. Paris, 1891.

PANDIÁ CALÓGERAS: Formação do Brasil. Rio, 1931.

PEDRO CALMON: História da Civilização Brasileira. São Paulo, 1933.

PEDRO CALMON: História Social do Brasil, 3.° vol. São Paulo, 1939.

PEDRO CALMON: O Rei Filósofo. São Paulo, 1938.

PEDRO CALMON: Vida e amores de Castro Alves. Rio, 1925.

RIVADÁVIA CORRÊA: A verdade sobre a situação financeira do Brasil, em 1914. Rio, 1919.

RODRIGO OTÁVIO: Minhas Memórias dos Outros, 3 vols. Rio, 1934.

SERTÓRIO DE CASTRO: A República que a Revolução destruiu. Rio, 1932.

SPENCER VAMPRÉ: Memórias para a história da Academia de São Paulo, 2 vols. São Paulo, 1924.

TOBIAS MONTEIRO: Pesquisas e depoimentos. Rio, 1913.

ULISSES BRANDÃO: Rui, estudante no Recife, in Jornal do Comércio 5-6-1927.

VICENTE QUESADA: Mis Memórias Diplomáticas. Imprenta de Coni Hermanos.

XAVIER MARQUES: A vida de Castro Alves. Rio, 1924. XAVIER MARQUES: Letras Académicas. Rio, 1933.

Page 217: Luis Vianna a Vida de Rui Barbosa

Í N D I C E

I — Os Barbosas 3

II — O sofrimento conduz ao prazer . . . . 9

III — A formiga entre as cigarras 19

IV - Ensaios 40

V — Escravo dos credores 52

VI — Maria Augusta 61

VII - "O Papa e o Concílio" 70

VIII — Duas Câmaras 86

IX - A Reforma 103

X — O seu próprio retrato 118

XI — Escravidão e liberdade 128

XII - Derrotas 142

XIII — A grande experiência 155

XIV - Encruzilhada 170

XV - O Imperador 182

XVI - Ouro e papel 193

XVII - Fausto e Mefistófeles 219

XVIII — A luta contra a violência 228

XIX - Exílio 246

XX — A sombra de um morto 266

XXI — O caminho do poder 283

XXII - Haia 304

XXIII — Sob os muros de Tróia 324

XXIV - A guerra 349

XXV - Glórias e lutas 365

XXVI — O homem e a máscara 382

Nota e bibliografia 399