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machadao caderno zero · 2020. 6. 21. · ISBN 978-85-7511-132-1 1. Assis, Machado de, 1839-1908. 2. Literatura para jovens. I. Chiara, Ana Cristina. CDU 869.0(81) (08) As imagens

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  • Machadopara jovensleitores

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  • Reitor

    Ricardo Vieiralves de Castro

    Vice-reitora

    Maria Christina Paixão Maioli

    REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

    Presidente do Brasil

    Luiz Inácio Lula da Silva

    Ministro da Cultura

    Juca Ferreira

    FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL

    Presidente

    Muniz Sodré de Araújo Cabral

    Diretora Executiva

    Célia Portella

    Coordenador-Geral de Pesquisa e Editoração

    Oscar Manoel da Costa Gonçalves

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  • Rio de Janeiro2008

    Machadopara jovensleitores

    Organização

    Ana Cristina Chiara

    Antonio Carlos Secchin

    Denise Brasil

    Ivo Barbieri

    machadao caderno zero.pmd 9/10/2008, 16:483

  • Copyright © 2008, Organizadores Ana Cristina Chiara, Antonio Carlos Secchin, Denise Brasil e Ivo Barbieri.Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É proibida a duplicaçãoou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, sob quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.

    EdUERJEditora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRORua São Francisco Xavier, 524 – MaracanãCEP 20550-013 – Rio de Janeiro – RJTel./Fax.: (21) 2587-7788 / 2587-7789www2.uerj.br/[email protected]

    Editor Executivo Ítalo MoriconiAssessoria Gerencial Carmen da MattaCoordenador de Publicações Renato CasimiroCoordenadora de Produção Rosania RolinsCoordenador de Revisao Fábio FloraRevisão Andréa Ribeiro e Milena Martins MouraProjeto, Capa e Diagramação Heloisa FortesIlustrações dos contos José Carlos BragaApoio Administrativo Maria Fátima de Mattos

    Conselho Editorial

    Evanildo BecharaItalo Moriconi (Presidente)Luiz Antonio de Castro SantosNelson MassiniPedro Colmar Gonçalves da Silva Vellasco

    CATALOGAÇÃO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

    A848 Machado para jovens leitores / Organização, Ana CristinaChiara [et al.]. – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.184p.

    ISBN 978-85-7511-132-1

    1. Assis, Machado de, 1839-1908. 2. Literatura para jovens. I. Chiara, Ana Cristina.

    CDU 869.0(81) (08)

    As imagens de Machado de Assis utilizadas neste livro foram cedidas pela ABL.

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  • Sumário

    Nota editorial 9

    Caro(a) leitor(a), 11

    Amor e desamor 13

    Flores e livros 15

    Quando ela fala 16

    O primeiro beijo 17

    O penteado 19

    A cartomante 21

    Do diário de Aires 29

    À Carolina 31

    Gosto da liberdade 33

    13 de maio de 1888 35

    Conto de escola 36

    Pancrácio 43

    Um gatuno 45

    Artes e artistas 47

    A vida é uma ópera 49

    Um homem célebre 52

    Cantiga de esponsais 60

    Instinto de nacionalidade 64

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  • Loucos 69

    O alienista 71

    Os navios do Pireu 72

    Torrente de loucos 73

    Ó gira! Ó gira! 76

    Antes um navio no Pireu que cem cavalos no pampa 79

    Fuga do hospício da Praia Vermelha 82

    Tipos inesquecíveis 85

    José Dias 87

    O sineiro da Glória 88

    Dona Plácida 90

    O administrador interino 92

    Esse Aires 94

    Paula Brito 96

    Na arca de Noé 97

    Bichos de estimação 99

    Conversa de burros 100

    Quincas Borba 104

    Idéias de canário 106

    A borboleta preta 110

    Contradições humanas 113

    Círculo vicioso 115

    O vergalho 116

    O verdadeiro Cotrim 117

    Era uma vez uma choupana 119

    História da carochinha 120

    Volúpia do dinheiro 123

    A carteira 125

    O embrulho misterioso 129

    O empréstimo 131

    A esmola da felicidade 138

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  • Sátira política 141

    Lobo Neves 143

    Tabuleta nova 144

    A Sereníssima República 148

    (conferência do cônego Vargas)

    O dicionário 155

    Arquivo 159

    Textos de Machado de Assis 161

    Machado na ABL 162

    Carta a Joaquim Nabuco 165

    Textos sobre Machado de Assis 167

    A última visita (Euclides da Cunha) 168

    Páginas de saudade (Mário de Alencar) 170

    Memórias póstumas de Brás Cubas 172

    (Capistrano de Abreu)

    Posfácio 177

    A um bruxo, com amor 178

    (Carlos Drummond de Andrade)

    Nota biográfica 181

    Cronologia da obra 183

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  • machadao caderno zero.pmd 9/10/2008, 16:488

  • 9

    Nota editorial

    O conteúdo deste livro está organizado por seções temáticas, definidas a

    partir dos assuntos mais característicos da obra machadiana. Cada seção agrupa

    textos de gêneros diversos e épocas diversas da vida do escritor, mantendo

    porém a ênfase na prosa de ficção, pois é essa que confere a Machado o status

    de mestre maior da literatura brasileira e universal.

    O foco da presente seleção é o texto em si, buscando propiciar uma

    experiência de contato direto com a obra. Cada item da antologia é apresentado

    como peça narrativa individual. Os contos selecionados estão publicados na

    íntegra, ao passo que os trechos recortados de romances são apresentados como

    histórias autônomas. Em alguns casos, demos um título fantasia para uso apenas

    da presente edição, como em “José Dias” (trecho extraído do capítulo “Um dever

    amaríssimo”, de Dom Casmurro) ou “13 de maio de 1888” (que na versão original

    é “14 de maio de 1888”). Ao final de cada conto ou trecho de romance, é dada a

    referência do livro de que foi extraído, como indicação para possíveis explorações

    futuras da obra de Machado por parte do leitor. A mesma regra é seguida nos

    poemas. No caso das crônicas e outras peças jornalísticas, indica-se a data de sua

    publicação original. No final do volume, o leitor encontrará uma breve nota

    biográfica sobre o autor e uma cronologia da obra, contendo as datas das

    primeiras edições de cada livro de Machado.

    Acentuando seu caráter de mosaico de textos, e a proposta de contato

    direto do leitor iniciante com a obra, o volume começa de maneira lúdica com

    uma colagem de frases e parágrafos retirados de diferentes obras de Machado,

    no lugar do que seria usualmente a apresentação ou o prólogo. São frases e

    textos em que Machado comenta o fazer literário.

    Na última seção temática, intitulada “Arquivo”, leva-se ao leitor um mosaico

    de documentos de e sobre Machado. Desse “arquivo” constam trechos de discursos

    de Machado na Academia Brasileira de Letras – instituição por ele criada e que nele

    teve seu primeiro presidente –, assim como trechos de carta ao amigo Joaquim

    Nabuco. O volume se encerra com textos sobre Machado escritos por contemporâneos

    e, finalmente, no lugar do posfácio, um poema em sua homenagem, escrito no ano do

    centenário de seu nascimento pelo poeta Carlos Drummond de Andrade.

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  • Caro(a) leitor(a),Caro(a) leitor(a),Caro(a) leitor(a),Caro(a) leitor(a),Caro(a) leitor(a),

    [...] vários escritos de ordem diversa [...] não vieram para aquicomo passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria.São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fezsentar à mesma mesa (Papéis avulsos). Supõe um fio de anedotasou uma história comprida, [...] porque há estados da alma emque a matéria da narração é nada, o gosto de a fazer e de aouvir é que é tudo (Esaú e Jacó). [...] fazer de conta que estásno teatro, entre um ato e outro, conversando. [...] não te esqueçasde contar anedotas [...] e virtudes [...]. As virtudes devem sergrandes e as anedotas engraçadas. Também as há banais, mas amesma banalidade na boca de um bom narrador faz-se rara epreciosa (Esaú e Jacó).

    Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil.O livro está nas mãos do leitor (Papéis avulsos). O que importaunicamente é dizer a origem destas páginas. Umas são contos enovelas, figuras que vi ou imaginei, ou simples idéias que medeu na cabeça reduzir a linguagem (Páginas recolhidas). Direisomente, que se há aqui páginas que parecem meros contos, eoutras que o não são, [...] defendo-me com São João e Diderot.O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica,acrescentava (XVII, 9): “E aqui há sentido, que tem sabedoria”.[...] Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escreviacontos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo

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  • 12

    que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que quandose faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vidaacaba, sem a gente dar por isso (Papéis avulsos).

    [...] o maior defeito deste livro és tu, leitor. [...] tu amas a narração direitae nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como osébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... (Memórias póstumas deBrás Cubas). [Francamente eu não gosto de gente que deseja] chegar já aocapítulo do amor ou dos amores, que é o seu interesse particular nos livros.[A senhora, amiga minha, se quer compor o livro,] tenha confiança noredator destas aventuras (Esaú e Jacó).

    Note que aqui lhe poupei o trabalho[, leitor]; não o obriguei a achar porsi o que, de outras vezes, é obrigado a fazer. O leitor atento, verdadeiramenteruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassaros atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estarescondida (Esaú e Jacó). Aqui é que eu quisera ter dado a este livro ométodo de tantos outros – velhos todos –, em que a matéria do capítuloera posta no sumário: “De como aconteceu isto assim, e mais assim”. [...] Éclaro, é simples, não engana a ninguém; [...] quem não quer ler não lê, equem quer lê, para os últimos é que o autor conclui obsequiosamente(Quincas Borba).

    O melhor prólogo é o que contém menos coisas [...]. Conseguintemente,evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição [...].Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimentoda obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me datarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote [...] (Memórias póstumasde Brás Cubas). Supondo, porém, que o meu fim é definir estas páginascomo tratando, em substância, de coisas que não são especialmente do dia,ou de um certo dia, penso que o título está explicado. E é o pior que lhepode acontecer, pois o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisade explicação (História sem data).

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  • Am

    or e

    de

    sa

    mo

    r

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  • 14

    Não há como a paixão do amor parafazer original o que é comum, e novo oque morre de velho.

    Cada qual sabe amar a seu modo; omodo pouco importa; o essencial é quesaiba amar.

    Este mundo é dos namorados.

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3114

  • 15

    Flores e livrosFlores e livrosFlores e livrosFlores e livrosFlores e livros

    Teus olhos são meus livros.Que livro há aí melhor,Em que melhor se leiaA página do amor?

    Flores me são teus lábios.Onde há mais bela flor,Em que melhor se bebaO bálsamo do amor?

    Falenas

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3115

  • 16

    Quando ela falaQuando ela falaQuando ela falaQuando ela falaQuando ela fala

    She speaks!O speaks again, bright angel!(Shakespeare)

    Quando ela fala, pareceQue a voz da brisa se cala;Talvez um anjo emudeceQuando ela fala.

    Meu coração doloridoAs suas mágoas exala.E volta ao gozo perdidoQuando ela fala.

    Pudesse eu eternamente,Ao lado dela, escutá-la,Ouvir sua alma inocenteQuando ela fala.

    Minh’alma, já semimorta,Conseguira ao céu alçá-la,Porque o céu abre uma portaQuando ela fala.

    Falenas

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3116

  • 17

    O primeiro beijo

    Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por

    trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente

    máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se era uma

    criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era

    um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote

    na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o

    corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para

    dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que

    foi preciso deitá-lo à margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e

    vermes, e, por compaixão, o transportou para seus livros.

    Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina

    que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou

    para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma...

    uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é

    castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma

    dama espanhola, Marcela, a “linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do

    tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um hortelão das Astúrias, disse-

    mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a opinião aceita é que nascera de

    um letrado de Madri, vítima da invasão francesa, ferido, encarcerado,

    espingardeado, quando ela tinha apenas doze anos. Cosas de España. Quem quer

    que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a verdade é que Marcela não possuía

    a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça,

    lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não

    permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa,

    impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por

    um certo Xavier, sujeito abastado e tísico – uma pérola.

    Vi-a, pela primeira vez, no Rossio Grande, na noite das luminárias, logo

    que constou a declaração da independência, uma festa de primavera, um amanhecer

    da alma pública. Éramos dois rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com

    todos os arrebatamentos da juventude. Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e

    vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara

    nas mulheres puras. – Segue-me, disse ela ao pajem. E eu segui-a, tão pajem como

    o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3117

  • 18

    das primeiras auroras. A meio caminho, chamaram-lhe “linda Marcela”, lembrou-

    me que ouvira tal nome a meu tio João, e fiquei, confesso que fiquei tonto.

    Três dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma

    ceia de moças, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela. O Xavier, com todos

    os seus tubérculos, presidia ao banquete noturno, em que eu pouco ou nada comi,

    porque só tinha olhos para a dona da casa. Que gentil que estava a espanhola!

    Havia mais uma meia dúzia de mulheres – todas de partido – e bonitas, cheias

    de graça, mas a espanhola... O entusiasmo, alguns goles de vinho, o gênio imperioso,

    estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa única; à saída, à porta da rua,

    disse a meu tio que esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.

    – Esqueceu alguma coisa? – perguntou Marcela de pé, no patamar.

    – O lenço.

    Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos,

    puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. Não sei se ela disse alguma coisa, se gritou,

    se chamou alguém; não sei nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como

    um tufão, e incerto como um ébrio.

    Memórias póstumas de Brás Cubas

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  • 19

    O penteado

    Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos

    cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas

    pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela

    era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe

    que se sentasse.

    – Senta aqui, é melhor.

    Sentou-se. “Vamos ver o grande cabeleireiro”,

    disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com

    muito cuidado, e dividi-os em duas porções

    iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz

    logo, nem assim depressa, como podem supor

    os cabeleireiros de ofício, mas devagar,

    devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios

    grossos, que eram parte dela. O trabalho era

    atrapalhado, às vezes por desazo, outras de

    propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os

    dedos roçavam na nuca da pequena ou nas

    espáduas vestidas de chita, e a sensação era

    um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam

    acabando, por mais que eu os quisesse

    intermináveis. Não pedi ao céu que

    eles fossem tão longos como os da

    Aurora, porque não conhecia ainda

    esta divindade que os velhos poetas

    me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos,

    tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável

    de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes

    uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma

    ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus

    olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos

    somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e

    pagãs. Enfim, acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas?

    Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das

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  • 20

    tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra alargando aqui, achatando ali, até

    que exclamei:

    – Pronto!

    – Estará bom?

    – Veja no espelho.

    Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais

    que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que

    me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo.

    Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de um na linha

    da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar

    o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.

    – Levanta, Capitu!

    Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro,

    até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...

    Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até a

    parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me

    clarearam, vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda

    que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto

    que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e

    mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des

    Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.

    Dom Casmurro

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  • 21

    A cartomante

    Hamlet observa a Horácio que há mais coisas

    no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.

    Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao

    moço Camilo, numa sexta-feira de novembro

    de 1869, quando este ria dela, por ter ido na

    véspera consultar uma cartomante; a diferença

    é que o fazia por outras palavras.

    – Ria, ria. Os homens são assim; não

    acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela

    adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo

    que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou

    a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta

    de uma pessoa...”. Confessei que sim, e então

    ela continuou a botar as cartas, combinou-

    as, e no fim declarou-me que eu tinha medo

    de que você me esquecesse, mas que não era verdade...

    – Errou! – interrompeu Camilo, rindo.

    – Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua

    causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

    Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe

    queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo caso, quando

    tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a;

    disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...

    – Qual saber! Tinha muita cautela, ao entrar na casa.

    – Onde é a casa?

    – Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião.

    Descansa; eu não sou maluca.

    Camilo riu outra vez:

    – Tu crês deveras nessas coisas? – perguntou-lhe.

    Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que

    havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,

    paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova

    é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3121

  • 22

    Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões.

    Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro

    de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia

    em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião,

    ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma

    dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada.

    Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar

    tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade;

    diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

    Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser

    amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr

    às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se

    lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma

    comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de

    Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem

    para a casa da cartomante.

    Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das

    origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a

    carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai,

    que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até

    que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela

    da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a

    magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os

    lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

    – É o senhor? – exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como

    meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.

    Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois,

    Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas

    do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e

    interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte

    e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais

    velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática.

    Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no

    berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

    Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu

    a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3122

  • 23

    dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou

    especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

    Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que

    gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma

    irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele

    aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos

    livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez

    e jogavam às noites; – ela mal – ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até

    aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam

    muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias,

    as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala

    de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e

    foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos

    do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,

    deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a

    mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem,

    assim são as coisas que o cercam.

    Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente,

    foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e

    pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos,

    remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória

    delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí

    foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de

    ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando

    estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser

    as mesmas.

    Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava

    imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo,

    e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este

    notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola

    de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas

    cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-

    próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos

    dura a aleivosia do ato.

    Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante

    para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3123

  • 24

    que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter

    feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou

    três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,

    mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita que, por outras

    palavras mal compostas, formulou este pensamento: a virtude é preguiçosa e

    avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

    Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse

    ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era

    possível.

    – Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das

    cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

    Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou mostrar-se

    sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao

    outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa

    deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum

    negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar

    a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas

    semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade,

    e separaram-se com lágrimas.

    No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de

    Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”. Era mais de meio-dia.

    Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório;

    por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão,

    afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.

    – Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora – repetia ele com

    os olhos no papel.

    Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e

    lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que

    ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois

    sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De

    caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe

    explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem

    descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia

    anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela

    conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente,

    apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3124

  • 25

    Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras

    estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então – o que era ainda pior –

    eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já, à nossa

    casa; preciso falar-te sem demora”. Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom

    de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A

    comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que

    chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado,

    considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo

    depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção

    do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir

    a trote largo.

    – Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...

    Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo

    voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda

    Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que

    caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco

    minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da

    cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na

    lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam

    abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente

    Destino.

    Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era

    grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns

    fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro

    propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que

    não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo:

    era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com

    vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro;

    mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros

    concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

    – Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá!

    Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos,

    pensava em outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as

    palavras da carta: “Vem, já, já...”. E ele via as contorções do drama e tremia. A casa

    olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de

    um longo véu opaco... Pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3125

  • 26

    da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários, e a mesma frase do

    príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: “Há mais coisas no céu e na terra do

    que sonha a filosofia...”. Que perdia ele, se...?

    Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e

    rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos

    dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu.

    Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade

    fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três

    pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela

    fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e

    mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava

    para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza,

    que antes aumentava do que destruía o prestígio.

    A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto,

    com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio

    no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas

    e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de

    rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,

    morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre

    a mesa, e disse-lhe:

    – Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande

    susto...

    Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

    – E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...

    – A mim e a ela, explicou vivamente ele.

    A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra

    vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas;

    baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a

    estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

    – As cartas dizem-me...

    Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-

    lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele,

    o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam

    invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo

    estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na

    gaveta.

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3126

  • 27

    – A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por

    cima da mesa e apertando a da cartomante.

    Esta levantou-se, rindo.

    – Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

    E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu,

    como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi

    à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas,

    começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que

    desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particu-

    lar. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

    – Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer

    mandar buscar?

    – Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

    Camilo tirou uma nota de dez mil réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante

    fuzilaram. O preço usual era dois mil réis.

    – Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito

    do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

    A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele,

    falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada

    que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima,

    cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava

    livre. Entrou e seguiu a trote largo.

    Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o

    céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou

    pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e

    familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram

    urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave

    e gravíssimo.

    – Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

    E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa;

    parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à

    antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras

    da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a

    existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se

    ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz

    iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às

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  • 28

    vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as

    palavras secas e afirmativas, a exortação: “Vá, vá, ragazzo innamorato”; e no fim,

    ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos

    recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

    A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas

    felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou

    para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço

    infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

    Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro

    do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal

    teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

    – Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

    Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e

    foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de

    terror: ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-

    o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

    Várias histórias

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  • 29

    Do diário de Aires

    1888 – 16 de janeiro

    Tão depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei Aguiar, gerente dele,

    que para lá ia. Cumprimentou-me muito afetuosamente, pediu-me notícias de

    Rita, e falamos durante alguns minutos sobre coisas gerais.

    Isso foi ontem. Hoje pela manhã recebi um bilhete de Aguiar, convidando-

    me, em nome da mulher e dele, a ir lá jantar no dia 24. São as bodas de prata.

    “Jantar simples e de poucos amigos”, escreveu ele. Soube depois que é festa

    recolhida. Rita vai também. Resolvi aceitar, e vou.

    25 de janeiro

    Lá fui ontem às bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as

    minhas impressões da noite.

    Não podiam ser melhores. A primeira delas foi a união do casal. Sei que

    não é seguro julgar por uma festa de algumas horas a situação moral de duas

    pessoas. Naturalmente a ocasião aviva a memória dos tempos passados, e a

    afeição dos outros como que ajuda a duplicar a própria. Mas não é isso. Há neles

    alguma coisa superior à oportunidade e diversa da alegria alheia. Senti que os anos

    tinham ali reforçado e apurado a natureza, e que as duas pessoas eram, ao cabo, uma

    só e única. Não senti, não podia sentir isto logo que entrei, mas foi o total da noite.

    Aguiar veio receber-me à porta da sala – eu diria que com uma intenção

    de abraço, se pudesse havê-la entre nós e em tal lugar; mas a mão fez esse ofício,

    apertando a minha efusivamente. É homem de sessenta anos feitos (ela tem

    cinqüenta), o corpo antes cheio que magro, ágil, ameno e risonho. Levou-me à

    mulher, a um lado da sala, onde ela conversava com duas amigas. Não era nova

    para mim a graça da boa velha, mas desta vez o motivo da visita e o teor do meu

    cumprimento davam-lhe à expressão do rosto algo que tolera bem a qualificação

    de radiante. Estendeu-me a mão, ouviu-me e inclinou a cabeça, olhando de relance

    para o marido.

    [...]

    A dona da casa, afável, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente feliz

    naquela data; não menos o marido. Talvez ele fosse ainda mais feliz que ela, mas

    não saberia mostrá-lo tanto. D. Carmo possui o dom de falar e viver por todas

    as feições, e um poder de atrair as pessoas, como terei visto em poucas mulheres,

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3129

  • 30

    ou raras. Os seus cabelos brancos, colhidos com arte e gosto, dão à velhice um

    relevo particular, e fazem casar nela todas as idades. Não sei se me explico bem,

    nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia estas folhas de

    solitário.

    De quando em quando, ela e o marido trocavam as suas impressões com

    os olhos, e pode ser que também com a fala. Uma só vez a impressão visual foi

    melancólica. Mais tarde ouvi a explicação a mana Rita. Um dos convivas – sempre

    há indiscretos – no brinde que lhes fez aludiu à falta de filhos, dizendo “que Deus

    lhos negara para que eles se amassem melhor entre si”. [...] Ouvindo aquela

    referência, os dois fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir, e sorriram. Mana Rita

    me disse depois que essa era a única ferida do casal. Creio que Fidélia percebeu

    também a expressão de tristeza dos dois, porque eu a vi inclinar-se para ela com

    um gesto do cálice e brindar a D. Carmo cheia de graça e ternura:

    – À sua felicidade.

    A esposa Aguiar, comovida, apenas pôde responder logo com o gesto; só

    instantes depois de levar o cálice à boca, acrescentou, em voz meio surda, como

    se lhe custasse sair do coração apertado esta palavra de agradecimento:

    – Obrigada.

    Tudo foi assim segredado, quase calado. O marido aceitou a sua parte do

    brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de melancolia.

    1889 – Sem data

    Há seis ou sete dias que eu não ia ao Flamengo. Agora à tarde lembrou-

    me lá passar antes de vir para casa. Fui a pé; achei aberta a porta do jardim, entrei

    e parei logo.

    – Lá estão eles, disse comigo.

    Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dois velhos sentados, olhando

    um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito, com as mãos sobre

    os joelhos. D. Carmo, à esquerda, tinha os braços cruzados à cinta. Hesitei entre

    ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que

    recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude

    uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu.

    Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si

    mesmos.

    Memorial de Aires

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3130

  • 31

    À CarolinaÀ CarolinaÀ CarolinaÀ CarolinaÀ Carolina

    Querida, ao pé do leito derradeiroEm que descansas dessa longa vida,Aqui venho e virei, pobre querida,Trazer-te o coração do companheiro.

    Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiroQue, a despeito de toda a humana lida,Fez a nossa existência apetecidaE num recanto pôs um mundo inteiro.

    Trago-te flores – restos arrancadosDa terra que nos viu passar unidosE ora mortos nos deixa e separados.

    Que eu, se tenho nos olhos malferidosPensamentos de vida formulados,São pensamentos idos e vividos.

    Relíquias de casa velha

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3131

  • “Machado nos ajuda a abrir os olhos para o mundo de

    injustiças em que vivemos, uma sociedade que segue até hoje

    carregando esse fardo da opressão, da submissão e da

    exploração. Machado me fez ver que estou inserida em uma

    sociedade de aparências. ‘Por fora, bela viola; por dentro,

    pão bolorento’. Machado veio para cortar o pão de nossa

    sociedade e nos mostrar todo o bolor que existe nela.”

    (Maria Rita da Silva Baltazar Gomes – CAP/UERJ)

    “Se pensarmos

    que os escritos

    de Machado fo

    ram feitos em

    um momento

    decisivo da con

    strução da ide

    ntidade social

    brasileira – que

    já caminhava

    pelas trilhas da

    hipocrisia –,

    veremos que aq

    ueles valores se

    mantiveram at

    é hoje e, de

    certa forma, at

    é se intensifica

    ram, o que faz

    da leitura de

    seus textos algo

    muito atual.”

    (Luiz Henrique

    Nascimento –

    CAP/UERJ)

    machadao1 amor e desamor.pmd 9/10/2008, 16:3132

  • Go

    sto

    da

    libe

    rda

    de

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3133

  • 34

    A liberdade não é surda-muda, nem

    paralítica.

    Ela vive, ela fala, ela bate as mãos, ela ri, ela

    assobia, ela clama, ela vive da vida.

    A liberdade não morre onde restar uma folha

    de papel para decretá-la.

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3134

  • 35

    13 de maio de 1888

    Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou

    a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu

    o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem

    aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam

    felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que

    me lembra ter visto. Essas memórias atravessavam-me o espírito, enquanto os

    pássaros trinavam os nomes dos grandes batalhadores e vencedores, que receberam

    ontem nesta mesma coluna da Gazeta a merecida glorificação. No meio de tudo,

    porém, uma tristeza indefinível. A ausência do sol coincidia com a do povo? O

    espírito público tornaria à sanidade habitual?

    14 de maio de 1893

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3135

  • 36

    Conto de escola

    A escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era

    de 1840. Naquele dia – uma segunda-feira, do mês de maio – deixei-me estar

    alguns instantes na rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava

    entre o morro de S. Diogo e o campo de Sant’Ana, que não era então esse parque

    atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito,

    alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o

    problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a

    escola. Aqui vai a razão.

    Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o

    pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro.

    As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do

    arsenal de guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição

    comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e

    contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham

    começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela

    manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.

    Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a

    tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar

    manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e

    desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo

    e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a

    boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos

    pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram

    a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

    – Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.

    Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência

    tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas

    trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com

    o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara

    doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se

    antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.

    – O que é que você quer?

    – Logo, respondeu ele com voz trêmula.

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3136

  • 37

    Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados

    da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um

    escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra

    convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos

    de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas

    deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza

    nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa;

    tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do

    mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das

    quais recordo a interrogativa, a admirativa, a

    dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses

    nomes, pobre estudante de primeiras letras que

    era; mas, instintivamente, dava-lhes essas

    expressões. Os outros foram acabando;

    não tive remédio senão acabar também,

    entregar a escrita, e voltar para o meu

    lugar.

    Com franqueza, estava

    arrependido de ter vindo. Agora que

    ficava preso, ardia por andar lá fora, e

    recapitulava o campo e o morro, pensava

    nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o

    Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do

    bairro e do gênero humano. Para cúmulo de

    desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do

    morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda

    imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas

    unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.

    – Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.

    – Não diga isso, murmurou ele.

    Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que

    queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de

    novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

    – Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.

    – Que é?

    – Você...

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3137

  • 38

    – Você quê?

    Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes,

    o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa

    circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a

    arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma

    simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma

    coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos,

    era mais velho que nós.

    Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito,

    falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava

    dele nem de mim. Ou então, de tarde...

    – De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.

    – Então agora...

    – Papai está olhando.

    Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho,

    buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós

    também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal

    cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as

    idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era

    grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude

    averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá

    estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo.

    Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não

    era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a

    ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que

    lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou

    tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.

    No fim de algum tempo – dez ou doze minutos – Raimundo meteu a mão

    no bolso das calças e olhou para mim.

    – Sabe o que tenho aqui?

    – Não.

    – Uma pratinha que mamãe me deu.

    – Hoje?

    – Não, no outro dia, quando fiz anos...

    – Pratinha de verdade?

    – De verdade.

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3138

  • 39

    Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo

    do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembra; mas era uma

    moeda, e tão moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu

    em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-

    lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.

    – Mas então você fica sem ela?

    – Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou,

    numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

    Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar

    para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto

    amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de

    serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não

    conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta

    esfregando a pratinha nos joelhos...

    Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia

    antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em pregar uma ou outra

    mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos

    termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá,

    dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.

    Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não

    o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao

    castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo,

    como de outras vezes; mas parece que era a lembrança das outras vezes, o medo

    de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria – e

    pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal –, parece que

    tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor – mas queria

    assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele

    guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos,

    à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito

    branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um

    cobre feio, grosso, azinhavrado...

    Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que

    continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. “Ande, tome”,

    dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora

    diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não

    podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3139

  • 40

    – Tome, tome...

    Relanceei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao

    Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei;

    mas daí a pouco, deitei-lhe outra vez o olho, e – tanto se ilude a vontade! – não

    lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

    – Dê cá...

    Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das

    calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha

    à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição, e não me demorei em fazê-lo,

    nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho

    de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia

    um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que

    ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

    De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com

    um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez

    para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a

    remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário,

    franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

    – Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.

    – Diga-me isto só, murmurou ele.

    Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso,

    lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois,

    tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso,

    dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em

    brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras

    vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo,

    pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas

    pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno

    papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele.

    Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no

    bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-

    ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse,

    ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição,

    com uma grande vontade de espiá-la.

    – Oh! Seu Pilar! – bradou o mestre com voz de trovão.

    Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3140

  • 41

    com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa,

    em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

    – Venha cá! – bradou o mestre.

    Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par

    de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém

    mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do

    mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

    – Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? –

    disse-me o Policarpo.

    – Eu...

    – Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! – clamou.

    Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito.

    Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão

    no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro

    lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-

    nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de

    praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo

    íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.

    – Perdão, seu mestre... – solucei eu.

    – Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a

    mão!

    – Mas, seu mestre...

    – Olhe que é pior!

    Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns

    por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas

    e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois,

    quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-

    vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio, apanharíamos tal

    castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões!

    Tratantes! Faltos de brio!

    Eu por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos

    os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios

    do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria

    igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para

    ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão

    certo como três e dois serem cinco.

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3141

  • 42

    Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas

    desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta;

    estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os

    joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na

    verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?

    – Tu me pagas! Tão duro como osso! – dizia eu comigo.

    Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar

    ali mesmo, na rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na rua Larga de S. Joaquim.

    Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum

    corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a

    algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.

    Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas,

    menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite,

    mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E

    sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com

    ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...

    De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir

    depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem

    contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo

    isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei

    o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei

    tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as,

    fugia aos encontros, ao lixo da rua...

    Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente,

    rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual,

    direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu

    senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava

    lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei

    a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: “Rato na

    casaca”... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei

    a manhã na praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem

    pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e

    foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da

    corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

    Várias histórias

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3142

  • 43

    Pancrácio

    Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post facto, depois do

    gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se

    necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista,

    tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um

    molecote que tinha, pessoa dos seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era

    nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

    Neste jantar, a que os meus amigos deram o nome de banquete, em falta

    de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem

    trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

    No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua),

    levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que, acompanhando as idéias

    pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo

    Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias

    e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os

    homens não podiam roubar sem pecado.

    Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio

    a abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho)

    pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que

    eu acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz

    outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços

    comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais

    nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e

    suponho que a óleo.

    No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

    – Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida

    e tens mais um ordenado, um ordenado que...

    – Oh! Meu senhô! Fico.

    – ... um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste

    mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste

    tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...

    – Artura não qué dizê nada, não, senhô...

    – Pequeno ordenado, repito, uns seis mil réis; mas é de grão em grão que

    a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3143

  • 44

    – Eu vaio um galo, sim, senhô.

    – Justamente. Pois seis mil réis. No fim de um ano, se andares bem, conta

    com oito. Oito ou sete.

    Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte,

    por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que

    o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido

    por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois

    estados naturais, quase divinos.

    Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido

    alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe

    não chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me

    perdoe!) creio que até alegre.

    O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei

    aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa,

    na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que

    dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar (simples

    suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens

    puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas

    os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os

    poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça

    na terra, para satisfação do céu.

    19 de maio de 1888

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3144

  • 45

    Um gatuno

    Chegaram ao Largo da Carioca, apearam-se e despediram-se; ela entrou

    pela rua Gonçalves Dias, ele enfiou pela da Carioca. No meio desta, Aires encontrou

    um magote de gente parada, logo depois andando em direção ao largo. Aires quis

    arrepiar caminho, não de medo, mas de horror. Tinha horror à multidão. Viu que

    a gente era pouca, cinqüenta ou sessenta pessoas, e ouviu que bradava contra a

    prisão de um homem. Entrou num corredor, à espera que o magote passasse.

    Duas praças de polícia traziam o preso pelo braço. De quando em quando, este

    resistia, e então era preciso arrastá-lo ou forçá-lo por outro método. Tratava-se,

    ao que parece, do furto de uma carteira.

    – Não furtei nada! – bradava o preso detendo o passo. – É falso! Larguem-

    me! Sou um cidadão livre! Protesto! Protesto!

    – Siga para a estação!

    – Não sigo!

    – Não siga! – bradava a gente anônima. – Não siga! Não siga!

    Uma das praças quis convencer a multidão que era verdade, que o sujeito

    furtara uma carteira, e o desassossego pareceu minorar um pouco; mas, indo a

    praça a andar com a outra e o preso – cada uma pegando-lhe um dos braços –, a

    multidão recomeçou a bradar contra a violência. O preso sentiu-se animado, e

    ora lastimoso, ora agressivo, convidava a defesa. Foi então que a outra praça

    desembainhou a espada para fazer um claro. A gente voou, não airosamente,

    como a andorinha ou a pomba, em busca do ninho ou do alimento, voou de

    atropelo, pula aqui, pula ali, pula acolá, para todos os lados. A espada entrou na

    bainha, e o preso seguiu com as praças. Mas logo os peitos tomaram vingança

    das pernas, e um clamor ingente, largo, desafrontado, encheu a rua e a alma do

    preso. A multidão fez-se outra vez compacta e caminhou para a estação policial.

    Aires seguiu caminho.

    A vozeria morreu pouco a pouco, e Aires entrou na Secretaria do Império.

    Não achou o ministro, parece, ou a conferência foi curta. Certo é que, saindo à

    praça, encontrou partes do magote que tornavam comentando a prisão e o

    ladrão. Não diziam ladrão, mas gatuno, fiando que era mais doce, e tanto bradavam

    há pouco contra a ação das praças, como riam agora das lástimas do preso.

    – Ora o sujeito!

    Mas então?... perguntarás tu. Aires não perguntou nada. Ao cabo havia

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3145

  • 46

    um fundo de justiça naquela manifestação dupla e contraditória; foi o que ele

    pensou. Depois, imaginou que a grita da multidão protestante era filha de um

    velho instinto de resistência à autoridade. Advertiu que o homem, uma vez criado,

    desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não

    há paraíso que valha o gosto da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá;

    que incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta,

    quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre,

    sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão.

    Esaú e Jacó

    machadao2 gosto de liberdade.pmd 9/10/2008, 16:3146

  • Arte

    s e

    artis

    tas

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  • 48

    O olho do homem serve de fotografia ao

    invisível, como o ouvido serve de eco ao

    silêncio.

    De todas as coisas humanas, a única que tem

    o seu fim em si mesma é a arte.

    Respiremos, amigos, a poesia é um ar

    eternamente respirável.

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  • 49

    A vida é uma ópera

    Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. “O desuso é que me

    faz mal”, acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia

    ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da terra e do céu; o empresário

    cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes

    dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa

    de Babilônia. Às vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais

    idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui

    jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a

    definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma

    ópera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou:

    – A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam

    pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o

    soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos

    mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração

    é excelente...

    – Mas, meu caro Marcolini...

    – Quê?...

    E, depois de beber um gole de licor, pousou o cálice, e expôs-me a história

    da criação, com palavras que vou resumir.

    Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro,

    que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não

    tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser

    também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos

    fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que

    foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem

    mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão,

    por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás

    levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais

    que os outros – e acaso para reconciliar-se com o céu –, compôs a partitura, e

    logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.

    – Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a

    partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas,

    admiti-me com ela a vossos pés...

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  • 50

    – Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.

    – Mas, senhor...

    – Nada! Nada!

    Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e

    cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu.

    Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com

    todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.

    – Ouvi agora alguns ensaios!

    – Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto;

    estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.

    Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que

    a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares

    em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga

    que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim

    explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão.

    Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos

    motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa

    das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As

    partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos

    imparciais.

    Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão

    bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas

    com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e

    aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra

    onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não

    dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a

    partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares,

    e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao

    drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência

    para imitar as Mulheres patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos

    satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o

    jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram

    nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão

    transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o

    autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.

    – Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não

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    se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica.

    O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais,

    que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos

    são os chamados, poucos os escolhidos”. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.

    – Tem graça...

    – Graça? – bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: – Caro

    Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade

    pura e última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há

    de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos

    homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e o dó fez-se ré etc. Este

    cálice (e enchia-o novamente), este cálice é um breve estribilho. Não se ouve?

    Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...

    Dom Casmurro

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  • 52

    Um homem célebre

    – Ah! O senhor é que é o Pestana? – perguntou Sinhazinha Mota, fazendo

    um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: – Desculpe

    meu modo, mas... é mesmo o senhor?

    Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do

    piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o

    fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao

    todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos

    anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a

    folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu,

    pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e

    diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana

    que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se

    gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez

    minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

    – Diga, minha senhora.

    – É que nos toque agora aquela sua polca. Não bula comigo, nhonhô.

    Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem

    gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos,

    derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os

    pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada

    vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade, em que não fosse conhecida. Ia

    chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

    Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira

    à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo

    negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana

    compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a

    polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado.

    Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta

    vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que,

    alegando dor de cabeça, pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa,

    ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não

    aceitou nada, teimou em sair e saiu.

    Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só

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    afrouxou, depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-

    o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de

    distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarineta. Dançava-

    se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se

    a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa

    do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua

    do Aterrado, onde morava. Já perto de casa, viu vir dois homens; um deles,

    passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente,

    com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos

    e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

    Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia,

    e que veio saber se ele queria cear.

    – Não quero nada, bradou Pestana; faça-me café e vá dormir.

    Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o

    preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns

    dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o

    educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio

    pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos

    trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido

    por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe

    transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não

    ocupa a minha história, como ides ver.

    Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart,

    Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros

    litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mal postos ali

    como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava

    aberto: era uma sonata de Beethoven.

    Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou

    para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si,

    desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou

    alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez

    de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma

    alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

    Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela

    e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando

    ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum

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  • 54

    pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela.

    As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de

    alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas

    então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou

    reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a

    essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas.

    Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela

    ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida

    de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das

    velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último

    caso ao diabo. Por que não faria ele um