MANGUE’S SCHOOL OU POR UMA PEDAGOGIA RIZOMÁTICA

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    Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1229-1256, Set./Dez. 2005

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    projeto de uma pedagogia rizomtica, que tem como axioma pri-mordial uma cincia nmadeou itinerante, contraponto aos del-

    rios de uma cincia rgia, destinada a tomar o poder, estinse-rido na tica e na esttica da existncia, na imanncia, pois, como vida.Uma tal pedagogia emerge como pura resistncia, puro devir (Deleuze& Guattari, 2002, p. 41).

    Eis um dos eixos do projeto de uma escola inserida numa dinmicado rizoma: resistir, infectar e vitalizar o institudo, no aqui e no agora dapedagogia real, isto , no molar em ruptura com o molecular, no molarno mais acoplado ao molecular como diferena, mas asfixiado pelo ideal

    identitrio, para o qual o retorno redundncia vazia e no diferena.Cabe, todavia, acrescentar outros aspectos importantes que inspi-ram uma possvel pedagogia rizomtica: o reconhecimento da crianacomo irredutvel viso de um adulto em miniatura e a afirmao deumpresente da infncia, que devir e no simplesmente uma preparaopara a vida adulta, para um futuro longnquo: Estude e ter uma boaprofisso!

    Para Deleuze e Guattari, as crianas so acontecimentos. Devir,

    acontecimento, as crianas so dissidentes de um decalque traado para elas,muitas vezes exterior aos seus desejos, o que as motiva a resistir a modelospedaggicos, embora legtimos, ancorados, contudo, na pedagogia volta-da para o futuro, atrelada tentao permanente que atravessa a histriados homens e assimila com obstinao parentesco e causalidade, sob o signode uma cincia rgia que se erige em supostos modelos estveis.

    Ao contrrio, no contexto de uma pedagogia dos sentidos, pedago-gia rizomtica, nmade, os saberes tornam-se saboresporque permitem as

    inteligncias, s crianas, aceder a um universo outro: ser bruxo com osbruxos, compartilhar da compreenso dos mistrios do nascimento, doamor, da vida, da morte, sem drama, sem histeria, sem dvida, mas comfantasia criativa acoplada reflexo e no induo. Os saberes como sabo-resno mudam a realidade finita dos homens e, tampouco, a angstia vin-culada morte. A realidade continua sendo o que ela , mas o olhar que setem sobre ela transforma no a fora das coisas nos seus paradoxos e incer-tezas, mas atribui ao incompreensvel, sob o olhar tico e esttico, paraalm do bem e do mal, uma realidade artstica, criadora, isenta do imagi-

    nrio divino, do juzo, da verdade, da punio e do castigo.Adescoberta, pois, pela criana das coisas da vida, mediante um

    aprendizado descolonizado, leigo, da complexidade do universo, de uma

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    filosofia positiva e no niilista da morte, de um discurso criativo do dese-jo e do gozo, sob o signo das cincias, poesia e msica, artes e amizade.

    Todo esse capital cultural, curado da culpa e do modelo admico de hu-manidade, desumanizaria no s os saberes teleguiados, grudados comouma ferida da lngua na transcendncia e no racional, mas inaugurariauma Gaia cincia, na esteira da qual opretium dolorisno seria mais umadvida para com o Absoluto, porm um cuidado de si e dos outros. Ou-trem como acontecimento e no como condenao ou fatalidade.

    Criar dispositivos alegres para passarrealidades muitas vezes du-ras, segundo a possibilidade de cada criana, singularidade nica, no

    repetitiva, encontra talvez na mxima criada por douard Claparde,para definir La Maison des Petits, em Genebra, o equilbrio necessrio barragem s utopias delirantes: La Maison des Petitsa escola na qualas crianas no fazem o que elas querem, mas querem o que fazem.

    A tica dos afectos1 no uma produo dos medos msticos nemcientficos, contudo o resultado de uma inteligncia do sensvel, sob afora de uma construo que passa pelos saberes-saboressem negligenciaras intensidades neles veiculadas pelos intercessores, pelo bom encontro, isto

    , pelo bem. uma questo de estilo e de leitura:Hoje dispomos de novas maneiras de ler, e talvez de escrever. H manei-ras ruins e sujas. Por exemplo, tem-se a impresso de que alguns livros soescritos para a resenha que um jornalista supostamente far, de modoque ele no precisa sequer de resenha, mas apenas de palavras vazias (...)para evitar a leitura do livro e a confeco do artigo. A boa maneira parase ler hoje, porm, a de conseguir tratar um livro como se escuta umdisco, como se v um filme ou um programa de televiso, como se rece-be uma cano: qualquer tratamento do livro que reclamasse para ele umrespeito especial, uma ateno de outro tipo, vem de outra poca e con-dena definitivamente o livro. No h questo alguma de dificuldadenem de compreenso: os conceitos so exatamente como sons, cores ouimagens, so intensidades que lhes convm ou no, que passam ou nopassam. Popfilosofia, no h nada a compreender, nada a interpretar.(Deleuze & Parnet, 1998, p. 12)

    Como, todavia, contaminar a pedagogia da realeza, da cincia,do pensamento que s pensa o que deve ser pensado? A receita do ale-

    gre caos de alguns segmentos do Movimento Sem-Terra, malgrado suascontradies e tentao molar, identitria, segmentaridade dualista; suaoscilao entremolar/molecular/molecular/molar pode inspirar uma pe-

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    dagogia rizomtica inserida no movimento, abrindo criao e s cone-xes: desterritorializao e linhas de fuga. Rizoma e no rvore. A rvore

    define o territrio, o crescimento vertical e a identidade do ser. O rizoma horizontalidade que multiplica as relaes e os intercmbios que dele seoriginam. A vida assim compreendida um contnuo fluxo e refluxo, po-tncia de interao e produo de sentidos.

    O molar aqui compreendido no como separao ou oposio.De fato, se verdade que o molar delimita os ns, os laos, a arbores-cncia, o molecular une-os numa desunio criativa instauradora, inclusi-ve, de possveis alianas. Atravessado (molar) e atravessador (molecular)

    celebram npcias com intensidades singulares e diferenciadas, num mo-vimento permanente de contaminao, dissidncia e resistncia, sob osigno de linhas de fuga e agenciamentos maqunicos, que conduzem umfuturo sem devir e estruturas arborescentes para devires mltiplos, mul-tiplicadores.

    Assim, a linha molar e as linhas de fuga no podem absolutamen-te ser exiladas ou paralisadas numa dualidade ou diferena sem diversi-dade, contudo, compreendidas como linhas de fuga inerentes pedago-

    gia dos sentidos, das artes, do rizoma e da imanncia, mesmo porque anomadizao de pontos ou linhas de fuga no pode pertencer cincia,ela , antes, da alada da arte, mas no sentido de umaperverso das tota-lidades.

    Esta espcie de atesmo do molar, na sua positividade invisvel (pos-svel intercessor e no apenas inrcia), faz parte das tcnicas nmades dasfeiticeiras: com a idia de ocupao de espao, onde no so nem espera-das nem desejadas, numa prtica do modelo americano teaching in, o MST

    ocupa lugares do poder para dizer o indizvel, criando problemas e nobuscando solues, mesmo se, no raro, fecha-se no molar, nas estruturasviciadas das palavras de ordem deslavadas por prticas sfregas que impe-dem a ecloso do novo e provocam a criseem vez de engendrar devires. Aidia de solucionar problemas, neste contexto, quase sempre capitu-lao, arranjos, simulacros, intoxicao voluntria, o contrrio, pois, dacriao, da inveno.

    Paralela cincia nmade, emerge no s a receita da feiticeira, o

    caos como arte e imanncia, mas a vassoura da feiticeira, rizomtica e noarborescente, ponto de vida e no apenas ponto de vista, estilo de vida eno moda ou modismos. Se o estilo de vida, de existncia esttico,

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    sua fora maior tica, em oposio moral. O estilo num professor,num educador, num matemtico ou em um grande escritor:

    (...) sempre tambm um estilo de vida, de nenhum modo algo pessoal,mas a inveno de uma possibilidade de vida, de um modo de existn-cia (...). So os estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem deum jeito ou de outro. (Deleuze & Parnet, 1998, p. 125-126)

    Acincia nmadeou itinerante busca a nomadizao dos pontosde fuga, ao contrrio das cincias exatas cristalizadas na memria dossaberes, da Cincia do Rei ou da Filosofia do Estado, paralisadas na re-petio e dissecao de verdades desidratadas. Mormente o dilogo comsaberes pedaggicos, para alm dos pontos de vista da abordagemnormativa ou objetiva, insere-se numa poltica do desejo, o que implicaauscultar o espao poltico na sua polissemia infinita. Neste quesito, operspectivismo de Nietzsche motiva-nos e instiga-nos, abrindo vias paradiscusses positivas, frteis. Do mesmo modo, o aforismo nietzscheano,que afirma ser a doena uma perspectiva superior da sade, oferece tam-bm uma pista bastante sedutora, sobretudo se a palavra perspectivismo

    compreendida no sentido geomtrico do termo.Sabemos que a reproduo, que num plano tem duas dimenses

    de um objeto qualquer em trs dimenses, supe uma tcnica dita deprojeo, o que implica o recurso aos pontos de fuga. em referncia aeste mecanismo que o enunciado nietzscheano toma todo o seu sentido:a doena uma variao contnua que abre para um nmero incalculvelde experincias e experimentos, e a idia que se faz da sade determinaantes uma s perspectiva que nos apraz design-la como a melhor. Isso

    leva a concluir parfrase de Nietzsche que o paradoxo uma pers-pectiva superior do sentido e da significao. A nomadizao dos pontosde fuga uma pedagogia de alta potncia: pedagogia rizomtica pen-sar o impensvel do pensamento, pensar o no-pensvel do pensamento,pensar o pensamento na sua dimenso desejante, vitalista; o pensamentocomo vida e crueldade: Grausamkeit(Lins, 2001, p. 47-57).

    A cartografia nietzscheana do pensamento faz, pois, intervir afuno de proliferao do sentido rizoma no interior do espao po-

    ltico. De fato, a natureza problemtica da distncia entre aquilo que e aquilo que deveria ser significa, precisamente, que h um excesso desentido(Daignault, 1985, p. 126 e 223).Essa proliferao de sentido

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    provoca verdadeiramente a queda do platonismo. O marxismo e oexistencialismo, principais arteses da dialtica, cada um a sua manei-

    ra, pretendiam provocar essa queda, mas a perverso e aqui est oseu sentido pleno no reconhece ao todo a propriedade do ser mai-or que a soma de suas partes; ela afirma, antes, que o todo no se-no uma soma infinita de partes. Do mesmo modo, praticar a prolife-rao do sentido no espao tecnolgico bloquearia a cincia e retiraria,in extremis, a prpria possibilidade da linguagem; pois pensar o todocomo uma soma infinita de partes corre o risco de confundir precisa-mente os nveis lgicos.

    Ora, segundo a terminologia de Deleuze, apropriada de modo cri-ativo por Daignault, marxismo e existencialismo pertencem de fato sub-verso, isto , reverso dialtica de Plato; mas a reverso real de Plato aquilo que por analogia acreditamos ser a passagem do espaotecnolgico da educao para o espao poltico no consiste no desmo-ronamento dos valores postos no eixo vertical das Idias e da Matria, daEssncia e da Existncia mas antes no eixo horizontal das superfcies,demarcado pelas verdadeiras e falsas cpias, ou pelos simulacros. Para

    Deleuze, a reverso do platonismo tem sua origem nos esticos e a seguirem Nietzsche (Deleuze, 1998, p. 259-271).

    Pedagogia rizomtica ou alteridade sem outrem

    Ao contrrio da maioria de sistemas educativos, assentados na re-presentao, a proposta que aqui se esboa no pretende repetir as peda-gogias arborescentes, mas pensar, imaginar, engendrar, embora de modo

    sucinto, uma pedagogia dos possveis, uma pedagogia rizomtica, semrazes, troncos, galhos ou folhas fundadores que dividem as coisas firman-do a rvore como ato inaugural de todo processo educativo. O troncosustenta e rege a hierarquia, sob o signo de uma ordem, segundo a qualtodo desacorde interpretado como dissonncia, cacofonia,falta de har-monia. Tudo parte do tronco, este por sua vez se divide em galhos e emfolhas, instalando a genealogia familiar e a redundncia sem corpo, bar-reiras fincadas contra o retorno da diferena e do movimento autnomodas alianas no-edipianas. Ora, justamente em oposio ao carter hi-

    errquico e asfixiante da rvore que o projeto rizomtico emerge comopossveisaopossvelda educao. Um encontro nmade, pois, e no umapalavra de ordem. Um conversar com no lugar de um falar sobre. Trata-se

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    de nutrir o bom encontro, aqui compreendido com o bem, marcado pelodesejo tico e esttico de criao.

    A criao, pois, como um ato tico, um afecto, um agenciamentovibrtil, conectado s caravanas do deserto, um ato de amor sem de-manda: nem falta nem luto, todavia desejo ao qual nada falta, sequer afalta da falta. No o desejo que falta, mas o que falta o desejo. Acriao como barreira ao desejo niilista: carncia e demanda abjeta deamor! O ser no dado, mas querido, almejado, conquistado; neste sen-tido, o ser autoproduo. No se nasce ser, torna-se, ou no, ser. O serno uma questo de substncia ou de transcendncia, o ser uma pro-

    duo desejante: pura inveno do desejo. Eis por que preciso colocaro mundo no sujeito, a fim de que o sujeito seja para o mundo (Deleuze,2000, p. 51).

    Trata-se, pois, da determinao de um-para o mundo em vez de ser-no mundo: Vamos das inflexes do mundo incluso em sujeitos(idem, ibid., p. 45); ou, como diz Plotino, Multiplicamos a cidade semque ela funde esta operao (apud Deleuze, 2000, p. 43), isto , o cui-dado de si e o cuidado do outro. A incluso passa pela inveno dos de-

    sacordos e criao das diferenas numa espcie de alteridade desejante,isto , uma alteridade sem outrem estruturado e estruturador de ressenti-mentos e dvidas. De fato, a culpa alimenta sempre um poder simulado,s vezes ridculo, contudo terrivelmente real: eu, macho, em meu lugar,falando em nomedas mulheres; eu, poder patrimonial, em meu lugar, fa-lando sobreos desvalidos;eu, professor, em meu lugar, falando em nomedos alunos.

    Poderamos pensar uma tica sem alteridade, em que no se est

    condenado ao outro, o outro como meupecado original(Sartre), mas que,ao contrrio da moral niilista, no limita outrem ao ser humano, ofus-cando, assim, a grandeza de uma alteridade grvida de devires, isto ,sem reciprocidade imposta como sina ou destino, uma alteridade, pois,que passa pelos afectos, encontros com outrem eclodido, em plats aber-tos e rizomticos. Uma alteridade como uma inveno, um devir-crian-a, e no um dado. Penso numa ecologia do esprito: outrem como o con-junto da natureza, no limitado ao mais mortal dos seres, o homemadmico, resultado da queda e do pecado, memria das chagas e da car-

    ne silenciada, ciliciada. Outrem, assim compreendido, supera o outro-pessoa-sujeito, o indivduo, abrindo-se ao no-humano do homem, ao de-sumano, ao universo mltiplo, como um imenso sujeito eclodido:

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    caosmos e devir aos mil afectos e desejos, inocncia do devir, devir do pen-samento trespassado por um eterno retorno, que no faz retornar tudo,

    nem se deixa encurralar pela representao: O segredo do eterno retor-no que no exprime de forma nenhuma uma ordem que se ope aocaos e que o submete. Ao contrrio, ele no nada alm do que o caos,potncia de afirmar o caos (...). coerncia da representao, o eternoretorno substitui outra coisa, sua prpria cao-errncia (Deleuze, 1988,p. 269-270).

    Um outro, portanto, que reage: um outro em devir, um devir ou-tro que resiste inclusive recentefundao da infncia, mesmo porque o

    que deve ser fundado sempre uma pretenso (idem, ibid., p. 260).Cabe, pois, resistir representao humanista da infncia, objeto de fas-cinao programado, enclausurado num futuro longnquo separado dodevir, em que a criana, ou o estudante,fabricado segundo as leis do mer-cado, perde a transversalidade do presente metamorfoseando-se num in-vlucro, uma criana como jogo regressivo dos adultos, uma caricaturada infncia, que , por definio, dissidente. Reconhecer a infncia, afir-mar seu presente aceitar, como diz Meirieu, sua existncia: ora, se a crian-a existe, a criana resiste(Meirieu, 1996).

    Rizoma e pedagogia do desastre

    A pedagogia do desastre: falarpelo outro, pensarpara o outro, fa-bricar a criana, o aluno insere-se na tentao conservadora, mais prxi-ma do estudo dos monstros que da pedagogia. Fabricar uma criana equi-vale a ofuscar a prpria criana. Mata-se no ovo (Corpo sem rgos?, Lins,2004a) a emergncia de uma metafsica sem Deus metafsica da carne aliada produo de aprendizados, de descobertas nmades de corposerotizados e encontros com saberes vibrteis, saberes-pele, poros e sonhosmolhados. Vitalidade, pois, sem culpa nem referncia admica, doma-dora de desejos rebeldes, de vida.

    No, eu no matei o Cristo. No, no sou assassino antes de tercometido meu crime, diz oprimitivo na sua inocncia ativa, permeada pelatica da crueldade e dos sentidos. Um primitivo o antpoda de Emlio,de Rousseau, heri pedaggico, fundado segundo as prescries de uma

    natureza por definio boa, engendradora de uma utopia pedaggica queperde o sentido do lugar-no, extasiando-se numa idealizao prximade um terrorismo niilista daqueles que carregam uma rvore na cabea.

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    Desenho pedaggico, rico em boas intenese infinita generosida-de, a pedagogia do desastre est encurralada num dever-ser, numa me-

    mria do no-esquecimento, atravessada por uma perspectiva normativaem que as ervas do rizoma, a grama, cedem lugar s razes, s estruturasenfermas, s doces prises sem grades.Ora, segundo Deleuze, (...) hduas grandes doenas da estrutura: o preenchimento da casa vazia porseu sujeito de acompanhamento e o abandono da casa vazia pelo sujeitodo acompanhamento; em suma, terrorismo e niilismo na educao(2000, p. 50).

    Por que afirmar que h no preenchimento da casa vazia, em Rousseau,

    um efeito de uma pedagogia terrorista? Podemos dizer, em forma deesboo, que h em Emlio uma espcie de eco a esse lugar casa vazia sem ocupante. Rousseau, sabemos, tenta construir uma educao emconformidade com as leis da natureza. Destarte, ele fora as condiesobjetivas a fim de realizar seres como Emlio e, simultaneamente, criaruma sociedade imagem do paraso terrestre. Georges Lapassade, em1956, e Jacques Daignault, em 1985, apresentaram estudos rigorosose crticos a este respeito. Cabe aqui, na esteira desses pensadores, subli-nhar dois aspectos da questo:

    Se exato que apresentar a imagem de uma sociedade como parasoterrestreconstitui uma violncia, semelhante a condicionamentos ope-rantes e a ditaduras mrbidas, e que , no fundo, o que se pratica, emgraus diversos, mormente, ali onde se procura realizar os maiores ideaispedaggicos (Daignault, 1985, p. 123-132) no se pode cair no errocontrrio que consiste em recusar definir um ideal, e logo deixar a casavazia escavar realmente uma lacuna que seria cedo ou tarde vivida comoumafalta, um excesso (mais-valia de representao, ideal arborescente).

    Creio, todavia, que h no prprio Rousseau uma terceira margem praticada por ele com cuidado para pensar uma pedagogia vinculada natureza, numa perspectiva artstica, com tudo o que isso implica comoengajamento poltico, intensidade potica e sensibilidade nmade. Essaterceira margem, sumamente importante, sinaliza o fracasso das aborda-gens normativa e objetiva. So os perigos de querer ocupar ou reduzir adistncia entre o normativo e o objetivo que incitam, paradoxalmente, prudncia do excesso artstico. Sabemos que os dois grandes acidentes da

    estrutura so, de um lado, o preenchimento da casa vazia e, por outro,seu abandono a sua prpria sorte: Esses dois excessos traduzem muitobem, acreditamos, as tendncias atuais da educao. Isso tem como efei-

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    to excluir tanto o estrito prtico do campo cientfico como o terico docampo educativo (idem, ibid.).

    No primeiro caso, tem-se um terrorismo, pelo menos de duas ma-neiras: antes de tudo, toda transformao radical daquilo que , segundoo que se acredita que deve ser, implica uma violncia contra o real, sem-pre movedio, sempre por vir. Quando essa violncia, todavia, tem comoreal, precisamente, a criana, no exagero falarmos simplesmente de ter-rorismo pedaggico. Isso acontece em sistemas democrticos, no seprecisa mais de ditadura para este tipo de economia pedaggica do ter-ror (Lapassade, 1956; Deleuze, 1962b; Meirieu & Develay, 1992).

    Outro aspecto importante da debandada contempornea, com re-lao educao, o acmulo de doutrinas educacionais geradas pelomesmo ventre, com suas pequenas diferenas, mas carimbadas por umaespcie de pensamento nico, globalizado, improvisado, velocidade dovirtual, mas sem virtualidade. Concorrentes, sob o mesmo plano ideol-gico, cada segmento tenta convencer os outros sobretudo, o Estado, aEducao Oficial de que sua doutrina a melhor. Esta situao estprximo daquilo que Lyotard chamou de um terrorismo terico cujos efei-

    tos, em longo termo, incitam irremediavelmente ao terror:Chegou a hora de interromper o terror terico (...). O desejo do verdadei-ro, que alimenta em todos o terrorismo, est inscrito em nosso uso o maisincontrolvel da linguagem, de modo que todo discurso parece desenvol-ver naturalmente sua pretenso a dizer a verdade, por uma espcie de vul-garidade irremedivel. Ora, chegou o momento de medicar essa vulgarida-de, introduzir no discurso ideolgico ou filosfico o mesmo refinamento,a mesma fora e leveza presentes nas obras de pintura, de msica, de cine-

    ma, dito experimental, como tambm nas cincias. No se trata em abso-luto de inventar uma ou teorias novas, menos ainda de interpretaes; oque nos falta uma diabrura (...) de tal modo que o prprio gnero teri-co seja objeto de subverses das quais sua pretenso no se levante mais;que volte a ser simplesmente um gnero e seja relegado da posio de con-trole ou dominao que ocupa, no mnimo, desde Plato; que o verdadei-ro devenha uma questo de estilo. (Lyotard, 1997, p. 9-10)

    Devir-pedaggico e sentidos brbaros

    Cabe, pois, cultivar, como experimentos e no como normas oumodelos, os sentidos brbaros no ainda domesticados, e no apenas as

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    significaes ou os significados ordenados aquilo que , a saber, umasrie significada, e aquilo que deveria ser, isto , uma srie significante

    , pensados de antemo, triturados e servidos como potinhos requenta-dos s crianas e aos alunos, quase sempre alheios, porque criativos, atodo processo pedaggico ancorado no tringulo do desejo niilista:pa-pai-mame-beb!

    Experimentar, mas nunca oficializar (uma minoria, uma vez ofici-alizada, torna-se uma maioria) ou impor, como modelo esta ou aquelapedagogia, porm contaminar os processos pedaggicos com costumesbrbaros. Se a ideologia utilitria mapeia o dia-a-dia de cada um, tudo

    grava, cataloga, por que a educao seria diferente? Como pensar a pro-duo do intil nas escolas? Reunies inteis, sem agenda, encontrosinteis, oficinas inteis, tudo isso so experimentos e prticas brba-ras no campo dos afectos no estruturados nem estruturveis ou oficiali-zados, conseqentemente no fadados repetio, ou ao tdio da experi-ncia cooptada pela norma, pelo imaginrio institudo. Tudo isso educapara o sensvel, para se pensar fora do pensamento nico. Tudo isso sig-nifica no um mtodo, mas um pouco de ar fresco, uma diferena mni-

    ma, um afecto minimamente no-controlvel, uma onda de alegria naarte de aprender e de coabitar.Nem retorno triste ao passado, nem apologia da nostalgia, nem

    conselhos, o que nos move so os conceitos, personagens, colados vida,como a respirao. Silncio, olhar do silncio, dilogo, narrativa, espaosnmades de vida inseridos escola. Ao reverso de oraes ou rezas, cabepropagar encontros, espaos para nada, 10 minutos, 20 minutos de con-tgio com os devires encarnados, velados, em cada aluno. Devir-poeta,

    devir-animal, devir-mulher, devir-carrapato, devir-criana, devir-aprendiz.Convm observar que h no devir-pedaggico um movimento de puraarte, pura criao. No se trata de fazer igual, copiar, imitar. Devir nun-ca imitar, diz Deleuze. Aqui h problema, logo, matria a ser pensa-da. O devir tambm da ordem do paradoxo: no se pode prever, nemcalcular; o devir imprevisvel, o no-prescrito. A lgica linear cede lu-gar ao acontecimento. O devir-outro passa por uma tica da alteridadesem garantia de reciprocidade, nem semelhana, nem amai-vos uns aosoutros como eu vos amei, pois amar todo mundo no amar ningum:

    o mesmo no mesmo da ordem da imitao. Eis a questo etimolo-gicamente, o substantivo questo significa tortura : a imitao, na es-fera do devir, anuncia o fracasso do prprio devir:

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    A vespa e a orqudea so o exemplo. A orqudea parece formar uma ima-gem de vespa, mas, na verdade, h um devir-vespa da orqudea, um

    devir-orqudea da vespa, uma dupla captura, pois o que cada um setorna no muda menos do que aquele que se torna. A vespa torna-separte do aparelho reprodutor da orqudea, ao mesmo tempo em que aorqudea se torna rgo sexual para a vespa. nico e mesmo devir, nicobloco de devir, ou, como diz Rmy Chauvin, uma evoluo a-paralelade dois seres que no tm absolutamente nada a ver um com o outro.H devires-animais do homem que no consistem em imitar o cachorroou o gato, j que o animal e o homem s se encontram no percurso deuma desterritorializao comum, mas dessimtrica. (Deleuze & Parnet,1998, p. 10-11)

    Uma Escola do Devir cercada por caravanas mveis e no por es-truturas fixas, de concreto armado; ela geografia e no histria. Sensvel, escuta de intercessores de uma pedagogia outra, sem compromisso defini-do com o sucesso a qualquer preo, a pedagogia rizomtica abre espaos parauma pedagogia do acontecimento e das trocas simblicas acoplada a umaesttica do intil, rica em produo rizomtica, em devires, to cara aosamerndios bororo, mestres do esquecimento ativo (Lins, 2004b).

    Pensar uma metodologia do acontecimento optar por uma ges-to do tempo pedaggico, para alm da cronologia e da lei, ou daquilo que suposto ser a lei, sem, todavia, negar a importncia dos limites comparti-lhados e no impostos. Um espao de vida, no mbito da escola, umaespcie de no-lugar pedaggico onde os devires imperceptveis podem,como os nmades do deserto, encontrar-se, no numa estrutura, mas numaconfidncia, numa seduo, numa inveno artstica. O tempo de cioprodutivo deveria tambm ser um tempo escolar. Raro e, em geral negli-

    genciado, ignorado ou criticado, esse tempo, praticamente ausente das es-colas, tem seu charme, seu estilo (Deleuze & Parnet, 1998, p. 14) e suagrandeza: leveza, seduo, sonhos e encontros mltiplos que superam a fi-xao pessoal (sujeito humano, indivduo), apontando como uma flechapara os encontros-devires, sem humanidade nem animalidade definidas,chapadas, revelando-se no outro, que cosmologia, e na cosmologia, que outro, numa linha rizomtica sem simbiose nem cpia:

    Um encontro talvez a mesma coisa que um devir ou npcias (...). En-contram-se pessoas (...), mas tambm movimentos, idias, acontecimen-tos, entidades. Todas essas coisas tm nomes prprios, mas o nome pr-prio no designa de modo algum uma pessoa ou um sujeito. Ele designa

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    um efeito, um ziguezague, algo que passa ou que se no passa entre doissob uma diferena potencial: (...) efeito Kelvin. Dizamos a mesma coisa

    para os devires: no um termo que se torna outro, mas cada um encon-tra o outro, nico devir que no comum aos dois, j que eles no tmnada a ver um com o outro, mas est entre os dois, que tm sua prpriadireo, um bloco de devir, uma evoluo a-paralela (...), npcias, semprefora e entre. (Deleuze & Parnet, 1998, p. 14-15)

    Potncia de interao e produo de sentidos, a arte na educaonutre-se do contgio que o vnculo pedaggico provoca, na expanso decada vida que, como a orqudea e a vespa, deixa-se contagiar pelo desejo.

    Trata-se, pois, de escapar alteridade-enfermeira, espcie de idealde santidade em que o agente aquele que age e no agido, prprio aodevir-criana do pensamento deve se esvaziar de si mesmo, de seu de-sejo e vontade de potncia positiva, e ceder lugar ao ser humano, numhumanismo acordado pelo diapaso da primazia da moral sobre o mate-rial, do coletivo sobre a singularidade, do niilismo sobre opor vir: umatica-enfermeira que sufoca a vontade criativa e ofusca a infncia em devir.

    Ora, uma tica-enfermeira, ancorada por excelncia na moral dos

    fracos, cultiva o tronco, instiga a pedagogia da rvore: cada criana en-corajada a ter uma rvore fincada na cabea e, para que no esquea agenealogia, professoras insistem, ainda, em serem personagem sem nome,pura arborescncia: a Tia! Persona. Mscara da mscara.

    Mangues School

    Seu Pedro, onde comea o mangue? Professor! Olhe o mangue! No tem nem comeo, nemfim: o mangue s tem meio!

    (Dilogo com um velho pescador, na Ilha do Pinto, emFortim, Cear, abril de 2004)

    A rvore, lugar primordial da hierarquia, do nome prprio, do bra-so e da genealogia familiar, estabelece tudo de antemo. o sistemaclassificatrio no seu apogeu. Classificao que comea no ventre mater-no: nota-se tudo, escreve-se tudo, tudo digitado, mapeado. Eis por que

    a pedagogia arborescente, deflao de estrutura, tem seu alto e seu baixo,seu comeo e seu fim. O contrrio, pois, do rizoma que meio, inter-mezzo, inter-ser, que no tem alto nem baixo, nem comeo nem fim: um

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    ponto do rizoma conectado a todos os outros pontos, fazendo da escolaum imenso manguezal que se espraia num entrelaamento de protenas,

    calorias, gazes, lama, gozos, prazeres, detritos e... ouro (o caranguejo, emparticular, e os crustceos, em geral, so o ouro dos mangues), esqueci-mento ativo e devires, sem simbiose nem filiao, mas alianas, interces-ses, vizinhanas.

    Faz-se mister olhar o mangue como se olha o meio: um olhar dendio. Olhar que no v por antecipao, mas que deixa eclodir o novo,sob a fora duma tica (e esttica) do olhar: sem lodo nem aviltamento,numa repetio sem semelhana, mas como diferenciao, numa contem-

    plao vibrtil, sem determinao, mergulhada numa viso que inventa aviso do que visto sem pontos de referncia nem muletas. O que eu vejo ainda o que vereia partir da inveno e no da representao; mas o olharque acolhe o mangue um olhar rfo: nem comeo nem fim. E a visosupe a produo que, no mangue, passa necessariamente pelo inter-ser,inter-olhar, sob o signo de uma individuao que pura fulgurao no cur-so do tempo. Eis, pois, um possvel esboo de uma pedagogia rizomtica:Mangues school.

    Pode-se afirmar que a criana uma obra em construo e que aescola seu intercessor privilegiado na autoconstruo? Talvez. con-dio, porm, que a transmisso de saber no se torne uma transmissode poder, uma palavra de ordem a qual o aluno suposto querer ouvir,aceitar e obedecer:

    Uma lgica de transmisso do saber ao mesmo tempo a transmisso de umaordem; e uma lgica onde o ato de aprender primeiro um ato. O saber nose transporta de uma cabea para outra. Existe algo que se passa em uma ca-

    bea, e alguma coisa que se passa em outra. O saber no se transporta nun-ca. Ele busca uma continuidade entre as formas do aprendizado habitual aprende-se olhando, adivinhando, comparando etc. e as formas supostasmetodolgicas da transmisso de saber. (Rancire, 2004, s/p.)

    Deleuze, por sua vez, afirma:

    A escola parece ainda no saber furar, limar o muro. As escolas gostam demaisdas razes, das rvores, do cadastro, dos pontos de arborescncia, das proprie-dades. Vejam o que o estruturalismo: um sistema de pontos e de posies,que opera por grandes cortes ditos significantes, ao invs de proceder por cres-cimentos e estalos, e colmata as linhas de fuga, ao invs de segui-las, tra-las,prolong-las em um campo social. (Deleuze & Parnet, 1998, p. 50)

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    Os ensinamentos e aprendizados que compem a criana, no sen-do destinados a permanecer para sempre no seu corpo e afectos, desagre-

    gam-se progressivamente ao longo do tempo e da emergente constelaode novas imagens, do novo. A dinmica rizomtica, acoplada ao esqueci-mento ativo e memria das palavras(Lins, 2000), atenua os estragos damemria das marcas (arborescentes) e do ressentimento, e a fria no-criativa das lembranas cristalizadas em culpas e dvidas. Ora, o novo oque est por vir, para que ele seja, preciso que haja o esquecimento,uma memria das palavras, aquilo que no ainda, e que, desde que pas-sa a ser, torna-se memria, passado. A pedagogia rizomtica, neste senti-

    do, trabalha sempre com o novo. Eis, pois, toda a sua dinmica: o que (a memria) d lugar ao que no ainda (o novo, que implica o esqueci-mento). O novo o devir, o por vir. Nem genealogia, nem razes:rizoma, abertura para a imanncia, num eterno retorno em que o queretorna so os blocos de diferena em forma de devires. o prprio realque aparece como produo do novo, o que supe uma passagem doagente itinerante, por definio por uma experincia singular. Onovo, cuja fora maior seu carterprimitivo ou imediato da novidade,ora posto pela experincia, ora pelo ser, no significa que ele se apresente

    espontaneamente nem que seja reconhecido imediatamente como tal pelopensamento, mesmo porque o pensamento, muitas vezes dependente daopinio, impotente para acolher o novo.

    Mormente, o que caracteriza o novo em Deleuze o fato de queo pensamento comea pela ruptura com a opinio. Neste sentido,Deleuze analisa a imagem do pensamento como um dispositivo depoder domesticado no pensamento para consagrar os valores estabele-cidos, e reclama para a filosofia a criao de valores novos.

    , de fato, o ser vivo, ou todo ser vivo, que produz ele mesmo suaexistncia por meio duma atividade criadora de soluesa cada vez inven-tadas em circunstncias singulares. A vida impe, pois, conceber concei-tos capazes de dar conta duma atividade de criao. Neste sentido,Deleuze pensa a vida como princpio da novidade e da diferena, isto ,como novidade, como movimento de diferenciao que no pode ser pen-sado sem a vida, diferena, antes de tudo, como diferena vital.

    Por meio da questo do novo, a funo daMangues Schoolno

    mais a de responder a uma necessidade de verdade, ou de abrir ao co-nhecimento do real, mas provocar novas possibilidades de vida. Onovo assim retomado como uma exigncia de criao que instiga a

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    promoo de foras capazes de transformar o presente levando-o paranovas vias, segundo a formulao de Nietzsche: Agir contra o passado,

    e desse modo sobre o presente, em favor (espero) de um tempo porvir (Deleuze, 1962a, p. 122).Desde que o pensamento na educao, ou alhures tem como

    objeto o novo, torna-se experimentao. Ora, se para Deleuze o pensa-mento se define pela experimentao, cabe filosofia da educao com-preender a produo do novo no interior dos conceitos, ao passo que aarte, que uma forma de pensamento, perceber a novidade to-somen-te por meio dos perceptos que inventa.

    Em contrapartida, sabemos que o mundo imagtico, o banco dedados, renova-se no como uma mquina programada, mas como umamemria em devir que, ao elaborar o esquecimento das imagens/lembran-as/recordaes, cria simultaneamente outras imagens, outras memrias,num movimento que renovao, involuo, numa experincia virtual,isto , mais real que o real.

    Assim, a imagem do rizoma, descrita por Deleuze e Guattari, aimagem geral a soma de todas as outras: e... e... e... sem que haja

    hierarquia nas imagens que a compem. O limite do rizoma fugitivo:Oposto rvore, o rizoma no objeto de reproduo: nem reproduo exter-na como rvore-imagem, nem reproduo interna como a estrutura-rvore. Orizoma uma antigenealogia. uma memria curta ou uma antimemria. Orizoma procede por variao, expanso, conquista, captura, picada. Oposto aografismo, ao desenho ou fotografia, oposto aos decalques, o rizoma refere-sea um mapa que deve ser produzido, construdo, sempre desmontvel,conectvel, reversvel, modificvel, com mltiplas entradas e sadas, com suas

    linhas de fuga. (Deleuze & Guattari, 2000, p. 32-33)Deleuze compara a memria curta ao rizoma, e a memria longa

    arborescncia. A pedagogia rizomtica apresenta semelhanas com onosso crebro e sua composio feita de neurnios conectados entreeles por sistemas: O pensamento no arborescente e o crebro no uma matria enraizada nem ramificada. (...) Muitas pessoas tm umarvore plantada na cabea, mas o prprio crebro muito mais umaerva do que uma rvore (Deleuze & Guattari, 2000, p. 25).

    Uma pedagogia rizomtica assemelha-se, ao mesmo tempo, a umprolongamento de nosso crebro, a um desenvolvimento eclodido denossa conscincia, a uma conscincia fluida que se estende em todas as

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    direes, ou em nenhuma, embaralhando os cdigos unitrios e alinearidade que empobrecem a imaginao e afugentam os devires.

    Conscincia, pois, que se nutre de outras conscincias produtoras dedevires inconscientes, engendrando uma desterritorializao e abrindo-se ao novo, ao impensvel do pensamento, num espao de criao emque os alunos se tornam os prprios rizomas.

    Se o rizoma no tem efetivamente regio, territrio ou lugar, emrazo de sua geografia, de suas ilhas e manguezal flutuantes; em outraspalavras, porque seus limiares so sensivelmente indistintos: nem zonasfronteirias nem limites a serem apontados, consignados. O rizoma pas-

    seia num movimento constante de entrada e de sada negligenciando ascircunscries. Deste cao-errante, emergem as primaveras de uma peda-gogia rizomtica, nmade. Nada que rompa ou aparta, nenhuma super-fcie de separao, unicamente superfcies eretas ou espaos de ligaes.Nem fronteiras, nem demarcaes, nem orlas, uma expanso sem con-fins, nada que o enclausure, mas aberturas, espaos abertos, e, conseqen-temente, nem borda, nem comeo, nem fim: sempre meio, pois, na pe-dagogia rizomtica, coabitam microzonas, microssetores, rizomas

    correspondentes a cada singularidade. O rizoma algo que se mostra: ooposto, pois, de uma pedagogia solitria que cultiva os segredinhos!.A desterritorializao o monte inverso e a margem oposta da

    localizao (para conservar um campo lexical oriundo do fluxo). Umapedagogia nmade subtrai-se a toda e qualquer localizao temporal eespacial, escorrega entre os dedos, no reside em um lugar nem em umponto, contudo numa multiplicidade de lugares e pontos quebrantan-do toda determinao arborescente. Localizar definir, nomear, logo da

    ordem do institudo. Do institudo ao institucionalizado um passo: ageografia devm histria, estrutura, genealogia, muralha contra a diver-sidade, educastrao e no educao.

    Destarte, a desterritorializao encontra sua fora nas sadas: o ter-ritrio dos animais dos territrios no vale seno com relao a um movi-mento pelo qual dele se sai. Para Deleuze, no h territrio sem um vetor desada do territrio, e no h sada do territrio (isto , desterritorializao)sem que haja, ao mesmo tempo, um esforo para se reterritorializar alhures,

    em outra coisa (Deleuze & Guattari, 2000, p. 11-37).Tudo acontece por desterritorializao/territorializao, tudo ope-ra, como nos sites, os espaos de mostrao, de presentao do visual. H

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    deformao, mudana de estrutura, partida para outras estradas, novaspeles, sempre para as mutaes, para opor vir. o devir-criana inserido

    no corao do rizoma, o contrrio, pois, da rvore: as estruturas arbores-centes tm saudades do passado, so atradas pelo cemitrio, pelo pensa-mento-tmulo; o rizoma sente saudade do futuro, ele a linha-artista porexcelncia.

    Fica a pergunta: Como se propagar e se reterritorializar neste no-lugar, plano de consistncia, e agenciamento? Convm investir as sin-gularidades em um campo lavrado pelas heterogeneidades, um lugar que no-lugar, logo, deliberadamente, sada de todo lugar, um lugar sem

    lugar, e que no sofre por isso, ganhando em troca uma pluralidade in-definida de lugares, eis o que nos titila. O rizoma, como a internet, acoisa conectada a qualquer instante, em qualquer lugar, em todas as ln-guas, segundo a criatividade de uma gramtica das invenes: poltica pri-mordial da pedagogia rizomtica, mas tambm a sua fora nmade.

    Uma oficina rizomtica assemelha-se a um ateli clssico: um es-pao onde crianas, alunos, estudiosos, artistas, pesquisadores realizamseus trabalhos e dividem suas experincias. Se a oficina comum fixa, e

    segundo sua definio, visvel no espao, a oficina potencial, no quadrode uma pedagogia nmade, instaura-se no relativo e no flutuante, ela tro-ca sua forma e seu territrio por outras formas e territrios, segundo seubel-prazer, embora com extremo rigor e conhecimentos intelectual eafetivo, sem os quais nenhum experimento possvel.

    A pedagogia dos afectos alegres em detrimento da tristeza das cer-tezas; a abertura s incertezas em detrimento da verdade ou da vontadearborescentes que asfixiam o desejo e exilam o aprendiz na memria dos

    traos, na ferida da lngua e do corpo, tornando-o refm duma memriadesidratada, do no-esquecimento passivo, niilista. Marcado pelomimetismo sfrego, pela cpia, pela iluso duma centralidade, dumaunidade que garante a resoluo, mas que impede toda criao de pro-blemas, o romance edipiano tristeza arborescente: A rvore ou a raizinspiram uma triste imagem do pensamento que no pra de imitar omltiplo a partir de uma unidade superior, de centro ou de segmento(Deleuze & Guattari, 2000, p. 26).

    O problema aquilo a partir do qual a filosofia deve necessaria-mente pensar. O pensamento no tem como fundamento a busca da ver-dade como se a verdade estivesse sempre disponvel, toa, esperando a

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    nossa boa vontade para se manifestar. O pensamento est voltado nopara o estudo de problemas, mas para a criao de conceitos. O pro-

    blema no uma questo, pois a questo supe, de imediato, a resposta.A questo ou a interrogao sustenta-se na realidade vazia, o problemaest alhures.

    L onde se busca um centro, um comeo, um fim, emerge comouma fora bailarina o desejo de aprender, de crescer, de voar, afetadopor uma pedagogia dos plats Um plat est sempre no meio, nemincio nem fim. Um rizoma feito de plats (...). Chamamos plattoda multiplicidade conectvel com outras hastes subterrneas superfi-

    ciais de maneira que formem e estendam um rizoma (Deleuze &Guattari, 2000, p. 33) que apela para a criao de sentidos, supe-rando toda e qualquer alteridade paralisada em outrem, no ser huma-no, no Generalonipresente, ferrenho inimigo do corpo e dos afectos,do erotismo e das delcias compartilhadas da pele e das paixes alegres,barreiras vitalistas contra o fechamento do rizoma e a instaurao dareproduo em detrimento da produo e da expanso:

    Contra os sistemas centrados (e mesmo policentrados), de comunicaohierrquica e ligaes preestabelecidas, o rizoma um sistema a-centradono-hierrquico e no-significante, sem General, sem memria organiza-dora ou autmato central, unicamente definido por uma circulao deestados. O que est em questo no rizoma uma relao com a sexuali-dade, mas tambm com o animal, com o vegetal, com o mundo, com apoltica, com o livro, com as coisas da natureza e do artifcio, relao to-talmente diferente da relao arborescente: todo tipo de devires.(Deleuze & Guattari, 2000)

    A criana no sendo uma floresta virgem, um mundo a desco-brir, ou um ser sem existncia prpria, o inexistente(descobrir umacriana reproduzir a prpria criana, segundo o estado de representa-o do colonizado, sob a imposio do eu, fico colonizadora), mas umdevir-manguezal, uma igualdade na desigualdade, dobras e desdobras,com as quais se pode ou no coabitar. Como o mestre, mutatis mutandis,a criana vive o dilema da igualdade no-mensurvel, mas conceitual.Professor e aluno, ambos so dotados de saberes, experimentos, vivncias,

    logo no so folhas brancas: cada um, a sua maneira, tem seu capital cul-tural, e isso desde a mais tenra infncia. Neste quesito, h uma igualda-de no-estatutria, no contabilizada nem competitiva, mas real: no h

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    matas virgens, ambos possuem conhecimentos no-comparativos. O fatode que um e outro, contudo, tenham um capital cultural, emocional ou

    lingstico aproxima-os duma multiplicidade rizomtica, no gramati-cal nem hierrquica. O professor, suposto saber mais que a criana,no superior ao aluno, suposto saber menos que o mestre, mesmoporque na contabilidade rizomtica no h sinais negativos. Estamos,pois, no universo dos intercessores e no do General, dos devires e nodas estruturas arborescentes. Saberou no saberso devires impercept-veis, sua percepo exige que se tenha pequenas orelhas, pequenos olhos,e ausncia de hierarquias terroristas, interpretaes assassinas, verdade

    ou juzo.Como ficaria, neste contexto, o aprendizado? Que tipo de leituraconduz ao saber-sabor? Como fica a relao entre pedagogia, aprendiza-do, escola, rizoma ou imanncia? Deleuze escolhe Dickens comointercessorpara a definio de imanncia. J em Kafka: por uma literaturamenor(Deleuze & Guattari, 1977; cf. Lins, 2004c), a imanncia aomesmo tempo princpio de escrita em Kafka e de leitura em Deleuze eGuattari. A imanncia a imanncia da lei; a justia atravessada pelo de-

    sejo, no Processo de Kafka; mas a imanncia tambm aquela da leiturasempre no mago do texto, que procura perceber como ele funciona (oagenciamento). Falaremos neste caso de um aprendizado imanente, deum mtodo rizomtico que acolhe o ser zero2 da pedagogia que , aomesmo tempo, causa e dom, o que no ainda. O participado (supos-to professor) torna-se o princpio ativo ao passo que o participante (su-posto aluno) o efeito. Sem hierarquia nem lugares, inauguram-se en-contros e no apenas quadros relacionais. Professor e aluno, ambosintercessores, tornam possvel aquilo que parecia impossvel: transmitirsem dominar, transmitir sem ofuscar os devires, receber sem dever, semmorrer s criatividades nem se deixar engolfar por uma alteridade moralque esvazia, mediante a dvida e a eroso dos desejos, a vontade positivade potncia, vontade superior de desejar.

    Em vez de engolfar o ser do sensvel, o ser zero alicera experimen-tos e experincias, reinventando um sujeito no sujeitado, no mais re-fm de uma identidade nem estruturado numa determinao que tudoresolve, sem se importar com os devires. Ora, o desprezo pelo devir, ser

    zero por excelncia, cristaliza o indivduo num tecido letal, alheio ex-perincia, separado da vida, da imanncia. Ao afirmar que o ser zero por definio o devir, almejamos, sobretudo, realar com Deleuze que o

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    devir no ser (Deleuze & Guattari, 1997, p. 87; Simondon, 2003),o devir no substncia. Abre-se, pois, todo um universo inveno pe-

    daggica, ao engendramento de uma a-pedagogia em que a criana, oaluno, uma entidade em devir, o ser zero curado do dogma do ser,como representao, que deve ser administrado, catalogado, formado,segundo as regras e rdeas de um pensamento que s pensa o que deveser pensado, atrelado a uma pedagogia do rebanho.

    Ser zero,2 o impensvel, pensar o que no pode ser pensado e, con-tudo, deve ser pensado, o involuntrio: pensar como a criana que pro-duz um pensamento sem pensamento. Esse ser zero restitui cada reali-

    dade singular na superfcie do plano de imanncia e tece um lao com oimpensado, grau zero do ser plano de imanncia , cada um dos ter-mos permitindo um acesso ao virtual que aponta para a atualizao dassingularidades. O devir-pensamento assemelha-se ao devir-criana-do-pensamento: pensar sem pensamento, pensar, pois, para alm da noode cultura freudiana, ou das amarras platnicas.

    Pensar o impensvel, pensar-com-o-corpo: o corpo toma ento suasignificao ontolgica Corpo sem rgos quando ele abre a esta di-

    menso velada e impossvel da experincia, quando ele abre ao tocvel noseu prprio intocvel, ao visvel em seu prprio invisvel, conscinciaem sua prpria inconscincia, ao Corpo sem rgos, prope uma expe-rimentao do limite de nosso ser, e fora a reflexo a exprimir oinexprimvel. Assim, Deleuze conclua com estas palavras uma confern-cia sobre a msica:

    No h orelha absoluta, o problema de ter uma orelha impossvel tor-nar audveis foras que no so audveis nelas mesmas. Em filosofia, tra-

    ta-se de um pensamento impossvel, isto , tornar pensvel, por meio deum material de pensamento muito complexo, foras que no sopensveis. (Deleuze, 1978, s/p.)

    Pensar sempre seguir a linha do vo da bruxa, despositivars insti-tuies, percorrer infinitamente a experincia humana em busca de umasuperfcie de contato na qual se trama e se enreda o pensamento no im-pensado.

    Reler sem cessar o arquivo das palavras, revolver a representao, dei-xar que o pensamento ecloda na sua intensidade e no seu furor, escapandoassim ao pensamento que pensa para nada: pensamento organizador deacoplamentos mrbidos, sob o selo de uma bondadeecumnica,aglutina-

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    Disponvel em

    dora de uma economia perversa marcada por uma submisso incondicio-nal aofraco eis o axioma primordial de uma pedagogia rizomtica.

    Poderamos, pois, dizer que o pensamento-rizoma se produz noencontro heterogneo com o sensvel e no no elemento do pensamento(recognio). O objeto do encontro, ao contrrio, faz nascer a sensibili-dade do sentido (Deleuze, 1988, p. 231), e o que dado um ser sen-svel, no o divrcio entre uma matria amorfa e uma forma vazia, masum signo:

    No ser sensvel, mas o ser do sensvel. No o dado, mas aquilo pelo qual

    o dado dado. Ele tambm, de certo modo, o insensvel (...) aquilo ques pode ser sentido (sentiendum ou ser do sensvel) sensibiliza a alma, tor-na-a perplexa, isto , fora-a a colocar um problema, como se o objeto doencontro, o signo, fosse portador de problema como se ele suscitasse pro-blema. (Idem, ibid., p. 231-232)

    Em sntese, se pela experincia que descobrimos que somos eter-nos, essa experincia no sensvel, mas fundamentalmente transcen-dental. Ela no empirismo simples, todavia empirismo transcendental.

    A existncia uma experincia que nos permite pertencer vida, imanncia, auscultando o sopro-movimento profundo da expresso. Cabenotar que h em Deleuze, inmeras vezes, esta contigidade, a sublimeconfuso entre pensamento e Vida, como se a Vida fosse to-somentepensamento, soberano e imanente a todas as formas daquilo que vive.Vida e pensamento ultrapassam o sujeito que os recolhe. A Vida no imanente a uma coisa, mas cria a imanncia com a qual toda coisa se rela-ciona. Mas, se o ser vida, desejo, imanncia, o que uma vida? Aimanncia como uma vida Riderhood, em Our mutual friend, o mausujeito de Dickens (Dickens, 1989, p. 443), que entre a vida e a mortetorna-se uma vida impessoal:

    O que imanncia? uma vida... Ningum descreveu melhor que Dickenso que uma vida, assinalando o artigo indefinido como indcio dotranscendental. Um canalha, um sujeito ruim, desprezado por todos, levado moribundo, e de repente aqueles que cuidavam dele manifestamuma certa solicitude, respeito, amor pelo sinal de vida do moribundo.Todos se empenhavam em salv-lo, de modo que, no ponto mais profun-do de seu coma, o vilo sente ele mesmo algo terno invadindo-o. Mas medida que ele retoma a vida, seus salvadores se tornam mais frios, e elereencontra toda sua grosseria e maldade. Entre sua vida e sua morte, h

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    um momento que to-somente o de uma vida que joga com a morte.(Deleuze, 1997, p. 17)

    O indefinido de uma vida como determinao singular. O mo-mento em que a vida de Riderhood no mais sua vida, mas uma vidaao mesmo tempo singular e aberta a todos. O sujeito ruim causa compai-xo no porque sofre ou porque sua morte parece prxima, mas porque,entre a vida e a morte, ele alcana essa vida impessoal e a representa tobem que cada um se encontra nela absorvido:

    A vida do indivduo substituda por uma vida impessoal, embora singu-

    lar, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interi-or e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que acontece.(Deleuze, 1997, p. 17)

    Texto de grande sabedoria. Estamos diante daquilo que Deleuzechama de hecceidade: no se trata mais de individuao (o indivduo aqui,no caso o mau sujeito, no existe), porm de singularidade:

    Vida de pura imanncia, neutra, alm do bem e do mal, j que s o sujei-

    to que o encarnava no meio das coisas a tornava boa ou m. A vida de talindividualidade se apaga em benefcio da vida singular imanente a um ho-mem que no tem mais nome, embora no se confunda com nenhum ou-tro. Essncia singular, uma vida... (Deleuze, 2003, p. 17-18)

    Programa/projeto

    porque a escola coabita com diferenas e singularidades que al-

    guns podem adaptar-se moral do rebanho; outros devem ter o direitode se rebelar contra um modelo pedaggico pleno de boas intenes, masestrangeiro s multiplicidades. O programa o oposto do rizoma im-pe a todos a obedincia s setas e indicaes. O projeto, diferentementedo programa, experimenta, desconfia das verdades pedaggicas verdadei-ras. Embora o programa tenha sua importncia em todo projetoeducativo, ele apenas um instrumento cooptado pelo provisrio, molar,identitrio. Uma pedagogia molar, uma pedagogia dos arranjos impor-tante, contudo circunstancial, sua fora consiste em aspirar ao molecular.

    Convm, assim, mudar a relao com o tempo. No se pode encontraruma sada se continuarmos a conceber o tempo sob a forma de uma li-nha reta infinita: a linha reta infinita que nos ameaa. Faz-se necessrio

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    se desembaraar da imortalidade e, acima de tudo, livrar-se da superiori-dade da alma sobre o corpo (Lins, 2005).

    O que seria uma pedagogia molecular, rizomtica? Uma pedago-gia da desconstruo e da diferena, do indivduo como singularidade.Uma pedagogia que no trabalha com formas, mas com encontros n-mades, desejos, encruzilhadas e bifurcaes.

    A educao molar, quando desvinculada do molecular, , muitasvezes, sustentada pela pedagogia do juzo e da rentabilidade: ensinarbrincando, otimizar o brincar, atribuir ao brincar um sentido peda-ggico que amortece a prpria fora de um brincar que por definio

    sempre molecular, isto , subjetivao, arte do intil, por excelncia.Puramente ldico, mas ao mesmo tempo lugar de limites e regras mode-ladas, remodeladas, pensadas, repensadas, revisitadas, num movimentomolar inserido e projetado no molecular, o brincar, como a aprendiza-gem, brincar com desejo e no contra o desejo.

    As crianas, ao brincarem, inventam suas prprias regras, seus pr-prios limites; e preparam-se em todos os sentidos para a vida, puraimanncia. O brincar o espao do possvel do pedaggico: Um pouco

    de possvel seno eu sufoco parecem dizer, no silncio, crianas e adoles-centes habitados por afectos tristes...

    A mobilidade, a leveza do ser, a escuta, o dilogo prprios a umapedagogia rizomtica abrem perspectivas para uma construo de poss-veis sob o signo do dom e no apenas da competio que, fora de ocu-par o lugar da educao, impe uma intoxicao das invenes e dosafectos: crianas-suicidas, ou jovens socialmente privilegiados, sofrendo delceras precoces, dores de estmago, dores de cabea, apatia e/ou

    hiperatividade, a progresso sem limites de processos de somatizao, semjustificaes aparentes nem soluo vista.

    no processo de criao, alimentado por linhas de fuga, que fun-ciona como campo de uma desterritorializao, isto , de um partir, deum evadir-se, traar uma linha, atravessar o horizonte, penetrar em ou-tra vida num aprendizado que sabe dizer sim vida! essa sem dvidaa fora do aprendizado rizomtico:

    No ser inferior ao acontecimento, tornar-se o filho de seus prpriosacontecimentos (...). Amar os que so assim: quando entram em um lu-gar, no so pessoas, caracteres ou sujeitos, so uma variao atmosfrica,

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    uma mudana de cor, uma molcula imperceptvel, uma populao dis-creta, uma bruma ou nvoa. (Deleuze & Parnet, 1998, p. 79-80)

    A criao, como o devir, geogrfica. Aqui h um problema.Como fazer para que nossos projetos pedaggicos e nossas escolas inte-grem cada vez mais o devir, a esttica da existncia? ParafraseandoDeleuze, ao enfatizar o carter arborescente dos franceses, poderamos di-zer que, de fato, nossas escolas so humanas demais, como os franceses,so histricas demais, preocupadas demais com o futuro e com o passado. Pas-sam seu tempo recapitulando. At mesmo quanto escola pensam emum futuro pedaggico, mais do que em uma antipedagogia do devir

    ou em um devir a-pedaggico. Nossas escolas parecem ainda no sabertraar uma linha, seguir um canal. (...) Linha ativa brincando livremen-te. Passear por passear, sem objetivo particular. Agente: um ponto emmovimento (Deleuze & Parnet, 1998, p. 50).

    Aprender tambm aprender a desdobrar as 22 dobras do devir-beb, perscrutar o silncio das descobertas, a vida nas dobras, o espaodo dentro:

    em Lespace du dedans que Michaux escreve: A criana nasce com22 dobras. Trata-se de desdobr-las. Ento a vida de um homem estcompleta. Sob essa forma ele morre. No lhe resta nenhuma dobra a des-fazer. Raramente um homem morre sem ter ainda algumas dobras a des-fazer. Mas acontece. (Deleuze, 1992, p. 139)

    AMangues school, ou a pedagogia nmade, uma espcie de antipe-dagogia, encontra nas dobras e desdobras movimento para o infinito, pro-jeto aberto aos sopros amorosos e desejos no calcinados.

    Experimente, mas preciso muita prudncia para experimentar. Vivemosem um mundo desagradvel, onde no apenas as pessoas, mas os pode-res estabelecidos, tm interesse em nos comunicar afectos tristes (...). Ospoderes estabelecidos tm necessidade de nossas tristezas para fazer dens escravos. O tirano, o padre, os tomadores de almas, tm necessidadede nos persuadir de que a vida dura e pesada (...). A questo a seguin-te: que pode um corpo? De que afectos voc capaz? (Deleuze & Parnet,1998, p. 75)

    S se experimenta por amor, s se aprende por amor, s se ensinapor amor, s se escreve por amor, s se faz amor por amor. preciso mui-to trabalho para no viver idiota, para no morrer idiota. Aprender tam-

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    bm aprender a escrever, e a escrita uma carta de amor. Ora, o amor da ordem do experimento e no do programa. Experimentar significa

    tambm participar ativamente, engajar-se no sentido em que o pensa-mento no simplesmente espectador ou contemplador, mas participade maneira ativa daquilo que tenta. Enfim, na experimentao, o pensa-mento engaja-se num processo do qual desconhece a sada e o resultado,e nisso que ele est profundamente vinculado experincia do novo. Onovo no a eternidade, a inveno.

    Recebido em maio de 2005 e aprovado em julho de 2005.

    Notas

    1. Afecto em Deleuze, ao contrrio do afeto, uma potncia totalmente afirmativa. O afectono faz referncia ao trauma ou a uma experincia originria de perda, segundo a interpre-tao psicanaltica. O afecto, ao qual nada falta, exprime uma potncia de vida, de afirma-o, o que aproxima Deleuze de Spinoza: na origem de toda existncia, h uma afirmaoda potncia de ser. Afecto experimentao e no objeto de interpretao. Neste sentido,afecto no a mesma coisa que afeto: o afecto no-pessoal. Nem pulso nem objeto per-dido, O afecto uma potncia de vida no-pessoal, superior aos indivduos, o devir no-humano do homem. Cf. Lins, 2004a, e o instigante livro de Passetti, 2003.

    2. Conceito elaborado por Merleau-Ponty (1964, p. 308), aqui utilizado em outra concep-o e em outro contexto. Un zro detre para o autor um nada que se instala beira doser (...). L onde h mltiplas entradas do mundo que se cruzam.

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