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Marc Bloch a História Estrutural

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Texto sobre a concepção estrutural da História de Marc Bloch

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  • Biblos, Rio Grande, 1 (1): 55-67, 2010. 55

    A HISTRIA ESTRUTURAL: trajetria, conceitos e aplicabilidade

    JLIA SILVEIRA MATOS*

    RESUMO Na Frana, o movimento posteriormente intitulado de Annalistes exerceu uma verdadeira hegemonia no processo de renovao dos mtodos e problemticas da Histria. Entretanto, suas reflexes permaneceram muito mais no campo da epistemologia do que propriamente da teoria histrica. Somente as geraes posteriores a Marc Bloch e Lucien Febvre, chamados os pais fundadores dos Annales, buscaram a sistematizao de metodologias e esboos de uma possvel teoria, inspirada por diversas cincias lingstica, geografia, psicologia, antropologia, sociologia, entre outras. A partir dessa percepo, propomos no presente artigo, debruados sobre o texto-manifesto de Fernando Braudel Histria e Cincias Sociais, a discusso do desenvolvimento das anlises de cunho estrutural na histria, no apenas enquanto teoria, mas principalmente enquanto mtodo, de forma que possamos perceber as possibilidades de aplicao da abordagem estrutural na pesquisa histrica.

    PALAVRAS-CHAVE: histria estrutural; teoria; mtodo.

    Para mim, a histria a soma de todas as histrias possveis: uma coleo de ofcios e de pontos de vista, de ontem, de hoje e de amanh (BRAUDEL, 1990, p. 17).

    1 CONSIDERAES INICIAIS

    No sculo XX, os historiadores, diante de tantas transformaes, vivenciadas entre duas grandes guerras, detiveram-se em reflexes profundas sobre a epistemologia do conhecimento histrico. Formularam, em grande parte influenciados por velhas concepes, novos mtodos, ampliaram as possibilidades de pesquisa e instituram as bases para novas teorias histricas.

    Na Frana, o movimento posteriormente intitulado de Annalistes exerceu uma verdadeira hegemonia nesse processo de renovao dos * Professora do Instituto de Cincias Humanas e da Informalo ICHI-FURG; doutora em Histria (PUCRS). E-mail: [email protected]

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    mtodos e problemticas da Histria. Entretanto, suas reflexes permaneceram muito mais no campo da epistemologia do que propriamente da teoria histrica. A Histria-problema, defendida por Lucien Febvre e Marc Bloch, muito mais pelo primeiro, foi produzida visando ao ofcio do historiador. Suas obras seriam o modelo a ser seguido, por isso no se dedicaram composio de nenhum tratado de teoria.

    Somente as geraes posteriores a esses dois historiadores, chamados os pais fundadores dos Annales, buscaram a sistematizao de metodologias e esboos de uma possvel teoria, inspirada por diversas cincias lingstica, geografia, psicologia, antropologia, sociologia, entre outras. A partir dessa percepo, propomos no presente artigo, debruados sobre o texto manifesto de Fernando Braudel Histria e Cincias Sociais, a discusso do desenvolvimento das anlises de cunho estrutural na histria, no apenas enquanto teoria, mas principalmente enquanto mtodo, de forma que possamos perceber as possibilidades de aplicao da abordagem estrutural na pesquisa histrica. 2 A HISTRIA E O ESTRUTURALISMO NA HISTRIA

    Justamente por essa caracterstica interdisciplinar, o movimento iniciado em meados dos anos de 1927, na Faculdade de Estrasburgo, fragmentou-se em diversos grupos concentrados em esclarecer a teoria do movimento, os quais conseguiram muito mais desenvolver conceitos histricos do que propriamente um conjunto terico aplicvel. Dessa forma, as geraes sucessoras de Lucien Febvre e Marc Bloch dividiram-se em grupos dirigidos por suas tendncias tericas.

    O primeiro a se preocupar e dedicar a certa elaborao conceitual e terica do movimento, chamado de Annales em decorrncia da revista primeiramente intitulada Annales d'histoire conomique et sociale, fundada por Febvre e Bloch em 1929, foi Fernand Braudel.

    Bloch e Febvre como os idealizadores da revista Annales, no entendiam a prtica da Histria fora do quotidiano e, segundo Glnisson, recomendavam aos historiadores que no se conformassem com os dogmas de uma nova filosofia, mas deveriam assumir diante da histria uma atitude nova, libertando-se do seco esprito de sistema que a teoria dos positivistas decididamente dissimulava. Longe de encerrar-se em sua torre de marfim, o historiador dever abrir-se ao mundo exterior, participar ativamente da vida de seu tempo. Esse esprito de renovao, conforme afirmou Glnisson nessa citao, marcou essencialmente a primeira gerao dos Annales, entre os anos de 1930 e 1945.

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    Aps a morte de Marc Bloch, em 1944, em um campo de concentrao nazista, e a desocupao alem da Frana, Febvre, que mudara o nome da revista Annales para Mlanges durante a guerra, trocou o ttulo da revista novamente em 1946 para Les Annales. Economies, societs, civilizations. Estava s na direo da Les Annales e, aliado a Fernand Braudel, de acordo com Guy Bourd e Herv Martin, mudou a orientao da revista de histrica econmica e social para histria das mentalidades.

    No entanto, precisamos perceber que, enquanto Bourd e Martin afirmam que Febvre voltou-se para a histria das mentalidades durante a segunda fase dos Annales, iniciada aps a morte de Bloch, Ronaldo Vainfas afirmou que a segunda gerao, tambm chamada era Braudel, foi justamente o momento em que se viram eclipsadas, por assim dizer, as fortes preocupaes que os primeiros annalistes sempre dedicaram s mentalidades na histria (VAINFAS, 1997, p. 133). Diante desse impasse, podemos considerar que em seu livro O Mediterrneo Fernand Braudel apresentou um estudo sobre a economia e sociedade no mundo mediterrnico, ancorado nas relaes do homem e seu meio, a partir de uma anlise das diversas temporalidades. Entretanto, mesmo considerando a anlise em longa durao, acabou por, de acordo com Vainfas, marginalizar as mentalidades. A partir dessa percepo, ao olharmos a obra braudeliana poderamos desconsiderar a afirmao anterior de Bourd e Martin, no entanto foi justamente entre os anos de 1948 e 1956 que Lucien Febvre se dedicou ao estudo dos sentimentos de Honra e Ptria como motivadores das aes humanas.

    Como vemos, assim como a primeira fase dos Annales, a segunda gerao tambm no contou com uniformidade de pensamento. Enquanto Febvre abriu as anlises das mentalidades que seriam amplamente estudadas pela terceira gerao, Braudel introduziu o estruturalismo de Lvi-Strauss na teoria histrica dos Annales, relacionando as tenazes prises de longa durao que a geografia empunha universalmente ao homem com a noo de estrutura do antroplogo francs (VAINFAS, 1997, p. 134). Enquanto Febvre ampliava sua investigao sobre a Histria das mentalidades coletivas, Braudel, conforme Vainfas, privilegiou dentro da revista os aspectos econmicos e demogrficos. Foi a valorizao do quantitativo em detrimento do qualitativo, que somente seria retomado na terceira gerao.

    Nessa segunda fase ou gerao, ocorreu a institucionalizao dos Annales, primeiro ainda sob a direo de Febvre com a fundao da VI Seo da Escola Prtica de Altos Estudos1

    1 Com recursos da Fundao Rockfeller, foi concebida como centro de pesquisas e,

    , depois j com Braudel na

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    liderana, a Maison des Sciences de l'Homme2

    Nesse momento, principalmente aps a morte de Febvre, Braudel investiu nas anlises estruturais da Histria. Sua proposta de anlise da longa durao, ainda que no o distancie tanto de Febvre e Bloch, veiculava uma ampla e nova discusso, por isso, segundo Vainfas (1997), a sua era foi marcada pela produo de grandes obras de histria total. Sua inovao foi a percepo de profundas e constantes conexes entre tempo e espao, histria e geografia.

    e por fim, com status universitrio, conforme j referido, com a fundao da Escola dos Altos Estudos em Cincias Sociais, a EASS.

    A concepo de tempo foi desde o princpio a caracterstica fundamental dos annalistes; em Febvre, no era concebido como o tempo da alma, da conscincia, da reflexo profunda dos indivduos, mas como disse Marcos Antnio Lopes (1998), o tempo inconsciente das coletividades, concepo que antecipou a posterior proposta braudeliana.

    A marca de Braudel foi sua concepo de tempo estrutural. Segundo Krzysztof Pomian (1998), no decorrer da dcada de 50 irromperam os debates sobre essa nova corrente e seu papel. Em 1958, aps a publicao da Antropologia estrutural, de Claude Lvi-Strauss, estudiosos comearam interrogar sobre o sentido e empregos do termo estrutura e principalmente sobre a validade da histria, como cincia social. No captulo Antropologia estrutural, o autor recusou histria seu direito de se autodefinir enquanto cincia social. A partir desse texto, estabelecia-se o debate. Em resposta, Fernand Braudel elaborou um manifesto, intitulado Histria e cincias sociais. A longa durao, no qual mostrou que a histria se interessava fundamentalmente pela tarefa de individuar as estruturas. Dessa forma, no desenvolvimento de sua demonstrao, tambm precisou o sentido que os historiadores davam prpria palavra estrutura:

    Para ns, historiadores, uma estrutura , indubitavelmente, um agrupamento, uma arquitetura; mais ainda, uma realidade que o tempo demora imenso a desgastar e a transportar. Certas estruturas so dotadas de uma vida to longa que se convertem em elementos estveis de uma infinidade de geraes: obstruem a histria, entorpecem-na e, portanto, determinam o seu decorrer. Outras, pelo contrrio, desintegram-se mais rapidamente. Mas todas elas constituem, ao mesmo tempo,

    segundo Jos Carlos Reis (2000), sem status universitrio. 2 Com apoio da Fundao Ford, foi criada a Maison como importante centro de pesquisa e ensino de cincias sociais e ampliou seus corpos fsicos, como prdios, laboratrios, bibliotecas, editoras e funcionrios. A pequena revista tornou-se um centro de influncia na rea dos estudos em Histria e Cincias Sociais. Ver mais: REIS, Jos Carlos. A Escola dos Annales: a inovao em histria. So Paulo. Paz e Terra, 2000. p. 102.

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    apoios e obstculos, apresentam-se como limites (envolventes, no sentido matemtico) dos quais o homem e as suas experincias no se podem emancipar. Pense-se na dificuldade em romper certos marcos geogrficos, certas reaes espirituais: tambm os enquadramentos mentais representam prises de longa durao (BRAUDEL, 1990, p. 14).

    Assim, conforme a citao, Braudel vinculou-se proposta

    febvriana de estudo das mentalidades coletivas, pois se preocupava com o estudo das estruturas nas quais o homem est imerso. No entanto, muito de seu criticado possvel distanciamento dos pais fundadores se deu por sua anlise centrar-se numa histria das populaes e no dos indivduos. Dosse acabou criticando-o por excessos de economicismos e por delegar poderes determinantes ao meio geogrfico sobre a vida humana, chegou a afirmar que em sua obra o homem deixara de ser sujeito. Em relao a tal afirmao, discorreu Jos Carlos Reis (2000) que Braudel no retirou do homem sua condio de sujeito, mas submete a sua ao s circunstncias objetivas, estruturais, pelas quais ele est envolvido, e que ele pode alterar, mas custa de um esforo penoso, e s obter resultados a longo prazo (REIS, 2000, p. 105). Como vemos, foi a recusa do evento e sua breve temporalidade, somadas negao do evolucionismo progressista e linear da sociedade, que o levaram a discutir e a escrever sobre sua viso de tempo em trs ritmos heterogneos: estrutural, conjuntural e acontecimental.

    A definio braudeliana de tempo e a institucionalizao dos Annales foram grandes passos para a ampliao dos campos de pesquisa sob essa nova viso histrica. Mas, como desde sua fundao os Annales no pararam de transformar-se: 1929, com a criao da revista; 1933, transferncia de Febvre para a Sorbonne; 1936, transferncia de Bloch para a Sorbonne; a Segunda Guerra; 1947, nova e definitiva mudana de nome e princpio da institucionalizao dos Annales. Em 1968, na direo da revista, Fernand Braudel cercou-se de um comit formado pelos historiadores Jacques Le Goff, Emanuel Le Roy Ladurie, Marc Ferro e um secretariado, no qual se sucederam Robert Mandrou, Andr Burguire e Jacques Revel.

    Dessa forma, foi durante a administrao de Braudel que o movimento dos Annales alcanou maior amplitude e concretizou sua hegemonia. No entanto, no a partir da direo conceitual e terica febvriana, de anlise das relaes indivduo-coletividade, mas debruados sobre as contribuies braudelianas do paradigma estruturalista. Segundo Franois Dosse,

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    O paradigma que dominou inconteste nos anos de 1950-1975 foi o estruturalista. Caracterizava-se como paradigma crtico a partir de uma atrelagem constituda por uma disciplina-modelo a lingstica , duas disciplinas-rainhas a sociologia e a etnologia e duas doutrinas de referncia o marxismo e o psicanalismo. Essa configurao das cincias sociais tinha expresso filosfica nos pensamentos da desconfiana, nas estratgias de desvendamento, com a idia de que a verdade cientfica acessvel, porm oculta, velada. O que caracterizava ento esse paradigma era o desenvolvimento de um pensamento do descentramento. As cincias humanas mais celebradas durante esse perodo eram as que tinham maior capacidade de expropriar a presena, a atestao do sujeito, e, em primeiro lugar, tudo o que dissesse respeito a ao, ao ato de linguagem, que constituam oportunidades de realizar operaes significantes. Nesse contexto, o estruturalismo permitia conjugar os efeitos do objetivo terico de destituio do sujeito e a ambio de compreenso objetivante, com ambies cientficas (DOSSE, 2001, p. 41).

    Conforme discorrido por Dosse, essa hegemonia do estrutural na

    segunda metade do sculo XX se deveu em grande parte ao seu paradigma crtico e principalmente ambio cientfica e de compreenso objetivante. Assim, a histria estrutural, proposta por Braudel, ao mesmo tempo que se distancia do estruturalismo de Claude Lvi-Strauss tambm o incorpora. Por isso, segundo Jos Carlos Reis, o conceito de estrutura de um historiador no uma forma abstrata, matemtica, de relaes que definem em funes (2000, p. 104), antes, a forma repetitiva da vida, suas permanncias, nas quais ano aps ano se do as continuidades das mesmas maneiras da vida cotidiana, cultivo dos campos, famlia e casa e trabalho. Conforme afirmou Reis, A estrutura do historiador o carter repetitivo das atividades dos indivduos e grupos e que define os limites de atividade, do crescimento demogrfico, da produo agrcola (2000, p. 105). Ao contrrio da tradio metdica francesa que buscava as rupturas, o diferente, a Histria estrutural se deteve nas permanncias, em tudo que de mltiplas formas se relacionava com um longo processo social, que no mudava, ou seja, seu olhar se centrou no regular, ao invs da exceo, no quotidiano e no no extraordinrio, e assim, saiu dos dos fatos singulares para os de massa. Ao contrrio do que criticou Dosse, a grande diferena entre a Histria estrutural de Braudel e a renovao historiogrfica febvriana a descentralizao desse sujeito, que, diferentemente da proposta febvriana, sofre muito mais a temporalidade do que a produz e assim, perdeu o controle sobre sua prpria historicidade e no paira sobre o fato de o homem ter deixado de ser o

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    sujeito, pelo contrrio, esse papel do homem continuou a lhe ser imputado. Portanto, a partir das consideraes blochianas e febvrianas que

    levavam em conta os fatores culturais e psicolgicos, conscientes e inconscientes, Braudel radicalizou e tornou o homem um elemento serivel e no singular. Acabou por privilegiar muito mais a centralidade do papel das estruturas e das sries conjunturais em detrimento da livre atividade humana, mesmo, como j pontuado, sem retirar sua posio de sujeito histrico. 3 CONCEITOS

    A grande questo da Histria estrutural braudeliana que a ao do homem, estudado a partir dessa proposta, submetida s circunstncias objetivas, estruturais, pelas quais ele est envolvido, e que ele pode alterar, mas custa de um esforo penoso, e s obter resultados a longo prazo (REIS, 2000, p. 105). Dessa forma, como analisaremos a seguir, a Histria estrutural busca os fenmenos atrelados ao tempo, que se arrastam atravs das geraes e que entravam as mudanas histricas.

    Para iniciarmos a conceituao, podemos perguntar: afinal, o que Histria estrutural? Braudel formulou a resposta para tal questionamento em seu manifesto publicado em 1958, na revista Les Annales, Economies, Societs, Civilizations, na seo Dbats et Combats, intitulado La Longue Dure, no qual enfatizou a importncia de estudos dedicados anlise das permanncias e das estruturas, dentro da percepo temporal da longa durao. Para ele, uma estrutura um agrupamento, uma arquitetura, uma realidade que o tempo demora para gastar ou diluir e transportar.

    Portanto, segundo Braudel, estruturas so conjunturas da vida separadas por sua temporalidade. Nessa mesma direo, Krzysztof Pomiam (1998; 1990) afirmou que se fosse preciso determinar ao estruturalismo uma data de nascimento, seria sem dvida o ano de 1916. Nesse ano os discpulos de Ferdinand de Saussure publicaram seu Curso de lingstica geral e, inspirados por essa obra, desenvolveram, ente as duas guerras, a atividade dos Crculos Lingsticos de Praga e de Copenhague.

    No entanto, os debates em volta dessa nova corrente terica e do papel que pretendia exercer entre as Cincias Sociais s irromperam no fim da dcada de 1950, aps a publicao da Antropologia estrutural, tambm de Lvi-Strauss (1958).

    Os estudiosos comeam a se interrogar sobre a significao e os empregos do termo estrutura nas Cincias Sociais, assim como, nas

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    Humanas, sobre as relaes entre a abordagem estrutural e gentica3

    Diante do impasse, Braudel, com o intuito de defender o espao da Histria entre as cincias e ao mesmo tempo legitimar sua liderana entre elas, apresentou sua resposta, Histria e cincias sociais: a longa durao, publicado, como j citado, na revista Les Annales em 1958. Em seu texto afirmou que a histria, longe de encerrar-se no estudo dos acontecimentos, no apenas capaz de individuar as estruturas, como deve se interessar em primeiro lugar por essa tarefa (POMIAN, 1998, p. 97). O interesse da Histria pelo estudo das estruturas, como apontado por Pomian, marcou a renovao historiogrfica francesa da segunda metade do sculo XX.

    e tambm sobre a validade da histria enquanto campo do conhecimento. No captulo dedicado anlise da Antropologia estrutural, o autor retirou da histria o direito de se autodefinir como uma Cincia Social.

    O embate travado por Braudel com a antropologia estrutural de Lvi-Strauss visava no apenas legitimao da hegemonia da Histria, mas tambm aproximao entre as cincias do homem. Afirmou em seu texto-manifesto que era urgente a aproximao entre as cincias, o que ele chamou de reunio, como forma de valorizar as jovens cincias que seriam capazes de contribuir em muito para a ampliao do conhecimento. Braudel nesse texto se referiu crtica de Claude Lvi-Strauss Histria e sua excluso das Cincias Sociais. Ainda vemos sua crtica antropologia como cincia jovem, que, apesar de suas promessas, nem sempre poderia cumpri-las. Isso, conforme afirmou no decorrer de seu texto, porque sem a Histria a antropologia no poderia dar conta do mtodo estrutural, pois, para Braudel, as estruturas somente se explicam numa anlise temporal de longa durao, a qual era campo por excelncia da Histria. Para ele,

    As restantes cincias sociais esto bastante mal informadas da crise que a nossa disciplina atravessou nos ltimos vinte anos ou trinta anos e tm tendncia para desconhecer, ao mesmo tempo que o trabalho dos historiadores, um aspecto da realidade social de que a histria , se no hbil vencedora, pelo menos bastante boa servidora: a durao social, esses tempos mltiplos e contraditrios da vida dos homens que so no s substncia do passado, mas tambm a matria da vida social actual. (...) Quer se trate do passado, quer se trate da actualidade, torna-se indispensvel uma conscincia ntida desta pluralidade do tempo social para uma metodologia comum das cincias do homem. (...) Talvez tenha chegado a nossa vez de ter algo a oferecer-lhes (BRAUDEL, 1990, p. 8-9).

    3 Relacionada lingstica, gnese da lngua e seus mtodos de interpretao.

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    O historiador atacou a antropologia estruturalista, conforme a citao, ao afirmar que as cincias sociais estavam desinformadas do papel da histria para as anlises estruturais. O conhecimento ntido da pluralidade do tempo social para elaborao de uma metodologia prpria das cincias do homem, como afirmou, somente seria possvel a partir do reconhecimento da Histria como principal campo de anlise dessa dimenso. Dessa forma, podemos perceber a defesa de Braudel, do campo da Histria como Cincia Social e de sua hegemonia perante as demais, debate que se arrastou no apenas nos anos de 1950, mas ainda perdura nos dias de hoje. Como vimos, para Braudel, a Histria, como uma cincia mais antiga, tinha muito a ensinar s demais.

    Dessa forma, segundo Jos Carlos Reis, a histria se preocuparia com as estruturas e suas permanncias num processo de longa durao, como j citado. Para ele, a estrutura sofre o vento da histria, que so seus eventos, e obrigada a se rearticular, a mudar lentamente. A estrutura o no h nada de novo, que envolve o evento, a novidade; ela uma articulao dos elementos j presentes nela (REIS, 2000, p. 104). A estrutura, como discorreu Reis, serviria como um tipo de plasma que envolveria os eventos em sua imediaticidade e em suas conjunturas, de forma que somente revelaria sua fora, permanncias e heranas a partir de suas inter-relaes temporais. No entanto, essas inter-relaes temporais apontadas como o plasma que envolveria os eventos precisam ser percebidas a partir da conceituao temporal proposta por Fernand Braudel, o que abordamos a seguir. 4 AS TEMPORALIDADES EM BRAUDEL

    O tempo em Braudel, de acordo com Peter Burke, se define por sua preocupao em situar indivduos e eventos num contexto, em seu meio, mas ele os torna intelegveis ao preo de revelar sua fundamental desimportncia (BURKE, 1997, p. 47). Burke apontou nessa frase uma das principais crticas anlise estrutural braudeliana, o perigo do emprego demasiado das entidades coletivas. Essas entidades coletivas seriam conceitos amplos e aglutinadores que absorveriam o papel dos indivduos da Histria, como, por exemplo, a massa, a burguesia, entre outros. Braudel, com o mpeto de perceber a ao do tempo sobre os eventos, teria aberto mo da anlise do papel exercido pelos homens como sujeitos da Histria.

    Nesse sentido, segundo Reis, Braudel privilegiou o tempo estrutural, quase imvel. Em sua teoria das temporalidades diferenciais, dividiu o tempo em fsico, medida geral das duraes ou permanncias,

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    e a pluralidade de tempos sociais, que so correspondentes variedade de fenmenos estudados, de forma a evidenciar aqueles fenmenos que operam efetivamente como reais arquiteturas ou estruturas de longa durao (ROJAS, 2000, p. 296).

    Para compreender o trabalho do historiador sob a perspectiva da Histria estruturalista, Braudel estabeleceu uma diviso tripartite da noo de tempo: primeiro um tempo estrutural, longo, imvel e duradouro, segundo um tempo conjuntural, mdio, caracterizado pela mudana, constitudo pelas oscilaes cclicas da histria, e por fim, o tempo breve, dos acontecimentos, prprio da vida quotidiana, das nossas iluses, das nossas rpidas tomadas de conscincia; o tempo, por excelncia, do cronista, do jornalista (BRAUDEL, 1990, p. 10). Esse tempo breve apontado por Braudel como prprio do jornalista caracterizado pelo acontecimento imediato. Por isso seria, para ele, a mais enganadora das duraes, pois, pairando na superfcie dos fenmenos estruturais, o episdio histrico se apresentaria envolto nas crenas, iluses e representaes sociais, inebriando a possibilidade de percepes mais profundas dos entrelaamentos histricos, que s poderiam ser evidenciados pela anlise de longa durao.

    Sobre o tempo breve, acontecimental, segundo Braudel, os homens, por viv-lo diariamente, sempre tiveram a impresso de compreender plenamente seu desenvolvimento. Nesse nterim, a histria criou a iluso de que os acontecimentos poderiam explicar todas as coisas. No entanto, a histria inconsciente est alm dessa superfcie e pode ser muito mais rica cientificamente, mais fcil de explorar e descobrir. Dessa forma, para ele, a histria inconsciente domnio parcial do tempo conjuntural e, por excelncia, do tempo estrutural muitas vezes mais nitidamente percebida que aquilo que se quer admitir (BRAUDEL, 1990, p. 24). No aparente, dissolvida entre os acontecimentos, a histria inconsciente atua como fora mantenedora das estruturas sociais na durao, da mesma forma que age na conjuntura, ou seja, nas mudanas, e por isso, conforme a citao, numa anlise estrutural pode ser facilmente percebida. Alm disso, Braudel pontuou nessa citao a insero da histria no mtodo indutivo da cincia e a tendncia ao abandono do antigo e tradicional mtodo dedutivo4

    Apesar de reconhecer as contribuies terico-metodolgicas de Karl Marx e principalmente de Claude Lvi-Strauss, Braudel apontou

    .

    4 Ser realmente que os historiadores de hoje, inspirados por Braudel, abandonaram os mtodos dedutivos e passaram a elaborar seus projetos a partir das anlises documentais, ou continuam se dirigindo aos arquivos com hipteses de trabalho a priori elaboradas?

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    para a fragilidade dos modelos propostos por ambos, o primeiro na universalidade de suas elaboraes conceituais e o segundo em sua anlise estrutural de longussima durao que chegaria a dar ao fenmeno um carter eterno e somente alcanaria verdades primeiras, aforismos. Para ele, a histria no poderia ser reduzida apenas s anlises da excessiva longa durao, antes o historiador deveria atentar, fundamentalmente, para o jogo da vida, seus movimentos, duraes, rupturas e variaes. Dessa forma, a histria estrutural buscaria essencialmente as relaes entre as estruturas e suas mltiplas temporalidades, vnementiel e conjuntural. 5 APLICABILIDADE NA HISTRIA: TEORIA E MTODO

    Mas, entre tantas consideraes a respeito da noo de temporalidades mltiplas e a promoo de um campo de anlise voltado para as repeties e permanncias nos processos histricos, quais as possibilidades de aplicao da teoria e dos mtodos da histria estrutural? Como resposta, precisamos perceber que, centrada nas heranas ocultas, a histria estrutural consiste em:

    passar do tempo breve para o tempo menos breve e para o tempo muito longo (este ltimo, se existe, apenas pode ser o tempo dos sbios) para depois, uma vez alcanado este ponto, de se deter, reconsiderar e reconstruir tudo de novo, ver girar tudo sua volta, no deixa de ser tentadora para um historiador (BRAUDEL, 1990, p. 34).

    Essa estrutura terico-metodolgica elaborada e defendida por

    Braudel, em seu manifesto, foi anteriormente desenvolvida em sua tese O Mediterrneo e o mundo mediterrnico da poca de Filipe II na qual apresentou uma anlise estrutural da Histria, dividida em trs pisos, caracterizados pelos seus distintos ritmos de evoluo: como base apresentou uma geo-histria, que consistia na anlise da histria do homem e suas relaes com o meio; por cima um estudo estrutural da sociedade dividido em cinco planos economias, imprios, civilizaes, sociedades e guerras; em seu terceiro passo analisou os acontecimentos polticos e os homens. Vemos aqui claramente sua posterior diviso da temporalidade em estruturas, conjunturas e acontecimentos. Mas, o mais importante dessa frmula apresentada por Braudel o mtodo de anlise proposto por ele, o qual deveria ter como primeira etapa a anlise das estruturas geogrficas e dos limites impostos por estas ao humana, ou seja, como o meio influi nas decises e atividades dos sujeitos; logo depois, dividiu em cinco etapas

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    seus estudos, de forma a perceber a ao dos eventos sobre a vida humana, dos sistemas econmicos, das guerras, das sociedades e por fim a relao poltica e os homens. Esses passos de sua anlise nos encaminham para uma seqncia metodolgica que a essncia de sua teoria, pois para ele os eventos somente poderiam ser compreendidos a partir de sua relao temporal e estrutural.

    De acordo com Braudel,

    de fato, as duraes que distinguimos so solidrias umas com as outras: no apenas a durao que criao do nosso esprito, mas o parcelamento desta durao. Ora esses fragmentos renem-se no fim do nosso trabalho. Longa durao, conjuntura, acontecimento ajustam-se sem dificuldade, posto que todos tm a mesma escala de medida (BRAUDEL, 1990, p. 34).

    A escala de medida o prprio tempo, pois para ele, conforme a

    citao, no trabalho do historiador tudo comea e acaba pelo tempo, os fenmenos somente podem ser explicados dentro de suas contextualidades, devidamente inseridos e relacionados entre as especificidades de seu tempo. Portanto, sua frmula se define: para ser tem que se ter sido, ou seja, como historiadores precisamos abordar as realidades sociais e todas as formas, as mais amplas, da vida coletiva, sejam as economias, as instituies, as arquiteturas sociais, as prprias civilizaes e acima de tudo estas, de maneira a estabelecermos suas relaes e dependncias (cf. BRAUDEL, 1988, p. 1-7).

    Portanto, a abordagem estrutural na histria encaminha para um olhar terico que busca as permanncias e dilogos intertemporais nos fenmenos, assim como dirige metodologicamente os passos de anlise das sociedades, de forma a evidenciar esse dilogo entre as estruturas da vida humana. REFERNCIAS BOURD, Guy; MARTIN, Herv. As escolas histricas. Mem Martins, Portugal: Europa-Amrica, 1990. BRAUDEL, Fernand. O espao e a histria no Mediterrneo. So Paulo: Martins Fontes, 1988. BRAUDEL, Fernand. Histria e cincias sociais. Lisboa: Presena, 1990. BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a Revoluo Francesa da historiografia. So Paulo: Ed. da UNESP, 1997. _____. Abertura: a nova histria, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter. A escrita da histria: novas perspectivas. So Paulo: Ed. da UNESP, 1992. DOSSE, Franois. A histria em migalhas: dos Annales Nova Histria. So Paulo:

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