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7/30/2019 MARQUES, Isabel. Artista s avessas - a ao cultural em dilogo com a educao.pdf
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vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 24-35Em pauta
Artista s avessas: a ao cultural em dilogo com a educao
Isabel Marques1
Resumo
Discute-se um exemplo de ao cultural cujas referncias iniciais de concepo e realizao se deramno campo da educao. Revelados pela tica autobiogrfica da artista, aquilo que em princpio aludia tarefa e ao olhar do pedagogo, transforma-se em ao artstica e cultural. Traremos um recortepontual do espetculo Coreolgicas do Caleidos Cia. de Dana/SP para essa discusso, que traduzum artista s avessas: da pedagogia arte.
Palavras-chave: dana, educao, dialogicidade
Abstract
This article discusses an example of cultural action which initial conception references were broughtfrom the Education field. Revealed by the artists point of view, what primarily could be seen as apedagogue look upon art is transformed into artistic and cultural action. Examples for discussion willbe drawn from the dance performance Choreologics by Caleidos dance co.
Keywords: dance, education, dialogue
Educao em dana
Apesar das transmutaes de conceitos de tempo, espao e corpo advindos das
experincias ps-modernas no campo da dana; mesmo tendo a produo contem-
pornea de dana escancarado as fronteiras conceituais e de atuao de inmeros
artistas; a despeito da literatura produzida nos ltimos 80 anos sobre processos de
educao em dana ter varrido a reproduo mecnica de passos das salas de aula,
em grande escala as prticas de educao na rea de dana pouco foram alteradas
no ltimo sculo.
Pais e mes orgulham-se de ter seus filhos matriculados em escolas de dana
com modelo russo (leia-se rgido e famoso), delegando a educao dos mesmos a
uma equipe de treinadores. Professores de escolas pblicas se desconsertam diante
da ausncia de dicas do formador para montagem de uma coreografia a ser apresen-
tada pelos alunos no fim do ano. Gestores de educao aprovam programas oficiais
1 Diretora/coregrafa do Caleidos Cia. de Dana e do Instituto Caleidos, So Paulo/SP.
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que propem sequncias didticas que garantiro passo a passo a atuao de seus
professores na rea de dana. Milhares de artistas da dana s conhecem e reco-
nhecem essa arte repetindo-a, executando seus passos exausto.
A dana como sinnimo de repertrio fixo e imutvel e a educao como sin-
nimo de treino cristalizado e acrtico esto longe de serem totalmente banidos ou at
mesmo questionados do meio social mais amplo. A crtica que se faz a esse binmio
(repertrio/treino) ainda est longe de alcanar em amplitude as academias de dana,
os projetos sociais e governamentais, as escolas formais e at mesmo as companhias
de dana. A expectativa do pblico, as crenas de professores e as prticas seculares
de artistas na construo dessa dana treinamento repertrio acirra um ciclo vicioso
de difcil ruptura.
A cpia calada, sem compreenso, questionamento ou possibilidade de ressigni-
ficao tem garantido o discurso do aprimoramento meramente tcnico, mecnico na
manuteno de repertrios, sejam eles do coregrafo da companhia, do artista convi-
dado, da tradio, do professor de sala ou das sequncias programadas pelos syllabus
internacionais. A cpia mecnica de repertrios que passa por exerccios tcnicos
rigorosos e nem sempre corretos ainda a prtica mais comum e disseminada no
territrio da educao em dana. A cpia de passos dos repertrios de companhias
consagradas s danas propostas pela mdia ainda o meio mais eficaz, contumaz
e aceito pela grande maioria da populao para se efetivar o danar.
As crticas que academicamente se fazem a esse tipo de ensino de dana no
chegaram aos distantes rinces do pas, s academias de bairro, s escolas formais,
aos projetos sociais e governamentais a ponto de tambm modificar o conceito de
dana dessa populao. A dana continua sendo, para a grande maioria da popu-
lao, uma sequncia de passos, uma coreografia, um repertrio a ser perpetuado
pelos artistas, portanto, por professores e alunos.
Desde 1988 tenho tentado entender esse quadro e propor outras formas de
compreender o binmio dana/educao, focando a superao do descompasso entre
o ensino de dana em suas diferentes instncias e a produo contempornea de
dana. O grande vcuo entre educar e produzir arte no se estabelece somente nas
academias privadas de dana (ou de ballet, como comumente so chamadas) dos
rinces do Brasil ele est tambm presente em renomadas companhias de dana
contempornea.
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As palavras dana e educao nos remetem, inicialmente, a dois campos semn-
ticos geradores de no mnimo duas reas de conhecimento, e a dois polos de atuao
profissional aparentemente incomunicveis. Reza o senso comum que dana/arte e
educao so dois modos distintos de ser e estar em sociedade. Do mesmo modo,
convenes sociais distinguem dois grupos de pessoas com interesses nem sempre
mtuos e com prticas sociopoltico-culturais nem sempre alinhadas: de um lado, os
professores, do outro, os artistas (Marques, 2010b).
Afastada do senso comum e das convenes sociais, compreendo dana
e educao como campo hbrido, um binmio indissocivel que se multiplica em
inmeros sentidos, entendimentos e aes (Marques, 1999, 2010ab). Nesse sentido,
o campo da educao no passvel de reduo s atividades escolares, s acade-
mias de dana, aos conservatrios ou aos projetos sociais em que a dana ensi-
nada. A educao no se restringe ao ensino.
Tendo como princpio que educar no se resume a ensinar, a educao tampouco
no se restringe aos processos de ensino de aprendizagem articulados pela relao
professor/aluno. Ao considerarmos dana e educao como um campo hbrido de
conhecimento, estaremos tambm diante de todos os profissionais da dana envol-
vidos no cenrio social de produo dessa arte (artistas, crticos, produtores, drama-
turgos, iluminadores, curadores etc) atuando como educadores, no necessariamente
como professores.
Na perspectiva de que, conforme coloca Paulo Freire, educar impregnar de
sentido cada ato cotidiano (apud Gadotti, 1998), artista e professor se aproximam de
maneira significativa em suas aes sociopoltico-culturais: artistas tambm educam
ao propor trabalhos de arte com o pblico, pois artistas impregnam e desdobram mlti-
plos sentidos com suas propostas artsticas. As relaes entre artista/pblico, portanto,
configuram-se com eminentemente educacionais, no necessariamente pedaggicas.
Artista s avessas
Sou formada em Pedagogia. Terminada a graduao, resolvi seguir os rumos da
dana que j praticava desde os quatro anos de idade. A passagem pelo Laban Centre
(hoje Trinity Laban), em Londres, fez-me compreender que meu caminho profissional
no seria abandonar a educao, mas, sobretudo, caminhar no fio da navalha entre a
dana e a educao.
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De volta ao Brasil, o incio de minha carreira profissional deu-se na interseco
da prtica pedaggica e da pesquisa acadmica: nos anos de 1991-92 fui assessora
na rea de dana da gesto Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educao de So
Paulo, poca em que desenvolvia tambm pesquisa de doutorado na Faculdade de
Educao da USP. Clareava-se, portanto, uma perspectiva de continuidade de carreira
mais voltada para a rea de educao, embora atravessada pela dana.
Nessa poca, deparei-me com a ausncia da dana nas escolas formais e
tambm com conceitos e prticas sobre arte (e dana) absolutamente incompatveis
e distantes daqueles propostos por Paulo Freire ou Rudolf Laban. Os contextos e
conceitos de dana nas escolas pblicas de So Paulo se opunham e ao mesmo
tempo ignoravam aqueles estudados em pesquisa de doutorado que se voltava para
a arte contempornea, para o estudo da ps-modernidade em dana e em educao.
Da reproduo de passos aolaissez-faire, as escolas e professores com que trabalhei
se encontravam repletas de exerccios e prticas pedaggicas, mas ausentes de arte.
Encontrei e ainda encontro nas escolas formais inmeros professores no faze-
dores, no fruidores, no conhecedores de arte; professores at mesmo absolutamente
incuriosos a respeito do sistema da arte. Encontrei alunos na mesma situao: executores
de tcnicas, de passos e de repertrios. A situao das prticas de ensino nas academias
e companhias de dana, assim como de projetos sociais, no se diferenciava muito disso.
Reflexes, inquietaes, questionamentos e crticas ao mundo estabelecido do
ensino de dana e situao em que a dana se encontrava nas escolas me moti-
varam a investigar e adentrar o universo da produo artstica. Como encher de arte
a escola? Seria a produo artstica capaz de interferir de alguma forma no ciclo
vicioso da dana como tcnica que prepara para a execuo de repertrios?
Considero-me uma artista s avessas: o chamamento para a educao (e tambm
para o ensino) no veio em decorrncia apenas de uma necessidade de sobrevi-
vncia, como para muitos artistas, nem mesmo como uma premncia de continui-
dade de propostas artsticas a que a educao tambm serve. Sendo primeiramente
pedagoga, deparei-me com uma realidade escolar totalmente desamparada sobre a
dana e a arte em geral. Do meu ponto de vista, as relaes entre arte e educao
nas escolas formais estavam distorcidas, no mnimo anacrnicas. Aprofundando-me
no que acreditava ser um processo de educao em dana, comecei minha carreira
artstica profissional propriamente dita.
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Em 1996, terminada minha pesquisa de doutorado, fundei o Caleidos Cia. de
Dana, em So Paulo, capital. Antes disso, em 1993, havia criado o embrio do que
seria o Caleidos Cia. tendo produzido o espetculo Corpo Dcil, com a Bolsa Vitae
de Artes. So, portanto, 18 anos trabalhando com o hibridismo entre a dana e a
educao em situao de produo artstica. Com a fundao da cia., algumas das
questes levantadas durante a pesquisa de doutorado vieram novamente tona2.
Perguntas no mais explicitamente sobre as salas de aula, professores, escolas, mas
sim voltadas para a produo artstica propriamente dita, para uma ao que pudesse
dialogar de forma significativa com o universo do ensino e aprendizagem de dana,
sem se restringir a ele.
Tendo percebido que o universo da produo artstica da dana muitas vezes to
convencional quanto o observado nas escolas, ou seja, tambm pautados pelo binmio
tcnica/repertrio, fechados, prontos a serem cultuados, lancei-me o desafio de propor
e experimentar processos de criao e fruio diferentes dos existentes: propus-me
a pensar e a realizar processos/produtos atravessados por conceitos e vivncias de
tempo, espao e corpo da contemporaneidade, que ao mesmo tempo (em uma mesma
ao) dialogassem com conceitos e vivncias de uma educao contempornea.
Para que possam tambm educar dentro de um contexto de relaes e vivn-
cias contemporneas, como artistas poderiam experienciar outras formas de relao
com o pblico que no as convencionais? Como o artista poderia abarcar as relaes
hbridas entre dana e educao sem, contudo, escolarizar a arte? Essa proposta
encheria de arte a escola, os professores, a comunidade escolar? Poderia essa a
proposta cnica (produo artstica) contribuir para a transformao da escola crista-
lizada, embalsamada em vivncias e conceitos de dana to distantes das vivncias
contemporneas de tempo, espao e corpo de seus alunos?
Tendo em vista as relaes hbridas entre educao e arte propostas pelo Caleidos
Cia., vejo hoje que sua produo artstica se configura como uma ao cultural, como
uma maneira de formar um pblico de posse de meios de acesso ao trabalho de
criao, capaz de adotar uma posio crtica em relao aos produtos culturais e ao
mundo em geral, assim como de participar ativamente na criao de bens simblicos
(Pupo, 2009, p. 270). Vejo hoje que no foi o trabalho artstico que gerou uma ao
2
As reflexes tericas que antecedem essa produo esto em MARQUES, Isabel. A dana no contexto: umaproposta para a educao contempornea. Tese (Doutorado) Faculdade de Educao, Universidade de So
Paulo, So Paulo, 1996.
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educacional, mas sim uma postura educacional que se desdobrou em ao cultural,
uma arte s avessas.
Discuto a seguir alguns dos conceitos educacionais que pautaram e ainda
pautam o desenvolvimento das produes artsticas/aes culturais do Caleidos Cia.
de Dana: a dialogicidade e a articulao de conhecimento.
Dialogicidade
O dilogo o encontro dos homens para a pronncia do mundo(Freire, 1983, p. 79)
A ideia de dilogo como pro-nncia implica que dilogos so portadores de mensa-
gens (do latimpro-nuntio-are), estruturas ordenadas de signos que pode[m] propiciar a
construo de significados (Brazil, 2007 apud Marques, 2010a, p. 133). A pronncia domundo diz respeito a construir significados, de acordo com o mundo (ibid).
A impregnao de sentidos nos cotidianos, coloca Freire (1983), no pode reduzir-
-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco de tornar-se
simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes (p. 93). A educao
como uma ao reflexiva que acarreta a pronncia do mundo deve ser dialgica e no
bancria. Nessa linha de raciocnio, a dialogicidade como encontro aponta para quea
pronncia do mundo seja tambm um ato de criao, uma ao que gera e geradapela reflexo, sendo, portanto, tambm crtica (ibidem).
A proposta dialgica de Freire para a educao vai de encontro a tudo que
presencio e vivo no mundo convencional da dana. No que tange ao ensino, ainda
presenciamos prticas de alunos depsitos de coreografias que no foram criadas a
partir de encontros; so frequentes a execuo calada de passos que no tomam os
danantes como pronunciantesdo mundo; propostas de ensino e aprendizagem que
pressupem a ingenuidade e agonizam diante da crtica so a tnica da maioria dassalas de aula de dana.
No campo da produo artstica, no so poucas as companhias de dana que
ignoram sumariamente o conceito e a ao dialgicas, tanto no que tange s relaes
coregrafo/intrprete quanto intrpretes/pblico. A voz nica e silenciadora do diretor/
coregrafo ainda impera na imposio de ideias, movimentos, concepes de arte que
so apresentadas a um pblico mais amplo.
Diante do desafio/proposta de uma educao criadora, crtica e transformadora, adialogicidade foi/ conceito atravessador das produes Caleidos Cia., especialmente
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de sua primeira proposta, Coreolgicas. Para que uma produo de dana pudesse
pronunciar o mundo, proporcionar encontros crticos, impregnar de sentidos e trans-
formar , presumi que ela deveria ser dialgica. J em 1996, perguntava-me como
propor, danando, esses processos dialgicos que rompessem com as convenes e
hbitos de silenciamento provenientes de uma educao bancria que caracterizam o
mundo institudo da dana.
O conceito freireano de dialogicidade se desdobrou artisticamente em compre-
ender o papel dos artistas no como aqueles que apresentam coreografias, que
mostram o mundo, mas sim como profissionais corresponsveis pelo dilogo, pelo
encontro, pela pronncia do mundo. Compreender o papel dialgico do artista na cena
da dana deu-se tambm ao compreend-lo corresponsvel pela construo de mlti-
plos sentidos na cena artstica.
Diante desta perspectiva, desde 1993 trabalho com o conceito de artista/docente
para compreender outras possibilidades de atuao de artistas que educam e
tambm de professores que produzem arte. O artista/docente, proponho, aquele
que, no abandonando suas possibilidades de criar, interpretar, dirigir, tem tambm
como funo e busca explcita a educao em seu sentido mais amplo (Marques,
1999, p. 112). No mais distante e distanciado do pblico, o artista/docente passa a
ser a fonte do conhecimento [...] e no somente uma ponte entre o [pblico] e o mundo
da arte (ibidem, p. 113).
Para cunhar essa proposta, aproximei-me dos conceitos de artista propositor desen-
volvidos por Lygia Clark e das propostas artsticas de Helio Oiticica. Com isso, entendi o
papel do artista como aquele que compreende o pblico tambm de maneira distinta:
some a perspectiva de espectadores passivos, distantes, contemplativos. Diante das
proposies artsticas, o pblico passa a ser o realizador daquilo que os projetos anun-
ciam (Favaretto, 1985). A arte contempornea pressupe um pblico que seja articulado,
informado, sensvel s proposies dos artistas; o pblico tende a ser incorporado aos
trabalhos que no mais mostram o mundo e sim balizam sua construo (Lebrun, 1983).
Em 1993, trabalhei de forma embrionria com esses conceitos na produo do
espetculo de dana Corpo Dcil, compartilhado com alunos do Ensino Mdio da
cidade de So Paulo. Percebi que o conceito de artista propositor no dava conta do
que acreditava em termos de educao: buscava um artista propositor consciente de
sua funo educacional, um artista propositor educador, ou o artista/docente.
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O artista/docente no se configura como um professor que dana, tampouco
como um artista que ensina. O artista/docente aquele que, numamesma proposta,
dana e educa: educa danando e dana educando (Marques, 1999). O artista/docente
constitui-se no hibridismo, assim como a dana e a educao. O desafio do artista/
docente em cena compreender que, ao danar, no mostra, prope; no apresenta,
convida; no dana para, dana com o pblico; no ensina, educa.
Foi-se consolidando ao longo dos anos, nas diferentes produes de Coreo-
lgicas3 do Caleidos Cia., a inteno do artista em danar consciente de que, na
proposta artstica em si, propunha dilogos mltiplos, convidava a si mesmo e ao
pblico a danar vrias possibilidades de todos, para que no encontro pronunciem o
mundo. Essa concepo vem de encontro formao, acadmica ou no, da maioria
dos artistas da dana que no veem, no pblico, seus interlocutores e sim seus depo-
sitrios. A produo de trabalhos que tm como pressuposto o conceito de artista/
docente exige um contnuo trabalho de formao dos intrpretes da companhia. No
tratarei desse assunto neste artigo.
O conceito de artista/docente implica, necessariamente, uma ruptura com os
conceitos convencionais de processos coreogrficos, tanto os implcitos no ato da
criao quanto no compartilhamento da dana com o pblico. Certifiquei-me de que,
para estabelecer dilogos que permitam encontros e pronunciem o mundo e que, ao
mesmo tempo, proponham a construo de sentidos, a concepo convencional de
espetculo (evento espetacular) tambm deveria sofrer rupturas, transformaes.
A meu ver, esse um primeiro passo para que uma proposta educacional (no
pedaggica) se compreenda no universo da ao cultural: as estruturas coreogrficas
(de cena de um modo geral) devem ser repensadas, os processos de criao devem
ser revistos, as relaes entre diretor/coregrafo e intrpretes deve ser ressignificada
para que a ao do artista no seja pedaggica, mas sim artstica, artstico/educativa.
As produes de Coreolgicas, desde seu incio em 1996, so proposies inte-
rativas que jogam abertamente com os signos da linguagem da dana. No encontro
entre interao, ludicidade e signos da linguagem, as propostas de Coreolgicas foram/
esto sendo construdas em prol de um dilogo profcuo entre a dana e a educao.
Vejamos esses trs componentes do ponto de vista da dialogicidade/ao cultural.
3
O Caleidos Cia. de Dana produziu, desde 1996, sete verses diferentes de Coreolgicas: Coreolgicas I, II,III, IV, V, Brasil-Finland e Ludus. Em 2008, foi produzido tambm o Coreolgicas-Recife, com Acupe Grupo de
Dana, de Recife.
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1) A interatividade prope em sua etimologia uma atividade, uma ao entre.
Por essa razo, distingo o conceito de interatividade do de participao. Participao
no implica, necessariamente, dilogo, simplesmente uma parte da/na ao. J a
interatividade, um convite para estar entre pelo menos duas coisas, para dialogar.
Em Coreolgicas,estabelece-se umdilogo coreogrfico que gera relaes significa-
tivas entre intrpretes, entre intrpretes e o pblico e entre o pblico consigo mesmo.
A interatividade proposta pelo Caleidos Cia. pressupe aes criativas do pblico que
dialoga corporalmente com os artistas: o pblico completa e complementa a proposta
coreogrfica, reconstruindo e ressignificando a cena inicial da dana proposta.
A interatividade proposta em Coreolgicas no se d somente no momento em
que o pblico entra na cena para danar com os artistas, a interatividade faz parte
integral da tessitura dos fios da composio coreogrfica propriamente dita: a coreo-
grafia de Coreolgicas se desenha atravessada pela interatividade, incorporando-a.
Nessa produo artstica, a coreografia vista como um texto aberto que se articula a
partir de signos da linguagem cuidadosamente escolhidos, escolhidos para que gerem
dilogos e mltiplos sentidos quando danadas na presena do pblico.
De fato, Coreolgicas incorpora a ideia de que a cena [teatral, da dana]
constituda por uma complexa articulao entre diferentes sistemas de signos que no
tm sentido absoluto em si mesmos, mas s adquirem significado uns em relao aos
outros (Pupo, 2001, p. 182). A construo de redes de relaes significativas entre os
signos que constrem as coreografias de Coreolgicas intencionalmente dialgica
e interativa, implica outra atitude diante da cena que, por sua vez, gera dilogos entre
intrpretes e pblico.
2) A interatividade proposta em Coreolgicas assume o carter de ao cultural
medida que se prope de forma ldica, estabelecendo jogos entre os signos da
linguagem da dana (proposies coreogrficas) que, por sua vez, geram e so
gerados com a interlocuo do pblico presente. A ludicidade que se estabelece em
cena, de certa forma anloga a do jogo teatral, visa a fazer com que participantes de
qualquer idade [gnero, biotipo, cultura corporal] adquiram conscincia sobre a signifi-
cao [da dana] e possam, atravs [dela], emitir um discurso sobre o mundo (Pupo,
2001, p. 182). A interatividade ldica de Coreolgicas, proposta por artistas/docentes
cria redes de relaes, e as relaes so sempre transformadoras (Freire, 1982).
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3) Coreolgicas vem de Coreologia, termo cunhado por Rudolf Laban para compre-
ender a lgica da dana, a ordem oculta da dana, as leis da dana. Laban colocava que
o conhecimento da lgica da dana um pr-requisito para se tornar um criadorde cultura
(Doerr, 2008). Os estudos coreolgicos so vistos hoje como um estudo das regras escon-
didas no movimento que o fazem expressivo e funcional, e no arbitrrio ou sem sentido
(Preston-Dunlop, 1998, p. 276-77). Estudar, conhecer, danar atravessados conscientemente
pelos estudos coreolgicos, portanto, nos possibilita compreender os jogos de linguagem,
criar redes de relaes e, enfim, sermos leitores crticos da dana/mundo (Marques, 2010a).
As produes artsticas de Coreolgicas do Caleidos Cia. trabalham diretamente
com os signos da linguagem da dana: proposies so criadas tendo a articulao
dos signos como instigadores de processos de improvisao e de composio. Ao
serem danadas, as proposies Coreolgicas estabelecem dilogos entre artista e
pblico de forma interativa e ldica, culminando, em ltima instncia, na apropriao
(tornar prprio) dos signos da dana por parte do pblico. Com isso, artistas e pblicos
so, a cada compartilhamento, cocriadores da dana, cocriadores do mundo.
Articulao do conhecimento
Uma segunda premissa educacional que foi tomada como referencial para a
criao dos espetculos interativos e ldicos do Caleidos Cia. foi a proposta de articu-
lao do conhecimento. Diferentemente dos cotidianos das salas de aula de dana nas
diversas situaes sociais e tambm em companhias de dana em que o conhe-
cimento fragmentado, isolado, no relacional, as diferentes proposies cnicas do
Caleidos Cia. incorporam e corporeificam artstica e esteticamente o conhecimento
conectado (Stinson, 1998) e a rede de relaes entre os diferentes contedos da
dana e desses contedos com a sociedade (Marques, 2010a).
A articulao de conhecimento, que vem ao encontro de uma prtica pedaggica
crtica e transformadora, foi/ tambm geradora de textos e proposies coreogrficas
de Coreolgicas, proposies essas capazes de criar condies para que as pessoas
criem suas prprias redes de sentidos.
As redes de relaes propostas por Ana Mae Barbosa (2010 etc.), e que foram
sintetizadas na Proposta Triangular para o Ensino da Arte na dcada de 1980, consti-
turam-se como importantes referenciais do pensamento educacional na concepo e
produo artstica de Coreolgicas ao longo dos anos.
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Na possibilidade de dilogos que articulam conhecimentos, artistas e pblico
podem recriar as cenas propostas, educando-se. Essa possibilidade faz com que
tambm ressignifiquem suas cenas cotidianas pessoais. A dialogicidade cnica arti-
culada a redes de conhecimento atravessa outras cenas sociais, articuladas entre si,
abrindo espaos para que as interaes sociais tambm sejam transformadas.
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