21
162 • RESENHAS marxista R ESENHAS Na contramão dos “intelectuais em retirada” (J. Petras), que hoje renegam o marxismo para ressuscitar teorias jurídi- co-institucionais, cuja ineficácia para a emancipação do trabalho foi evidencia- da pela obra de Marx – donde a necessi- dade mesma de decretarem a sua supe- ração ou morte –, em novembro de 1999, reunindo professores e pesquisadores de doze estados do Brasil, o Centro de Es- tudos Marxistas (Cemarx) da Unicamp promoveu o “I Colóquio Marx e Engels”, do qual resulta este livro – A obra teóri- ca de Marx: atualidade, problemas e in- terpretações. O volume, composto por cinco capítulos derivados das mesas-re- dondas do Colóquio, contém, além dis- so, um anexo com os resumos da maio- ria das comunicações apresentadas. O primeiro capítulo aborda o contro- verso tema da ruptura ou continuidade entre a obra de juventude e a de maturi- dade de Marx. Ester Vaisman, seguindo as teses de José Chasin, propõe que, se há ruptura em Marx, ela se dá em mea- dos de 1843, quando Marx se livra, na Crítica da filosofia do direito de Hegel, da filosofia da autoconsciência de sua tese doutoral, da antropologia racional dos artigos da Gazeta Renana e da teo- ria do ser da filosofia especulativa de Hegel, a partir de onde Marx daria iní- cio a uma nova posição ontológica, doravante materialista. João Quartim de Moraes entende que a contraposição en- tre obra da juventude e da maturidade é comum nos grandes autores, e que ne- nhuma ruptura é absoluta a ponto de não guardar pressupostos anteriores. Recu- sando o que chama de catálogos expli- cativos dos erros e acertos de Marx e Engels, analisa a eficácia das leituras da teoria marxiana à luz dos desdobramen- tos dos movimentos revolucionários, polemiza com Ruy Fausto sobre a sua teoria da “antropologia negativa” em Marx e, por fim, refere-se a três escritos de Louis Althusser, para dizer que as questões neles colocadas sobre a nature- za da inversão da dialética hegeliana por Marx ainda continuam de pé. Roberto Romano, por sua vez, sem entrar no as- sunto em pauta, pontua topicamente al- guns pensadores modernos para redigir um artigo sobre o tema da “tradução” em Marx. O segundo capítulo versa sobre a po- lêmica em torno do legado marxista de Friedrich Engels. Ronald Rocha defen- de, com radicalidade, a integridade teó- * Professor do Departamento de Filosofia e Psicologia da Unijuí, RS CR˝TICA Um amplo painel da obra de Marx Paulo Denisar Fraga* Armando Boito Jr., Caio Navarro de Toledo, Jesus Ranieri, Patrícia Vieira Trópia (orgs.). A obra teórica de Marx: atualidade, problemas e interpretações. Campinas/São Paulo, IFCH/Xamã, 2000.

marxista ESENHAS Um amplo painel da obra de Marx · sunto em pauta, pontua topicamente al- ... Um amplo painel da obra de Marx ... lógica”, que associa ao stalinismo e ao

Embed Size (px)

Citation preview

162 • RESENHAS

marxista

RESENHA

S

Na contramão dos “intelectuais emretirada” (J. Petras), que hoje renegam omarxismo para ressuscitar teorias jurídi-co-institucionais, cuja ineficácia para aemancipação do trabalho foi evidencia-da pela obra de Marx – donde a necessi-dade mesma de decretarem a sua supe-ração ou morte –, em novembro de 1999,reunindo professores e pesquisadores dedoze estados do Brasil, o Centro de Es-tudos Marxistas (Cemarx) da Unicamppromoveu o “I Colóquio Marx e Engels”,do qual resulta este livro – A obra teóri-ca de Marx: atualidade, problemas e in-terpretações. O volume, composto porcinco capítulos derivados das mesas-re-dondas do Colóquio, contém, além dis-so, um anexo com os resumos da maio-ria das comunicações apresentadas.

O primeiro capítulo aborda o contro-verso tema da ruptura ou continuidadeentre a obra de juventude e a de maturi-dade de Marx. Ester Vaisman, seguindoas teses de José Chasin, propõe que, sehá ruptura em Marx, ela se dá em mea-dos de 1843, quando Marx se livra, naCrítica da filosofia do direito de Hegel,da filosofia da autoconsciência de suatese doutoral, da antropologia racionaldos artigos da Gazeta Renana e da teo-

ria do ser da filosofia especulativa deHegel, a partir de onde Marx daria iní-cio a uma nova posição ontológica,doravante materialista. João Quartim deMoraes entende que a contraposição en-tre obra da juventude e da maturidade écomum nos grandes autores, e que ne-nhuma ruptura é absoluta a ponto de nãoguardar pressupostos anteriores. Recu-sando o que chama de catálogos expli-cativos dos erros e acertos de Marx eEngels, analisa a eficácia das leituras dateoria marxiana à luz dos desdobramen-tos dos movimentos revolucionários,polemiza com Ruy Fausto sobre a suateoria da “antropologia negativa” emMarx e, por fim, refere-se a três escritosde Louis Althusser, para dizer que asquestões neles colocadas sobre a nature-za da inversão da dialética hegeliana porMarx ainda continuam de pé. RobertoRomano, por sua vez, sem entrar no as-sunto em pauta, pontua topicamente al-guns pensadores modernos para redigirum artigo sobre o tema da “tradução” emMarx.

O segundo capítulo versa sobre a po-lêmica em torno do legado marxista deFriedrich Engels. Ronald Rocha defen-de, com radicalidade, a integridade teó-

* Professor do Departamento de Filosofia e Psicologia da Unijuí, RS

CRÍTICA

Um amplo painelda obra de MarxPaulo Denisar Fraga*Armando Boito Jr., Caio Navarro de Toledo, Jesus Ranieri, Patrícia VieiraTrópia (orgs.). A obra teórica de Marx: atualidade, problemas einterpretações. Campinas/São Paulo, IFCH/Xamã, 2000.

CRÍTICA MARXISTA • 163

rica da contribuição marxista de Engels.Para tanto, monta seu texto pelo enfrenta-mento direto às principais críticas for-muladas contra este autor, contestando-as, uma a uma, com passagens, em suagrande maioria, extraídas dos própriostextos de Engels. Ricardo Musse, numapostura intermediária, prefere argumen-tar que se, num primeiro movimento, nãoé possível negar a evidência da unidadedas obras de Marx e Engels, num segun-do, especialmente no chamado “últimoEngels”, igualmente não cabe ignorar asua heterogeneidade, perceptível já nopróprio empenho de Engels em “atuali-zar a teoria” pelas “demandas própriasde seu tempo”, fosse como intérprete-sistematizador, fosse como desbravadorde novos campos temáticos para o mar-xismo, cuja trajetória terminou por cris-talizar uma determinada interpretação/apropriação deste, conhecida como“marxismo da Segunda Internacional”.Já Hector Benoit, no pólo oposto deRonald Rocha, critica o que considera anaturalização e a objetivicação mecâni-ca da dialética por Engels, contrastandocertas teses deste com formulações teó-ricas de Marx e Hegel, que jamais teriamadmitido tais parâmetros. Ato contínuo,lembra que os maiores seguidores dessasconcepções de Engels foram justamenteBernstein, Kautsky e o stalinismo, evi-dências de que, “ao menos de maneiraembrionária”, o cientificismo marxistae o evolucionismo eleitoralista da Segun-da Internacional já estavam, em grandemedida, contidos nas formulações geraisdo último Engels.

O terceiro capítulo se ocupa das con-tribuições de Louis Althusser e GeorgLukács à teoria marxista. Discorrendosobre Althusser, Miriam Limoeiro-Car-

doso aborda, nos textos tardios desseautor – que contêm novos e diferentesdesdobramentos do seu pensamento –, otema da crise do marxismo, que envol-ve, também, as suas teorizações sobre aideologia. Mostra que, para Althusser, talcrise não se resumia a situações conjun-turais extrínsecas, mas dizia respeito aaspectos da própria teoria marxista, taiscomo a “falta de um tratamento claro dadialética em Marx” que, dando margema “interpretações positivistas e evolu-cionistas”, teriam permitido a Stalinenrijecer a dialética ao extremo “semprecisar romper com Marx”. Dessemodo, argumenta que Stalin, ao “violen-tar o que o marxismo era”, conseguira,ao mesmo tempo, instaurar e bloquear aeclosão dessa crise, cuja “brecha” só se-ria aberta pelos movimentos de massa,que teriam, finalmente, conferido aomarxismo uma chance real de superá-la.Wolfgang Leo Maar, num artigo denso,discute o tema da formação social emLukács. Tomando, como ponto de parti-da, a tese lukacsiana de que a categoriacentral da dialética é a totalidade, avaliaas nuanças, limites e rearranjos da rela-ção entre a dialética da reificação e arealização objetiva do trabalho, tramateórico-analítica pela qual procura refle-tir sobre os caminhos de Lukács paraMarx. Em torno de tal intencionalidadeo autor perfila e identifica o lugar concei-tual de diferentes obras do filósofo hún-garo, acompanhando o evolver que vaido predomínio do tema da consciênciade classe ao da crítica ontológica, dese-nhado, como é sabido, nas duas obras-pólo do seu pensamento: História econsciência de classe e Ontologia do sersocial. No texto que fecha o capítulo, Sér-gio Lessa procura justificar os termos e

164 • RESENHAS

a importância da propositura lukacsianade uma ontologia no século XX. Iniciarebatendo o que se pode chamar de falsa“ontologia” burguesa, isto é, de que a es-sência humana se definiria pela vin-culação imanente do ser do homem àpropriedade privada, fazendo-o egoístae concorrencial, cuja natureza onto-lógica eternizaria a sociedade capitalis-ta. Opondo-se a isso, apóia-se na tesede Marx de que a essência humana é oconjunto das relações sociais para de-fender que a ontologia de Lukács nãosó se diferencia das ontologias meta-físicas tradicionais, como se assenta naautoconstrução do ser social na esferafundante do trabalho e das suas relaçõesde reprodução, que, ao transformar anatureza, transformam também os indi-víduos e a sociedade, liquidando comqualquer teleologia fatalista da história.Destarte, aponta que o “móvel decisi-vo” que levou Lukács a propor umaontologia no século XX foi, justamen-te, a necessidade de evidenciar a “pos-sibilidade ontológica da revolução” edesmascarar as ideologias burguesas aela contrárias.

O quarto capítulo avalia a contribui-ção de Antonio Gramsci e de EdwardPalmer Thompson ao marxismo. Gio-vanni Semeraro destaca que o valor dopensamento de Gramsci estaria em ul-trapassar as interpretações positivistase economicistas do marxismo, enrique-cendo-o de novas categorias conceituaisà luz do seu presente histórico, dotando-o, com isso, de uma nova vitalidade prá-tica. Para tanto, ressalta que os grandesobjetivos de Gramsci eram enfrentar “asideologias modernas nas suas formasmais sofisticadas” e lutar para que os tra-balhadores ascendessem também à con-

dição de intelectuais, constituindo-secomo classe dirigente capaz de se auto-governar. Visando apresentar os desdo-bramentos teóricos decorrentes dessastarefas, discorre sobre a elaboraçãogramsciana dos conceitos de “filosofiada práxis” e de “hegemonia”, que seriamos “eixos unificadores de todo o seu pen-samento”. Cláudio Batalha, escrevendosobre Thompson, sugere que este autorpode ser mais bem compreendido comoum “acadêmico erudito preocupado emaplicar o marxismo em sua área de sa-ber”, haja vista que ele mesmo “nuncase colocou na condição de teórico domarxismo”. No que diz respeiro à recep-ção da teoria marxista, destaca queThompson teria criticado o marxismo“como doutrina, como método e comoherança/patrimônio” para preferi-lo al-ternativamente como tradição, que in-cluiria as formulações de Marx e Engelse daqueles que procuraram enriquecê-las,reconhecendo o marxismo como um mo-vimento plural coexistindo sob “um vo-cabulário comum de conceitos”. Poste-riormente, observa que Thompson, aoacompanhar as crescentes críticas dostalinismo e do “estruturalismo althus-seriano”, revisa sua concepção unitáriado marxismo, para falar dele como “duastradições” irreconciliáveis desde 1956:“uma tradição fechada, idealista e teo-lógica”, que associa ao stalinismo e aoalthusserianismo e “uma tradição aber-ta, materialista e racional” do comunis-mo libertário, à qual ele se declaravapertencente. Na seqüência, apresenta al-gumas apropriações peculiares de con-ceitos da teoria marxista por Thompson,as quais, por sua vagueza e heterodoxiaexcessivas, foram criticadas como“culturalismo” e “marxismo romântico”.

CRÍTICA MARXISTA • 165

O quinto capítulo que, dada a Apre-sentação dos organizadores do livro, de-veria ter sido editado em terceiro – portratar, como os dois primeiros, de assun-to pertinente aos clássicos fundadores,e não, ainda, à obra dos seus “intérpre-tes” –, traz o debate sobre a atualidadeda crítica da economia política, já ante-riormente publicado na Crítica Marxis-ta número 10. Francisco José Soares Tei-xeira, após registrar a chamada dimen-são civilizatória do capital, toma em con-sideração seus limites e contradições, eargumenta que o crescimento da produ-ção de valores de uso e a necessidade devalorização do valor exigem formas so-ciais em que tal contradição possa semover e realizar. Explica como essasformas de resolução se dão no interiorda cooperação simples, da manufatura eda grande indústria. Depois, enfrentandoOffe, Giannotti, Habermas e Franciscode Oliveira – que advogam, em diferen-tes tons, o fim do paradigma do trabalhocomo medida objetiva do valor, con-finando-se no reformismo político –,defende a tese de que o capitalismo con-temporâneo passou a uma forma – maisavançada – de “cooperação complexa”da produção de mercadorias. Pretende,com esta formulação, explicar o proces-so da reestruturação produtiva sem pre-cisar aceitar a idéia de uma ruptura nosistema produtor de mercadorias, o quelhe permite reafirmar a atualidade da lutade classes e elevar a defesa do socialis-mo à condição de “estratégia prioritária”.Jorge Grespan escreve sobre o conceitode crise na crítica à economia política.Inicia afirmando que a importância dacrítica de Marx à economia política ul-trapassa a mera comparação de duas teo-rias distintas. Mais do que isso, observa

que a crítica da economia política é omeio privilegiado de se adentrar à pró-pria teoria de Marx, dado que esta seconstitui como “reelaboração e inversão”das categorias fundamentais daquela.Não há, em Marx, uma “crítica” ao ladode uma “exposição”. A exposição já sedá “simultaneamente” como crítica –como “re-exposição” das categorias daeconomia política –, visto que a “críticaé o que permite à exposição assumir aforma dialética”, num movimento emque tais categorias se desenvolvem (emsua contradição) até o ponto em que exi-gem sua própria transformação”, im-plicando o surgimento de novas catego-rias, remontando todo o sistema que asorganiza. À luz dessa armação dialética,que estrutura metodologicamente o seutexto, passa a expor o conteúdo (e a for-ma) das críticas de Marx a DavidRicardo, alegando que elas expressamuma “síntese do conjunto” da crítica àeconomia política, caminho pelo qualvai apreendendo dialeticamente a crisecomo o “negativo” onipresente em todoo desenvolvimento da exposição,explicitando o “elo profundo” que háentre crise e crítica.

Na seqüência do mesmo capítulo,Leda Maria Paulani prefere situar a con-figuração histórico-teórica da críticamarxiana à economia política. Para tan-to, divide seu texto em três partes: naprimeira, retoma os marcos do rompi-mento de Marx com a filosofia de Hegel,ao afirmar que naquele “a totalidade esta-va já com a economia política”; na segun-da, parte da diferença entre as dialéticasde Hegel e Marx, comenta aspectos dométodo da economia política e eviden-cia limitações da economia clássica emface do aporte teórico de Marx; na ter-

166 • RESENHAS

ceira, sustenta a validade atual da críticamarxiana à economia política – median-te uma discussão sobre o fetichismo da“sociedade do espetáculo” (conformeGuy Debord) –, o papel do dinheiro e acentralidade do trabalho em face da teo-ria marxista do valor. Por último, Mau-ricio Coutinho enfoca a temática a partirde duas indagações: se as teses de Marxainda conseguem explicar o capitalismoatual, e se a crítica da economia políticaé compatível com a teoria econômicacontemporânea. Privilegiando a segun-da questão, caracteriza alguns elemen-tos da economia clássica e, depois, dacontemporânea, enfatizando que esta dis-crepa daquela e da marxista pelo fato deconsiderar que o agente econômico é oindivíduo, e não as classes, e de basear-se na indeterminação e na escolha racio-nal, e não na determinação histórica.

Porém, rediscutindo as noções de “clas-ses sociais”, de “subjetividade” e de “de-terminação”, pelos interstícios que esca-pam ao referido enquadramento geral,procura caminhos para abrir a economiamarxista “à atualização e para as possi-bilidades de fertilização do debate eco-nômico contemporâneo”.

Por fim, cabe aduzir que A obra teó-rica de Marx, pelo amplo mosaicotemático aqui perfilado, contribui parapreencher, na produção editorial brasi-leira, a lacuna de um balanço-síntese dosgrandes debates do marxismo. Isso jábasta para dizer da sua importância paraqualquer um que deseje encontrar, numsó livro, um competente, plural e autên-tico recenseamento crítico dessas ques-tões, aporte teórico salutar a toda boacompreensão – dialética – da teoria mar-xista no tempo presente.

* Jornalista

O marxismo é anti-acadêmico. Pre-tende transformar o mundo e não apenasinterpretá-lo. Empenha-se em interpre-tar o mundo corretamente para conseguirtransformá-lo. A História do marxismo noBrasil atinge, portanto, sua fase decisivacom a publicação do quarto volume, queexpõe as interpretações da sociedade e darevolução brasileiras formuladas por au-tores e organizações marxistas.

Os dois volumes iniciais reconsti-tuíram os impactos das grandes revolu-

ções do século XX no Brasil e a recep-ção entre nós das idéias de Marx e Engelse dos principais teóricos marxistas. O ter-ceiro volume concluiu a investigação dosinfluxos teóricos recebidos pelo marxis-mo brasileiro, examinando a influênciade Althusser e de Gramsci, e iniciou aexposição das visões marxistas acercadas grandes questões nacionais. O quar-to volume, o último publicado, arremataessa exposição, reconstituindo algumasdas mais importantes interpretações mar-

Visões e interpretações dasociedade brasileiraDuarte Pereira*João Quartim de Moraes e Marcos Del Roio (orgs.). História do Marxismo no Brasil. v. IV. Campinas,São Paulo, Editora da Unicamp, 2000.

CRÍTICA MARXISTA • 167

xistas da formação histórica e atual dasociedade brasileira e das perspectivasde sua transformação revolucionária. Osdois volumes finais examinarão o com-bate político de organizações e militan-tes orientados por essas interpretações.

A caracterização adequada da origeme do desenvolvimento da sociedade bra-sileira, e de suas tendências de transfor-mação, é o elo que solda a recepção dateoria marxista à sua finalidade práticade orientar a luta dos revolucionários bra-sileiros. Testa a assimilação do métodoe das categorias do marxismo em suasaplicações ao estudo da realidade histó-rica e atual do país e, por sua vez, é tes-tada nos êxitos e nas derrotas dos com-bates inspirados nessas interpretações. Seé possível falar num marxismo brasilei-ro, este é seu campo de prova.

Marx e Engels, ao investigar a ori-gem e o desenvolvimento das socieda-des capitalistas, delinearam simultanea-mente, por força de seu método crítico edialético, as tendências de transforma-ção dessas sociedades em formações so-ciais estruturalmente novas, socialistas.Mas, para a efetivação dessas tendênciastransformadoras, sublinharam o prota-gonismo insubstituível do proletariado,especialmente de seu núcleo operário, edestacaram a necessidade da teoria crí-tica e da contribuição da intelectualidadeprogressista para a tomada de consciên-cia do proletariado e para o desenvolvi-mento de sua organização e de sua luta.Advertiram, no entanto, desde o Mani-festo Comunista, que o capitalismo sedesenvolvia nos vários países em ritmosdesiguais e com traços peculiares. Ocombate proletário e socialista teria dese desenvolver também de forma desi-gual e com peculiaridades nacionais. Não

seria suficiente, portanto, traçar o qua-dro histórico geral do mundo e os obje-tivos finais e comuns do proletariado.Seria indispensável combinar essa visãocom a caracterização correta das diferen-tes fases de desenvolvimento e das espe-cificidades de cada país e, por conseguin-te, com os objetivos particulares do com-bate proletário e socialista em cada paíse em cada momento.

Esse desafio teórico, posto aos mar-xistas de qualquer país, é especialmenteárduo em nações como a nossa. Surgi-mos numa época em que os países maisavançados da Europa já iniciavam a tran-sição do feudalismo para o capitalismo.Nessa Europa em transmutação, Portu-gal, a potência marítima que nos coloni-zou, ostentava, com sua revolução bur-guesa abortada, traços muito originais deevolução. Em nosso território, com oesmagamento das sociedades comunitá-rias indígenas e a gradativa construçãode uma nova formação econômico-so-cial, sofremos a influência cruzada de vá-rios processos históricos: a integração nomercado mundial em constituição; a su-perestrutura monárquica, feudal e cató-lica da metrópole que nos dominava; acombinação da grande propriedadeterritorial com a introdução do trabalhoescravo. Mais tarde, quando o modo deprodução capitalista despontou entre nósno final do século XIX, seu desenvolvi-mento não poderia deixar de refletir ascondições particulares da sociedade emque emergia. Acentuando as diferenças,nossa revolução burguesa não transcor-reu por uma “via democrático-revolucio-nária”, mas “burocrático-reacionária”,para usar expressões de Lênin; e conci-liou com a dependência externa e com apreservação do monopólio da proprieda-

168 • RESENHAS

de territorial. O capitalismo penetrou ese desenvolveu na agricultura, não pela“via camponesa”, mediante uma refor-ma democratizadora da propriedade daterra, a que se seguiriam a diferenciaçãodos camponeses e a inevitável concen-tração da propriedade; mas pela “via la-tifundiária”, através dos processos con-jugados de capitalização e modernizaçãodo latifúndio e de territorialização docapital. Nossa sociedade se revelaria,portanto, um quebra-cabeça histórico-estrutural, difícil de resolver para estu-diosos marxistas e não-marxistas.

Logicamente, o primeiro passo seriadesvendar os nexos entre a origem docapitalismo no continente europeu, otransbordamento colonizador de Portu-gal e a formação da sociedade colonialno Brasil. O ensaio de Lígia Osório Sil-va, que abre o quarto volume da Histó-ria do marxismo no Brasil, refaz, comrigor teórico e abundância de informa-ções, o debate sobre essas interconexões.Evidencia que as categorias básicas e oscritérios analíticos do marxismo aindarepresentam os instrumentos mais fecun-dos para deslindá-las. Conclui que os Es-tados colonizadores que recorreram à for-ça de trabalho escrava, como Portugal,“não eram Estados escravistas, mas Esta-dos feudais modificados (absolutistas),muito mais complexos” (p. 55); e que “ofato de sublinhar o caráter não capitalistado regime de propriedade da terra e suaassociação com o escravismo como for-ma predominante do trabalho não impli-ca diminuir o papel do capital mercantilna organização da economia colonial”(p.56) – do capital mercantil, não do ca-pitalismo, é conveniente frisar.

O passo lógico seguinte seria deter-minar as características de nossa forma-

ção histórica e de nossa estrutura recen-te, para fixar a perspectiva, o estágio eas tarefas da ação revolucionária. Os tex-tos de Angelo José da Silva, JoãoQuartim de Moraes e Marcos Del Roio,que formam o segundo bloco do volu-me, reconstituem a gênese e o desenvol-vimento de interpretações contrapostassobre a sociedade e a revolução brasilei-ras, que se constituíram gradativamenteentre autores e organizações políticas docampo marxista. Há diferenças de ênfa-se, de conceituação e de períodos abran-gidos nos estudos, mas, em conjunto, elespermitem acompanhar a evolução dapolêmica teórica e política entre os mar-xistas, desde os trabalhos pioneiros deOctavio Brandão e Astrogildo Pereira,por um lado, e de Mário Pedrosa e LívioXavier, por outro; passando pelas con-trovérsias entre Nelson Werneck Sodré,Alberto Passos Guimarães, Caio PradoJúnior e Florestan Fernandes; e chegan-do a trabalhos recentes, como os de JacobGorender e Carlos Nelson Coutinho. Éum largo painel que, ao lado dos equí-vocos e das contradições, mostra tam-bém a vitalidade do pensamento marxistano Brasil.

O terceiro e último bloco do volumereúne os estudos de Leonilde de Medei-ros, sobre a luta pela terra nos anos 50 e60; de Carlos Dória, sobre o surgimentodo Nordeste como “problema nacional”;e de Raimundo Santos, sobre algunsaspectos menos conhecidos da obra deCaio Prado Júnior. Abordando temasparticulares, trazem contribuições queampliam e aprofundam o conhecimentocrítico do debate reconstituído nos capí-tulos anteriores.

Se adicionarmos os estudos já publi-cados na segunda parte do terceiro volu-

CRÍTICA MARXISTA • 169

me, principalmente o de Carlos Dória,“O dual, o feudal e o etapismo na teoriada revolução brasileira”, e o de CaioNavarro de Toledo, “Intelectuais do Iseb,esquerda e marxismo”, verificaremos quea História do marxismo no Brasil ofere-ce pela primeira vez uma visão abran-gente, compactada e multilateral do de-bate teórico e político que inflamou, aolongo do século passado, as correntespolíticas e intelectuais brasileiras inspi-radas no marxismo. É grande o mérito,portanto, dos organizadores e autoresdessa obra coletiva.

Como esse debate não está encerra-do, vale a pena registrar alguns possíveisdefeitos da visão exposta. Ela é cons-truída principalmente a partir da obrapessoal de autores renomados. Essas con-tribuições não poderiam ser ignoradas,ainda mais num país em que os dirigen-tes práticos do movimento operário esocialista não têm se mostrado, em re-gra, teóricos de primeiro plano. Mas de-veriam ser referidas às posições coleti-vas de partidos e organizações marxis-tas, tanto as contidas em documentosoficiais, quanto as expressas na impren-sa dessas organizações, ou em debatespreparatórios de congressos, como o queantecedeu o V Congresso do PCB, aindaunificado. A visão ficaria mais rica e maisprecisa, pois não se pode perder de vistao caráter militante do marxismo e a ne-cessidade de que sua influência passepela ação organizada para que possa tra-duzir-se em ação. Pelos objetivos de pes-quisa preconizados, não se trata dereconstituir somente a polêmica entrepersonalidades intelectuais, mas tambémentre correntes políticas, pois o propósi-to é delinear a influência do marxismono conhecimento e na transformação da

sociedade brasileira. O estudo de Leo-nilde de Medeiros, que recorreu a fontesprimárias e partidárias, demonstra as vir-tudes desse método.

É indiscutível também a posição cen-tral ocupada pelo PCB na recepção, di-vulgação e aplicação do marxismo noBrasil. O estudo teria de privilegiar, por-tanto, a tradição marxista vinculada aesse partido e aos intelectuais que sofre-ram sua influência. Mas não se justificadiluir as cisões repetidas que esse parti-do sofreu a partir dos anos 60. Não écorreto, por exemplo, subestimar as di-vergências programáticas que afastaramo PCdoB do PCB e o PCBR de ambos.As referências às posições trotsquistassão também restritas e referentes apenasàs décadas iniciais dessa corrente políti-ca e intelectual. As contribuições da Polope de intelectuais filiados a sua tradiçãomereceriam igualmente receber um trata-mento sistemático, assim como o debateteórico que se desenvolveu nas fileiras daAção Popular, sobretudo em sua fase fi-nal. Não é suficiente que essas organiza-ções sejam estudadas em sua atuação po-lítica. Seria importante levar em conta suascontribuições às visões marxistas da soci-edade e da revolução brasileiras. O mar-xismo se tornou plural no Brasil e a His-tória precisaria refletir melhor essa diver-sidade – política e teórica.

Se assim procedesse, demarcaria commais nitidez as teses básicas sobre a socie-dade brasileira, formuladas por autores eorganizações marxistas. Não houve ape-nas a contraposição entre a teoria da “so-ciedade semicolonial e semifeudal”, queacabou se firmando na tradição originadano PCB, e a teoria da “sociedade capita-lista” desde a época colonial e quase semmesclas, que veio a prevalecer em setores

170 • RESENHAS

guesia nacional no Estado e na culturado país.

Essas divergências acarretam impli-cações sérias na interpretação da revolu-ção brasileira. Aqui também a Histórianão demarca satisfatoriamente as trêsteses que se têm colidido, historicamente,nos autores e organizações marxistas: atese da “revolução socialista” imediata,conduzida apenas por forças proletáriase semiproletárias; a tese da “revoluçãodemocrático-burguesa”, ou “nacional-democrática”, liderada pela burguesia eapoiada pelo proletariado e por outrasforças sociais, para implementar um ca-pitalismo nacional e reformado; e a teseda “revolução nacional, democrática epopular”, liderada pelo proletariado,apoiada na aliança operário-camponesae realizada para implantar um regime detransição ao socialismo. Evocando alu-sões históricas, poderíamos caracterizá-las, respectivamente, como as teses deraiz trotsquista, menchevique e bolche-vique. No caso do Brasil, decorrem deavaliações divergentes acerca da forma-ção histórica e das características atuaisda sociedade brasileira, mas resultamtambém das imprecisões teóricas que têmmarcado o acidentado debate sobre asetapas do combate proletário e socialis-ta desde as formulações iniciais de Marxsobre a “revolução permanente”. A His-tória poderia ter incluído um estudocriterioso sobre a evolução desse debateinternacional, à semelhança do esclare-cedor ensaio de Lígia Sílvia sobre a tran-sição do feudalismo ao capitalismo naEuropa e seus nexos com a colonizaçãodo continente americano. A polêmicabrasileira se tornaria mais inteligível.

O deslindamento apurado dessas in-terpretações da revolução brasileira é ain-da mais necessário em nossos dias por-

intelectuais e políticos influenciados porCaio Prado Júnior e pelas correntestrotsquistas. Gradativamente, outros se-tores marxistas convergiram para a com-preensão de que a sociedade brasileirajá se tornara capitalista desde meados dosanos 50 do século XX, combinando-se omodo de produção capitalista predomi-nante com outras formas subordinadasde produção e de exploração do traba-lho. Reconhecido o caráter capitalista dasociedade brasileira como seu traço maisrelevante, a dependência externa e omonopólio da propriedade territorial pas-saram a ser vistos como traços subordi-nados, importantes apenas para caracte-rizar o tipo e o estágio do desenvolvi-mento capitalista em curso no país.

As investigações de Jacob Gorenderacrescentaram à identificação dessa fasecapitalista-dependente a compreensão dafase escravista-colonial, que a antecedeue da qual o capitalismo se originou atra-vés de um período de transição e de for-mas mistas, semi-escravistas, de explo-ração do trabalho. Com nuanças, essainterpretação ganhou amplos setoresmarxistas e contrapôs-se às duas inter-pretações anteriores. Reconhece a com-plexidade da formação social brasileira,mas também seu caráter dominante. AHistória não dedica a essa interpretaçãoa atenção merecida.

Quanto à teoria da “sociedade semi-colonial e semifeudal”, ressalte-se quenão se equivocava apenas na identifi-cação de um feudalismo em nosso passa-do colonial, mas também em sustentara vigência de uma sociedade “semifeu-dal” ainda nos anos 70, quando o capita-lismo já predominava havia duas décadasna base econômica da sociedade brasi-leira e as transformações superestruturaisconsolidavam o domínio da grande bur-

CRÍTICA MARXISTA • 171

* Professora da Unesp – campus de Franca – e pesquisadora do NEE-Unicamp

que, consumada a revolução burguesa doBrasil, mesmo que por um caminho au-toritário e conciliador, não tem mais sen-tido falar sequer numa “revolução nacio-nal e democrática” necessária para abrircaminho ao socialismo. A única revolu-ção que persiste no horizonte históricodo país é a socialista, à qual caberá resol-ver, inclusive, as tarefas nacionais e de-mocráticas que a revolução burguesa nãocumpriu integralmente. Na época histó-rica do imperialismo e das revoluçõessocialistas, o desenvolvimento capitalistaautônomo deixou de ser viável. É umequívoco sustentar, portanto, a “perma-nência” de um programa nacional-demo-crático desvinculado da hegemonia pro-letária e da transição ao socialismo.

Isso não implica negar a possibilida-de e a conveniência de que o proletaria-do conte, na luta por um regime democrá-tico avançado e por um programa detransformações socialistas, com o apoiodos camponeses pobres e médios, dosdemais trabalhadores assalariados e au-tônomos, dos intelectuais e estudantesprogressistas e até mesmo de setores pe-queno-burgueses e burgueses, pressiona-dos cada vez mais pelo grande capitalestrangeiro e nacional. Nas atuais e des-favoráveis condições do mundo, como aexperiência histórica está mostrando, a

construção do socialismo passa por umregime de transição, em que a hegemoniaoperário-popular pode combinar-se coma participação de outras forças sociais navida política, a propriedade social comformas de propriedade privada, e umplano parcial com o mercado na coorde-nação da economia. As idéias e valoressocialistas concorrerão também comidéias e valores atrasados e conservado-res na cultura por muito mais tempo doque se esperava anteriormente. Esse re-gime de transição constitui a base obje-tiva para uma aliança revolucionáriaampla e duradoura. Não representa ummero estratagema político. Mas tambémnão configura uma renúncia ao projetosocialista, e sim uma forma de abordá-lo nas novas condições históricas.

Um re-exame mais esmerado do de-bate sobre a sociedade e a revolução bra-sileiras e sobre as perspectivas do sistemacapitalista-imperialista, travado no passa-do pelos marxistas, pode ajudar a enfren-tar a nova polêmica programática e estra-tégica que se impõe. Apesar de suas insufi-ciências e eventuais defeitos, a vasta epersistente obra de reconstituição e avalia-ção empreendida pelos organizadores eautores da História do marxismo no Brasilrepresenta uma coletânea de informaçõese análises indispensáveis a esse esforço.

Segundo a maior parte da media nãoexiste alternativa ao capitalismo, ao glo-balismo no qual tudo se subordina ao

consumo, ao virtual, ao capital financei-ro, ao discurso único e unidimensional.Apesar disso, aqui e ali surgem vozes

A guerra revolucionária acabou?* Suzeley Kalil MathiasHéctor Luis Saint-Pierre. A política armada. Fundamentos da guerra revolucionária. São Paulo,ed. da Unesp, 2000.

172 • RESENHAS

dissonantes, a nos lembrar que sem uto-pia, sem luta e dor, não é possível en-contrar o que Marx chamou de gênerohumano. É nesta linha de posicionamentoque Saint-Pierre retoma um tema anti-go, mas negligenciado por intelectuais epolíticos quando deveria ser parte dequalquer debate sério sobre o futuro darevolução: a guerra revolucionária.

Para elucidar o fenômeno, Saint-Pierre divide o livro em duas partes, de-dicando a primeira à teoria da guerrarevolucionária e a segunda, às formas queesta assumiu e em que se desenvolveuao longo da história das lutas populares.Para não dar a idéia de que o objeto deanálise é o conjunto das lutas de classe,na introdução discute-se como a violên-cia marca diferentes fenômenos hoje,como de resto sempre marcou – chocan-do-se, assim, com a promessa da grandeáguia sobre o fim dos conflitos mundiais,dado o desaparecimento do único inimi-go simbolizado na queda do Muro deBerlim (1989) –, reabilitando a guerrainterna, entre nacionais e, portanto, apon-tando para a possibilidade cada vez maiorda revolução. É assim que o autor anali-sa a guerra revolucionária a partir daintersecção entre teoria da luta de clas-ses em sua herança marxista e a teoriada guerra de filiação clausewitziana.

Partindo das questões mais geraispara chegar à apresentação do fenôme-no na história contemporânea, no primei-ro capítulo Saint-Pierre se dedica à dis-cussão do papel da violência na políticaou, mais precisamente, da guerra comofenômeno político. A guerra é resgatadana história da filosofia desde Aristóteles,passando por Políbio até as visões deLênin e Bobbio. É aqui que se apresen-tam para o leitor a relação entre econo-

mia e guerra, entre fenômenos bélicos ex-ternos e internos, discute-se a revoluçãono interior da teoria da guerra e, o maisimportante, enfatiza-se a violência comoum meio da política e a subordinação daguerra à decisão política. Aliás, esta é atese elucidada ao longo de todo o texto.

Coerente com esta visão, no segundocapítulo o tema é a guerra revolucionária,assim descrita: “O que caracteriza a guer-ra não são os meios, mas a política a cujosobjetivos aquela serve. Portanto, uma guer-ra será revolucionária se estiver a serviçode uma causa revolucionária, se for a ma-nifestação bélica de uma política revolu-cionária” (p. 69). Mas seria esta a especifi-cidade da guerra revolucionária; o fato deestar subordinada a uma política revolu-cionária? Não. Buscando apoio na litera-tura estratégica, Saint-Pierre afirma que,diferentemente da guerra convencional,que representa belicamente a política con-servadora (e, diríamos, burguesa) e quebusca o restabelecimento de alguma for-ma de paz, a guerra revolucionária, res-pondendo a uma política desestabilizadoradas relações de classe, apenas tem comofinalidade estratégica o aniquilamento doinimigo, ou seja, o fim das classes sociais.Poder-se-ia dizer, então, que a guerra re-volucionária, quando vitoriosa, é a últimadas guerras e, talvez por isso mesmo, aque-la que condensa toda a potencialidade daviolência como meio da política.

Justamente por entender a violênciacomo meio inerente à política, no ter-ceiro capítulo o autor apresenta as dife-renças entre poder e força e, a partir dis-so, discute-se a guerra revolucionáriainternamente, isto é, faz-se uma espéciede anatomia desse fenômeno, mostran-do como a opção revolucionária não éalgo que se possa apenas realizar, pois

CRÍTICA MARXISTA • 173

implica opção também moral, e na acei-tação moral da violência. Ao discutir amoral e o moral do revolucionário, oautor deixa ver sua paixão, a necessida-de de corresponder a uma causa, aquelaque responde com violência à violenta-ção de todas as qualidades de ser huma-no. Assim, a violência sem limites dapolítica hodierna sugere que vivemos ummomento excepcional, no qual a utiliza-ção de qualquer meio é não apenas com-preensível, mas legítima na construçãode uma nova ordem.

Já na segunda parte, dedicada às for-mas, discute-se a insurreição (quarto ca-pítulo) e a guerra popular, em particulara Guerra Popular Prolongada (quintocapítulo), fenômenos apresentados comouma estratégia que se desdobra em váriastáticas; e o autor se esforça por mostrarcomo os diferentes níveis (o político, oestratégico, o tático) se inter-relacionamna ação insurrecional. A correta avalia-ção desses níveis é fundamental não ape-nas para o estudo da política armada,mas para compreender o momento daluta e como se comportar diante dele. Sóassim podemos nos aproximar de líde-res como Lênin ou Mao Tsé-Tung.

O sexto capítulo avalia a guerrilha,que é a forma de guerra revolucionária(muitas vezes também da política oficial)mais conhecida por nós, latino-america-nos. A despeito do fracasso de Guevara naBolívia, ou do aniquilamento de quasetoda uma geração pelos autoritarismos nãotão remotos aqui existentes, Saint-Pierretem uma visão positiva da guerrilha, nãoapenas como fato histórico, mas princi-palmente como mito, que funciona comocimento de vontades revolucionárias.

O caso de Chiapas e o terrorismo sãoos dois temas tratados no último capítu-

lo. Aproveitando o próprio fenômeno, oautor retoma a comunicação e a infor-mação como meios importantes da lutarevolucionária. Porém, tais meios sãoagora determinados por uma novatecnologia, que muda a natureza da guer-ra e da guerra revolucionária. A formacomo os zapatistas chiapanecos fazemuso da Internet é, então, tomada comoexemplo de mecanismo de se colocardiante do mundo e ganhar uma das gran-des batalhas da guerra revolucionáriahoje: a opinião pública. Por outro lado,não apenas por esse meio mas tambémpelos objetivos que persegue, Chiapasnão é encarado por Saint-Pierre comouma guerra revolucionária em sentidoestrito.

Talvez por ter uma certa simpatia pelaguerrilha zapatista, ou pela guerrilha emgeral, Saint-Pierre resiste a definir o mo-vimento de Chiapas como reformista.Mesmo levantando, como ele faz, os di-ferentes critérios que determinamquando uma guerrilha responde a umapolítica revolucionária, mesmo mostran-do que o objetivo dos índios de Chiapasé sua inclusão na política oficial e não asuperação desta, em nenhuma linha deA política armada diz-se sem pestanejarque a guerrilha zapatista é apenas e tãosomente um movimento reformista, ape-sar de fazer uso da força das armas. Ora,da mesma forma que na Colômbia nãohá alternativa para as classes dominadasa não ser pegar em armas para fazer va-ler direitos, ainda que burgueses, noMéxico e em outros países (inclusive onosso), não apenas agora mas desde ostempos de colonização, parece que a vio-lência é o meio de participar da polis.Essa forma de se fazer política pode tor-nar ainda mais difícil ultrapassar a linha

174 • RESENHAS

da exclusão a que estão submetidas asclasses dominadas, não permitindo queelas adotem a revolução como única for-ma de libertação. Isto implica aceitar, nãosem angústia, que a reforma pode repre-sentar o limite da consciência de todosnós. Se esta parece ser uma justificativarazoável para o comportamento do au-tor, isto é, não levar às últimas conse-qüências seus próprios argumentos, nãoparece, entretanto, ser a melhor explica-ção. Para ser coerente com a postura ado-tada desde as primeiras páginas de seulivro, enfrentar o problema tornaria mui-to mais coesa e firme sua análise.

Por último, analisa-se o terrorismo,como um fenômeno localizado no limiarda política, isto é, como uma ação deviolência potencialmente fora dos limi-tes da política e, que, por isso, pode ounão se assumir como meio tático da guer-ra revolucionária. É, porém, pelas suascaracterísticas internas, o meio mais difí-cil de ser utilizado na guerra revolucio-nária. A esse respeito afirma Saint-Pierre:“Esta é a difícil tarefa da peculiar fun-ção do terrorismo para a revolução: for-necer segurança, coesão e ódio às forçaspopulares e terror às fileiras do aparelhorepressivo...” (p. 224). Daí porque estaprática não pode, por todos aqueles quequerem compreender a luta armada, sernegligenciada ou esquecida.

Essa peculiaridade do terrorismo levaSaint-Pierre a procurar analisá-lo emtodos os seus aspectos, fornecendo ao lei-tor uma quase arqueologia do terrorismo,formulando e discutindo um modelo quebusca tomá-lo não apenas pelas vítimasou objetivos, mas até pelas armas queutiliza. Apesar disso, a avaliação fica in-completa, pois o terror de Estado, aque-le que mata sem alarde e com altas do-

ses de aceitação popular, não é analisa-do, apenas lembrado. É verdade que ointeresse do autor é a teoria da guerrarevolucionária e, portanto, apenas lançaralgumas luzes sobre o terrorismo comotática de luta. Todavia, a filosofia políti-ca não pode e não deve ser alheia à açãopolítica e, sendo assim, avaliar a ação deEstados terroristas (como são a maioriados Estados burgueses atuais) é tambémfornecer as armas para o combate popu-lar contra as forças repressivas.

Resultado da revisão de uma tese dedoutoramento, A política armada é umlivro que busca combinar agilidade ana-lítica com rigor acadêmico. Em conse-qüência, o texto é vastamente documen-tado, oferecendo ao leitor um leque bi-bliográfico que vai muito além do mar-xismo. Talvez por isso, embora seme-lhante a um manual (principalmente aprimeira parte), muitas vezes o texto seapresente ao leitor como herético, postoque aplica modelos de análise diversospara a compreensão do problema, nãopermitindo classificar a análise em ape-nas uma corrente teórica. Se, por umlado, com isto o autor assume o papel deintelectual que não pode e sobretudo nãodeve ter preconceitos, por outro podeimplicar uma análise que não chega àsúltimas conseqüências do problema, fi-cando a meio caminho. Não é outra aavaliação de João Quartim de Moraes naapresentação do livro. Os problemasapontados, entretanto, não retiram, tam-bém para repetir a apresentação, a cora-gem de Saint-Pierre em enfrentar o pro-blema, e muito menos a necessidade des-se tipo de pesquisa. Assim, para todoaquele que tenha compromisso com aluta por um mundo mais igualitário, esteé uma livro valioso e indispensável.

CRÍTICA MARXISTA • 175

Nas últimas três décadas do século XXhouve uma tomada de consciência, a ní-vel mundial, sobre a gravidade dos dese-quilíbrios ambientais. Mas isso não signi-ficou um único enfoque, pelo contrário,surgiu um leque de posições às vezes muitodivergentes. Ecologistas radicais, ecologis-tas moderados, neomalthusianos, ambien-talistas etc. refletiam uma forma diferentede ver a relação entre a sociedade e a natu-reza. Porém, a maioria deles concordavaque o marxismo tinha uma abordagemprodutivista, semelhante à dos cornuco-pianos (defensores de uma abundância eprogresso ilimitado) alheia às necessida-des de uma relação mais harmônica coma natureza. Inclusive, dentro das fileirasmarxistas surgiu um eco-marxismo, com-partilhando a dita perspectiva e promoven-do um enverdecimento teórico do materia-lismo histórico: caso de Benton (1996) quecompartilha com os ecologistas das críti-cas ao marxismo, e também de O´Connor(1998) que defende o marxismo frente aosecologistas, mas um marxismo em que aparte verde não é de Marx, mas do pró-prio O´Connor que disse complementar emelhorar.

Os poucos escritos em defesa do mar-xismo haviam sido extemporâneos, comoo livro de Schmidt O conceito de natu-reza em Marx, publicado em 1961, emuma linguagem dialética e com umaorientação filosófica, mas sem relaçãocom a consciência sobre a crise am-biental que se desencadeou no final da

década; ou, então, haviam sido recom-pilações de citações, como o livro deParsons, Marx and Engels on Ecology(1977), publicado precisamente no meiodas controvérsias, mas no qual a partedo autor constitui uma apresentação dasposteriores citações e não uma análiseaprofundada da lógica interna do pensa-mento marxista. Mais recentemente, em1991 apareceu o livro de Grundmann,Marxism and Ecology, seguindo atradição da escola de Frankfurt e do ante-rior livro de Schmidt. O trabalho deGrundmann constitui-se em uma leiturahumanista dos textos de Marx, e dá gran-de ênfase à tecnologia, uma das questõescentrais na discussão ambiental. Porém,não foi suficientemente discutido nosmeios ecologistas e ambientalistas.

No final do século, em 1999, forampublicados nos EUA dois livros comple-mentares sobre a Natureza e Marx (umde Foster – a versão encadernada destelivro saiu em 1999 – e outro de Burkett),ambos escritos por destacados marxis-tas e, embora de diferentes perspectivas,constituem-se em análises aprofundadasda lógica interna do pensamento marxistaem relação ao meio ambiente. Ambosconcluem numa visão radicalmente di-ferente do que os ecologistas e ambien-talistas vinham dizendo sobre o Marxverde. Em lugar de um Marx produtivistae cego ao desenvolvimento das forçasprodutivas, surge um Marx atento às con-seqüências negativas para o ambiente e

Os marxistas e o meio ambiente* Guillermo FoladoriJohn Bellamy Foster. 2000. Marx’s Ecology. Materialism and Nature. Nova York, Monthly ReviewPress, 2000.

* Professor visitante da Universidade Federal do Paraná

176 • RESENHAS

à sociedade em sua totalidade. Em lugarde um Marx preocupado exclusivamen-te com a dinâmica social, surge um Marxque parte da co-evolução entre a socie-dade e a natureza. Em lugar de um Marxque não teria nada a dizer sobre a criseambiental contemporânea, surge umMarx que poderia oferecer, com o méto-do do materialismo histórico, uma alter-nativa à análise da crise ambiental.

Os livros de Burkett e de Foster secomplementam. O de Foster parte deuma perspectiva histórico-filosófica dopensamento marxista em relação ao am-biente. O de Burkett parte da estruturaeconômica de funcionamento do capita-lismo, exposta basicamente em O Capi-tal. Ambos são obras eruditas, que de-mandam um estudo detido para que de-las se tire o máximo proveito.

Foster localiza o pensamento de Marxdentro da tradição materialista e dialéticaque pode ser rastreada até Epicuro. En-quanto hoje em dia os ambientalistas eecologistas estão buscando um métodopara relacionar as ciências físico-natu-rais e as ciências sociais, Marx tinhaconsciência da necessidade de seu ma-terialismo pertencer ao “processo da his-tória natural” e, segundo o filósofoBhaskar, “a tese de que há uma unidademetodológica essencial entre as ciênciassociais e as naturais”. A base dessa uni-dade está naquilo que Marx chama demetabolismo social, o processo social detransformação da natureza através doqual a própria sociedade humana setransforma.

Enquanto uma das principais críticasdos ecologistas a Marx é a da sua faltade interesse pelas questões ecológicas,Foster mostra, com dados biográficos, opermanente interesse de Marx pelos

avanços da ciência: assistindo a confe-rências e lendo o que podia a respeito.Mas, longe de ficar no relato histórico-biográfico, Foster mostra que os conhe-cimentos de química e agronomia foramdecisivos para o desenvolvimento de suateoria da renda do solo, em oposição àde David Ricardo, assim como as leitu-ras de Darwin e dos antropólogos foramtambém fundamentais na sua teoria daevolução das sociedades e das possibili-dades de superação do capitalismo. Ain-da mais fundamentel é a própria análisedo trabalho – este, ponto de partida dodistanciamento físico-natural do homemfrente aos outros animais –, e de suas for-mas como essencial para a explicação dadinâmica social. Assim, o processo de me-tabolismo social é, a um tempo, um pro-cesso de co-evolução entre o mundo físi-co-natural e as relações sociais humanas.

Longe de uma visão prometeica eprodutivista, da qual também é acusadohoje em dia, Marx elabora toda a sua teo-ria do materialismo histórico a partir daforma como a sociedade humana se dis-tancia da natureza externa que constituisua base de existência. Nas palavras deMarx:

Lo que necesita explicación, no és resul-tado de un proceso histórico, no és launidad del hombre viviente y actuante,con las condiciones inorgânicas, natu-rales, de su metabolismo con la natura-leza, y por tanto, su apropriación de lanaturaleza, sino la separación entre estascondiciones inorgánicas de la existenciahumana y esta existencia activa, unaseparación que por primera vez és puestaplenamente en relación entre trabajoasalariado y capital (Marx, 1971. p. 67).Marx não atribui valor à natureza,

dizem os críticos de hoje. Mas, segundo

CRÍTICA MARXISTA • 177

Foster, Marx sempre reiterou que são aspróprias relações capitalistas aquelas queprivam a natureza do valor específico, ea convertem em mercadoria com preço;por exemplo, quando escreve:

Money...has therefore deprived the entire

* Professor do Departamento de Filosofia da Unicamp

world — both the world of man and ofnature — of its specific value.Com os livros de Burkett e de Foster,

o pensamento marxista sobre o meioambiente começará o século XXI comuma força difícil de se contrapor.

“O sonho dos dirigentes totalitáriostornou-se realidade. A partir de agora, etendo por agentes aqueles que dominamo mundo com uma tecnologia altamentesofisticada, é possível (sem qualquer ris-co e custo humano) atacar, destruir e, fi-nalmente, derrotar um determinado paíssimplesmente por ataque aéreos. [...]Sem qualquer força que possa se opor àComunidade Internacional, que com-preende e lidera 15% da população mun-dial, acabou por transformar-se numvampiro capaz de matar dia e noite sema mínima possibilidade de ser contido.Quase todo dia surgem novos resultadosmortais desta política nos “países não-racionais”: Ruanda, Bósnia, Turquia(contra os curdos), Sudão, Chechenia,Timor-Leste, Salvador, Guatemala,Iraque, Iugoslávia (incluído Kosovo).Nesse contexto, as Nações Unidas sãoum corpo morto [...]. Após milhares deanos de desenvolvimento de umaracionalidade que aparentemente objeti-vava um mundo unificado baseado nosdireitos humanos fundamentais, a mo-dernidade tornou-se tema de alguns pou-

cos que exercem a dominação mundialsem escrúpulos e com uma força brutal.A Idade da Pedra reaparece em sua ver-são mais sofisticada”.

Assim se abre, na tradução deNewton Ramos de Oliveira, uma versãosintética de The new totalitarian society,livro publicado em 1999 por Emil Vlajki,croata por parte de pai e judeu por partede mãe, mas sobretudo um internacio-nalista no melhor sentido do termo: nãoum cosmopolita “globalizado”, mas umamigo da humanidade em sua concre-tude, principalmente dos povos oprimi-dos, destroçados pelo novo tipo deholocausto cuja eficiência foi experimen-talmente comprovada no Iraque e naSérvia. A análise que então ofereceu põeem evidência o indecentemente hipócri-ta e covarde massacre balístico promo-vido, em nome dos “direitos humanos”,pelos valentões do Pentágono e seus cãesde guarda da OTAN. “Não há registro nahistória mundial deste tipo de cinismoque, em nossa época, ocorre na Iugoslá-via.” Depois dos sérvios na Croácia e dosmuçulmanos da Bósnia, as vítimas ago-

A destruição da Iugoslávia* João Quartim de MoraesEmil Vlajki,The new totalitarian society and the destruction of Yugoslavia, Ottawa, Legas, 1999.Demonization of Serbs, Ottawa, Revolt, 2001.

178 • RESENHAS

ra são cerca de um milhão de albanesese oito milhões de sérvios que estão sobos ‘humanitários’ ataques aéreos daOTAN.”

Vlajki sustenta que embora “a metaestratégica principal” dos imperialistasfosse “destruir [...] uma aliada (a Sérvia)da (futura e forte) Rússia”, eles tambémqueriam “impedir que os muçulmanosentrem na Europa através da Bósnia e/ou da ‘Grande Albânia’”. Assim, para aComunidade Internacional, a ameaça àestabilidade da região tem sido os mu-çulmanos da Bósnia e Kosovo e ossérvios da Croácia, Bósnia e Monte-negro. [...]. Durante a primeira onda deguerras, a Comunidade Internacionalajudou a Croácia a livrar-se de 400 milsérvios que estavam instalados na regiãode Lica, Zagreb e Eslavônia (foi a piorlimpeza étnica que ocorreu nesta guerrasuja, 1992-1995). Ao mesmo tempo, [...]permitiu que croatas e sérvios eliminas-sem um grande número de muçulmanosna Bósnia e que os muçulmanos eliminas-sem cerca de 150 mil sérvios de Saravejo.Por fim, pelo acordo de Dayton, os sérviosda Bósnia foram obrigados a cortar todosos vínculos com a Sérvia e os muçulma-nos foram neutralizados pela Confedera-ção Muçulmanos-Croatas”.

Manipulando todos os povos da região,lançando uns contra os outros, ocupandoa Albânia [...], estabelecendo bases naMacedônia e, enfim, diante da recusa daIugoslávia em consentir na presença detropas estrangeiras no Kosovo, parte inte-grante de seu território, encorajando osalbaneses que lá viviam a exigir indepen-dência, os “humanistas” da OTAN cria-ram um cenário catastrófico que lhes ser-viu de pretexto para massacrar a Sérvia etransformar toda a região em protetorado.

No livro mais recente, Demonizationof Serbs, Vlajki desenvolve, como anun-ciado no subtítulo (“western imperialismand media war criminals”), enérgico eextremamente bem documentado libelocontra os celerados que intoxicaram aopinião pública ocidental para apresen-tar a destruição da Iugoslávia como umaexigência do que chamam de Comu-nidade Internacional, mas que não passada cosa nostra do Império do dólar. Umacronologia, cujo marco zero é o ano de1986 e o marco final, a derrubada deMilosevich em outubro de 2000,relembra os principais episódios do lento,gradual e implacável esquartejamento doque foi a república socialista confedera-da dos eslavos do sul (p.22-30).

Copiosa documentação desmascara,conforme a concisa expressão de RaquelMoraes reproduzida na contra-capa, o“falso humanismo” estadunidense. Vlajkivincula-o à “nova sociedade totalitária”,em que a indústria da mentira globa-lizada fabrica, até nos pormenores, as“notícias” que domesticam a opiniãopública. A eficácia da intoxicaçãomediática, entretanto, não é absoluta. Aanestesia moral dos cidadãos do chama-do “Ocidente” não resistiria, como nãoresistiu nos Estados Unidos durante aguerra suja no Vietnã, ao acúmulo debaixas do lado da OTAN. Graças, entre-tanto, ao método de guerra próprio aimpérios moralmente obesos, mas deten-tores das mais terríveis armas de des-truição maciça, os desfibrados eunucosque combatem apertando botões e po-sando para as câmeras da televisão con-seguiram minar a coragem do povosérvio com um dilúvio de mísseis, alémde armas condenadas pelas convençõesinternacionais, como as bombas de frag-

CRÍTICA MARXISTA • 179

mentação e de urânio “empobrecido”.“Como os Estados Unidos ousam com-parar outros povos com os nazistas?”,pergunta Vlajki, lembrando, entre mui-tos outros, os fatos de que “os primeiroscampos de concentração da era moder-na foram as reservas dos US para os ín-dios; [...] a esterilização de gente soci-almente ‘indesejável’ foi corrente nosUS muito antes de Hitler”, como tam-bém o foram “os maciços experimentosde horror biológico” (p. 178).

No que concerne aos índios, vale tam-bém lembrar que as duas principais ar-mas utilizadas na destruição da Iugoslá-via sob pretexto de impedir a “limpezaétnica” dos albaneses foram os mísseisTomahawk e os helicópteros Apache,nomes de duas tribos “pele-vermelha”exterminadas pelos estadunidenses noséculo XIX. Insuperável descaramentodo Império do dólar!

As raras perdas humanas do belige-rante vencedor foram devidas a aciden-tes provocados por sua própria torpeza.Assim, a cruel ironia que vitimou solda-dos das tropas inglesas de ocupação, atin-gidos quando efetuavam vistoria numaescola de Kosovo, por criminosas bom-bas de fragmentação lançadas por seuspróprios colegas. Teve razão Fidel Cas-tro ao classificar a destruição da Iugos-lávia como “a guerra mais covarde detodos os tempos”.

Comprovando a completa instrumen-talização da máquina imperialista de“notícias”, Demonization of Serbs mos-tra que quanto mais criminosos e letais

se revelavam as conseqüências do mas-sacre balístico de 1999, maior era o em-penho dos mandantes do genocídio e deseus prepostos “mediáticos”, treinadospara morder quem o dono manda, emjogar sobre os ombros de Milosevich edos patriotas sérvios a responsabilidadepela atroz tragédia. A demonização dossérvios veio justificar a destruição daSérvia.

Dessa robótica unanimidade neoli-beral participaram também os “comuni-cadores” da periferia. Não somente,entre nós, os da imprensa assumida-mente de direita, como O Estado de S.Paulo, mas também aqueles habituadosa cortejar a sensibilidade cultural espon-tânea do intelectual médio, como a Fo-lha de S. Paulo, que só trata Milosevichde “ditador”, mas bajulou vergonhosa-mente, anos a fio, a ditadura militar bra-sileira, com especial carinho pelo presi-dente Médici.

Seqüestrado e vendido por centenasde milhões de dólares aos esbirros daOTAN pelo atual primeiro-ministro daSérvia, Zoran Djindjic, do Partido De-mocrático (sic), Milosevich, com a dig-nidade e a coragem de que carecem seusdesafetos, declarou firmemente que nãoiria recorrer a advogado de defesa, por-que o Tribunal Penal Internacional deHaya, para onde o levaram, é ilegal. Foicriado pelo Conselho de Segurança daONU, dominado pelo Império do dólare seus satélites e não pela AssembléiaGeral da ONU. Só julga os adversáriosdo Departamento de Estado imperial.

180 • RESENHAS

Marx: intérprete e vítimada modernidade?João Feres*Marshall Berman. Adventures in Marxism. Verso, Nova York, 1999.

* Mestre em Filosofia pela Unicamp

Adventures in Marxism chega às livra-rias americanas quase duas décadas apóso lançamento de All that is Solid Meltsinto Air (Tudo que é sólido desmancha noar). O livro é uma coletânea de ensaios,uma retrospectiva da produção acadêmi-ca de Berman durante o longo hiato quesepara a publicação desses dois livros. Aintrodução e o capítulo final são textos ori-ginais compostos especialmente para o li-vro, os outros doze capítulos já aparece-ram em outras publicações na forma deartigos e resenhas. Um dos capítulos,Marx, Modernism and Modernization foiextraído do próprio Tudo que é sólido.

O texto como um todo é consistentee resiste bem às forças centrípetas queameaçam fragmentar qualquer coletânea.Mais uma vez Berman mostra que es-creve como poucos no meio acadêmico.O autor é mestre em envolver o leitornas tramas do texto, através de uma mis-tura bem dosada de inspiração argumen-tativa, inovação interpretativa e emotivi-dade narrativa. Com a nítida intenção deapagar a fronteira que separa o texto aca-dêmico do literário, Berman faz uso daidéia de Bildung, emprestada do roman-tismo alemão, para analisar autores comoGeorg Lukács, Isaac Babel, MeyerShapiro, Walter Benjamin e Studs Terkel.Esse método permite traçar paralelos erelações entre as histórias de vida dosautores e as contradições e ambigüida-

des expressas (ou reprimidas) em suasobras. A tragédia da vida pessoal gerasofrimento mas também conhecimento,desenvolvimento individual.

Onde estaria Marx no meio dissotudo? Existe um contexto comum à vidados personagens trágicos visitados porBerman: a modernidade. Para o autor,Karl Marx é o seu melhor intérprete.Porém, o Marx apresentado por Bermannão é só um perspicaz analista de seutempo. Ele é também vítima, sujeito àspenúrias de uma vida pobre de exilado,atormentado pelas incertezas do projetorevolucionário e ambíguo em relação asua ascendência judaica. De fato, todosos autores apresentados no livro, in-cluindo o próprio Berman, são engol-fados pelo torvelinho da modernidade:tudo que é sólido desmancha no ar. ParaBerman essa é muito mais que uma pas-sagem do Manifesto ou um título de li-vro, é de fato o leitmotiv da própriamodernidade.

Adventures é marcado por uma certacircularidade narrativa e temática.Berman começa o livro contando suaprópria aventura com o marxismo, quetambém é uma aventura com a moder-nidade. Em seguida ele narra as aventu-ras marxistas/modernas de outros auto-res, que por seu turno elaboraram outrasnarrativas sobre Marx e a condição mo-derna. Autores e objetos se confundem.

CRÍTICA MARXISTA • 181

Os círculos podem ser “lidos” em para-lelo — Marx, Berman, os marxistas, etalvez o leitor enfrentando cada um suasaventuras modernas – ou de forma con-cêntrica; o leitor lê a aventura de Bermanque se inspira nos marxistas que, por seuturno, se inspiraram em Marx.

Mas afinal de contas, em que consis-te essa tal modernidade? Quem leu Tudoque é sólido... já sabe a resposta, ela estálá em quase todas as páginas do livro. Amodernidade é o estado de coisas criadopelo advento do capitalismo, ou seja, umproduto da revolução burguesa. Bermanusa Marx para celebrar os dotes revolu-cionários da burguesia, a classe que ani-quilou velhas tradições e instituiçõessociais, criou uma capacidade produtivasem igual e abriu possibilidades infini-tas para o desenvolvimento humano. Pa-radoxalmente, a revolução contínua damodernidade capitalista produz misériae opressão para muitos, o que acaba porreduzir suas possibilidades de desenvol-vimento individual. Esta ambigüidadecaracterística do capitalismo é, paraBerman, o espírito da modernidade.

Berman é um arauto da modernidadee, como tal, não quer destruir sua ambi-güidade fundamental. Por essa razão usoo termo ambigüidade e não contradição,palavra que no vocabulário marxistacorresponde a uma tensão dialética queaponta para uma resolução. Pelo contrá-rio, para Berman parece não haver reso-lução. O autor dá mostras de ser críticosevero das teorias e experiências revolu-cionárias anticapitalistas. Sem o capita-lismo a modernidade perderia o motorda “revolução perpétua”, quer dizer, dei-xaria de ser modernidade. Chegamosaqui ao lado menos claro e mais proble-mático do pensamento de Berman. Parte

desses problemas o autor herdou do pró-prio Marx, que também exagera na des-crição do caráter revolucionário da clas-se burguesa e minimiza o uso que essamesma classe faz de formas de discrimi-nação e opressão tradicionais. A miopiade Marx, porém, deve ser em parte des-contada pelo fato de ele ter vivido na au-rora do capitalismo industrial. O mesmonão pode ser dito da de Berman, que tra-ta os capitalismos do início do séculoXIX e do final do século XX de maneiraquase indistinta, como se o que foi ditopara um valesse para o outro. Ora, umséculo e meio passados da redação dosManuscritos econômicos e filosóficos, nãopodemos nos permitir ser tão ingênuos. Aimutabilidade com a qual o capitalismo étratado pelo pensamento bermaniano re-cende à escatologia, não à marxista mas ànoção de “fim da história” criada pelo li-beral Francis Fukuyama. Berman, no en-tanto, substitui a celebração por um tommais trágico.

À deficiência histórica da análise deBerman está associada um problema geo-gráfico. Apesar de imortal, o capitalis-mo, para ele, ainda não completou o seutrabalho aqui na Terra. Somente os EUAe a Europa ocidental são de fato capita-listas e, portanto, plenamente modernos.O resto do mundo, ou seja, o TerceiroMundo, está ainda à espera da redenção.O autor parece ignorar que muitos luga-res do tal Terceiro Mundo já estão emcontato com o “capitalismo moder-nizante” há séculos, e que esse contatomuitas vezes é responsável pela repro-dução da pobreza e da miséria naqueleslugares. Uma passagem no capítulo so-bre Marx e o marxismo revela o quãoproblemática é essa concepção. Apósfestejar o realismo fantástico latino-ame-

182 • RESENHAS

ricano como gênero literário eminente-mente moderno, o autor diz que essemesmo modernismo é a razão pela qualesses autores são perseguidos pelos go-vernos de seus países e obrigados a seexilar na Europa e nos EUA. SegundoBerman, os governos autoritários (leia-se, pré-modernos) tentam banir o moder-nismo a qualquer custo. Porém, diz oautor, o progresso do capitalismo em es-cala mundial vai forçar esses governantesa aceitar a modernidade. Ora, o fato deos governos autoritários da América La-tina terem sido pró-capitalismo e teremcontado com o apoio do governo e doscapitalistas americanos para reprimir asmanifestações culturais “modernas” pa-rece escapar ao autor. Tristemente, seolharmos de perto, a concepção deBerman não dista muito daquela dos teó-ricos americanos da modernização dosanos 50 e 60. Para eles, o problema do“Terceiro mundo” é falta de capitalismo.Essa é uma doutrina de fazer o jovemFernando Henrique remexer no túmulo.

Tudo que é sólido... está agora em sua19a edição. É com certeza um dos livrosacadêmicos de maior sucesso na histó-ria do mercado editorial brasileiro. Setraduzido e publicado, Adventures in

Marxism talvez consiga aproveitar umpouco do sucesso do livro anterior. Omomento histórico de hoje, porém, é bemdiferente daquele do início dos anos 80.Se naquela época a leitura original queBerman faz de Marx servia de inspira-ção para a esquerda descontente com oconservadorismo e o autoritarismo dosstalinistas, hoje os mesmos argumentos,repetidos em Adventures, soam comoloas ao capitalismo imperialista do con-senso de Washington. Ao fim do livroBerman festeja a globalização, dizendoque ela produziu meios para as pessoasse comunicarem em escala mundial,criando uma cultura global através do ci-nema, do vídeo e da música. Esqueceu-se de dizer que o indivíduo precisa saberinglês para desfrutar de toda essa “rique-za” cultural, composta na sua maioria defilmes roliudianos, videoclipes da MTVe Sitcoms americanos. O contraste entreo enriquecimento sem limites dos EUAe o empobrecimento dos países do Ter-ceiro Mundo, outro produto da globa-lização, é sequer citado por Berman. Tal-vez porque esse fenômeno seja apenasmais uma operação necessária da máqui-na da modernidade, que a tudo desman-cha no ar.